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O curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua Pós-Graduação, contam com uma revista acadêmica, intitulada Raízes Jurídicas. A publicação tem como objetivo tornar pública a produção acadêmica dos professores e dos alunos, além de contar com artigos de professores convidados.
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VOLUME 7
NÚMERO 2
JULHO-DEZEMBRO 2011
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Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação
VOLUME 7
NÚMERO 2
JULHO-DEZEMBRO 2011
JURÍDICASRaízes
9 7 7 1 8 0 9 5 1 1 0 0 4
ISSN 1809-5119
1 CONVIDADOS
Amarildo Souza de Paula
Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins
Alexandre Morais da Rosa
2 DOCENTES
Alexsandra Marilac Belnoski
Angela Couto Machado Fonseca
Claudia Regina Baukat Silveira Moreira
Fernanda Busanello Ferreira
Guilherme Roman Borges
3 ACADÊMICOS
Andriessa Ortega
Anneliese Gobbes Faria
Anneliese Gobbes Faria
4 RESENHA
Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde e Thiago da Luz Ruizs
•
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• Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008
O princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos
no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo entre a responsabilidade
social e a educação ambiental
O que resta do Direito no Estado não mais nacional
Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e da legislação de software
Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-lidade e corpo
Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no Ensino Superior
O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann
A normalização e o jogo da exclusão: o louco e o criminoso em Michel Foucault
A inconstitucionalidade da modalidade de licitação convite frente aos princípios da publicidade e da
isonomia
A importância do planejamento estratégico no plano de recuperação judicial e extrajudicial de empresas
• Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 1
ISSN 1809-5119
Raízes
JURÍDICAS
Revista do curso de Direito da Universidade Positivo
e da Pós-Graduação v. 7, n. 2, jul./dez. 2011
2 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido – Curitiba – PR
(41) 3317-3000
Reitor
José Pio Martins
Vice-Reitor e Pró-Reitor Administrativo
Arno Antônio Gnoatto
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão
Bruno Henrique Rocha Fernandes
Coordenação do Curso de Direito
Marcos Alves da Silva Eros Belin de Moura Cordeiro
Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da Universidade Positivo – Curitiba
IMPRESSO NO BRASIL – PRINTED IN BRAZIL
Raízes Jurídicas/Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas. Curso de Direito. – v. 7, n. 2 (jul./dez. 2011) - .– Curitiba, Univer-
sidade Positivo, 2012 –
Periodicidade semestral
ISSN 1809-5119
1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito - Periódicos I. Universidade
Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito.
CDU 3
34
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 3
Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
Curso de Direito
Raízes
JURÍDICAS
Raízes Jurídicas. Curitiba. v. 7, n. 2, jul./dez. 2011
4 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito
Raízes
JURÍDICAS
Editores Responsáveis
Clara Maria Roman Borges Fernando Borges Mânica
Conselho Editorial
Abili Lázaro Castro de Lima (UFPR)
Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux (USP)
Ester Kosovski (UFRJ)
Flavio de Azambuja Berti (UP)
Guilherme Roman Borges (UP)
James Marins (PUCPR)
João Maurício Adeodato (UFPE)
José Roberto Vieira (UFPR)
José Souto Maior Borges (UFPE)
Luiz Edson Fachin (UFPR)
Raúl Cervini (Uruguai)
René Ariel Dotti (UFPR)
Romeu Felipe Bacellar Filho (UFPR)
Roque Antonio Carrazza (PUCSP)
Simone Maria Maluceli Pinto (PUCPR)
Silvana Maria Carbonera (UFPR)
Tercio Sampaio Ferraz Júnior (USP)
Projeto Gráfico e Diagramação
Yvana Savedra de Andrade Barreiros
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 5
Raízes
JURÍDICAS
6 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 7
curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua Pós-
-Graduação, apresentam novo volume da revista acadêmica intitulada
Raízes Jurídicas, com o objetivo primordial de tornar novamente pú-
blica a produção interna que está sendo realizada pelos seus professores,
pelos acadêmicos do curso, que, desde cedo, dedicam-se à pesquisa e à
extensão universitária, bem como pelas demais personalidades jurídicas que
desejam mostrar o conteúdo de suas investigações.
Destinada a contribuir para a formação de um sólido pensamento aca-
dêmico no país, comprometido com a seriedade de pesquisa, a profundidade
de investigação, o rigor conceitual e a austeridade acadêmica, Raízes Jurídi-
cas torna-se um prestimoso veículo para colmatar lacuna interna existente,
assim como para criar uma nova possibilidade de diálogo acadêmico e inte-
rinstitucional entre todas as áreas do curso e com outras entidades externas.
Trata-se de uma publicação semestral da Universidade Positivo, mas
controlada e dirigida pelo Curso e pela Pós-Graduação de Direito, cuja linha
editorial se encontra atenta à dinamicidade da ciência e à sua abertura con-
temporânea, tendo caráter transdisciplinar, de tal modo que serão publica-
dos artigos das mais diversas áreas, sempre afins à técnica jurídica: Filosofia,
História, Arte, Sociologia, Literatura, Teoria Geral e Dogmática Estrita.
Por tratar-se de uma revista acadêmica e jurídica, Raízes Jurídicas pro-
cura alcançar, especialmente, a leitores versados na sua respectiva área,
conquanto busque também proporcionar um encontro com as mais diversas
áreas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, especialmente a Sociologia,
a História, a Filosofia, a Antropologia, a Psicologia e a Ciência Política. Toda-
via, seu alvo se expande, ao objetivar também leitores que estejam mais
próximos à instrumentalidade da prática, a ver-se pelo trabalho de juízes,
promotores, advogados, delegados, procuradores, etc., bem como de enti-
dades da sociedade civil organizada, de organizações não governamentais,
de organismos internacionais e de executores de políticas públicas em maté-
rias pertinentes ao universo jurídico.
O maior número de leitores tem em vista a ampliação do conhecimento
técnico-jurídico, a ditongação dos horizontes filosóficos e linguísticos e,
sobretudo, o despertar do pensamento crítico e o favorecimento de opções
de análises teóricas que não obriguem o leitor à concordância com a opinião
comum, tão comum no dogmatismo da ciência.
O
8 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
O Princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do
“Direito” dos Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Amarildo Souza de Paula.......................................................................... 11
O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo
entre a responsabilidade social e a educação ambiental
Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins ...................................... 57
O que resta do Direito no Estado não mais nacional
Alexandre Morais da Rosa ....................................................................... 77
Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e
da legislação de software
Alexsandra Marilac Belnoski ................................................................... 103
Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-
lidade e corpo.
Angela Couto Machado Fonseca ............................................................. 117
Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no
Ensino Superior
Claudia Regina Baukat Silveira Moreira ................................................... 125
O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann
Fernanda Busanello Ferreira ................................................................... 135
A normalização e o jogo da exclusão: o louco e o criminoso em Michel Fou-
cault
Guilherme Roman Borges ....................................................................... 145
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 9
A inconstitucionalidade da modalidade de licitação convite frente aos princí-
pios da publicidade e da isonomia
Andriessa Ortega ................................................................................... 185
A importância do planejamento estratégico no plano de recuperação judicial
e extrajudicial de empresas
Anneliese Gobbes Faria .......................................................................... 199
Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica
Anneliese Gobbes Faria .......................................................................... 221
Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janei-
ro: Zoar, 2008.
Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde eThiago da Luz
Ruiz....................................................................................................... 233
10 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 11
Amarildo Souza de Paula Advogado e Engenheiro Florestal. Doutor em Engenharia Florestal.
O presente trabalho de pesquisa constitui um estudo a cerca da prote-
ção normativa dos Direitos Humanos na perspectiva da sociedade, e na or-
dem internacional. Reúne alguns exemplos de normas e de ponderação entre
direitos humanos e os direitos fundamentais, que têm como premissa a tría-
de da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Analisa par-
ticularmente o princípio da fraternidade, sob a ótica do Direito, enfatizando
que seu conteúdo pode contribuir de forma decisiva para a efetivação e pro-
moção da dignidade da pessoa humana, na medida em que abre novos hori-
zontes para os operadores no direito, na satisfação das demandas sociais.
Constata em derradeiro que a natureza das normas que disciplinam os Direi-
tos Humanos e as garantias fundamentais é de direito constitucional na me-
dida em que estas se inserem no texto de uma Constituição, tendo, portanto,
uma aplicabilidade imediata. A Constituição Federal do Brasil descreve ainda,
os direitos e as garantias individuais, com presteza das Constituições mais
modernas do mundo.
12 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A pretensão de abordagem do tema “O Princípio da Fraternidade como
conteúdo necessário na efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro” objetiva demonstrar a verossimilhança
existente na relação do Direito e o Princípio da Fraternidade, elemento, me-
diador entre os princípios da liberdade e da igualdade, que a luz de estudos
científicos, vem sendo objeto de pesquisa na Ciência Jurídica.
Estudos mais aprofundados sobre o tema iniciaram através de um gru-
po de estudiosos e pesquisadores, que por alguns anos ficou restrito na Eu-
ropa, a “priori” na Itália, que ficou conhecido como Movimento “Comunhão e
Direito”, ou seja, o Direito posto em “comunhão.” Ainda na fase inicial deste
movimento, esta ideia se propagou para outras partes do mundo, tendo não
só a participação dos estudiosos do Direito, mas, como aderentes também
os operadores do Direito, disposto a levar para frente este desafio do início
do século XXI.
Nas palavras de Munir Cury, o termo “Comunhão e Direito” tem um du-
plo significado:
De um lado, propõe-se a colocar à disposição do mundo jurídico conhe-cimentos e experiências da atividade profissional; de outro, descobrir no direito um meio eficaz e necessário para contribuir na transformação da vida da sociedade em autêntica comunhão, a começar pelo operador do direito, sendo ele o primeiro a acolher a todos, a desejar a promoção da parte envolvida no processo como se fosse a sua própria, a se identificar com o sofrimento daquele que bate à porta da Justiça.1
Desta vasta difusão originou-se o Congresso Internacional “Relações
no Direito Qual o espaço para a fraternidade?” em 2005 em Roma-Itália, no
Brasil, a primeira discussão sobre o assunto, aconteceu em São Luís/MA, no
período de 12 a 14 de outubro de 2006, com o tema “Fraternidade: Novo
Elemento ao Conceito de Justiça”, e posteriormente o Congresso Nacional
Direito e Fraternidade, realizado em Vargem Grande Paulista/SP, no período
de 25 a 27 de janeiro de 2008. E a foi partir da influência e do entusiasmo
de acolhimento dessa nova perspectiva de enxergar o Direito sobre o prisma
da fraternidade, que nasceu essa proposta de trabalho de pesquisa científica.
A iniciativa em estudar a matéria no Brasil, sob o rigor da ciência, bem
como a produção de textos científicos tendo como objeto a “fraternidade
como categoria jurídica”, se deu por iniciativa da Pesquisadora e Cientista
Josiane Rose Petry Veronese, Professora Titular da disciplina Direito da Cri-
ança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina, na quali-
1
CURY, Munir. O instituto da adoção e a realidade social brasileira. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 105.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 13
dade de Vice-diretora do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Fede-
ral de Santa Catarina e Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Soci-
ais da Criança e do Adolescente, que ofereceu no Programa de Pós-
Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) à disciplina: “Seminário Direito
e Fraternidade”, que tem como ementa:
Um diálogo com a cultura contemporânea, cuja ementa é Direito e justi-ça. Direito e fraternidade. A fraternidade como categoria jurídica. Frater-nidade e direitos humanos. Elementos do conceito de fraternidade e de Direito Constitucional. A fraternidade e a cultura contemporânea. A fra-ternidade no ordenamento jurídico brasileiro. Relações jurídicas e frater-nidade. A produção jurisprudencial e a categoria fraternidade.2
No que tange os procedimentos de pesquisa, destaca-se que a meto-
dologia empregada consistiu em pesquisa bibliográfica, pois são as fontes
de pesquisa que propiciam um contato direto com estudos realizados sobre
a temática, valendo se também da análise de dispositivos legais.
Os dados bibliográficos foram coletados a partir da seleção de reno-
mados autores conforme a natureza da temática. Dentre eles: Flavia Piose-
vam, Fábio Konder Comparato, Norberto Bobbio, Paulo Bonavides, Miguel
Reale, Maria Tereza Uille Gomes, Antonio de Padua Ribeiro, bem como os
autores italianos Antonio Maria Baggio, Marco Aquini, Fausto Goria.
Para uma melhor compreensão do tema proposto, o trabalho está or-
ganizado em dois capítulos.
O Capítulo 1 aborda a gênese e evolução dos Direitos Humanos sob a
perspectiva da sociedade, e na ordem internacional, notadamente a partir da
II Guerra Mundial, e o valor do princípio da fraternidade no cumprimento do
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Assim, com especial
destaque à fraternidade que, neste contexto, é preconizada como categoria
jurídica e atua na efetivação desses Direitos que é de toda a Humanidade.
O Capítulo 2 trata do princípio da fraternidade frente a diversos ramos
do Direito, como princípio que melhor confirma a unidade do Ordenamento
Jurídico Brasileiro, e que é (ou deve ser) expressão da estreita correlação
entre direitos e deveres. Enfatiza o conteúdo jurídico fraternal que a Consti-
tuição Federal de 1988 inaugura em nosso país ao assegurar o exercício dos
direitos fundamentais “como valores supremos de uma sociedade fraterna.”
Por fim, a conclusão que chegou este trabalho de pesquisa, realizado
através das fundamentações teóricas demonstradas.
2 VERONESE, Josiane Rose Petry. Seminário direito e fraternidade: um diálogo com a cultura contempo-rânea. Florianópolis: Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, 2009.
14 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Quando se fala em direitos humanos, corre-se o risco de se deparar na
literatura, com significados errôneos a respeito, tendo-se em conta a diver-
sidade de interpretações motivadas por tal expressão.
Em diferentes situações de arguição sobre a questão, a maioria das
respostas evidencia deduções supérfluas, comprovando que cada ser huma-
no tem seus próprios direitos, descaracterizando o sentido real da expres-
são, que se perfaz num conjunto de atribuições que estimam tais direitos e
derivam deles com antecedentes históricos significativos e realidades socio-
políticas com significados precisos.3
Elizabete Maniglia ressalta que direitos humanos supõem uma cons-
tante histórica, cujas raízes remontam a instituições do mundo clássico. Por
outro lado ao contrário pode ser ainda sustentado na ideia de que os direitos
humanos nascem com a afirmação cristã da dignidade moral do homem co-
mo pessoa.4
O comum é dizer que, os direitos humanos nascem contra o regime
feudal e a formação das relações burguesas.
Para Norberto Bobbio direitos humanos, como um termo não realmente
definido e, quando o é, torna-se mal formulado. Para tanto, Bobbio analisou
o tema “direitos humanos” em três dimensões, para assim apresentar um
conceito que ele chama de razoável: uma tautológica que não aporta ne-
nhum elemento novo que permita caracterizar tais direitos. Assim, os direi-
tos do homem são os que correspondem ao homem por direito de ser ho-
mem.5
A definição formal não especifica o conteúdo desses direitos, limitan-
do-se a alguma indicação sobre seu estatuto, desenhado ou proposto, como
os direitos do homem sendo aqueles que pertencem e devem pertencer a
todos os homens e dos quais ninguém pode ser privado. Por fim, Bobbio
atribui uma definição na qual apela a certos valores últimos, suscetíveis de
diversas interpretações como: “Os direitos dos homens são aqueles impres-
cindíveis para o aperfeiçoamento da pessoa humana, para o progresso social
e para o desenvolvimento da civilização.” 6
A expressão “direitos humanos” altera-se de acordo com a realidade e
a experiência de cada povo. Nos ensinamentos de Maniglia, os direitos hu-
3 MANIGLIA, Elizabete. As interfaces do direito agrário e dos direitos humanos e a segurança alimen-tar. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. p. 67. 4
MANIGLIA, 2009, p. 67.
5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 04. 6 BOBBIO, 1992, p. 05.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 15
manos constituem a conjunção dos direitos naturais, ou seja, correspondem
ao homem pelo mero direito de ser membro da sociedade humana.7
À luz dos direitos fundamentais, após 1770, na França, passa-se a
adotar o posicionamento de que os direitos fundamentais são aqueles direi-
tos humanos positivados nas constituições estatais e, ainda, aqueles princí-
pios que resumem a concepção do mundo e que informa a ideologia política
de cada ordenamento jurídico.
Na busca de uma definição para os direitos humanos, Maniglia ensina
que:
[…] os direitos humanos aparecem como um conjunto de faculdades e instituições que em cada momento histórico concertam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humana, as quais devem ser re-conhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacio-nal e internacional.8
Nesse sentido, é dado objetivar os direitos humanos como uma facul-
dade que corresponde às necessidades humanas nos fatos históricos, para
situar as necessidades que se alteram ao longo do tempo, pois os direitos
alteram-se num caráter dinâmico e real e, ao mesmo tempo, precisam vol-
tar-se para valores de dignidade, liberdade e igualdade.
Para Maniglia a dignidade humana é o ponto de referência de todas as
faculdades que se dirigem ao reconhecimento e à afirmação da dimensão
moral da pessoa. Sua importância é a gênese da moderna compreensão dos
direitos humanos.9
A liberdade ensina Maniglia constitui o princípio aglutinante da luta
dos direitos humanos, confundida por muito tempo com a própria noção de
direitos humanos.10
A igualdade é o postulado fundamental de toda moderna construção
teórica e jurídica positiva dos povos. Por fim a positivação do conjunto des-
sas faculdades incorre no enfoque formalista de se efetivarem, por meio de
instrumentos normativos, até as técnicas de proteção e garantia.11
A origem dos direitos humanos no processo evolutivo se dá com os di-
reitos individuais desde o Egito e na Mesopotâmia. Na Grécia, havia o ideal
de emancipação do homem cidadão, surgindo, também estudos sobre a li-
berdade e igualdade do homem, como as previsões de participação política e
crença num direito natural superior às leis escritas.
7 MANIGLIA, 2009, p. 68. 8 Ibid., p. 71. 9 MANIGLIA, loc. cit. 10 MANIGLIA, 2009, p. 71. 11 MANIGLIA, loc. cit.
16 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Segundo Gilberto Giacóia o homem, enquanto soberano em sua indivi-
dualidade, não pode inspirar conformismo próprio daqueles que renegam a
dignidade de sua condição humana.12
Nessa mesma linha, indaga, afinal, qual a nossa lei-regente? A de An-
tígona ou a de Creonte? Tarda perceber que, aos poucos, vão sendo relega-
dos princípios emanados das leis imutáveis e não escritas dos céus, que não
nasceram ontem nem hoje, que nunca morrem e que ninguém sabe de onde
provieram.
Para o mestre, importa, pois, tornar coeva a resposta de Antígona ao
rei de Tebas, figura do tirano, na peça de Sófocles, diante da acusação de
descumprimento de seu édito, ao enterrar o corpo do irmão Polícines (morto
em batalha contra aquele reino), declarado insepulto para ser devorado por
cães e abutres, frente à indagação:
Ousaste infringir minha lei? Sim. Porque não foi Zeus quem a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos a Justiça – quem aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a mortal permita violar aquelas não escritas e intangíveis leis dos deuses. Estas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; Ninguém sabe quando foram promulgadas.13
O cristianismo, segundo Maniglia desenvolveu e universalizou a ideia
judaica do homem criado à imagem e semelhança de Deus, e, por isso, mais
tarde, Santo Tomás de Aquino, em sua Summa theologica, no século XIII, já
afirmava que o homem não pode ser rebaixado a nenhuma outra condição,
pois é reconhecido a todo ser humano um valor radical e distinto do atribuí-
do ao restante dos seres da criação.14
Porém, para a autora, foi o direito romano, com a Lei das XII Tábuas,
que iniciou um procedimento escrito sobre liberdade, propriedade e prote-
ção dos direitos do cidadão.
Na Idade Média, consagra-se a ideia de que os direitos humanos têm
sempre o mesmo traço: a limitação do poder estatal que, segundo Fábio K.
Comparato desde os séculos XI e X a.C., até os dias de hoje, são marcas que
acompanham pari passu esses direitos.15
12 GIACOIA, Gilberto. Invasão da intimidade. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 2, n. 1, p.123, jan./jun. 2001. 13 GIACOIA, loc. cit. 14 MANIGLIA, 2009, p. 72. 15 COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 40.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 17
Para Olivier Nay o período revolucionário evoluiu sensivelmente duran-
te os dois últimos séculos. Segundo o autor o processo teria dado início com
as revoluções inglesas do século XVII (1642-1649), e com a “Revolução Glo-
riosa” de (1688-1689), inspirada nas teorias de John Locke, e teria acelerado
no final XVIII com as revoluções da Suíça, dos Países Baixos e da Irlanda.16
Nesta mesma época, na França, a revolução industrial, que ocorreu na
Inglaterra, teve um desfecho dramático: a Revolução Francesa, com o seu
documento fundamental; “Declaração dos Direitos do Homem” de 1789.
As transformações ocorridas na Europa nos séculos XVII e XVIII, princi-
palmente no que se refere à economia, alteram a forma de pensar no mundo.
O Iluminismo – iniciado por René Descartes (1596-1650), e os ingleses
Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704) e o holandês Baruck
Espinosa (1632-1677) – criticavam o absolutismo, a religião e o mercantilis-
mo como elementos limitadores do avanço da sociedade como um todo,
nesse sentido, aduz Nay, que a Revolução Francesa (1789), já numa primeira
perspectiva espelhava o resultado conquistado nos séculos anteriores.17
Para os revolucionários de 1789 a proclamação da soberania do povo é
uma etapa necessária para romper com um sistema absolutista e feudal o
qual julgavam inócuo.
Nos dizeres de Nay a visão política na França colocada em 1789,
apóia-se no princípio de uma justiça igualitária, supondo a possibilidade de
garantir aos homens os mesmos direitos no espaço público, onde os cida-
dãos não devem ser identificados, de fato, por sua origem social ou por sua
riqueza, não se apoiando nas diferenças de status que justificam a existência
de privilégios e de direitos desiguais.18
No regime anterior a Revolução Francesa, os laços comunitários eram
definitivos, como se fosse uma condição “natural” da qual não podiam sair,
onde uma minoria abastada era protegida pelo nascimento e a fortuna, man-
tendo os demais indivíduos num estado de servidão.
Segundo Nay, ao proclamar a soberania da nação e ao romper definiti-
vamente com os quadros da sociedade cristã e a monarquia, à Revolução
Francesa abre assim o caminho da construção democrática.19
Em 04 de julho de 1776, nos Estados Unidos das Américas é assinada
pelo Congresso a Declaração de Independência dos Estados Unidos, outro
marco na história da sociedade ocidental, cuja, redação redigida na Filadélfia
16 NAY, O. Histórias das ideias políticas. Trad. Jaime A. Clasen. R.J. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 255. 17 NAY. 2007, p. 253. 18 Ibid., p. 254. 19 Ibid., p. 255.
18 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
por Thomas Jefferson (com a ajuda de Benjamim Franklin) é o prelúdio de
oito anos de guerra entre os Insurgentes e a autoridade britânica. Neste con-
texto, treze colônias proclamam altivamente sua independência referindo-se
no dizer de Nay “às verdades evidentes.” 20
Segundo Bobbio, foram consagrados documentos políticos de suma
importância, como a Declaração da Virgínia (1778), com a seguinte afirma-
ção: Todos os homens são por natureza igualmente livres e possuem alguns
direitos inatos, dos quais, entretanto no estado social, não podem privar ou
despojar seus descendentes” e a Constituição dos Estados Unidos da Améri-
ca (1787).21
Por ocasião da Revolução Russa, de outubro de 1917, tendo como
principal líder Lenin (Vladimir Ilitch Ulianov – 1870-1924). O governo bol-
chevique já instalado desde 1917 toma medidas como: trabalho obrigatório
a todos e salário único; nacionalização dos bancos, nacionalização das em-
presas industriais com mais de cinco ou dez operários; entrega obrigatória
das colheitas quando requisitadas, salvo a parcela de consumo próprio, situ-
ação que perdurou até o final do século XX, quando então decaiu o comu-
nismo soviético com a extinção da União da República Socialista Soviética e a
criação da Comunidade de Estados Independentes.22
Tais medidas abriram o caminho para o Estado Socialista e despertou a
consciência do mundo para a necessidade de assegurar aos trabalhadores
um nível de vida compatível com a dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Maria Teresa Uille Gomes “O reconhecimento dos di-
reitos humanos de caráter social e econômico foi o principal benefício que a
humanidade recolheu do movimento socialista.” 23
Para a autora, o industrialismo do século XIX, ao mesmo tempo em que
procurava levar às últimas consequências as ideias liberais, mostrava tam-
bém outra faceta, que era a diferença de classes sociais, com a concentração
de indivíduos que nada mais tinham do que a força de trabalho.
Era imperiosa a necessidade de se implantar uma nova ordem social
igualitária e justa.
A “Declaração dos Direitos do Homem” da Revolução Francesa (1789) e
a doutrina sobre os direitos civis na “Declaração de Independência dos Esta-
dos Unidos” de 1776, foram fruto da filosofia iluminista francesa, juntamente
com as doutrinas de Locke e Rousseau, sobre o indivíduo e a sociedade, fi-
20 Ibid., p. 288. 21 BOBBIO, 2003, p. 198. 22 NAY, 2007, p. 288. 23 GOMES, M. T. U. Direito humano à educação. Curitiba: Juruá, 2009. p. 88.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 19
xando em sete pontos fundamentais, entre outros: “a revolta contra as auto-
ridades”, “o racionalismo”, “o pensamento do Iluminismo”, “o otimismo cul-
tural”, “o retorno à natureza”, “o cristianismo humanista” e “os direitos hu-
manos.” 24
Inácio Strieder faz referência às ideias sociopolíticas, das declarações
que, no seu dizer, estavam impregnadas de pressupostos libertários e revo-
lucionários da burguesia contra as monarquias, a aristocracia e seus defen-
sores. E, nessa época, a maioria das autoridades das igrejas cristãs e, princi-
palmente, da Igreja Católica, estavam comprometidas com as monarquias e
as classes aristocráticas.25
Para o autor, foi esse o motivo que levou por mais de um século, a
Igreja ter-se ocupado em reprovar os direitos humanos, assim como haviam
sido formulados pela Revolução Francesa. Esta atitude de reprovação total
perdurou, praticamente, até o Papa Leão XIII, que em sua encíclica “Libertas”,
publicada em 1889, fez a distinção entre o aceitável e reprovável nas “novas
liberdades.”
Strieder, em sua obra assegura que esta primeira aproximação da Igre-
ja com os Direitos Humanos foi motivada pela situação histórica da segunda
metade do século XIX com o avanço do liberalismo econômico e do socialis-
mo. Estas duas ideologias foram vistas pela Igreja como ameaças para a dig-
nidade da pessoa humana.26
Segundo Strieder os princípios proclamados pela Declaração da inde-
pendência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 se inspiraram nos mesmos valores: liber-
dade de consciência, liberdade de culto, liberdade de expressão, direito de
propriedade, liberdade de negócio, igualdade perante a lei, direito a uma
justiça igual para todos.27
Para o autor as duas declarações se baseiam na crença de que existem
verdades universais e eternas, anteriores a qualquer sistema governo ou ide-
ologia, dentre essas verdades estão os “direitos fundamentais do homem”
Strieder aduz, ao comparar a Declaração de Independência dos Estados
Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa que é
possível encontrar, em ambas, uma clara fusão de duas interpretações ideo-
lógicas que se desenvolvem paralelamente, desde o século II de nossa Era:
sendo primeiro, um humanismo idealista de origem grega; e segunda inter-
pretação, a tradição profética judaico-cristã.28
24 STRIEDER, Inácio. A Fundamentação filosófica-teológica dos direitos humanos. In: ARAUJO, G M. L.de.; MOMESSO. L.A. (Orgs.). Cadernos de Direitos Humanos. Recife: Universitária. 2008. p. 19. 25 Ibid., p. 18. 26 STRIEDER, op. cit. 27 STRIEDER, 2008, p.15. 28 STRIDER, 2008, p. 16.
20 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Na explicação do autor, a interpretação cristã predomina no Documen-
to dos Estados Unidos, pois ele afirma que “todos os homens são iguais,
porque o Criador os dotou com os mesmos direitos”, essa mesma Declaração
também se dirige ao Supremo Juiz do mundo e menciona a Divina Providên-
cia, ao passo que, a humanística grega se destaca na Declaração francesa,
onde, apenas no preâmbulo, se refere ao “Ser Supremo”, afirmando que to-
dos os homens nascem com direitos iguais, por possuírem a mesma nature-
za humana.
A compreensão do homem que subjaz a essas declarações supõe que
todos os homens foram criados pelo único Deus, pai de todos, que os dotou
com uma única natureza racional, que lhes confere a dignidade de pessoas
humanas.29
A igualdade e a fraternidade são características dessas duas proclama-
ções.
Para Strieder sua herança religiosa é inconfundível, pois declara que
esses direitos são sagrados e invioláveis. O primeiro panfleto com os “Direi-
tos dos Cidadãos”, distribuído em Paris trazia, logo abaixo do título, um olho
dentro de um triângulo, esse símbolo é tradicionalmente o símbolo da San-
tíssima Trindade, mas os revolucionários franceses explicavam esse símbolo,
dizendo, que ele representava “o supremo olho da razão que ilumina toda a
humanidade.”30
É verdade, como já sublinhara Locke no final do século XVII, e que con-
tinua no século XVIII, que o reconhecimento, dos direitos naturais têm im-
portantes incidências políticas, sobretudo, a ideia de que todo indivíduo
possui direitos que nenhuma autoridade poderia contestar. Ligados à natu-
reza humana, esses direitos não podem ser limitados sem que, se quer se-
jam enquadrados pela lei.
Nesse sentido Nay, esclarece que ao pertencer ao âmbito da “legislação
natural”, são considerados como anteriores à “lei positiva” que é colocada
sob a responsabilidade do soberano.31
A espécie humana, em seu longo processo evolutivo, cuidou de moldar
características próprias de uma raça que se destaca por deliberar sobre seu
destino, aliás, não pode o poder identificar-se à vontade apenas de um ho-
mem, mas emanar-se da coletividade para lhe assegurar as condições de
vida e desenvolvimento.
29 Ibid., loc.cit. 30 Ibid., loc.cit. 31 NAY, 2007, p. 288.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 21
Nessa mesma linha Nay relata a ideia de incluir os direitos naturais
numa declaração está particularmente em voga no fim do século XVIII.32
Esse desejo, veio com a consagração mundial da Declaração dos Direi-
tos do Homem e do Cidadão (Déclaration des droits de l'homme et du cito-
yen, August 26,1789), com 17 artigos, entre os quais se destacam algumas
previsões lembradas por Maniglia:
Princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reser-va legal e anterioridade em matéria penal princípio da presunção de ino-cência, liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento.33
Os partidários da Declaração conseguem seus objetivos políticos, ou
seja, transformar os direitos inscritos na natureza em lei positivada a fim de
que seu valor seja publicamente reconhecido, e mais, de caráter universalis-
ta, tornando-se referência para todas as elites que, na Europa, depois no
mundo, procuraram desfazer-se dos poderes autoritários.34
Todavia, a Declaração do Direito do Homem e do Cidadão é precedida,
na história, por outros documentos que corroboraram para efetivação desses
direitos que foram a Petition of Right, de 1628, que previa a não obrigatorie-
dade do pagamento de impostos ou taxas que não tivessem o consentimento
do parlamento; o Habeas Corpus, de 1679, a Bill of Rights, que restringiu o
poder estatal, fortalecendo o princípio da legalidade; o direito de petição,
vedação de penas cruéis, entre outras; o Act Seattlement, de 1701, que rea-
firmou o princípio da legalidade e a responsabilidade política dos agentes
públicos.35
Ressalta Maria Tereza Uille Gomes, que o sucesso da Declaração fez da
França, por muito tempo, a campeã das ideias liberais, justamente pelo fato
dos autores da Declaração, reconheceram e declararem que os “homens nas-
cem e continuam livres e iguais em direitos” e que “as distinções sociais só
podem fundar-se na utilidade comum.” 36
Para a autora, esse fato significou um progresso na afirmação dos va-
lores fundamentais da pessoa humana, como símbolo do exercício da liber-
dade, sob o império da lei, em condições de igualdade.37
Guimarães diz que a concepção contemporânea dos direitos humanos
só vem a surgir numa 3a fase de sua evolução histórica, que se dá em 10 de
dezembro de 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, como
32 NAY, loc. cit. 33 MANIGLIA, 2009, p. 72. 34 NAY, op. cit. 35
MANIGLIA, 2009, p. 72.
36 GOMES, 2009, p. 89. 37 GOMES, loc. cit.
22 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
marco maior do processo de reconstrução dos direitos humanos, face às
atrocidades praticadas pelos nazistas na II Guerra Mundial.38
O que segundo Gomes, em nome do Estado, abalaram de tal forma o
sentimento das pessoas do mundo todo, ultrajando a consciência da huma-
nidade, vindo a Declaração, desta forma, a buscar a manutenção da liberda-
de, da justiça e da paz no Mundo.39
Neste contexto aduz Gomes:
As guerras são o terreno de desenvolvimento dos piores crimes. E conti-nua, durante a primeira Guerra Mundial, foram mortos mais de um mi-lhão de armênios e de outros cristãos no Império Otomano, com massa-cres e incríveis deportações no coração do deserto sírio, permanecendo cravado o Metz Yegbern, o grande mal, o massacre de grande parte do povo armênico na Anatólia […]. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Sboab acabou no aniquilamento de seis milhões de judeus, vítimas ino-centes de um ódio antigo e novo. A Sboab, com seus mortos de modo violento e científico, como numa cadeia de produção da morte, perma-nece como o monumento fúnebre da loucura anti-semita […]. Com os judeus, foram mortos milhões de poloneses, de eslavos, de pessoas de outros povos e, enfim, de ciganos que eram considerados associais pe-los nazistas. É Samudaripen, o genocídio em língua romani, com o mas-sacre de uma boa parte do povo cigano, cujas vítimas são calculadas en-tre duzentos e cinquenta e quinhentos mil. Entre os mortos desse povo, houve quinze mil franceses, mil italianos, quinze mil alemães, vinte e oi-to croatas, trinta e sei mil romenos […]. Os ciganos, especialmente cri-anças, foram material humano de eleição para as experiências médicas do famigerado médico nazista Mengele […]. A perseguição dos ciganos baseava-se na convicção da diversidade das raças. Esse povo sem-terra, que jamais se tornou uma nação na Europa, considerada associal por natureza, parece aos bem-pensantes um elemento de desordem até os dias de hoje.40
Nesse sentido o conjunto desses fatores contribuiu para a criação de
uma ordem internacional capaz de agrupar os interesses dos Estados em
busca de um ideal comum. É neste contexto que é proclamada a Declaração
Universal de Direitos Humanos, em 10-12-1948, data em que também é
ratificada pelo Brasil.41
Nas palavras de Gomes, é possível afirmar que os direitos humanos
são objeto de preocupação mundial histórica, que se desenvolveram gradati-
vamente, visando garantir o direito à liberdade, à igualdade e à dignidade da
pessoa humana.42
38 GUIMARÃES, M. A. Fundamentação dos direitos humanos: relativismo ou universalismo?. In: PIOVE-SAN. F.(Coord.) Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2007. p. 57. 39 GOMES, op. cit., p. 89. 40 GOMES, 2009, p. 89. 41 GUIMARÃES, 2007, p. 57. 42 GOMES, 2009, p. 91.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 23
Leciona Flávia Piovesan, os direitos humanos compõem assim uma
unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, capaz de conjugar o
catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econô-
micos e culturais.43
Piovesan ao abordar o tema Direitos Humanos destaca: “É no princípio
da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra o próprio
sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a herme-
nêutica constitucional contemporânea.” 44
Conforme Maniglia é na segunda metade do século XX, que se passou
a classificar os direitos humanos em três gerações, instalando-se, assim, os
direitos humanos da época contemporânea, conforme alinhavados a seguir:
1a geração: os direitos civis (direito à vida, à integridade física e moral, à dignidade, etc.) e políticos (direito de participar de organizações políti-cas, de eleger e ser eleito, etc.); realçam o princípio da liberdade e os di-reitos dos cidadãos. Paulo Bonavides considera que essa primeira gera-ção de direitos valoriza, primeiramente, o homem singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista, que com-põe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual, não tendo, dessa forma, preocupação com os problemas sociais, até porque a igualdade burguesa era exclusivamente formal. 2a geração: é conhecida como dos direitos econômicos (direito à propri-edade individual e/ou coletiva, etc.); sociais (direitos à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à seguridade social, ao salário justo e equitativo, etc.) e culturais (direito aos benefícios da ciência e da tecno-logia, direito à investigação científica, etc.); se identificam com as liber-dades positivas reais ou concretas e acentuam o princípio da igualdade. Esses direitos surgem em decorrência da deplorável situação da popula-ção pobre das cidades industrializadas da Europa ocidental, que era constituída por trabalhadores expulsos do campo. Os camponeses ex-pulsos do campo tornaram-se, muitas vezes, mendigos nas cidades. Conclui Maniglia que, quando se proclamaram os direitos humanos co-mo emancipação política, realizou-se apenas uma etapa da dinâmica histórica. Ao longo dos anos, os direitos sociais foram se consolidando em direito ao trabalho, à saúde, à educação e a previdência social, direi-tos estes que exigem uma atividade positiva do Estado por meio de polí-ticas públicas. 3a geração: materializa poderes de titularidade coletiva, atribuídos gene-ricamente a todas as formações sociais, e consagra o princípio da soli-dariedade ou fraternidade. Desenvolve o estudo dos direitos humanos como os mais consolidados e representativos, como direitos à paz, ao desenvolvimento econômico, a livre determinação dos povos, direito da criança e do adolescente, ao meio ambiente, etc. Maniglia assinala, que os direitos e as liberdades da terceira geração se apresentam como uma resposta ao fenômeno da denominada “contaminação das liberdades.” A
43 PIOVESAN, Flávia. Pobreza como violação de direitos humanos. In: NOLETO, M. J.; WERTHEIN,J.(Org.) Pobreza e desigualdade no Brasil: traçando caminhos para a inclusão Social. Brasí-lia: UNESCO. 2003. p. 137. 44 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva. 2006. p. 31.
24 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
autora acentua que a revolução tecnológica redimensionou as relações entre os seres humanos, entre o homem e a natureza, e do ser humano com o seu contexto ou marco cultural de convivência, já que essas mu-danças claramente incidem na esfera dos direitos humanos.45
Ainda sob o ponto de vista das gerações dos direitos humanos, o as-
sunto não é pacífico. Paulo Bonavides cita ainda uma 4a geração o direito à
democracia, a informação e ao pluralismo (como reflexo da globalização) e a
garantia do futuro da cidadania e da liberdade de todos os povos.46
Segundo o autor, essa evolução deu-se no plano dos direitos internos,
e, no âmbito internacional, nesse processo os direitos que primeiro surgiram
foram os econômicos e sociais.47
No que observa o autor, a sequência correta seria: em primeiro lugar,
os direitos ao trabalho e condições de trabalho; em segundo, os direitos in-
dividuais, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.48
A terminologia “gerações” para Trindade, leva ao raciocínio de seres
humanos que se sucedem no tempo, não a ideia de somatização dos direitos
anteriores aos posteriores.49
Afirma ainda, que os novos direitos – os direitos de solidariedade ou
fraternidade, como o direito ao desenvolvimento e ao meio ambiente sadio –
interagem com os direitos individuais e sociais, não os substituindo, distin-
tamente do que a noção simplista das chamadas gerações de direitos huma-
nos se sucedem no tempo, os direitos, por outro, se acumulam e se sedi-
mentam.50
Nos ensinamentos de Vojin Dimitrijkevi, a evolução dos direitos huma-
nos é um processo dinâmico infindável: não só os direitos reconhecidos se-
rão aperfeiçoados, enriquecidos e ampliados, como também se farão acom-
panhar de novos direitos, tão logo haja consenso sobre a importância notó-
ria dos valores que estes veiculam e sobre sua capacidade de serem expres-
sos positivamente.51
Nesse sentido corrobora Hannah Arendt, “Os direitos humanos não são
um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante proces-
so de construção e reconstrução.”52
No Brasil, os direitos humanos ganharam nova expressão, a partir de
1988, com a Constituição Federal. O Art. 5o descreve os direitos e as garan-
tias individuais, com presteza das Constituições mais modernas do mundo,
45 MANIGLIA, 2000, p. 74. 46 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 564. 47 BONAVIDES, loc. cit. 48 BONAVIDES, loc. cit. 49 TRINDADE, A. A. C. Direitos Humanos e meio ambiente. Porto Alegre: Sérgio Fabris,1993. p.191. 50 TRINDADE, 1993, p. 191. 51 DIMITRIJKEVI. Vojin. Direitos humanos e paz. In: SYMONIDES, Janusz. (Org.). Direito humanos novas dimensões e desafios. Brasília: UNESCO, 2003. p. 85. 52 ARENDT. H. As origens do totalitarismo. Rio de Janeiro. 1979. p. 34.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 25
mas não é só: o meio ambiente, política dos direitos sociais, a política eco-
nômica, os direitos do consumidor, a lei tributária e fiscal, suas funções so-
ciais estão presentes em diferentes capítulos da Carta Magna.
Para Maniglia num primeiro olhar, a ideologia e o positivismo proposto
na Constituição Federal de 1988, revelam a expressão de um país consolida-
do em princípios democráticos que respeitam e implantam a dignidade do
cidadão, ao menos em seu teor legal.53
Diz Gomes, que no Brasil, estamos diante do surgimento muito recente
de um novo ramo do Direito, o “Direito dos Direitos Humanos”, autônomo, e
que provoca nos juristas e acadêmicos o desafio de estudar a temática dos
direitos humanos a partir da interpretação e aplicação dos tratados e decla-
rações internacionais e seus reflexos na realidade social, identificando os
mecanismos de proteção de tais direitos em favor dos manifestantes pobres
e, em especial, dos excluídos que são vítimas de violação de seus direitos
fundamentais (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais).54
Dimitrijkevic relata em seu artigo “Valores como Direitos”, que a pro-
posição de que certos valores reconhecidos devem ser expressos em termos
de direitos individuais, necessários para o alcance ou a proteção do bem
relevante (valor), está na origem do pensamento dos direitos humanos.55
Cita o autor, como exemplo os instrumentos internacionais de direitos
humanos, o valor mais protegido é a dignidade da pessoa humana; dentro
desta, não é a vida humana o que mais se valoriza (uma vez que, sob certas
circunstâncias, admite-se a pena capital e é legítimo matar nos conflitos
internacionais), mas a integridade física da pessoa. Há um consenso de que
qualquer tentativa de transgressão do sistema orgânico do corpo humano é
inaceitável.56
Comparato entende que os direitos fundamentais são: Os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de aceitar normas, tanto no interior dos Esta-dos quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, leis, nos tratados internacionais.57
E cada vez mais, o reconhecimento de tais direitos converge com a
consciência ética coletiva, de que a dignidade da pessoa humana exige o
53 MANIGLIA, 2000, p. 77. 54 GOMES, 2009, p. 82. 55 DIMITRIJKEVI, 2003, p. 79. 56 DIMITRIJKEVI, loc. cit. 57 COMPARATO, 2003, p. 85.
26 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
respeito a certos bens e valores em qualquer circunstância, ainda que não
reconhecidos no ordenamento jurídico estatal ou internacional.
Ensina Gomes, que as Normas internacionais de direitos humanos, pelo
fato de exprimirem a consciência ética universal, estão num patamar acima
do ordenamento jurídico de cada Estado. Havendo conflito entre regras in-
ternacionais e internas, que digam respeito aos direitos humanos, prevalece
sempre a regra mais favorável à proteção da dignidade da pessoa humana no
caso concreto.58
Segundo Comparato os princípios fundamentais do sistema dos direi-
tos humanos são de duas ordens: princípios axiológicos e princípios estrutu-
rais.59
Os princípios axiológicos dizem respeito aos valores éticos supremos:
liberdade, igualdade e fraternidade, conforme a tríade da tradição francesa
reafirmada no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos.60
O princípio da liberdade tem como referencial axiológico a ideia de au-
tonomia, ou seja: de submissão de cada qual às normas por ele mesmo edi-
tadas.
O princípio da igualdade está relacionado à abolição dos privilégios es-
tamentais e a igualdade individual perante a lei.
O princípio da fraternidade está vinculado à ideia de responsabilidade
de todos pela carência ou necessidade de qualquer indivíduo ou grupo soci-
al. Com base nesse princípio é que passaram a ser reconhecidos os direitos
humanos sociais, que se realizaram através da efetivação das políticas públi-
cas e visam proteger aqueles que não dispõem de recursos próprios para
viver com dignidade.
Ainda nas lições de Comparato, os direitos sociais englobam o direito
ao trabalho, o direito à seguridade (saúde, previdência e assistência), o direi-
to a educação e, de modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11). “o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequado para si própria e sua família, inclusive á
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria
contínua de suas condições de vida.” 61
Quantos aos princípios estruturais dos direitos humanos, eles são de
duas espécies: a irreversibilidade e a complementaridade solidária.
O princípio da irreversibilidade dos direitos humanos está ligado ao fa-
to de que, na medida em que se amplia a consciência ética e coletiva e se
instituem os direitos fundamentais em vigor, estes se tornam irreversíveis e
se impõem pela sua própria natureza. Não podem ser suprimidos pelos Po-
58 GOMES, 2009, p. 86. 59 COMPARATO, 2008, p. 62. 60 COMPARATO, loc. cit. 61 Id., 2003, p. 64.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 27
deres Públicos, pelo Poder Constituinte e nem pela Organização das Nações
Unidas. Simplesmente é inválido suprimir direitos fundamentais por via de
novas regras constitucionais ou convenções internacionais.
O princípio da complementaridade solidária dos direitos humanos diz
respeito à essência do ser humano que é uma só, razão pela qual, de forma
igualitária e independente das diferenças, é dever dos Estados promover e
proteger dos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Tal princípio foi proclamado pela Conferência Mundial de Direitos Hu-
manos em Viena em 1993 nos seguintes termos: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de modo justo e equitativo, com o mesmo fun-damento e a mesma ênfase. Levando em conta a importância das parti-cularidades nacionais e regionais, bem como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados, independen-temente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.62
O homem é um ser social e criou a figura do Estado para disciplinar
essas relações da vida em sociedade. A Lei é que dá vida aos Estados sobe-
ranos, e como o mundo é uma sociedade de Estados, que demanda a inte-
gração de interesses jurídicos, econômicos e políticos, surge uma ordem
internacional constituída de organismos que, mesmo destituídos de sobera-
nia, buscam a interação entre os Estados, cuja prevalência deve ser a digni-
dade da pessoa humana e a paz social.
O Direito internacional público, também conhecido como Direitos das
Gentes, constitui-se no conjunto de princípios ou regras destinados a reger
os direitos e deveres internacionais dos Estados, dos organismos e dos indi-
víduos. Surgiu como ciência autônoma em princípios do século XVII.
Nas palavras de Amartya Sen, a ideia dos direitos humanos tem avan-
çado muito nas décadas recentes, adquirindo assim uma espécie de status
oficial no discurso internacional. Comitês influentes reúnem-se regularmente
para debater a fruição e a violação direitos humanos em diversos países do
mundo.63
62 DECLARAÇÃO e Programa de Ação de Viena. 1993. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 03 jun. 2010. 63 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. 6. ed. São Pau-lo:Companhia das Letras, 2007. p. 261.
28 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Para o autor a retórica dos direitos humanos hoje em dia é muito mais
aceita – na verdade, invocada com muito maior frequência – do que já foi no
passado. Pelo menos a linguagem da comunidade internacional parece refle-
tir uma mudança de prioridades e ênfase em comparação com o estilo dialé-
tico prevalecentes de algumas décadas atrás.64
No século XX o Direito Internacional atingiu seu pleno desenvolvimen-
to, com importantes acontecimentos, tais como: as Conferências Internacio-
nais Americanas, as Conferências Internacionais da Cruz Vermelha, a 2a Con-
ferência da Paz de Paris, a criação da Liga das Nações, em 1919, o Tratado
de Versalhes, na França, a criação da Corte Permanente de Justiça Internacio-
nal, a instituição em Haia da Academia de Direito Internacional, o pacto Bri-
and-Kellong de proscrição da guerra e a Conferência Internacional da Con-
solidação da Paz, promovida pelo Presidente Franklin Roosevelt, bem como a
criação da Organização das Nações Unidas.65
Para Gomes a questão dos direitos fundamentais da pessoa humana –
Direitos Humanos – que até então eram tratados de forma isolada por cada
um dos Estados, a partir do século XX passou a ser objeto de estudos e de-
bates no campo das relações internacionais.66
Segundo Piovesan, o processo de universalização dos direitos humanos
permitiu, por sua vez, a formação de um sistema normativo internacional de
proteção destes direitos.67
A concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos
processos de universalização e internacionalização destes direitos, compre-
endidos sob o prisma de sua indivisibilidade.
Piovesan ressalta ainda que a Declaração de Direitos Humanos de Vie-
na, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu
parágrafo 5o, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interde-
pendentes e interrelacionados.” A comunidade internacional deve tratar os
direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igual-
dade e com a mesma ênfase.68
Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, en-
dossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando
o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos
humanos, introduzida pela Declaração de 1948.
Piovesan, ao abordar o tema Direitos Humanos e tecer considerações
sobre o princípio da dignidade humana como referência ética maior a orien-
tar a ordem jurídica interna e internacional, consagra-o como verdadeiro
64 SEN, loc. cit. 65
ACCIOLY, Hidelbrando, Manual de direito Internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva. 1980. p. 90. 66 GOMES, 2009, p. 91. 67 PIOVESAN, 2003, p. 139. 68 PIOVESAN, 2003, p. 142.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 29
super princípio e destaca que “é no princípio da dignidade da pessoa huma-
na que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de par-
tida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contempo-
rânea.” 69
De acordo com o pensamento de Gomes é a partir da recepção do valor
da dignidade humana no sistema internacional, que se inaugura um novo
tempo histórico: a era da cidadania mundial.70
Como já mencionado em 10-12-1948, em Paris foi proclamada pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas a Declaração Universal
dos Direitos Humanos que, ao introduzir a concepção contemporânea de
direitos humanos, tornou-se o marco de criação do chamado “Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos”, um sistema jurídico normativo de alcance
internacional, com o objetivo de proteger os direitos humanos.
Direitos Humanos é tema de interesse comum para toda a humanida-
de, cuja observância é exigência universal. Além da característica universal,
os direitos humanos também são indivisíveis e interdependes.71
A Declaração definiu pela primeira vez, em nível internacional e como
um padrão comum para todos os povos e nações, os direitos humanos e as
liberdades fundamentais – noções até então difusas e tratadas de maneira
não uniforme.
Nos dizeres de Gomes, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
modificou radicalmente a premissa que tinha o Estado como centro das
atenções como forma de fortalecimento econômico e militar. Estabelecendo
o ser humano como centro das preocupações da Política e do Direito, não
podendo o Estado intervir de forma arbitrária violando a liberdade e o direito
à existência digna dos seres humanos.72
A Declaração estabelece que: “O reconhecimento da dignidade inerente
a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”73
A Declaração em seus 30 artigos (anexo A) é precedida de um preâm-
bulo, onde se diz que a Assembléia Geral das Nações Unidas proclama:
A presente Declaração Universal dos Direitos do Homem com o ideal comum a ser atingindo por todos os povos e todas as nações, com o ob-jetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração se esforce através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdade, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto
69 PIOVESAN, op. cit., p. 31. 70 GOMES, 2009, p. 92. 71 Ibid., p. 94. 72 GOMES, 2009, p. 95 73 DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos Nações Unidas. Assembléia Geral, Resolução 217 A.
30 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
entre os povos dos Estados-Membros, quanto entre os povos dos terri-tórios sob sua jurisdição.74
A luz do pensamento de Celso Dallari apud Gomes: “Tratando-se de
direitos fundamentais inerentes à natureza humana, nenhum indivíduo ou
entidade, nem os governos, os Estados ou a própria Organização das Nações
Unidas, tem legitimidade para retirá-las de qualquer indivíduo.” 75
A Declaração também estabelece além do direito à liberdade, igualdade
e dignidade da pessoa humana, um elenco de direitos fundamentais, sem
distinção de qualquer espécie tais como:
Direito à vida, à segurança pessoal; direito de não ser mantido em es-cravidão; de não ser submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante; direito de reconhecimento como pessoa na forma da lei; direito a receber dos tribunais remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais; direito a não ser preso arbi-trariamente; direito à presunção de inocência até julgamento final; direi-to de não ser preso arbitrariamente; direito à presunção de inocência até o julgamento final; direito de não sofrer interferência na sua vida priva-da, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação; direito à liberdade de locomoção; direito de asilo político, direito a uma nacionalidade; direito de contrair matrimô-nio; direito à propriedade, direito à liberdade de pensamento; direito à liberdade de opinião e expressão; direito à liberdade de reunião e asso-ciação pacíficas; direito de tomar parte no governo de seu país direta ou indiretamente; igual direito de acesso ao serviço público de seu país; di-reito de votar; direito a segurança nacional social, e à realização dos di-reitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade; direito ao trabalho em condições adequadas; direito a repouso, lazer e férias remuneradas; di-reito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstância fora de seu alcance; direito a cuidados especiais na maternidade e na infância; direito à instrução; di-reito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e participar do progresso científico, direito autorais; direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabeleci-dos na Declaração possam ser plenamente realizados.76
Conforme Gomes, os direitos humanos costumam ser relacionados, in-
clusive pelas Nações Unidas, em duas categorias: os civis e os políticos (art.
3o a 21); os econômicos, sociais e culturais (22 a 18).
74
DECLARAÇÃO, loc. cit. 75 GOMES, 2009, p. 95. 76 DECLARAÇÃO, 217. A
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 31
Gomes valendo-se dos ensinamentos de Jack Donnelly revela uma
classificação melhorada nos seguintes termos:
a. direitos Pessoais, incluindo os direitos à vida, à nacionalidade, ao reconhecimento perante a lei, à proteção contra tratamentos ou punições cruéis, degradantes ou desumanas, e à proteção contra a discriminação racial, étnica, sexual ou religiosa (arts. 2o a 7o e 15);
b. direitos Judiciais, incluindo o acesso a remédios por violações dos direitos básicos, a presunção de inocência, a garantia de processo público justo e imparcial, a irretroatividade das leis penais, a proteção contra prisão, detenção ou exílio arbitrários, e contra a interferência na família, no lar e na reputação (arts. 8o a 12);
c. liberdades Civis, especialmente as liberdades de pensamento, consciência e a religião, de opinião expressão pacífica (arts. 13 e de 18 a 20);
d. direitos de Subsistência, particularmente os direitos à alimenta-ção e a um padrão de vida adequado à saúde e ao bem-estar próprio e da família (art. 25);
e. direito Econômico, incluindo principalmente os direitos ao tra-balho, ao repouso e ao lazer, e à segurança social (arts. 22 a 26 – proposital ou acidentalmente, Donnely omite o art. 17, sobre o direito a propriedade, que acabaria excluído dos Pactos Interna-cionais de Direito Humanos);
f. direitos Sociais e Culturais, especialmente os direitos à instrução e à parte na vida cultural da comunidade (arts. 26 e 28); e
g. direito Políticos, principalmente os direitos a tomar parte no go-verno e a eleições legítimas com sufrágio universal e igual (art. 21), mais os aspectos políticos de muitas liberdades civis.77
Segundo Gomes uma vez, tendo sido proclamados todos esses direitos
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como normas jurídicas, estes
devem ser aplicados independentemente de sua inclusão nos direitos dos
Estados pela formalização legislativa. Entretanto, diante da inexistência de
um órgão que possa impor sua efetiva aplicação ou impor sanções em caso
de não-observância da Declaração, o Estado tem adotado como praxe, inclu-
ir nas próprias Constituições um capítulo referente aos direitos e garantias
individuais justamente porque, uma vez incorporadas ao direito positivo dos
Estados, aquelas normas adquirirem plena eficácia.78
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reproduziu uma série de di-
reitos humanos que estão previstos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, dotando-os de plena eficácia:
77 GOMES, 2009, p. 95. 78 GOMES, 2009, p. 99.
32 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
O art. 5o, § 1o da Constituição Federal prevê que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (Título II CF – aí inserido o capítulo que trata dos direitos sociais – educação, saúde, trabalho, moradia, la-zer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) tem aplicação imediata.79
Neste contexto, aduz Gomes, negar a aplicação imediata dos direitos
econômicos e sociais – especialmente o direito a educação, a saúde, ao tra-
balho, à moradia, à segurança, à previdência social, à maternidade e à infân-
cia e à assistência aos desamparados – equivale a manter o status quo que
ampara a injustiça social.80
Os direitos econômicos, sociais e culturais integram a chamada “con-
cepção contemporânea de direitos humanos”, enunciada pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, e reiterada pela Declaração de Vie-
na de 1993. Tais direitos pertencem à mesma categoria hierárquica dos di-
reitos civis e políticos.
Ao internalizá-los na ordem constitucional, os direitos humanos pas-
saram a ser denominados direitos fundamentais, em especial com o legado
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se fez com que os direitos
humanos transcendessem os interesses exclusivos dos Estados para salva-
guardar a dignidade dos seres humanos protegidos.
Nos dizeres de Gomes Direitos Humanos é matéria de interesse inter-
nacional e não, apenas de interesse particular de um Estado ou da relação
entre os Estados, é objeto próprio de regulação, do emergente Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos como um novo ramo do Direito Internacional
Público, dotado de autonomia, princípios e especificidades próprias, cuja
finalidade é a de assegurar a proteção do ser humano nos planos nacional e
internacional concomitantemente.81
O Quadro número 1, apontando marcos importante na evolução dos
direitos humanos.
Quadro 1: Marcos importantes na evolução dos direitos humanos
1945 - Final da II
Guerra Mundial
Surgimento dos direitos humanos na ordem
internacional. Primazia do princípio da dig-
nidade da pessoa humana com superprincí-
pio.
79 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Atualizada. Disponível em: <http:///www.amperj.org.br/legislação>. Acesso em: 05 jun. 2010. 80 GOMES, op. cit., p. 102. 81 GOMES, 2009, p. 104.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 33
1945 - Rússia
Encontro de Roosevelt, Churchil e Stalin- na
busca de uma “organização mundial” em
nome da paz.
1945 - San Francisco
Conferência – Carta das Nações Unidas e
criação da Organização das Nações Unidas
(ONU). A Carta reafirma a fé nos direitos
humanos fundamentais do homem e na dig-
nidade da pessoa humana em nome da paz.
1948 – Paris
Promulgada a Declaração Universal dos Di-
reitos, com base na Carta das Nações Uni-
das. Um dos documentos mais importantes
do mundo. O Estado deixa de ser o centro
das atenções, que passa a ser exercido pelo
Homem. A Declaração definiu pela primeira
fez os direitos humanos e as liberdades fun-
damentais. Nenhum Estado ou Organismo
tem legitimidade para retirar os direitos fun-
damentais ali consagrados. Para evitar dis-
cussões quanto à eficácia dos direitos, a
Constituição de vários Países vem encam-
pando o reconhecimento de tais direitos.
1976 - Entrada em
vigor dos dois Pactos
que regulamentam a
Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
a) Pacto Internacional dos Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais.
b) Pacto Internacional de Direitos Civis e Po-
líticos.
Inobstante a classificação em duas categori-
as, não há hierarquia entre os direitos
econômicos, sociais, e culturais e, prevalece
a ideia de indivisibilidade dos direitos fun-
damentais.
Um desafio para o di-
reito Internacional dos
Direitos Humanos:
como efetivar os direi-
tos fundamentais?
A eficácia dos direitos fundamentais que
foram reconhecidos, especialmente dos di-
reitos fundamentais sociais e econômicos é o
ponto crucial de maior dificuldade
34 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Fonte: Gomes, com modificações feitas pelo autor.82
Do quanto foi exposto, em síntese, é possível afirmar que os direitos
humanos são objeto de preocupação mundial histórica, que se desenvolve-
ram gradativamente, visando garantir o direito à liberdade, à igualdade à
fraternidade e à dignidade da pessoa humana.
Neste capítulo, será dado especial destaque ao tema fraternidade, que
diversamente do que aconteceu com os princípios da liberdade o da igualda-
de, o da fraternidade que tradicionalmente vem sendo tratado como ideal de
filosofia política e social ou relegado ao plano moral, agora é redescoberto
também como categoria jurídico-constitucional.
Para Antonio Maria Baggio, a fraternidade, no decorrer da história, foi
adquirindo um significado universal, chegando a identificar o sujeito ao qual
ela pode referir-se plenamente como o sujeito “humanidade” - comunidade
de comunidades - como o único que garante a completa expressão também
aos outros dois princípios universais: a liberdade e a igualdade.83
O princípio da fraternidade tem fundamento religioso explicito e é a
partir disso, ou seja, da compreensão, que as religiões disponibilizaram para
o conhecimento do homem que se pode falar de liberdade e igualdade, e é a
partir dessa compreensão de que homem nasce livre e igual, porque são ir-
mãos, que o pensamento moderno desenvolveu a liberdade e igualdade co-
mo categorias políticas, mas não fez o mesmo com a fraternidade.
Entende Baggio que a fraternidade é o alicerce da liberdade e da
igualdade, sendo este o princípio regulador dos outros dois princípios: se
vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a
igualdade não se degenera em igualitarismo opressor.84
Para o mesmo autor, a fraternidade teve aplicação política, embora
parcial, com a ideia da “solidariedade”, porque houve um progressivo reco-
nhecimento dos direitos sociais em alguns regimes políticos, dando origem a
políticas do bem-estar social, ou seja, políticas que tentaram realizar a di-
mensão social da cidadania.
De fato, a solidariedade dá uma aplicação parcial aos conteúdos da
fraternidade. Mas esta, para Baggio, não pode ser reduzida a todos os outros
significados, ainda que bons e positivos, pelos quais se procura dar uma
82
Ibid., p. 106. 83
BAGGIO. A. M. (Org). O princípio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. (Org.). Tradução Durval Cordas, Iolanda Gaspar, José Maria Almeida. São Paulo: Cidade Nova. 2008. p. 21. 84
Ibid., p. 54.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 35
aplicação. E cita um exemplo, dizendo que solidariedade – tal como histori-
camente tem sido muitas vezes realizada – permite que se faça o bem aos
outros embora mantendo uma posição de força em relação “vertical” que vai
do forte ao fraco.85
No entanto também é verdade que algumas formas de “solidariedade
horizontal” se desenvolveram por meio de movimentos de defesa dos direi-
tos humanos e, em particular, dos direitos dos trabalhadores, e no movi-
mento cooperativo, na economia solidária que vem se desenvolvendo nas
últimas décadas.
Para Baggio, a fraternidade sempre pressupõe o relacionamento “hori-
zontal”, com divisão de bens e poderes. É a partir dessa ideia que está se
elaborando – na teoria e na prática – o pensamento de uma “solidariedade
horizontal”, em referência à ajuda recíproca entre sujeitos diferentes, seja
pertencentes ao mesmo âmbito social ou mesmo nível institucional.86
Marco Aquino apud Calvo diz Uma coisa é ser solidário com um outro, associando-me à sua causa; outra é ser seu irmão. Sou irmão de alguém por nascimento, e isso im-plica uma relação pessoal, não com a causa do outro, mas com o outro enquanto pessoa, membro da mesma e única família humana.87
Defende Marco Aquini que a fraternidade não pode ser reduzida ao
conceito de solidariedade, pois esta não implica a ideia de efetiva paridade
dos sujeitos que se relacionam, e não considera constitutiva a dimensão de
reciprocidade.88
O termo fraternidade sempre remete à ideia de consanguinidade, laços
entre parentes, designando a qualidade que liga membros de uma mesma
família. No dicionário da língua portuguesa Hoauiss, o entendimento cami-
nha na mesma direção: “Parentesco de irmãos, União fraternal, Amor ao pró-
ximo, Boa inteligência entre os homens, Harmonia.” 89
Desses significados não tão precisos, é possível retirar aspectos jurídi-
cos, que mostram que a fraternidade supõe o relacionamento concreto entre
pessoas, no qual cada um tem valor absoluto.
A fraternidade, à luz da doutrina de Chiara Lubich, nos remete que:
85
BAGGIO, 2008, p. 22. 86
BAGGIO, loc. cit. 87
AQUINI, Marcos. Fraternidade e direitos humanos. In: BAGGIO, A. M. (Org.) O princípio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Traduções Durval Cordas, Iolanda Gaspar,José Maria Almeida. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova. 2008. p. 138. 88
Ibid., p. 137. 89
DICIONÁRIO Houaiss. Disponível em: <http://houaiss.uol.com>. Acesso em: 16 jul. 2010.
36 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
[...] A ideia da fraternidade começou assim, a abrir caminho na história. E se poderia refazer a evolução do pensamento das diversas épocas, identificando na história a presença da fraternidade - como base de muitas concepções políticas fundamentais - às vezes manifestas, outras vezes mais ocultas. Uma fraternidade frequentemente vivida, embora de maneira limitada. Sempre que, por exemplo, pessoas de diferentes con-vicções superaram toda desconfiança para afirmar um direito humano. O quanto à descoberta da fraternidade seja central, em especial para a po-lítica, no-lo afirma também o importante evento histórico, que constitui um divisor de águas entre duas épocas, a Revolução Francesa. Em seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, ela sintetiza o grande projeto político da modernidade. Embora ela mesma tenha entendido os três princípios de modo muito restrito. Além disso, se inúmeros países, construindo regimes democráticos, conseguiram dar uma certa efetivi-dade à liberdade e à igualdade, a fraternidade, no entanto, foi mais pro-clamada do que vivida. Mas a Revolução Francesa, apesar de suas con-tradições, havia intuído o que as experiências sucessivas demonstraram: os três princípios estão em pé ou caem juntos; só o irmão pode consen-tir plena liberdade e igualdade ao irmão.90
O conceito de fraternidade para Bernhard pressupõe a liberdade indivi-
dual e a igualdade de todos os homens, e está numa relação de interdepen-
dência mútua com esses dois princípios, onde os três conceitos tem por pri-
mazia a dignidade da pessoa humana.91
O objetivo de proteger os Direitos Humanos quanto o alcance da tutela
e da garantia do indivíduo, deve valer – segundo o conceito de fraternidade –
como garantia mínima para cada indivíduo, em cada tempo e em cada lugar,
inclusive os direitos sociais.
Como se sabe a história dos Direitos Humanos têm suas raízes na an-
tiguidade, pois é somente na Modernidade que seus conceitos se apropria-
ram de seu significado próprio e distinto.
Nesse sentido Baggio aponta não ser novidade encontrar alguns con-
ceitos fundamentais do cristianismo nas raízes teológicas dos Direitos Hu-
manos. Os Direitos Humanos fazem parte da tradição histórico-conceitual do
cristianismo, e a prova direta é que assim são percebidos pelas tradições
não-ocidentais, que acusam os Direitos Humanos de não serem universais,
mas justamente ocidentais e cristãos.
Se não vejamos:
No conceito de pessoa, na sua unicidade e dignidade, na ideia de que cada ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, e que existe
90
LUBICH, Chiara. Ideal e luz: pensamento, espiritualidade, mundo unido. Traduções Irani B. Silva, José M. de Almeida e Iracema do Amaral. São Paulo: Brasiliense; São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2003. p. 321. 91
BERNHARD, Agnes. Elementos do conceito de fraternidade e de direito constitucional. In: CASO, Gio-vanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 39.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 37
em todos os homens, inclusive no mais desprezível, uma chama, uma centelha divina que não se apaga; na ideia que existe um Pai e que, por isso, todos, os homens são irmãos, superando assim as barreiras sociais e culturais.92
Afirma Giussepe Tosi, que não só os direitos humanos e a fraternidade
encontram suas raízes no cristianismo, mas também a igualdade e a liberda-
de.93
John Rawls apud Pasquale Ferrara, em seu trabalho “Uma teoria de jus-
tiça”, firmada no pensamento onde se tem “o maior bem para o maior núme-
ro”, ou seja, não em princípios de utilidade, mas numa ideia mais profunda
de justiça, com base “na ordem social onde a distribuição do poder e da ri-
queza, serão justas se alcançar os membros menos favorecidos da socieda-
de, bem como, os cargos e posições deverão ser abertos a todos.” Rawls
chamou essa ideia de “princípio da diferença” que vincula expressamente à
ideia de fraternidade.94
Ferrara com base nos ensinamentos de Rawls, considera que desse
modo, o conceito de fraternidade, frequentemente obscurecido na teoria
política moderna, por ser julgado restritivo e “familiar”, torna-se um modelo
perfeitamente aceitável e politicamente praticável.95
Nesse sentido Agnes Bernhard, ressalta que a fraternidade requer a
contribuição ativa de todas as pessoas envolvidas e a assunção de responsa-
bilidades comuns e, se necessário, também de responsabilidades diferencia-
das.96
A doutrina é clássica em afirmar que a sociedade não vive sem o direi-
to, posto que este regula as relações entre todos, disciplinando os direitos e
instituindo os deveres comuns.
Nesse sentido, é fácil imaginar o que seria a sociedade sem o direito:
anarquia, violência e tudo o que dela se extrai.
92
BAGGIO, A. M. O princípio esquecido/2: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Traduções Durval Cordas e Luciano Menezes Reis. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova. 2009. p. 560. 93
TOSI, Giussepe, A fraternidade é uma categoria política? In: BAGGIO, A. M. (Org.). O princípio esqueci-do/2: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Traduções Durval Cordas e Luciano Mene-zes Reis. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Editora Cidade Nova. 2009. p. 57. 94
FERRARA, Pasquale, A fraternidade na teoria política internacional. In: BAGGIO, A. M. (Org.). O princí-pio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Traduções Durval Cordas, Iolanda Gaspar e José Maria Almeida. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Editora Cidade Nova. v. 1. 2008. p. 175. 95
FERRARA, loc. cit. 96
BERNHARD, Agnes. Elementos do conceito de fraternidade e de direito constitucional. In: CASO, Gio-vanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 63.
38 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A sociedade passou por inúmeras fases, não distintas e estanques en-
tre si, até alcançar a ideia de Jurisdição como é hoje, ou seja, o poder atribu-
ído ao Estado-Juiz que tem como a função dirimir conflitos de interesses.
Aponta Fernando Bolque, que em tempos pretéritos vigorava a lei do
mais forte, fase conhecida como a vingança privada, autotutela e/ou autode-
fesa. Como não poderia deixar de ser, as ideias eram eminentemente indivi-
dualistas, onde aquele que detinha a força física impunha a sua vontade so-
bre o outro, que simplesmente cedia e subjugava.97
Nessa mesma época conforme o autor, também vigorava outra espécie
de resolução de conflitos que era a autocomposição. Esta se caracterizava
pela forma pacífica de resolução dos conflitos.98
Este intróito revela que a sociedade, desde antiguidade, tinha uma pre-
ocupação essencialmente individualista.
Tanto é verdade que, basta lembrar que no desenvolvimento da socie-
dade temos a realidade dos feudos, onde os senhores proprietários das ter-
ras eram soberanos, inclusive decidindo a sorte de seus camponeses.
Bolque, citando Paulo S. Frontini et al., lembra que mesmo com o ad-
vento da Revolução Francesa com seu lema de liberdade igualdade e frater-
nidade, a sociedade de modo geral, ainda pensavam no individual, posto que
a ideia de respeito absoluto ao indivíduo foi a marca característica da Revo-
lução.99
A ideia tradicional do lema liberdade, igualdade e fraternidade, nos
remete, que os dois primeiros, são princípios de Justiça. Mas, e a relação
entre Direito e Fraternidade é possível?
Antes, porém de iniciar qualquer discussão, vale lembrar que a expres-
são “Direito” será aqui usada como Ciência cujo, objeto é o conjunto das
regras de um ordenamento jurídico estatal. A expressão fraternidade por sua
vez será utilizada como categoria jurídico-constitucional, princípio protetor
(tutela) dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, nos dizeres de Carlos Augusto Alcântara Machado, fra-
ternidade e Direito não são necessariamente excludentes, fato que a frater-
nidade enquanto valor foi recepcionada tanto na Constituição Portuguesa de
1976, como na Brasileira de 1988, há referência expressa à fraternidade ou à
solidariedade.100
É importante salientar que os direitos fundamentais em sentido formal
são aqueles previstos no texto constitucional, mas, também, fala-se em di-
97
BOLQUE, Fernando. Interesses difusos e coletivos: conceitos e legitimidade para agir. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v.1, n.1, p. 86, set.-dez. 2000. 98
BOLQUE, loc. cit. 99
BOLQUE, 2000, p. 90. 100
MACHADO, C. A. A. A fraternidade como categoria jurídico-constitucional. In: Congresso Nacional Direito e Fraternidade. Vargem Grande Paulista. Anais... Vargem Grande Paulista/SP: Direito e Comunhão, 2008. p. 3.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 39
reitos fundamentais em sentido material, embora não previstos no texto
constitucional, mas devido à importância de seu conteúdo, a eles se equipa-
ram.
Segundo Machado, para enfrentar o tema fraternidade como categoria
jurídica, considerado por muitos e particularmente para juristas em geral
como extrajurídico ou meta jurídico, é mister que seja posta uma premissa,
sem a qual a fraternidade não pode ser perseguida: o reconhecimento da
ideia de igualdade contida no primeiro princípio unida ao conceito de igual
oportunidade, entre todos os seres humanos. Para o autor a igualdade por
ele entendida é antes de tudo uma igualdade em dignidade, considerada
numa perspectiva dinâmica e não estática.101
Fausto Goria, diz que o Direito, segundo uma concepção muito difun-
dida, tem como fim a permanência ordenada de um grupo bem como a coe-
xistência pacífica dos sujeitos que o compõem, de modo que os conflitos
sejam reduzidos ao mínimo e rapidamente resolvidos.102
A fraternidade aspira certamente a realizar muito mais, mas não se po-
de dizer que ela vá em direção oposta ao Direito.
Ressalta Bernhard, que o conceito de fraternidade é tão rico de impli-
cações que ele não pode acontecer com os meios muitas vezes limitados do
Direito. Nessa perspectiva, o primeiro passo a ser dado será identificar, os
princípios adequados que instituíam juridicamente, as condições para se
realizar à fraternidade.103
De acordo com Óscar Vasquez, ao tratar das relações jurídicas e frater-
nidade, certamente não se pode prescindir do Direito privado, que, por sua
natureza, é o campo privilegiado das relações, que nascem da experiência
cotidiana e se exprime em regras que buscam fundamentá-las na dimensão
da Justiça.104
Quando se rompe uma relação, acontece no grupo um trauma. As ex-
tremas dificuldades com que, geralmente, a convivência em todos os níveis
se debate, bem como, os desafios que se colocam, frente às próprias regras
da convivência, intui-se, que o instituto fraternidade ajuda os sujeitos no
cumprimento de seus deveres recíprocos e apóia o desenvolvimento normal
das relações.105
101
MACHADO, loc. cit. 102
GORIA, Fausto. Fraternidade e direito: algumas reflexões. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 25. 103
BERNHARD, 2008, p. 63. 104
VASQUEZ, Óscar. Relações jurídicas e fraternidade. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e frater-nidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 110. 105
VASQUEZ, 2008, p. 25.
40 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Para Vasquez, a ideia de fraternidade como força motriz da relação que
impulsiona um unir-se a outro, a se construir e reconstruir a vida em socie-
dade, não se está, com isso, fechando os olhos à existência de interesses
egoístas na sociedade ou mesmo à maldade humana que provoca os confli-
tos. O “conflito” é, na verdade, um dado sociológico que o Direito tem em
conta.106
Se Caim não tivesse matado Abel, não haveria o Direito.
Escreve Giuseppe Tosi:
Se a fraternidade remete à ideia de um “outro” que não sou eu nem meu grupo social, mas o “diferente” diante do qual tenho deveres e respon-sabilidade, e não somente direitos a opor. A fraternidade é entendida aqui de maneira oposta à famosa resposta de Caim quando interpelado pelo Senhor: “'Onde está teu irmão Abel? ' E ele respondeu: 'Não sei. Acaso sou eu responsável por meu irmão?''' (Gn 4,8-9). Caim era irmão no sentido carnal, mas não foi fraterno, porque não se sentia responsá-vel pelo outro. Por isso Jesus Cristo disse que seus irmãos eram o que o seguiam (cf. Mt 12,46-50), desvinculando o sentido de fraternidade dos laços de sangue para laços mais amplos e tendencialmente universais.107
O direito não é por si mesmo, aquele que resolve o conflito, é um ins-
trumento, embora não o único, que serve à prevenção, um meio para cami-
nhar em direção à solução dos litígios ou lides. O Direito exprime, portanto,
as forças construtivas do homem e não as destrutivas.108
Goria afirma que o Direito tem como fim a permanência ordenada de
um grupo e, como premissa, a coexistência pacífica dos sujeitos que o com-
põem, de modo que os conflitos sejam reduzidos ao mínimo e rapidamente
resolvidos.109
Para o autor o Direito não se limita a relação particular, mas esta é co-
lada no cenário do grupo no seu conjunto e no seu ordenamento: assim co-
mo numa família as relações não se realizam só entre um irmão e outro, mas
atinge toda à família.110
O Direito privado tem um apelo, para a responsabilidade com a comu-
nidade e, ao mesmo tempo, para com os indivíduos, valoriza as realidades
associativas e econômicas que buscam um desenvolvimento econômico e
social e os Direitos Humanos.
Ressalta Goria, que quando a autoridade pública intervém em relações
privadas com leis vinculadas, faz isso tendo em vista da dimensão comunitá-
106
Ibid., p. 110. 107
TOSI, 2009, p. 59. 108
VASQUEZ, 2008, p. 110. 109
GORIA, 2008, p. 25. 110
GORIA, loc. cit.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 41
ria e a tutela dos valores coletivos, mediante sanções indisponíveis para o
sujeito, cuja aplicação, este não pode renunciar.111
No entanto, se os valores da relação requererem uma tutela maior, a
sanção deixa o âmbito do Direito privado para se situar em outros ramos,
como por exemplo, o Direito penal, tendo em conta a dimensão comunitária
o dever de respeitar, o devido processo legal, o princípio do contraditório e
os direitos fundamentais da pessoa humana.
Substancialmente, portanto o Direito parte de um de fato: a vida con-
creta cotidiana das pessoas, de um grupo e a sua propensão em direção a
uma relação de fraternidade. Para manter essas relações o Estado pode favo-
recê-las por meio de leis, que propõe normas supletivas, sanções dentre
outras.112
Outro exemplo é no ramo do Direito empresarial, a lei do Estado pode
contribuir de forma positiva ou negativa com respeito à possibilidade de de-
cisão com relação aos empresários aos quais concede ou nega incentivos. Ao
passo que se os concede na perspectiva da fraternidade, o Direito empresa-
rial pode se colocar a serviço, numa relação recíproca com a economia, cuja
finalidade passa a ser vencer a pobreza e a injustiça.
Segundo Vasquez, no âmbito do Direito de família vê se claramente
que a lei do Estado pode favorecer, ou desfavorecer, determinados tipos de
convivência. O Estado pode tutelar de modo permanente a família, não só do
ponto de vista do Direito Privado, mas também do Direito Público, reconhe-
cendo, desse modo, que não há sociedade sem a preexistência do núcleo
familiar, pedra angular sobre a qual se apóia.113
Para o mesmo autor, o conceito de fraternidade tem na família uma va-
lidade intuitiva e etimológica, e a sua matriz sociológica é evidente.114
A família é o “lugar” onde nasce à fraternidade, com os consequentes
valores de solidariedade, afeto e cooperação, gerando unidade entre seus
membros.
Na família, é mais natural a partilha dos bens, a acolhida, a correção
fraterna, o cuidado com o outro, com a casa comum, a transmissão de co-
nhecimentos e valores a sadia circulação de notícias.
Tais comportamentos verificam-se, depois, na vida do cidadão, à me-
dida que foram vividos, de algum modo, na família.
Todavia, o Direito, pela sua parte, pode cooperar de maneira significa-
tiva no sentido de inserir a família no seu desígnio natural, atraindo sua na-
tural propensão à unidade, quer na esfera legislativa, quer no campo da apli-
cação da lei.
111
Ibid., p. 30. 112
VASQUEZ, 2008, p. 111. 113
VASQUEZ, loc. cit. 114
VASQUEZ, loc. cit.
42 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
À fraternidade é evidente na dimensão dos direitos humanos, e nesse
sentido, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, recepcionada pela As-
sembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, considerada o
instrumento internacional mais completo no que concerne à defesa das cri-
anças, referindo-se tanto a direitos econômicos, como sociais, culturais,
civis e políticos e, em especial a vulnerabilidade destas.115
A Convenção dos Direitos da Criança veio suceder a Declaração de Ge-
nebra dos Direitos da Criança de 1924 e a Declaração dos Direitos das Cri-
anças da Assembléia Geral das Nações Unidas de 1995.
Tendo sido adotada em uma votação pela Assembléia Geral das Nações
Unidas em 20 de Novembro de 1989 e entrado em vigor em 2 de setembro
de 1990, sendo que apenas dois países ainda não a ratificaram, a saber, os
Estados Unidos que tem a intenção de assiná-la formalmente e a Somália
que não tem um Estado reconhecido.
A Convenção mencionada foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro
de 1990, ocasião, já estava em vigor a Constituição Federal de 1988, que
consagra à criança e ao adolescente um dos mais expressivos textos de di-
reitos fundamentais da pessoa humana, cujo, conteúdo foi explicitado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei 8.069 de 13 de ju-
lho de 1990, que assume função de elevada dignidade de ser espaço desti-
nado à garantia dos direitos da população infanto-juvenil.116
José A. da Silva, enfatiza que o art., 227 da Constituição Federal de
1988 é, por si só, uma carta de direitos fundamentais da criança e do ado-
lescente, assim, o transcrevemos:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à crian-ça ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cul-tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e co-munitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.117
Aponta Munir Cury em sua contribuição para o Estatuto da Criança e
Adolescentes, a cerca idéia de família e adoção:
Interessa-nos no momento o tema família e adoção. A convivência com a pobreza e a injustiça que antes provocava e justificava a perda do po-
115
BÁRBARA, C. C. D. de. A proteção internacional dos direitos das crianças envolvidas em conflito armados. 98f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007. p.12. 116
SILVA, J. A. Direitos humanos da criança. Igualdade, Curitiba, v. 10, n. 37, p. 09 out.-dez. 2002. 117
SILVA, 2002, p. 9.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 43
der familiar, ofereceu-nos a oportunidade de inserir expressamente na lei a determinação de que “a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder”, Não existindo outro motivo além da pobreza a criança será mantida na sua família de origem, a qual será incluída em programas oficiais de au-xílio.118
Para o autor a necessidade de tal previsão legal que foi posteriormente
confirmada pela jurisprudência pelos Tribunais, ao consagrarem reiterada-
mente.119
A regra visa a proteger os pais pobres, porém diligentes no cuidado dos filhos. Tem por fito amparar aqueles que lutam com dificuldades, muitas vezes extremas, mas que não desistem dos filhos. Tutela o interesse dos pobres em preservar a prole, quando esse interesse é manifestado pelo inconformismo de quem,não se acomoda não se o omite nas tentativas de propiciar uma vida digna aos filhos. De quem aceita as orientações e oportunidades que necessariamente devem ser ofertadas pelos órgãos de assistência social.120 (Tribunal de Justiça de São Paulo, apelação nn.22984-0/0 e 260910/4)
É inegável que o Brasil, pela via das crianças e adolescente deu um
passo interveniente obrigatório e fundamental, no que tange a Justiça da
Infância e Juventude, objetivando a implementação das regras da Constitui-
ção Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Goria em seu artigo “Fraternidade e Direito: algumas reflexões” faz a
seguinte pergunta: o que tem a ver a fraternidade com o Direito? Existem
correlações ou trata-se de relações antagônicas? Para o autor o antagonismo
parece ser o mais difundido.121
No entendimento do autor à fraternidade tem natureza espontânea,
enquanto é típico do Direito, a co-atividade.122
Para Goria, a relação entre Direito e fraternidade se dá no sentido que
o Direito será, tanto mais necessário, quanto menos à fraternidade age, e vai
além, no seu pensamento, afirmando, que em uma sociedade impregnada de
fraternidade poderia dispensar o Direito.123
118
CURY, Munir. O instituto da adoção e a realidade social brasileira. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 105 119
CURY, loc. cit. 120
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nn.22984-0/0 e 260910/4. 121
GORIA, 2008, p. 25. 122
GORIA, loc. cit. 123
GORIA. loc. cit.
44 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Na idade Moderna, o valor da fraternidade foi proclamado, pela Revo-
lução Francesa, em simbiose com os princípios da liberdade e da igualdade.
Estes dois últimos transformaram-se em importantes valores jurídicos.
Na Constituição Federal do Brasil de 1988, ao que parece à fraternida-
de restou o status de princípio pragmático, estabelecendo como objetivo
fundamental da República a construção de uma sociedade solidária (art.3o, I
CF).124
Tosi defende que ao enfatizar a liberdade e a igualdade em detrimento
da fraternidade, a Modernidade acentuou aspectos individualistas e egoístas
até mesmo nos Direitos Humanos, esquecendo o caráter social, fraterno e
solidário desses mesmos Direitos, que não são simplesmente do indivíduo e
dos grupos, mas também, do “outro”, do pobre, do menos favorecido.125
Nos dizeres do autor se a liberdade remete ao indivíduo na sua singu-
laridade, e a igualdade abre-se para uma dimensão social, ao passo que à
fraternidade, remete à idéia de um “outro” que não sou eu nem meu grupo
social, mas o “diferente” diante do qual se tem deveres e responsabilidades,
e não somente direitos a opor.126
Boaventura de Souza Santos enfatiza que no Brasil, nos últimos vinte
anos foram promulgadas legislações que de modo ou outro, foram ao en-
contro dos interesses sociais das classes trabalhadoras e também dos inte-
resses emergentes nos domínios da segurança social e da qualidade de vi-
da.127
Para o autor, muitas dessas legislações têm permanecido como letra
morta, “quanto mais caracterizante uma lei que protege os interesses popu-
lares e emergentes, maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada.” 128
Assim, a busca democrática pelo direito deve ser no Brasil, a busca pe-
lo direito vigente, tanto quanto pela mudança do entendimento do direito no
que for possível, mediante interpretações inovadoras da lei, obter proteções
voltadas ao desenvolvimento das classes sociais menos favorecidas.
Santos, chamou de “uso do alternativo do Direito”, um estudo que teve
origem na Itália, cujo, objetivo era dar proteção integral aos pobres, tendo
como retaguarda o “aumento dos poderes do juiz.” No Brasil o estudo foi
aplicado na cidade de Recife-PE, em litígios relacionados a conflitos urbanos,
sobretudo no direito de propriedade da terra, na periferia onde vive a meta-
de da população da cidade.129
124
CONSTITUIÇÃO, 1988, art.3o, I.
125 TOSI, 2009, p. 58.
126 TOSI, loc. cit.
127 SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortes,
2005. p. 178. 128
SANTOS, loc. cit. 129
SANTOS, loc. cit.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 45
O resultado revelou que os moradores da periferia têm conseguido al-
gumas vitórias nos tribunais, ainda que os argumentos alegados sejam rela-
tivamente frágeis em termos jurídicos.130
Para o autor essas vitórias nos tribunais, configuram o autêntico uso
alternativo do Direito, que tem como premissa: combinar uma argumentação
tecnicamente sofisticada feita por advogados, que trabalham para as classes
populares, sob a perspectiva de dar uma interpretação inovadora do direito
positivado.131
No caso especifico da cidade de Recife essa iniciativa teve como pano
de fundo a comissão de Justiça e Paz da diocese de Olinda e Recife por inici-
ativa do bispo D. Helder Câmara.
Corrobora Mário Luiz Ramidoff, o tratamento fragmentário dos dramas
humanos, que justifica o modelo de atuação profissional sob a perspectiva
de ser neutra e isenta, a fim de se evitar “transferências” supostamente ca-
pazes de afetar a racionalidade técnica do advogado, não aumentou e sequer
melhorou a eficácia resolutiva das práticas pautadas numa impessoalidade
racional.132
Nessa perspectiva, sugere a autor que o primeiro passo a ser dado é
procurar princípios adequados que consintam criar, juridicamente, as condi-
ções para se realizar à fraternidade.133
É preciso, fazer valer o princípio da fraternidade, estampado como
compromisso ideológico e doutrinário que serve de pilar ao Estado Demo-
crático de Direito, fulcrado a partir do preâmbulo da nossa Lei Maior, que
dispõe:
Para instituir um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundamentada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.134
Lembra Samia Saad Gallotti Bonavides, que nosso procedimento civil,
tem seu modelo, sua terminologia, e seus métodos de raciocínio nos direitos
romano e germânico. Para a autora, mesmo sendo fiel a sua origem, ora dela
130
SANTOS, loc. cit. 131
SANTOS, loc. cit. 132
RAMIDOFF. M. L. Trajetórias jurídicas desafios e expectativas. Florianópolis: Habitus, 2002. p. 26. 133
RAMIDOFF, loc. cit. 134
RAMIDOFF, loc. cit.
46 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
se difere de forma sutil, sendo influenciado por um ramo francês, sobretudo,
por movimentos como a Revolução Francesa de 1789, razão que leva alguns
doutrinadores a filiar a nossa tradição ao que denominam de sistema franco-
germânico.135
Ressalta ainda, autora que foi pela influência da Revolução Francesa,
plena de ideias novas, e em si um esperançoso alento para a humanidade,
marcando o século XIX, como os das codificações.136
Grande inspiradora da lei codificada foi a Escola de Direito Natural, no
século XVIII, ao teorizar que, fazer leis é atributo do legislador (monarca ou
parlamento) autorizado a reformar o direito de modo a abstrair os erros do
passado, partindo daí a nova fórmula dos códigos, adotados até hoje.
No ensinamento do clássico francês Charles de Montesquieu que sus-
tentou a doutrina da divisão de poderes, assinalando que “estaria perdido se
um mesmo corpo de príncipes ou nobres exercesse esses três poderes: o de
fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou
demandas dos particulares.” 137
Nessa linha de entendimento, a Declaração dos Direitos do Homem e
do cidadão de 26 de agosto de 1789, obra da Revolução Francesa e que re-
sume a sua ideologia político-jurídica, proclamou no seu art. 16 que “toda
sociedade que não assegure a garantia dos direitos nem estabeleça a sepa-
ração dos poderes, não tem constituição.” 138
No entanto Bolque enfatiza que toda a legislação processual civil brasi-
leira, traz implícita, uma ideia individualista e egoísta.139
Para do autor, Institutos como o das partes, da legitimação para agir,
do interesse processual, da sentença, da coisa julgada que faz lei entre as
partes, demonstra a índole egoísta da legislação.140
Não há restrição de que existam regras a respeito das relações interin-
dividuais, mas a preocupação do Código de Processo Civil Brasileiro é tão
somente a individualidade.
Esta marca de individualidade do processo deve-se segundo a lição de
José Marcelo Menezes Vigliar, ao fato de que foi concebida e influenciada por
codificadores, que vivenciavam ainda a segunda fase metodológica da Ciên-
cia Processual, preocupados e devotados com a busca da identificação do
Direito Processual como Ciência em relação ao direito material.141
A modernidade do século XXI parece ter acentuando os aspectos indi-
vidualistas e egoístas da legislação em vigor, esquecendo o caráter social,
135
BONAVIDES, S. S. G. Direito e civilização: a contribuição do processo civil (o triunfo da verdade busca do bem comum sobre a retórica). Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 1, n.1, set.-dez. 2000. p. 118. 136
BONAVIDES, loc. cit. 137
MONTESQUIE, Charles de. O espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 163. 138
DECLARAÇÃO, 217 A. 139
BOLQUE, 2000, p. 90. 140
BOLQUE, loc. cit. 141
VIGLIAR, J. M. M. Ação civil pública. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 17.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 47
fraterno e solidário desses mesmos direitos, que não são simplesmente do
indivíduo e dos grupos, mas também do “outro”, do mais pobre.
Para Bonavides, o processo civil vem sofrendo profundas mudanças,
estimulado pelo pensamento daqueles que preconizaram a ideia da efetivi-
dade do processo, ou seja, de um instrumento com destinações definidas,
cujos objetivos precisam ser alcançados para que se cumpra seu fim de utili-
dade e para que seja socialmente legítimo.142
Chiovenda apud Bonavides, já havia afirmado, com propriedade e de
forma precisa, que “na medida do que for praticamente possível o processo
deve proporcionar a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo
que ele tem o direito de obter.” 143
Nas palavras da autora o processo deve outorgar a quem tem razão,
toda a tutela jurisdicional a que tem direito. Nesse sentido Cássio M. Hono-
rato, frisa que o melhor entendimento desse pensamento pode ser compre-
endido por meio de uma conhecida passagem, muitas vezes repetida em sala
de aula: Em meio ao tumulto, o repórter aproximou-se do chefe indígena e per-guntou o que o índio queria. Em resposta, certeira como a flecha, o bra-vo guerreio afirmou: “Índio quer Justiça.” Não perdeu tempo o repórter e emendou uma segunda pergunta: “o que é Justiça?” E o sábio chefe res-pondeu:” Dar o que é meu!”144
Nos dizeres de Paulo Dourado Gusmão a resposta do sábio cacique vai
ao encontro da definição romana de Justiça: “Justitia est constans et perpetua
voluntas jus suum cuique tribuendi (justiça é a constante e perpétua vontade
de dar a cada um o que é seu).145
Antônio de Pádua Ribeiro é enfático em dizer que é preciso ter-se em
conta que num Estado Democrático de Direito, o governo é das leis e não
dos homens.146
Corrobora José Afonso da Silva: “O democrático qualifica o Estado, o
que irradia os valores da democracia sobre a ordem jurídica. O direito, então,
imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajus-
tar-se ao interesse coletivo.” 147
Na clássica afirmação kelseniana que: o Direito reflete a norma, ou se-
ja, se uma regra de conduta estiver prevista em norma jurídica, isto é Direito.
142
BONAVIDES, 2000, p. 115. 143
BONAVIDES, loc. cit. 144
HONORATO, C. M. Virtudes do direito: elementos a legitimar o Estado Democrático de Direito. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 4, n. 3, p. 109, jan.-jul. 2007. 145
GUSMÃO, P. D. de. Introdução ao estado do direito. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 72. 146
RIBEIRO, A. P. O judiciário como poder político no século XXI. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 12, set.-dez. 2000. 147
SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 119.
48 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
E viver em um Estado de Direito seria viver sob o Império da Lei, fosse ela
imoral ou contrária à ética deveria ser cumprida pois a lei é a lei.
Neste patamar aduz Ramidoff, que o paradigma reducionista e cientifi-
cista, impõe a apropriação do conflito pelo Estado, sob a promessa de segu-
rança jurídica, que as lides terão adequado tratamento e receberão respostas
satisfatórias, levando em conta, que o sistema atuará através de um opera-
dor que conhece a lei (é técnico), que não se deixa envolver emocionalmente
(é neutro), que não vai pender nem para um nem para outro lado (é imparci-
al), e que terá como instrumental (absolutamente seguro) a lei e a dogmática
jurídica.148
Para Bonavides, o grande objetivo da legislação em vigor (Código de
Processo Civil), é atingir a sociedade como um todo, nos seus valores básicos
e fundamentais e propiciar a realização dos direitos que abranjam um núme-
ro cada vez maior.149
Nas bem ponderadas e lúcidas lições de Antônio de Pádua Ribeiro.
Nesta época de globalização e liberalismo econômico, acerbas críticas são dirigidas aos entes públicos, ao fundamento de que não funcionam a contento a serviço da coletividade e de que se tem esquecido da sua finalidade precípua, qual seja, a de realizar o bem comum e, em decor-rência, ajudar a população a alcançar a sua grande aspiração, que é de toda a Humanidade: efetivar o sonho de ser feliz.150
Esclarece ainda Marco Mondaini ao afirmar que:
No decorrer da segunda metade dos anos 1980, o Brasil tenha realizado a sua transição para uma autêntica “Era dos Direitos.” Isso não apenas porque começamos a deixar para trás todo um passado marcado pela existência de inúmeros regimes de caráter ditatorial no plano político, mas também devido ao fato de que os direitos que começavam a ser conquistados passaram a ser reconhecidos de uma maneira universal, tanto nos campos civil, político e social quanto nos níveis individual e coletivo.151
Nesse sentido Ribeiro é enfático ao afirmar que em termos de garantias
jurisdicionais dos cidadãos, relativamente à administração da justiça, a
Constituição Federal de 1988, adota como postulado constitucional funda-
mental:
o “devido processo legal”, expressão da inglesa “due process of law” ao dizer, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art.5o, LIV). Adota, ainda o princípio da inafastabilidade
148
RAMIDOFF, 2002, p. 27-28. 149
BONAVIDES, 2000, p. 117. 150
RIBEIRO, 2000, p. 14 151
MONDAINI, Marco. Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. p. 97.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 49
do controle jurisdicional, ao estatuir que a “a lei não excluirá da aprecia-ção do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.5o, XXXV). Consa-gra o princípio da isonomia: “Todos são iguais perante a lei, sem distin-ção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-ros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade”, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,nos termos desta Constituição” (art.5o, caput e inciso I). Estabelece ainda, o princípio do juiz ou promotor natural, ao dizer que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art.5o, XXXVII e LIII). Estatui o princípio do contraditório: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são asse-gurados o contraditório e ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes” (art.5o, LV). Prevê o princípio da proibição da prova ilícita: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art.5o, LVI); o princípio da publicidade dos atos processuais: “todos os julga-mentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos” (art.93, IX), acrescentando que “só a lei poderá restringir a publicidade dos atos pro-cessuais quando a defesa da intimidade ou interesse social o exigirem” (5o,LX); e o princípio da motivação das decisões judiciais sob pena de nulidade (art. 93, IX).152
Nesse sentido resgata Miguel Reale, que o princípio da equidade em-
pregado como elemento de integração do direito, preenchendo as lacunas da
lei “a fim de que possa dar sempre resposta jurídica, favorável ou contrária, a
quem se encontre ao desamparo da lei expressa.” 153
Por sua vez Honorato, a luz dos ensinamentos de Vicente Ráo, desen-
volve o seguinte conceito de equidade:
Designa-se por equidade uma particular aplicação do princípio da igual-dade às funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos, sem exclusão, sejam tratados igualmente e com humanidade, ou benignidade, corrigindo, para este fim, a rigidez das fórmulas gerais usadas pelas normas jurídicas, ou seus erros, ou omissões.154
A equidade, sendo por sua vez, uma virtude anexa à Justiça, também
se concretiza por meio dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e
também contém aspectos do princípio da fraternidade.
Mais uma vez o autor apoiado nas lições de Ráo, acrescenta que a es-
ses princípios, supracitados, a necessidade “do Direito ser aplicado de modo
humano e benigno”, trazendo consigo não só não a noção de dignidade da
pessoa humana, mas sobretudo a ideia de fraternidade.155
152
RIBEIRO, 2000, p.14. 153
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 292. 154
HONORATO, 2007, p.118. 155
HONORATO, 2007, p. 113.
50 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
No ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade, de emprego do
princípio da equidade encontrava prevista de forma muito limitada no artigo
127 do Código de Processo Civil: “O juiz só decidirá nos casos previstos em
lei”, na hipótese, por exemplo, de procedimento de jurisdição voluntária
(art.1109 do Código de Processo Civil).156
Este quadro sofreu alteração substancial com a promulgação da Cons-
tituição Federal de 1988, que recepcionou explicitamente como fundamento
princípiológico de nosso Estado Democrático de Direito a dignidade da pes-
soa humana, vertido nos seguintes termos:
Art. 1o - A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolú-vel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Esta-do Democrático de Direito e tem com fundamento: III- a dignidade da pessoa humana.157
Nesse sentido Ingo W. Sarlet, que desenvolve com maestria estudos
sobre a dignidade da pessoa humana e, com propriedade ensina:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distin-tiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e con-sideração por parte do Estado e da comunidade implicando, neste senti-do, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra o todo e qualquer ato de cunho degradante e desu-mano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.158
Nesse sentido é pertinente o pensamento de Ribeiro, a Lei e a Justiça
“compõem as duas faces deste universo sobre o qual gravitam todos os fe-
nômenos jurídicos.” 159
E o autor é enfático em dizer que existe uma “crise da Lei” e uma “crise
da Justiça” e, que essas, decorrem da “distorção entre a lei e os anseios soci-
ais” e da “ineficiência da realização da justiça.” 160
Por outro lado os conflitos multiplicam-se na sociedade e, a cada ins-
tante, os cidadãos estão a clamar por justiça, estes precisam de decisões
para serem solucionadas, mas, em outra medida, a justiça da decisão depen-
de da justiça legal. No entanto, o magistrado tem como atividade essencial a
submissão dos fatos às normas.
156
BRASIL. Código de processo civil. Disponível em: <http:/www.planalto.gov.brccivil/Decreto- Lei/De14657.htm> Acesso em: 20 jul. 2010. 157
CONSTITUIÇÃO, 1988, art. 1. 158
SARLET, 2002, p. 62. 159
RIBEIRO, 2000, p. 15. 160
RIBEIRO, 2000, p. 15.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 51
É nesse sentido que Ribeiro diz que a “uma sentença em que se cons-
trói o 'jurídico' antes do 'justo' se equipara uma casa onde se erige o teto
antes do solo”, e valendo-se dos conhecimentos de Plauto Faraco de Azeve-
do, preconiza a era de um poder judicial criativo:161
Que preconiza atenda às exigências de justiça perceptíveis na sociedade e compatíveis com a dignidade humana, um poder para cujo exercício o juiz se abra ao mundo ao invés de fechar-se nos códigos, interessando-se pelo que se passa ao seu redor, conhecendo o rosto da rua, a alma do povo, a fome que leva o homem a viver no limiar da sobrevivência.162
Mas não basta apenas repensar o judiciário, o deslinde dos conflitos
ocorre mediante atuação dos Poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e
o Judiciário. Portanto, a justiça em termos estatais, não é praticada só pelo
Judiciário, mas também pelos outros Poderes. Ao judiciário cabe solucionar
apenas certos conflitos denominados litígios e/ou lides.
Pelo exposto é possível concluir que o direito processual vem evoluin-
do a guisa de diferentes fatores, mas, no limiar do Terceiro Milênio, há o
aspecto prevalente que se convencionou chamar “acesso a justiça”, que nas
palavras de Ribeiro mais é do que a “abertura da ordem processual aos me-
nos favorecidos da fortuna e à defesa de direitos e interesses supra-
individuais, com a racionalização do processo.” 163
Que nos dizeres Cândido Rangel Dinamarco o que se almeja é a efeti-
vidade do processo, sendo indispensável, para isso, pensar no processo co-
mo algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve os
seus objetivos sob pena de ser menos útil torna-se socialmente ilegítimo.164
Watanabe apud Dinamarco diz que acesso a justiça é o acesso à ordem
jurídica justa, e enfatiza que “não tem acesso a justiça aquele que sequer
consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas maze-
las do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer
ordem.165
Como visto, hoje não se pede ao Estado apenas proteção, mas muito mais
que isso. Entretanto essa obrigação, não pode ser realizada através de pura e
simples manifestação do voluntarismo político, que enseja ainda, aquela deficiên-
cia a contínua edição de leis, muitas delas aprovadas e mal redigidas causadoras
de insegurança jurídica - quiçá um dia uma verdadeira nação – puder reunir os
princípios da liberdade igualdade e fraternidade, de modo a concretizar o funda-
mento principiológico da dignidade da pessoa humana.
161
RIBEIRO, loc. cit. 162
RIBEIRO, loc. cit. 163
Ibid., p. 16. 164
DINAMARCO. C. R. A reforma do código de processo civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 21. 165
DINAMARCO,1998, p. 22.
52 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A natureza das normas que disciplinam os Direitos Humanos e as ga-
rantias fundamentais é de direito constitucional na medida em que estas se
inserem no texto de uma constituição, tendo, portanto, uma aplicabilidade
imediata.
Entende-se por Direito Humanos aqueles que são inerentes aos indiví-
duos pela simples razão de pertencerem à raça humana, independente de
vinculação a um determinado Estado, entendimento esse que contribuiu para
a criação de uma ordem internacional capaz de agrupar os interesses dos
Estados em busca de um ideal comum.
A Constituição Federal de 1988, expressamente reproduziu uma série
de direitos humanos no seu texto constitucional, prevendo na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, data em que
também é ratificada pelo Brasil. Dotando-os de plena eficácia no ordena-
mento jurídico brasileiro.
O art. 5o da Constituição Federal do Brasil, descreve os direitos e as ga-
rantias individuais, com presteza das Constituições mais modernas do mun-
do. Mas não é só: ramos do direito como, meio ambiente, direito do consu-
midor, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, a lei tributária e
fiscal, bem como a função social, presente em diferentes capítulos do texto
constitucional.
O Princípio da Fraternidade é recepcionado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos nos seguintes termos: assegurando a liberdade, a igualda-
de, e a dignidade da pessoa humana, bem como o dever de cada ser humano
agir com o espírito de fraternidade.
Faz-se mister aos operadores do direito sejam eles, juízes de direito,
promotores de justiça, defensores públicos, advogados, estudiosos do Direito, e
aos detentores do poder, que não se restrinjam apenas em entender os signifi-
cados das termos expressos nas leis, mas, que se nutram do princípio da frater-
nidade, para que possam selecionar dentre às opções de aplicação da lei, a que
melhor atenda a demanda do ser humano, considerando, seus dramas e sua
esperança na justiça. De nada resolve conferirem direitos aos cidadãos, se não
lhes são dados meios eficazes para a concretização desses direitos.
Neste início de século, quando a Constituição e o próprio Estado, ado-
tam posturas que vem sendo denominado de “constitucionalismo fraternal”
que nada mais é se não o resultado de um sentimento de renovação, não se
pode olvidar que no regime democrático, a atuação precípua do Estado me-
diante seus órgãos, há de visar sempre à afirmação, que ao redor do homem
é que deve circular a sociedade e o Estado.
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Anna Christina Gonçalves de Poli Advogada. Mestre em Direito pela PUCPR. Professora de Direito Empresarial da FESPPR.
Tais Martins Advogada. Mestre em Direito pela Unicuritiba/PR. Professora da FESP/PR; FAESP/PR Autora do livro Anjo Negro - poemas que escondem histórias pela Editora Baraúna. Co-autora dos livros: Jurisdição - Crise, Efetividade e Plenitude Institucional; e Tutela dos Direitos da Per-
sonalidade na Atividade Empresarial Vol I - ambos pela editora Juruá. Fundadora e ex-coordenadora da Revista Acadêmica da Faculdade de Ciência Jurídicas da Faculdade Dom Bosco - EOS - 1980-7430. Membro dos stafs jurídicos: IBRADH, AJIAL de Curitiba e IDCC de
Londrina. Parecerista da Revista Opinião Jurídica - ISSN n. 1806-0420 de Fortaleza/CE.
A pesquisa justifica-se plenamente pela atualidade e relevância do te-
ma escolhido. Com efeito, a educação ambiental, a cidadania e a responsabi-
lidade pelos danos causados têm apresentado novos contornos nas discus-
sões acadêmicas propiciando a precaução ambiental. A intrínseca relação
entre direito, sociedade e mercado propicia um debate permanente acerca do
meio ambiente. As escolhas econômicas devem ser redirecionadas para a
proteção aos bens ambientais e esse novo vértice tende para a confluência
de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Palavras-chave: Meio ambiente; sustentabilidade; educação.
58 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A pesquisa justifica-se plenamente pela atualidade e relevância do te-
ma escolhido. A proteção do meio ambiente promove a genuína inclusão
social. Com esta forma de amparo se dá um passo seguro em relação ao
desenvolvimento sustentável, porque não se deve deixar de considerar o
homem sem sua relação de dependência com o meio ambiente.
O intuito desse trabalho é trazer um novo olhar no que diz respeito a
interação direito e política – dimensionando suas imbricações com o meio
ambiente. Portanto, os principais conceitos operacionais a serem trabalhados
são: desenvolvimento sustentável, dignidade humana, cidadania, sociedade
de risco, inclusão social, direitos fundamentais, educação ambiental e a res-
ponsabilidade social diante da globalização.
O debate permanente sobre o meio ambiente nos traz um panorama
conflitivo entre a ecologia, a ética e a economia. As estruturas do discurso
econômico ao longo dos séculos têm sufocado uma ótica sustentável. Um
futuro longínquo de incertezas permeou a manutenção da vida, surge então
uma racionalidade cultural preocupada com as alterações ambientais e com a
fundamentalidade da ligação do homem com a sua humanidade através da
natureza.
Para Amartya Sen a relação com o meio ambiente deve capitanear juí-
zos econômicos calcados no bem-estar: A posição da economia do bem-estar na teoria econômica moderna tem sido muito precária. Na economia política clássica não existiam frontei-ras definidas entre análise econômica do bem-estar e outros tipos de investigação econômica. Porém à medida que aumentou a desconfiança acerca do uso da ética em economia, a economia do bem-estar foi se afigurando cada vez mais dúbia. Confinaram-na em um compartimento arbitrariamente exíguo, separada do restante da economia. O contato com o mundo exterior tem ocorrido principalmente na forma de um re-lacionamento de mão única, no qual se permite que as conclusões da economia preditiva influenciem a análise da economia do bem-estar, mas não se permite que as idéias da economia do bem-estar influenci-em a economia preditiva, pois se considera que a ação humana real tem por base unicamente o auto interesse, sem impacto algum de considera-ções éticas ou de juízos proveniente da economia do bem-estar1.
A relação mercado, Estado e sociedade não pode se divorciar do signi-
ficado social e político do meio ambiente. A questão ecológica é multidisci-
plinar e a problematização em torno da proteção dos bens ambientais é de-
corrente de uma ação humana que não se restringe a proliferação legislativa.
1 SEN. Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 45.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 59
A sociedade vislumbra através do Estado o conteúdo efetivo da garantia jurí-
dica.
As escolhas econômicas não podem superar a renovação ética. O equi-
líbrio ambiental não está restrito a profusão legislativa, essa não pode se
divorciar da prevenção dos danos ambientais e da ponderação entre o de-
senvolvimento e a degradação.
O significado social da norma ganha um escopo renovado apelando
para uma visão integrada de preservação que conjuga os setores estatais e
privados garantindo um desenvolvimento sustentável real. Os comportamen-
tos humanos ganham um contorno diferenciado na assunção de suas res-
ponsabilidades estruturais que afastam a escassez dos bens ambientais e
garantem a sua conservação.
A instrumentalização do direito é uma conseqüência de ações públicas
e privadas, o apelo a norma legal por sua força coercitiva não basta, neces-
sário um significado social, político e econômico que reconstrua esse novo
tecido dogmático que não encerra seu entrecorte nas questões entre a pro-
teção pública e privada. A idéia básica que norteia o pensamento ambienta-
lista original incide na alteração de paradigmas que propiciam um desloca-
mento da racionalidade econômica para a racionalidade ecológica.
A alimentação e a energia traçam o paradoxo com as novas tecnologi-
as, os riscos ambientais globais carecem de um planejamento adequado e
com soluções racionais. O uso do meio ambiente pela empresa transita entre
a utilização e a exploração e o revés de tecnologia e meio ambiente e do
homem e meio ambiente abarca novas variáveis culturais, sociais e instituci-
onais.
O desgaste da natureza e o avanço da industrialização não ameaçam
somente a fauna e a flora. O paradoxo no bem-estar advindo da natureza,
agora, recai sobre um comprometimento do futuro comum do próprio ho-
mem e, conseqüentemente, da natureza. O conjunto de saberes dinamiza o
estudo e a proteção ambiental a cada dia. A proteção do ecossistema torna-
se uma proteção à vida e à dignidade humana.
Uma alfabetização social é a mola propulsora de um pequeno elenco
de soluções para uma imensa gama de problemas. O desgaste ambiental é
maior quando o nível cultural é inferior, já ensina Amartya Sen2. A realidade
social não propicia uma interpretação ambiental; essa leitura é da competên-
cia do Estado e da empresa que garantem a difusão de seus resultados pro-
piciando um bem-estar coletivo com alcance nos verdadeiros fins constituci-
onais e sociais.
2 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. p. 17.
60 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Cíntia Maria Afonso traz dados sobre o analfabetismo atualizados até
2002:
As condições relativas à educação costumam ser analisadas através da conjugação de três indicadores que mostram o número de pessoas alfa-betizadas, o número de crianças e adolescentes que freqüenta as esco-las e o número médio de anos de estudos dos adultos. No Brasil 96,9% das pessoas com idade entre 7 e 14 anos freqüentam a escola, mas esse percentual diminui para 81,5% na faixa entre 15 e 17 anos e mais ainda entre 18 e 19 anos, faixa na qual apenas 51,1% das pessoas freqüentam a escola, Mesmo assim, a média de anos de estudo de cidadão brasileiro é de 6,1 anos, o que significa que a maior parte das pessoas com mais de 25 anos sequer concluiu o ensino fundamental (o ideal seria de 11 anos de estudo, ou seja, os níveis fundamental e médio de ensino com-pletos). O analfabetismo ainda não está erradicado no Brasil. Em 2002, 88,2% das pessoas com mais de 15 anos era alfabetizada, portanto ain-da 11,8% de brasileiros analfabetos. Esta situação é pior na região Nor-deste, onde apenas 76,6% das pessoas com mais de 15 anos são alfabe-tizadas3.
A pesquisa acima menciona datada de 2002 pode ser analisada sob os
dados divulgados pelo IBGE4 em 2010. Os números dão conta de uma média
crescente de analfabetos entre os adolescentes na média dos 15 anos – ou
seja, na fase de encerramento da fase escolar básica/fundamental. Em dez anos, o analfabetismo no país caiu só quatro pontos percentu-ais. Hoje, há ainda 13,9 milhões de brasileiros, com 15 anos ou mais, analfabetos, diz o Censo de 2010 divulgado. É o equivalente a 9,63% da população nessa faixa etária – no Censo de 2000, esse percentual era de 13,64%. Apesar de ser uma das áreas do país com maior crescimento econômico e aumento de mercado consumidor, o Nordeste continua sendo a região com maior número de analfabetos. Para pesquisadores, a queda na taxa de analfabetismo tem sido lenta. O próprio presidente do IBGE, Eduardo Pereira Nunes, afirma que essa taxa “não cai tão rápido”. O principal motivo para isso, diz Nunes, é a dificuldade da alfabetização de pessoas mais velhas. Isso é apontado pelo fato de que, à medida que se avança na faixa etária, maior é o percentual de analfabetos. Na faixa de 60 anos ou mais, são 26,5% de analfabetos.
A árdua tarefa educacional precisa incorporar valores ecológicos de
conservação e reciclagem. Os pressupostos econômicos já encontram raiz
em relação ao emprego, consumo e relações pessoais. A incorporação efici-
ente do capital produtivo não pode convergir para a degradação ambiental,
3 AFONSO, Cintia Maria. Sustentabilidade. Caminho ou utopia? p. 43.
4 http://www.ibge.gov.br/home.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 61
mas a parcela da responsabilidade social somente será assumida diante de
um processo educacional eficiente5.
A uniformização da proteção pelo direito de uma relação individual en-
tre sujeito e objeto justifica-se pelo seu efeito na sociedade. As funções do
direito ambiental devem propiciar um reencontro da ética com o direito. O
meio ambiente pode ser encarado como um bem jurídico autônomo e de
interesse público que se dimensionam como um direito fundamental do ho-
mem, seja ele consumidor ou não. Leff propicia entendimento sobre a pro-
dutividade ecotecnológica6.
Isso tem relevância para a compreensão do processo social de constru-
ção de um paradigma de produtividade ecotecnológica7, assim como para a
análise da eficácia do movimento ambientalista para reverter os custos soci-
ais e ambientais da racionalidade econômica dominante e para construir ou-
tra racionalidade social No entanto, esta racionalidade transcende e a refun-
cionalização é indispensável, pois a racionalidade econômica precisa ter em
conta os padrões de sustentabilidade, uma vez que na degradação dos pro-
cessos ecológicos há o autômato do comprometimento futuro.
Para Leff:
O meio ambiente é um patrimônio universal, um macrobem, que possui um caráter interdisciplinar e que envolve em sua proteção todos os seres vivos. Esquema de fins e meios ‘ecologizados’, inclusive aqueles que ho-je em dia procuram incorporar a incerteza dos processos ecológicos e os processos dissipativos a análise multicriterial na forma de tomada de decisões e abertura da ciência para outros saberes e em uma gestão ambiental participativa8.
O desfrutar do meio ambiente é coletivo e indissociável. O indivíduo
faz uso desse material como cidadão, consumidor, empresário ou emprega-
do, e o meio ambiente permanece na confluência da solidariedade social, é
um bem a ser protegido e esse entendimento é sustentado por Cristiane De-
rani
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico, consti-tucionalmente protegido. Este bem não pode ser desmembrado em par-celas individuais. Seu desfrute é necessariamente comunitário e reverte ao bem-estar individual. 9:
5 SEIFFERT, Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambien-
tal. p. 30 e 31. 6 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. p. 255.
7 http://www.scielo.br/pdf/asoc/n6-7/20433.pdf
8 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. p. 256.
9 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. p 248.
62 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A ecologia política surge por meio de uma redefinição de saberes com
base no saber ambiental e recebe uma influência notória da ética ecológica,
que vislumbra transcender a racionalidade econômica dominante. O conjunto
sistêmico das regras de direito aponta a globalização como realidade irre-
versível no plano ecológico, econômico, educacional e empresarial e, nesse
contexto, o Estado acaba por redescobrir sua função e o intervencionismo
ganha um viés distintivo do processo histórico-econômico 10
.
As mudanças surgidas no contexto econômico e social nos últimos
anos têm levado as organizações a uma série de alterações, tendo em vista a
necessidade delas se adaptarem a um ambiente crescente e competitivo.
A figura do empreendedor tem despertado interesse de pesquisa e
também questionamentos de seu papel nas organizações. O ponto crucial da
gestão corporativa está calcado na visão holística dos empreendimentos, na
observância das vocações regionais e nos riscos da escolha de uma atividade
que comprometa a manutenção humana no local.
As mudanças tecnológicas podem ser includentes e excludentes ao
mesmo tempo. A dinâmica da informação não se opera por filtros qualitati-
vos na convergência do bem-estar e da manutenção da vida. O excesso de
informação sem qualidade leva, como indicou Morin11
, a uma cabeça “cheia”
e não uma cabeça “bem-feita”.
A multiplicidade de formas de direito, em especial do direito ambien-
tal, apontam primeiramente ao questionamento de que faltam leis para re-
gular todas as novas realidades. Ocorre que a rapidez e a intensa agilidade
das inovações sociais não permitem que os legisladores consigam aprovar e
regulamentar novas regras de conduta para cada novo comportamento ou
cada novidade tecnológica produtora de negócios jurídicos.
A gestão ecológica, como já foi mencionado, compreende uma análise
transdisciplinar entre crescimento e sustentabilidade ecológica. Os pontos
decisórios na empresa compreendem uma visão preventiva e conjugam con-
dições socioeconômicas e tecnológicas que implicam na conservação, sem
deixar para um segundo plano o angariar pecuniário. Isso quer dizer que o
modelo de desenvolvimento convencional pautado no mercado como instân-
cia reguladora da vida social vislumbrava uma política de desenvolvimento
científico-tecnológico que almejava prioritariamente a maximização dos lu-
cros como princípio vetor. Ocorre, sobretudo, que em função da demanda do
mercado em maximizar o lucro, os bens ambientais apresentaram mudanças
10
http://tede.unicuritiba.edu.br/dissertacoes/TaisMartins.pdf 11
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. p. 5.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 63
na sua oferta. E a proximidade da “exaustão” ou “extinção” propiciou a ne-
cessidade de redimensionar a velocidade da captura dos bens para soluções
menos agressivas ao “lar humano.”
A metafísica de um mercado global possibilita a escolha do modus vi-
vendi12 de cada indivíduo na sociedade, e essa escolha depende da manuten-
ção e da conservação do meio ambiente pelos seus agentes exploradores.
Porém, a proteção ecológica não está restrita à manutenção do meio ambi-
ente, pois o natural e o social estão interligados13
.
Ignacy Sachs observa:
A ética imperativa da solidariedade sincrônica com a geração atual so-mou-se à solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para al-guns, o postulado ético da responsabilidade com o futuro de todas as espécies vivas na Terra. Em outras palavras, o contrato social no qual se baseia a governabilidade de nossa sociedade deve ser complementado por um contrato natural14.
Em outra obra, de Sachs, o autor aponta para uma responsabilidade
sociopolítica:
Parece evidente que a concretização desse ideário exigirá a adoção de um conjunto interdependente de reformas de natureza sociopolítica, so-cioeconômica e sociocultural dificilmente alcançáveis atualmente. Mais do que nunca, deveríamos admitir que estamos enfrentando uma corre-lação de forças dramaticalmente desigual, num momento histórico em que, aparentemente, as chaves-mestras da cultura já não conservam mais o poder de abrir novas portas, descortinar novos horizontes e ins-pirar novos avanços. Pressupondo que, daqui em diante, a experimenta-ção sistemática e coordenada com o enfoque de ecodesenvolvimento não acontecerá pelo simples poder do verbo15.
Ignacy Sachs adverte que existe o desafio de formularem-se planos de
ação muito mais concretos e precisos em termos de recursos e prazos, sem
esperar mais por avanços significativos no âmbito das negociações interna-
cionais16
.
Os tempos da industrialização trazem em seu bojo um novo conceito
de empresa e, para essa empresa moderna, há desafios e exigências das
mais variadas ordens e que precisam atender aos consumidores e proteger a
qualidade de vida deles, por meio da manutenção do meio ambiente.
12
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Op cit. p. 137. 13
SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes.; PAVIANI, Jaime. Direito ambiental: um olhar para a cidada-nia e sustentabilidade planetária. p 47. 14
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. p. 49. 15
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. p. 22 e 23. 16
http://www.iica.int/Esp/regiones/sur/brasil/Lists/Publicacoes/Attachments/33/S%C3%A9rie%20DRS%20vol%2010%20-%20Gestao%20Social%20dos%20Territorios.pdf.
64 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Economia, direito e meio ambiente mostram-se indissociáveis no que
concerne à administração e gestão dos bens ambientais. Ligações intrínsecas
e extrínsecas dimensionam concomitantemente o mercado consumidor, a
livre iniciativa e a proteção ambiental. Os eixos cultural, econômico e social
da vida humana apresentam a tênue linha situada entre o explorar e o pre-
servar o meio ambiente.
Uma gestão descomprometida com as questões ecológicas não viabili-
za a manutenção dos bens naturais e privilegia um desenvolvimento econô-
mico predatório. Essa degradação paulatina e sem limites fere os princípios
constitucionais e compromete a dignidade humana. O meio ambiente, o
ecossistema e a natureza necessitam de uma proteção permanente, pois o
gerenciamento constante da biosfera transforma o desafio ambiental em
uma oportunidade.
Epistemologicamente, a proteção ambiental está diluída nas questões
sobre propriedade, saúde, segurança, educação, vida humana, animal e ve-
getal, e esses saberes, empírica e tecnicamente, são debatidos no que con-
cerne à desigualdade de renda e de cultura. Não há sociedade homogênea e
os componentes econômicos levam a uma incessante busca pelo equilíbrio
por meio do ordenamento jurídico. O direito é uma modalidade de conheci-
mento humano que tem três dimensões: dogmática jurídica ou ciência do
direito, a sociologia do direito e a filosofia do direito17
, e o direito ambiental
não está isolado dessas dimensões cognoscíveis.
A relação entre sujeito e objeto tem sua distribuição jurídica nas nor-
mas constitucionais, que dispõem sobre a livre iniciativa, a propriedade pri-
vada, o direito do consumidor; a responsabilidade civil no que concerne à
responsabilidade objetiva e subjetiva; o direito processual, por meio das
questões proprietárias de apropriação e desapropriação de áreas comuns; o
direito penal, no que concerne aos crimes ambientais e o tangenciamento da
cidadania, da dignidade humana.
A educação faz os contornos de uma sociedade solidária e que têm in-
cidência direta na gestão ambiental. O crescimento econômico é o processo
pelo qual o Produto Interno Bruto - PIB por habitante aumenta em um de-
terminado período de tempo, por meio de ganhos contínuos na produtivida-
de dos fatores produtivos, e o desenvolvimento econômico, mas é importan-
te destacar que isto está relacionado com a distribuição do produto e com o
grau de utilização da capacidade produtiva de um país.
O crescimento precisa ser mensurado, assim, são objetivos do desen-
volvimento econômico o crescimento do produto interno per capita, a gera-
ção de emprego e a maior igualdade na distribuição de renda apresentam os
reais indicadores de uma gestão privada responsável e coerente com os pa-
17
SANTOS, Roberto. Ética ambiental e funções do direito ambiental. São Paulo, Revista de direito ambiental, v. 5, n. 18, p. 241-250, abr./jun. 1999.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 65
râmetros constitucionais da livre iniciativa e da manutenção do meio ambi-
ente.
Para Demajorovic do discurso a ação valorizada pela educação ambien-
tal há um longo caminho:
[...] Do discurso à ação, no entanto, há um longo caminho. Ainda que valorizada a educação ambiental, promover um processo reflexivo no âmbito das organizações enfrenta as barreiras estabelecidas por uma lógica baseada na busca constante do lucro imediato. [...] em que medi-da a educação ambiental deve constituir-se num dos instrumentos ne-cessários para a gestão ambiental na iniciativa privada empresarial. Além disso, procurou-se identificar a contribuição da educação ambiental pa-ra a melhoria do desempenho ecoeficiente do setor privado para que, atendendo às suas próprias demandas específicas, possa também cum-prir com a responsabilidade social.18.
A implementação de condutas de desenvolvimento econômico integra-
das à manutenção ambiental garante a sustentabilidade que previne ou di-
minui a poluição e garante a dignidade humana por meio da ecoeficiência
real. As tecnologias trazem consigo os riscos preconizados pelas atividades
desenvolvidas, facilitadores da vida humana, na mesma medida em que tra-
zem riscos à saúde humana e ao meio ambiente associados19
.
O enfoque preventivo é fundamental, bem como a compreensão dos
riscos da produtividade tecnológica. Essa também é uma tarefa corporativa e
pessoal que ganha um viés mais amplo do que a análise corporativa restrita.
A responsabilidade social é essencial para a garantia de um meio am-
biente sadio e equilibrado, visto que essa é condição essencial para a tutela
da pessoa humana, pois não se pode retirar esta preocupação da atividade
empresarial, que traz a aproximação entre a preocupação ambiental, inserin-
do o homem como elemento essencial desta relação com a natureza.
A intervenção do Estado apresenta uma roupagem dissonante da órbita
do liberalismo e da Revolução Francesa, os excessos históricos restam subs-
tituídos por um Estado Democrático de Direito que assegura uma liberdade
econômica permeada pelos direitos fundamentais. No Brasil, o diagnóstico
18
SIMONS, Mônica Osório. Educação ambiental na empresa: mudando uma cultura. In: DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de Gestão ambiental. Op cit. p. 201. 19
FERREIRA, Edson; GASI, Tânia Tavares. Produção mais limpa. In DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de Gestão ambiental. Op cit. p. 50 e 51.
66 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
das contradições se corporifica pela frase de Ignacy Sachs: Quo vadis20, Bra-
sil? 21
A crise ambiental apresenta o conflito entre desenvolvimento e explo-
ração ambiental. O desenvolvimento pressupõe uma abertura de ordem eco-
nômica e a sustentabilidade engaja o seu contexto na utilização, manutenção
e no equilíbrio dos bens naturais. Destaca-se que a utilização deveria sobre-
pujar a palavra exploração, pois o exaurimento não condiz com a sustenta-
bilidade.
A equação entre essas temáticas está alicerçada na preservação mais
coerente do meio o progresso e o desenvolvimento econômico não precisam
ser negativos aos indivíduos, mas devem, sim, estimular uma finalidade so-
cial que promove o equilíbrio entre as gerações na busca pela humanização
das relações pessoais e também as empresariais, visto que os administrado-
res e empresários na mesma medida em que fazem uso do meio ambiente
devem preservá-lo, pois o modelo predatório já demonstrou seu fracasso no
processo histórico.
No dizer de Amartya Sen:
Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento do Produto Nacional Bruto e de outras variáveis relacionadas à renda. Sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar muito além dele22.
A crise ambiental está calcada no ser e não no ter. A empresa como
agente modificador do meio transita entre esferas protetivas ambivalentes a
livre iniciativa num vértice e a proteção ao meio ambiente de outro.
Os sistemas legislativos indicam que o indivíduo deve ser o centro da
proteção jurisdicional para além das relações contratuais e empresariais e
que a garantia ao meio ambiente é um debate interdisciplinar e necessário,
visto que a ausência de efetividade nas medidas jurídicas tem comprometido
a saúde e levado as empresas a custear o preço de suas escolhas por meio
da responsabilidade civil e da quantificação das indenizações. No entanto, o
cálculo exato dos danos ambientais escapa a qualquer legislação.
O desenvolvimento humano deve ser debatido no ambiente corporativo
no que diz respeito a sua aplicabilidade, ou seja, é preciso modificar os pa-
radigmas para que a sociedade e a empresa não estejam restritas a uma so-
ciedade de risco. O reconhecimento do risco está em curso.
Uma ciência reflexiva é indispensável para amenizar os danos ambien-
tais, segundo Tavolaro:
20
N.A O termo pode ser entendido como “para onde vai?” ou “Para que direção seguirá?” 21
http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n51/a02v1851.pdf. 22
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. p. 28.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 67
A cientifização primária é o período no qual se deposita uma fé inque-brantável na ciência e no progresso por ela proporcionado; já na cientifi-zação reflexiva, as ciências são confrontadas com sua própria objetivi-dade passada e presente, isto é, são confrontadas consigo mesmas co-mo produtoras e produtos da realidade e de problemas que devem ana-lisar e superar. Isso faz Beck acreditar na idéia de que, hoje em dia, as possibilidades de expansão da ciência encontram-se ligadas à própria crítica da ciência, à crítica de seus próprios fundamentos, de suas pro-messas, de suas realizações e dos resultados e conseqüências delas. Beck acredita que seja possível resgatar as promessas iluministas do es-clarecimento desde que a razão que moldou o desenvolvimento da ciên-cia e da tecnologia seja convertida em uma teoria dinâmica de racionali-dade científica que sintetize a experiência histórica, desenvolvendo em si mesma a capacidade de aprender23.
A inquietude dessa temática não aponta para um exaurimento na
abordagem. A sobrevivência da espécie humana promove o reconhecimento
de um ecossistema planetário que é interdependente. O futuro comum se
constitui, muito mais do que um discurso, mas em uma realidade incontes-
tável.
A dinâmica da vida humana coloca os seres vivos humanos no mesmo
cenário, seja ele de manutenção ou extinção. Nesse aspecto, os movimentos
ambientais ecológicos surgem e a globalização indica a impossibilidade de
separação entre o local e o global.
O trâmite mercadológico se constrói por meio da informação e as me-
todologias administrativas precisam manter o foco no global, no geral e na
amplitude de suas decisões. A ecoeficiência é um fim almejado, mas alcan-
çado por poucas empresas, pois o aprimoramento dos benefícios ambientais
se depreende da visão holística e não da lucratividade absoluta e das peque-
nas indenizações por danos causadas pela pessoa jurídica ao meio ambiente.
O novo paradigma proposto dá conta de um novo modelo de sociedade
e um novo modelo de empresa, e não somente no tipo de crescimento alme-
jado. A inovação tecnológica indica que quanto mais intenso o desenvolvi-
mento mais aguda a pobreza e a deterioração ambiental24
.
Nas lições de Leonardo Boff:
23
TAVOLARO, Sérgio Barreira de Faria. Movimento ambientalista e modernidade: sociabilidade, risco e moral. p. 83-84. 24
DEMAJOROVIC, Jacques. Sociedade de risco e responsabilidade socioambiental. Op cit. p. 45.
68 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
O desenvolvimento não deveria ser chamado como tal, mas a apenas de crescimento, querido em si mesmo, dentro de um mesmo modelo quan-titativo e linear. Não se procura o desenvolvimento como potencialização das virtualidades humanas nas suas várias dimensões, especialmente aquela espiritual, própria do homo sapiens/demens sempre ligado às in-terações globais com o cosmos ou a Terra em sua imensa diversidade e em seu equilíbrio dinâmico. Buscando-se apenas aquelas que atendem aos interesses de lucro. Por esta razão o desenvolvimento, neste mode-lo, apresenta-se apenas como material e unidimensional, portanto como mero crescimento. A sustentabilidade é apenas retórica e ilusória
25.
O desenvolvimento sustentável deve ser analisado entre dois vértices
basilares: o meio ambiente e o desenvolvimento econômico. O equilíbrio
desses vértices é destinado a propiciar a proteção do homem e da sua digni-
dade humana, pois o meio ambiente equilibrado assegura a cidadania, a so-
brevivência e a dignidade do indivíduo, o desenvolvimento econômico não
pode ser sobreposto em detrimento do desenvolvimento humano. Um exem-
plo disso está no confronto entre slogan e prática. Na era globalizada, a for-
ça do marketing arrebanha consumidores e desrespeita o cidadão.
Para Capra, a teia de vida serve como diretriz da ação humana e do
equilíbrio entre a pessoa e a natureza:
A ecologia profunda não separa os seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma cole-ção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão profundamente interconectados e são interdependentes. A ecologia pro-funda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida26.
O gerenciamento de riscos é a forma mais econômica e correta do
ponto de vista administrativo para concatenar a sustentabilidade da atividade
empresarial e a produção dos efeitos colaterais que ela possa provocar. O
debate traz a preocupação com a finitude do bem natural, independente-
mente dos benefícios que sua utilidade possa trazer à vida humana.
Melhorando esse aspecto, as medidas eficazes para evitar a degrada-
ção ambiental apontam para um desenvolvimento tecnológico competente,
que interfira na comunidade, mas evitando que os impactos sobre os vetores
de natalidade, solo e educação não sejam negativos. E a educação ambiental
moderna exige cada vez mais dos gestores e administradores no tocante ao
25
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. p 97. 26
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma compreensão científica dos sistemas vivos. Apud CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. p. 139.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 69
planejamento eficiente, que traz em seu bojo, irmanamente, o crescimento e
o desenvolvimento, bem como a sustentabilidade da atividade econômica27
.
A relação da sociedade com o meio ambiente é conexa, visto que os
problemas ambientais são sistêmicos. O desenvolvimento econômico e o
desenvolvimento ambiental têm um futuro comum, numa teia de interde-
pendências que garante o equilíbrio ecológico e, conseqüentemente, o cres-
cimento/desenvolvimento da empresa e da sociedade.
O desenvolvimento sustentável frente a esse binômio parece utópico,
se o parâmetro exposto levar em conta uma sociedade global capitalista e
consumista. A delimitação desse conteúdo não se restringe a esses panora-
mas, mas parte deles para a análise da complexidade da questão ambiental.
Para Morin, necessária é uma reforma do pensamento 28
.
Capra, por sua vez, indica um problema de percepção da realidade.
Logo, é importante identificar o tipo de sociedade, exatamente, para saber a
qual regime jurídico ela deve se submeter, pois os danos no que concerne a
sua dimensão podem ser visíveis ou invisíveis, na dimensão de sua previsibi-
lidade. A intervenção do direito na atividade empresarial se presta ao sus-
tentáculo entre atividade empresarial e não-degradação ambiental.
A crise valorativa afeta o desenvolvimento ambiental. O crescimento
desenfreado consome as energias fósseis, provoca intempéries climáticas e
propicia uma nova categoria de refugiados: os refugiados ambientais. A ex-
ploração desprendida da ética e da sustentabilidade compromete a existên-
cia coletiva, mesmo que a responsabilidade pelo consumo desenfreado não
seja compatível com todos os seguimentos de consumo.
O crescimento selvagem29
compromete os recursos naturais abióticos,
bióticos, o ar, a água, a fauna e a flora e a interação do homem com esses
recursos promove uma extinção paulatina do patrimônio natural, cultural das
gerações existentes e, conseqüentemente, das gerações futuras.
O consumo traz, em seu bojo, uma análise sociológica que transita en-
tre o consumo sustentável, o subconsumo e o superconsumo. Ana Luíza Spí-
nola indica que as populações que apresentam consumo sustentável são
aquelas localizadas em países europeus. Por sua vez, o superconsumo apon-
ta para os países desenvolvidos e, por fim, o subconsumo está localizado
nos países em desenvolvimento.
O padrão do subconsumo apresenta uma rápida exaustão dos recursos
naturais, pois a sobrevivência dos indivíduos e suas necessidades são supri-
27
DEMAJOROVIC, Jacques. Sociedade de risco e responsabilidade socioambiental : perspectivas para a educação corporativa. p. 45. 28
MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade. In: FRIED-SCHNITMAN, Dora. Novos Paradigmas, cultura e subjetividade. p. 4. 29
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia – teoria e prática do desenvolvimento. p. 25.
70 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
das de maneira não-planejada e que não predispõe uma preocupação com a
conservação ambiental.
O superconsumo, por sua vez, apresenta um quadro de individualismo
e imediatismo, despreocupado com a coletividade e sem atenção ao trata-
mento de resíduos.
A atividade empresarial transita por esses vértices e busca uma har-
monia entre a economia, o processo produtivo e a manutenção ambiental. O
bem estar dos indivíduos se relaciona de maneira direta com os recursos
naturais disponíveis e, conseqüentemente com os padrões de consumo. Es-
ses, por sua vez, ligam-se diretamente ao desenvolvimento.
A determinação conceitual associa o consumo ao nível de desenvolvi-
mento em três conceitos basilares:
Subconsumo: padrão típico observado em países em desenvolvimento, onde as populações apresentam um baixo nível de renda, sobrevivendo com menos de um salário mínimo por mês. Estas populações apresen-tam um padrão de consumo marginalizado, não apresentando condições de optar por produtos ecologicamente corretos, uma vez que simples-mente ignoram a questão ambiental, e também por não apresentarem um nível de renda familiar que lhes possa permitir realizar esta escolha, simplesmente optando pelo produto mais a acessível (mais barato); con-sumo sustentável: padrão tipicamente observado em países desenvolvi-dos, em que as famílias apresentam uma renda familiar compatível com um maior nível de consumo, os quais independentemente disso utilizam esses recursos de maneira racional. O consumidor preocupa-se em sele-cionar produtos que evidenciem um processo de produção ambiental-mente mais adequado, evidenciando um comprometimento com a con-servação dos recursos naturais, ainda que tenham que pagar mais caro pelo mesmo. Alguns países europeus apresentam-se mais próximos a esse padrão de consumo; superconsumo: padrão de consumo observado também em países desenvolvidos, em que a população apresenta um padrão de consumo com potencial para seleção de produtos ambiental-mente mais adequados, mas que não realiza por limitações culturais. Este tipo de população é em geral mais imediato e consumista30.
Mari Seiffert aponta os parâmetros de consumo indicando dois padrões
de consumo insustentável, que propiciam um tipo de degradação distinto,
como representado no gráfico abaixo, que seria o subconsumo e o super-
consumo 31
.
Numa rápida análise, a autora evidencia o tríplice caráter do consumo.
O consumo sustentável se constitui no equilíbrio entre o uso exacerbado da
30
SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 275. 31
SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 276.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 71
natureza pela necessidade e o uso desmedido pelo prazer do consumismo,
que propicia uma degradação inescrupulosa 32
.
Os mercados verdes representam oportunidades de negócios e abertu-
ra de mercados internos e internacionais. A bioeconomia, os ecoprodutos, os
produtos reciclados atingem o mercado consumidor e atraem o consumo
consciente e os economistas prevêem grandes investimentos nessa área. O
ecodesenvolvimento necessita de um planejamento local e participativo e há
necessidade de uma consciência ambiental coletiva, o que tende a convergir
para um consumo sustentável, equilibrado e coerente com o custo-
efetividade.
Os reflexos entre economia e consumo são indissociáveis. A alternân-
cia dos padrões entre consumo sustentável, sub e superconsumo conduz o
consumidor a manter uma relação de responsabilidade na seleção dos pro-
dutos e serviços de sua preferência. O modo de produção capitalista subme-
teu a natureza à logicidade de mais valia e da apropriação econômica, mas a
racionalidade produtiva encontra berço no consumo sustentável.
A velocidade do consumo está ligada à “coisificação da natureza”. A
degradação ambiental e a escassez de bens, sentida por alguns segmentos
mercadológicos e motivada por distúrbios ecológicos e intempéries climáti-
cas convergem no preço e na escassez absoluta previsível33
. O aumento de
preço e a restrição de alguns produtos receberam influência das externalida-
des e da socialização dos custos ambientais.
Os marcos ecológicos apontam para um nível de desenvolvimento edu-
cacional e ambiental, no vértice da interferência de padrões, garantindo ao
direito ambiental esse caleidoscópio valorativo e a harmonia entre cresci-
mento/desenvolvimento ambiental e econômico.
No diapasão do desenvolvimento equilibrado, consumo sustentável ou
abusivo, o ecodesenvolvimento funciona com a ecologização do pensamento
e suas dimensões convergem para a sustentabilidade e para o equilíbrio do
mercado consumidor e da economia.
As relações de interdependência e interdisciplinaridade são caracterís-
ticas do direito ambiental. A permanente tensão, a mutação histórica, ou os
câmbios paradigmáticos chamam também atenção para a dimensão utópica
dos direitos ambientais no que concerne à limitação absoluta de seu uso.
32
SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 277. 33
BORGER. Fernanda Gabriela. Responsabilidade corporativa; a dimensão ética, social e ambiental das organizações. In: DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de gestão ambiental. Op cit. p. 39.
72 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Para Leff, é necessária e urgente uma racionalidade ambiental geral e
não apenas setorizada. As bases culturais do desenvolvimento sustentável
encontram berço no âmbito urbano e rural, pois todos os grupamentos soci-
ais são dotados de cultura. Nas suas manifestações e indicativas, Leff con-
corda com Sachs no que concerne às estratégias do ecodesenvolvimento34
.
Sachs, ao formular a noção de ecodesenvolvimento35
, propunha uma
estratégia multidimensional e alternativa de desenvolvimento que articulava
promoção econômica, preservação ambiental e participação social, configu-
rando-se uma superação da marginalização, da dependência política, cultu-
ral e tecnológica das populações envolvidas nos processos de mudança soci-
al36
,.
As políticas ambientais surgem pela necessidade de modificar o com-
portamento das pessoas nos aspectos de produção e consumo. A superex-
ploração deve ser erradicada. Os bens ambientais garantem a justiça social
por meio de sua manutenção. O compromisso com as gerações futuras é
ameaçado pelo superconsumo.
Para compensar as inevitáveis perdas de vantagens comparativas, ba-
seadas na disponibilidade dos recursos naturais e na localização geográfica,
a região que oferece uma atividade inovativa concentra maiores investimen-
tos públicos e privados. A conseqüência da não captação dos custos da de-
gradação ambiental nas relações de mercado é a exclusão destes da concor-
rência ativa no ciclo de produtos.
De outro vértice, porém as dimensões da utopia e da realidade devem
ser vislumbradas em conjunto. A garantia do bem ecológico intocável, prote-
gido por uma legislação rígida e livre de interpretações não seria cabível. E
porque não dizer impossível como indica Milaré quando da abordagem de
ecologia, pois a proteção dos recursos naturais seria mais relevante que a
vida humana37
.
As normas, por meio dos seus agentes públicos elaboradores e aplica-
dores das normas jurídicas devem propiciar a eficiência das medidas de ca-
ráter fiscalizador e punitivo, assegurando a prestação de contas dos agentes
poluidores bem como as respectivas punições. Com esse viés a cultura hu-
mana não se restringirá a ludíbrios inalcançáveis delineados meandro jurídi-
co.
Os impactos ambientais e o seu controle trazem clara a tarefa que
transita entre a possibilidade da implementação e do uso lícito dos bens na-
turais. A proteção jurídica traz consigo uma tarefa holística conforme menci-
34
LEFF. Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. p. 414. 35
LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental. Op. cit. p. 414. 36
http://material.nerea-investiga.org/publicacoes/user_35/FICH_ES_32.pdf.. 37
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. Doutrina. Jurisprudência. Glossário. p. 757.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 73
ona Canotilho38
. Manter a biosfera intacta não é possível diante das necessi-
dades humanas; de outro vértice, degradá-la de maneira irreparável com-
prometerá muito mais do que as necessidades humanas, a vida planetária.
O desenvolvimento da gestão e da responsabilidade social diante dessa
complexidade necessita de processos de avaliação que levem em considera-
ção padrões culturais, econômicos e sociais em relação à avaliação de im-
pactos ambientais e os seus meios de controle.
O meio ambiente sadio e equilibrado depende da responsabilidade so-
cial para que seja possível assegurar a dignidade humana. As ações comuni-
tárias também colaboram com a preservação ambiental.
As formas ecologizadas, as experiências sustentáveis, os valores éticos
do ambientalismo, dos ecossistemas, passam por uma revitalização da eco-
nomia num processo vagaroso e repleto de paradigmas retrógrados que de-
pendem de uma autogestão produtiva dos bens ambientais superando o dis-
curso histórico.
É emergencial o transcender da racionalidade econômica dominante
para uma ecologia política a partir dos saberes ambientais. A refuncionaliza-
ção das empresas é indispensável. A racionalidade econômica precisa respei-
tar os parâmetros da sustentabilidade no que concerne à degradação dos
processos ecológicos, pois esses processos podem confluir para uma falên-
cia ecológica e conseqüentemente humana. As reformas das políticas eco-
nômicas têm o dever de promover um planejamento social eficiente, que
viabilize a utilização eficiente dos recursos para o desenvolvimento susten-
tável, convergindo para a eliminação das distorções sociais.
O ecossistema equilibrado é a garantia de permanência e da existência
das tarefas públicas e privadas. O bem-estar dos indivíduos independe da
sua participação direta/indireta na administração dos bens ambientais, mas
a sua não participação pode, e vai, a longo prazo, demonstrar que essa ne-
gação eleva os custos dos bens ambientais e os custos da dignidade huma-
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Alexandre Morais da Rosa Doutor em Direito. Professor Adjunto de Processo Penal e do Mestrado em Direito da UFSC.
Juiz de Direito (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR.
O artigo procura discutir os impactos do discurso neoliberal em face da
noção moderna de soberania.
Palavras-chave: Estado. Neoliberalismo. Soberania.
Estado como o ente que pode exercer o poder em seu território, ou se-
ja, impor o terror, daí território. Esse poder, diante das novas coordenadas
simbólicas de um direito reflexivo, globalizado, intima o Estado a realizar
demandas impossíveis. Os administradores, pois, perdidos do aspecto políti-
co não sabem como fazer valer a soberania pelo e no Direito. Está em ques-
tão, assim, a própria autonomia do Direito e do Estado Nação. Nessa viagem
talvez a advertência de Michel Onfray possa nos seguir de guia: “Nós mes-
mos, eis a grande questão da viagem. Nós mesmos e nada mais. Ou pouco
mais. Certamente há muitos pretextos, ocasiões e justificavas, mas em reali-
1 Excerto constante, em parte, no livro: Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material: aportes hermenêuticos, 2a Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
78 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
dade só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria
busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem
sabe, de nos encontrarmos.”2
A superação da noção de Soberania no contexto do Direito Transnacio-nal implica na releitura de diversas noções herdadas da Modernidade, espe-cialmente a de Soberania, a saber, do poder de estabelecer as normas jurídi-cas válidas no território nacional3, em um ambiente mundializado pela pro-eminência do condicionante econômico neoliberal. Isto porque, segundo Allard e Garapon: “O Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada.”4 Neste contexto e articulando as repercussões do discurso da Law and Economics, baseado em Posner5, pretende-se apontar para a necessidade do (re)estabelecimento de um novo sentido e função do campo jurídico no Es-tado Democrático de Direito6.
A magnitude das questões econômicas no mundo atual implica no es-
tabelecimento de novas relações entre campos até então complementares.
Direito e Economia, como campos autônomos, sempre dialogaram desde
seus pressupostos e características, especificamente nos pontos em que ha-
via demanda recíproca. Entretanto, atualmente, a situação se modificou. Não
só por demandas mais regulares, mas fundamentalmente porque há uma
inescondível proeminência economicista em face do discurso jurídico. Dito
diretamente: o Direito foi transformado em instrumento econômico diante da
mundialização do neoliberalismo. Logo, submetido a uma racionalidade di-
versa, manifestamente pragmática de custos/benefícios (pragmatic turn),
capaz de refundar os alicerces do pensamento jurídico, não sem ranhuras
democráticas. Neste pensar a noção de Soberania, diante da Mundialização,
precisa ser recolocada.
2 ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre. L&PM, 2009. 3 BECK, Ulrich. O que é Globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 18: “A sociedade mundial, que tomou uma nova forma no curso da globalização – e isto não apenas em sua dimensão econômica -, relativiza e interfere na atuação do Estado nacional, pois uma imensa variedade de lugares conectados entre si cruza suas fronteiras territoriais, estabelecendo novos círculos sociais, redes de comunicação, relações de mercado e formas de convivência.” 4 ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova revolução do Direito. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 07. 5 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003; Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, Law and Legal Theory in the UK and USA. New York: Oxford University Press, 1996; Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998; The Little Book of Plagiarism. New York: Phatheon, 2007; Problemas de filosofia do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 6 MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 79
A clássica noção weberiana de que Estado é “uma comunidade humana
que, dentro dos limites de determinado território, reivindicava o monopólio
do uso legítimo da violência física”7, com as modificações operadas nas duas
últimas décadas do século XX, não mais se sustenta8. A busca da legitimação
do uso da força, embora guarde certa relevância, passou a ser contingente,
pois o Mercado, sem rosto, nem bandeira, veio roubar a cena de um mundo
globalizado, sem fronteiras. Os desafios daí decorrentes são imensos, pois
esta nova cartografia do poder não implica, necessariamente, no estabeleci-
mento de relações entre Estados soberanos, mas se perde em mecanismos
mais “brandos” de poder, mediados por um Mercado que não faz barreira,
nem respeita, fronteiras, mitigando, por assim dizer, a noção de Soberania.
O discurso do Mercado único, traz consigo, a destruição dos limites simbóli-
cos que representavam as balizas dos Estados Soberanos.
Com efeito, o rompimento com o Estado-Nação implica uma nova rela-
ção entre o colonizador e o colonizado. Isto porque não se trata mais da
proeminência de um Estado-Nação sobre outro, mas do deslocamento deste
lugar para as formas motrizes do Mercado (Conglomerados, Bancos, Multi-
nacionais, etc...) as quais se valem dos “Aparelhos Ideológicos do Mercado”
para manter a situação de opressão, naturalizada. Uma metrópole sem rosto,
nem etnia, representada pelo capital. Não há ninguém nos comandos justa-
mente porque tal poder não existe, inexiste um Outro do Outro (Lacan, na
pena de Zizek9). Na última quadra do Século passado, todavia, diante do dito
“progresso do neoliberalismo”, em nome do pode-tudo-que-quiser-em-
nome-da-liberdade operou-se um declínio deste lugar de Referência, a sa-
ber, a “norma” deixou de ter a função de limitar a satisfação, entregue a um
mercado vazio e iluminado de satisfações, em que tudo pode ser vendido e
comprado, já que a categoria Direitos Fundamentais é extinta e tudo passa a
ser direito de propriedade, negociado no Grande Mercado globalizado.
7 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2. Brasília: UNB, 1999. 8 Para uma leitura atualizada: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 9 ZIZEK, Slavoj. Las metástasis del goce: seis ensayos sobre la mujer y la causalidad. Trad. Patrícia Wilson. Buenos Aires: Paidós, 2005; Mirando al sesgo: una introdución a Jacques Lacan a través de la cultura popular. Trad. Jorge Piatigorsky. Buenos Aires: Paidós, 2004; Visión de paralaje. Trad. Marcos Mayer. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2006; The Univesal Exception. New York: Continuum, 2006; Interrogating the Real. New York: Continuum, 2006; The Indivisible Remainder. New York: Verso Books, 2007; Amor sin pie-dad: hacia una política de la verdad. Trad. Pablo Marinas. Madrid: Síntesis, 2004; Beinvenidos al desierto de lo Real. Trad. Cristina Vega Solís. Akal, 2005; Arriesgar lo Imposible: Conversaciones com Glyn Daly. Trad. Sonia Arribas. Madrid: Trotta, 2004; La Revolución Blanda. Buenos Aires: Buenos Aires: Parusia, 2004.
80 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Dentro da premissa de que o “mercado” é o melhor mecanismo para
uma situação “otima”, o discurso neoliberal10
estipulou, por suas agências,
uma agenda de políticas centradas no “crescimento econômico", modelo típi-
co da Modernidade. O conceito de desenvolvimento foi re-significado para
se juntar crescimento econômico com progresso técnico, via expansão da
produção e acumulação privada de riqueza, pelo aumento dos lucros, a car-
go dos mais capazes (ricos), com a redução do status dos trabalhadores a
consumidores mínimos.11
A consequência deste receituário se dá pela paula-
tina diminuição do gasto público social, aceitando-se a desigualdade como
saudável, um custo inerente ao sistema12
. Um dos mitos é o de que o consu-
mo livre dos ricos favorece o crescimento do Mercado, mesmo custando a
vida de milhares de sujeitos, tido como custos reflexos do sistema livre. Há
muita gente no mundo que não consome cujos custos de manutenção são
altos. Não se os pode matar diretamente, mas os excluir o suficiente para
que a as doenças e ausência de comida os matem. O discurso neoliberal não
pode dizer sua pretensão latente diretamente. Deve escamotear, sempre, via
discurso manifesto e humanitário. Por isto uma adubação ideológico-midiá-
tica anestesiante da crítica13
, assimilada pelo buraco negro do Mercado e seu
direito reflexivo. Assim é que o máximo crescimento econômico andaria jun-
to com o livre mercado14
e o lucro do capital privado, contracenando com a
diminuição dos custos dos trabalhadores e a diminuição dos gastos sociais.
Estes verdadeiros dogmas ainda perduram no discurso latente, ainda que no
discurso manifesto tenha havido algumas concessões retóricas, principal-
mente pelo discurso de mitigação da pobreza.
Superada a fase marginal do discurso neoliberal, seus pressupostos fo-
ram acolhidos pelos governos de Thatcher e Reagan, no início dos anos 80,
implicando na Revolução Neoliberal do Estado, sob a batuta da banca de
10 HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade: Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Trad. Ana Maria Capovilla et al. São Paulo: Visão, 1985; Democracia, Justicia y Socialismo. Trad. Luis Reig Albiol. Madrid: Union, 2005; Principios de un orden social liberal. Trad. Paloma de la Nuez. Madrid: Unión Editorial, 2001; FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Trad. Luciana Carli. São Paulo: Abril, 1984; FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Free to Choose: a personal state-ment. Orlando: Harcourt Books, 1990. 11 Crítica consistente de: EZCURRA, Ana María. ¿Qué es el Neoliberalismo? Evolución y límites de un modelo excluyente. Buenos Aires: Lugar, 2007. 12 KLEIN, Naomi. A doutrina do Choque: A ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 13 ANDERSON, Perry. Além do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org.). Pós-neoliberalis-mo: as políticas sociais e o estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995; AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; WAINWRIGHT, Hilary. Uma res-posta ao Neoliberalismo: argumentos para uma nova esquerda. Trad. Angela Melim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo: o direito na infância. In: Anais do Congresso Internacional de Psicanálise e sua conexões: Trata-se uma criança. Rio de Janeiro, Tomo II, pp. 225-238, 1999; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Jurisdição, Psicanálise e o Mundo Neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo: Elementos para uma Leitura Interdisciplinar. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (et alii). Curitiba: EdiBEJ, 1996, pp. 67-69. 14 CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2002, pp. 229-242.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 81
Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Banco Inte-
ramericano de Desenvolvimento, este último criado posteriormente),15
apon-
tando para a necessidade de ajustes estruturais nos Estados Nacionais (pri-
vatização, desregulação dos mercados interno/externo, contenção do gasto
público social), rumo ao crescimento econômico alto e sustentável. Sua exe-
cução se deu por políticas de estabilização tendentes ao fomento da livre
operação dos mercados no plano mundial, dando especial relevo às exporta-
ções. A maneira de se conseguir competitividade externa se dá pela diminui-
ção dos custos internos dos agentes de produção (empresas), principalmente
nos custos do trabalho (mero input) e dos impostos. O deslocamento da ava-
liação exclusivamente pelos números, no paraíso da estatística, deixa de
lado toda a questão social, para se estabelecer num mundo matemático, sem
rostos, nem vítimas, mas meras “externalidades".16
A pobreza passa a ser
uma mera externalidade, um custo do sistema...
Talvez o golpe de mestre do discurso tenha sido o de colocar seus
fundamentos ligados à noção de “capitalismo democrático", a saber, a im-
possibilidade da democracia sem capitalismo. Com esta bandeira – capitalis-
mo democrático – como único meio de crescimento econômico manipula-se
o discurso para se promover, no âmbito mundial, os pressupostos do livre
mercado e, após o 11 de setembro, da “ordem mundial".17
A “manipulação
do medo"18
passa a ser a pedra de toque do discurso ideológico do mercado
livre, apresentando-se com a face “humanitária". A crise humanitária se ma-
nifesta pela pasteurização e a aparente neutralidade do discurso de Direitos
Humanos, a qual funciona como mecanismo da ideologia intervencionista,
com interesses latentes e, por básico, diversos do discurso manifesto. O dis-
curso manifesto é o de ajuda humanitária. Mas é o fundamento de uma in-
tervenção capaz de imaginariamente aplacar a culpa e justificar a opressão
com a qual, no fundo, se compactua. As intervenções ditas humanitárias
escondem os interesses econômicos silenciados no discurso manifesto, co-
mo no caso do Iraque,19
em que o petróleo é bem mais importante do que a
pretensa implementação democrática no país. A política humanitária é o le-
15 BORÓN, Atilio. A Sociedade Civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, pp. 91-93. 16 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2000. 17 Chosmky, Noam. A Política Externa dos Estados Unidos da Segunda Guerra Mundial a 2002. Trad. Paulo Alves de Lima Filho. São Paulo: Movimento Consulta Popular, 2005. 18 Com a utilização ideológica do sistema de controle social e com o fim da guerra fria, o inimigo externo, então representando pelo Bloco Socialista, é astutatamente substituído pelo “terrorista”, com a face de qual-quer um que resista… 19 Esta nova missão “democrática” é o argumento para a intervenção nos demais países. O exemplo palmar é o Iraque. A política do EUA de “a nossa democracia para todos” encontra estabilidade e assentimento de Republicanos e Democratas. Logo, é de longo prazo. Dar-se conta disto é fundamental... ZIZEK, Slavoj. Irak: la tetera prestada. Trad. Luis Álvarez-Mayo. Madrid: Losada, 2006.
82 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
ma que faz caminhar a massa composta de “Almas Belas”20
no caminho de
uma finalidade mal-dita, da qual se fazem instrumento. Congrega, sob a
mesma bandeira, desde religiosos pseudo-assépticos ideologicamente até
desiludidos agnósticos, fascistas de direita e revolucionários de esquerda,
em nome da “Causa Humanitária”. Este engajamento em nome dos Direitos
Humanos, todavia, cobra um preço pouco percebido pela maioria jogada na
inautenticidade, para usar a gramática heideggeriana. Este movimento hu-
manitário invoca a necessidade de salvação, suspendendo os limites demo-
cráticos, as fronteiras e desloca a noção de Soberania. Serve de instrumento
alienado da opressão de um capital que não quer e derruba, incessantemen-
te, as fronteiras nacionais.21
Acrescente-se que esta revolução neoliberal democrática global22
se
desenvolve a partir da construção de um discurso único, sem alternativas, ou
seja, do capitalismo vencedor – como se verificou na redação da Constituição
Européia23
–, ao qual todos devem se adaptar, sob pena de ineficiência. Por
isso o discurso crítico acaba não encontrando eco por se iludir com o discur-
so latente, das aparências. É preciso aceitar, pois, que o neoliberalismo é o
paradigma englobante24
– hegemônico, diria Gramsci25
– da sociedade con-
temporânea com os mais variados efeitos (formais e materiais). A lógica que
subjaz ao modelo acaba sendo o custo/benefício (eficiência – maximização
de riqueza). Conquanto não se possa falar numa autoridade central, o proje-
to neoliberal conta com diversas e poderosas agências26
capazes de ditar as
regras gerais e abstratas apontadas por Hayek como fundamentadoras das
ações dos sujeitos e das Instituições. Não se preocupa (diretamente) com as
capilaridades sociais, acolhendo uma atuação balizadora das iniciativas e
usando seus mecanismos para impedir ações que estejam em desacordo
com suas premissas. Condiciona as ações no campo social por sua “violência
simbólica" e ideológica através da eleição do significante eficiência. Este sig-
20 ZIZEK, Slavoj. Arriesgar lo Imposible: Conversaciones com Glyn Daly. Trad. Sonia Arribas. Madrid: Trotta, 2004, p. 52. O argumento de Zizek é o que de se “te metes em política é preciso uma certa dose de pragmatismo e crueldade, para que o projeto se realize.” Não há pureza possível. Zizek critica os acadêmicos liberais – almas belas – que deixam que os executores façam o trabalho sujo, pois admira gente que assume suas posturas e admite executar o trabalho sujo. Aí reside a assunção de uma responsabilidade pelos atos per-dida no âmbito das sociedades descompromissadas, da plena liberdade. O poder faz vítimas, sempre. 21 CUNHA MARTINS, Rui. O método da fronteira. Coimbra: Almedina, 2008; ZIZEK, Slavoj. Elogio da Intolerância. Lisboa: Relógio D’Água, 2006, pp. 14-16. 22 MEAD, Walter Russel. Poder, terror, paz e guerra: os Estados Unidos e o mundo contemporâneo sob ameaça. Trad. Bárbara Duarte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 23 AVELÃS NUNES, António José. A Constituição Européia. A constitucionalização do neoliberalismo. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 63-118. 24 Inclusive religiosa, bastando conferir a encíclica “Centesimus Annus”, do Papa João Paulo II. 25 GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 26 Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Programas Mundiais. Tudo articulado em face das orien-tações históricas e tradicionais: “Bretton Woods”, “Consenso de Washington”, etc.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 83
nificante tomado do campo da Administração ganhou, no Direito, um sentido
colonizado e aferido pelo critério mercadológico de custos/benefícios27
.
Cria-se, assim, um novo princípio jurídico: o do melhor interesse do
mercado. O Direito é um meio para atendimento do fim superior do cresci-
mento econômico. É necessário simbolicamente para sustentar a pretensa
legitimidade da implementação dos ajustes estruturais mediante reformas
constitucionais, legislativas e normativas executivas. Na perspectiva de unifi-
car o novo “mercado mundial" as normas de comércio devem se adequar ao
novo modelo diminuindo os custos e os riscos das transações. Significa a
construção de uma estrutura mundial em que os Estados são incapazes de
sozinhos provocar modificações significativas, embora tenham um papel
fundamental na garantia da “ordem pública", principalmente na “esfera de
controle social". Assim é que não há mais lugar para o Estado-Nação entre-
gue ao jogo sem regras de uma globalização neoliberal do pensamento úni-
co, sem possibilidade de garantir as normas necessárias ao estabelecimento
do Estado Democrático de Direito. Surge agora um Direito Flutuante, Reflexi-
vo, com pretensão de universalidade28
, à mercê do Mercado. Ao Estado, en-
tão, é resguardada a função interna de garantia da ordem social mediante o
agigantamento do sistema de controle social (crimes, penalização e progra-
mas sociais), não sem a intervenção de organismos internacionais, como se
verifica atualmente com o terrorismo, ameaça ecológica, armas quími-
cas/nucleares e droga. A globalização é complexa, com fatores culturais,
jurídicos, sociais, ideológicos e culturais, especialmente econômicos. O mer-
cado mundial unificado implica numa proeminência do mercado como lugar
vazio, destruindo os ordenamentos jurídicos internos, com diversas estraté-
gias: a) Criação de Órgão Supranacionais (OMC, dentre outros), nos quais as
decisões não são legitimadas por qualquer processo democrático29
; b) Vali-
dade das normas internacionais sobre o direito interno, para além da noção
clássica de Soberania, abrindo-se as portas pelo discurso dos Direitos Hu-
manos; c) reflexibilidade da estrutura do ordenamento jurídico interno; d)
Poder de conglomerados e do capital financeiro que circula sem limites, em
face dos Estados.
Neste sentido, Zizek está certo ao afirmar que a ideologia congrega
uma multidão de escravos, a partir do discurso do Senhor, não por uma ilu-
são, mas por um aspecto de realidade (terrorismo, ameaça ecológica, armas
27 MARCELLINO JÚNIOR, Júlio Cesar. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa: (des)encon-tros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009. 28 ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: ..., p. 39: “No campo económico e comercial, não é uma ilusão esperar que, um dia, venha a emergir um direito global. E já isso que, em parte, ocorre, por exemplo, com a Convenção de Viena sobre as transacções, que é aplicada por um grande número de países.” 29 BAUMAN, Zygmunt. Archipiélago de excepciones. Buenos Aires: Katz, 2008. Os mecanismos democráti-cos de deliberação restam superados por decisões que refogem ao espaço democrático, a saber, são tomadas pelo Mercado e suas corporações, sem que os concernidos possam tomar um lugar no feudo de deliberação.
84 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
químicas/nucleares e droga) escamoteando, todavia, a finalidade latente
(ideológica) destes discursos. A “realidade" entendida como os limites sim-
bólicos – construídos – é manipulável. A razão instrumental, portanto, trans-
forma-se no fundamento da própria dominação simbólica. Quanto menos
forem manifestos os interesses ideológicos, mais eficazes serão.30
A aparên-
cia deste afastamento é o mote para sua eficiência. É somente pela crítica ao
sintoma deste velamento, a saber, pelo silêncio, contradições, deslizes, que
se pode estabelecer um lugar para o discurso crítico. Isto porque o slogan
“liberdade e igualdade" atende aos interesses dos donos do capital. A aceita-
ção sem maiores reflexões de que todos são iguais para contrair obrigações
aponta para uma miopia ideológica. Dito de outra forma, em nome da Liber-
dade se esquece das forças reais de poder. Cinicamente, claro. A ordem es-
pontânea pretende que o mercado se construa por si mesmo, esquecendo-se
dolosamente que a ordem espontânea não se dá por si mesmo, mas por uma
leitura (particular) dela. Uma leitura pré-dada. Enfim, é a legitimação racional
da ordem existente, na leitura hegemônica do capital.
Este modelo gera “vítimas” e depois as constata via “Relatórios Mundi-
ais”, para os quais se apressa em apresentar novas (ilusórias) soluções. En-
fim, o problema social é antevisto e fomentado para, depois, justificar um
novo recrudescimento de controle social,31
na implementação da “doutrina
de choque” de que fala Klein. Vale destacar que o “Informe sobre o Desen-
volvimento Humano” produzido pelo “Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento” (PNUD) e pelo “Banco Mundial” sobre a pobreza, foi a jus-
tificativa retórica para o redirecionamento das políticas públicas, agora cata-
lisadas para redução da pobreza, dando azo a uma nova investida de “ajus-
tes estruturais", ou seja, mitigação de Direitos Fundamentais. A questão -
social é circunscrita dentro dos limites máximos à estabilização econômica,
alterando o critério do modelo do Bem Estar Social. Mediante cooperações
internacionais (dos Fundos), obriga-se a realização dos ajustamentos estru-
turais necessários ao modelo neoliberal, no que se denomina de soft power,
pelo qual a cooptação econômica substitui o hard power militar.32
Este soft
power não apresenta a face do capital, mas a de organismos multilaterais
capazes de implementar uma ingerência interna acentuada, ainda que siga
silenciosamente o receituário neoliberal. Daí seu efeito deslumbre e assenti-
30 ZIZEK, Slavoj. Ideología: Un mapa de la cuestión. Trad. Cecilia Betrame et alii. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 15: “La lógica de la legitimación de la relación de dominación debe permanecer oculta para ser efectiva. En otras palabras, el punto de partida de la crítica de la ideología debe ser el reconoci-miento pleno del hecho de que es muy fácil mentir con el ropaje de la verdad. (...) La forma más notable de ‘mentir con el ropaje de la verdad’ hoy es el cinismo: con una franqueza cautivadora, uno ‘admite todo’ sin que este pleno reconocimiento de nuestros intereses de poder nos impida en absoluto continuar detrás de estos intereses. La fórumula del cinismo ya no es la marxiana clásica ‘ellos no lo saben, pero lo están haciendo’; es, en cambio, ‘ellos saben muy bien lo que está haciendo, y lo hacen de todos modos’.” 31 VIANNA, Túlio. A Transparência Pública, Opacidade Privada: o Direito como instrumento de limitação do poder na sociedade do controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 32 ZIZEK, Slavoj. La Revolución Blanda. Buenos Aires: Parusia, 2004.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 85
mento irrefletido de muitos preocupados em ser eficiente. Sob a bandeira do
combate à pobreza, implementam-se programas de controle social sob o
papel de presente de assistência, sempre transitória. Estes programas sociais
normatizantes são focados nos mais pobres, dentro dos limites orçamentá-
rios, deixando a extragrande maioria da população excluída.
De outro lado, há uma redução nas despesas estatais com saúde, edu-
cação e previdência social, as quais são entregues ao capital privado (direta-
mente,33
via Parcerias Público-Privado, concessões ou organizações não-
governamentais34
– ong’s). Por fim, divulga-se o combate à corrupção, a cri-
ação de Agências Reguladoras e a flexibilização dos contratos de trabalho,
dentre outras iniciativas, como medidas dolorosas, mas necessárias ao bom
funcionamento do mercado. Apesar deste realinhamento estatal, a idéia do
mercado como mecanismo ótimo de auto-resolução de desigualdades per-
manece inatacado. Este seria, enfim, para os neoliberais, o Estado Eficiente.35
Assim é que o discurso do desenvolvimento econômico é o principal disfarce
do discurso neoliberal, naturalizado como sendo uma das exigências decor-
rentes da globalização, sem qualquer possibilidade de discussão. Esta estra-
tégia evita o confronto de ideias advindo de um devido embate democrático
e gera, no seu cúmulo, o espetáculo contemporâneo do luxo e da pobreza.
Denomina-se Análise Econômica do Direito (AED) o movimento meto-
dológico surgido na Universidade de Chicago no início da década de 60 do
século passado, o qual busca aplicar os modelos e teorias da Ciência Econô-
mica na interpretação e aplicação do Direito. O movimento, fortemente influ-
enciado pelo liberalismo econômico, tem como precursores e expoentes os
professores Ronald Coase e Richard A. Posner, ambos da Universidade de
Chicago, e Guido Calabresi, da Universidade de Yale. Law and Economics,
contudo, não é um movimento coeso. Apresenta diversas escolas e orienta-
ções, com diversas publicações regulares. O fator comum é o da implemen-
33 Interessante que as responsabilidades pela criação de filhos, da velhice, da aposentadoria, dentre outras, são recolocadas como responsabilidade familiar. Com isto, surgem os discursos de previdência privada, planos de saúde, enfim, toda uma gama de atendimentos de assistência social dos quais o Estado se retira em nome da liberdade dos sujeitos e seus núcleos de auxílio privados. Implica, pois, na rejeição do Estado do Bem Estar Social. Os que não conseguirem meios, pois, estarão fadados, por suas escolhas e (in)competências singulares, ao (des)alento. 34 CASTRO JR, Osvaldo Agripino de. Direito Regulatório e Inovação nos Transportes e Portos nos Estados Unidos e Brasil. Florianópolis: Conceito, 2009. 35 EZCURRA, Ana María. ¿Qué es el Neoliberalismo?..., pp. 64-65: “Los gobiernos no gobiernan, sino que gerencian políticas de paternidade internacional. Y el papel de los partidos sería unicamente legitimarlas. (...) Em suma, las políticas fundamentales, atinentes a los modelos domésticos de sociedad, no son dispuestas ni por los ciudadanos, ni por los partidos, ni por los gobiernos latinoamericanos. Así pues, la estructura del oder internacional ciñe la gama de decisiones al alcance de los sistemas políticos locales y, con ello, la soberanía nacional y ciudadana. La democracia, tan exaltada por el neoconservadorismo-liberal, queda en entredicho.”
86 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
tação de um ponto de vista econômico no trato das questões que eram emi-
nentemente jurídicas. O objeto de estudo da AED deixou de acontecer exclu-
sivamente no plano do Direito da Concorrência para ganhar novos campos:
propriedade, contratos, responsabilidade civil e contratual, direito penal,
processo (civil e penal), direito administrativo, direito constitucional, direito
de família, infância e juventude, dentre outros.36
A Análise Econômica do
Direito ganhou fôlego na segunda metade do século passado a partir, funda-
mentalmente, de três fatores: a) a construção de um estatuto teórico especí-
fico (Coase, Becker, Calabresi e Posner, dentre outros); b) proeminência do
discurso neoliberal; c) imbricamento entre as tradições do civil law e do
common law.
Esta corrente metodológica adota, além dos princípios do liberalismo
econômico, a idéia de que o objeto da ciência jurídica possui uma estrutura
similar ao objeto da ciência econômica e, por isso, pode ser estudado do
ponto de vista da teoria econômica. Assim, busca o movimento transformar
o Direito, que se encontraria em um estado pré-científico, incapaz de se
adaptar a nova realidade mundial, caracterizada pela crise do Estado de
Bem-Estar Social, em uma verdadeira ciência, racional e positiva, mediante a
análise e investigação do Direito de acordo com os princípios, categorias e
métodos específicos do pensamento econômico. A Law and Economics pro-
cura analisar estes campos desde duas miradas:37
a) “positiva": impacto das
normas jurídicas no comportamento dos agentes econômicos, aferidos em
face de suas decisões e bem-estar, cujo critério é econômico de “maximiza-
ção de riqueza"; e, b) “normativa": quais as vantagens (ganhos) das normas
jurídicas em face do bem-estar social, cotejando-se as consequências. Dito
de outra maneira, partindo da racionalidade individual e do bem estar social
– maximização de riqueza –, busca responder a dois questionamentos: a)
quais os impactos das normas legais no comportamento dos sujeitos e Insti-
tuições; e b) quais as melhores normas.
Com efeito, o Sistema jurídico38
é acusado de ser dos principais obstá-
culos ao crescimento econômico, especificamente pelos custos necessários
para o contractual enforcement e o contratual repudiation,39
ou seja, de se
36 STEPHEN, Frank H. Teoria econômica do direito. Trad. Neusa Vitale. São Paulo: Makron Books, 1993; MERCADO PACHECO, Pedro. El analisis economico del derecho. Madrid. Centro de Estudios Constitucio-nales, 1994. FRANZONI, Luigi Alberto. Introduzione all’economia del diritto. Bologna: Mulino, 2003; TOR-RES LÓPEZ, Juan. Análisis Económico del Derecho: Panorama doctrinal. Madrid: Tecnos, 1987; -POLINSKY A., Mitchell. Introducción al análisis económico del derecho. Barcelona: Ariel, 1983; RODRI-GUES, Vasco. Análise Económica do Direito: uma introdução. Coimbra. Almedina, 2007; BOURDIEU, Pierre. As estruturas sociais da economia. Trad. Lígia Calapez. Porto: Campo das Letras, 2006. 37 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003, pp. 24-26. 38GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005; ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Rachel. Direito & Economia: análise eco-nômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 39 GORDLEY, James. The Enforceability of Promises in European Contract Law. Princenton: Cambridge University Law, 2001.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 87
constituir um obstáculo ao bem estar do mercado na ótica neoliberal. O cus-
to país, entendido como todos os custos acrescidos ao da transação, aponta
para a ausência de maior eficiência do Poder Judiciário na garantia dos dog-
mas (propriedade privada e contrato), já que estes elementos seriam funda-
mentais para o perfeito funcionamento do mercado. A deficiente qualidade
do Sistema de Justiça é apontada como um dos fatores responsáveis pela
estagnação econômica, demandando, assim, um realinhamento à nova or-
dem mundial. Exige-se, portanto, a revisão das normas legais, dos limites da
intervenção do Estado e da própria Constituição.40
Isto porque as Constitui-
ções da segunda metade do século passado são, em regra, compromissó-
rias41
e voltadas à construção do Estado do Bem Estar Social mediante o
cumprimento de programas de redistribuição de riqueza, mitigação da po-
breza, relativização da propriedade privada (função social, reforma agrária,
etc.) e relativização da autonomia da vontade nos contratos (proteção ao
consumidor, vedação de cláusulas abusivas), enfim, buscava a garantia de
Direitos Fundamentais. Este indicativo constitucional é apontado como um
fator prejudicial, dado que não atrai o capital internacional e, desta forma,
implica na estagnação econômica. Em nome do crescimento econômico, en-
tão, na perspectiva de fins, indica-se o receituário neoliberal capaz de tornar
o país eficiente. Um alto custo para garantia da propriedade e cumprimento
dos contratos torna – dizem – o país menos atrativo (custo/benefício). A ba-
tizada luta pela “estabilidade econômica", guindada à condição de “grau ze-
ro” (Barthes) implica na manipulação do conceito para que se entenda como
uma unidade de desígnios, em nome de todos, apagando as diferenças polí-
ticas e sociais. A internacionalização do “mercado sem fronteiras" pratica-
mente obriga uma uniformização judicial dos países baseada no custo/bene-
fício para que se tornem competitivos. O Mercado mundial impõe regras cla-
ras em todos os territórios (ainda) nacionais, mitigando a Soberania. Este é
40 AVELÃS NUNES, António José. A Constituição Européia. A constitucionalização do neoliberalismo. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 63-118: “Salienta-se desde logo o facto de a CE considerar ‘liberdades fundamentais’ não aquelas que em regra integram o núcleo dos direitos, liberdades e garantias, mas antes ‘a livre circulação de pessoas, serviços, mercadorias e capitais, bem como a liberdade de estabelecimento’. Estas são as liberdades do (grande) capital (sobretudo o capital financeiro).” (…) “Mas os autores desta ‘Constituição’, que decidiram não fazer referência ao deus dos cristãos, escolheram outro deus omnipresente, que pretendem impor aos cidadãos dos países da EU, um deus que deve ser venerado acima de tudo, um deus que tudo resolve, ainda que à custa de ´sacrifícios humanos’: o deus-mercado.” (…) “É o fim da política, a morte da política económica, o reinado do deus-mercado, enquanto ordem natural, espontânea, que tudo resolve, acima dos interesses, acima das classes, para lá do justo e do injusto, como defendem os monetaristas mais radicais (ou mais coerentes) e todos os defensores da libertação da sociedade civil.” 41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coim-bra Editora, 2001; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Consitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constituicional. São Paulo: Malheiros, 2001; CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006.
88 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
um dos fatores do imbricamento entre as tradições do civil law com o com-
mon law.
O estabelecimento de um critério, no caso, a eficiência, entendida co-
mo a melhor alocação de recursos, na perspectiva do mercado (ordem es-
pontânea), no território da AED, implica na avaliação das Instituições por
suas consequências (custo/benefício).42
No âmbito do Sistema Judiciário,
este cotejo acontece no registro (i) Macro: da organização e administração da
Justiça, especificamente no plano Legislativo e Organizacional do Ordena-
mento Jurídico (pluralista); e (ii) Micro: da decisão judicial stricto senso, inse-
rida no contexto do discurso jurídico. Em ambas dimensões procura reler a
estrutura e práticas do Sistema Judicial desde um ponto de vista específico,
num embate que transcende a simples mudança de critério (jurídico para
econômico), mas de tradições jurídicas (common law e civil law) e filosóficas
diversas, pretendendo a unificação do discurso mundializado. De um lado
indica ajustes estruturais43
no Poder Judiciário, inclusive com formas alterna-
tivas de resolução de conflitos (arbitragem e mediação), por outro, a partir
do pragmatic turn refunda a Teoria da Decisão Judicial pelo critério da maxi-
mização de riqueza, levado a efeito por agentes racionais enleados num pro-
cesso de desenvolvimento social.44
Há uma rearticulação interna do Direito
pela intervenção externa (e decisiva) da Economia, no que se pode chamar de
“Economização do Direito”.45
De qualquer forma, o estranhamento entre Law and Economics com o
Direito herdado da Modernidade acontece, de logo, pela ausência de produ-
ção legislativa conforme os critérios apontados economicamente. A tensão
que se instala é a da revisão do ordenamento jurídico e da mentalidade dos
atores jurídicos ao menor custo econômico possível. A resistência a uma
total reforma é mais do que sabida, deslocando-se, assim, para estratégias
42 A relação custo/benefício estabelece em termos monetários o coeficiente da ação do ponto de vista do para-digma. A questão, antecipa-se, está nos critérios para o estabelecimento destes custos; critérios, não só no aspecto qualitativo, como também espaço/temporal. 43 KORNHAUSER, Lewis A. Judicial Organnization & Administration; Appel & Supreme Courts. In: En-cyclopedia of Law and Economics (www.encyclo.findlaw.com); CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006, p. 144. 44 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício: Um Diálogo com a Law & Economics Scholarship. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, pp. 65-178, 2002, p. 68. “E assim a enfrentar a relação complexa que vincula a jurisdictio enquanto estrutura à jurisdicitio enquanto intenção (material) de realização… e ambas (ainda que porventura em planos distintos) às expectativas (e exigências) de uma juridicidade autónoma.” 45 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício: Um Diálogo com a Law & Economics Scholarship. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, pp. 65-178, 2002, p. 89: “Uma estratégia global, insista-se, capaz assim mesmo de se projectar numa espeficificação táctica racionalmente sustentada (iluminada pela ordem de fins, macroscopica-mente inteligível decidida pela primeira). Porque outro é certamente o problema dos comportamentos estraté-gicos individuais. (…) Só estaremos em condições de reconstituir a prática judicial como uma pragmática determinada (entre outros objectivos-goals) pela finalidade da wealth maximization se pudermos autonomizar um plano de relevância que permaneça imune aos comportamentos estratégicos dos operadores envolvidos.”
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 89
mais eficientes de interferência e colonização. Uma preocupação de redire-
cionar o sentido histórico (da tradição), a partir de novas coordenadas her-
menêuticas e o compromisso inalienável (como se fosse Direito Funda-
mental) com a “Boa Governança” do Estado e o compromisso (absoluto) com
o “Livre Mercado”, esquecendo-se das conquistas democráticas.46
Há uma
inescondível sedução pelos pressupostos lógico-racionais da Análise Econô-
mica do Direito. A premissa de que todos atuam como sujeitos racionais,
capazes, pois, de tomar decisões a partir de um domínio dos atos da vida,
gera, no seu cúmulo, a adesão irrefletida aos seus fundamentos, na perspec-
tiva da assunção de um lugar racionalizado, enfim, de encontrar um lugar -
social e jurídico indicado como sendo apto ao enfrentamento da sociedade
contemporânea (complexa e global). Um encantamento sedutor... que cobra
um preço, caro.47
A apuração deste preço democrático, para efeito deste -
ensaio, derivado de um maior48
, enfrentará, de maneira crítica e direta, o
modelo da Law and Economics. Será, portanto, uma crítica ao modelo, espe-
cialmente a pretensão megalomaníaca de Posner.
A possibilidade de crítica aos fundamentos da AED depende da percep-
ção de que, desde o início, o critério do Sistema é diverso, daí a incomensu-
rabilidade, isto é, a impossibilidade de se fazer uma crítica aos seus pressu-
postos a partir exclusivamente do Direito. É preciso adentrar-se no campo
da Economia. E esta primeira barreira é materializada pela matemática e o
desconhecimento dos fundamentos econômicos latentes. O segundo obstá-
culo pode ser indicado pela tradução do bem estar econômico como um
dogma a ser acolhido pelo Direito. A terceira restrição pode se dar pelo cará-
ter heterodoxo de sua imposição, ou seja, sedutoramente, sem capacidade
de reação ao “discurso único". Com efeito, o discurso neoliberal se apodera
do jurídico de maneira instrumental e avassaladora. Isto porque há um ines-
46 CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006, pp. 325-334. “Como se sabe, trata-se de um conceito gerado no âmbito da economia e política do desenvolvimento e que, nos tempos mais recentes, adquiriu direi-tos de cidade no contexto das ciências sociais. (…) Good governan-ce significa, numa compreensão normati-va, a condução responsável dos assuntos do Estado. (…) Em segundo lugar, a good governance acentua a interdependência internacional dos estados, colocando as questões de governo como problema de multilatera-lismo dos estados e de regulações internacionais. Em terceiro lugar, a ‘boa governança’ recupera algumas dimensões do New Public Management como mecanismo de articulação de parcerias público-privadas, mas sem enfatização unilateral das dimensões econômicas. Por último, a good governance insiste novamente em questões politicamente fortes como as da governabilidade, da responsabilidade (accountability) e da legitima-ção.” Todavia, (…) “Fica também calro que a ‘good governance’ não pode consistir numa simples política de alocação de recursos e de boas práticas orçamentais, se necessário autoritariamente impostas, com desprezo dos direitos fundamentais humanos e dos princípios basilares da democracia e do Estado de Direito. Compre-ende-se, assim, os esforços de uma significativa parte da doutrina na firme elevação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais a pré-condição básica de qualquer boa governação contra as tentativas de, a partir de teorias da ingovernabilidade, legitimar uma qualquer ‘metagovernação’ ancorada na violência, na ideologia e nos interesses.” 47 MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso neolibe-ral (Law and Economics). Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), n. 06, pp. 15-34, 2008. 48 MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
90 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
condível desconhecimento das regras formais do funcionamento do mercado
pelo campo do Direito. De regra o ensino da Economia se dá nos limites da
“Economia Política” colonizada ou de instrumentos fiscais específicos, tor-
nando o diálogo intersubjetivo (quase) impossível. O resultado é o embate de
forças, no qual o discurso econômico prepondera justamente porque no
centro do mercado existe apenas um vazio iluminado: o nada. Uma máquina
kafkiana sem rosto nem vontade centralizada; é impossível se estabelecer
materialmente o modo de seu funcionamento. Daí sua eficácia e dificuldade
de compreensão crítica porque o Direito – na versão moderna – pensa equi-
vocadamente numa vontade central: única, coerente e completa. Assim é que
um dos equívocos da crítica formulada ao neoliberalismo aconteça pela pre-
tensão de dominá-lo, na totalidade, pela reflexão racional, a partir de um
princípio unificador substancial. O neoliberalismo parte de um princípio for-
mal.49
Logo, os discursos críticos acabam sendo de tão pouca eficácia, pois
não atacam este significante.50
A proliferação do discurso técnico-econômico implica na – aparente –
despolitização do jurídico. As consequências podem se fazer ver na maneira
pela qual os conflitos sociais são encaminhados, ou seja, na lógica contratual
de custos/benefícios sociais, sem uma vinculação normativa estrita. Longe
de se defender um retorno (saudosista) ao normativismo (positivismo) e sua
maneira formalista de compreender o mundo, pretende-se demonstrar como
este diálogo opressor e sem “hospitalidade" entre o neoliberalismo sobre o
Direito tornou a teoria da decisão judicial um instrumento a ser medido pela
“eficiência do provimento". Para além da resolução dos conflitos (cível) ou
caso penal,51
percebe-se a colocação da decisão judicial numa cadeia de sig-
nificantes que deve, necessariamente, guardar uma parametricidade com as
diretrizes econômicas, transformadas em critério do sistema decisório. Esta
intrincada relação não se faz tranquilamente, mas ao preço de muita mani-
pulação ideológica (Zizek) e “violência simbólica" (Bourdieu). O jurídico é
transformado, assim, numa esfera técnica aparentemente despolitizada. O
preço de tal “lugar” é o do desfazimento da Democracia e o do esvaziamento
do que se denominou Justiça Social.52
O ponto de vista econômico é trazido
como um a priori indiscutido, verdadeiro dogma sagrado. A proeminência do
discurso economicista é pré-dado; único caminho adequando ao sujeito (di-
49 HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade…, v. I, p. 40. 50 DUSSEL, Enrique. Hacia una Filosofia Política Crítica. Bilbao: Desclée, 2001, p. 9. 51 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1998. Não se pode equipara lide com «caso penal» por se tratarem de registros diversos. O processo penal, entendido como Direito Fundamental, não pode ser renunciado, negociado, enfim, não pode ser tratado como um direito disponível. A Law and Economics, por suas noções, aterra a distinção, proporcionando a livre negociação, como se mercado fosse, da pena. E isto é insustentável. Neste escrito não se abordará a questão penal. Enten-de-se que ela demanda a construção de outros alicerces de crítica. O que se pode dizer, com certeza, é que a Law and Economics possui uma concepção de Direito e Processo Penal anti-democrática, pois desconsidera os Direitos Fundamentais. 52 AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos..., p. 118.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 91
to) racional. Com a introdução do critério rígido da eficiência econômica a
resposta está garantida, não obstante seu conteúdo variável no tempo, espa-
ço e contexto. É a tradução do discurso único no campo do Direito.53
Por outro lado, é no mínimo curioso que o modelo propugnado pelo
neoliberalismo, especialmente Hayek, se aproxime, na estrutura, do modelo
de Ferrajoli. Tanto Hayek como Ferrajoli fundamentam suas propostas teóri-
cas na impossibilidade de um “Estado Ilimitado”, ou seja, é preciso colocar-
se limites democráticos ao Estado. Buscam, para tanto, a contribuição teórica
de John Locke.54
Defendem, ambos, a existência de Direitos não transferidos
para a esfera estatal e que, para usar a gramática de Ferrajoli, encontram-se
na “esfera do indecidível". De sorte que o sistema lógico de ambos é similar.
A variação (manipulação) encontra-se justamente nos significantes que da-
rão ensejo a este critério. Enquanto para Ferrajoli se trata de “Direitos Fun-
damentais”, para Hayek a propriedade privada e a autonomia contratual
constituem este limite estatal. Com esta divergência de critério do Sistema,
os caminhos “substanciais" restam distintos. Isto demonstra que a modifica-
ção do princípio da cadeia do Sistema altera o sentido dos significantes pos-
teriores. Por este motivo pode-se entender porque Posner insiste tanto na
maximização da riqueza como critério da decisão. Os significantes trazidos à
colação na cadeia metonímica acabam enleados na trama colonizada. Reside
justamente na alteração do significante primeiro uma das possibilidades
mais eficazes de resistência. De pouco adianta a discussão crítica posterior
se houver aceitação do critério, uma vez que condiciona o sentido.
Anote-se, também, que a Constitucionalização da “esfera privada" tor-
nou a “esfera pública" ampliada55
e gerou um paradoxo. Significou a possibi-
lidade retórica de ingerências estatais no que antes era protegido por Direi-
tos Fundamentais (intimidade, liberdade de expressão, etc.). Os Direitos
Fundamentais acabam se tornando desprovidos de suas características e
submetidos aos dois únicos Direitos Fundamentais do Mercado: propriedade
e liberdade de contratar. Pode-se dizer que há uma “contratualização/priva-
tização neoliberal da esfera pública” ou o que denomina Aroso Linhares co-
mo Teoria Horizontal-Pragmática dos Direitos.56
A metáfora explicativa –
como mito fundante – da Grande Sociedade é reificada no contrato, mas com
53 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Economia. Uma introdução ao Movimento Law and Economics. Revista Brasileira de Direito, n. 2, ano I, pp. 40-55, 2006: “O movimento direito e economia, em contrapartida, vincula-se ao neoliberalismo, do qual é porta-voz forense, e cujos ideais de eficiência defende. (…) Para Posner, a importância da toga, se não utilizada para realizar os objetivos econômicos da sociedade, reveste-se de um nada absoluto, e isso é muito mais do que mero oxímoro.” 54 LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimen-to humano. São Paulo: Abril, 1973, p. 46. 55 O discurso da constitucionalização das demais esferas do direito acaba sendo um tiro que saiu pela culatra. Com a justificativa de interesse público generalizado e ampliação do espectro constitucional, tudo passa a jus-tificar a necessidade de intervenção para realinhamento às regras do mercado. 56 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício…, p. 161.
92 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
a ressignificação do sentido, pelo qual os direitos são horizontalmente con-
siderados e valorados para efeito de quantificação e ensejar as trocas no
mercado (jurídico). Pode-se negociar tudo, em nome da liberdade. Ao invés
de o Estado estipular limites desde uma perspectiva pública, a AED acolhe a
mediação formal do mercado e suas auto-regras cambiantes, desprezando a
“esfera do indecidível". As normas gerais e abstratas do mercado apontariam
à maximização de riqueza, embora com alguma atividade Estatal de mitiga-
ção das externalidades. O paroxismo desta liberdade de contratar se deixa
ver quando transforma os próprios sujeitos em mercadorias e gera, no seu
cúmulo, um grande “Shopping Humano”, onde tudo é comprável, vendável e
permutável.57
Neste caminho se reconhece que não há salvação transcendente; ine-
xiste um método absoluto, universal, capaz de dar o conforto prometido
pela Law and Economics. A decisão judicial não confere a verdade anunciada
pelo critério, salvo pela fé – que remove retoricamente montanhas –, baseada
no mito Divino, da Ciência ou do Mercado que estruturalmente funcionam no
mesmo lugar e podem aplacar a angústia, tamponar a falta, dos sujeitos,
mas é incapaz de impedir o reconhecimento de seus limites. Por este motivo,
Feyerabend58
anda com acerto ao aduzir que as metodologias são incapazes
de orientar adequadamente as atividades (ditas) científicas e os métodos
devem ser vistos como ferramentas, utilizáveis conforme a necessidade, sem
que se possa, assim, eleger definitivamente “o método", dada a “incomensu-
rabilidade" dos paradigmas (Kuhn).59
O que resta, pois, é o gume da lingua-
gem e suas artimanhas retóricas, pelas quais apenas se pode cercar, sem
nunca prender, a pletora de significantes.60
Há limites de sentido nos textos
normativos61
que são desconsiderados em nome da finalidade maior da
pragmatic adjudication.
Partindo-se do Mercado como Instituição necessária, mas não suficien-
te, o pensamento neoliberal reconhece a necessidade da manutenção do
57 O sintoma disto pode ser visto quando se defende a venda de órgãos humanos, de crianças no caso de ado-ção, a liberação da droga, enfim, uma série de pontos cujo único critério é o econômico e os seres humanos rebaixados à condição de simples mercadorias. A própria honra e a dignidade são cotadas nas diversas indeni-zações de danos (ditos) morais… 58 FEYRABEND, Paul. Contra o método… 59 RORTY, Richard. Pragmatismo..., p. 166: “Outra coisa é dizer, corretamente, que não há um terreno neutro e comum no qual um filósofo nazista e eu possamos nos encontrar e discutir nossas diferenças. Aos olhos desse nazista, eu sempre parecerei estar fugindo da discussão das questões cruciais, argumentando em círcu-los. Aos meus olhos, ele parecerá estar fazendo a mesma coisa.” O exemplo pode ser aplicável aqui. Um adep-to da AED pode fazer a mesma crítica e vice-versa. 60 MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e Sistema Constitucional: a decisão judicial entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. 61 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais…, p. 229 “As palavras da lei, porém, não são desprovidas de um valor que já antes se aceitava, razão por que foram utilizadas – em detrimento de outras –, sempre na doce ilusão de terem a capacidade de segurar o sentido. Nada seguram, todavia, como demonstram os infindáveis exemplos. Há, sem embargo, um conteúdo na lei, que se não pode ignorar.”
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 93
Estado, como uma ferramenta de conserto. Não como um agente econômico
dirigente, mas garantidor reformado da Instituição maior: o mercado. Assim,
desde este ponto de vista, há um caráter acessório do Sistema Jurídico. A sua
função é a de reduzir os “ruídos/externalidades" capazes de impedir um
utópico “custo zero” de transação. A intervenção do Estado somente é con-
vocada como último recurso. Nesta perspectiva o Estado é reduzido em suas
atividades, isto é, passa a ser um Estado Mínimo, permanentemente fixado
para além das fronteiras do mercado. O Estado fica no “banco de reservas"
sendo convocado a participar do jogo do mercado sempre que houver ne-
cessidade da redução/exclusão de ruídos internos em que a força, desde
antes legitimada pelo Estado, possa se justificar; fica em posição de espera.
A proeminência é a de mecanismos próprios do mercado e/ou privilegiando-
se meios privados de resolução de conflitos (ADRs). Assim é que somente
nos casos limites é que a convocação do Estado se faria presente, justifican-
do o sacrifício da auto-regulação, mediante uma intervenção subsidiária.
Consequência disto é a redução das possibilidades de intervenções estatais,
sob o fundamento de que os próprios sujeitos – donos do direito de liberda-
de inalienável – possam buscar por si e no ambiente do mercado, as melho-
res escolhas.62
Somente as condutas lesivas ao ideal funcionamento do mer-
cado poderiam ser implementadas, sempre na perspectiva de devolvê-lo ao
seu funcionamento perfeito. O princípio unificador do Sistema é o vazio ab-
soluto do mercado. Qualquer intervenção do Estado precisa estar justificada
por “lesividades mensuráveis" do funcionamento do mercado. Não pode pro-
curar intervir no funcionamento natural do mercado para o efeito de conferir
direitos (sociais), na trilha de uma Justiça Social.
Posner,63
ao se filiar parcialmente ao neopragmatismo, mantêm o lega-
do dos clássicos (Pierce, James e Dewey), manipula a herança filosófica para,
convocando Benjamin Cardozo,64
justificar a intervenção judicial alinhada ao
bem estar social, enjeitando, assim, a tradição ocidental do racionalismo
jurídico. O Judiciário seria composto por homens de acordos sobre a decisão
correta no campo de uma matriz de verdade diversa. Os textos jurídicos se-
rão ferramentas para escolha da melhor decisão conforme o critério econô-
62 CARTER, Lief. H. Derecho constitucional contemporaneo: la Suprema Corte y el arte de la política. Bue-nos Aires: Abeledo-Perrot, 1992, p. 181: “En esta perspectiva, la política debe conferir ‘derechos’ a aquellos que podrian ganarlos de todas formas en la competência privada, y concentrarse en minimizar los costos de las transacciones en negocios privados e en facilitar la compensación social.” 63 POSNER, Richard A. Overcoming Law…, pp. 394-396. 64 CARDOZO, Benjamin. N. A natureza do processo judicial. Trad. Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fon-tes, 2004.
94 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
mico,65
sem que os critérios hermenêuticos lógicos de um Direito, alicerça-
dos em Direitos Fundamentais, possam oferecer a melhor resposta ao mer-
cado. Dito de outra forma, a Law and Economics analisa o impacto jurídico
na economia desde uma perspectiva interna, não de campos distintos. Impli-
ca em analisar as consequências do Direito na estrutura econômica, partindo
de conceitos previamente dados sobre a conformação do Direito, de Justiça,
de Teoria do Direito, de Moralidade, alterando o que estiver em desconfor-
midade. O cotejo destes elementos é feito diante dos critérios de maximiza-
ção do sistema econômico em detrimento a qualquer outro, especialmente
de Justiça Distributiva. A escolha pela matriz filosófica do pragmatismo de-
corre justamente do acolhimento da deficiência de fundamentação em nome
da finalidade. Posner defende a maximização de riqueza (do valor agregado
a todos os bens e serviços, econômicos ou não-econômicos como a melhor
justificativa filosófica da atuação do Sistema de Justiça. O valor significa o
maior valor a que o que o titular do bem/serviço quer para dele se separar
ou o que o não-titular está disposto a pagar para o ter. A riqueza, por sua
vez, é o valor total dos bens/serviços (econômicos e não-econômicos) e é
eficiente quando potencializada nos usos mais rentáveis, sem distinção entre
Direitos Fundamentais e Direitos Patrimoniais. A AED, todavia, não pode ser
reduzida a um método de interpretação eficiente. Ela é muito mais. Repre-
senta uma ruptura no modelo hermenêutico ocidental, tencionando encon-
trar-se num universo filosoficamente pragmático. Esta mudança da matriz
filosófica é o meio pelo qual a lógica causa-efeito é desconsiderada, passan-
do-se a usar o padrão da eficiência. A manipulação é maior se considerada
deste o paradigma da Filosofia da Consciência. Já no caso da Filosofia da
Linguagem, acolhida de bom grado neste escrito, o que se dá é a percepção
de que os significantes são manipulados para se postarem de maneira diver-
sa, mas vinculados ao significante um: a eficiência, a qual, de seu turno, mo-
difica-se conforme as necessidades do caso. É uma forma de interpretar que
parte de escolhas ideológicas pré-dadas, indiscutidas e encantadoras. A Jus-
tiça equivale ao significante eficiência e, portanto, pretende evitar que se
aponte a fragilidade da teoria. Mas não consegue. Definitivamente.
65 MACHADO FILHO, Sebastião. Pragmatismo jurídico crítico de Ricard A. Posner e sua análise econômica do direito. Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série n. 9, Brasília, pp. 79-94: “A interpretação dos textos -legais não é um exercício de lógica, e seus limites são tão elásticos que põem em dúvida a utilidade dos con-ceitos. Os pragmatistas indagarão qual das possíveis soluções produzirá as melhores consequências, uma vez reconhecida a dificuldade da problemática natureza da interpretação das leis. (…) De outro lado, é improvável que um juiz pragmatista se comova com considerações sentimentais, como piedade, ou com tradições morais. Mas é sempre admissível que pelos menos alguma parte do discurso do formalismo legal – no que concerne à preocupação com uma rigorosa adesão aos precedentes judiciais – seja considerada como o melhor guia para a prolação da decisão judicial.”
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 95
Para terminar, a questão crucial: como reinventar o espaço jurídico-
político nacional vinculado à noção de Soberania no contexto da globalização
de hoje? Um dos caminhos é o da necessidade de suspender o espaço neutro
da lei. A premissa ideológica do Mercado Livre, por seu centro vazio (absolu-
tamente vazio) promove a busca de satisfação dos interesses particulares as
quais, no conjunto de ações individuais, seria capaz de garantir um equilí-
brio global. Enfim, perdem-se os registros Simbólicos de uma Referência,
passando-se tudo ao sabor de um Mercado (re)flexível. O Mercado possui
uma dimensão de risco inexorável66
. Não se pode prever, com segurança, o
resultado de um dia de “bolsa de valores” e as repercussões nas vidas das
pessoas do mundo inteiro, dadas as repercussões globais. O Mercado, por
não possuir (e ser impossível) uma autoridade central, pela ausência de es-
tratégia, acaba regulando a interação de maneira formal. Não raro os (perdi-
dos) sujeitos buscam a redenção, ou segurança, em delírios coletivos, dentre
os quais a Religião e as Teorias da Conspiração (da sociedade do risco67
, da
poluição ambiental, do terror, etc...), acabam se constituindo em ilusórios
ancoradouros.
Giorgio Agamben aponta que o poder encontra-se na exceção, a saber,
na possibilidade de que se exclua a regra de aplicação geral e se promova,
para o caso, uma outra decisão. Este poder encontra-se indicado pela estru-
tura, segundo a qual, existe um lugar autorizado a escolher, o qual encon-
tra-se, ao mesmo tempo, dentro e fora de uma estrutura jurídica, conforme
o pensamento de Carl Schmitt, na interseção entre o jurídico e político. Esta
distinção, todavia, entre jurídico e político precisa ser problematizada, não
se podendo colocar, em absoluto, incomunicáveis, apesar de ocuparem luga-
res diversos (Zizek e Werneck Vianna). Neste pensar, segundo Agamben, “o
estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode
ter forma legal.”68
Com efeito, a representação Simbólica compartilhada da noção de Es-
tado perdeu seu caráter de Referência, ou seja, não se trata mais de um cen-
66 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999; HARDT, Michel; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001; VIERIA, Liszt. Argonautas da Cidadania. Rio de Janeiro; Record, 2001; Arnaud, André-Jean. Governar sem Fronteiras: entre globalização e pós-globalização. Crítica da Razão Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-Nação. Trad. Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1999; RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Demo-cracia. Trad. Fernando Marques. Lisboa: Mareantes, 2006; FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo mo-derno. Trad. Carlo Coccioli et. São Paulo: Martins Fontes, 2002; SILVA, Karine de Souza. Direito da Comu-nidade Européia: Fontes, Princípios e Procedimentos. Ijuí: UNIJUÍ, 2005; LEGENDRE, Pierre. El Tajo: discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia. Trad. Irene Agoff. Buenos Aires: Amorrortu, 2008; SPENGLER, Fabiana Marion. Tempo, Direito e Constituição: reflexos na prestação jurisdicional do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 67 O problema da crítica da sociedade do risco é que mantém o estatuto do sujeito da Modernidade, a saber, o da plena racionalidade, capaz de escolher e decidir ponderadamente sobre as suas ações. 68 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.
96 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
tro, sob o qual giram as demais instituições69
e pessoas, pois o centro – Es-
tado – foi deslocado e não substituído pelo Mercado, justamente porque su-
as características, fundadas na liberdade extremada, sem regras, impede
qualquer autoridade central70
. Sem ela, já se sabe, não há limite. E sem limi-
tes, não há ilícito, nem ética que se sustentem no espaço público. Por isto
Boaventura de Souza Santos dirá: “A erosão da soberania do Estado acarreta
consigo, nas áreas em que ocorre, a erosão do protagonismo do poder judi-
cial na garantia do controle da legalidade.”71
Acrescente-se, de outro vértice,
que a fusão “forçada” de tradições jurídicas incrementa esta perda de refe-
rentes. A doutrina e jurisprudência de países estrangeiros, acompanhada dos
órgãos internacionais, passam a influenciar, cada vez mais, a hermenêutica
interna. Os protagonistas do processo decisório se valem de argumentos
expendidos noutras tradições para decidir temas internos. A internet e as
facilidades de pesquisa atuais, acrescidas da difusão acadêmica de algumas
teorias, fornecem os meios para que sejam convocadas construções de ou-
tras tradições para compor o sentido interno. De uma lado há uma atitude
complementar e, por outro, subversão da ordem posta pela inserção de
pressupostos filosóficos distintos, como é o caso da Law and Economics.
Assim é que a noção de Soberania como um atributo rígido dentro de um
território deixa de ser forte para se transformar num conceito fraco, em que
o Estado não consegue mais, por si, sustentar. Neste espaço paradoxal, pois,
resta apontar para o limite, dar-se conta do que se passa e, de alguma for-
ma, resistir72
!
69 BADIOU, Alain. De um desastre oscuro: sobre el fin de la verdad de Estado. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. 70 CASTEX, Paulo Henrique. Os blocos econômicos como sociedade transnacional: a questão da Soberania. IN: BORBA, Paulo Casella. MERCOSUL: Integração Regional e Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 291: “relações que não transitam necessariamente pelos canais diplomáticos do Estado, mas que influem nas sociedades e revelam que nenhum Estado é uma totalidade auto-suficiente.” 71 SANTOS, Boaventura de Souza. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. O caso Português. Porto: Afrontamento, 1996, p. 29. 72 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2ª ed., p. XXX.
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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 103
Alexsandra Marilac Belnoski Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo. Mestre em Gestão Ambiental pela
Universidade Positivo. Advogada
A sociedade contemporânea é reflexo da Revolução Industrial, pela
qual foram incluídas as máquinas a vapor no processo produtivo, desenhan-
do um novo perfil da sociedade. Destaca-se que com essa modificação, a
produção se estabeleceu em grande escala, ou seja, os produtos eram in-
dustrializados com mais velocidade a partir de um padrão comum. Com a
padronização dos produtos e, consequentemente, a fabricação mais ágil, foi
possível a distribuição em larga escala. Frente a isso, se inicia a formação de
uma nova sociedade, a sociedade massificada.
Esse fato é relevante, vez que a partir do momento histórico da Revo-
lução Industrial, houve a transformação na forma de industrializar e comer-
cializar produtos, bem como do público a que se destinava. A sociedade de
massas, nada mais é do que a sociedade contemporânea, a qual consome
produtos fabricados de modo escalonado, sem a identificação do consumi-
dor, tendo as indústrias preocupação no aumento da sua linha de venda.
Na transformação da sociedade a informática tem papel importante,
haja vista a concepção dos programas de computador que auxiliam, acele-
ram e verificam toda a cadeia produtiva. Além disso, no final da década de
90, com a implementação da rede mundial de computadores nas empresas,
a divulgação e venda dos produtos foi facilitada. A informática ampliou a
104 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
possibilidade de comercialização em todo mundo com o mero uso do com-
putador.
É possível perceber que os computadores e seus programas contribu-
em para a fortificação do mercado de consumo, já que atuam de vários mo-
dos, quais sejam, programas de computador desenvolvidos para o fabrican-
te, distribuidor, vendedor e até mesmo para o consumidor final, que é bene-
ficiado com o uso da rede mundial de computadores para a aquisição de
qualquer produto que esteja disponível.
Com essa alteração ao longo dos anos e a inclusão dos sistemas de in-
formática para viabilizar a comercialização, algumas preocupações se torna-
ram evidentes, em especial, com relação a proteção dos direitos daqueles
que desenvolvem os programas para as empresas, os seus “sites” e a plata-
forma de comércio eletrônico.
O foco central diz respeito ao direito do autor dessas ferramentas, pois
a velocidade da informação por meio do computador pode ser incontrolável.
Indubitavelmente, o legislador se atenta para esse fato e inclui os autores
dos programas de computador nas normas que protegem os criadores, in-
cluindo norma específica para tratar do tema.
No Brasil, os desenvolvedores de sistemas computacionais são prote-
gidos pelo ordenamento jurídico, dispostos na Lei No. 9609/98, denominada
Lei de “Software” e na Lei No. 9610/98 relativa aos Direitos Autorais.
Os direitos autorais fazem parte da propriedade intelectual, na qual a
imaterialidade decorrente da criação humana devidamente externada se su-
jeita a tutela do Direito. Ao externar a sua criação, seja de natureza artística,
literária, científica ou desenvolvimento de programa computacional, o autor
estabelece uma relação jurídica devidamente protegida em lei, que é consi-
derada de cunho pessoal-patrimonial.
A Lei 9610/98 dispõe nos artigos 24 e 28 os direitos morais e patri-
moniais, sendo que o seu desrespeito representa possível pleito de indeni-
zação por danos morais1 e materiais
2 a favor do autor da obra.
A título de direitos morais, a legislação determina ao autor: a reivindi-
cação, a qualquer tempo, da autoria da obra; a inclusão do seu nome, pseu-
dônimo ou sinal convencional na utilização de sua obra; a conservação da
1 "... são morais os danos e atributos valorativos (virtudes) da pessoa como ente social, ou seja, integrada à
sociedade (como, v.g., a honra, a reputação e as manifestações do intelecto)(...)". BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos Direitos da Personalidade e dos Direitos Autorais nas Atividades Empresariais, Revista dos Tribu-nais, SP, 1993, p. 24 2 “... atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima, entendendo-se como tal o conjunto de relações jurídi-
cas de uma pessoa apreciáveis em dinheiro." - CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª edição, 3ª tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.71.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 105
obra inédita; a oposição de quaisquer modificações ou à prática de atos que
prejudiquem ou atinjam a sua reputação ou honra; a modificação da obra,
antes ou depois de utilizada, inclusive com a retirada da obra de circulação;
a suspensão de qualquer forma de utilização já autorizada, desde que impli-
quem em afronta à sua reputação e imagem; o acesso a exemplar único e
raro da obra, quando se encontre em poder de outrem.3
Com relação aos direitos patrimoniais, a legislação determina que o
autor possui o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária,
artística ou científica. Portanto, é necessária a sua autorização prévia e por
escrito para que a obra seja utilizada para reprodução parcial ou integral;
para a sua edição; para a sua adaptação, inclusive de arranjo musical ou ou-
tras transformações; para a sua tradução para qualquer idioma; a sua inclu-
são em fonograma ou produção audiovisual; para a sua distribuição, quando
não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou ex-
ploração da obra; para a sua distribuição para oferta de obras ou produções
mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que
permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la
em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a de-
manda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por
qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário; a utilização, di-
reta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante represen-
tação, recitação ou declamação; execução musical; emprego de alto-falante
ou de sistemas análogos; radiodifusão sonora ou televisiva; captação de
transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva; sonorização
ambiental; a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo asseme-
lhado; emprego de satélites artificiais; emprego de sistemas óticos, fios tele-
fônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares
que venham a ser adotados; exposição de obras de artes plásticas e figurati-
vas; a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a mi-
crofilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; quaisquer ou-
tras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.4
A lei contempla amplamente os direitos morais e patrimoniais do au-
tor, fixando os parâmetros para o seu uso. Assim, sendo os mesmos viola-
dos, é possível buscar em juízo a devida reparação pelo lesado, sendo o
direito extensivo aos seus familiares, já que há previsão legal de que, com a
morte do autor os direitos morais são transmissíveis aos seus sucessores.
Ressalta-se que o legislador incluiu na Lei dos Direitos Autorais o arti-
go 7º, § 1º prevendo que: “Os programas de computador são objeto de le-
gislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam apli-
cáveis.”
3 Previsão expressa do artigo 24 da Lei No. 9610/98.
4 Previsão expressa do artigo 29 da Lei No. 9610/98.
106 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
É importante destacar a redação do artigo 2º, § 1º da Lei de “Software”
sobre os direitos morais e patrimoniais, com a seguinte previsão: “Não se
aplicam ao programa de computador as disposições relativas aos direitos
morais, ressalvado, a qualquer tempo, o direito do autor de reivindicar a pa-
ternidade do programa de computador e o direito do autor de opor-se a al-
terações não-autorizadas, quando estas impliquem deformação, mutilação
ou outra modificação do programa de computador, que prejudiquem a sua
honra ou a sua reputação.”
Nessa linha, se faz necessária a análise conjunta das legislações para
tratar o tema, eis que, a Lei de “Software” é específica para os desenvolvedo-
res de programas de computadores
A partir da década de 90, os programas de computador estão inseridos
no cotidiano tanto das empresas quanto dos indivíduos brasileiros. A expan-
são da informática, nos últimos dez anos, ocorreu com extrema velocidade,
a ponto de ser designada como a Era Digital5. A dependência das ferramen-
tas tecnológicas e o acesso facilitado para a aquisição de computadores con-
tribuíram para a sua disseminação junto a população6.
Vale destacar que, a contrapartida do Governo Federal brasileiro com a
redução da carga tributária e o interesse na inclusão digital facilitaram a am-
pliação da informática no país, muito embora, há muito a ser feito nesse
sentido.
Com a ampliação do segmento, houve a necessidade da sua regula-
mentação, até mesmo porque, a informática desperta interesses econômicos,
e com isso, surge a legislação específica sobre o assunto, a Lei No. 9609/98,
conhecida como Lei de “Software”. A preocupação do legislador se voltou
para a proteção da propriedade intelectual dos programas de computador e
a sua comercialização, incluindo até mesmo penalidades e infrações.
O artigo 1º. da Lei de “Software” define o programa de computador da
seguinte forma: “é a expressão de um conjunto organizado de instruções em
linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer na-
tureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da
informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, basea-
dos em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para
5 (...) com o desenvolvimento tecnológico, verificou-se uma mudança radical nas sociedades modernas. Assim
como a roda representou a maior invenção da civilização primitiva, o computador revolucionou a civilização moderna, desencadeando a Revolução da Informação e a Era Digital.(...) GOUVEA, Sandra. O Direito na Era Digital – crimes praticados por meio da informática. Ed Mauá, Série Jurídica, p. 39. 6 ... “ a informação já não pode mais ser dispensada, quer pela qualidade, quer pela quantidade, pois se trans-
formou em novo bem jurídico, de primeiríssima ordem, para o homem contemporâneo...” - PAESANI, Liliana Minardi. Direito de informática: comercialização e desenvolvimento internacional do software. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. 121 p. (Coleção temas jurídicos, 2). p. 14.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 107
fins determinados.” A conceituação proposta pretendeu abranger toda e
qualquer forma de programas de computador, a fim de que aqueles que la-
boram na área estejam contemplados pelo resguardo da lei.
Salienta-se que o desenvolvedor está protegido independentemente de
efetuar o registro do programa junto ao órgão competente, Instituto Nacio-
nal da Propriedade Industrial (INPI), conforme prevê o artigo 2º, § 3º da Lei
de “Software.” Ocorre que, sem o devido registro a prova da autoria deverá
ser realizada pelo próprio autor, devendo ser contundente para que não ge-
rem dúvidas a esse respeito.
O registro do programa de computador, embora facultativo, atribui a
condição de autor àquele que efetuar o registro, devendo o mesmo apenas
apresentar a sua concessão em juízo, no momento de eventual discussão.7 É
importante informar que com o registro do programa de computador junto
ao INPI, o autor tem direito a sua exploração pelo período de cinqüenta anos,
a contar no primeiro dia de janeiro subseqüente a data da criação8.
O referido prazo está previsto em lei, assegurando ao autor inclusive o
reconhecimento internacional do seu registro.9 Apenas para elucidar, os pro-
gramas estrangeiros não têm obrigatoriedade de registro no Brasil, exceto se
as partes pretendam garantir direitos relativos às cessões de uso e explora-
ção.
Quanto aos direitos autorais, a legislação no artigo 6º. fez considera-
ções específicas, determinando os pontos que não são caracterizados como
ofensa ao autor, quais sejam, a reprodução, em um só exemplar, de cópia
legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou
armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de
salvaguarda; a citação parcial do programa, para fins didáticos, desde que
identificados o programa e o titular dos direitos respectivos; a ocorrência de
semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das
características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos nor-
mativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expres-
são; a integração de um programa, mantendo-se suas características essen-
ciais, a um sistema aplicativo ou operacional, tecnicamente indispensável às
necessidades do usuário, desde que para o uso exclusivo de quem a promo-
veu.10
7 A Resolução INPI No. 58, de 14 de julho de 1998, no artigo 1o, caput determina que: "o registro de progra-
ma de computador poderá ser solicitado ao INPI, para segurança dos direitos autorais a ele relativos, imedia-tamente após sua data de criação". 8 A data da criação é considerada aquela na qual o programa torna-se capaz de executar a função para que foi
projetado. 9 Tratado sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio Internacional -
TRIPs; Lei nº 9.609/98, art. 2º, § 4º 10
Previsão expressa do artigo 6º da Lei no. 9609/98.
108 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
A legislação de “software” no Brasil apresenta as possibilidades para a
caracterização do autor como desenvolvedor do sistema. A especificação
contempla a obra individual, de colaboração e coletiva.
A obra individual é atribuída ao indivíduo que desenvolve o programa
de computador isoladamente. Nessa condição, os direitos sobre a obra di-
zem respeito exclusivamente àquele que a produziu, submetendo-se as re-
gras impostas pela Lei dos Direitos Autorais e a Lei de “Software”.
A obra de colaboração se caracteriza pela reunião de esforços de duas
ou mais pessoas, surgido a figura jurídica da co-autoria. Diante disso, a titu-
laridade da obra é compartilhada entre aqueles que a desenvolveram em
igual parte, salvo se contratado de forma diversa. Importa esclarecer que,
embora o compartilhamento em igual proporção seja adequado para o caso,
é possível que as partes envolvidas redijam um contrato específico para o
desenvolvimento do programa e por meio desse termo estabeleçam as con-
dições de trabalho e percentuais de participação, sem que, com isso, a legis-
lação seja afrontada.
A obra coletiva ocorre quando a mesma é realizada por diversas pes-
soas, porém organizadas por um coordenador. É originada pela composição
de trabalho de uma equipe devidamente supervisionada por um indivíduo ou
pessoa jurídica. Nessa modalidade, os direitos autorais também são compar-
tilhados, exceto se tratar de relação empregatícia entre as partes.
Em sendo o programa de computador desenvolvido sob encomenda
pela empresa ao funcionário ou com uso da sua tecnologia e recursos finan-
ceiros em horário de trabalho, é crível que o programa em questão se carac-
teriza como uma obra coletiva, sendo o seu titular o empregador.
Na situação apresentada, as partes devem negociar os valores a título
de direitos autorais, via contrato, para que o desenvolvedor não seja penali-
zado após a comercialização. Em sendo o desenvolvimento do programa
inerente a função do desenvolvedor, esse não está acobertado pelas regras
trabalhistas quanto ao sistema, devendo estipular os direitos decorrentes da
autoria em contrato específico. Esse entendimento é trazido por OPICE BLUM
e VAINZOF (2005), como se verifica na transcrição que segue:
...a titularidade para pleitear qualquer direito sobre o programa de com-putador, salvo estipulação em contrário das partes, será sempre do con-tratante que pactua com prestador de serviço para sua produção, bem com do empregador, durante a vigência de um contrato, ou que a pró-pria natureza do serviço enseje um vínculo empregador/empregado, in-clusive em relação a bolsistas, estagiários e assemelhados...
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 109
A Lei de “Software” contempla as possibilidades de salvaguardar os di-
reitos do desenvolvedor, e a Lei dos Direitos Autorais estabelece a penaliza-
ção a ser fixada em juízo face à violação dos direitos do autor.11
O avanço tecnológico permite o acesso às ferramentas de informática
por grande parte do público, mas da mesma forma que há o amplo acesso,
existem as cópias e divulgações de programas de computador sem autoriza-
ção.
A chamada pirataria nada mais é do que a reprodução e comercializa-
ção de um programa de computador sem a devida chancela do seu autor. A
pirataria atinge diretamente aquele que desenvolveu a obra, uma vez que
fica privado no recebimento dos direitos autorais. Porém, é imperioso ressal-
tar que além do autor, o indivíduo que adquire um programa pirata também
sofre as conseqüências daquele produto.
Como exemplos são citados a qualidade e a manutenção do programa
de computador, os quais não possuem garantia pelo indivíduo que comer-
cializa sem autorização, gerando prejuízos para o adquirente tanto no pro-
duto quanto no seu computador. Nessa condição, o consumidor final não
pode questionar a qualidade do produto junto ao fornecedor, haja vista que
a venda não ocorreu com autorização do autor, eximindo, assim a sua res-
ponsabilidade na eventual reparação.12
Ao comprar um programa pirata, o consumidor está contribuindo para
a cadeia de comércio ilegal do produto, participando na condição de recep-
tador da pirataria, o qual é devidamente tipificado no Código Penal brasilei-
ro.13
A pirataria não está vinculada unicamente ao consumidor final do pro-
duto, mas também é estendida ao revendedor e aquele que a reproduz in-
discriminadamente pela rede mundial de computadores. A distribuição de
cópias não autorizadas se realiza tanto no meio físico quando cibernético,
tendo ambas igual gravidade, podendo ser tipificados como conduta crimi-
nosa. Nas palavras de OPICE BLUM e FLORENCIO (2002), os crimes na área de
informática são tratados da seguinte forma:
11
“Art. 103. ... Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudu-lenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos. – Lei No. 9610/98 – Lei dos Direitos Autorais 12
Art.12... § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. – Lei 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor - 13
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. – Código Penal -
110 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
...Cumpre ressaltar que a legislação vigente aplicada aos crimes pratica-dos no meio físico, pode ser utilizada com perfeição, outrossim, para os delitos informáticos, ou para aqueles crimes que de alguma forma, utili-zaram o ambiente virtual....
Os autores entendem que a ação não deve ser pontual, mas sim de
forma cooperada com outros países, para que a questão da pirataria não
seja tratada de forma isolada pelo Brasil, até mesmo porque, com a facilida-
de do ambiente virtual, as ilicitudes não se limitam ao espaço territorial na-
cional:
...Necessária, também, a celebração de tratados internacionais que coí-bam as condutas criminosas no ambiente da Internet (como, p. ex. a ex-celente Convenção de Budapeste de 2001, também conhecida como Convenção sobre o Cybercrime), bem como uma política mundial para cooperação recíproca, dada a questão que envolve a extraterritorialidade desses crimes(...)
A Lei de “Software” estabelece as infrações e penalidades relativas aos
programas de computador14
, porém, mesmo com a previsão expressa, a
tendência em juízo é aplicação na norma em conjunto com o Código Penal
brasileiro, a fim de tipificar o delito dentro da norma específica. Vale infor-
mar que a redação da Lei 10.695/03 apresenta penalizações diversas para
aquele que reproduz a obra do autor visando ou não a lucratividade, alteran-
do o artigo 184 do Código Penal brasileiro15
.
Conforme o relatório oficial publicado pela Associação Brasileira de
Empresas de Software (ABES) a proliferação da pirataria no segmento tecno-
lógico se dá em face dos gravadores de CD e DVD disponíveis nos computa-
14
Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador: Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente: Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa. – Lei No. 9610/98 – Lei dos Direitos Autorais - 15
Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º. Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. § 3º. Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonogra-ma, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 111
dores de acesso aos consumidores de uso doméstico. A ABES apresenta a
classificação da pirataria, conforme tabela que segue:
Falsificação
cópia e comercialização ilegal de software com a intenção de imitar o material original, buscando ilu-dir o consumidor, que pensa estar adquirindo uma versão original.
CD-ROM Pirata
duplicação ilegal e comercializa-ção das cópias com objetivo de lucro. Entretanto, diferentemente da falsificação, neste caso, o usu-ário sabe que está comprando uma cópia ilegal.
Integrador de Hardware
integradores de computador, so-bretudo aqueles que atuam no mercado informal, gravam cópias não autorizadas de software nos discos rígidos dos PCs vendidos, sem fornecer ao usuário a licença original.
Pirataria Corporativa
execução de cópias não autoriza-das de software para computado-res dentro de organizações. As cópias adicionais são feitas para uso na corporação (empresas, es-colas, repartições públicas, etc), sem a necessária aquisição de novas licenças.
Pirataria Cliente/Servidor
instalação de cópias ilegais no servidor, ou mesmo uma cópia original, mas não destinada ao uso em rede ou ainda, permitir mais usuários do que a quantida-de definida na licença.
Pirataria Online
software piratas podem ser trans-feridos e instalados através de downloads aos usuários.
Fonte: Relatório Oficial da CNI – Pirataria de Software no Brasil
Constata-se na tabela da ABES que a pirataria não é caracterizada ape-
nas por uma única conduta, mas sim, por qualquer isolado ou coletivo que
execute, instale, comercialize, transfira ou utilize programas de computador
não autorizados pelo o autor. É importante destacar que o referido relatório
oficial, afirma que a pirataria de software teve uma redução de dez pontos
percentuais em todo mundo em apenas oito anos, passando de 49% em
1994 para 39% em 2002.
112 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Muito embora tenha sido constatada a redução, a pirataria ainda é tida
como um tema relevante para a área de informática, já que os danos atingem
diretamente autor e a economia e indiretamente o mercado de trabalho liga-
do a esse segmento.
Para que a situação seja minimizada, implica no apoio das autoridades
administrativas em conjunto com campanhas educativas para que se comba-
ta realmente a ilegalidade. A eficácia das ações será comprovada no decorrer
do tempo, haja vista a necessidade de conscientização da população em ge-
ral.
A partir disso, o Ministério da Justiça brasileiro em conjunto com a Sin-
dicato Nacional dos Técnicos da Receita Federal (SINDIRECEITA) lançaram o
Programa Nacional de Educativo de Combate à Pirataria no ano de 2006, com
o uso de uma linguagem informal e direta para atingir o maior número de
consumidores.
A campanha se intitulou “Pirataria tô fora! Só uso original”, cuja divul-
gação se deu em todas as mídias, inclusive com o lançamento de produtos,
como camisetas, adesivos, bonés, relativos a campanha. O objetivo central
da campanha é o combate dos produtos piratas e a defesa dos direitos da
propriedade intelectual e para isso contam com o apoio de outras entidades
que são focadas do desenvolvimento do cidadão e na ética.16
Dessa maneira, para que seja combatida a pirataria se faz necessário o
apoio institucional do Estado de forma veemente, reforçando os preceitos de
ética, moralidade e legalidade aos indivíduos.
As demandas envolvendo programas de computadores, na área cível,
tem, como um dos pontos centrais, a discussão em face da aplicação da pe-
na pecuniária ao infrator. A legislação de “Software” estabelece a fixação de
indenização de até 3.000 (três mil) vezes o valor do programa de computa-
dor violado. Porém, se faz necessário, analisar a posição do Superior Tribu-
nal de Justiça (STJ) quanto a esse aspecto.
O STJ reconhece que o programa de computador está equiparado a
obra literária, em face disso, está protegido pelo artigo 2º da Lei n.º
9.609/98, artigo 7º da Lei n.º 9.610/98 e 10, V, da Lei n.º 9.279/96. Para
tanto, aplica-se a artigo penalidade prevista no parágrafo único do artigo
103 da Lei de “Software”, a qual, no entendimento é vista como caráter pe-
dagógico.
16
Informações extraídas da página oficial da campanha na internet <http://www.piratatofora.com.br> acesso em 23.07.2009 às 1h15min.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 113
A discussão em torno de tema se dá, se a aplicação do referido artigo
deve ser feita no programa de computador sobre o valor de mercado ou so-
bre o valor de aquisição à época?
Esse questionamento é levado ao STJ para a referida análise e o posici-
onamento, até então, segue a tendência de aplicar o valor de mercado como
base de cálculo, eis que, é presunção para que se iniba o cometimento da
prática ilícita. A recente ementa do REsp 1185943 demonstra a posição do
STJ:
RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO AUTORAL. PROGRAMA DE COMPUTA-DOR (SOFTWARE). AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DOS ARTIGOS 186, 944 e 927, DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO NUMÉRICA DA CONTRAFAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 103, PA-RÁGRAFO ÚNICO DA LEI 9610/98. INDENIZAÇÃO DEVIDA NOS TERMOS DO ARTIGO 102 DA LEI 9.610/98. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. "A pena pecuniária imposta ao infrator não se encontra restrita ao valor de mercado dos programas apreendidos. Inteligência do art. 102 da Lei 9.610/98 - 'sem prejuízo da indenização cabível.' - na fixação do valor da indenização pela prática da contrafação" (REsp 1.136.676 - RS, Rel. Min. Nancy Andrighi) 2. O simples pagamento, pelo contrafator, do valor de mercado por cada exemplar apreendido, não corresponde à indeni-zação pelo dano causado decorrente do uso indevido, e muito menos inibe a sua prática. 3. O parágrafo único do art. 103 da Lei nº 9.610/98 tem sua aplicação condicionada à impossibilidade de quantificação dos programas de computador utilizados sem a devida licença, o que não é o caso dos autos. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e provido.( Processo REsp 1185943 / RS - RECURSO ESPECIAL 2010/0046959-9 - Relator(a) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140) - Órgão Julgador - T4 - QUARTA TURMA - Data do Julgamento - 15/02/2011 - Data da Publicação/Fonte - DJe 18/02/2011- RDDP vol. 98 p. 123 )
É possível perceber que o posicionamento do STJ, em matéria de viola-
ção autoral de programas de computadores, não atribui pena com caráter
compensatório, mas sim, punitivo, já que a finalidade é evitar a propagação
de ilícitos dessa natureza.
114 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 115
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116 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 117
Angela Couto Machado Fonseca Doutoranda do PPGD da UFPR. Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo
Ao tratar da noção de direito subjetivo, Michel Villey aponta para a falta
de interesse de boa parte dos juristas franceses em buscarem sua compre-
ensão histórica e filosófica, de modo que acabam por conceituá-lo dogmati-
camente e produzindo leituras inconsistentes e difíceis de alcançar para o
grande público1. Este mesmo autor lembra a origem do direito subjetivo no
ambiente do nominalismo de Guilherme de Ockham e da influência da ver-
tente jusnaturalista em sua construção, ambientes estes separados por con-
textos históricos diversos, nos quais, cada um a seu modo teria gerado con-
dições para a peculiaridade dos direitos subjetivos. No nominalismo ockha-
miano estaria marcada a ênfase numa rejeição de universais que não se refe-
rissem a nenhuma entidade concreta, viabilizando, assim, um desvio de
olhar para a particularidade e a individualidade. A referência jusnaturalista, e
no caso dos direitos subjetivos o jusnaturalismo moderno2, remete a um
campo de compreensão do homem e seus direitos naturais num plano de
abstração. É preciso abstrair, retirar o homem de qualquer rede de pertenci-
1 VILLEY, Michel. A Formação do pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
2 Para reflexões mais extensas acerca do jusnaturalismo moderno, vide WELZEL, Hans. Diritto naturale e
giustizia materiale. Milano: Giuffré, 1965, p. 163 e sgs. Bem como, PADOA SCHIOPPA, Antonio. Storia del diritto in Europa: dal medioevo all’ettá contemporânea. Bologna: Il Mulino, 2007, p. 329 e sgs. E GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, p. 33 e sgs.
118 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
mentos sociais que o definem no interior de suas relações, para concebê-lo
a partir de características (ou atributos) originários. Neste caso, os direitos
naturais modernos se delineiam como expressões da natureza humana, po-
tências típicas do próprio homem, independentes de circunstâncias ou situa-
ções fáticas. Aqui é possível pontuar o caminho de uma compreensão jurídi-
ca que começa a construir o indivíduo como seu ponto de inflexão.
Tais seriam algumas fontes a partir das quais os direitos subjetivos en-
contram suas raízes.3 A partir da consideração destes ambientes, aqui me-
ramente esquematizados, podemos pinçar uma das características centrais
dos direitos subjetivos, que seria a de operar num campo de atendimento e
proclamação dos poderes do indivíduo. Eles remetem a uma associação entre
direito e “uma faculdade do sujeito, a um de seus poderes”4. Se de um lado
na visão pré-moderna, que não vislumbra a dimensão do direito subjetivo,
aponta-se o direito para o universo das coisas, seus usos e partilhas que
são atribuídos aos homens, por outro lado, na leitura que leva em considera-
ção o direito subjetivo o protagonista do direito é o próprio homem. O direi-
to pode ser lido como uma manifestação de suas capacidades e vontades
(lembre-se aí das concepções contratualistas como exemplos deste modo de
interpretar). Daí o direito subjetivo poder ser considerado uma manifestação
de um poder, ou uma faculdade, juridicamente acolhidos (no espaço dos
direitos objetivos que abrigam, numa situação específica, tal manifestação).
Coloca-se em cena uma modalidade de direito que não é extrínseca ao
homem e nem se aplica a ele como uma atribuição, mas, de um direito que
se amarra a uma potencialidade, estabelecida em primeiro plano apoiada nas
profundezas da natureza humana (de suas prerrogativas que revelam-se de
maior importância). As situações concretas, nesta ótica, colocam-se como
ocasião de manifestação ou de atendimento das faculdades humanas.
Os direitos da personalidade, considerados direitos absolutos, irrenun-
ciáveis e intransmissíveis, relacionam-se com os direitos subjetivos. Esta
relação sustenta-se por uma interpretação de fundo jusnaturalista (que não
é unívoca na consideração dos direitos de personalidade), na medida em que
aponta os direitos de personalidade como direitos inerentes à pessoa e a sua
dignidade. Seriam, portanto, o desdobramento (ou prolongamento) dos atri-
butos e potências do indivíduo, considerando o atributo imanente e trans-
3 Embora Villey mencione tais fontes e inclusive defenda uma herança do próprio jusnaturalismo de cunho individu-
alista na tradição do nominalismo de Guilherme de Ockham, existem leituras que apontam uma compreensão diver-sa. Brian Tierney entende que antes mesmo do nominalismo o realismo moderado de Aristóteles presente na teoria de São Tomás de Aquino, bem como vários juristas canonistas, já teriam apontado para um pensamento da vontade no direito e na intenção individual. Conferir: TIERNEY, Brian. L ‘Idea dei diritti naturali: diritto naturale, legge naturale e diritto canonico (1150 – 1625). Bologna: Il Mulino, 2002, pgs. 34 e sgs. 4 VILLEY, Michel. A Formação do pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pg. 253.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 119
cendente. O imanente revela a interioridade, o auto-pertencimento, o que
nos porta para a noção de autonomia da vontade/liberdade. O transcendente
trata da abertura do indivíduo para o outro, para a alteridade, para seu per-
tencimento social (porta à noção de igualdade e dignidade).
Se é possível, por um lado, construir a íntima relação dos direitos da
personalidade com os direitos subjetivos já que aqueles seriam expressão
destes últimos, também é preciso levar em consideração a existência de
entendimento diverso. No caso, de que tais direitos de personalidade não
representam qualidades naturais e sim apenas representação jurídica5. Tratar
o homem como pessoa seria considerá-lo dentro de um contexto de capaci-
dades jurídicas. O que se desenha nesta linha de entendimento é a tendência
atual de trazer novas bases menos abstratas do que aquelas tradicionais e
traçar os direitos de personalidade não à sombra da noção de sujeito univer-
sal, mas a partir da concepção de pessoa. A pessoa humana seria o espaço
de representação, defesa e acolhimento de cada homem particular.
Abre-se, diante desta perspectiva, a compreensão histórica de como se
situa o homem e seus direitos. Passa-se a analisar as diferentes leituras pos-
síveis no lugar de assumir como válida uma interpretação de algo natural e
dado. Os direitos amarram-se aos seus horizontes concretos de criação his-
tórica e o seu protagonista também recebe não uma imagem natural, mas
sim percebida pelos diferentes contextos do qual emana. Os direitos subjeti-
vos, consequentemente, são vistos não como expressões puras de capacida-
des inatas (ou inerentes), mas de uma conjuntura dentro da qual sua elabo-
ração é possível. Mais particularmente, o racionalismo moderno.
A respeito da distancia que pretende ser concebida entre sujeito e pes-
soa, o civilista italiano contemporâneo Stefano Rodotá, em passagem impor-
tante, elabora a seguinte reflexão:
“Há um momento na reflexão dos juristas no qual o sujeito abstrato não aparece mais como um instrumento capaz de compreender a realidade por meio de sua elevada formalização. Apresenta-se, ao contrário, co-mo um impedimento, um obstáculo. Não estamos mais diante da abs-tração, e sim do cancelamento do sujeito, que perde um contorno cog-noscível como ocorre às figuras de Francis Bacon. O corpo está ali, ainda visível, porém seu contorno é desfigurado, cancelado. Mas uma figura permanece, e o problema torna-se, propriamente, o de restituir-lhe um contorno, um rosto, torná-la novamente reconhecível, atraí-la para a re-
5 Neste sentido conferir: GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica
do corpo humano. In: Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin (coord.), Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
120 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
alidade. É esta a razão do progressivo deslocamento da atenção do su-jeito à pessoa, testemunhado pela prevalência desta última palavra em grande parte da literatura jurídica recente. Quase com prepotência, a pessoa tende a ocupar o centro da cena, com a força que lhe deriva da capacidade imediata de exprimir a materialidade das relações. A realidade contra a abstração? Mas aqui, pelo menos na aparência, é possível imediatamente perceber um paradoxo. Na linguagem do direito também ‘pessoa’ é um termo que reenvia a um processo de abstração das puras condições materiais, como é particularmente evidente na fic-ção que rege a pessoa ‘jurídica’. Como diz o seu étimo, pessoa é prósopon, máscara, portanto um meio que oculta um rosto real e o substitui com uma convenção, com uma duplicação jurídica que consen-te a qualquer um em mover-se também no mundo real como se nada o distinguisse dos outros, ou melhor, em pretender ser formalmente reti-rado de discriminações, estigmatizações, seleções, de sua própria natu-ralidade. Porém o preço é o afastamento da realidade, para não dizer a sua supressão, com o ator grego que, portando a máscara a atuando na cena, dizia a todos em ser outro em face da pessoa real que podia ser encontrada na cena ordinária do mundo. No momento no qual, contrari-amente, a referência à pessoa vem assumida como conotação realista, que faz emergir a pessoa por aquilo que é efetivamente, o discurso jurí-dico toma distância daquela ficção histórica. Mas qual é o sentido desta separação do sujeito e da pessoa?”
6
A passagem acima se esforça por diferenciar o conceito de sujeito e de
pessoa. O sujeito é lido como uma abstração que reúne de modo unívoco e
universal todos os atributos do homem e o constituem do modo como é.
Noção esta que é problematizada na passagem acima transcrita como um
instrumento que, atualmente, por seu elevado grau de abstração e formali-
dade, no lugar de sustentar uma imagem comum de validade do homem,
acaba por encobrir e não deixar aparecer o homem em suas formas materi-
ais, precisas e relacionais. O homem abstrato (seu desenho ideal) acaba por
suprimir o homem empírico (suas vivências concretas).
O conceito de pessoa, apesar de remeter à noção de máscara, ou seja,
de uma veste que encobre a pessoa concreta em sua situação real, pretende
ser encarado de um modo menos abstrato e formal.
A tentativa de fazer do conceito de pessoa, no interior de uma dimen-
são jurídica, menos abstrato, não se refere a uma indicação do homem natu-
ral, trata-se sempre de inseri-lo numa representação (ou numa significação)
válida para o direito. O lugar desta representação jurídica se desenha no es-
paço dentro do qual os juristas se esforçam por encontrar não apenas um
termo, mas um caminho para traçar o homem a partir de considerações mais
precisas (que, apesar de situá-lo de modo universal, permitem a pontuação
6 RODOTÁ, Stefano. Dal soggetto alla persona. Università degli studi Suor Orsola Benincasa: editoriale
scientifica, 2007, pg. 7/8. (tradução livre)
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 121
de valores básicos a serem observados nas situações materiais e concretas
da vida).
Se a leitura atualmente pretendida pelo direito, como supõe Rodotà,
não é a de pessoa como máscara, como encobrimento da pessoa real, e sim,
contrariamente, o instrumento que pinça e alcança a pessoa como realidade
menos abstrata e ideal à qual nos enviava o conceito de sujeito, ainda será
preciso lembrar que por meio da consideração de pessoa o homem é visto
por aquilo que gostaria ou deveria ser. A máscara (se é permitido usar este
termo) traduz a concepção que o homem cria de si mesmo e os valores que
devem ser preservados neste horizonte. De modo que, ainda que todos seus
contornos e limites mínimos não sejam realizados concretamente, por meio
da ficção (pela veste usada) eles podem reportar aos valores a serem alcan-
çados e defendidos. O deslocamento, assim, entre sujeito e pessoa, está in-
timamente ligado aos usos e defesas que o direito estabelece.
Ao tratar de pessoa e sua personalidade jurídica, uma dimensão tipifi-
cada de valores e direitos se desenha (caminho para aquela maior materiali-
dade e menor abstração). Se os contornos gerais expressam aquelas cama-
das abstratas do sujeito (autonomia da vontade, liberdade, dignidade), al-
guns contornos específicos foram desenhados, tais como os conhecidos íco-
nes dos direitos da pessoa: vida/integridade física, honra, imagem, nome,
intimidade, etc.
Ao considerar que pessoa é uma representação comum, ela é também
uma via de acesso ao homem concreto nos momentos em que este se inves-
te das características gerais da pessoa.
Se for tomada como válida a consideração de que o conceito jurídico
de pessoa viabilizaria uma menor abstração, chama a atenção entre os vários
direitos da personalidade o direito à integridade física e a disposição do cor-
po como um dos direitos que apresenta uma maior concretude e materiali-
dade.
No caso do corpo - não por se tratar daquela parcela do homem que
pela sua própria natureza possui realidade concreta -, entram em cena as
tecnologias de sua proteção e melhoramento. Neste ambiente as normas
tratam de expor as formas de disposição do corpo e seus limites.
O tratamento jurídico do corpo, entendido na ótica da integridade físi-
ca e preservação da vida, encontra-se presente nos arts. 13 a 15 do capítulo
dos direitos de personalidade do Código Civil Brasileiro.
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
122 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gra-tuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Ainda não se está, aqui, no interior de uma análise do alcance das tec-
nologias sobre o corpo e para o campo do imprevisível que elas podem por-
tar. Antes mesmo destas importantes reflexões, os próprios direitos da per-
sonalidade, tal como positivados no código civil, revelam muito acerca de
como se interpreta o homem como um todo. Uma superficial leitura do art.
13 aponta para os limites da autonomia da vontade no que se refere à dis-
posição do corpo. Os direitos da personalidade sinalizam, em sua proteção à
saúde e ao corpo, uma forma de não concebê-lo (corpo) como coisa, como
propriedade, o que permitiria falar de direitos que dimensionam o homem
em sua unidade. Não se trata, neste caso, do corpo como res. Mas, por outro
lado, no tratamento específico dispensado no artigo em questão, parece ha-
ver um retorno a uma leitura corrente do pensamento moderno que fraciona
o homem (corpo e mente). Isto porque se trata de estabelecer os limites de
intervenção no corpo, dentro dos quais a decisão racional e a autonomia da
vontade podem se exercer.
Assim, a vantagem da concretude do corpo nas formas precisas de sua
preservação e defesa superaria a clássica autonomia e auto-gestão do ho-
mem? Ou, de modo oposto, estaria abrindo-se nesta limitação do uso do
corpo, uma compulsória costura entre mente e corpo? Costura ou junção
esta porque o homem, nos limites do uso do corpo, é forçado a conceber sua
corporeidade, refletir acerca de suas funções e até aonde pode-se sobre ele
intervir e agir sem desfigurá-lo. Dizendo de outro modo, a realidade do cor-
po, na consideração de suas regras e funcionamento, obrigaria o pensamen-
to a descobrir (ou buscar descobrir) seus limites biológicos típicos além dos
quais se estaria entrando num campo de artificialidade. Neste campo, o pró-
prio homem, tal qual se concebe (ainda que por trás de uma máscara) perde-
ria seus contornos conhecidos (tornando-se necessária uma nova máscara).
Curiosamente a via do corpo (e isto seria ainda mais patente diante da
consideração da multiplicação incessante de técnicas sobre o corpo) coloca o
homem a refletir sobre si mesmo, a definir-se. Assim, a distinção entre res
extensa e res pensante perde seus limites claros. A res pensante é chamada
pelo corpo e o corpo “natural” que a mente concebe é o corpo ‘para aquela
mente’. Afinal, ultrapassando os limites naturais e propriamente humanos do
corpo, não seria possível supor que a própria racionalidade é obrigada a ex-
pandir-se para outras vias? Se o corpo transmuta-se, a razão que o concebe
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 123
também é afetada e deslocada. O panorama do pensado e de seus conteúdos
são modificados pela concretude e mutações do corpo. Alteradas as configu-
rações usuais do corpo, altera-se o próprio personagem como um todo.7
Por fim, o que parece ser uma consideração possível, é justamente
perceber nas imposições do corpo e da manutenção de sua integridade uma
via de acesso à compreensão da distância entre sujeito e pessoa. O que se
quer dizer é que o corpo, como valor da pessoa a ser protegido, remete a
percepção de que sua mutação pode também implicar na mutação da racio-
nalidade que o define e considera. Assim, a proteção do corpo, seria tam-
bém, neste aspecto, a proteção da razão que o concebe. Ou pelo menos a
proteção do registro de significados desta razão. Se pessoa envia a um cam-
po que pretende maior concretude, seu fundamento não se retira das tradi-
cionais características da subjetividade moderna.
7 O que se quer apontar é que o corpo, para muito além de ser a representação da mente que o pensa, configura
também as formas da racionalidade que o tornam possível. Sair dos limites desse corpo é também extraviar os limites da racionalidade que o acolhe, o que enviaria para a abertura de outro modo de ser, para outra visão de mundo. A este respeito conferir Le BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 18: “As representações do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributários de um estado social, de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de pessoa”. Le Breton ainda estabelece a diferença entre a leitura ocidental e moderna de corpo como o corpo de um indivíduo e outras concepções de corpo, como por exemplo aquela da sociedade canaque. Nesta leitura da diversidade mostra um corpo que é pensado como extensão da natureza, não é matéria dissociada do mundo. “O ‘corpo’ não é frontei-ra, átomo, mas elemento indiscernível de um todo simbólico. Não existe aspereza entre a carne do homem e a carne do mundo”. Op. Cit. P. 25. Neste exemplo é de se deduzir que o corpo aí situado remete a uma razão outra.
124 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização
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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 125
Claudia Regina Baukat Silveira Moreira Mestre em História pela UFPR. Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo.
“A árvore que não dá frutos
É xingada de estéril.
Quem examina o solo?
O galho que quebra
É xingado de podre, mas
Não haveria neve sobre ele?
Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento,
Ninguém diz violentas
As margens que o cerceiam”
Bertolt Brecht
O presente artigo pretende apresentar uma reflexão acerca das práti-
cas docentes no Ensino Superior, particularmente articulada à minha experi-
ência pessoal como professora do Curso de Direito. Por essa razão, de ante-
mão peço escusas pela falta de formalidade na linguagem, pois assumida-
mente o texto possui um caráter confessional. Isto não significa abdicar do
rigor acadêmico, que caracteriza nosso exercício profissional.
A intenção inicial do texto era de levantar diretrizes para a elaboração
de avaliações (particularmente cuidados a serem tomados quando da reda-
126 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
ção de questões de provas). Sem descuidar disso, posto que é constituinte
de nosso trabalho rotineiro, decidi prestar-me ao objetivo de pensar sobre a
natureza do trabalho docente articulada às práticas de avaliação e à realida-
de concreta com as quais nos deparamos cotidianamente.
Ano após ano, vemos ingressar centenas de alunos na Universidade.
Para alguns (e aqui não me refiro exclusivamente aos professores) a sensa-
ção é de que, finalmente, o Ensino Superior no Brasil está acessível àqueles
que o desejam. Para muitos de nós, infelizmente, fica a expectativa em rela-
ção ao perfil desses ingressantes: serão interessados? Conseguirão apreen-
der os conceitos importantes da disciplina? Ou, pelo contrario, o ambiente
em sala de aula será marcado pelo conflito e pela tensão entre a expectativa
do professor versus a expectativa dos alunos?
Aqui recorro à análise empreendida por Gaudêncio Frigotto, que iden-
tifica na redução do Ensino Superior à mera transmissão de conhecimentos
técnicos um grave problema que se desdobra naquilo que considera ser duas
formas de violência: uma de ordem técnico-científica, já que nega ao aluno a
possibilidade de desenvolver outros conhecimentos, habilidades e compe-
tências que não a mera reprodução dos saberes técnicos; e uma segunda,
por ele chamada de ideológica, que se traduz no discurso que afirma que a
Universidade faz sua parte ao acolher todos os alunos (oferecendo vagas em
numero suficiente para o atendimento da demanda). A evasão e a repetência
são resultado exclusivo das escolhas equivocadas feitas pelo indivíduo (em
relação ao curso ou à instituição)1.
Essa dupla violência apontada pelo autor se faz presente cotidiana-
mente em nossas salas de aula, sem nos darmos conta dela. Isso é perceptí-
vel sobretudo quando reduzimos nosso trabalho à mera transmissão de in-
formações e conceitos que consideramos necessários ao exercício profissio-
nal. Quando nos limitamos a considerar que ministrar boas aulas é atitude
suficiente. Quando afirmamos (para nós mesmos ou publicamente, aos alu-
nos) que nossa parte está feita e que o resto depende dos alunos.
Esta constatação aponta para a permanência de uma visão tradicional da
educação, em que o professor emerge como o grande sujeito do ensino. O bom
aluno é aquele que deposita conhecimentos em sua memória e os saca quando
necessário, a saber, no momento das provas. Dirigindo uma rigorosa critica a essa
forma de educação, Paulo Freire deu-lhe o nome de “Educação Bancária”2. Nessa
perspectiva, o aluno é encarando como um ser passivo, receptáculo de todo o saber
do professor.
Ao pensarmos nessas questões aplicadas ao Ensino Superior, há um
outro elemento que deve ser fortemente considerado: a identidade do pro-
1 FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico-profissional: desafios neste fim de século. In: SIL-
VA, L.H. (Org.) Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. 2 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra,1987.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 127
fessor. Como este nível de ensino possui como principal objetivo a formação
profissional, a formação humana dos acadêmicos acaba por ser negligencia-
da. Como não se trata de uma questão simples, a explicação para isso tam-
bém não é. Mas é possível levantar alguns aspectos que nos ajudem a com-
preender a dimensão do problema. A formação do professor do Ensino Su-
perior não promove uma reflexão efetiva sobre a natureza do trabalho do-
cente. Esse profissional, em suma, não se enxerga como um educador. O
que esse docente domina fica restrito ao domínio da sua área de ensino,
muitas vezes reduzido a um saber técnico, passível de mera transmissão.
Some-se a isso o fato de que, para alguns professores, fica difícil com-
preender que o aluno que a ele chega ainda está em processo de construção
da própria identidade; que chega cheio de dúvidas sobre o curso escolhido;
que tem construída uma relação com a informação, com o conhecimento,
que em muito diverge da formação do professor. Se para muitos de nós os
alunos nos parecem estranhos, não devemos nos enganar: os alunos nos
consideram verdadeiros “alienígenas” vindos de algum lugar que, definitiva-
mente, não é o mundo deles3. Instala-se um verdadeiro diálogo entre sur-
dos.
O que fazer? Como fazer? Talvez essas questões norteiem boa parte de
pensamentos torturantes aos quais nós, professores, somos cotidianamente
acometidos. Aqui, vejo indispensável que o professor, que se pensa como
educador, estabeleça pressupostos éticos ao seu trabalho, tendo por base,
sobretudo, humildade e tolerância.
O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade [ou à falta dela], à sua timidez, que não devo agravar com procedimen-tos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Co-mo posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar meu desconhecimento? Como ser educador, (...) sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fa-zê-lo bem.
4
É premente colocarmos nossa atividade docente em seu devido lugar,
para que, tendo clareza acerca de nosso papel e da nossa importância na
vida dos alunos, possamos estabelecer critérios de conduta diante de tantos
problemas enfrentados cotidianamente. Não, não cativaremos todos os alu-
nos. Continuarão a ser freqüentes o desinteresse e as dificuldades para a
3 GREEN, Bill; BIGUM, Chris. Alienígenas na sala de aula. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas
na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p.208 – 243. 4 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. 24.ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2002. p.74-75.
128 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
compreensão de muitos conceitos. Mas é possível que, ao mudarmos a nossa
postura, alguns alunos consigam estabelecer a necessária relação entre o
nosso trabalho e a sua própria formação. Pode ser, ainda, que alguns alunos
passem a enxergar a própria condição de sujeitos do processo de ensino e
aprendizagem. Mas para isso, é imprescindível que o professor abandone a
postura de transmissor de conteúdos e passe a assumir a condição de medi-
ador entre o aluno e o conhecimento.
Nesse sentido, a mediação serve de ponte entre o sujeito de conheci-mento e o objeto conhecido. Nessa passagem, o objeto não é tomado de forma neutra, mas, pelo contrário, carregado de significado simbólico. A noção de mediação pode, de certa forma, também ser aplicada à figura do professor em sua relação com o aluno. (...) Como mediador, o docen-te não pode ser neutro em relação aos conteúdos escolares, devendo haver um engajamento tanto cognitivo quanto moral. Em outras pala-vras, o professor deve defender aquilo que acredita ser cognitivamente verdadeiro e moralmente correto. Assim(...) o papel desempenhado pelo professor é fundamental e imprescindível. No entanto, diferente do que ocorre na pedagogia tradicional, o aluno não fica eternamente na de-pendência do professor. Pelo contrário, a aprendizagem deve promover uma autonomia crescente do aluno.
5
Essa redefinição dos papéis em sala de aula reivindica também uma
nova forma de abordagem da avaliação, que permita uma articulação maior
entre esta e as atividades de ensino e aprendizagem. A meu ver, toda e
qualquer atividade em sala somente pode ser levada a cabo se estiver a ser-
viço da promoção da aprendizagem de nossos alunos. Esta deve ser a meta,
o objetivo. Assim, também as provas e outros trabalhos didáticos devem ser
compreendidos: se não for para promover a aprendizagem (ou aferi-la), de
nada serve. É trabalho inútil. Nesse sentido, uma questão que pode nortear a
elaboração dessas atividades é “Para quê?”, que impõe como resposta a
aprendizagem de determinados conteúdos ou sua verificação.
Particularmente útil nesse processo é a realização de atividades no de-
correr de cada um dos bimestres. Além de atender a um dispositivo regi-
mental6, o professor pode fazer uso desse expediente para acompanhar o
ritmo de aprendizagem de seus alunos, corrigindo eventuais “desvios de
rota”: é preciso reconhecer que, às vezes, mesmo alunos extremamente ze-
losos e cientes de participação na vida acadêmica são passíveis de se equi-
vocar quanto à compreensão e apreensão de conceitos. Por que não, eventu-
almente, solicitar que os alunos respondam algumas questões que, uma vez
5 MOREIRA, Claudia Regina B. S.; VASCONCELOS, José Antonio. Didática e avaliação da aprendiza-
gem no ensino de História. Curitiba: IBPEX, 2007. p.43. 6 No caso da Universidade Positivo, as Normas Acadêmicas impõem a realização de pelo menos duas avalia-
ções a cada bimestre letivo.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 129
corrigidas pelo professor, servirão de parâmetro para uma avaliação do pro-
cesso (sem valer nota)7?
Uma outra questão que deve ser trazida ao horizonte é relativa à co-
municação entre professores e alunos: estarei, enquanto professor, sendo
suficientemente claro acerca das minhas expectativas em relação àquilo que
o aluno produz? Estarei explicitando com precisão o que ele deve fazer numa
atividade? Para tanto, os enunciados das questões não podem ter margem
para a ambiguidade. Sob esse aspecto, os comandos das questões dirigidas
aos alunos devem guardar objetividade.
Este é um ponto particularmente importante: mudanças nos pressu-
postos que organizam as atividades de avaliação devem, necessariamente,
mudar a própria lógica da avaliação. É necessário reconhecer que as práticas
classificatórias fazem parte não só das experiências dos alunos. Os profes-
sores encontram-se entranhados de visões de avaliação que priorizam a
classificação dos alunos, até porque o próprio processo de formação do pro-
fessor, muitas vezes, observou essa lógica. Dessa forma, atribuir apenas ao
aluno a dificuldade de comprometer-se com uma avaliação formativa, signi-
fica ocultar metade do problema. O aluno foi condicionado a pensar e agir
em função da nota. Como afirma o professor Celso Vasconcellos:
Um problema constante do cotidiano escolar diz respeito à grande preo-cupação dos alunos com a nota. Isto é constatado em qualquer sala de aula (...). Este condicionamento do aluno pode ser entendido se anali-sarmos toda a história da avaliação seletiva. É fácil acusar o aluno de só pensar em nota; precisamos, no entanto, ter muito claro que foi a pró-pria escola que provocou este tipo de preocupação em função de sua prática distorcida: enquanto existir sistema classificatório, objetivamente o aluno não pode esquecer a nota, pois ela é seu passaporte para a série seguinte...
8
Aqui, algum cético pode argumentar: não há o que fazer, pois os pro-
fessores não detém o controle sobre algumas variáveis. A estrutura educaci-
onal exige que o professor atribua notas ao desempenho dos alunos. A des-
peito do fato de que essa é uma situação que no curto prazo não é passível
de mudança, há questões que se encontram, sim sob nosso poder de inter-
venção! Se não é possível, especialmente devido à grande quantidade de
alunos, pensar em avaliação sem pensar em provas, que façamos uso desse
instrumento disponível da melhor forma.
7 Nessa correção, pode-se perceber quais são as dificuldades que os alunos têm em relação aos conteúdos da
disciplina: como (e se) estudam, de que forma se expressam por escrito, quais são os equívocos de compreen-são. Sob este aspecto, é possível retomar questões controversas em sala e promover, efetivamente, a aprendi-zagem. 8 VASCONCELOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança (por uma práxis trans-
formadora). 4.ed. São Paulo: Libertad, 1998. p. 62.
130 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Sim, é possível elaborar provas que respeitem a inteligência do aluno,
exijam seu compromisso com a aprendizagem e, de fato, promovam a avali-
ação daquilo que o aluno aprendeu. Só que isso exige que o professor dedi-
que tempo à sua elaboração buscando sempre nortear seu trabalho pela pre-
ocupação com o que o aluno aprende (ou deixa de aprender) e como ele
aprende. Mais uma vez é necessário destacar que todo o trabalho do profes-
sor deve ser antecedido pela questão : “para quê?”, definidora dos objetivos
e dos critérios da avaliação.
(...) Esse avaliar se baseia em alguns critérios para valorar, mas serão in-terpretados em cada caso particular. O instrumento é um mediador en-tre os critérios de avaliação e a informação que tem origem na realidade apreendida para ser avaliada. A utilidade desse instrumento no contexto da avaliação de alunos está fundamentalmente em sua potencialidade para evidenciar aquilo que se pretende avaliar em sua possibilidade real de ser bem utilizado. Isto é, utilidade e viabilidade
9.
No momento de elaboração de uma prova, há que se levar em conside-
ração qual a utilidade de um determinado modelo e quais são suas dificulda-
des. Com este objetivo, recorro à análise realizada por Dino Salinas10
na sín-
tese apresentada na tabela a seguir:
TABELA 1 – MODELOS DE PROVAS
Formato Definição Utilidades Dificuldades Orientações
Prova
escrita de
ensaio
(com
resposta
livre
ou
orientada)
Poucas pergun-
tas (temas a
serem desen-
volvidos); re-
quer organiza-
ção de idéias
num discurso
coerente.
Permite avaliar
a construção do
discurso lógico
do aluno; per-
mite que este
exponha infor-
mações, opini-
ões e avaliações
sobre os conte-
údos.
Disponibilidade
de tempo para
sua correção;
uma má for-
mulação de
seu enunciado
abre margem
para a subjeti-
vidade de cri-
térios de cor-
reção.
Apresentar a
prova por es-
crito (sem ditá-
la); explicitar
claramente o
tipo de raciocí-
nio que se
demanda (des-
crever, analisar,
comparar),
esclarecer quais
critérios foram
utilizados na
correção, paci-
ência na
correção.
9 SALINAS, Dino. Prova amanhã! A avaliação entre a teoria e a realidade. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 90.
10 Idem, p. 98-114.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 131
Prova de
respostas
breves
Demanda uma
definição, uma
descrição ou
argumentação
de poucas li-
nhas.
Pode abranger
conteúdos mais
amplos; são
úteis para com-
provar a memo-
rização e, tam-
bém, à aplica-
ção de um pro-
cedimento.
Dificuldade na
elaboração de
questões que
permitam res-
postas breves,
mas que per-
mitam verificar
aprendizagem
além da me-
morização;
formulação de
questões pou-
co representa-
tivas do con-
junto a ser
avaliado.
Apresentar a
prova por es-
crito; enuncia-
do familiar,
utilizando do
léxico das
aulas (ou tex-
tos); a corre-
ção deve es-
clarecer os
problemas das
respostas.
Prova
objetiva de
verdadeiro-
falso
Exige que o
estudante opte
entre duas al-
ternativas ex-
cludentes.
Constituída por
um amplo re-
pertório de
perguntas ou
itens cujas res-
postas são de-
limitadas. Bus-
ca-se objetivi-
dade na avalia-
ção.
Exige conhe-
cimentos de
baixa comple-
xidade cogniti-
va; simplifica
os conteúdos ,
reduzindo-os a
“falsos” ou
“verdadeiros
O conteúdo da
questão deve
ser relevante; a
formulação
deve ser curta,
sem ambigui-
dades e com
apenas uma
idéia; certifi-
car-se de que
há apenas uma
resposta pos-
sível.
Prova obje-
tiva de múl-
tipla esco-
lha
Propõe-se um
enunciado e um
conjunto de
opções de res-
postas. Geral-
mente uma é
verdadeira e as
demais são
falsas.
Constituída por
um amplo re-
pertório de
perguntas ou
itens cujas res-
postas são de-
limitadas. Bus-
ca-se objetivi-
dade na avalia-
ção.
Exige conhe-
cimentos de
baixa comple-
xidade cogniti-
va; simplifica
os conteúdos ,
reduzindo-os a
“falsos” ou
“verdadeiros”.
O enunciado
deve conter a
parte principal
da pergunta;
as questões
falsas devem
ser verossí-
meis; evitar
pistas que
permitam res-
ponder a partir
de procedi-
mentos lógicos
132 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
ou do senso
comum; exclu-
ir alternativas
como “todas as
anteriores” ou
“nenhuma das
anteriores”.
Prova
objetiva de
relação de
pares
Propõe-se o
estabelecimento
de relações
entre elementos
que se encon-
tram distribuí-
dos em duas
colunas.
Conteúdos que
visam a classifi-
cação, estabe-
lecimento de
relações podem
ser melhor ava-
liados por meio
deste instru-
mento.
Se mal utiliza-
da, pode per-
mitir que uma
resposta seja
dada por meio
do uso da lógi-
ca, por exclu-
são.
O conteúdo da
pergunta deve
ser relevante;
aconselha-se o
uso de distra-
tores, isto é,
que uma colu-
na tenha mais
elementos do
que a outra;
explicar com
clareza as
bases sobre as
quais se as-
sentam a rela-
ção solicitada.
FONTE: SALINAS, Dino. Prova amanhã! A avaliação entre a teoria e a realida-
de. Porto Alegre: Artmed, 2004.
Evidentemente que a tabela contempla modelos ideais, “tipos puros”.
Em nosso cotidiano fazemos uso de diferentes estratégias, que devem ser
adequadas aos objetivos que pretendemos atingir quando avaliamos. Por
exemplo, há momentos em que a objetividade se faz necessária. Não porque
demanda menos tempo para correção, mas porque se deseja avaliar o que o
aluno de fato conseguiu apropriar de conhecimentos. Os Exames Finais são
um bom exemplo disso.
Há também a possibilidade de uso de adaptações dos modelos. Por
exemplo, numa prova de verdadeiro ou falso, pode se exigir que o aluno
explique porque as questões são falsas. Nesse caso não se trata apenas de
um exercício de identificação, mas também de argumentação. A questão
continua sendo objetiva, com a diferença de que, nesse caso, a margem para
“chutes” fica minimizada. Neste caso, diferentemente do que apregoam os
livros sobre avaliação, creio que a proporção de questões falsas deve ser
maior (70%), para que o aluno veja-se obrigado a pensar sobre a prova. Isso
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 133
porque, especialmente se tratando de Exame Final, alguns simplesmente
identificam todas como verdadeiras, na esperança de um percentual de 50%
de acerto.
O trabalho do professor não se torna menos árduo porque passou por
uma reflexão sobre sua prática. Muitas vezes, pensar o fazer pedagógico
acarreta em ampliação de seu escopo de trabalho, pois significa a superação
da condição de mero “transmissor” de conhecimento.
(...) Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício edu-cativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substancialmente formar.
11
E é nesse sentido que a avaliação deve ser encarada, como constituinte
desse processo de formação, sob pena de, ao negar-lhe essa vocação, redu-
zi-la a uma prática formal, classificatória e, sobretudo, excludente.
11
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. 24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.37.
134 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:Paz e Ter-
ra,1987.
_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa.
24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico-profissional: desafios
neste fim de século. In: SILVA, L.H. (Org.) Novos mapas culturais, novas
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liação da aprendizagem no ensino de História. Curitiba: IBPEX, 2007.
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Alegre: Artmed, 2004.
VASCONCELOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudan-
ça (por uma práxis transformadora). 4.ed. São Paulo: Libertad, 1998.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 135
Fernanda Busanello Ferreira Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo. Advogada. Mestre
em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná/PR.
Sociologicamente, três autores se destacaram na análise da sociedade
contemporânea ao investigar a concepção de risco e suas consequências
sociais, especialmente no que tange ao âmbito decisional. Ulrich Beck e An-
thony Giddens justificaram a sociedade atual como uma sociedade produtora
de novos riscos e destacaram seu papel no controle e previsibilidade destes.
Já Niklas Luhmann introduziu uma importante diferenciação entre o conceito
de risco e perigo, tendo destacado a impossibilidade de escolha por uma
decisão segura. A observação dos principais pontos das teorias de tais auto-
res é o objeto desse artigo.
Palavras-chave: Risco; Perigo; Teorias Sociológicas
O sociólogo Ulrich Beck tematiza sobre a emergência da “sociedade de
risco”, expressão essa que o consagra e torna o tema um grande referencial
nos dias de hoje. O respaldo de sua teoria é basicamente a degradação am-
biental e seu potencial para conseqüências catastróficas. O grande diferenci-
al de seus escritos é justamente o fato de colocar “as origens e conseqüên-
136 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
cias da degradação ambiental no centro de uma teoria da sociedade moder-
na” 1.
Sua tese é a de que ao transformar o meio-ambiente para gerar produ-
ção, a sociedade acabou produzindo algo inimaginável e imperceptível: aca-
bou produzindo a socialização das destruições da natureza2. Isso significa
que a própria sociedade industrial produziu suas ameaças e se auto-
transformou em sociedade de risco. Para Beck, somos testemunhas (sujeito e
objeto) de uma fratura dentro da modernidade, a qual se desprende dos
contornos da sociedade industrial clássica e embala uma nova figura: a da
“sociedade industrial de risco” (grifo do autor)3.
A observação de Beck é que no lugar do sistema axiológico da socie-
dade desigual entra o sistema axiológico da sociedade insegura. Evidencia-
se, na concepção do autor, a passagem da sociedade diferenciada em classes
para a sociedade de risco, ou seja, a sociedade industrial foi marcada pela
diferenciação trabalhador/empregador, ou do que pode ser colhido da obra
maior de Marx, pela antinomia capital/trabalho.
Em suma, nesse tipo de sociedade, os ricos (capitalistas, donos do
meio de produção) não estavam expostos ao perigo; ao contrário das classes
pobres (operários), cujas condições de vida e trabalho eram precárias. No
entanto, “a degradação ameaça de igual modo o capital e o trabalho”4. As
novas frentes de conflito ultrapassam essa antiga fronteira e mais uma vez o
exemplo ambiental faz-se importante. Conforme satiriza Beck: “a miséria é
hierárquica, o smog é democrático” 5(grifo do autor).
Ademais, os problemas de risco são ambivalentes, pois se reproduzem
junto às decisões e aos pontos de vista tomados na avaliação das decisões
numa sociedade plural. Justamente por isso o risco não pode simplesmente
ser relacionado com as questões de ordem, ou seja, os problemas ambiva-
lentes de risco trazem de volta o reinado da incerteza (onde a ordem não
tem vez).
Por outro lado, diante da imprevisão e da desordem, torna-se necessá-
rio repensar uma nova maneira de agir que aceite e ambivalência6. A crise
das ficções da segurança da sociedade industrial implica na aceitação da
incerteza como experiência básica, pois não se pode reivindicar soluções
definitivas. No entanto, denuncia Beck que:
1 GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 228 2 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p.13 3 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 179 4 GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 235. 5 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p. 42 6 BAUMANN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 74
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 137
enquanto esses desenvolvimentos forem vistos em contraposição ao ho-rizonte conceitual da sociedade industrial, e, portanto, como efeitos ne-gativos de ação aparentemente responsável e calculável, seus efeitos de destruição do sistema permanecerão irreconhecíveis. Suas conseqüên-cias sistemáticas aparecem apenas nos conceitos e na perspectiva da sociedade de riscos, e somente então elas nos tornam conscientes da necessidade de uma nova autodeterminação reflexiva
7.
Ou seja, embora haja questões latentes originadas pela dinâmica social
de risco no sistema jurídico, há ainda uma grande contradição no cenário
atual, pois a sociedade ainda toma decisões e realiza ações segundo o pa-
drão da velha sociedade industrial8. Nesse sentido dá-se o desafio da socie-
dade de risco, que é uma sociedade de autocriação, de ação nova, devendo
“inventar” tudo9.
Para Beck a sociedade global dos riscos é observada como uma socie-
dade de riscos inasseguráveis10
, sendo que a própria sociedade industrial
produziu suas ameaças e se auto-transformou em sociedade de risco11
. As-
sim, decorre do desenvolvimento da sociedade moderna a produção de ris-
cos políticos, ecológicos e individuais que escapam, devido à sua proporção,
ao controle e proteção das instituições existentes12
.
O risco, para Beck, “é o enfoque moderno da previsão e do controle das
conseqüências futuras da ação humana, as diversas conseqüências não de-
sejadas da modernização radicalizada”13
. Ele contém um componente futuro
e não se esgota em conseqüências e danos já provocados, tendo também
relação com as destruições intermitentes, que ainda não ocorreram. Em su-
ma, para Beck, “os riscos apresentam algo de irreal, pois são ao mesmo tem-
po reais e irreais”. Sua parte real corresponde aos danos já concretizados;
sua parte irreal corresponde ao “impulso social do argumento do risco que
reside na proteção de ameaças para o futuro”14
(grifo do autor).
Isso significa que, de um modo geral, a centralidade da consciência do
risco não se encontra tanto no presente, mas no futuro. Na sociedade atual,
o passado perde a força de determinar o presente. Em seu lugar, aparece
7 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria de modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 19. 8 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 80 9 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria de modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 34. 10 As armas de destruição massiva, a ameaça da bomba nuclear, de um vazamento em uma Usina Nuclear não poderiam ser compensada em termos de prêmios de seguros. 11 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p.13 12 BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del riesgo. In. BAUMAN, Z.; BECK, U.; GIDDENS, A.; LUH-MANN, N. Las consecuencias perversas de la modernidad. Barcelona: Anthropos, 1996. 13 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno, 2002. p. 5. 14 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998.
138 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
como ‘causa’ da vivência e da atuação presentes o futuro, quer dizer, algo
que não existe, construído, fictício.
A sociedade industrial, segundo BECK, produziu seus próprios perigos
que viajam com o vento (nuvem atômica), com a água (chuva ácida) e colo-
cam em crise as fronteiras tradicionais de proteção (especialmente a dos
Estados-Nacionais)15
. Todavia, para BECK os riscos dependem das decisões
e, em princípio, podem ser controlados; já o perigo escapa ou neutraliza os
requisitos de controle da sociedade industrial.
Verifica-se que essa nova forma de sociedade caracteriza-se pela dis-
tribuição dos males, pela impossibilidade de se compensar pelo sistema de
cálculos de risco os danos causados e pela impossibilidade de assegurar-se
frente à recessão global.
Outro importante expoente na concepção contemporânea de risco é
sem dúvida Anthony Giddens. Para Giddens, a idéia de risco acompanhou
toda a modernidade, mas assume agora novas proporções, pois se outrora o
risco ligava-se à regulação, normalização e domínio do futuro, na atualidade
todas as tentativas de controle do futuro voltam-se contra a própria socie-
dade16
.
Sua forma de entender o risco divide-se, dualmente, entre o risco ex-
terior e o risco provocado17
. A forma típica do risco exterior seria aquela ori-
ginada pela natureza, em suma, aquela que nos chega de fora; o risco pro-
vocado, por sua vez, resulta do impacto das criações tecnológicas sobre o
meio18
.
Segundo Giddens as primeiras relações com o risco eram derivadas da
lógica do risco exterior, isto é, a humanidade estava à mercê das influências
naturais. No entanto, há uma inversão de perspectiva que faz com que o
risco provocado pela humanidade adquira maior relevância. Isto porque a
sociedade atual interveio em todos os setores. Não é só o meio ambiente que
é afetado pela intervenção humana, também a família e as instituições foram
modificadas, de modo que os sujeitos dessa nova realidade terão de começar
do zero. Por esses motivos, o futuro passa a ser cada vez mais aberto do que
o passado e disso decorrem grandes incertezas, mas também oportunida-
des19
.
15 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno, 2002. p. 49 16 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 35 17 FLORIANI, Dimas. Conhecimento, Meio Ambiente & Globalização. Curitiba: Juruá, 2004. p. 66 18 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 35 19 GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 93
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 139
Há um acréscimo de risco à medida que o homem aprimora o risco
provocado e justamente devido à novidade desses riscos não se pode en-
frentá-lo a partir de premissas de certeza. Exemplificando: as vítimas de
Chernobil e da vaca louca não são ainda conhecidas, nem as suas conse-
qüências. Outro exemplo controverso é o do aquecimento global: derivaria
esse do risco provocado?
Resumidamente, Giddens pontua que os riscos rotineiros da nova soci-
edade não possuem manual de instrução. Por essa razão, entra-se na era
dos adeptos do princípio de precaução, que implicaria na tomada de medi-
das de proteção, mesmo não existindo provas do dano efetivo, a mera hipó-
tese deve ser atacada, impedindo que o risco gerasse efeitos no mundo.
Assim, a questão de gestão dos riscos passaria a ser problema e tema
para a sociedade como um todo: tanto os Estados (inclusive e principalmente
a partir de ações integradas), como os indivíduos não podem ignorar os no-
vos riscos. Os Estados devem gerir em conjunto, pois os riscos da moderni-
dade tardia não esbarram nas fronteiras político-tradicionais. Da mesma
forma, os indivíduos, ao escolher enquanto consumidores o que desejam
ingerir, estão participando do processo de decisão sobre os riscos que se
deseja manter ou não.
Em suma, Giddens destaca a necessidade de se encarar o risco como
algo positivo, a necessidade da aceitação do risco para que se possa geri-lo.
Fala sobre a ousadia quanto à mudança e acredita no risco como a mola pro-
pulsora de uma sociedade inovadora20
.
Percebe-se que Beck concentra-se na escala coletiva, enquanto Gid-
dens procura de forma mais significativa a interlocução entre a coletiva e a
individual.
A noção de risco, para Giddens, só faz sentido se utilizada numa pers-
pectiva de futuro, ou seja, numa sociedade orientada para o futuro, no senti-
do de ver o amanhã como terreno a ser conquistado. O risco implicaria a
existência de uma sociedade desligada do passado, teria essa característica
positiva de impulsionar a mudança.
A teoria sistêmica contemporânea, luhmanniana, advém denunciando a
esterilidade das ideias de controle e segurança, transformando, mais uma
vez, a concepção de risco. Passa-se de uma ideia de controle e racionalidade
para uma era de incerteza e probabilidades.
Para a formulação de sua teoria dos sistemas, Luhmann parte da cons-
tatação de que a sociedade contemporânea é profundamente complexa e
20 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 40
140 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
contingente e funcionalmente diferenciada21. Nesse sentido, por complexi-
dade quer-se dizer que “sempre existem mais possibilidades do que se pode
realizar” 22. Isto é, por complexidade, entende-se tudo aquilo que é um ex-
cesso de possibilidades; ou, em termos práticos, significa seleção forçada. Já
por contingência, “entendemos o fato de que as possibilidades apontadas
para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas” 23. Em
suma, contingência indica a possibilidade de que um dado seja diferente
daquilo que é. Significa risco.
O conceito de risco dado por Luhmann implica no reconhecimento de
que as decisões condicionam as possibilidades de danos futuros, ainda que
não se saiba de que modo este processo ocorra.
Segundo Luhmann é impossível uma decisão ser tomada num contexto
de oposição risco/segurança. A única oposição existente é entre risco e peri-
go. Nesta senda, o risco associa-se ao processo decisório e o perigo asso-
cia-se a não participação no processo decisório. Veja-se o exemplo do fu-
mante: ao decidir por fumar, o fumanente passa a submeter-se às conse-
quências de sua escolha, ainda que ninguém possa precisar, com certeza, se
ele, por exemplo, terá ou não um efizema pulmonar, câncer ou impotência
sexual. Isto significa que a decisão por fumar é contingencial. Da mesma
forma, optando por não fumar, nada garante que o não-fumante não terá
efizema pulmonar, câncer ou impotência sexual. A decisão por não fumar
também é contigencial. Por outro lado, o perigo ocorre quando uma pessoa
que não participou no processo decisório sofre as consequências da decisão
tomada por outra pessoa que não si próprio. Assim, o fumante passivo está
submetido ao perigo e não ao risco, já que a escolha de outrem afetará a sua
vida, sem que tenha havido uma decisão pessoal do agente. Risco implica
decisão, perigo implica estar suscetível à decisão de outrem, significa não ter
podido decidir e arriscar-se.
Isto significa que a tomada de decisão no presente condiciona o que
acontecerá no futuro e que tais decisões deverão ser tomadas sem existir
uma certeza sobre o que de fato ocorrerá. Afinal, a negação da aceitação dos
riscos é em si mesma um fator arriscado (grifo nosso).
Nesta perspectiva, o processo de decisão sempre será contingencial
(devido a sua seletividade) e, portanto, implicará risco. Isto significa que a
decisão tomada pode não ser a correta, mas ela alivia a contingência. Desta
forma, não há como decidir optando pelo lado seguro, porque a segurança
21 Como refere LUHMANN “definimos o conceito de sociedade moderna através da forma da diferenciação da sociedade; assim mantemos o conceito como algo distinto das descrições que até os dias de hoje se dispo-nibiliza na sociedade moderna para a compreensão de sua específica particularidade”. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona: Anthropos, 1998, p. 339. 22 LUHMANN, Niklas. Sociologia...Op. cit. p. 45. 23 Idem.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 141
não existe (ou existe apenas como ficção operativa do sistema). Como apon-
ta Luhmann:
é impossível que existam situações nas quais se possa – ou inclusive, que se tenha que – eleger entre risco e segurança, entre uma alternativa arriscada e outra segura. Este problema nos obriga a ajustar mais preci-samente nossa conceitualização. Como frequência se afirma tal possibi-lidade eletiva. A alternativa aparentemente segura implica então a dupla segurança de que não surja nenhum dano e de que se perca a oportuni-dade que possivelmente poderia realizar-se por meio da variável arris-cada. Sem dúvida, este argumento é enganoso, posto que a oportunida-de perdida não era, em si mesma, nenhuma coisa segura.
24
Nesta linha de raciocínio não se pode mais falar em decisão segura,
pois os acontecimentos sociais são provocados por decisões contingentes
(poderiam ser de outra forma). Entende Rocha que “o risco é um evento ge-
neralizado da comunicação, sendo uma reflexão sobre as possibilidades de
decisão. A sociedade moderna possui condições de controlar as indetermi-
nações, ao mesmo tempo que não cessa de produzi-las. Isto gera ao ‘para-
doxo’ na comunicação”.25
O risco é entendido, no âmbito da teoria sistemista como uma “aquisi-
ção evolutiva do tratamento das contingências que, se exclui toda a segu-
rança, exclui também todo o destino” 26
. Desta forma, todo ato decisório será
gravado de risco27
. Mesmo a decisão intencional de evitar o risco pode se
converter em risco, ou seja, a possibilidade pode converter-se em dano e
este ônus está presente em toda decisão28
(grifo nosso).
A decisão, assim, passa a ser vista num plano pragmático-sistêmico
como um processo complexo, caracterizado pelo risco, ou seja, que deve
absorver a insegurança. Como refere Ferraz Jr.29
:
absorção de insegurança significa, pois, que o ato de decidir transforma incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, ainda que, num momento subsequente, venha a gerar novas situações de incompa-tibilidade eventualmente até mais complexas que as anteriores. Absor-ção de insegurança, portanto, nada tem a ver com a ideia mais tradicio-nal de obtenção de harmonia e consenso, como se em toda decisão ti-vesse em jogo a possibilidade e eliminar-se o conflito. Ao contrário, se o conflito é incompatibilidade que exige decisão é porque ele não pode ser dissolvido, não pode acabar, pois então não precisaríamos de deci-
24 LUHMANN, Niklas. Sociología del...Op. cit. p. 64 25 ROCHA, Leonel. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leo-nel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Op. cit. p. 36 26 DE GEORGI, Rafaelle. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998. p. 198. 27 SCHWARTZ, Germano. O tratamento…Op. cit. p. 151 28 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Op. cit. p. 142 29 Ibidem. p. 313
142 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
são, mas de simples opção que já estava, desde sempre, implícita entre as alternativas. Decisões, portanto, absorvem insegurança, não porque eliminem o conflito, mas porque o transformam.
A assimilação do risco é deveras importante nos dias atuais em que a
sociedade aumentou sua necessidade de decidir sobre o seu futuro, em que
ela se tornou reflexiva. A reflexividade permite à sociedade se auto observar
de modo que “o temor de que algo saia mal tem aumentado e com ele se
aumenta o risco que se atribui às decisões” 30
.
Isso significa que Luhmann ao incorporar a variável risco como típica
da sociedade complexa contemporânea percebe o futuro não mais como
algo exterior à sociedade, nem como certeza derivada das decisões, mas
considera-o em termos de probabilidade e improbabilidade, como aponta
Luhmann31:
é somente com essa mudança (de enxergar o futuro como probabilida-de/improbabilidade) que se cria a oportunidade para compromissos presentes. Pode-se somente fazer uma decisão arriscada – ou sentar e esperar. E a forma do risco significa que esperar também é uma decisão arriscada.
Os danos futuros podem ou não ocorrer. O futuro está aberto e é in-
certo, todavia os futuros presentes serão determinados de maneira desejável
ou indesejável, mas não se sabe neste momento como ocorrerão, como ex-
plica Luhmann, “podemos, sem dúvida, saber agora que nós mesmos e ou-
tros observadores saberão no futuro presente qual é o caso e que julgarão
sobre este de modo diferente do que fazemos no presente”32. Conquanto
talvez isto não ocorra de maneira unânime.
O risco entra em questão quando se verifica que, paradoxalmente, o
que possa ocorrer no futuro depende das decisões tomadas no presente.
Nessa perspectiva, a contingência é percebida como um valor próprio da
sociedade moderna, estando, indiscutivelmente, relacionada com a ideia de
risco. Não existe decisão segura, isenta de risco.
Como aludido, os riscos, numa concepção luhmanniana, são entendi-
dos como uma forma de descrição presente do futuro, isto é, tendo em conta
os riscos é possível optar entre as alternativas possíveis. Em suma, o risco
implica aceitação de que a forma do futuro é a forma da probabilidade33.
Não é possível definir qual decisão é melhor. Não existe uma decisão
segura. Não há seguro quanto ao futuro. Decidimos no presente, mas o fu-
30 LUHMANN, Niklas. Sociología del…Op. cit. p.40 31 LUHMANN, Niklas. Risk: a sociologial theory. New York: Aldine de Gruyter, 1993. p. 72. 32 LUHMANN, Niklas. Sociología del...Op. Cit. p. 59. 33 LUHMANN, Niklas. Observaciones de la modernidad: racionalidade y contingencia en la sociedad mo-derna. México: Paidós, 1997. p. 131
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 143
turo continuará incontrolável. Toda decisão é arriscada, incontrolável quanto
a seus efeitos futuros.
Enquanto BECK e GIDDENS compreendem o risco em oposição à ideia
de segurança, Luhmann34 estabelece o risco em oposição ao perigo35, colo-
cando a segurança como uma ficção operativa do sistema. Assim, a noção de
segurança deixa de ser algo delimitável e passa-se a observar que todo pro-
cesso de decisão é contingente. Essa visão aponta para o leque de opções
abertas ao futuro quando se coloca o risco como ponto reflexivo das deci-
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34 LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Iberoamericana, 1992. p. 65 35 Como explica Rocha “a diferença entre risco e perigo está ligada à possibilidade ou não da tomada de decisões. Por exemplo, um motorista de automóvel corre risco ao dirigi-lo numa auto-estrada, já o passageiro corre perigo. O motorista decide as manobras a serem executadas, e o carona apenas observa”. ROCHA, Leonel Severo. Análise pragmático-sistêmica e teoria do direito. In Revista Faculdade de Direito. N. 11. Caxias do Sul: UCS, 2000. p. 56
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Guilherme Roman Borges Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP (2007/2011). Bolsista doutoral anual do governo brasileiro na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma
Philosophías - Universidade de Patras – Grécia (2008). Pesquisador-Bolsista junto ao Max Planck Institut für europäische Rechtsgeschichte de Frankfurt – Alemanha (2010 e 2011). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut für ausländisches und internationales
Strafrecht de Freiburg – Alemanha (2010). Pesquisador-Visitante Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Bologna – Itália (2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre em Direito do Estado na UFPR (2005). Graduado em Direito na UFPR
(1998/2002). Ex-Professor Adjunto de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal Substituto – TRF3 (2011).
A estrutura da relação saber-poder em Michel Foucault diz respeito ao
modo como a doença mental, o louco, e, por conseguinte, o inimputável e o
criminoso foram vistos pela humanidade, sobretudo nos seus reflexos jurídi-
cos, isto é, como o saber médico, psiquiátrico, psicanalítico e jurídico e a
governamentalidade foram capazes de construir o binômio normal-
patológico na sociedde; porque razões, através de que modelos espaciais e
científicos, para que fins, foi objetivado demarcar e separar radicalmente a
tênue linha entre a loucura e normalidade; eis o que se pretende investigar
nas próximas linhas dentro do pensamento foucaultiano.
A doença mental e a questão da loucura foi amplamente refletida por
Foucault, tanto em seus artigos, entrevistas, quanto em seus primeiros tra-
balhos institulados Maladie Mentale et Psychologie e Histoire de La Folie à
L’Âge Classique. Trata-se de um tema central nos primeiros anos de vida
acadêmica de Foucault, enquanto tinha sua formação essencialmente na área
da psicologia, que vai se transformar lentamente na problemática do encar-
146 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
cerado, e, por fim, na potencialidade normalizadora do poder, tanto nos ci-
dadãos pelo Estado em suas condutas, quanto nos homens em sua sexuali-
dade, como visto acima. Em Maladie Mentale et Psychologie, Foucault realiza,
após uma radical transformação em sua pesquisa anterior Maladie Mentale et
Personnalité, um estudo estrutural e perspectivo da doença mental, anali-
sando as suas dimensões psicológicas, isto é, seus aspectos evolucionistas,
individualistas e existenciais, e sua configuração como elemento cultural,
bem com sua posição dentro da história da humanidade, ensaiando, ainda, a
possibilidade de uma futura fuga à psicologização do ser humano e das do-
enças mentais, através de uma postura que compreendesse a patologia em
sua estrutura global. Nesse sentido, entende Foucault que um erro fatal
ocorria anteriormente no estudo das doenças mentais, isto é, o seu posicio-
namento igualitário às doenças orgânicas. A partir do conceito de totalidade
orgânica, essa “metapatologia”, que se caracterizava por ser geral e abstrata,
equiparava a medicina mental à medicina orgânica, de tal modo que, utili-
zando-se de uma mesma sintomatologia e de uma mesma nosografia (estu-
do das próprias formas da doença; descrição de suas fases e de sua evolu-
ção; observação de suas variantes; análise de suas manifestações episódicas
e da alternância de sintomas e suas evoluções), procurava encontrar a rela-
ção entre a causa orgânica e a psicológica da doença, com vistas à compre-
ensão e apreensão de seus sintomas, sua evolução, seus efeitos, suas varia-
ções, suas curas, etc. Dentro dessa concepção, destaca Foucault as orienta-
ções de Bleuler e de Kraepelin, que procuravam, a partir de um conceito abs-
trato de doença orgânica, manifestado como uma entidade específica indica-
da pelos sintomas,1 conferir à doença mental um privilégio à existência de
uma unidade real, isto é, um privilégio às reações globais dos indivíduos.
Nesse sentido, com base numa patologia mental abstrata, fundada nas res-
postas globais do organismo atacado, Foucault afirma que as doenças men-
tais seriam alterações intrínsecas da personalidade, ou melhor, desorganiza-
ções internas de suas estruturas, caracterizadas por um desvio progressivo
de seu desenvolvimento. É por essa razão, que, então, as doenças mentais se
classificavam somente em neuroses e psicoses, dada a amplitude das per-
turbações da personalidade. As psicoses eram perturbações da personalida-
de global, engendrando um distúrbio do pensamento, por vezes maníaco e
esquizofrênico (porque salta e ultrapassa os intermediários) e uma alteração
geral da vida afetiva e do controle da consciência. Por sua vez, as neuroses
atacavam não a globalidade, mas um setor da personalidade, caracterizando
o indivíduo acometido por ritualismos, angústias, fobias, mas conservando a
sua lucidez crítica com relação a seus fenômenos mórbidos.2 Com base nes-
sa dúplice divisão, as doenças mentais da psicose e da neurose, que englo-
1 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 12. 2 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 15.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 147
bavam assim, as síndromes paranóides, hebefrênicas, e catatônicas, bem
como a psicastenia, a histeria e a obsessão tinham como elemento central,
no qual se desenvolvia a doença, a personalidade, que reunia, em si, a totali-
dade e a unidade do domínio do corpo, equiparando-as à patologia orgâni-
ca.
Todavia, afirma Foucault, que a partir da interpretação de Goldstein
em 1933, tendo como base a síndrome neurológica da afasia, recusando,
assim, as explicações orgânicas da existência de uma lesão local, bem como
as interpretações psicológicas por um déficit global da inteligência, é que se
procurou separar a patologia mental da patologia orgânica. Aprouve-se, en-
tão, a partir de Goldstein, demonstrar que a patologia mental exigia métodos
de análise e estruturas lógicas diferentes da patologia orgânica, e a sua rela-
ção, antes imperiosa, só seria possível por um artifício de linguagem.3
Essa diferenciação teve seu fundamento em três recortes epistemológi-
cos distintos: a abstração, o binômio normalidade/patologia, e o binômio
doente/meio. Primeiro, no que tange à abstração, consoante Foucault, a me-
dicina orgânica permite que se considere a totalidade material do indivíduo,
isto é, a anatomia e a fisiologia possibilitam a realização de abstrações sobre
o fundo da totalidade orgânica, a fim de tanto compreender elementos isola-
dos, quanto elementos inseridos no conjunto, ao compasso que a medicina
mental, através da psicologia, não obteve o mesmo êxito em demonstrar,
através de um estudo delimitado do distúrbio, a totalidade da doença que
afeta a personalidade. Deste modo, o âmbito de abstração exige especifica-
ções e amplitude distintas. Segundo, no que se refere à relação entre o nor-
mal e o patológico, destaca Foucault que a diferenciação entre esses dois
parâmetros, no universo da patologia orgânica se dá, na grande maioria das
vezes, de maneira nítida, separando-se claramente os fatos anormais das
reações adaptativas de um organismo funcionando segundo a sua norma,
enquanto que, na patologia mental, a passagem dessa linha se demonstra
sempre muito tênue, tornando difícil demonstrar a ruptura do contato com a
realidade produzida pela doença mental. Por fim, no que diz respeito à cor-
relação entre o doente e o louco, Foucault afirma que o doente mental não
pode receber um tratamento similar ao doente orgânico, pois cada patologia
mental exige que seja tratada sendo observadas as particularidades de cada
caso clínico, ao contrário dos doentes orgânicos, que, diagnosticada a mes-
ma doença, permitem o mesmo tratamento, assim, afirma que “a dialética
das relações do indivíduo e seu meio não se faz, então, no mesmo estilo em
fisiologia patológica e em psicologia patológica.”4
A partir dessas três ordens de diferenciação, em que se refuta, por-
tanto, a existência de uma metapatologia, desligando-se quaisquer relações
3 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 17. 4 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 20.
148 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
entre a doença orgânica e a mental, já que a unidade seria meramente teóri-
ca, lingüística, estimativa e artificial, entende Foucault que a doença mental
deveria ser sempre refletida sob suas dimensões psicológicas, para a real
compreensão do doente mental, ou, ao que aqui interessa, do louco. Essas
dimensões seriam, portanto, a doença e seu aspecto evolutivo, a doença e
sua relação de passado e presente, e a doença como fenômeno material.
Na primeira dimensão, sob um plexo evolutivo, argumenta Foucault
que a partir de uma análise da doença como fato de evolução da personali-
dade, é que se pode compreender, em parte, a doença mental, isto é, a partir
de uma investigação sobre o indivíduo adoentado, procura-se identificar no
seu regresso à fase evolutiva os sintomas e as causas remotas de sua pato-
logia, a fim de compreender as suas reais especificidades. Desse modo, des-
taca Foucault que todo doente mental tem suas funções primárias abolidas,
deixando um vazio funcional, no qual aparecem reações exageradas e vio-
lentas, destacando caracteres de automatismos de repetição, interiorização
da linguagem, monólogos desordenados e fragmentários, ausência de coe-
rência espaço-temporal, e substituição das funções complexas, instáveis e
voluntárias, por funções simples, estáveis e automáticas.5 Percebe-se, con-
soante as leituras foucaultianas, um contexto em que o indivíduo mental-
mente acometido apresenta sinais de regresso a tempos arcaicos, quer dizer,
à vida infantil, em que as sublimações, o controle das emoções, e o contato
da realidade se tornam frágeis e de difícil consecução. É, portanto, a partir
de um estudo do caráter evolutivo da doença, procurando-se demonstrar na
vida inicial possíveis eventos causadores da patologia mental, que se eviden-
cia, segundo Foucault, a importância de se refletir a doença mental em seu
aspecto evolutivo. Tal reflexão está presente na obra foucaultina, principal-
mente, através de sua análise sobre a neuropatologia e psicopatologia de
Jackson, bem como das teorizações sobre a evolução das neuroses de Freud,
e dos ensinamentos sociológicos de Janet.
Em Jackson, Foucault aborda a questão da evolução como forma de se
atingir o fato patológico, interpretando a loucura como elemento que coloca
temporária ou permanentemente fora de funcionamento uma parte dos cen-
tros cerebrais superiores. Com Freud, Foucault procura fazer uma arqueolo-
gia da história da libido no desenvolvimento do indivíduo6 a fim de conseguir
chegar às origens particulares da neurose. Segundo as concepções freudia-
nas interpretadas por Foucault, todas as pessoas passariam por quatro fases
principais em sua evolução da libido, que, para compreender o fenômeno
neurótico eventualmente no indivíduo, deveriam ser analisadas, quais sejam:
a fase do erotismo bucal, em que a criança procura os alimentos como forma
de prazer no seio da mãe e obtém suas primeiras frustrações; a fase ou o
5 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 25. 6 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 29.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 149
estágio sádico-anal, que se caracteriza pela disciplina esfincteriana, em que
a presença paterna sob sua forma repressiva e sua relação com o mundo
começam a aparecer e sofrer limites; a fase do espelho, que marca o reco-
nhecimento do indivíduo na sua experiência com o corpo próprio, e a identi-
ficação do narcisismo como figura central na estrutura da sexualidade para o
descobrimento do corpo como objeto sexual; e a fase da escolha objetal ou
do complexo de Édipo, que se caracteriza pela fixação heterossexual, numa
identificação com o pai do mesmo sexo, e na relação de ciúme e erotismo
pelo desejo irresoluto da mãe. É a partir dessa arqueologia da libido, que
Foucault afirma ter Freud contribuído para a compreensão do aspecto evolu-
tivo da doença mental, em especial, das neuroses, já que, na grande maioria
das vezes, tem sua causa em momentos infantis, perdidas em uma dessas
fases descritas. Por fim, defende Foucault uma perspectiva evolucionista da
doença mental, a partir das lições de Janet, em que a doença se demonstra
como uma queda de energia psicológica hábil a impedir os homens de ter
um convívio social, marcando o regresso de comportamentos sociais primiti-
vos, uma vez que o diálogo, o universo do simbólico, passa a ser destituído
de seu centro, e em seus lugares surgem patologias da crença, em que o
critério social da verdade (o que todos crêem) deixa de ter sentido para o
doente mental. Entretanto, entende Foucault que quaisquer perspectivas
estruturais e descritivas que se adotem, dentro desse eixo evolutivo, nenhu-
ma é capaz de apreender o fenômeno patológico por si só, exigindo que se
analise outra dimensão psicológica da doença mental, qual seja, a individua-
lista.
Nesse compasso, acredita Foucault que a sua melhor compreensão se
dá através de uma análise da relação entre passado e presente na história
individual da doença mental, isto é, apenas pelo enlace desses dois momen-
tos, é que a compreensão do “devir psicológico” poderia ser concretizada,
permitindo uma historiografia da patologia dentro de sua individualidade, a
fim de explicar seus diversos fenômenos e suas mais remotas causas. A par-
tir desse relato historiográfico da doença mental no tempo, verifica Foucault
que seria possível compreender como determinadas neuroses e paranóias
teriam suas origens traumáticas e suas fixações ocorridas em momentos
anteriores na vida individual, na infância, na adolescência ou na juventude. É
a partir do deslocamento do passado para o presente, que a partir da teoria
freudiana, Foucault acredita ser possível descobrir os verdadeiros sentidos
de uma doença mental, haja vista que os medos e as angústias estariam
sempre “regressando” ao presente, fazendo com que o indivíduo criasse me-
canismos atuais de defesa contra seu próprio passado e seu próprio presen-
te, numa espécie de círculo vicioso do devir psicológico.7 Todavia, somente
com a compreensão das dimensões entre o anterior e o posterior, ou mesmo
7 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 51.
150 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
entre o passado e o presente, a doença mental não adquiriria sua eficácia
argumentativa e explicativa, haja vista que restaria interpretar a dimensão
psicológica existencial da patologia, isto é, compreender a própria manifes-
tação isolada da doença mental.
Nessa linha, uma terceira perspectiva psicológica se abre para as teori-
as foucaultianas, que diz respeito à manifestação existencial da doença
mental, ou seja, para compreendê-la seria indispensável analisar o fato pa-
tológico não exclusivamente em seu âmbito estrutural, mas especialmente
buscar apreender a totalidade da doença na situação histórica do homem.
Nessa interpretação, afirma Foucault: “... não basta dizer que o mêdo da cri-
ança é a causa das fobias no adolescente, mas é preciso reencontrar, sob
êste aspecto originário e sob êstes sintomas mórbidos, o mesmo estilo de
angústia que lhes confere sua unidade significativa.”8 Para Foucault, a partir
das teorizações de Minkowski e de Binswanger,9 tendo com base uma meto-
dologia fenomenológica, é indispensável penetrar na própria existência da
doença, compreender suas fases, suas faces, e, em especial, o modo como o
próprio indivíduo acometido é capaz de interpretar o seu estado mórbido,
isto é, o modo como ele aceita e recusa a doença mental em suas fugas tem-
porais, haja vista que haveria sempre um momento em que o doente, apesar
das subtrações que a doença impõe, compreenderia o conjunto dos sinais
histéricos, hipocondríacos e os sintomas psicossomáticos freqüentes em seu
estado de doente mental, em suma, haveria sempre uma espécie de consci-
ência da doença. “A doença mental, quaisquer que sejam suas formas, os
graus de obnubilação que comporta, implica sempre numa consciência da
doença; o universo mórbido não é jamais um absoluto no qual se aboliriam
todas as referências ao normal; pelo contrário, a consciência doente desdo-
bra-se sempre, por si mesma, numa dupla referência, quer ao normal e ao
patológico, quer ao familiar e ao estranho, seja ainda ao singular e ao uni-
versal, seja, finalmente, à vigília e ao onirismo.”10
A partir da reflexão das dimensões da doença, Foucault também de-
senvolve em seus ensaios a necessidade de se repensar a doença mental em
direção ao modo através do qual o conceito de louco foi efetivado pela hu-
manidade, em especial, através da existência de uma ciência objetiva e sin-
gular. Nesse sentido, então, Foucault entende que, para melhor compreender
este processo que resulta na completa exclusão do louco e a manifestação
de soberania da razão em relação à desrazão, necessário é visualizar a lou-
cura sob dois aspectos fundamentais, quais sejam: a loucura como objeto
cultural, e a loucura na sua constituição ao longo da história (recorte esse
8 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 56. 9 Nesse sentido, veja-se a introdução feita por Michel Foucault para o livro Traum und Existenz de Biswanger em 1954 em: FOUCAULT, Michel. Introduction à Biswanger. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994, p. 65-119. 10 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 61.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 151
que permite Foucault fazer a relação entre a maioria de seus escritos de sua
primeira fase, enquanto se dedicava incessantemente à psicologia e seus
escritos posteriores, que encontra guarida em suas concepções historiográfi-
cas e filosóficas).
Nesse sentido, em Maladie Mentale et Psychologie Foucault lança três
questionamentos essenciais que parecem resumir o sentido finalístico de
suas pesquisas seqüenciais e o objeto de pesquisa que procura: “Não há na
doença todo um núcleo de significações que releva do domínio no qual ela
apareceu – e inicialmente o simples fato de que ela aí é caracterizada como
doença?”11; mais adiante salienta: “Como chegou nossa cultura a dar à doen-
ça o sentido do desvio, e ao doente um status que o exclui?”12 e acrescenta
“Como, apesar disso, nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas
quais recusa reconhecer-se?”13
O primeiro questionamento é enfrentado por Foucault em dois mo-
mento principais nas linhas de Maladie Mentale et Psychologie e Histoire de
la Folie. Segundo as concepções foucaultianas, indispensável é investigar
como o conceito de anormalidade e loucura foram vistos na história da civili-
zação como elementos culturais, isto é, para Foucault a constituição do con-
ceito de louco está intimamente relacionada à própria formação cultural da
humanidade, referido em cada particularidade, quer dizer, em cada comuni-
dade e em cada sociedade a partir da experiência comum e do julgamento
com base em valores únicos e historicizados, conforme o estágio civilizatório
em que se encontrassem os seus membros. Nesse sentido, afirma: “ ... o que
há de positivo e de real na doença, tal como se apresenta numa sociedade.
Há, de fato, doenças que são reconhecidas como tais, e que têm, no interior
de um grupo, status e função; o patológico não é mais então, em relação ao
tipo cultural, um simples desvio; é um dos elementos e uma das manifesta-
ções deste tipo.”14 Assim, Foucault conclui que a doença, antes de ser um
elemento exclusivo da psicologia ou da psicanálise, é um fenômeno cultural,
preso aos padrões de cada época, de cada sociedade e de cada estado evo-
lutivo.15 Nesse sentido, Hubert Lepargneur entende que é preciso ver em
Foucault a loucura antes como cultura que fato natural, isto é, a doença
11 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 69. 12 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 74. 13 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 74. 14 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 73. 15 FOUCAULT, Michel. La folie et la société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 130. “Dans tous ces cas (travail, sexualité, famille, langage, parole, jeux et fêtes), ceux qui sont exclus diffèrent d’un domaine à l’autre, mais il arrive que la même personne soit exclue dans tous les domaines: c’est le fou. Dans toutes les sociétés ou presque, le fou est exclu en toute chose et, suivant les cas, il se voit accorder un statut religieux, magique, ludique ou pathologique.” [trad. do autor. “Em todos esses casos (trabalho, sexualidade, família, linguagem, palavra, jogos e festas), os que são excluídos distinta-mente de um domínio ao outro são os loucos. Em todas as sociedades ou quase todas, o louco é excluído em todas as coisas e, de acordo com o caso, ele se vê concordar com um estatuto religioso, mágico, lúdico ou patológico.”]
152 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
mental precisa ser vista como sendo ligada a um sistema de práticas, isto é,
todo um conjunto de dispositivos de uma determinada cultura, de formas de
organização da rede médica, de um sistema de detecção e profilaxia, de
formas de assistências e distribuição de cuidados, “critérios de cura, defini-
ção da incapacidade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal; em
resumo, todo um conjunto que define, numa cultura dada, a vida concreta do
louco. (...) a loucura é um fenômeno cultural, muito mais do que fisiológi-
co.”16
O segundo e o terceiro questionamentos, que dizem respeito ao modo
como a cultura excluiu o desviante, procuram ser respondidos por Foucault
através de uma análise da formação e da constituição histórica do conceito
de louco. Afirma Foucault, que somente numa época recente é que o Oci-
dente deu à loucura um status de doença mental, isto é, somente com o sur-
gimento de uma medicina positiva é que o louco saiu de sua condição de
“possuído” para ingressar no campo das patologias mentais,17 quer dizer,
tornou-se ‘doente mental’, em razão da obra da Psiquiatria, o monólogo da
razão sobre a loucura. Para a historiografia psiquiátrica tradicional, o louco
da era medieval e do renascimento eram considerados doentes ignorados,
em especial pelas malhas do poder religioso, que lhe impunham significa-
ções e classificações místicas. Desse modo, a história dos loucos não diz
respeito à própria cientificidade, como se quisera sempre afirmar, mas, antes
disso, constitui uma história das idéias religiosas. Foucault ressalta, por
exemplo, que a própria Igreja católica teve duas formas bem distintas de
relacionamento com a loucura, sempre com vistas à manutenção de seu po-
der régio e social: num primeiro momento, procurou a interferência da me-
dicina, por volta de 1560 a 1640, a pedido dos parlamentos, dos governos e
das hierarquias eclesiásticas, para prosseguir com as Inquisições, compro-
vando que os loucos eram, na verdade, pessoas que através de suas imagi-
nações desregradas demonstravam pactos e ritos diabólicos, que precisavam
ser contidos e excluídos; num segundo instante, por volta de 1680 a 1740,
quando houvera a explosão do misticismo protestante e jansenista, em vir-
tude das perseguições do final do reinado de Luís XIV, novamente tornou a
Igreja católica a procurar a medicina, convocando inúmeros médicos para
demonstrar, então, que todos os atos e movimentos violentos dos humores
dos espíritos eram, na verdade, manifestações do êxtase, da inspiração, do
profetismo, da possessão pelo Espírito-Santo.18
A partir dessa interpretação, afirma Foucault que o nascimento do
“olhar” da medicina positivista esteve, inicial e lateralmente, ligado ao episó-
16 LEPARGNEUR, Hubert. Introdução aos ..., p. 76 e 78. 17 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 75. 18 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 76.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 153
dio histórico recente19 das malhas do poder das autoridades reais e eclesiás-
ticas, razão pela qual o louco foi, desse modo, permeado na sua configura-
ção por tais tramas. Nessa perspectiva, a loucura, enquanto fenômeno cultu-
ral, apresenta-se sob diversas formas, ora de maneira restritiva, em que se
buscava internar os doentes mentais, sem qualquer preocupação médica,
mas exclusivamente como forma de enjaular os furiosos para interná-lo,
demonstrando-se invisíveis aos olhares comuns; ora de modo amplo e aber-
to, na Idade Média, visível a todos e às manifestações culturais. A partir do
século XV, e por todo o Renascimento, a loucura se transforma num ponto
essencial de linguagem, e tal como a morte, precisa ser retratada, para que
todos a temessem. Nesse sentido, inúmeras obras literárias, artísticas e ma-
nifestações festivas são produzidas a fim de não fazer a loucura calar, como:
A Dança Macabra, no cemitério dos Inocentes, o Triunfo da Morte dos muros
de Campo Santo de Pisa, bem como as cotidianas festas dos loucos, o Navio
Azul em Flandres, a Nave dos Loucos, de Bosch, a Margot a Louca de
Breughel, a Stultifera Navis de Brant ou mesmo o Elogio da Loucura de Eras-
mo de Roterdam. É nessa orientação que muitos escritos trarão a loucura
como tema central, sobretudo Shakespeare e Cervantes.20
Esse período se caracteriza, como afirma Foucault, pela existência das
Naus dos Loucos, isto é, antes da loucura ser colocada no centro dos inter-
namentos em substituição aos leprosários como forma de exclusão, foi ela
posta diante dos olhares distantes das famílias, mas não sob a forma do en-
clausuramento, e sim, através de barcas destinadas a carregar os loucos para
fora da cidade, como forma de purificação. Annie Guedez claramente se per-
gunta: “Não seria o primeiro passo de nossa sociedade para o ‘grande aprisi-
onamento’?”21 Certamente que sim. A Stultifera Navis, tanto retratada nas
obras artísticas, como se vê na Narrenschiff de Brant, em 1947, constituía-se
num ‘dispositivo’, inicialmente imaginário, mas que ganhou sua concretude
nas paisagens européias da época, para realizar o anseio social de, ao mes-
mo tempo, retirar de vista os furiosos que ameaçavam a paz pública, e fazer
com que esses ‘errantes’ pudessem encontrar no horizonte suas próprias
verdades e seus destinos. Eram barcos loucos, que deslizavam ao longo dos
calmos rios da Renânia e dos canais de flamengos, destinados a levar a carga
insana de uma cidade para a outra. Barcos que, ao invés de confiar os loucos
e os criminosos a celas de retenção, para que se encontrassem com o divino,
confiava-os aos marinheiros, para que fossem excluídos da vida familiar, e,
como verdadeiros e míticos heróis, tal a disposição de Baluwe Schute de Ja-
cob Van Oestvoren de 1943, fossem levados prisioneiros de suas próprias
ações e de seus próprios rumos.
19 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. “A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também.” 20 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 77. 21 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 17.
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Retratadas tantas vezes, além de Oestvoren, mas por Josse Bade em
sua Stultiferae naviculae scaphae fatuarum mulierum, e por Sumphorien
Champier em sua Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza ou Nau das
Damas Virtuosas, do começo do séc. XVI, estas naus do desatino se resumi-
am no objetivo primordial de torná-los prisioneiros de sua própria partida,
isto é, ao levar-lhes de um lugar incerto a outro nenhum, fazê-los prisionei-
ros no interior do exterior, prendê-los em sua própria passagem, retirar-
lhes de circulação, eis as palavras poéticas de Foucault: “.. confiar o louco
aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinida-
mente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é
torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a
massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que
isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza
da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é,
potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua
barca louca, é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta na-
vegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem abso-
luta. Num certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma
geografia semi-real, semi-imaginária, a situação liminar do louco no hori-
zonte das preocupações do homem medieval – situação simbólica e realizada
ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas
da cidade; sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter ou-
tra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. (...) É um
prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente
acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o
Prisioneiro da passagem (...) Sua única verdade e sua única pátria são essa
extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.”22 Além da
existência das naus, a loucura antes de ser simplesmente excluída, era liber-
ta aos discursos poéticos e artísticos, representando tantas vezes uma forma
geral de crítica, isto é, através das farsas e das tramas que envolviam perso-
nagens loucos, fosse o Bobo, o Simplório. Igualmente se manifestava a lou-
cura, através das Festas e das Danças dos loucos, realizadas, sobretudo, na
22 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 22-23. “... confier le fou à des marins, c’est éviter à coup sûr qu’il ne rôde indéfiniment sous les murs de la ville, c’est s’assurer qu’il ira loin, c’est le rendre prisonnier de son propre départ. Mais à cela, l’eau ajoute la masse obscure de ses propres valeurs; elle emporte, mais elle fait plus, elle purifie; et puis la navigation livre l’homme à l’incertitude du sort; là chacun est confié à son propre destin, tout embarquement est, en puissance le dernier. C’est vers l’autre monde que part le fou sur as folle nacelle; c’est de l’autre monde qu’il vient quand il débarque. Cette navigation du fou c’est à la fois le partage rigoureux, et l’absolu Passage. Elle ne fait, en un sens, que développer, tout au long d’une géographie mi-réelle, mi-imaginaire, la situation liminaire du fou à l’horizon du souce de l’homme médiéval – situation symbolisée et réalisée à la fois par le privilège qui est donné au fou d’être enfermé aux portes de la ville: son exclusion doit l’enclore; s’il ne peut et ne doit avoir d’autre prison que le seuil lui-même, on le retient sur le lieu du passage. (...) Il est prisonnier au milieu de la plus libre, de la plus ouverte des routes: solidement enchaîné à l’infini carrefour. Il est le Passager par excellence, c’est-à-dire le prisonnier du passage (...) Il n’a sa vérité et sa patrie que dans cette étendue inféconde entre deux terres qui ne peuvent lui appartenir.” [trad. br. História da loucura ..., p. 11-12.]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 155
região de Flandres e no Norte da Europa, a ver-se nas sátiras de Corroz Con-
tre Fol Amour e de Louse Labé Débat de Folie et D’Amour, a pintura de Jerô-
nimo Bosch A Cura da Loucura e a Nau dos Loucos, a de Brueghel Dulle Gre-
te, as danças dos mortos na música, e, especialmente, na obra Bosch Nau
dos Loucos e de Erasmo de Roterdam, O Elogio da Loucura, apesar da sutil
diferença existente entre estas duas últimas visões da loucura, ora como
punição cósmica do saber, ora no relacionamento do homem consigo. Nesse
sentido, pode-se afirmar que a loucura na época das naus, tão próxima da
morte, do nada, em continuação ao mal da lepra, representa um dos estágios
colocados na hierarquia dos vícios, quer dizer, é colocada como um espetá-
culo a ser reconhecido satiricamente pelos homens. Nasce, nesse período, o
que Foucault chama de uma “consciência crítica da loucura”, isto é, um con-
fronto entre a consciência crítica e a experiência trágica da loucura, que pos-
teriormente com os internamentos desaparece, salvo nas ricas obras de Ni-
etzsche, Van Gogh e Artaud.
No mesmo compasso que a loucura passa a ser posta em discurso, em
linguagem, demonstrando o relapso dos estudos sobre os loucos, então me-
ra manifestação artística, surgem, ainda por volta do séc. XV, os primeiros
estabelecimentos reservados aos loucos, nos quais estes eram submetidos a
rígidos tratamentos, especialmente na Espanha, em Saragossa, e na Itália.
Todavia, apesar da existência incipiente desses internamentos, o louco con-
tinuou a fazer parte da experiência cotidiana, circulando pelas peças de tea-
tro e pelas ruas das cidades. É nesse contexto que surgem, enfim, já no séc.
XVII os grandes internamentos como forma de exclusão, criando-se por toda
a Europa estabelecimentos comuns, chamados de “casas de internamento”
(as Workhouses na Inglaterra, as Zuchthäusern na Alemanha, o agrupamento
dos hospitais franceses de Salpêtrière e Bicêtre em torno do Hôpital Général,
etc.),23 destinados a inúmeros indivíduos, que não só os loucos, como os
pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos,
os portadores de doenças venéreas, os libertinos de toda espécie, as pessoas
a quem a família ou o poder real queria evitar um castigo público, os pais de
família dissipadores, os eclesiásticos em infração, em suma, como bem ex-
pressou Annie Guedez, no mesmo ano da publicação de Histoire de la Folie,
os “espelhos deformantes” da sociedade.24 Tratam-se de estabelecimentos,
segundo Foucault, sem qualquer vocação médica,25 cujo único objetivo se
caracteriza na exclusão, quer dizer, retirar dos olhos da população o acome-
tido pela loucura. Nestes lugares, procura-se, quando possível, submeter os
doentes e os excluídos a regimes de trabalho forçado a preços baixos, para
que incitem desde o início o espírito do capitalismo, que na época reinava, e
23 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 53. [trad. br. História da loucura ..., p. 48.] 24 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 19. 25 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 79.
156 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
que tanto Weber já afirmara, como visto acima. É, por isso, que certamente
os primeiros internamentos se deram na Inglaterra, berço da sociedade in-
dustrial, que precisava colocar nos espaços vagos da lepra outro elemento de
exclusão. Por essa razão, as casas de internamentos se convertiam em ver-
dadeiros mecanismos de reestruturação do espaço social, a partir da exclu-
são dos que estivessem fora do padrão de conduta, em suma, fora do mer-
cado de trabalho, como bem ressalta Annie Guedez: “é também quando se
desenvolve a ideologia da produtividade que a marginalização e a anormali-
dade se definem em relação aos modos de produção e que a loucura é, em
primeiro lugar, uma forma de improdutividade.”26 Eis as palavras de Fou-
cault: “A exclusão a que são condenados está na razão direta desta incapaci-
dade e indica o aparecimento no mundo moderno de um corte que não exis-
tia antes. O internamento foi então ligado nas suas origens e no seu sentido
primordial a esta reestruturação do espaço social.”27
A época clássica começa a nascer, e o louco é gradativamente excluído,
assim como tantos outros, pela razão da sociedade. Considerado um erro
descartiano a loucura é uma espécie de ofuscamento e de perturbação da
razão por “negros vapores da bílis,”28 isto é, o sujeito que erra é louco, e
deve ser excluído por aquele que duvida. Foi com o renascimento que a lou-
cura se separou da razão, constituindo, tal a visão de Descartes, como uma
imaginação, retirando, então, dos loucos o seu direito à palavra. Para excluí-
la, são criadas por toda Europa essas casas de internamento, como se vê
com o Hôpital Général surgido no dia 07 de maio de 1757, que a partir do
Édito Real, substituiu os leprosários, na função maior de retirar dos olhos da
sociedade os vagabundos, pobres, desempregados, correcionários e até os
insanos.29 Convém observar que, a criação do Hôpital Général, e seus inter-
namentos, e posteriormente a libertação dos acorrentados de Bicêtre, em
1794, com o advento do saber psiquiátrico, são certamente, dentro da obra
de Foucault, os dois momentos mais importantes na construção da separa-
ção da loucura e da razão. Retornando, naquele sentido, afirma Foucault que
com o internamento, “a experiência clássica da loucura nasce. A grande
ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietan-
tes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas for-
mas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevi-
tável cortejo da razão. A loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do
homem e da morte, uma figura escatológica; a noite na qual ela tinha os
olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O esque-
cimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não
26 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 20. 27 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 79. 28 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 49. [trad. br. História da loucura ..., p. 45.] 29 FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 533-534.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 157
irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca
mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no
meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca,
porém o hospital.”30
Destaca Foucault que essas casas de internamento, a ver-se pelo Hôpi-
tal Général, não eram casas para tratamento da doença ou do corpo, mas
verdadeiros instrumentos do monarca para controlar esse contingente ‘des-
regrado’ e ‘anômico’. Dessa maneira, pode-se dizer que os estabelecimentos
destinados ao internamento não detinham somente apenas poderes admi-
nistrativos burocráticos e policiais, porém especialmente poderes judiciários
em relação a esses excluídos, aptos a julgar, condenar, executar e fiscalizar
o cumprimento das penas impostas. Diante das crises econômicas que asso-
lavam a Europa, em especial do desemprego e da miséria, que permitirá mais
tarde uma ideologia protestante do capitalismo fulgurar, os internamentos
representam verdadeiros mecanismos de poder destinados a reconduzir a
inutilidade social ao trabalho, devolvendo aos loucos a sua sanidade. Mas ao
mesmo tempo em que o internamento vai lentamente se restringindo aos
loucos, que serão abordados pelo olhar médico do final do séc. XVIII, res-
tringe-se a punir todos aqueles que estavam distantes do comportamento
modal da sociedade. Eis as palavras de Foucault: “o Hospital Geral não é um
estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de
entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos
tribunais, decide, julga e executa. Soberania quase absoluta, jurisdição sem
apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer – o Hos-
pital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justi-
ça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão (...) É uma instância da
ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa
mesma época.”31
Nessas casas administrativas, médicas (saliente-se que o médico so-
mente era requisitado em casos extremos de fúria nessa época) e judiciais de
30 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 50. “L’expérience classique de la folie naît. La grande menace montée à l’horizon du XVe siècle s’atténue, les pouvoirs inquiétants qui habitaient la peinture de Bosch ont perdu leur violence. Des formes subsistent, maintenant transparentes et dociles, formant cortège, l’inévitable cortège de la raison. La folie a cessé d’être, aux confins du monde, de l’homme et de la morte, une figure d’eschatologie; cette nuit s’est dissipée sur laquelle elle avait les yeux fixés et d’où nais-saient les formes de l’impossible. L’oubli tombe sur le monde que sillonnait le libre esclavage de sa Nef: elle n’ira plus d’un en-deça du monde à un au-delà, dans son étrange passage; elle ne sera plus jamais cette fuyante et absolue limite. La voilà amarrée, solidement, au milieu des choses et des gens. Retenue et maintenue. Non plus barque mais hôpital.” [trad. br. História da loucura ..., p. 42.] 31 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 56. “l’Hôpital général n’est pas un établissement médical. Il est plutôt une structure semi-juridique, une sorte d’entité administrative qui, à côté des pouvoirs déjà constitués, et en dehors des tribunaux, décide, juge et exécute. Souveraineté quasi absolue, juridiction sans appel, droit d’exécution contre lequel rien ne peut prévaloir – l’Hôpital général est un étrange pouvoir que le roi établit entre la police et la justice, aux limites de la loi: le tiers-ordre de la répression. Il est une instance de l’ordre, de l’ordre monarqchique et bourgeois qui s’organise en France à cette même époque.” [trad. br. História da loucura ..., p. 50.]
158 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
internamento, adota-se uma terapêutica singular de tratamento de loucos e
pobres, ingressando a medicina a incorporar o tratamento moral e, servindo,
de certa maneira, aos ideais da Igreja católica para insculpir o sagrado na
espiritualidade de cada doente. Apesar do que se possa imaginar, a Igreja
não esteve de fora desses internamentos, ainda que subsumidas ao poder
real: “Ainda que tenha deliberadamente ficado à margem da organização dos
hospitais gerais – sem dúvida, de cumplicidade entre o poder real e a bur-
guesia – a Igreja, no entanto, não permanece estranha ao movimento. Ela
reforma suas instituições hospitalares, redistribui os bens de suas funda-
ções; cria mesmo congregações que se propõem a finalidades análogas às
dos hospitais gerais.”32
Essa terapêutica se caracteriza por uma série de procedimentos médi-
cos e administrativos que se destinavam, à época da ‘grande internação’, a
estruturar uma forma de vigilância dos loucos, que mais tarde se estenderá
às prisões e para além da loucura a toda a sociedade (como se percebe na
interpretação do panóptico que Foucault, analisando Bentham, descreve em
Surveiller et Punir). Seu objetivo, segundo Pierre Billouet, traduz-se em fazer
da loucura um não-ser, um conteúdo essencialmente negativo.33 A partir da
classificação das doenças do espírito, reinante na época, em frenesi, mania,
melancolia e imbecilidade, segundo a interpretação de Doublet, os interna-
mentos possuíam uma estrutura rígida, e não dispensavam a formas de tra-
balho e culto como ortopedia social de medicamento. Em busca de seu obje-
tivo fatal, isolar para excluir, cujo gesto não se restringe a uma significação
mais simples, mas à tentações políticas, sociais, religiosas, econômicas e
morais, os internamentos se demonstravam como obra de religião e de or-
dem pública, mas, especialmente, de punição e ‘normalização’ dos corpos
indóceis,34 eis o que Foucault tão bem ressalta no capítulo do Mundo Corre-
cional de Histoire de la Folie, ao caracterizar o aspecto correcional dos inter-
namentos, com vista à associação entre a sociedade e o aparato policial.
Nesse sentido, uma série de caminhos lógicos e coordenados eram estabele-
cidos para o tratamento dos loucos na era clássica, eis o que Foucault traz
acostado à segunda edição de seu manuscrito de Histoire de la Folie, ao res-
gatar os regulamentos do Hôpital Général e da Maison de Saint-Louis de la
Salpêtrière: a) os horários: 5h era dado o toque de despertar, em seguida, os
32 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 58. “Même si elle a été assez délibéré-ment tenue à l’écart de l’organisation des hôpitaux généraux – de complicité sans doute entre le pouvoir royal et la bourgeosie – l’Église pourtant ne demeure pas étrangère au mouvement. Elle réforme ses institutions hospitalières, redistribue les biens de ses fondations; elle crée même des congrégations qui se proposent des buts assez analogues à ceux de l’Hôpital Général” [trad. br. História da loucura ..., p. 51.] 33 BILLOUET, Pierre. Figures du ..., p. 29-30. 34 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 59. “Les grands hospices, les maisons d’internement, oeuvres de religion et d’ordre public, de secours et de punition, de charité et de prévoyance gouvernementale sont un fait de l’âge classique ...” [trad. br. História da loucura ..., p. 53. “Os grandes hospí-cios, as casas de internamento, obras de religião e de ordem pública, de auxílio e punição, caridade e previ-dência governamental são um fato da era clássica...”]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 159
oficiais, as oficiais, os domésticos, e todos os pobres deveriam se levantar,
salvo os enfermos e as crianças com menos de 5 anos – ia-se à missa, e,
após, começavam os trabalhos até às 6h, quando novamente se faziam ora-
ções e se fechavam em seus dormitórios; b) plano de trabalho: era indispen-
sável que nesses locais existisse um ar puro e que a água fosse salubre, bem
como era preciso que se praticassem passeios – haveria um departamento
dividido em vários corpos de alojamento, tendo cada um pátio, etc.; c) medi-
camentos: para o frenesi, por ser a doença menos difícil de curar dentre as
afecções do cérebro, utilizavam-se sangrias, purgantes, e, se necessário,
raspavam-se as cabeças e as umedecia – para a mania, banhos e duchas –
para a melancolia, tisanas leves, soro e banhos tépidos – e para a imbecilida-
de, infusão com aguardente, banhos frios e duchas.35
Enfim, os internamentos, na análise foucaultiana, a partir de toda essa
disposição do saber sobre a loucura e de uma terapêutica excludente da ra-
zão como não-ser, servem como instituições morais, isto é, não são meros
refúgios para aqueles que assim necessitam, mas instituições destinadas a
castigar e corrigir esses indivíduos considerados laboral e socialmente inú-
teis; servem como forma de ascese, lugar de coação moral, e, desta maneira,
determinam um novo estatuto da experiência da loucura em relação à alta e
à baixa Idade Média. Assim, muito bem sintetiza Foucault: “A internação é
uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início,
uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como
esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução
social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa
um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte
social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de
integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos
problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a impor-
tância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados
determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o senti-
do.”36
Com o surgimento das casas de internamento, um fenômeno significa-
tivo passa a nascer, quer dizer, a loucura, antes solta, pública e loquaz, res-
tringe-se então em seus espaços arquitetônicos, excluída, ingressando num
35 FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 536-540.] 36 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 80. “L’internement est une création institutionnelle propre au XVIIe siècle. Il a pris d’emblée une ampleur qui ne lui laisse aucune commune dimension avec l’emprisionnement tel qu’on pouvait le pratiquer au Moyen Âge. Comme mesure économique et précaution sociale, il a valeur d’invention. Mais dans l’histoire de la déraison, il désigne une événement décisif: le moment où la folie est perçue sur l’horizon social de la pauvreté, de l’incapacité au travail, de l’impossibilité de s’intégrer au groupe; le moment où elle commence à former texte avec les problèmes de la cité. Les nouvelles significations que l’on prête à la pauvreté, l’importance donnée à l’obligation du travail, et toutes les valeurs éthiques qui lui sont liées déterminent de loin l’expérience qu’on fait de la folie en infléchis-sent le sens.” [trad. br. História da loucura ..., p. 78.]
160 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
tempo de silêncio, sendo despojada de sua linguagem por um vasto tempo,
até que Freud, já no séc. XX, abriu espaço para a razão e a desrazão se co-
municassem. Nesse sentido, afirma Foucault em maio de 1964: “... a loucura
é a língua do excluído – , aquele que, contra o código da língua, pronuncia
palavras sem significações (os ‘insensatos’, os ‘imbecis’, os ‘dementes’), ou
aquele que pronuncia palavras sacralizadas (‘os violentos’, os ‘furiosos’), ou
aquele ainda que faz passar significações proibidas (os ‘libertinos’, os ‘tei-
mosos’). Essa repressão da loucura como palavra proibida.”37 Esse período
de internamento, em que a loucura é calada, fez surgir concomitantemente
um acontecimento extraordinário, que foi a aproximação da loucura com
outros parentescos, isto é, com os doentes venéreos, os pobres, os liberti-
nos, os idosos, os criminosos, etc. É, pois, nesse ínterim que os loucos e os
criminosos se tocam, a ver-se pelos aportes realizados entre os loucos e os
criminosos passionais,38 numa relação que conservará, de certo modo, ao
menos do ponto de vista de um poder de normalização, uma relação indis-
pensável, como se verá adiante.
No entanto, o internamento não tem sua duração muito estável, e tam-
pouco consegue atingir seus objetivos, isto é, manter especialmente a loucu-
ra silenciosa,39 de tal maneira que, a partir da metade do século XVIII, a in-
quietude renasce pelo medo de que todos passam a ter em relação às suas
estruturas, haja vista a deturpação de sua idéia tradicional de assistência, e o
louco retorna às paisagens públicas, restituindo, assim, a antiga liberdade à
loucura. “Bruscamente, em alguns anos no meio do século XVIII, surge um
medo. Medo que se formula em termos médicos mas que é animado, no
fundo, por todo um mito moral. Assusta-se com um mal muito misterioso
que se espalhava, diz-se, a partir das casas de internamento e logo ameaça-
ria as cidades. Fala-se em febre de prisão...”40 Nesse sentido, interpreta Fou-
cault, que as casas de internamento não simplesmente assumem o lugar da
lepra na exclusão, mas a colocam diante da própria cidade. Os internamen-
tos se transformam em verdadeiros espaços de punição e controle social,
37 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence d’œuvre. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994, p. 417. “... la folie, c’est le langage exclu –, celui que, contre le code de la langue, prononce des paroles sans signification (les ‘insensées’, les ‘imbéciles’, les ‘déments’), ou celui qui prononce des paroles sacralisées (‘les violents’, les ‘furieux’), ou celui encore qui fait passer des significations interdites (les ‘libertins’, les ‘entêtés’). Cette répression de la folie comme parole interdite.” [trad. do autor.] 38 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. “Não nos espantemos que se tenha desde o século XVIII descoberto uma espécie de filiação entre a loucura e todos os ‘crimes de amor’, que a loucura tenha-se torna-do, a partir do século XIX, a herdeira dos crimes que encontram, nela, ao mesmo tempo sua razão de serem, e de não serem crimes; que a loucura tenha descoberto no século XX, em seu próprio centro, um núcleo primiti-vo de culpa e de egressão.” 39 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. 40 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 204-205. “Brusquement, en quelques années au milieu du XVIIIe siècle, surgit une peur. Peur qui se formule en termes médicaux, mais qui est animée au fond par tout un mythe moral. On s’effraye d’un mal assez mystérieux qui se répandrait, dit-on, à partir des maisons d’internement et menacerait bientôt les villes. On parle des fièvres des prisons...” [trad. br. História da loucura ..., p. 353.]
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carregando consigo, segundo a leitura foucaultiana, todos os males e as de-
turpações existentes na época do contágio da lepra. Nessa perspectiva, atra-
vés de uma linguagem poética, Foucault argumenta que o mal da lepra, en-
terrados sob a pavimentação dos internamentos, vem novamente à tona, e se
espalha por toda a cidade, mas não sob a forma contagiosa da doença orgâ-
nica, mas sob a forma do desatino, que toma os espaços e liberta a loucura
na sua linguagem: “... o mal entra em fermentação nos espaços fechados do
internamento. Tem todas as virtudes atribuídas ao ácido na química do sé-
culo XVIII: suas finas partículas, cortantes como agulhas, penetram nos cor-
pos e nos corações tão facilmente como se fossem partículas alcalinas, pas-
sivas e firáveis. Essa mistura logo entra em ebulição, soltando vapores noci-
vos e líquidos corrosivos. Esses vapores ferventes elevam-se a seguir, espa-
lham-se pelo ar e acabam por cair nas vizinhanças, impregnando os corpos,
contaminando as almas (...) o círculo está fechado: todas essas formas do
desatino que haviam ocupado, na geografia do mal, o lugar da lepra e que se
havia banido para bem longe das distâncias sociais, tornaram-se agora lepra
visível, e exibem suas chagas comidas à promiscuidade dos homens”41 (essa
é, certamente, segundo Foucault, a primeira das causas de reforma ocorrida
na segunda metade do século XVIII: reduzir a contaminação, destruindo as
impurezas e os vapores, impedindo que o mal se dissipe).
O grande medo da loucura retoma seu lugar na problemática do século
XVIII, antes resolvido com os internamentos, de conseqüência, a loucura en-
tra num novo ciclo, separa-se do desatino (que se dedica a partir de então à
experiência poética ou filosófica, como em Sade, Hölderlin, Nerval e Nietzs-
che), e se tranforma, numa visão médico-positivista, meramente fisiológica,
naturalista e anti-histórica, que permite o homem encontrar sua verdade
imediata. A loucura, segundo Foucault, retorna à discussão, faz o desatino
falar as velhas obsessões, e se desprende dos internamentos, que, consegui-
ram, por certo tempo, mantê-la enclausurada. Nesse sentido, aquém do me-
do da loucura, o retorno dos loucos às ruas é marcado pelos ideais políticos
dos reformadores, uma espécie de luta contra a opressão e o anti-
assistencialismo das casas de internamento. Ao mesmo tempo em que os
loucos são libertados de suas correntes de Bicêtre, como dissera Annie Gue-
dez, são feitos prisioneiros de um domínio científico, pois, classificados co-
mo ‘doente mentais’, são enclauruados num lugar privilegiado, espaço de
cura e terra de verdades.42 Entretanto, igualmente precisam ser contidos, a
41 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 206-207. “...le mal entre en fermentation dans les espaces clos de l’internement. Il a toutes les vertus qu’on prête à l’acide dans la chimie du XVIIIe siècle: ses fines particules, coupanes comme des aiguilles, pénètrent les corps et les coeurs aussi facilement que s’ils étaient des particules alcalines, passives et firables. Les mélange aussitôt bouillonne, dégageant vapeurs nocives et liquides corrosifs. Ces vapeurs brûlantes s’élèvent ensuite, se répandent dans l’air et finis-sent par retomber sur le voisinage, imprégnant les corps, contaminant les âmes.” [trad. br. História da loucu-ra..., p. 354-355.] 42 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 23.
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fim de que não se tornem verdadeiros perigos públicos, razão pela qual sur-
ge a idéia de imposição de uma sanção penal, aplicável tanto aos que deixam
errar os loucos e os animais perigosos. Nessa perspectiva, durante a Revolu-
ção Francesa e o império napoleônico, as casas de internamento acabam
sendo paulatinamente restringidas somente aos loucos, tornando, assim, o
internamento uma medida de caráter médico. É nesse momento que a loucu-
ra e desatino se consolidam na divisão. Esse período, de restrição dos esta-
belecimentos de internamento exclusivamente aos loucos, em especial pelas
contribuições de Philippe Pinel na França, de Willian Tuke na Inglaterra, e de
Wagnitz e Riel na Alemanha, marcam uma reviralvolta tanto em direção ao
humanismo, quanto em direção a uma ciência médica positiva. É o momento
em que o Ocidente efetivamente separa o senso do contra-senso, e surge,
com os ideais revolucionários, para fazer triunfar o princípio da liberdade, a
necessidade de se destacar a responsabilidade individual. Nesse compasso,
medicina e direito caminham juntos na exclusão do louco. Saber e práticas
se misturam nas malhas do poder.
Nessa época, surgem, portanto, concepções em torno de internamen-
tos ideais, isto é, de “asilos ideais”43, uma espécie de reconstrução da própria
família ao redor do alienado, sendo esse submetido imediatamente a um
controle social e moral ininterrupto. A partir dessa noção, a noção de “cura”
da doença mental passa pela idéia de reinculcar no indivíduo acometido os
sentimentos de dependência, humildade, culpa e reconhecimento, de conse-
qüência, surgem diversos modelos de cura, como privações alimentares,
humilhações, ameaças, castigos, mas todos se resumem na idéia de “vigilân-
cia moral” do louco: “... o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebai-
xado nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus
êrros: a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a
uma conduta normal. E isto sob a direção do médico que está encarregado
mais de um contrôle ético que de uma intervenção terapêutica. Êle é, no asi-
lo, o agente das sínteses morais.”44 Os asilos se tornam, portanto, novas
formas de exclusão no interior da anterior exclusão operada pelos interna-
mentos, mas então, sob os olhares de uma medicina positiva.
Todavia, ao mesmo tempo em que esses novos tratamentos do louco
aparecem, mantinham-se, ainda, sob o ponto de vista teórico, as mesmas
cartilhas médicas de estudos sobre a loucura, de tal modo que, a partir dos
estudos dos sintomas de uma metapatologia, procurava-se, assim, não dis-
tinguir tão claramente, já que o raciocínio cartesiano não havia atingido as
práticas médicas, os tratamentos psicológicos e os orgânicos ou físicos,
submetendo-se, inevitavelmente, os pacientes acometidos por doenças de
pele, por exemplo, e os esquizofrênicos a banhos de água fria, a fim de lhes
43 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 81. 44 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 82.
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resfriar o espírito e lhe impondo “impressões vivas para modificar o curso da
sua imaginação”.45 Com o passar dos anos, esses mecanismos que objetiva-
vam a cura, como as máquinas rotatórias e as gaiolas móveis, são substituí-
dos pela idéia de punição por erros eventualmente cometidos, tendo seus
usos restringidos. Portanto, a partir das práticas médicas da época de Pinel,
a loucura deixa de ser considerada um fenômeno global relativo, para se
tornar, nesse universo dos “asilos”, um “ato que concerne essencialmente à
alma”, isto é, um fato que precisa ser punido, para inculcar a culpa e a liber-
dade, razão pela qual adquire, assim, um status de doença mental sob o
ponto de vista científico. A loucura surge, desta maneira, enquanto fato a ser
estudado, ligada diretamente à existência de um sistema de valores e de
repressões morais, inserida num sistema punitivo, em que o louco passa a
ser equiparado à criança e os seus erros. Nesse sentido, afirma Michel Fou-
cault “.. toda esta psicologia não existiria sem o ‘sadismo moralizador’ no
qual a ‘filantropia’ do século XIX enclausurou-a, sob os modos hipócritas de
uma ‘liberação’.”46
O desatino, no início do séc. XIX, definitiviamente se distancia da lou-
cura, e se reserva a rotular os libertinos, como Sade, que faziam do corpo e
da sexualidade a linguagem de seus delírios.47 Separaram os alienados e os
insensatos, antes confusos na mentalidade do séc. XVIII. Dessa maneira, o
alienado seria aquele que havia perdido completamente a verdade, entregue
à ilusão de seus sentidos, enquanto o insensato, rescende sua loucura, e se
transforma numa razão pervertida, desviada em seus movimentos do espíri-
to. Portanto, a loucura, tal como ficara recôndita no internamento do séc.
XVII, isola-se no asilo e retoma a linguagem que havia conquistado no silên-
cio de sua clausura. É o momento em que humanitarismo da psiquiatria clás-
sica, que vai de Pinel a Bleuler ressente, provocando a reforma das institui-
ções e o destaque de Esquirol e da ciência da loucura. A loucura, portanto,
para ser compreendida pela ciência médica, ao mesmo tempo em que ganha
seu lugar, precisa ser afastada, e, esse lugar, certamente, é o lugar de seu
exílio. “O louco não é a primeira e a mais inocente vítima do internamento,
porém o mais obscuro e o mais visível, o mais insistente dos símbolos do
poder que interna.”48
Para Foucault, ao contrário do que o humanitarismo sempre havia pre-
gado, o deslocamento dos loucos encarcerados como criminosos para os
45 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 82. 46 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 84. 47 Nesse sentido, ver uma entrevista de Foucault, concedida a G. Dupont, em 1975: DUPONT, G. Sade, sergent du sexe. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 818-822.; e também um artigo de Eliane Moraes sobre a concepção foucaultiana de Sade: MORAES, Eliane Robert. Sade: uma proposta de leitura. Foucault Vivo (org. Ítalo Tronca) Campinas: Pontes, 1987, p. 43-52. 48 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 230. “Le fou n’est pas la primière et la plus innocente victime de l’internement, mais le plus obscur et le plus visible, les plus insistant des symboles de la puissance qui interne.” [trad. br. História da loucura ..., p. 396.]
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‘asilos ideais’, a fim de que a medicina lhes compusesse seus problemas, na
verdade, seria efeito de um fenômeno muito mais complexo, que só uma
consciência política do internamento é que poderia explicar. Nas orientações
foucaultianas, a libertação da loucura acorrentada como criminosa não teria
sido simples atenção filantrópica ou médica, mas, pelo contrário, a crítica
política dos anteriores internamentos que havia se estabelecido, tinha por
escopo maior a própria união entre a loucura e o internamento, num duplo
elo: “um fazia dela o próprio símbolo do poder que encerra e seu represen-
tante irrisório e obsedante no interior do mundo do internamento; o outro,
que a designava como o objeto por excelência de todas as medidas de inter-
namento.”49 A segunda metade do séc. XVIII, salienta Foucault, teria sido
marcada, desde a guerra dos sete anos, por uma crise imensa, advinda de
más colheitas, e do comércio, provocando desemprego e miséria. Os vintes
anos que precederam a Revolução, a qual tem esta como um de seus esto-
pins, é marcado por uma recessão abrupta, aumentando significativamente a
população das casas de internamento (poderoso instrumento sobre o merca-
do da mão-de-obra), razão política que jamais pode ser esquecida como
propulsor das teorias humanitárias de Pinel. Foucault entende que a forma-
ção dos asilos, e, conseqüentemente, a constituição de uma medicina positi-
va, só teria sido possível porque essa indesejada alteração econômica havia
acometido os horizontes mundiais do comércio, e internar a mão-de-obra,
tal como se fazia nas casas de internamento, seria um contra-senso, já que
deixá-la em plena liberdade, serviria a uma potencialidade de mão-de-obra
barata necessária para desenvolver as indústrias que começam a polular o
ambiente rural.
Essa consciência política da loucura, que pode ser encontrada em Fou-
cault, é melhor ressaltada pelo intelectual em seu livro Naissance de la Clini-
que, quando dois anos mais tarde à publicação de Folie et Désaison, como
visto, interpreta por uma arqueologia do olhar médico o nascimento dos
hospitais e da medicina positiva, como forma de reforma das práticas médi-
cas não simplesmente operada pelos ideais humanitários dos revolucioná-
rios, mas como fruto da própria reforma burocrática do Estado. Para Fou-
cault, o surgimento do hospital, a grosso modo, visto como tecnologia médi-
ca, é recente e marcado por uma ruptura essencial com a anterior forma de
medicina hospitalar existente no regime imperial. Nesse sentido, convém
trazer à lume uma conferência proferida por Foucault em outubro de 1974
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro intitulada L’Incorporation de
49 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 233. “l’un qui faisait d’elle le symbole même de la puissance qui enferme, et son représentant dérisoire et obsédant à l’intérieur du monde de l’internement; l’autre qui la désignait comme l’objet par excellence de toutes les mesures d’internement.” [trad. br. História da loucura ..., p. 399.]
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l’Hôpital dans la Technologie Moderne,50 quando afirma: “O hospital como
instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, uma vez que
data do final do séc. XVIII. É em torno de 1760 que apareceu a idéia de que o
hospital podia e devia ser um instrumento destinado a curar a doença. Isso
se produz através de uma nova prática: a visita e a observação sistemática e
comparada dos hospitais.”51 O hospital terapêutico e asilar vem por substitu-
ir o hospital da época dos grandes internamentos, que era configurado como
uma instituição de assistência aos pobres, uma espécie de “institucionaliza-
ção da miséria”, isto é, uma forma de impedir que existissem focos de de-
sordem econômica e social52, bem como fonte de separação e exclusão soci-
al, já vez que a pobreza seria portadora de doença (tal é a miséria que as-
sombrava os internamentos, que os próprios montanheses no período revo-
lucionário declaravam em altos brados seus ideais: “não mais indigentes, não
mais hospitais”).53
Nessa perspectiva, salienta Foucault que os asilos vêm por compor a
situação emergente da Europa dos internamentos, que eram antes de insti-
tuições filantrópicas verdadeiros espaços de igual exclusão, de mortes cole-
tivas, "templos de morte”54, em que os leitos, ou melhor, as celas de clausura
não eram organizadas por médicos, tal como hodiernamente o são, mas por
50 Essa conferência, que segundo Daniel Defert e François Ewald teria sido proferida no ano de 1974 na UERJ, o que é fruto de algumas controvérsias entre os biógrafos, como anteriormente salientado; há duas versões distintas, uma, acostada na compilação feita por esses intelectuais no terceiro volume do Dits et Écrits, sob o título L’Incorporation de l’Hôpital dans la Technologie Moderne, de tradução de D. Reynié [Ver: FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital dans la technologie moderne. (trad. D. Reynié) Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 3 Paris: Gallimard, 1994, p. 508-521.]; outra, intitulada O Nascimento do Hospital, colhida junto à compilação brasileira feita por Roberto Machado na clássica Microfí-sica do Poder [Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 99-112.]. Desconhece-se nesta pesquisa a razão da existência de duas versões, embora talvez seja fruto de duas anotações ou gravações distintas da conferência, já que fora proferida aqui no Brasil. Todavia, opta-se nas citações pela edição francesa, já que tem sido o escopo deste ensaio desde o início. 51 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 508. “L’hôpital en tant qu’instrument thérapeu-tique est en effet un concept relativement moderne, puisque’il date de la fin du XVIIIe siècle. C’est autour de 1760 qu’est apparue l’idée que l’hôpital pouvait et devait être un instrument destiné à guérir le malade. Cela se produit a travers d’une nouvelle pratique: la visite et l’observation systématique et comparée des hôpitaux.” [trad. do autor.] 52 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 15-16. “L’hôpital, comme la civilisation, est un lieu artificiel où la maladie transplantée risque de perdre son visage essentiel. Elle y rencontre tout de suite une forme de com-plications que les médecins appellent fièvre des prisons ou des hôpitaux: asthénie musculaire, langue sèche, saburale, visage plombé, peau collante, dévoiement digestif, urine pâle, oppression des voies respiratoires ...” [trad. br. O nascimento ..., p. 17. “O hospital, como a civilização, é um lugar artificial em que a doença, trans-plantada, corre o risco de perder seu aspecto essencial. Ela logo encontra nele um tipo de complicação que os médicos chamam febre das prisões ou dos hospitais: astenias muscular, língua seca, saburra, rosto lívido, pele pegajosa, diarréia, urina descorada, opressão nas vias respiratórias.....”] 53 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 66. “Plus d’indigents, plus d’hôpitaux.” [trad. br. O nascimento ..., p. 75.] 54 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 16. “Et puis, peut-on effacer les fâcheuses impressions que fait sur un malade, arraché à sa famille, les spectacle de ces maisons qui ne sont pour beaucoup que ‘le temple de la mort.’” [trad. br. O nascimento ..., p. 17. “... e, além disso, pode-se apagar as desagradáveis impressões que causam ao doentes, afastado de sua família, o espetáculo dessas casas que não são para muitos senão ‘o tem-plo da morte’.”]
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leigos, normalmente religiosos e caridosos, que procuravam auxiliar os do-
ente a fim de que obtivessem não a mera cura orgânica, mas a salvação
eterna. Era uma espécie de passagem, quer dizer, um lugar de transição en-
tre a condição viva e o estado da morte, entre a população sã e os indivíduos
desregrados e perigosos à sociedade e à sua saúde. Nesse sentido, congre-
gando loucos, doentes, libertinos, prostitutas, pobres e devassados, como
organização de assistência e transformação espiritual, os hospitais das “cor-
rentes” serviam à época, até o momento em que precisaram ser extintos ou
modificados, aos desígnios da política estatal: “proteção das pessoas sadias
contra a doença; proteção dos doentes contra as práticas das pessoas igno-
rantes.”55 Eram, enfim, instituições que se destinavam antes aos pobres que
aos doentes, tanto que os funcionários desses hospitais de internamento
buscavam não a cura, mas a própria salvação dos doentes; e isso porque o
pobre como miserável possuía a necessidade de que o Estado o excluísse do
seio social para que os demais membros da sociedade fossem preservados.56
Nesse sentido, os asilos eram, sem dúvida, uma forma de exclusão, um
espaço que, conservadas as inovações propiciadas pelo olhar da medicina
positiva, permanecia em seu objetivo maior, que era retirar do centro das
atenções sociais a figura do louco, e recolocá-lo sob um novo dispositivo de
internamento supostamente mais democrático. É necessário destacar que
alguns autores foram de encontro a essa posição foucaultiana da exclusão,
especialmente Alain Renault e Luc Ferry, que em 1985, num clássico livro
intitulado La Pensée 68: Essai sur l’Anti-Humanisme Contemporain, quando,
assumindo uma crítica fantástica, impuseram a Foucault os tristes predica-
dos de “confuso”, já que resgatava a Nau dos Loucos ao invés da abertas
camisas-de-força e incorria em inúmeros equívocos de registro; e de “dis-
crente”, porque, utilizando-se da vulgata do pensamento de 68 (a “cancione-
ta anti-repressiva”: isto é, asilos, prisões, escolas, etc.) entendia ser o asilo
55 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 41. “Protection des gens sains contre la maladie; protection des malades contre les pratiques des gens ignorants.” [trad. br. O nascimento ..., p. 45.] 56 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 511. “Avant le XVIIIe siècle, l’hôpital était essen-tiellement une institution d’assistance aux pauvres. Il était en même temps une institution de séparation et d’exclusion. Le pauvre, en tant que tel, avait besoin d’assistance; comme malade, il était porteur de maladie qu’il risquait de propager. En résumé, il était dangereux. De là l’existence nécessaire de l’hôpital, tant pour les recueillir que pour protéger les autres du danger qu’ils représentaient. Jusqu’au XVIIIe siècle, le personnage idéal de l’hôpital n’était donc pas le malade, celui qu’il fallait soigner, mais le pauvre, qui était déjà moribond. Il s’agit ici d’une personne qui nécessite une assistance matérielle et spirituelle, qui a besoin de recevoir les ultimes secours et les derniers sacrements. C’était là la fonction essentielle de l’hôpital. On disait alors – et avec raison – que l’hôpital était un lieu où l’on venait mourir.” [trad. do autor “Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Ele era, ao mesmo tempo, uma institui-ção de separação e de exclusão. O pobre, como pobre, tinha necessidade de assistência; como doente, ele era portador de doença que poderia se propagar. Em suma, ele era perigoso. Por estas razões, os hospital é neces-sário tanto para recolher os pobres quanto para proteger os outros do perigo que eles representavam. Até o século XVIII, o personagem ideal do hospital não era o doente, que era preciso ser curado, mas o pobre que estava morrendo. Trata-se aqui de uma pessoa que necessita uma assistência material e espiritual, que tem necessidade de receber os últimos socorros e os últimos sacramentos. Era essa a função essencial do hospital. Dizia-se, então – e com razão – que o hospital era um lugar onde se morria.”]
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um instrumento da lógica de exclusão da razão e do estado, e não uma uto-
pia democrática, que procurava tratar a loucura não sob banhos de aguar-
dente, choques e sangrias, mas por um tratamento moral.57 Todavia, tal
pensamento está, certamente, dentro da lógica a que muito bem se propu-
seram os autores, entretanto, acabam por atribuir uma abordagem um tanto
restrita e diferente a que o próprio Foucault havia dado, colocando-o na li-
nha dos niilistas, o que evidentemente não se pode dizer, já que seus quesi-
tonamentos são imbuídos de uma crítica fundamentada na própria ciência,
embora precisasse ser repensada (como visto outrora na relação com Nietzs-
che).
Destaca Foucault, então, que uma das principais razões para a modifi-
cação dos hospitais-assistência para os hospitais-terapêutica, isto é, dos
internamentos para os asilos, foi antes uma busca pela anulação dos efeitos
prejudiciais ao desenvolvimento de novas doenças,58 que fervilhavam da mi-
séria do povo, e, logo, antes uma tentativa de controlar a desordem institu-
cional e econômica que assolava a Europa, especialmente a França da pré-
revolução, do que simples atuação para melhorar as condições dos hospitais
e dos doentes mentais (eis a crítica aos ideais puros de Pinel). Nesse sentido,
acrescenta Foucault, que um fato signo-presuntivo da necessidade de se ter
uma consciência política do nascimento dos hospitais terapêuticos e dos
asilos que não a humanização, diz respeito ao nascimento dos primeiros
regulamentos do Estado, que, na busca pela ordem hospitalar, teriam surgi-
do inicialmente nos hospitais marítimos e das bases militares, lugares esses
marcados por uma desordem abominável, vez que havia um tráfico incontro-
lável de mercadorias trazidas das colônias: “Foi nos hospitais militares que
se organizou primeiramente o ensino clínico”.59 Segundo Foucault, na citada
conferência proferida na Bahia, toda a organização hospitalar da Europa no
século XVII havia começado nos hospitais marítimos e militares: “O ponto de
partida da reforma hospitalar não foi o hospital civil, mas o hospital maríti-
mo. A razão é que o hospital marítimo era um lugar de desordem econômi-
ca. De fato, era a partir dele que se organizava o tráfico de mercadorias, ob-
jetos preciosos e outras matérias raras provenienteS das colônias. O trafi-
cante se fazia doente e era levado para o hospital no momento do desem-
57 FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68 ..., p. 108-109. 58 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 18. “L’hôpital, créateurs de la maladie par le domaine clos et pestilentiel qu’il dessine, l’est une seconde fois dans l’espace social où il est placé.” [trad. br. O nascimento ..., p. 20. “O hospital, criador de doença, pelo domínio fechado e pestilento que representa, também o é no espaço social em que etá situado.”] 59 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 57. [trad. br. O nascimento ..., p. 64.]
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barque. Aí, ele dissimulava os objetos que escapavam, assim, do controle
econômico da alfândega.”60
Paralelamente aos asilos, esses hospitais terapêuticos, ou hospitais-
exclusão, e a formação da nova clínica, surgidos no final do séc. XVIII e ex-
postos aos mesmos ideais do Estado, representam uma espécie de tecnolo-
gia política, quer dizer, são construções novas, substitutivas das formas de
internamento e dos antigos leprosários, e representam um deslocamento,
sob três pontos de vista: primeiro, administrativo, uma vez que são retirados
da periferia e relocados nos centros urbanos, a fim de que os doentes pos-
sam melhor serem mapeados (o internos passaram a utilizar pulseiras, como
forma de identificação, permitindo, assim, que bancos de dados e registros
fossem construídos, transformando o hospital para além da terapia, isto é,
em cadastros documentais, de acúmulo de saber e informação); segundo,
arquitetônico, porque sofrem uma alteração estrutural, passando a integrar
leitos individuais e isolados, com o objetivo primordial de permitir que a
intervenção especializada seja sobre o doente e não sobre a doença, tal co-
mo se fazia; terceiro, acadêmico, decorrente da alteração das demais, já que
o médico, numa perspectiva clínica, é inserido entre os corredores da insti-
tuição, em substituição aos leigos benevolentes e aos religiosos. “Esta nova
definição da clínica estava vinculada a uma reorganização do domínio hospi-
talar.”61 Dessa maneira, nos hospitais terapêuticos, os médicos, insertos en-
tre leitos, servindo-se antes de garantia que verdadeira ação real,62 avizi-
nham-se de seus doentes, e passam a acompanhar-lhes a vida, os sintomas
da doença, a sua evolução e seus efeitos, não mais exclusivamente dos ricos,
que assim podia pagar-lhes o serviço em domicílio, mas de toda uma popu-
lação, recolocada pela miséria não ‘da economia’, mas da doença. Com o
aparecimento da medicina positiva, os médicos, como visto, ganham desta-
que, isto é, ganham uma espécie de dimensão institucional e política: “A
primeira tarefa do médico é, portanto, política: a luta contra a doença deve
começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e
definitivamente curado se for primeiramente liberto.”63
60 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 513. “Le point de départ de la réforme hospitaliè-re n’a pas été l’hôpital civil, mais l’hôpital maritime que était un lieu de désordre économique. En effet, c’est à partir de lui que s’organisait le trafic de marchandises, d’objets précieux et autres matières rares provenant des colonies. Le trafiquant feignant d’être malade était conduit à l’hôpital dès son débarquement.” Là, il dissimu-lait les objets qu’il soustrayait ainsi au contrôle économique de la douane.” [trad. do autor.] 61 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 82. “Cette nouvelle définition de la clinique était liée à une réorganisation du domaine hospitalier.” [trad. br. O nascimento ..., p. 93.] 62 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 519. “On appelait le médecin pour s’occuper des malades les plus gravement atteints. Moins qu’une action réelle, il s’agissait en fait d’une garantie, d’une simples justification.” [trad. do autor. “Chamava-se o médico para cuidar dos doentes mais graves. Menos que uma ação real, tratava-se, de fato, de uma garantia, de uma simples justificação.”] 63 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 33-34. “La première tâche du médecin est donc politique: la lutte contre la maladie doit commencer par une guerre contre les mauvais gouvernements: l’homme ne sera totale-ment et définitivement guéri que s’il est d’abord libéré.” [trad. br. O nascimento ..., p. 37.]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 169
Concomitantemente ao nascimento dos hospitais terapêuticos e dos
asilos, dois fatos ascendem igualmente: primeiro, a hierarquia institucional,
isto é, tal como a valorização administrativa do médico, apareceram novas
fontes de emprego organizadas: enfermeiros, assistentes, alunos, aprendizes
de enfermaria; de outro lado, a medicina clínica, que pela abertura do saber
nos corredores dos hospitais, através de aulas práticas, sai dos livros e se
demonstra no aparecimento da experiência clínica.64 Nesse sentido, a clínica
é, no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, um espaço de organização do
hospital e um espaço de formação e transmissão do saber médico: “... o lu-
gar em que se forma o saber não é mais o jardim patológico em que Deus
distribui as espécies; é uma consciência médica generalizada, difusa no es-
paço e no tempo, aberta e móvel, ligada a cada existência individual, mas
também à vida coletiva da nação, sempre atenta ao domínio indefinido em
que o mal trai, sob seus aspectos diversos, sua grande forma.”65 Portanto, a
clínica é o lugar de acumulação positiva do saber médico, quer dizer, é cons-
tante olhar sobre o doente, uma espécie de atenção milenar,66 determinada
pela maneira de dispor a verdade adquirida ao longo da sintomatologia e da
nosografia, bem como apresentada, como um caso a ser estudado pelo alu-
nos futuros médicos. A partir da clínica, a medicina positiva singulariza os
doentes e suas doenças, escutando e permitindo, assim, que a doença fale
sua língua através do corpo do doente. Sobre os doentes, estabelece-se toda
uma técnica de identificação dos doentes, como por exemplo: amarra-se no
pulso do doente uma etiqueta que permite distingui-lo dos demais e separá-
lo na sua eventual morte. Fichas são colocadas em cima dos leitos, bem co-
mo uma série de registros começam a ser praticados e suas informações
anotadas; colhem-se registros de entradas, saídas, visitas, diagnósticos dos
médicos, razões de internamento e de cura, dos medicamentos e dos trata-
mentos terapêuticos, de farmácia e de diagnósticos. Estabelece-se, assim,
todo um aparato de registro, quer dizer, todo um campo documental no in-
terior do hospital que não é somente um lugar de cura, mas também de re-
gistro, acúmulo e formação de saber, o que, por si, confere ao saber médico,
antes recluso nos livros, uma espécie de “jurisprudência médica”,67 que toma
seu lugar no cotidiano dos registros hospitalares. Nessa orientação, a clínica,
como lugar não só de cura, mas de formação de médicos, estabelece um
novo código de saber para a medicina, longe do simples olhar observador,
mas um olhar fundamentado no conhecimento e na instituição, que garan-
64 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 68. [trad. br. O nascimento ..., p. 77.] 65 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 31. “Le lieu où se forme le savoir, ce n’est plus ce jardin patho-logique où Dieu avait distribué les espèces, c’est une conscience médicale généralisée, diffuse dans l’espace et dans le temps, ouverte et mobile, liée à chaque existence individuelle, mais aussi bien à la vie collective de la nation, toujours éveillée sur le domaine indéfini où le mal trahit, sous ses aspects divers, sa grande forme massive.” [trad. br. O nascimento ..., p. 35.] 66 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 53. [trad. br. O nascimento ..., p. 59.] 67 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 521.
170 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
tem ao médico o poder de estudar, decidir e intervir. É um novo olhar médi-
co, baseado numa nova análise do visível e do invisível e numa nova lumino-
sidade,68 um olhar não de internamento, mas científico, um olhar clínico e
analítico, que disseca cadáveres, um olhar que escuta e que fala, como a
anátomo-clínica de Bichat e Broussais, um olhar que conjuga o domínio hos-
pitalar da prática e um domínio hospitalar da pedagogia, que busca conhe-
cer, para dominar. Uma forma de interpor a doença pela razão, tal como no
asilo se faz da loucura um monólogo pela razão.
Apesar de ater-se adiante no que tema que diz respeito à verdade, é
preciso afirmar que a prática médica do profissional que vai construir o ver-
dadeiro da doença tem início, segundo Foucault, no mesmo período em que
os hospitais expurgam os pobres e se debruçam sobre os doentes e os lou-
cos. O nascimento dos asilos e dos hospitais do século XVIII, ao romper com
a idéia de simples internamento e trazer à lume a ciência positiva, estabele-
ceu um novo regime de verdade em torno da doença, fato significativo que
dá ao olhar médico a natureza científica e de único discurso capaz de abor-
dar o doente e o louco. Começa, pois, então, sob as arcadas do bacharelis-
mo, toda uma série de novas exclusões que passam a ser praticadas pelos
médicos dos hospitais terapêuticos e dos asilos ao redor do conceito de ver-
dadeiro. Eis aí, segundo Foucault, o grande equívoco nascido junto com a
hospitalização, quer dizer, o hospital, então estrutura de acolhimento da
doença, transfomou-se num espaço de conhecimento e de lugar de prova.69
O hospital terapêutico passou a ser visto como o lugar de eclosão da verda-
deira doença, quer dizer, acreditava-se que se deixando livre o paciente, em
meio à sua família, em seus hábitos, preconceitos e ilusões, poder-se-ia
retirar todos os empecilhos de qualquer internamento, garantindo-se que a
verdadeira doença pudesse se produzir na autenticidade de sua natureza.
Nesse sentido, o hospital aprisionava a verdade da doença, e a fazia mani-
festar-se na sua própria realidade; em suma, o hospital-exclusão, tal como o
asilo dos loucos, permitiu que as condições ideais fossem criadas para que a
verdade do mal viesse à tona, tranformando-se num lugar de observação e
de prova. “Constituía uma espécie de aparelhagem complexa que devia ao
mesmo tempo fazer aparecer e produzir realmente a doença. Lugar botânico
para a contemplação das espécies, lugar ainda alquímico para a elaboração
68 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 202. [trad. br. O nascimento ..., p. 229.] 69 FOUCAULT, Michel. La maison des fous. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 697. [trad. br. A casa dos loucos. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 118.]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 171
das substâncias patológicas.”70 Nesse sentido, tal como os hospitais tera-
pêuticos, os asilos adquiriram, segundo Foucault, as mesmas funções no
início do século XIX em relação aos loucos, quer dizer, permitir que a verda-
de da doença mental fosse descoberta. Assim, a loucura, vista ora como
vontade perturbada, ora paixão pervertida, passa a encontrar uma verdade
vista pelo médico, uma vontade reta e de paixões ortodoxas.
Nessa perspectiva, tendo em mente essa concepção política do surgi-
mento dos hospitais terapêuticos e da clínica, bem como dos asilos, isto é,
dessa consciência política da loucura, destaca Foucault, que toda uma nova
formulação da loucura dentro dos asilos se forma, mas, especialmente, na
própria Justiça Criminal, que através das audiências públicas nos processos
pós-revolução, demonstram que duas formas de loucura precisariam sob o
ponto de vista jurídico serem separadas: de um lado uma loucura boa, que
está dentro dos ditames da razão, e de outro, uma loucura má, que se posta
do lado de toda imoralidade. A loucura, embora ganhe nova liberdade nas
mãos de Pinel, segundo Foucault, já tinha adquirido a sua liberdade pouco
tempo antes, diante deste aspecto da criminalidade, nesse sentido, teria
ocorrido um duplo movimento de liberação e sujeição, que teria permitido o
nascimento dos asilos. É com Pinel, consoante as interpretações foucaultia-
nas, que a loucura efetivamente teria se tornado objeto, mas não simples-
mente um objeto alienado, mas um estigma da existência alienada.
Convém esclarecer, que o fato da liberação da loucura pelas mãos hu-
manitárias de Pinel, criticado por Foucault e questão de tantas polêmicas,
como visto anteriormente, diz respeito ao seguinte: até 1793, quando Pinel é
então nomeado diretor das enfermarias de Bicêtre, sua estrutura era vista
como a ‘casa dos pobres’, posto que nela se encontravam misturados indi-
gentes, velhos, condenados, libertinos, loucos, a massa colocada por força
da revolução, e prisioneiros políticos. Nesse sentido, como usualmente sem-
pre se colocou, teria sido Pinel responsável por retirar o louco deste lugar,
bem como, por rever os anteriores internamentos e separar aqueles real-
mente doentes mentais e os que o fossem por força de posicionamentos
políticos contrários. Para Foucault, sob o ponto de vista intelectual, pensar a
70 FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 676. “Il constituait une sorte d’appareillage complexe qui devait à la fois faire apparaître et produire réellement la maladie: lieu botanique pour la contemplation des espèces, lieu encore alchimique pour l’élaboration de substances pathologiques.” [trad. do autor]. Obs: Convém esclarecer que, segundo Daniel Defert e François Ewald, no segundo volume de Dits et Écrits, o resumo elaborado para o curso do biênio 1973/1974, intitulado Le Pouvoir Psychiatrique vem indicado como continuação do artigo escrito por Foucault sob o título La Maison des Fous. Todavia, não se utilizou a tradução já existente dos artigos citados (metodologia usualmente empregada neste trabalho), uma vez que a tradução brasileira de Le Pouvoir Psychiatrique, publicada sob o título O Poder Psiquiátrico nos Resumos dos Cursos do Collège de France [FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). (trad. Andréa Daher e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 45-59] se trata apenas de um texto resumido, distinto do original, bem como a tradução de Le Maison des Fous, sob o título A Casa dos Loucos, inserta na compilação de Roberto Machado Microfísica do Poder, é bem mais ampla, abarcando os dois textos do original, sob um único título.
172 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
liberação de Pinel de maneira a ter sido capaz de contornar o anterior esta-
tuto do louco, é, pois, um grande preconceito,71 uma vez que, de fato, ela
teria contribuído para constituir o imenso abismo que separa a razão e a
loucura, especialmente pelo império desta sobre a loucura, e sob o ponto de
vista institucional, a construção dos asilos ideais teriam sido fruto muito
mais dos acontecimentos políticos, como a proteção dos aristocratas e sa-
cerdotes, do que a simples substituição dos internamentos.72
Para Foucault, a partir da separação dos loucos e dos pobres, com o
nascimento de um olhar médico no final do séc. XVIII, com Tuke e Pinel, es-
pecialmente, a loucura passa a integrar um momento fundamental, em que
se estabelece um rígido elo entre a loucura internada, loucura tratada e a
razão. Nessa perspectiva, salientam as interpretações foucaultianas, que os
asilos são criados, e as novas práticas de internamento são trazidas à lume
com o intuito de tratar dessa nova visualização da loucura, como dissera em
seu prefácio autre tour da loucura.73 Assim, as correntes destinadas a acal-
mar os loucos bestados são desvencilhadas e substituídas pelas camisas de
força, tal como descreve Foucault a liberação dos acorrentados de Bicêtre, e
se destinam não ao objetivo único de evitar que a natureza animal viesse à
tona, mas de conduzir e limitar sua liberdade e seu espaço social. Afirma
Foucault que é, justamente, o momento em que a consciência política do
internamento, antes do que assistencial e filantrópica, demonstra-se nas
crises do internamento e no aparecimento dos asilos. Nesse sentido, critica
de maneira rígida Pinel: “Num único e mesmo movimento, o asilo, nas mãos
de Pinel, se torna um instrumento de uniformização moral e de denúncia
social. Trata-se de fazer reinar sob as espécies do universal uma moral que
se imporá do interior às que lhe são estranhas e onde a alienação já é dada
71 FOUCAULT, Michel. La folie et la société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 131. 72 Essa liberação de Pinel, é oportuno esclarecer, para evitar confusões sobre a noção foucaultiana, não se trata realmente de um ato físico realizado por Pinel, mas antes um ato intelectual e institucional, quer dizer, um mito ao redor da abolição das correntes, que Foucault não desconhecia, mas o criticava na sua humanidade mítica. Isto porque, para alguns autores, como Glays Swain, no ensaio Le Sujet et la Folie (1977), segundo Elisabeth Roudinesco, teria Foucault ‘levado ao pé da letra esse mito’, dando a entender que acreditava real-mente ter acontecido, razão porque o havia criticado. Para Swain, consoante Roudinesco, o mito da abolição era fundamental, pois servia antes para eliminar Pussin (que era o enfermeiro responsável pelos loucos) do que realmente para liberar os doentes mentais, demonstrando, assim, o ingresso da medicina positiva, e, portanto, o reinado de Esquirol sobre os manicômios e o de Philippe Pinel. Todavia, não há como encontrar no texto passagens capazes de expressar o que a autora interpretara, mas, pelo contrário, é evidente, segundo suas linhas, que o que estava sendo criticado era não um verdadeiro ato material, até porque Foucault não se ateve a esse detalhe em sua obra, mas uma concepção política que nascia de um jacobino. Nesse sentido ver: ROU-DINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 21-22. Obs.: Sobre a crítica da pensadora Gladys Swain ver também: FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68 ..., p. 117-135. 73 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, p. 07. “Pascal: ‘Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou’” [trad. do autor. “Pascal: ‘Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco por um outro ‘modo’ de loucura não ser louco’.”] Questão outrora argumentada.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 173
antes de manifestar-se nos indivíduos.”74 Elisabeth Roudinesco, por ocasião
do IX Colóqio da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psi-
canálise, no dia 23 de novembro de 1991, é ainda mais enfática em relação à
perspectiva foucaultiana contra Pinel: “Ele destroçava a prolongada persis-
tência do humanismo pineliano e declarava guerra a todas as formas de re-
formismo institucional.”75
A partir dessa compreensão, afirma Foucault que o asilo impôs um si-
lêncio à loucura, ao contrário do incessante diálogo entre a razão e loucura
da Renascença. Para substituir os olhares de vigilância e julgamento dos juí-
zes de fato dos Tribunais do Júri, que se dedicavam a condenar os loucos
por seus crimes, e, dessa maneira os excluir, tal como às medidas adminis-
trativas dos hospitais gerais, os asilos aparecem no limiar do século XIX, tra-
zendo consigo a loucura na sua forma vigiada e tornada objeto, quer dizer,
portando os olhares de uma medicina positiva, que faz da loucura seu objeto
cognoscível, e, ao mesmo tempo em que a liberta, aprisiona-a, objetivando,
assim, pela primeira vez, o próprio homem, como forma de saber (questio-
namento esse que Foucault retoma alguns anos mais tarde da publicação
sobre a loucura, em Les Mots et les Choses). Foucault afirma que os asilos e
toda a medicina que o acompanhou, transformaram-se em verdadeiras for-
mas de punição e não de libertação da loucura: “O asilo da era positivista,
por cuja fundação se glorifica a Pinel, não é um livre domínio de observação,
de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço judiciário onde se é acusado,
julgado e condenado e do qual só se consegue a libertação pela versão desse
processo nas profundezas psicológicas, isto é, pelo arrependimento. A lou-
cura será punida no asilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito
tempo, e pelo menos até nossos dias, permanecerá aprisionada num mundo
moral.”76 Com os asilos e as teorias humanistas, o positivismo se impõe à
medicina e à psiquiatria, trazendo destaque aos médicos e dando poder aos
psiquiatras, bem como constituindo uma nova e fundamental relação: o par
médico-doente.
Diante do nascimento dos asilos, e desenrolar do séc. XIX, destaca
Foucault que a psicanálise não permitiu um debate com a loucura, somente
impôs o seu olhar e sua razão, transformando o debate incansável do renas-
cimento num tácito monólogo com a loucura, uma espécie de olhar absoluto
74 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 269. “En un seul et même mouvement, l’asile, entre les mains de Pinel, devient un instrument d’uniformization morale et de dénonciation sociale. Il s’agit de faire régner sous les espèces de l’universel lui sont étrangères et où l’aliénation est déjà donnée avant de se manifester chez les individus.” [trad. br. História da loucura ..., p. 488.] 75 ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 07. 76 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 280. “L’asile de l’âge positiviste, tel qu’on fait gloire à Pinel de l’avoir fondé, n’est pas un libre domaine d’observation, de diagnostic et de théra-peutique; c’est un espace judiciaire où on est accusé, jugé et condamné, et dont on ne se libère que par la version de ce procès dans la profondeur psychologique, c’est-à-dire par le repentir. La folie sera punie à l’asile, même si elle est innocente au-dehors. Elle est pour longtemps, et jusqu’à nos jours au moins em-prisionnée dans un monde moral.” [trad. br. História da loucura ..., p. 496.]
174 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
do vigilante.77 Nesse sentido, foi com o surgimento da psicologia,78 datada
dessa época, que a verdade do homem pôde vir à tona e formular a terrível e
excludente distinção entre loucura, então como problema médico, e razão.
Momento em que a liberdade do louco é fato exclusivo da razão. Do mesmo
modo, a psicologia, através de suas práticas no tratamento do doente, como
levar o louco a percepções artificiais da realidade, para que, através do cho-
que ‘desperte’ sua razão, ou como dá-lo aos passeios e aos retiros, para que
se reencontre com sua natureza, acaba por fechar a loucura num círculo ra-
cional, continuando a impor-lhe o silêncio. O médico, desta maneira, assume
um papel indispensável de levar os doentes mentais à suas próprias razões,
conduzindo-os através da ordem jurídica e moral.79 A loucura se torna, en-
tão, em virtude da razão, a coisa mais rigorosamente regrada, eis as palvras
de Foucault em 1975 ao comentar o filme Histoire de Paul, de R. Féret.80 Esse
tratamento, que engloba não mais o espaço religioso,81 mas moral, perma-
nece no olhar médico da loucura, através da psicologia e da psiquiatria até o
surgimento das teorias psicanalíticas de Freud, quando, então, retira da ob-
jetividade do positivismo médico a condenação moral existente na loucura. A
partir desse momento, a loucura se torna escrava da razão, e só encontra
sua linguagem na linguagem falada pela razão, pela razão médica.82 Nessa
perspectiva, entende Foucault que um círculo antropológico se instaura, quer
dizer, a partir do momento que a razão impera sobre a loucura, a verdade do
louco se sujeita à verdade que o médico impõe e procura recriar, mas, ao
reconhecê-la, acaba por perdê-la nesse mesmo momento, uma vez que aca-
ba igualmente por torná-la objeto, não se tornando mais simplesmente a sua
77 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 259. [trad. br. História da loucura ..., p. 482.] 78 Para uma justa interpretação foucaultiana da relação entre a medicina mental, através do poder social da psiquiatria e a necessidade do isolamento asilar, ver: BIRMAN, Joel; SERRA, Antônio. Os descaminhos da subjetividade: um estudo da instituição psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da UFF, 1988, p. p. 233-236. 79 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 41. “Outre son rôle de technicien de la médecine, il joue un rôle économique dans la répartition des secours, un rôle moral et quasi judiciaire dans leur attribuition; le voilà devenu le ‘surveillant de la morale, comme de la santé publique’.” [trad. br. O nascimento ..., p. 45. “Além do papel de técnico da medicina, ele desempenha um papel econômico na repartição dos auxílios, um papel moral e quase judiciário em sua atribuição: ei-lo convertido no ‘vigilante da moral e da saúde pública’.”] 80 FOUCAULT, Michel. Faire les fous. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gal-limard, v. 2, 1994, p. 805. “... la folie, cette chose du monde la plus rigoureusement réglée.” [trad. do autor. “... a loucura, a coisa mais rigorosamente regrada do mundo.”] 81 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 267. “L’asile, domaine religieux sans religion, domaine de la morale pure, de l’uniformisation éthique. Tout ce qui pouvait conserver en lui la mar-que des vieilles différences vient à s’effacer. (...) L’asile doit figure maintenant la grande continuité de la morale sociale. Les valeurs de la famille et du travail, toutes les vertus reconnues, règnent à l’asile....” [trad. br. História da loucura ..., p. 486. “O asilo, domínio religioso sem religião, domínio da moral pura, da unifor-mização ética. Tudo o que nele podia conservar a marca das velhas diferenças acaba por sumir. As últimas recordações do sagrado se extinguem. (...) O asilo deve figurar agora a grande continuidade da moral social. Os valores da família e do trabalho, todas as virtudes reconhecidas, imperam no asilo...”] 82 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Le langage de la psychiatrie, qui est monologue de la raison sur la folie, n’a pu s’établir que sur un tel silence.” [trad. do autor. “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, não pode se estabelecer senão sobre tal silêncio.”]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 175
própria verdade, quer dizer, a verdade do alienado, mas a verdade do racio-
nal. Por isso, para Foucault, há sempre uma intimidade entre loucura e ver-
dade.83 Nesse sentido, a verdade do homem acaba por ser a loucura, a não-
razão, presa pela própria razão, de tal modo que, o louco e o homem dizem
a si suas próprias verdades, e o homem para indagar sua verdade, precisa
fazer-se objeto, aprisionando, assim, sua razão em seu determinismo e seus
condicionamentos. Para se conhecer o que o homem é, sua posição de sujei-
to, seria necessário saber o que o homem não é (o que se apresenta em sua
loucura), o que o separa, através do conhecimento médico, da sua negação,
de sua loucura, só possível por expressões máximas da literatura, enquanto
formas livres, como de Nietzsche, Van Gogh e Artaud.
Nesse senti0do, uma nova perspectiva para reler a loucura se abre para
Foucault em Histoire de la Folie, pois somente através dos desatinos desses
autores, é que a loucura se torna ausência de obra84, quer dizer: “... a loucu-
ra ocidental se tornou uma não-linguagem, posto que se tornou uma lingua-
gem dupla (linguagem que apenas existe nesta palavra, palavra que não diz
senão sua língua) –, isto é, uma matriz da linguagem que, em sentido estrito,
não diz nada. Uma dobra do falado que é uma ausência de obra”,85 ruptura
absoluta da obra, um momento de abolição, que fundamenta o seu tempo e
sua obra, e que permite, na sua ausência, demonstrar-se e estabelecer sua
própria linguagem, sem o ‘não-senso’ da razão impositiva. É preciso ressal-
tar ainda, que Foucault, apesar do que muitos críticos procuram mistificar,
tenta lançar as bases para um correto pensamento sobre a loucura, isto é,
busca encontrar saídas para se repensar a doença mental como maneira de
fuga ao projeto disciplinar e excludente, através do conceito de estrutura
global. No último capítulo de Maladie Mentale et Psychologie Foucault sali-
enta que se deveria procurar realizar um estudo que se fundasse numa “lou-
83 FOUCAULT, Michel. Folie, littérature, société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 112. “On peut alors tenter une histoire panoramique de la culture occidentale: cette coappartenance de la vérité et de la folie, cette intimité entre la folie et la vérité, qu’on pouvait recon-naître jusqu’au début du XVIIe siècle, ont été, par la suite, pendant un siècle et demi ou deux siècles, niées, ignorées, refusées et cachées. Or, dès le XIXe siècle, d’un côté, par la littérature et, de l’autre, plus tard, par la psychanalyse, il est devenu clair que ce dont il était question dans la folie était une sorte de vérité et que quel-que chose qui ne peut être que la vérité apparaît sans doute à travers les gestes et les comportements d’un fou.” [trad. do autor. “Pode-se tentar, então, uma história panorâmica da cultura ocidental: esta coexistência da verdade e da loucura, esta intimidade entre a loucura e a verdade, que se podia reconhecer até no início do século XVII, foi, desse modo, durante um século e meio ou dois séculos, negada, ignorada, recusada e escon-dida. Ora, desde o século XIX, de um lado, pela literatura, e, de outro, mais tarde, pela psicanálise, tornou-se clara que na loucura havia verdade, e que, qualquer coisa que só pode ser verdade aparece, sem dúvida, atra-vés dos gestos e dos comportamentos de um louco.”] 84 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 302. [trad. br. História da loucura ..., p. 529.] 85 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence ..., p. 418. “... la folie occidentale est devenue un non-langage, parce qu’elle est devenue un langage double (langage qui n’existe que dans cette parole, parole qui ne dit que sa langue) –, c’est-à-dire une matrice du langage qui, au sens strict, ne dit rien. Pli du parlé qui est une absence d’oeuvre” [trad. do autor]
176 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
cura alienada,”86 quer dizer, a melhor maneira de se compreender a loucura
seria a partir de sua configuração livre e desalienada, restituindo-lhe, de
certo modo, sua linguagem de origem, a partir de uma reflexão que de-
monstrasse ser através de sua forma que a própria civilização procuraria
exprimir-se positivamente em seu fenômeno. Todavia, mantém-se aqui esse
questionamento de Foucault, tal como ele o deixara, sem ir adiante, por se
tratar de tema específico e complexo, que não condiz com as dimensões e
tampouco os objetivos deste ensaio. Ademais, porque, para muitos autores,
como Pierre Macherey, a posição intelectual defendida em 1954 teria sido
substancialmente alterada pela de 1961, tanto que as críticas que lhe foram
feitas na publicação de Folie et Déraison, não o poderiam ser feitas igual-
mente à Maladie Mentale et Psychologie, já que a loucura, antes vista numa
perspectiva evolucionista e latente na história, teria sido abordada de outra
maneira, totalmente diferente, renunciando ao seus continuísmo históricos.
Nesse sentido, afirma: “Ao contrário, porém, no seu livro de 62 Foucault
mostra que o conceito de doença mental só tem sentido contra o fundo des-
se procedimento de exclusão, cujas origens ou razões não se devem procu-
rar numa forma qualquer de saber positivo, procedimento este que, antes
mesmo de reconhecê-la e descrevê-la como alienação, instala entre a doen-
ça e as demais formas da existência humana uma intransponível fronteira,
uma separação que já basta para conferir aos fenômenos patológicos a sua
realidade de objetos oferecidos ao saber. (...) não está mais em questão pro-
por-se, a qualquer nível que seja, uma explicação psicológica da doença:
pois fica evidente que psicologia alguma jamais conseguirá dar conta do
fenômeno cujas condições de surgimento ela precisa, justamente, fazer es-
quecer. (...) E, para nos convencermos de que essa retificação não tem mais
que o valor limitado, e não definitivamente fundador ou instaurador, de um
ato discursivo inscrito no movimento de conjunto de um dispositivo de co-
nhecimento do qual a História da loucura constitui apenas o primeiro passo,
basta lermos a conclusão de Maladie mentale et psychologie: pois nessas
páginas aparecem de maneira evidente o caráter heurístico e também os
limites da nova problemática que Foucault definiu no começo dos anos 60, e
86 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 87.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 177
que devia servir de ponto de partida, mas somente de ponto de partida, para
suas investigações futuras.”87
Apesar de Foucault ter se concentrado sobre o modo como o conceito
de louco fora construído pela cientificidade da medicina, e principalmente
pelas malhas do poder, não deixou o intelectual de mencionar em dispersas,
mas instigantes páginas, a relação que o anormal e o patológico estabelece-
ram com o discurso jurídico, isto é, sem embargo preocupações da ordem
do discurso e do saber, Foucault trouxe contribuições significativas sobre o
modo como o “olhar” jurídico estendeu seus horizontes a fim de dominar
esse “objeto”, fosse enquanto simplesmente homem, núcleo das ciências
humanas, fosse como um sujeito desviante da sociedade, sob o ponto de
vista estatal da repressão social e penal.
Tendo em vista as considerações já realizadas, e antes de se construir
um paralelo entre o louco e o criminoso como “anormais”, como cidadãos
“patológicos”, é oportuno investigar a título exclusivo de esclarecimento para
posteriores questionamentos sobre as prisões e os manicômios brasileiros,
ainda que brevemente, e fugindo exclusivamente às concepções de Foucault,
o modo como o “louco” foi tratado pelo ordenamento jurídico nacional. Ape-
sar da relação entre a loucura e o discurso jurídico ter suas bases em tempos
arcaicos, nos quais o Direito Romano já procurava interpretá-la e delimitá-la
em sua própria externalização, de tal modo que os jurisconsultos romanos,
numa disposição entre mente captus e mentis alienatione, dedicavam-se,
por exemplo, a classificar as diferentes formas de manifestação da loucura
em: furiosus, assim denominados porque apresentavam momentos de inten-
sa raiva entrecortados por espaços de total lucidez, reconhecidos como sen-
su saniore, em dementia, caracterizada pela loucura plena e sem intervalos,
ou mesmo em imbecilitas, pela ausência total de capacidade para gerir seus
bens, o ordenamento brasileiro conferiu ao “louco” seu status non dignatatis,
87 MACHEREY, Pierre. Aux sources de l’Historie de la folie: une rectification et ses limites. Critique: Revue générale des publications françaises et étrangère, Paris, n. 471-472, p. 772 e 773, août/septembre, 1986. “Dans son livre de 62, Foucault montre au contraire que le concept de maladie mentale n’a de sens que sur le fond de cette procédure d’exclusion, dont les origines ou les raisons ne sont pas à chercher dans une quelconque forme de savoir positif, procédure qui, avant même de la reconnaître et de la décrire comme aliénation, installe entre la maladie et les autres formes de l’existence humaine une infranchissable frontière, cette séparation à elle seule conférant aux phénomènes pathologiques leur réalité d’objets offerts au savoir (...) il n’est plus question, à quelque niveau que ce soit, de proposer une explication psychologique de la maladie: car il est évident qu’aucune psychologie jamais ne parviendra à rendre compte du phénomène dont elle doit justement faire oublier les conditions d’apparition. (...) Et pour se convaincre que cette rectification n’a elle même que la valeur limitée, et non pas définitivement fondatrice ou instauratrice, d’un acte discursif qui s’insère lui-même dans le mouvement d’ensemble d’un dispositif de connaissance dont l’Histoire de la folie n’est que le premier jalon, il suffit de lire la conclusion de Maladie mentale et psychologie: car dans ces pages apparaissent de manière éclatante le caractère euristique et aussi les limites de la problématique nouvelle que Foucault a définies au début des années soixante, et qui devait servir de point de départ, mais de point de départ seule-ment, à ses investigations ultérieures.” [trad. br. Nas origens da história da loucura: uma retificação e seus limites. Recordar Foucault (org. Renato Janine Ribeiro). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 69-70.]
178 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
se assim puder ser dito, sempre sob duas vertentes nas legislações, isto é,
no direito civil e no direito penal.
No Brasil, o primeiro tratamento que se deu aos loucos foi por força
das Ordenações Filipinas, também chamadas de Ordenações do Reino, data-
das de 11 de janeiro de 1603. Apesar dessa disposição legal não trazer cla-
ramente a particularização do “louco”, tendo em vista que se estava ainda
sob o império da Igreja católica, como mesmo invocado por Foucault, havia
um tratamento direcionado aos indivíduos que possuíssem desenvolvimento
mental incompleto no tópico da responsabilidade penal, em especial, quando
se referia à menoridade, isto é, aos loucos se aplicava, ao critério do juiz, as
mesmas penalidades que competia aos menores de 20 anos ou entre 17 e 20
anos quando assim entendesse o magistrado, podendo, segundo as circuns-
tâncias e a personalidade do agente atribuir-se diversas sanções. Havia, por-
tanto, naquele período, certa restrição a algumas sanções aos que possuís-
sem desenvolvimento mental incompleto, tal como, por exemplo, a morte
natural, existente na época para os plenamente capazes, como bem salien-
tam Almeida Júnior e J. B. de O. Costa Júnior: “A pena de morte, nas ‘Ordena-
ções do Reino’, era chamada ‘morte natural’ distinta da ‘morte civil’ ou pri-
vação dos direitos civis. Havia a pena de morte ‘atroz’ (depois da morte, o
condenado era açoitado, queimado ou esquartejado, seus bens eram confis-
cados, etc.); e a pena de morte ‘cruel’ (que tinha por fim fazer sofrer antes
da execução capital, mediante tenazes ardentes, esquartejamento, etc.). Ser-
vindo-se os juízes, na sentença, da expressão ‘morte natural’, o réu era exe-
cutado, mas logo enterrado. Quando a sentença condenava a ‘morte natural
para sempre’, ele a sofria na forca, onde o cadáver ficava pendente até de-
compor-se.”88
Após a vigência das Ordenações Filipinas, o Código Criminal do Impé-
rio de 16 de dezembro de 1824, embora ainda não tivesse tratado exclusi-
vamente do “louco”, como figura específica, trouxe em seu art. 10, §§ 1º e 2º,
uma intensão de excluir os doentes mentais da imputabilidade da prática de
crimes, deixando a critério do juiz, em seu livre arbítrio, já que vigia na épo-
ca o princípio do livre e absoluto convencimento, ou da convicção íntima, a
possibilidade de determinar ao louco, autor do fato punível, a internação ou
a entrega em confiança da família para tratamento. Em seguida, o Código
Republicano, chamado Código Penal dos Estados Unidos do Brasil – Decreto
nº 847, de 11 de outubro de 1890 – com todos os ideais políticos que alber-
gava em seu bojo, os quais não convêm nestas linhas serem alongados, tra-
zia uma nova disposição, não mais como mero esboço tal a legislação ante-
rior, a respeito dos loucos. Além dos menores de 9 anos, os que tivessem
entre 9 e 14 anos sem discernimento, o referido Código, em seu art. 27,
88 ALMEIDA JÚNIOR, A.; COSTA JÚNIOR, J. B. de O. Lições de medicina legal. 16 ed. São Paulo: Com-panhia Editora Nacional, 1979, p. 236.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 179
também afastava a configuração de crime para os que fossem portadores de
imbecilidade nativa, enfraquecimento senil, os privados totalmente dos sen-
tidos e da inteligência e os surdos-mudos sem discernimento.89 Alguns au-
tores entendiam que o Código Republicano havia albergado uma redação
errônea ao dispor “privação” em relação aos alienados, ao invés de “pertur-
bação”, como é o caso de Alvarenga Netto,90 em suas anotações, todavia,
hoje já ficou consagrada a redação de melhor técnica a de “privação”, para
evitar discriminações. Desse modo, tendo em vista a “humanização” pela
qual passava o direito penal, uma importante alteração de tratamento ocor-
reu, ou seja, além de vir expressamente na redação legal a previsão do louco
como inimputável, através da figura do “imbecil”, passou-se a determinar
que o juiz não simplesmente aos seus sabores e dissabores aplicasse qual-
quer pena, mas que, através de uma exigência de fundamentar o seu con-
vencimento, com base na doença mental do autor do delito, verificasse a
periculosidade do agente para a aplicação da medida de internamento ou de
entrega aos familiares,91 tendo em vista a segurança pública.
Todavia, o próprio Código Republicano já nascera marcado por inúme-
ras críticas, tanto dos oposicionistas monárquicos quanto dos liberais repu-
blicanos, sofrendo algumas alterações por conta da publicação do Decreto nº
22.213, de 14 de dezembro de 1934, que no governo getulista deu azo à
famosa Consolidação das Leis Penais, por influência do Des. Vicente Piragibe.
Essa compilação, além dos menores de 14 anos e dos surdos-mudos, tam-
bém excluiu o louco da capacidade para cometer delitos e serem considera-
dos penalmente responsáveis, tornando inimputáveis os portadores de im-
becilidade nativa, os portadores de enfraquecimento senil e os que se achas-
sem em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência; e
determinou que esses fossem remetidos a asilos públicos, enquanto não
fossem construídos manicômios estaduais.
Após as consolidações, veio o Código Penal de 1940, trazendo novas
idéias para a própria ciência do direito penal, como a concepção de isenção
de pena no que tange à culpabilidade e inexistência de crime no que diz com
a antijuridicidade. Deste modo, todo aquele indivíduo portador de doença
89 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) e leis penaes subsequentes annotado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1929, p. 30-31. “Título III: Da responsabilidade criminal; das causas que derimem a criminali-dade e justificam os crimes”. “Art. 27. Não são criminosos: § 1º Os menores de nove annos completos; § 2º Os maiores de nove e menores de quatorze, que obrarem sem discernimento; § 3º Os que, por imbecilidade nativa; ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; § 4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime; ... § 5º Os surdos-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento.” 90 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 31. “A redação deste paragrapho, que durante muitos annos serviu de thema a discussões estereis, foi assim substituida pelo art. 38, do Dec. 4.780, de 27 de dezembro de 1921: No artigo 27 § 4, do Código Penal, em vez de ‘privação, leia-se ‘perturbação’.” 91 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 33. “Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabili-dade em resultado de affecção mental, serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do público.”
180 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, seria conside-
rado inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento se assim fosse no tempo
da ação ou da omissão. É assim, que, pela primeira vez no ordenamento ju-
rídico pátrio surgiu, em substituição à antiga sanção republicana da interna-
ção para segurança do público,92 a “medida de segurança”. Essa medida,
segundo dispunha o art. 78, seria aplicada nos casos em que a periculosida-
de era absolutamente presumida por lei, em especial, nos portadores de do-
ença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado inteira-
mente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se
de acordo com este entendimento, e aos agentes que, em virtude de pertur-
bação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retar-
dado, estava privado da plena capacidade de entender o caráter criminoso do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Além do mais,
a despeito de invocar com a criação da “medida de segurança”, em virtude do
princípio da legalidade, que se impunha como preceito fundamental no or-
denamento jurídico penal, essa passou a ser obrigatória de ser imposta pelo
juiz, sempre que previstas as disposições a que remete o art. 91, não dei-
xando, mais, como o era no período imperial – a cargo da convicção íntima
do juiz –, ou no período republicano – a cargo da convicção facultativa, mas
motivada do juiz.
No entanto, o Código Penal de 1940, por influência do ordenamento
italiano, em especial do Código Rocco, com a publicação da Lei nº 6.416/77,
sofreu uma significativa alteração nos elementos caracterizadores daquela
periculosidade a que se referia o art. 77 na redação original, quais sejam:
personalidade do agente, antecedentes, motivos, e circunstâncias do fato,
passando, assim, com a adoção do sistema binário da pena, a admitir a pos-
sibilidade de aplicação sucessiva de pena e de medida de segurança, bem
como de elastecer os critérios formadores do juízo de periculosidade em:
antecedentes, personalidade, motivos determinantes, circunstâncias de fato,
meios empregados para o crime, modos de execução, intensidade do dolo e
o grau de culpa.
É válido ainda mencionar, adotando-se uma arqueologia foucaultiana,
o Código Penal de 1969, de influência doutrinária do ilustre penalista Nelson
Hungria, que embora nem sequer tenha entrado em vigor, ‘revogado’ ainda
em sua vaccatio legis, apesar de ter sofrido algumas vãs alterações por força
da Lei nº 6.016 de 1973, trouxe indispensável tratamento para o tema do
“louco” no ordenamento nacional. Segundo a redação original, o Código de
1969 abandonou o sistema do duplo-binário no que dizia respeito aos semi-
imputáveis em prol do sistema vicariante, cessando, então, a aplicação su-
cessiva de pena e medida de segurança, de tal modo que a pena sofreria
92 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 33. “... assim exigir para segurança do público.”
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 181
uma diminuição ou então seria substituída pela medida de segurança. Ade-
mais, o referido Código fez frente à presunção de periculosidade absoluta
contida na redação original da legislação de 1940, prevendo a possibilidade
de não internação do louco caso não houvesse a periculosidade (a qual era
medida e classificada pelo juiz na sentença, com base na perícia médica, em
três graus: periculosidade “acentuada”, periculosidade “escassa” e periculosi-
dade “nenhuma”), ou seja, caso o inimputável não mostrasse oferecer perigo
à incolumidade alheia, consoante disposição do art. 92, não poderia ser in-
ternado em manicômio judiciário. A idéia do tratamento através da medida
de segurança, foi, sem dúvida, o grande avanço do Código Penal de 1969,
ou, ao menos, o que o fez distinguir-se dos demais, todavia, a despeito da
opinião de muitos autores, que entendem que o “aprisionamento” nos mani-
cômios seria uma forma de regeneração e cura pela medida de segurança, é
oportuno sempre tecer críticas, sobretudo do ponto de vista prático e nor-
malizador dos hospitais psiquiátricos, como ser verá adiante, realidade essa
triste no Brasil.
Por fim, houve a reforma de 1984, por força da Lei nº 7.209, de 11 de
julho de 1940, que alterou significativamente a parte geral do Código de
1940. Pela nova redação, em especial no que tange ao tratamento do louco,
viu-se extinguir definitivamente o sistema do duplo-binário para os imputá-
veis e semi-imputáveis, aplicando-se a estes o sistema vicariante, cabendo
ao juiz a possibilidade de aplicar a pena com ou sem a redução de um a dois
terços, consoante disposição do art. 26, § único, ou substituí-la por medida
de segurança, caso venha o semi-imputável necessitar de um tratamento
considerado curativo, tal como prevê o art. 98, igualando-se aos inimputá-
veis. A exposição de motivos da nova parte geral põe como ideal o fim “pre-
ventivo” e “assistencial” da medida de segurança, em especial a partir do fim
da presunção de periculosidade, ainda que formalmente; todavia, na prática
o que existe é verdadeiramente uma presunção total, absoluta e inafastável
da periculosidade dos doentes mentais, que sofrem a medida de segurança
sem qualquer forma de exame, e somente podem ter sua pena substituída
por tratamento ambulatorial, conforme redação do art. 98, nos casos que se
tratar de pena de detenção.
No âmbito civil,93 convém informar que a regulação expressa, e que
aqui importa, só se deu com o Código Civil de 1916, outrora vigente (recen-
temente substituído pelo Código Reale – Lei. 10.406/02), que buscou fazer
uma distinção entre os absolutamente e os relativamente incapazes para
praticar atos civis, trazendo em seu art. 5º, II, uma disposição significativa ao
afirmar que “os loucos de todo o gênero” seriam incapazes para exercer pes-
93 O Código Napoleônico de 1804, inspiração do código brasileiro, e o que fora referido por Foucault, trata da questão dos loucos entre os arts. 488 e 515, referindo-se ao estado habitual de imbecilidade, demência ou de furor. in Código Napoleão ou Código Civil dos Franceses. (org. Souza Diniz) Rio de Janeiro: Record, 1962, p. 109-111.
182 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
soalmente, o que significa dizer que exigem uma representação, os atos da
vida civil, sob pena de serem quaisquer de suas ações consideradas nulas,
isto é, juridicamente sem efeito.94 Do mesmo, atualmente, no direito penal, a
percepção da “doença mental” e do “louco” está relacionada ora no próprio
conceito de crime, ora na idéia de responsabilidade penal, através da noção
de inimputabilidade. Destaque-se, por fim, que as incoerências exauridas
pelo novo código certamente poderiam ser questionadas, mas não se põem
como escopo desse trabalho, tão somente algumas reflexões, para se repen-
sar os modelos de tratamento do louco e também do criminoso pelo orde-
namento jurídico, ainda marcados pelo modelo normalizador sobre o qual
Foucault se debruçara.
Feitas essas considerações, é inevitável deixar de investigar, dentro da
genealogia foucaultiana, o modo como foi construído o conceito de crimino-
so, análogo ao louco na idéia de exclusão, pelo discurso jurídico, isto é, co-
mo se dera a relação entre o fato criminoso, o seu agente e a resposta em-
preendida pelo discurso jurídico, desde o momento de seu cometimento até
a sua punição pelas prisões. Em Surveiller et Punir, Foucault reflete clara-
mente a situação do criminoso e sua situação de exclusão, tal como o inter-
namento dos loucos. Como visto anteriormente, é especialmente no modelo
francês que o internamento do século XIX, contrariamente ao que havia no
século XVIII, demonstra que todas as instituições – “fábrica, escola, hospital
psiquiátrico, hospital, prisão – têm por finalidade não excluir, mas, ao con-
trário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um
aparelho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechando-
os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O hospital psiquiátri-
co não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um apare-
lho de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de cor-
reção ou com a prisão. Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclu-
são do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em
um aparelho de normalização dos homens.”95 A relação dos criminosos está
relacionada ao surgimento das prisões no séc. XVIII, como casas de correção
e punição, como se verá em seguida.
94 Destaque-se que o NCCB, o código realeano, alterou a equivocada expressão “loucos de todos gênero”, - uma das hipóteses de absoluta incapacidade – prevista no Código Beviláqua (Código Civil de 1916), pela redação mais correta e apropriada: “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos.” (art. 3º, II). 95 FOUCAULT, Michel. A verdade ..., p. 114. [trad fr. La vérité ..., p. 614. “... usine, école, hôpital psychia-trique, hôpital, prison – ont pour finalité non pas d’exclure mais, au contraire, de fixer les individus. L’usine n’exclut pas les individus, elle les attache à un appareil de production. L’école n’exclut pas les individus, même en les enfermant; elle les fixe à un appareil de transmission du savoir. L’hôpital psychiatrique n’exclut pas les individus, il les attache à un appareil de correction, à un appareil de normalisation des individus. Il en va de même de la maison de correction ou de la prision. Même si les effets de ces instituions sont l’exclusion de l’individu, elles ont comme finalité preimière de fixer les individus dans un appareil de normalisation des hommes....”]
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 183
Enfim, estabelecida a impiedosa relação, no campo exclusivo do saber,
entre a formação, a constituição e o conceito de louco e de criminoso a partir
de paradigmas sociais e científicos de normalidade, bem como no campo
governamental das políticas públicas entre a forma de encarceramento e
isolamento, que aprisionou loucos e criminosos sob os mesmos motivos,
convém refletir, então, alguns questionamentos, diretamente ligados à essa
necessidade de exclusão e de tratamento, isto é: através de que dispositivos
se procurou normalizar os corpos indóceis dos criminosos, e readaptar os
recorrentes de patologias mentais?; sob que fundamentos e finalidades se
constituíram mecanismos de poder em torno dos loucos e dos criminosos?
São essas indagações referentes às prisões e aos manicômios, e conduzido
pelas crises carcerárias que estavam ocorrendo no mundo pós-guerra, em
especial na França, que Foucault, a partir da idéia de vigilância e punição se
propôs a respondê-las, alçando temas críticos como punibilidade, pena de
morte e abolicionismo.
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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 185
Andriessa Ortega Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Positivo
O presente trabalho buscou analisar de que maneira a modalidade de
licitação convite viola os princípios constitucionais da publicidade e da iso-
nomia. Ademais, o estudo contemplou o Projeto de Lei nº 7.709/2007 que
prevê alterações na Lei Federal nº 8.666/1993, estatuto atual que rege as
licitações públicas.
Palavras-chave: Princípios; Lei Federal nº 8.666/1993; Licitação; Convi-
te.
As despesas realizadas no âmbito do Estado merecem destaque no
contexto sócio-econômico do País, uma vez que certos programas de gover-
no podem contribuir sobremaneira para o desenvolvimento de determinados
setores. Não obstante, a tendência do Estado contemporâneo seja a terceiri-
zação de atividades prestadas pelo setor público, levando a uma diminuição
do espaço de atuação estatal, os gastos gerados pelo Estado ainda tem
grande relevância para a economia brasileira.
A estrutura estatal continua absorvendo boa parcela de serviços, obras
e compras, portanto, a redução do seu alcance deve ser analisada sob a ótica
186 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
da realidade social em que o País se encontra, haja vista que em determina-
das regiões o papel que o Estado desempenha, por mais precário que seja,
ainda é fundamental para a sobrevivência das populações mais carentes, não
sendo possível a sua substituição pela iniciativa privada.
Dada a importância da atuação estatal no que tange à contratação de
serviços, aquisição de bens e construção de obras públicas, faz-se relevante
a análise da legislação e dos princípios pertinentes ao tema das licitações,
tendo em vista que o processo licitatório é dever da Administração Pública,
ressalvadas as exceções previstas em lei.
O objeto de estudo do presente trabalho versa sobre a inconstituciona-
lidade da modalidade de licitação convite, no que se refere aos princípios da
publicidade e da isonomia nas licitações públicas. Será abordado o princípio
constitucional da publicidade e a sua importância, uma vez que seu escopo
fundamental é informar o conteúdo dos atos administrativos, pois a Admi-
nistração Pública tem o dever de agir com transparência. Por isso, no que
tange à licitação, via de regra, a publicidade deve estar presente em todas as
suas fases. A publicidade é benéfica não apenas para a própria Administra-
ção, mas, também, para os licitantes e, sobretudo, para a coletividade. Na
medida em que os cidadãos têm a possibilidade de controlar e fiscalizar os
atos do Estado, a sociedade pode se resguardar contra arbitrariedades e im-
pugnar atos que atentem contra o interesse público.
A publicidade administrativa decorre dos vários princípios que regem o
Estado Democrático de Direito, e consiste não apenas em informar à popula-
ção sobre os atos praticados pela Administração Pública, mas, principalmen-
te, tem por objetivo explicar o porquê da sua atuação de determinada ma-
neira, e não de outra, bem como avaliar o nível de influência da sociedade no
processo de tomada de decisões.
No presente estudo será contemplado outro preceito constitucional, a
isonomia. Será analisada a sua relevância para o ordenamento jurídico brasi-
leiro, uma vez que o princípio da isonomia funciona como importante meca-
nismo regulador das normas, na medida em que todos os destinatários de
determinada lei devem ser tratados de forma igual. No entanto, o conteúdo
do princípio da isonomia aplicado à licitação não se limita à ideia de trata-
mento igualitário entre os concorrentes, mas remete à aplicação de outros
princípios dele decorrentes. No momento em que o agente público oferece
tratamento isonômico a todos os licitantes, ele está agindo em conformidade
com os demais princípios que são correlatos ao processo licitatório, como a
moralidade e a probidade administrativa.
Como bem asseverou a professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, o
convite é a única modalidade de licitação para a qual a lei não impõe que o
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 187
ato convocatório seja publicado, haja vista que a convocação é feita por es-
crito, por meio de expedição de carta-convite, com antecedência de, no mí-
nimo, cinco dias úteis.1
O professor Joel de Menezes NIEBUHR também faz a mesma observa-
ção, ao afirmar que na modalidade de licitação “convite” não é obrigatória a
publicação do resumo da carta-convite em diário oficial, jornal de grande
circulação ou em outro meio que assegure a efetiva publicidade do certame.
Todavia, basta apenas o envio do convite a pelo menos três potenciais inte-
ressados e a fixação de cópia do instrumento convocatório nos murais ou
quadros de avisos das repartições públicas, para estender o convite a todos
os demais interessados que se encontrem cadastrados.2
Portanto, é possível afirmar que este procedimento licitatório viola o
princípio da publicidade, uma vez que a Administração somente afixa cópia
do instrumento convocatório em um quadro de avisos da repartição, prática
esta que não é hábil a garantir a devida publicidade ao acontecimento. No
entanto, se fosse conferida a publicidade adequada ao certame, a própria
Administração seria beneficiada, visto que acorreria um número maior de
potenciais licitantes e, consequentemente, as propostas seriam mais vanta-
josas. Além disso, a falta da devida publicidade facilita possíveis negociações
fraudulentas.3
Com vistas a não afrontar esse princípio, o Estado do Paraná instituiu a
Lei nº 15.608/2007 que impõe, em seu artigo 37, parágrafo 3º, o dever de
publicar o convite na imprensa oficial e por meio eletrônico, a fim de garantir
que a licitação seja publicada adequadamente.4
O princípio da publicidade reclama a ampla divulgação dos atos admi-
nistrativos, a fim de que seja demonstrada a transparência da gestão pública,
assim como possibilita que a sociedade exerça controle e fiscalize a conduta
da Administração. Logo, o fato de simplesmente afixar o convite no mural ou
quadro de avisos da repartição não atende à exigência deste princípio.5
Tal procedimento se revela muito problemático, posto que a Lei n.
8.666/93, ao não exigir a publicação do resumo do convite em jornal im-
presso, mas apenas o envio do instrumento convocatório aos convidados e a
1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 384. 2 NIEBUHR, Joel de Menezes. Modalidade convite: Inconstitucionalidade, aspectos controvertidos e proposta de extinção. Revista Zênite de Licitações e Contratos, p. 1-8, ago. 2007. Disponível em: <http://www.valeriacordeiro.pro.br/artigos.htm>; <http://www.zenite.com.br>. Acesso em: 14/02/2010. 3 DAMICO, Rodolpho Pandolfi. As Fragilidades da carta convite. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, n. 50, ano XI, p. 1-2, fev. 2008. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 14/02/2010. 4 PARANÁ. Lei de licitações, contratos administrativos e convênios no âmbito dos Poderes do Estado do Paraná, Lei n. 15.608 de 16 de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.pr.gov.br>. Acesso em: 14/02/2010. 5 MARRA, Luciana Cardoso. A mitigação do princípio da publicidade no processo licitatório na modalidade convite. Revista Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 34, p. 193-200, 2006. Dispo-nível em: <http://www.revista.fadir.ufu.br>. Acesso em: 14/02/2010.
188 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
fixação de cópia do mesmo no quadro de avisos do órgão licitante, não ga-
rante a menor publicidade do ato.6
Para exemplificar, considera-se uma hipótese na qual, por algum moti-
vo, o agente administrativo responsável pela carta-convite deixou de afixá-
la no quadro de avisos da repartição pública que promove o certame e, ao
final do processo, alguém se sentiu prejudicado por não ter tomado o devido
conhecimento da licitação. Nesse contexto, será pouco provável que o indi-
víduo disponha de meios para provar que a carta-convite realmente não fora
colocada no lugar devido. A única forma que lhe restaria, a fim de comprovar
o fato, seria comparecer diariamente ao prédio do órgão licitante, munido de
testemunhas ou pedir certidões diárias acerca da publicação ou não da car-
ta-convite. Tal sugestão, seguramente, é improvável que seja praticada. Res-
salte-se que para as outras modalidades de licitação tal situação não se veri-
fica, pois a obrigatoriedade da publicação do instrumento convocatório na
imprensa oficial e/ou em jornal de grande circulação faz prova irrefutável da
existência de possíveis irregularidades.7
O doutrinador José Afonso da SILVA ensina que a publicidade sempre
foi considerada como um princípio administrativo, pois se conclui que o Po-
der Público, justamente por ser público, tem o dever de atuar com a maior
transparência possível para que os administrados tenham, a todo o momen-
to, ciência acerca das condutas da Administração.8
Portanto, publicar é não apenas tornar público e sim tornar claro e
compreensível ao público. É fazer com que a publicidade cumpra o papel
fundamental de verdadeiramente informar o público, considerado tanto o
conjunto de cidadãos em face de normas gerais como, igualmente, o univer-
so restrito de administrados sujeitos aos efeitos de determinado ato admi-
nistrativo.
A publicidade é condição absolutamente imprescindível para se verifi-
car a regularidade de qualquer licitação. Imaginar uma licitação secreta, rea-
lizada às escondidas, é tão incoerente quanto efetuar a adjudicação do obje-
to ao último classificado. Além disso, uma licitação oculta será, na maioria
das vezes, eivada de vícios como o dolo, o desvio de finalidade, a má-fé da
Administração e os favoritismos. Por mais este motivo, é racionalmente
inadmissível.9
Logo, a precariedade da publicação da modalidade convite facilita so-
bremaneira a corrupção e todo tipo de imoralidades, favorecendo a realiza-
ção de negociatas, a fim de burlar os contratos administrativos. Haja vista
que não havendo controle efetivo quanto à publicidade da carta-convite, o
6 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 3. 7 Idem. 8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 653. 9 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. Manual Prático das Licitações. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 92.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 189
agente administrativo que desejar agir com má-fé poderá deixar de afixar o
instrumento convocatório no quadro de avisos e terá ampla liberdade para
escolher o vencedor da licitação, pactuando previamente com ele o que qui-
ser. Uma fraude perfeitamente possível de ocorrer é que o agente público
pode mandar um convite para o “licitante”, que será beneficiado, e outros
dois convites a empresas mancomunadas com o primeiro. Assim, as duas
empresas apenas participariam da licitação como meros figurantes com o
intuito de validar a contratação.10
A limitação imposta pela própria Lei de Licitações ao princípio da pu-
blicidade, na modalidade convite, não é compatível com a lógica constitucio-
nal que exige do administrador público o dever de respeitar as leis e os prin-
cípios da boa administração, os quais convergem para efetivar o Estado De-
mocrático de Direito.11
O princípio da publicidade encontra respaldo no inciso XXXIII, do artigo
5º, da Constituição Federal, no que se refere ao direito à informação, pre-
vendo que o sigilo é excepcional. Portanto, a regra geral é que a publicidade
dos atos administrativos deve ser ampla, sendo restringida apenas para pre-
servar a segurança nacional.
Também, por força do artigo 5º, XXXIV, “b”, da Constituição da Repú-
blica, que garante ao cidadão o direito de obter certidões em repartições
públicas, ensina a doutrina que “toda licitação é, antes de mais nada, intei-
ramente pública, devendo ser literalmente, mesmo, escancarada aos olhos
de qualquer cidadão, nela interessado diretamente ou não”.12
Nesse sentido, a Lei de Licitações falha ao dispensar a publicidade do
convite por meio de órgão oficial, sendo suficiente a afixação do instrumento
convocatório no quadro de avisos da entidade administrativa, consoante o
artigo 22, §3º, da Lei nº 8.666/93.13
Essa disposição normativa constitui violação gritante ao princípio
constitucional da publicidade, pois são restringidos os meios que possibi-
litariam o acesso ao conhecimento do convite. Concomitantemente, esti-
mula o favoritismo, vez que a Administração pode selecionar previamente
somente alguns dentre os cadastrados, em número mínimo de três, para
participarem do certame. Os outros cadastrados, se desejarem participar,
deverão manifestar seu interesse com antecedência de até 24 horas da
apresentação das propostas. Porém, o problema reside na dificuldade de
que efetivamente chegue ao conhecimento desses potenciais licitantes a
realização do certame.14
10 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 3. 11 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit., 198. 12 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. op. cit., p. 92. 13 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit., 195. 14 Ibidem. p. 198.
190 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Na lição de Marçal JUSTEN FILHO, não há obrigatoriedade da publicação
do aviso do convite pela imprensa, mas é imperioso tornar pública a instau-
ração da licitação. Assim, se não for considerada a possibilidade de expedi-
ção de convites, pela Administração, a pessoas não cadastradas, outros inte-
ressados poderão participar do certame, desde que cadastrados. Por isso,
deve-se assegurar a possibilidade dos cadastrados tomarem ciência do con-
vite. Por óbvio, não é proibido valer-se da imprensa como meio de divulga-
ção. Há situações em que o recurso à imprensa seria a saída mais apropria-
da. Assim acontece quando não acudirem interessados aos certames e a
Administração julgar inadequadas as propostas apresentadas. No caso de
licitações frustradas ou desertas, seria adequado veicular o aviso do convite
pela imprensa.15
Como acertadamente afirmou Wallace Paiva MARTINS JUNIOR, “o convi-
te é o caldo de cultura mais propício e fértil para disfunções da licitação”.16
Portanto, adverte-se sobre a imprescindibilidade da publicidade no convite,
a fim de evitar que esta modalidade de licitação fraude os princípios da
igualdade e da moralidade.17
Portanto, não é admissível manter uma situação que privilegia o segre-
do, a partir de uma restrição ao princípio constitucional da publicidade. Tal
preceito é fraudado por meio de uma publicidade mascarada, configurando
uma inconstitucionalidade que deve ser evitada e expurgada do ordenamen-
to jurídico brasileiro.18
Conforme prescreve o artigo 22, parágrafo 3º, da Lei de Licitações, a
cópia do instrumento convocatório deve ser afixado, pela unidade adminis-
trativa, em local apropriado. Acerca desta regra, a professora Maria Sylvia
Zanella DI PIETRO ensina que, dessa forma, outros interessados que não fo-
ram convidados, desde que estejam cadastrados, poderão participar da lici-
tação se manifestarem seu interesse com até 24 (vinte e quatro) horas de
antecedência da abertura das propostas. Segundo a autora, a afixação do
instrumento convocatório visa permitir a participação de outros interessados,
contribuindo para ampliar o rol de licitantes. No entanto, as exigências feitas
pela Lei nº 8.666/93, no sentido de que os não convidados devem estar ca-
dastrados e devem manifestar seu interesse em participar do certame com
antecedência de até 24 (vinte e quatro) horas da apresentação das propostas,
15 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 239. 16 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Convite e número mínimo de interessados. Revista Nacional de Direito e Jurisprudência. Brasil, v. 6, n. 72, p. 21-24, 2005. 17 Idem. 18 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit. p., 198.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 191
acaba por tornar mais complexo um procedimento que tem como principal
característica a simplicidade, posto que é cabível para contratações de pe-
queno vulto.19
É possível concluir que a intenção do legislador, ao exigir que o ins-
trumento convocatório fosse afixado em local adequado, na repartição da
unidade administrativa promotora do certame, foi estender o convite àqueles
interessados que não foram convidados pela Administração. No entanto, o
legislador impôs condições à participação destes, ou seja, estes interessados
devem possuir cadastro naquela entidade administrativa e devem manifestar
seu interesse em participar do certame no prazo determinado pela lei. Logo,
a norma obstaculiza a participação de interessados cadastrados, embora não
convidados, ferindo o princípio da isonomia, pois não garante a todos os
licitantes acesso igualitário à disputa.
Tal exigência é considerada disparatada pelo professor Joel de Mene-
zes NIEBUHR, posto que é desprovida de qualquer sentido ou justificativa.
Ressalte-se que a referida previsão legal impõe a manifestação da intenção e
não a apresentação da proposta. A propósito, a intenção pode ser demons-
trada de qualquer forma, até oralmente. Pode ser manifestada por meio de
ofício, formulário, entre outros. Em que pese a liberdade de forma, é reco-
mendável que o interessado adquira um comprovante acerca da manifesta-
ção do seu interesse em participar da licitação.20
Quanto à escolha dos destinatários do convite, como afirma ainda Joel
de Menezes NIEBURH, “A Administração, diga-se, decide de modo discricio-
nário sobre os convidados, não havendo qualquer pré-requisito legal”.21 So-
bre este tema, o professor Marçal JUSTEN FILHO adverte sobre os riscos de
se violar a moralidade e a isonomia, uma vez que a seleção dos convidados é
feita de forma discricionária pela Administração. Restará caracterizado des-
vio de finalidade, se determinados licitantes forem excluídos ou selecionados
devido a preferências puramente subjetivas, o que resultará na invalidação
do ato. A seleção prévia dos licitantes deve ser feita considerando o interesse
da Administração com vistas à realização de suas funções.22
Ainda, segundo Marçal JUSTEN FILHO, o problema mais grave diz res-
peito ao envio de convite a sujeitos não cadastrados. O autor explica que os
cadastrados não precisam necessariamente receber o convite por parte da
Administração, uma vez que basta a manifestação prévia para que possam
participar. Por outro lado, o ponto nevrálgico está no fato de a Administração
destinar convite a não cadastrados.23 A questão apresenta dois aspectos
problemáticos. O primeiro problema enfrentado é que a falta de cadastra-
19 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. op. cit., p. 384. 20 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 5. 21 Ibidem. p. 4. 22 JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 249. 23
Ibidem. p. 250.
192 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
mento espontâneo por parte do particular pressupõe a ausência de interesse
do sujeito em participar de licitações. O segundo ponto crítico é que, a au-
sência de cadastro não permite verificar ao menos a capacidade jurídica do
particular para ser contratado. O cadastramento possibilita que a Adminis-
tração analise algumas condições mínimas de idoneidade. Dessa forma, ao
expedir convite a um sujeito não cadastrado, a Administração assume riscos
muito maiores. É muito provável que um determinado sujeito não tenha efe-
tuado seu cadastro por saber que não dispunha de condições para fazê-lo.24
Para convidar sujeito não cadastrado, a Administração deve contar com
evidências objetivas de que o convidado reúne as condições necessárias para
executar o objeto, não podendo valer-se apenas de sua competência discri-
cionária para convidá-lo. A falta de motivação acerca da escolha de um su-
jeito não cadastrado é passível de impugnação por parte dos licitantes ca-
dastrados. Assim, o envio de convite a não cadastrados compreende a elabo-
ração de critérios discriminatórios adequados, bem como o cuidado para
evitar a celebração de contratos com sujeitos inidôneos.25
No entanto, convidar apenas sujeitos cadastrados também pode ferir o
princípio da igualdade, conforme entende o professor Jessé Torres PEREIRA
JUNIOR. Para o autor, ainda que a Administração possa convidar apenas em-
presas cadastradas para participar do certame o que segundo ele, muitos
sugerem a fim de evitar o direcionamento do convite e consequentemente
reforçar o princípio da moralidade, tem se mostrado inexequível na prática.
Ocorre que, por se tratar de licitação cujo objeto é sempre de baixo valor, as
empresas do ramo pertinente são geralmente de pequeno porte e não se
interessam em reunir a documentação necessária para realizar o cadastro,
que é numerosa e onerosa. Logo, se apenas as empresas cadastradas pudes-
sem ser convidadas, o número de empresas convocáveis seria pequeno, o
que resultaria em baixa competitividade e em discriminação atentatória ao
princípio da igualdade.26
Portanto, consoante assevera o professor Joel de Menezes NIEBUHR,
podem participar da licitação, além dos convidados, todos os demais cadas-
trados perante a Administração. Significa dizer que, de acordo com o pará-
grafo 3º, do artigo 22, da Lei nº 8.666/96, aqueles interessados não cadas-
trados e não convidados não podem participar do convite. Então, se um inte-
ressado não cadastrado e não convidado tomar ciência da realização do con-
vite e quiser participar da licitação, será necessário que providencie antes o
seu cadastramento, o qual deverá ser efetuado de pronto pela Administra-
ção, sob pena de infringir o princípio da isonomia. A regra contida no dispo-
sitivo legal em questão atrai inúmeras críticas, posto que o convite deveria
24 Idem. 25 Idem. 26 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da Administração Pública. 7.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 268.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 193
ser acessível a qualquer interessado que atendesse aos requisitos estabele-
cidos no instrumento convocatório, independentemente de cadastramento
prévio.27
Para o aludido professor, a modalidade convite, além de ferir o princí-
pio da publicidade, também encerra uma afronta veemente ao princípio da
isonomia. Para explicar tal violação, o autor fornece o seguinte exemplo: de
um lado, três supostos interessados recebem o convite em suas próprias
sedes, ao passo que, de outro lado, outros possíveis interessados, que deve-
riam receber o mesmo tratamento, não chegam a tomar conhecimento da
existência da licitação, pois não existem condições razoáveis para isso. Con-
figura-se completamente desarrazoado imaginar que os sujeitos consigam
verificar diariamente os quadros de avisos de todos os órgãos licitantes, à
exceção de grandes centros, onde empresas especializadas realizam tal ati-
vidade. Logo, é notório o tratamento desigual, ofensivo ao princípio da iso-
nomia, na medida em que para alguns foi oportunizado o conhecimento da
existência do certame, porque receberam as cartas-convite em seus endere-
ços, ao passo que outros possíveis interessados sequer tiveram condições
razoáveis para saber da existência da licitação.28 Portanto, é possível vislum-
brar exemplo claro e perfeitamente fatível de ofensa à isonomia.
Consoante entendimento da professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO,
no que se refere à habilitação dos licitantes, esta é imprescindível apenas
para aqueles que se apresentarem sem que a Administração os tenha convi-
dado, pois devem estar cadastrados. Para os demais, a habilitação é faculta-
tiva, conforme redação do artigo 32, parágrafo 1º, da Lei 8.666/93. Esse
tratamento diferenciado ofende o princípio da isonomia, pois a exigência de
certificado para os não convidados só seria justificável nos casos em que a
Administração exigisse habilitação dos convidados. Da forma como está re-
digido o texto legal, essa norma poderá permitir a inabilitação de um licitan-
te que não tenha o certificado de registro cadastral regular, ao passo que,
para os licitantes convidados não se exigiu nenhum documento.29
Porém, o professor Jessé Torres PEREIRA JUNIOR adverte que o pará-
grafo 1º, do referido artigo 32, pode levar ao entendimento incorreto de que
a Administração poderia eliminar a fase de habilitação da modalidade convi-
te, uma vez que seria possível dispensar, no todo ou em parte, os documen-
tos relativos a tal fase. O autor entende que, no mínimo, o documento refe-
rente à comprovação de regularidade com a seguridade social é imprescindí-
vel, pois decorre de diretriz constitucional.30
27 NIEBUHR, Joel de Menezes. op.cit., p. 5. 28 Ibidem. p. 3. 29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. op. cit., p. 384. 30 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. op. cit., p. 273.
194 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Assim, o Tribunal de Contas da União já firmou posicionamento quanto
“à obrigatoriedade de exigir-se certidão negativa para com o INSS no mo-
mento da habilitação do licitante”.31
Ademais, aplicar o princípio da isonomia à licitação significa dizer que,
a princípio, antes de realizar algum tipo de diferenciação legítima entre os
potenciais licitantes, a todos eles é conferido direito igual à disputa pela
contratação com a Administração Pública. Nesse caso, a igualdade represen-
ta a expectativa igual que todos têm de contratar com a Administração, ven-
cendo a disputa aquele que apresentar a maior vantagem.32
Em sentido amplo, a isonomia significa que todo e qualquer interessa-
do tem acesso livre a competir pela contratação com o poder público. Como
consequência direta do princípio da isonomia, a Administração está impedi-
da de escolher um determinado sujeito sem observar um procedimento sele-
tivo apropriado e prévio, do qual constem exigências razoáveis acerca do
objeto a ser executado.33
O descumprimento deste princípio representa a forma mais ardilosa de
desvio de poder, com o qual a Administração rompe a isonomia entre os
licitantes. Por esse motivo, o Poder Judiciário vem anulando editais e julga-
mentos nos quais se constatam perseguições ou favoritismos, posto que tais
práticas são desprovidas de objetivo ou interesse público.34
Assim, resta claro que essa modalidade vai de encontro aos princípios
da publicidade e da isonomia. Pelo fato de somente três licitantes serem
convidados, acaba por conferir tratamento desigual aos não convidados, vez
que os mesmos não possuem meios razoáveis para conhecer da licitação
pública.
O Projeto de Lei n. 7.709 foi enviado ao Congresso Nacional pelo Poder
Executivo, em fevereiro de 2007, com vistas a conferir celeridade e minimi-
zar o custo das contratações, assim como facilitar a participação de interes-
sados. Esse projeto faz parte do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
Constam do Projeto algumas propostas tendentes a simplificar as contrata-
ções públicas, como a obrigatoriedade de utilização do pregão para contratar
bens e serviços comuns; a possibilidade de valer-se de recursos eletrônicos
para as modalidades de concorrência, tomada de preços e convite e a inver-
31 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão nº 527/95, Plenário. Relator Ministro José Antonio Barre-to de Macedo. Brasília, publicado em 31/10/95. Disponível em: <http://www.tcu.gov.br >. Acesso em: 15/02/2010. 32 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. op. cit., p. 90. 33 JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 67 34 MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 277.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 195
são das fases de classificação e habilitação nas referidas modalidades.35 O
projeto não põe fim ao convite, porém passa a exigir a adoção da modalida-
de pregão para a maioria das situações em que se fazia possível a utilização
dessa modalidade.
A Lei nº 10.520/2002, que instituiu o pregão, determinou que essa
modalidade poderia substituir o convite, a tomada de preços e a concorrên-
cia, quando os serviços e bens contratados fossem considerados comuns.36
Porém, o Projeto de Lei estabelece que o pregão, especialmente o eletrônico,
seja obrigatório nessas situações.37
Com a utilização dos meios eletrônicos, a tendência é que as licitações
se tornem mais transparentes, mais competitivas e mais baratas, gerando
maior economia para os cofres públicos. Este é um dos motivos que tornará
a modalidade convite obsoleta.38
É por meio da Administração Pública que o Estado realiza as suas fun-
ções, por isso são necessárias regras para nortear a sua própria atuação. Os
agentes que o representam devem obedecer às regras impostas à Adminis-
tração, pois trabalham gerindo a coisa pública, que é de interesse de toda a
coletividade.
Dentre os princípios que devem direcionar a atuação estatal, o dever
de licitar é um deles. Quando a Administração precisa realizar obras ou con-
tratar serviços, ela não pode escolher um determinado fornecedor de acordo
com sua própria vontade. O poder público tem o dever de instaurar uma
competição e torná-la pública, com vistas a receber um grande número de
propostas. Assim, terá um vasto campo de escolha e poderá contratar, ob-
servados todos os critérios legais, aquele fornecedor que oferecer a melhor
vantagem para atender ao interesse público.
É de interesse da coletividade que a Administração Pública disponha de
várias propostas de preços, pois assim terá maiores chances de selecionar o
melhor fornecedor, pelo preço mais adequado. As despesas com contrata-
ções oneram os cofres públicos, por isso, ao realizar uma licitação idônea e
embasada nos ditames da lei, tanto o erário quanto a coletividade estarão
sendo resguardados.
35 TOLOSA FILHO, Benedicto de. Propostas do PAC para Alteração da Lei de Licitações. Disponível em: <http://www.investidura.com.br/biblioteca- juridica/artigos/administrativo/2543-propostas-do-pac-para-alteracao-da-lei-de-licitacoes.html>. Acesso em: 13/03/2010. 36 Lei do Pregão, Lei nº 10.520 de 18 de julho de 2002. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14/03/2010. 37 CONLICITAÇÃO 2010. Câmara aprova projeto para desburocratizar licitações. Disponível em <http://www.conlicitacao.com.br/futuro/lei/noticias/semana_licitacoes.php>. Acesso em: 14/03/2010. 38 Idem.
196 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
No entanto, se a licitação não for amplamente divulgada, ou seja, se
não tornar viável que um universo amplo de pessoas tome conhecimento
acerca da sua realização, poucos ou nenhum interessado acorrerá ao certa-
me e não serão concretizados os ideais de competição, melhor vantagem,
isonomia entre os participantes, buscados em uma disputa, posto que não
haverá disputa.
Devido à divulgação insuficiente do convite, (afixação do ato convoca-
tório nos quadros de avisos da repartição e envio do convite a, no mínimo,
três convidados), não é possível que a sociedade tome conhecimento da rea-
lização do certame. Como ocorre com as outras modalidades, a veiculação
do aviso de licitação por meio de jornal impresso é uma maneira de se con-
ferir ampla publicidade aos atos da Administração Pública e, em decorrência
disso, alcançar um número maior de potenciais licitantes.
Na medida em que nem todas as pessoas têm a possibilidade concreta
de tomar ciência acerca da realização de uma licitação, elas não terão acesso
igualitário à disputa, portanto o princípio constitucional da isonomia restará
violado.
Na modalidade convite, apenas os fornecedores convidados, cadastra-
dos ou não, terão conhecimento efetivo de que acontecerá um certame lici-
tatório.
Ante ao exposto no presente trabalho, o acesso à licitação sob a mo-
dalidade convite é extremante restrito. Por esse motivo, é muito fácil que o
agente público inescrupuloso direcione a licitação para beneficiar determina-
do licitante e firme com este os mais sórdidos acordos. Ademais, a suposta
divulgação, completamente ineficaz, contribui sobremaneira para a realiza-
ção de todo o tipo de negociatas, pois se a licitação é feita às escondidas,
dificilmente as irregularidades serão descobertas, uma vez que praticamente
ninguém ficou sabendo da realização do certame.
Dessa forma, o Projeto de Lei nº 7.709/2007, é bem vindo no sentido
de utilizar o pregão presencial ou eletrônico para a maioria das situações nas
quais seria possível utilizar o convite. Na medida em que tal modalidade co-
mece a ser pouco empregada, com o passar do tempo cairá em desuso. En-
tão, será extirpada do seio da Administração Pública a possibilidade de se
engendrar as fraudes que hoje são acobertadas sob a modalidade convite.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 197
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
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tos controvertidos e proposta de extinção. Revista Zênite de Licitações
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198 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 199
Anneliese Gobbes Faria
Acadêmica do 4º ano do Curso de Direito da Universidade Positivo
É extremamente comum o empresário “em crise” encontrar abissais di-
ficuldades para reerguer sua empresa, sendo a falência um terrível pesadelo.
Este artigo busca estabelecer formas de planejamento estratégico, como so-
lução dentro do contexto de um plano de recuperação da empresa. É impor-
tante ressaltar que a empresa deve apresentar viabilidade econômico-
financeira para poder se manter no mercado. Os beneficiados da reinserção
da empresa no mercado serão, além dos empresários e empregados, os cre-
dores, a sociedade como um todo e a economia do país. A insolvência é
muitas vezes causada pela má administração. São por meio do planejamento
estratégico, do planejamento tático e operacional que os caminhos a serem
trilhados pela empresa serão traçados e executados. Um dos métodos que
pode ser empregado é o Balanced Scorecard. Os objetivos e medidas do Ba-
lanced Scorecard focalizam o desempenho organizacional sob quatro pers-
pectivas: financeira, do cliente, dos processos internos e do aprendizado e
crescimento. No entanto, não existe um método único e perfeito para todas
as empresas em crise. Cada caso deverá ser analisado separadamente.
Palavras-chave: Falência; recuperação de empresas; plano de recupera-
ção; viabilidade econômico-financeira; planejamento estratégico; Balanced
Scorecard.
200 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Quando o estrategista erra, o soldado morre.
Lincoln
Desde a Roma antiga, o devedor falido enfrenta dificuldades em se
restabelecer com dignidade. Com o decorrer dos séculos, a legislação fali-
mentar foi se aprimorando e trazendo mais opções para impedir ou ameni-
zar os efeitos do processo falimentar.
Portanto, através de uma pesquisa na doutrina, além da análise da le-
gislação sobre o assunto, buscamos tentar encontrar quais seriam as melho-
res soluções para resolver o problema da insolvência e da falência.
Será demonstrado neste artigo um breve histórico sobre a legislação
falimentar, suas características e as soluções para a empresa sair da crise,
tais como os meios de recuperação e os diversos métodos modernos de pla-
nejamento estratégico.
O objetivo geral é perceber a relação causal direta do planejamento es-
tratégico com a efetiva recuperação de empresas sob este regime.
No Brasil, com a lei nº 11.101/2005 atualmente vigente, surgiram duas
novas figuras jurídicas: a recuperação judicial e extrajudicial de empresas.
O objetivo maior dessa lei é viabilizar a superação da situação de crise
econômica do devedor promovendo a preservação da empresa, se a mesma
apresentar viabilidade econômica.
No entanto, no processo de recuperação é fundamental que seja traça-
do um planejamento estratégico para o soerguimento da empresa. Existem
várias ferramentas gerenciais, e cabe a escolha pelos especialistas de quais
poderão ser aplicadas.
O Balanced Scorecard é uma ferramenta eficaz e tradicional que serviu
de base para o surgimento de outros métodos mais modernos e usuais.
Em todo esse processo é fundamental que haja uma interdisciplinari-
dade entre o Direito e as ciências da Economia, da Contabilidade e da Admi-
nistração de Empresas.
O essencial é diagnosticar corretamente o problema e planejar de for-
ma estratégica a solução para a empresa sair da crise. Deve ser elaborado
um plano de recuperação para ser executado de forma prudente a fim de
preservar a empresa, trazendo benefícios não só ao empresário e aos em-
pregados, mas também à sociedade e ao país e sua economia.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 201
Com objetivo do leitor se interar no tema, iniciaremos com uma breve
retrospectiva histórica do instituto em questão.
Na Roma antiga, no medievo ou na moderna Europa, o devedor falido
era sempre considerado um criminoso, um ser execrável. Essas legislações
eram extremamente rigorosas e, em algumas épocas, chegaram a estipular
punições como o amputamento e a decapitação, inclusive.
No Brasil, segundo Domingos1, a primeira regulamentação sobre cre-
dores foram com as Ordenações Filipinas, na época do Império. As quebras e
concordatas foram melhores detalhadas no Código Comercial do Império do
Brasil de 1850.
Em inovação legislativa, o Código Comercial de 1848, no seu artigo
898, criou a moratória para os comerciantes que necessitavam de dilação de
prazo para sobrevivência de dívidas.
Ademais, o Decreto nº 917 de 24/11/1890 instituiu o acordo extraju-
dicial ou concorrência extrajudicial com a edição da Lei nº 859/02. A mora-
tória foi abolida pela Lei nº 2024/1908.
Até que a Lei atualmente vigente, a 11.101/2005, revogou o Decreto
Lei nº 7661 de 1945 e surgiram duas novas figuras: a recuperação judicial e
a recuperação extrajudicial, com o escopo de manter a empresa economica-
mente viável no mercado, gerando benefícios de forma mais eficiente que o
antigo instituto da concordata.
Constata-se que essa inovação legislativa revolucionou o direito, pois
se deixou de lado a visão puramente capitalista que se tinha a respeito do
direito empresarial. Na visão de Domingos: “Insolvente ou não, a empresa é
uma unidade econômica que interage no mercado, compondo uma labiríntica
teia de relações jurídicas com extraordinária repercussão social”.2
O instituto da recuperação judicial e extrajudicial de empresas foi a so-
lução prevista na Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências- LRF)
para tentar manter em funcionamento as empresas em dificuldades econô-
micas temporárias, visando garantir os empregos e os interesses de terceiros
como credores, fornecedores, consumidores e do fisco. Segundo Austrau-
1Domingos, Carlos Eduardo Quadros. As fases da Recuperação Judicial. Curitiba: J.M. Livraria Jurídica,
2009. p. 54-56. Ressalte-se que até hoje estão em vigor em nosso direito pátrio algumas disposições do Códi-go Comercial de 1850. 2Op. cit.Carlos apud Waldo Fazzio Junior. p.78. Essa nova visão se aperfeiçoou com o advento da Constitui-
ção de 1988.
202 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
kas3, a recuperação judicial pode ser definida como uma série de atos prati-
cados sob o domínio judicial com o fim do soerguimento e manutenção da
empresa em dificuldades financeiras transitórias.
Conforme a visão de Abaldilo4, a LRF (Lei nº 11.101/2005) tem o obje-
tivo de viabilizar a superação da situação de crise econômica do devedor, a
fim de permitir a manutenção da fonte produtora; do emprego e dos interes-
ses dos credores, promovendo a preservação, bem como a função social e
estímulo à atividade econômica.
A empresa, segundo Domingos5, “representa o papel do empresário ou
da sociedade empresária dentro da esfera social de um país, pois cria em-
pregos e gera riqueza e influencia diretamente na vida cultural, social e eco-
nômica da nação”. Deve-se fazer o máximo possível de esforços para que a
empresa seja recuperada, caso ela apresente viabilidade econômica, diante
de sua real importância para a sociedade e para o país e sua economia.
Contudo, esse instituto não é útil para qualquer empresa em crise. A
LRF é destinada apenas àquelas empresas que, embora apresentem dificul-
dades financeiras temporárias, são plenamente recuperáveis, ou seja, eco-
nomicamente viáveis e devem passar por um cuidadoso planejamento para a
sua recuperação.
Já foi demonstrada a enorme importância da manutenção da empresa
no mercado para a sociedade e para os interesses individuais, além da fun-
ção do instituto de recuperação de empresas. É importante ressaltar os prin-
cípios constitucionais inerentes ao instituto em questão. Percebe-se que está
ocorrendo uma “constitucionalização” do direito empresarial, visto a tama-
nha importância da atividade empresarial para a sociedade e seus potencias
reflexos quando a empresa cessa sua produção.
Em razão disso, os procedimentos falimentares ou de recuperação es-
tão considerando de modo exponencial a aplicação e efetivação dos princí-
pios constitucionais. Citaremos os mais usuais. Em pleno século XXI, não
podemos deixar de mencionar o princípio constitucional da proteção ao meio
ambiente sadio (artigo 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988).
Segundo Alexsandra Marilac Belnoski6, a partir da década de 80 se au-
mentou o cuidado com o meio ambiente, pois houve o esgotamento de re-
3Astrauskas, Fábio Bartolozzi. O Planejamento Estratégico e o Plano de Recuperação Judicial. Disponível
em: http://www.administradores.com.br/informe-se/informativo/o-planejamento-estrategico-e-o-plano-de-recuperacao-judicial/15129/ p. 01. 4Carvalho. Albadilo Silva. Recuperação Judicial da empresa com fundamento no princípio da viabilida-
de econômico-financeira. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1730. p.56. 5 Domingos, op. cit, p.80.
6Belnoski. Alexsandra Marilac. Consumo sustentável: a crise da modernidade e a gestão urbana. In:
Raízes Jurídicas. Revista do Curso de direito e da pós-graduação. Volume 5. Número 2. Julho-Dezembro 2009. p. 207-208.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 203
cursos naturais, o que é de fato alarmante. Com isso, houve uma maior
conscientização mundial em relação ao consumo e ao desenvolvimento sus-
tentável. Todavia, o Brasil é um país de substanciais dimensões e a socieda-
de contemporânea é caracterizada pela crescente industrialização e incentivo
descontrolado ao consumo.
Mesmo com todas essas dificuldades, não se pode olvidar em incluir
como objetivo comum de todas as empresas, em processo de recuperação
ou não, a adoção de medidas a minimizar danos ao meio ambiente.
A adoção de práticas que preservem o meio ambiente leva a empresa a
ser vista de outro modo, com um diferencial competitivo relevante para os
interessados em com ela negociar. Os consumidores e o mercado respeitarão
mais aquela empresa e, inclusive quando ela for formalizar parcerias e em-
préstimos, terá preferência por apresentar esse diferencial.
Esse princípio deve constar no planejamento estratégico a ser adotado
na empresa em fase de recuperação, pois ele pertence à missão e aos valores
que a empresa deve seguir. É fundamental ter responsabilidade social e am-
biental, pois é através da racionalização de recursos naturais esgotáveis que
se obtém redução dos gastos financeiros e proteção do meio ambiente.
Conforme a doutrina de Carlos Claro7, outros princípios inerentes à re-
cuperação de empresas ou ao procedimento falimentar são: a dignidade hu-
mana; a livre concorrência e a livre iniciativa; proteção do trabalho; o não
retrocesso social, entre outros.
É evidente que um eficaz planejamento estratégico posto em prática
resultará na recuperação da empresa, que gerará lucro para os empresários e
manutenção do emprego para os trabalhadores. Mas não é só isso que ocor-
re. Ainda seguindo a linha de pensamento de Claro, pode-se observar que a
empresa contribui para uma ordem social e econômica mais justa, de modo
a ajudar na erradicação da pobreza e da marginalização, recrudescendo as-
sim as desigualdades sociais existentes em nosso país.8
O instituto de recuperação só é viável se for apresentado um plano de
recuperação para a empresa. Ele deve ser elaborado por especialistas, sob a
supervisão dos empresários e do administrador judicial.
O objetivo principal do plano de recuperação Judicial previsto na Lei nº
11.101/2005, nas palavras de Fábio Austrakas9, é permitir às empresas em
dificuldades financeiras que voltem a se tornar integrantes competitivas e
produtivas no cenário econômico. Consequentemente, os beneficiados serão
7Claro, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: Sustentabilidade e função social da empresa. Disponível
em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp060317.pdf>. Acesso em 22/07/2010. 8 Op. cit. p.51-53.
9 Austrakas, Fábio. op. cit. p.01.
204 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
os atores envolvidos economicamente (controladores, credores, fornecedores
e empregados), mas, também, a sociedade como um todo. Assim, os credo-
res devem se convencer que o plano é factível e bem elaborado.
Na opinião de Austrakas10
, ao elaborar o plano de recuperação o em-
presário poderá escolher entre cumprir uma formalidade jurídica ou dar a si
mesmo uma segunda oportunidade de se inserir no mercado.
O plano de recuperação é certamente o ponto central para a recupera-
ção da empresa. É o que está contido nele que permitirá pôr em prática o
planejamento traçado para a reestruturação da empresa. Para tanto, deverá
ser muito bem elaborado e executado. O problema é o prazo exíguo que o
Judiciário fornece para a sua confecção, e os empecilhos para sua execução.
Entre as diversas obrigações e responsabilidades do administrador ju-
dicial encontra-se a tarefa de comandar a execução do plano de recupera-
ção, bem como de fiscalizar o cumprimento, pois caso contrário deverá pedir
a convolação da falência.
É o administrador judicial que deve saber como ninguém como está a
real situação da empresa e se o plano adota um planejamento estratégico
factível para a sua recuperação. Os credores devem sempre participar dessa
execução do plano e possuem o direito de fiscalizá-lo.11
Acerca da importância abissal desse instituto mencionado para a vida
da empresa e da sociedade, vamos descrever resumidamente todas as suas
fases e características. Segundo Domingos12
, a primeira fase da recuperação
é o pedido inicial. A petição inicial deverá ser encaminhada ao juízo compe-
tente seguindo os requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil.
Caso o juiz encontre vícios sanáveis na petição inicial, poderá fornecer
um prazo para o autor emendar a exordial. Após o recebimento da petição
inicial, o juiz deferirá o procedimento da recuperação judicial e nomeará o
administrador judicial;poderá determinar dispensa de apresentação de certi-
dões negativas para contratar com o poder público e ordenará a suspensão
de ações ou execuções pendentes.
Ademais, segundo o mesmo autor supracitado, ainda nessa fase, o juiz
determinará que o devedor apresente contas mensalmente enquanto perdu-
rar a recuperação sob pena de destituição do administrador judicial. O Mi-
nistério Público será intimado e haverá a expedição de edital para publicação
em órgão oficial que conterá resumo do pedido do devedor e da decisão que
defere o procedimento, relação nominal de credores com valor atualizado e
10
Ibidem, p.01. 11
Para isso, a assembléia geral de credores bem como o comitê possuem um papel primordial em todo o pro-cesso falimentar ou de recuperação. 12
Domingos, Carlos Eduardo Quadros, op. cit. p.111.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 205
classificação de crédito; advertência para prazos para habilitar crédito e ob-
jeção do credor.
Na fase apuratória, o devedor deve apresentar o plano de recuperação
judicial no prazo de 60 dias da publicação da decisão do processamento do
pedido. O plano não pode prever mais de um ano para quitar obrigações
trabalhistas. Com o plano, o juiz ordena a publicação do edital e os credores
possuem 30 dias para impugná-lo.
Na fase deliberatória, há as objeções do credor ao plano. Em relação à
certidão negativa de dívida tributária, o juiz pode ou não dispensá-la. Con-
forme o artigo 58 da LRF, depois de cumpridos todos esses requisitos, o
magistrado deve conceder a recuperação judicial que se constitui como um
título executivo judicial.
Na última fase, a executória, o devedor deve cumprir com a obrigação
do plano de recuperação em 2 anos, caso contrário, o magistrado efetuará a
convolação em falência. Se for cumprido o plano, encerra-se a recuperação
judicial. Aqui vale discutir se 2 anos são suficientes para que se possa cum-
prir com todas as obrigações do plano, visto a complexidade da recuperação
de uma empresa em dificuldades.
Diante de um pedido de recuperação judicial, o juiz deve analisar se a
empresa possui viabilidade econômica. Caso a empresa não possua essa
viabilidade, o pedido de recuperação deve ser indeferido. Caso contrário, a
recuperação deve ser processada.13
Na recuperação extrajudicial, é feito um acordo entre os empresários e
os credores e elaborado um plano que é homologado em juízo. Homologado
por sentença, o plano gera efeitos imediatos e se constitui um título executi-
vo judicial.14
No plano de recuperação da empresa, Restiffe15
assevera que devem
constar quais serão os meios a serem adotados durante o processo de recu-
peração empresarial. Os meios de recuperação que a empresa pode adotar
estão previstos no artigo 50 da LRF de 2005. São dezesseis meios no total,
vejamos:
1 - Concessões de prazo e condições especiais para pagamento das
obrigações vencidas ou vincendas;
2 - Cisão, incorporação, fusão ou transformação, constituição de sub-
sidiária integral, ou cessão de quotas ou ações, respeitados os direitos dos
sócios;
3 - Alteração do controle societário;
13
Ibidem, p.117-131. A real viabilidade econômica da empresa deve estar claramente demonstrada no plano de recuperação. 14
Negrão, Ricardo. Direito empresarial: estudo unificado. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010. p.251-252. 15
Restiffe. Paulo Sérgio. Recuperação de empresas: de acordo com a lei 11.101, de 09-02-2005. Barueri, SP: Manole, 2008. p.211.
206 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
4 - Substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou
modificação de seus órgãos administrativos;
5 - Concessão aos credores de direito de eleição em separado de ad-
ministradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especi-
ficar;
6 - Aumento de capital social;
7- Trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à socie-
dade constituída pelos próprios empregados;
8- Redução salarial, compensação de horários e redução da jornada,
mediante acordo ou convenção coletiva;
9 - Dação em pagamento ou novação de dívidas;
10 - Constituição de sociedade de credores;
11 - Venda parcial dos bens;
12 - Equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qual-
quer natureza, inclusive crédito rural;
13 - Usufruto da empresa;
14 - Administração compartilhada;
15 - Emissão de valores mobiliários- securitização;
16 - Constituição de sociedade de propósito específico- SPE- para ad-
judicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.
Restiffe16
afirma que o empresário tem liberdade na escolha dos meios
de recuperação a serem adotados, mas deve se limitar às disposições e prin-
cípios gerais do direito. Ademais, deve-se se ater aos recursos disponíveis e
ao capital da empresa.
Em se tratando de empresas em um país capitalista como o nosso, que
defende a livre iniciativa, os empresários requerem o máximo de liberdade
de mercado e o mínimo de interferência estatal.17
O artigo 170 da Constitui-
ção Federal de 1988 preconiza a função social da propriedade, a livre inicia-
tiva e a livre concorrência.
Luís Felipe Martini18
afirma que: “O princípio da livre concorrência é a
multiplicidade de agentes econômicos que estejam em um mesmo patamar
de igualdades com a finalidade de disputar mercados”.19
Isso significa que
não pode haver concorrência desleal ou qualquer abuso econômico.
16
Op. cit. p.212-214. 17
Abranches, Sérgio. Solução de mercado. Disponível em: <http://www.oeco.com.br/sergio-abranches/16512-oeco_15834>. Acesso em: 31/08/2010. p.01. 18
Martini, Luís Felipe. A concentração de mercado sobre a ótica do CADE. In: Raízes Jurídicas. Revista do Curso de direito e da pós-graduação. Volume 5. Número 2. Julho-Dezembro 2009. p. 118. 19
Op. cit, p.118-119.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 207
Embora os empresários possuam a liberdade de se inserir no mercado,
de escolher o ramo em que desejam atuar (desde que lícito), essa liberdade
conferida não é absoluta. Como nossa Constituição é eminentemente social e
visa promover a construção de uma sociedade justa e solidária, ela disciplina
a interferência do Estado no mercado privado, a fim de atender interesses
sociais e econômicos e impedir abusos econômicos.
Para o alcance desses objetivos, em 1994 foi criada a Lei federal nº
8884, que veio a proibir o abuso do poder econômico. É importante ressal-
tar que muitas firmas “quebram” devido ao abuso econômico de outras, não
controlados pelo governo.
Em 1994 foi criada uma autarquia federal, o CADE, com a finalidade de
fiscalizar as atividades econômicas empresariais e a concorrência de merca-
do, criando políticas para a prevenção do trust. O CADE surge como órgão
administrativo que tem a função de fiscalizar a ordem econômica, sendo que
seus atos administrativos estão sujeitos ao controle jurisdicional. Quando
alguma empresa domina deslealmente o mercado, deve haver a intervenção
do CADE.
Pode-se citar, segundo Evangelista, um exemplo de intervenção do
CADE no mercado: em 1999, se operou a fusão de duas das maiores fábricas
de cervejas e refrigerantes do país: Antarctica e Brahma. Mais de 70 % do
mercado nacional de cerveja ficou concentrado nas mãos dessa nova forma
societária. O CADE acabou aprovando essa fusão, pois constatou vantagens
nessa operação como geração de sinergias, mercado mais globalizado e
competitivo.
Na visão de Pedro Evangelista20
:
“A proteção da concorrência – como instrumento da colaboração inteli-gente para o desenvolvimento do país - não se limita apenas em proibir toda fusão, incorporação ou outra forma de concorrência empresária que possa existir já que o aumento da concentração de mercado não fundamenta, por si só os motivos para desconstituir a operação”.
Como já citado anteriormente, a fusão é um potencial meio de recupe-
ração, previsto no artigo 50 da Lei nº11. 101/2005. No entanto, deve ser
observada a real situação do mercado e a adoção dessa medida numa em-
presa em recuperação, pois esse meio pode ser viável ou não para tal em-
presa. E vale ressaltar que, se esse meio causar abusos contra a ordem eco-
nômica, deverá ser restringido pelo CADE e pelo poder judiciário.
Se no plano estiver traçado como meios de recuperação a fusão ou ci-
são da empresa, essa proposta deverá ser autorizada pelo CADE, para que
assim o plano possa ser devidamente cumprido.
20
Ferreira. Pedro Luciano Evangelista. O caso AMBEV; um estudo de caso de abuso de poder econômico e a importante atuação do CADE. In: Raízes Jurídicas- Volume 2. Número 1- Janeiro-Junho 2006. p. 167.
208 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
O CADE está diretamente interligado com a recuperação de empresa e
com o planejamento estratégico. Para o cumprimento do plano e para o ideal
andamento da recuperação deve haver ostensiva fiscalização do CADE, a fim
de se impedir abusos econômicos.
Por razões lógicas, antes de se ingressar com o pedido de recuperação
ou com a falência, os dirigentes devem fazer o possível para não entrar em
crise econômico-financeira, sempre trabalhando com a teoria da precaução.
Os empresários podem se valer de diversos expedientes, como financi-
amentos e empréstimos. As chamadas sociedades de crédito, de financia-
mento e investimento possuem como escopo o fornecimento de investimen-
to para a empresa poder adquirir bens e serviços, além de alimentar o seu
capital de giro. 21
Sendo assim, a empresa deve sempre buscar atingir seu ponto de
equilíbrio. A economia tradicional, nas palavras de George Soros, define a
ideal situação econômica que uma empresa deve ostentar:
“O ponto de equilíbrio é alcançado quando cada firma produz num nível em que seu custo marginal se iguala ao preço de mercado e cada con-sumidor compra uma quantidade cuja ‘utilidade’ marginal se iguala ao preço de mercado”.
22
No entanto, a empresa se prevenindo ou não pode passar por crises.
Conforme Abaldilo23
, a crise pode surgir por causas externas, como aumento
das taxas de juros, e retração do mercado consumidor; por causas internas,
como desentendimento e briga entre os sócios, capital insuficiente, desvios
monetários pela diretoria, operações de alto risco e causas acidentais, como
bloqueio de papel moeda pelo BACEN, crise econômica generalizada e maxi-
desvalorização da moeda nacional.
Todavia, na maioria das vezes a insolvência empresarial é causada por
falta de planejamento ou má-administração ou brigas entre familiares ou
sócios. Não são sempre as crises financeiras ou flutuações financeiras as
causas da insolvência. Planejando pode-se prevenir até das possíveis oscila-
ções de mercado.
No entanto, depois de fracassadas todas as medidas para o não in-
gresso da empresa numa crise, é o momento de estudar as possibilidades de
21
Santos. José Evaristo dos. Mercado Financeiro brasileiro. Instituições e instrumentos. São Paulo: Atlas, 1999. p.112. 22
Soros, George. A alquimia das Finanças. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.36. 23
Abaldilo, op. cit, p.30.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 209
viabilidade econômica e partir para o próximo passo, que seria avaliar se a
empresa pode se recuperar com a elaboração e a execução de um eventual
plano, ou se ela é irrecuperável, e deve pedir a sua falência.
Para Carlos Roberto Claro24
, se a empresa for irrecuperável ela deverá
ser afastada do mercado. Caso contrário, ela acarretará prejuízos para a or-
dem econômica e social, pois não estará gerando lucro e produtividade.
Em caso de crise econômica e/ou insolvência, que ocorre quando o
passivo total é maior que o ativo total, os empresários devem avaliar, de
forma clara, quais são os fatores causadores de seu fracasso e como vencê-
los a partir de um planejamento estratégico.
Como já mencionado, a insolvência não é sempre resultado de circuns-
tâncias imprevistas, e sim, muitas vezes, da má administração e de decisões
econômicas incorretas. Para aumentar as chances de sucesso do plano de
recuperação, segundo Austrakas25
, é necessário ouvir todos os credores para
a formação do plano no caso de a empresa apresentar viabilidade econômi-
ca. Outros terceiros devem participar da elaboração do plano, como os fi-
nanciadores, fornecedores, clientes e empregados.
Numa empresa em recuperação, segundo o mesmo autor, o principal
objetivo é o retorno da empresa a uma situação de geração de fluxo de caixa
positivo que torna possível o pagamento de débitos contraídos durante a
crise.
No entanto, é importante o Judiciário e a assembléia e o comitê de cre-
dores investigarem minuciosamente a real situação financeira da empresa,
tendo em vista que existem muitas crises fabricadas com o fim de fraudar
credores e fisco.
Tendo discutido sobre a necessidade de se adotar o planejamento es-
tratégico para a elaboração do plano de recuperação, vamos abordar esse
tópico mais detalhadamente.
A origem do termo estratégia, conforme afirmam Brondani e Barbosa,
existe desde a época dos babilônios.26
A empresa deve se basear em um
poderoso planejamento, antes de seu nascimento e enquanto perdurar.
Nas palavras de Rubens Fava e Maria Carolina Andion, o planejamento
estratégico27
:
24
Claro, Carlos Roberto.op. cit, p.204. 25
Austrakas, Fábio. op. cit, p.01. 26
Barbosa, Emerson Rodrigues. Brondani, Gilberto. Planejamento estratégico organizacional. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/revistacontabeis/anterior/artigos/vIn02/a08vIn02.pdf>. p. 109-110. 27
Andion, Maria Carolina. Fava, Rubens. Planejamento Estratégico. Disponível em: http://www.fae.edu/publicacoes/pdf/empresarial/3.pdf. Coleção Gestão empresarial.p. 27.
210 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
“é um importante instrumento de gestão para as organizações na atuali-dade. Constitui uma das mais importantes funções administrativas e é através dele que o gestor e sua equipe estabelecem os parâmetros que vão direcionar a organização da empresa, a condução da liderança, as-sim como o controle das atividades. O objetivo do planejamento é for-necer aos gestores e suas equipes uma ferramenta que os municie de informações para a tomada de decisão, ajudando-os a atuar de forma pró-ativa, antecipando-se às mudanças que ocorrem no mercado em que atuam”.
Eduardo Pimenta28
afirma que, com a globalização dos mercados, a in-
tensificação das redes e parcerias, a exigência cada vez maior dos consumi-
dores, a diferenciação gigantesca dos produtos e o aumento vertiginoso da
concorrência são fatores que influenciam o planejamento nas empresas.
Sem dúvida, o planejamento bem utilizado é imprescindível à gestão
empresarial. Segundo o renomado doutrinador Restiffe29
, o plano de recupe-
ração empresarial pode indicar o planejamento estratégico a ser aplicado,
sendo importante que esse planejamento seja prático, flexível, rápido e pos-
sível de se adequar à realidade.
Na visão de Mary T. Bontempo:
“O planejamento estratégico, juntamente, com planejamento tático e o planejamento operacional formam processo de planejamento, que visa a vislumbrar uma situação futura desejada para a empresa e traçar os ca-minhos para alcançar esta situação”.
30
E métodos de planejamento estratégico é que não faltam, citando al-
guns deles: Basics, CSM, future mapping e análise prospectiva.
Para Oliveira31, o processo de planejamento estratégico tradicional é
dividido em várias fases. São elas: diagnóstico estratégico; missão da empre-
sa; instrumentos prescritivos e quantitativos e controle e avaliação. No diag-
nóstico é importante realizar: a identificação das expectativas dos represen-
tantes, a análise do mercado e da concorrência e a análise externa e interna
da empresa, além da análise dos concorrentes.
Para se estabelecer a missão na empresa, deve-se debater e estruturar
cenários, estabelecer propósitos atuais e potenciais, além de uma postura
estratégica e fazer uma macro estimativa e macro política da empresa.
28
Pimenta, Eduardo Goulart. Recuperação judicial de empresas: Caracterização, avanços e limites. Disponí-vel em: http://www.direitogv.com.br/subportais/publica%C3%A7%C3%B5e/RDGV_03_p151_166.pdf. Revista eletrônica de contabilidade: Curso de ciências contábeis- UFSM. p.99. 29
Restiffe.op. cit. p. 215. 30
Bontempo. Mary Tsutsui. Análise comparativa dos métodos de construção de cenários estratégicos no planejamento empresarial. Orientador. Dr. Fábio Frezatti. São Paulo: USP. Janeiro, 2000. p.33. 31
Oliveira apud Mary, op. cit. p.33-36.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 211
Por sua vez, disciplina Oliveira que32, na terceira fase, o empresário
deve estabelecer metas e a estratégia para atingi-las. Ele deve estabelecer a
partir das diretrizes estratégicas e da política da empresa planos de ação.
Ademais, os instrumentos quantitativos correspondem aos recursos neces-
sários e expectativas de retorno para se atingir os objetivos. E isso consiste
basicamente no planejamento orçamentário.
Por fim, a última fase consiste na avaliação de desempenho da empre-
sa, da eficiência da ação de natureza corretiva, sendo que o controle e avali-
ação devem ser feitos passo a passo no planejamento estratégico, de forma
periódica.33
Entre os diversos métodos de planejamento empresarial, destacamos o
método inovador do Oceano Azul. Ele consiste na adoção de atitudes pró-
prias na gestão empresarial com o fim de criar novas fronteiras no mercado
e conquistar espaços inexplorados. As empresas devem buscar a inovação de
valor. Essa inovação é atingida quando as empresas assimilam inovação com
utilidade, com o preço e com ganhos de custos.
Para se atingir o espaço do Oceano Azul as sugestões são, entre ou-
tras: criar espaços de mercado inexplorados; tornar a concorrência irrelevan-
te; alinhar todo o sistema de atribuição da empresa em busca da diferencia-
ção e baixo custo. Um dos erros crassos na gestão empresarial é que, na
perspectiva de se obter sempre mais lucro, os preços se elevarem.
Todavia, essa alternativa acaba se tornando frustrante, pois a elevação
de preços afasta os clientes e esse não é o objetivo. A solução, segundo os
criadores, não é restringir a produção a um preço alto, mas sim criar uma
nova demanda agregada, tornando o preço acessível juntamente com outras
características especiais a fim de agradar o consumidor.
Essas medidas postas em prática causam uma reformulação das fron-
teiras e da estrutura do setor e criam um oceano azul de um novo espaço
conquistado no mercado. Resumindo, em vez de insistir em águas sujas, é
forçoso se inserir num límpido e livre oceano azul. 34
32
Oliveira. Djalma de Pinho Rebouças de. Planejamento Estratégico: conceitos, metodologia e práticas. São Paulo: Atlas, 1995. p. 73-77 33
Oliveira. Djalma de Pinho Rebouças de. op. cit, p77. Vale comentar que essas diretrizes propostas pelo autor são seguidas no mundo inteiro, com o fim de orientar o planejamento a ser seguido por qualquer empresa. 34
W. Chan Kim. Mauborgne. Renée. A estratégia do oceano azul; como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 13; 17; 210-214.
212 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Na elaboração do plano de recuperação da empresa e também na con-
fecção de seu planejamento estratégico, um dos fatores a serem avaliados é
a causa do bom ou do mau desempenho da empresa. Segundo o economista
Michael Porter “o desempenho de qualquer empresa é motivado pela renta-
bilidade derivada do negócio e pela rentabilidade resultante da posição que a
companhia ocupa no âmbito de sua competência principal.”35
A melhor estratégia, muitas vezes, é mudar a mentalidade, pois não
há apenas uma forma de competir. Agir estrategicamente é necessário para
agradar muitos clientes, mesmo que alguns fiquem insatisfeitos.
Segundo Porter:
“não tem que esperar o governo fazer tudo. Chegou o momento de os empresários não se concentraram somente nas estratégias de suas pró-prias empresas, chegou o momento em que cada homem de negócios deve se transformar em um estadista”.
36
O bom desempenho da empresa deve ser sempre avaliado periodica-
mente, mesmo ela estando em excelentes condições econômicas. Prevenir é
sempre melhor que remediar. Segundo o economista, é necessário contar
com insumos de altíssima qualidade, recursos humanos qualificados; bons
clientes e ainda criar as regras corretas para o jogo. 37
Pesquisamos diversos instrumentos de gestão empresarial e todos são
importantes, mas como não há possibilidade para analisarmos cada um de-
talhadamente, elegemos um desses métodos para uma visão mais minucio-
sa: O Balanced Scorecard.
O planejamento estratégico pode seguir as diretrizes do Balanced Sco-
recard, que é um método para estratégia e gestão empresarial criado por
dois norte-americanos; Robert Kaplan e David Norton. Os criadores definem
esse método como:
“O choque entre a força irresistível de construir capacidades competiti-vas de longo alcance e o objeto estático do modelo tradicional de conta-bilidade financeira de custos criou uma nova síntese: O Balanced Score-card.”
38
35
Porter. Michael. A nova era da estratégia. In: Revista HSM-Management- Edição Especial- Março- Abril-ano 2000. Editora Savana Ltda. p.18. 36
Op. cit, p.28. 37
Ibidem, p.25-26. 38
Kaplan, Robert S. Norton, David P. A estratégia em ação: Balanced Scorecard. Tradução: Luiz Euclydes Trindade Frazão Filho. 13 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.8.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 213
Os objetivos do Balanced Scorecard se pautam no desempenho organi-
zacional da empresa sob quatro perspectivas: a financeira, a do cliente, a dos
processos internos e a do aprendizado e crescimento.
Na opinião dos criadores, os executivos deverão estabelecer e planejar
metas para os objetivos do scorecard, e isso deve ser feito com três a cinco
anos de antecedência.
Nas palavras dos autores, o Balanced Scorecard cria um modelo holísti-
co da estratégia mostrando para toda a equipe como podem contribuir para
o sucesso organizacional da empresa em que trabalham.
Para facilitar o planejamento estratégico a ser adotado na empresa, os
criadores sugerem a formulação de mapas estratégicos a partir das diretrizes
do Balanced Scorecard, visando à consecução de objetivos a serem alcança-
dos, pois: “O mapa estratégico representa o elo perdido entre a formulação e
a execução da estratégia.”39
Uma das soluções propostas aqui é elaborar o mapa estratégico ado-
tando o Balanced Scorecard para o procedimento da recuperação judicial ou
extrajudicial de empresas. Nesse planejamento devem ser incluídos os qua-
tros processos de gestão operacional.
São eles:
1-Desenvolver e sustentar relacionamentos com os fornecedores, pois:
“Empresas como Toyota e Wall Mart dependem de seus fornecedores para produzir produtos de alta qualidade, encomendados com pouca antecedência pelos clientes, e para entregá-los de maneira confiável no respectivo ponto de venda. Essas empresas desfrutam de vantagens competitivas significativas, decorrentes de suas redes tradicionais de re-lacionamentos com fornecedores”.
40
2-Produzir produtos e serviços: O principal objetivo aqui é a redução
de custos de produção e melhorar a eficiência do capital de giro.
3-Distribuir e entregar produtos e serviços aos clientes: Abrangem o
cuidado com os custos, com a qualidade e os prazos de entrega de produtos
aos clientes.
4-Gerenciar riscos: Gerenciamento de riscos decorrentes de operações
de crédito, movimento da de taxas de juros e flutuações das caixas de câm-
bio e do mercado em geral.
Evidentemente, os investidores devem manter portfólios diversificados
que recrudesça o choque de variações não-sistemáticas nos resultados do
desempenho de uma empresa sobre o retorno total.
39
Kaplan, Robert S. Norton, David P. Mapas Estratégicos. Balanced Scorecard. Convertendo ativos intan-gíveis em resultados tangíveis. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. 8 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.10. 40
op. cit, p.70.
214 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Sem dúvidas, o Balanced Scorecard (BSC) é uma competente ferramenta
gerencial. Ao projetar essa ferramenta, a estratégia da organização deve me-
dir os poucos parâmetros críticos que representam suas estratégias para a
criação de valor em longo prazo. Na verdade, as falhas ocorrem devido à
má-execução e não devido à má-estratégia. Segundo os autores, a pedra
angular do Balanced Scorecard é: se você pode medir, pode gerenciar o que
conseguiu medir.
Os autores desse método também retratam o conceito de ativos inatin-
gíveis: “Os ativos intangíveis foram definidos como ‘conhecimento existente
na organização para criar vantagem diferencial’ ou capacidades dos empre-
gados da empresa para satisfazerem as necessidades dos clientes”.41
Eles
também englobam itens diversos como direitos autorais, conhecimento da
força de trabalho, liderança, sistemas de informação e processos de traba-
lho.
Na visão dos autores Robert Kaplan e David Norton:
“A estratégia de uma organização descreve como ela pretende criar valor para seus acionistas, clientes e cidadãos. Se os ativos intangíveis da or-ganização representam mais de 75% do seu valor, a formulação e a exe-cução da estratégia de vê tratar explicitamente da mobilização e alinha-mento dos ativos inatingíveis”.
42
Com esse conceito de ativos inatingíveis, foram estudadas as perspec-
tivas de aprendizado e crescimento de centenas de mapas estratégicos base-
ados no Balanced Scorecard, e nesse estudo se constatou que seis objetivos
aparecem com freqüência; são eles:
1-Capital Humano: a disponibilidade de habilidades, talento e conhe-
cimento para executar as atividades requeridas pela estratégia (cerca de 80%
dos scorecards incluem esse objetivo).
2-Capital da Informação: disponibilidade de sistemas de informação,
de infra-estrutura e de aplicativos de gestão do conhecimento necessários
para suportar a estratégia (cerca de 80% dos scorecards incluem esse objeti-
vo).
3-Capital Organizacional e Cultura: conscientização e internalização da
missão, da visão e dos valores comuns, necessários para executar a estraté-
gia. (90% dos scorecards incluem esse objetivo).
4-Liderança: disponibilidade de líderes qualificados em todos os níveis
hierárquicos, para impulsionar as organizações na execução da estratégia.
(cerca de 90% dos scorecards incluem esse objetivo).
41
Kaplan, Robert S. Norton, David P. Mapas Estratégicos. Balanced Scorecard. Convertendo ativos intan-gíveis em resultados tangíveis. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. 8 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.207. 42
Kaplan, Robert S. Norton, David P. op. cit, p.5.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 215
5-Alinhamento: alinhamento das metas e incentivos com a estratégia
em todos os níveis hierárquicos (cerca de 70% dos scorecards incluem esse
objetivo).
6-Trabalho em equipe: Compartilhamento dos conhecimentos e recur-
sos das pessoas com potencial estratégico (presente em 60% dos score-
cards).43
Se for feita uma pesquisa, pode-se encontrar a aplicação desses obje-
tivos nas principais empresas de sucesso em todo o mundo.
No Brasil, várias empresas e instituições públicas empregam as bases
desse método para compor o planejamento estratégico. O próprio Tribunal
de Justiça do Paraná adota um planejamento estratégico pautado na socieda-
de, na missão da instituição, na aprendizagem e crescimento e na gestão e
sustentabilidade financeira.
Ademais, os objetivos a serem cumpridos pelo Tribunal incluem a cele-
ridade na prestação jurisdicional, responsabilidade cultural e ambiental,
atendimento de qualidade aos cidadãos, a qualidade de vida e a motivação
dos servidores, gestão dos recursos orçamentários disponíveis, treinamento
de pessoal, racionalização de água, energia elétrica e papel, além do aprimo-
ramento da tecnologia. 44
Porém, há outras opiniões sobre o método. Para Pedro Bicudo, o Balan-
ced Scorecard: “Funciona, porém está ultrapassado. O BSC acabou se tornan-
do uma ferramenta auxiliar por justamente ter esse caráter de comunicar
para toda empresa a estratégia alinhada às ideias do plano” diz ele, ressal-
tando que a estratégia necessariamente deve vir seguida de uma gestão da
mudança.45
Bicudo também enfatiza que:
“Além de definir os pontos que devem ser alterados, é preciso apontar os projetos que viabilizam essa transformação e suas devidas ações – que devem ser medidas pelo BSC – e, sobretudo, identificar quais os processos de negócio que serão afetados para que sejam implantadas medidas de acompanhamento”.
46
Na nossa visão o Balanced Scorecard é altamente eficiente se for em-
pregado com outros instrumentos de gestão concomitantemente.
A saber, modernamente, estes são os 25 instrumentos de gestão mais
comuns: ABM; aferição da satisfação do cliente; alianças estratégicas; análi-
se da cadeia de valor; análise de migração de mercado; análise de portfólio;
43
Op. cit, p.207-208. 44
Informações disponíveis no sítio eletrônico: https://portal.tjpr.jus.br/web/planejamento_estrategico/objetivos_estrategicos 45
Bicudo, Pedro. Disponível em: http://www.financialweb.com.br/noticias/index.asp?cod=45635 p.01. 46
Op. cit, p.01.
216 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
análise do valor para o acionista; benchmarking; competências essenciais;
equipes autodirigidas; equipes de integração pós-fusão; estratégias de cres-
cimento; gestão do conhecimento; gestão da qualidade total groupware;
missão/visão; planejamento de cenário; planejamento estratégico; redução
do tempo de ciclo; reengenharia; remuneração por desempenho retenção do
cliente; segmentação da clientela e terceirização.47
Na Roma antiga, no medievo ou na moderna Europa, o devedor falido
era considerado um criminoso, um ser execrável. Suas respectivas legisla-
ções eram extremamente rigorosas, pois estipulavam punições com lesões
corporais.
No Brasil, a primeira regulamentação sobre credores foram as Ordena-
ções Filipinas, na época do Império. A Lei de Recuperações e Falências nº
11.101/2005 revogou o decreto lei de 1945 e surgiram duas novas figuras
judiciais: a recuperação judicial e extrajudicial, com a missão de minimizar
ou evitar a falência de uma forma mais estruturada que a concordata.
Contudo, a recuperação judicial, como hoje legislada, está enraizada
em princípios. São eles: preservação da empresa, viabilidade econômica,
função social, participação ativa dos credores e proteção do trabalho.
A Lei nº 11.101/2005 tem como principal objetivo facilitar a superação
da situação de crise econômica financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora; do emprego e dos interesses dos credores,
promovendo a preservação da empresa, bem como a função social e o estí-
mulo à atividade econômica.
Vimos também que o artigo 170 da Constituição Federal preconiza a
função social da propriedade, a livre iniciativa e a livre concorrência e, como
os abusos econômicos, interferem na recuperação de uma empresa em crise.
Em 1994 foi criada uma autarquia federal, o CADE, com a finalidade de
fiscalizar as atividades empresariais e a concorrência de mercado, criando
políticas antitrustes. O CADE surge como órgão administrativo que tem a
função de fiscalizar a ordem econômica, sendo que seus atos administrativos
estão sujeitos ao controle jurisdicional.
Foram analisadas as causas da insolvência. Em caso de crise econômica
ou insolvência, que ocorre quando o passivo total é maior que o ativo total,
os empresários devem avaliar, de forma clara, quais são os fatores causado-
res desse fracasso.
47
Pesquisa Bain & Company. HSM: Management. Informação e conhecimento para gestão empresarial. Nú-mero 19, ano 4 março-abril 2000. Editora Savana Ltda, São Paulo. p.122-130.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 217
A insolvência não é resultado de circunstâncias imprevistas, e sim,
muitas vezes, da má administração e de decisões econômicas incorretas.
Para aumentar as chances de sucesso do plano de recuperação, segundo
Austrakas, é necessário ouvir todos os credores para a formação do plano de
recuperação, no caso de a empresa apresentar viabilidade econômica. Outros
terceiros devem participar da elaboração do plano, como os financiadores,
fornecedores, clientes e empregados. Esse plano deve ser elaborado seguin-
do as técnicas do planejamento estratégico. E métodos de planejamento es-
tratégico é que não faltam, citando alguns deles: Basics, CSM, Future Map-
ping e análise prospectiva.
Para Oliveira, o planejamento estratégico é dividido em quatro fases,
entre elas diagnóstico estratégico; missão da empresa; instrumentos prescri-
tivos e quantitativos e controle e avaliação.
O Oceano Azul é um método proposto baseado em inovação de valor.
Para se atingir o espaço do “Oceano Azul”, as sugestões são, entre outras:
criar espaços de mercado inexplorados; tornar a concorrência irrelevante e
alinhar todo o sistema de atribuição da empresa em busca da diferenciação e
baixo custo.
O planejamento estratégico também pode seguir as bases do Balanced
Scorecard, que foi um método para estratégia empresarial criado por dois
americanos. Os criadores definem esse método como: “O choque entre a
força irresistível de construir capacidades competitivas de longo alcance e o
objeto estático do modelo tradicional de contabilidade financeira de custos
criou uma nova síntese: O Balanced Scorecard”.
Os objetivos e medidas do Balanced Scorecard focalizam o desempe-
nho organizacional sob quatro perspectivas: a financeira, a do cliente, a dos
processos internos e do aprendizado e crescimento.
Sem dúvidas, o Balanced Scorecard é uma competente ferramenta ge-
rencial. Ao projetar essa ferramenta, a estratégia da organização deve medir
os poucos parâmetros críticos que representam suas estratégias para a cria-
ção de valor em longo prazo.
Portanto, mesmo com todas essas ferramentas e métodos de planeja-
mento estratégico, não é possível apontar qual é a mais eficaz, pois depen-
derá de cada caso concreto e um bom profissional e especialista no assunto
traçará o melhor plano e método para aquela empresa vencer a crise, obser-
vando vários fatores como a conjuntura da empresa e os recursos disponí-
veis.
218 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 221
Anneliese Gobbes Faria Acadêmica do 7º período de Direito da Universidade Positivo.
O objetivo do trabalho é explicitar os principais aspectos da herme-
nêutica filosófica de GADAMER e demonstrar como a hermenêutica jurídica
se mostrou fecunda ao auxiliar na interpretação da norma jurídica.
Primeiramente, serão expostos os conceitos dos filósofos SCHLEIER-
MACHER e DILTHEY, sendo que o primeiro definiu como meta da hermenêu-
tica a reconstrução da experiência mental do autor de um texto, e o segundo
filósofo, DILTHEY, colocou a hermenêutica no horizonte da historicidade,
observando nela o fundamento para todas as ciências sociais.
Já HEIDEGGER, outro filósofo importante para o estudo da hermenêuti-
ca, fez uma leitura fenomenológica da mesma, tendo influenciado GADAMER
em muitos aspectos.
Partindo de uma hermenêutica filosófica, GADAMER aceita as concep-
ções de HEIDEGGER acerca da teoria ôntica da compreensão e entende que a
interpretação significa o desenvolvimento das possibilidades abertas do “da-
sein” (ser-aí), visto que não existem interpretações sem pré-conceitos, ou
seja, sem condicionamentos prévios do “dasein”. GADAMER também afirmou
que o sujeito está obrigado a fazer uma conexão do texto com a situação da
hermenêutica em que se encontra para poder compreender algo. Dessa for-
ma, a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a jurídica não se
torna tão chocante. Nas palavras de GADAMER, o jurista é levado a concreti-
zar a complementação do direito frente ao sentido original de qualquer texto
legal.
222 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
Além disso, é importante expor que juristas utilizam amplamente con-
ceitos da hermenêutica gadameriana, como Paulo SCHIER, que afirma que no
método concretista da interpretação do direito o momento da pré-
compreensão influencia toda a problemática da hermenêutica.
Por fim, conforme definiu STRECK, pretende-se também demonstrar
que a interpretação de uma norma não se limita em fazer antecipações da
pré-compreensão, pois o que se busca fundamentalmente é se proteger dos
arbítrios das idéias e da “estreiteza” nas formas de pensar.
A palavra hermenêutica tem origem grega no substantivo “hermeneia”
e está relacionada com a figura de Hermes, da mitologia grega, que era o
tradutor da linguagem dos deuses e que a tornava compreensível aos ho-
mens. 1
Da história da hermenêutica antiga dois nomes serão trabalhados, co-
meçando com SCHLEIERMACHER. Para esse filósofo, não existe uma herme-
nêutica geral; o que há são diversas hermenêuticas como a filológica, a teo-
lógica e a jurídica. Para interpretar uma lei ou um texto, na visão de SCH-
LEIERMACHER, devia se levar em consideração o contexto histórico no qual
foi escrito a obra, ou seja, devia-se fazer uma interpretação gramatical e
uma interpretação psicológica, que engloba os conceitos de empatia e mente
em uníssono - que têm como função a compreensão da intenção do autor.
Para esse filósofo, a compreensão é como a experimentação dos pro-
cessos mentais do autor do texto. A interpretação do leitor consiste no mo-
mento gramatical e psicológico, e tudo o que é compreensível é posto em
unidades sistemáticas ou círculos compostos de várias partes. O círculo co-
mo um todo define uma parte, e as partes definem o círculo. Ocorre, portan-
to, uma interação dialética entre o todo e a parte, um dá sentido ao outro,
sendo que a compreensão é circular. Esse é o chamado círculo hermenêutico.
Para SCHLEIERMACHER, também, a interpretação gramatical pertence ao
momento da linguagem, e para ele esse é um procedimento limitativo. Já a
interpretação psicológica demonstra a individualidade do autor, o seu gênio
particular. Portanto, ele define a meta da hermenêutica como a realização da
reconstrução da experiência mental do autor de um texto.
O outro filósofo importantíssimo para a história da hermenêutica é Wi-
lhelm DILTHEY, que colocou a hermenêutica no horizonte da historicidade.
Ele observou nela o fundamento para as “geisteswissenschaften”, ou seja,
todas as ciências sociais que têm por função interpretar as expressões da
1 NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêu-
tica. Disponível em: <http://universitario.educacional.com.br/dados/materialapoio/47180001 /1024712/Armandino%20Jr%20%2D%20%20pr%Eq%2Dcompreens%E30%20em%20heidegger%2Edoc.> Acesso em: 25/10/2008.p.01.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 223
vida interior do homem, expressões essas que podem ser leis, obras de arte,
entre outras. Para DILTHEY, a vida só pode ser compreendida a partir dela
mesma e o objeto da ciência deveria ser viável a partir de um processo que
relacionava a experiência, a expressão e a compreensão.
A experiência, para DILTHEY, é algo temporal, histórico, ela não pode
ser compreendida e encaixada em categorias científicas. Por sua vez, a ex-
pressão pode se referir a uma linguagem, a um conceito, algo que demons-
tre a marca da vida interior do homem. E a compreensão, para o filósofo,
tem o seu objeto na expressão da própria vida, pois ela é o processo mental
que possibilita o entendimento da experiência humana. 2
Esse filósofo fez uma leitura fenomenológica da hermenêutica. Essa re-
interpretação influenciou em muitos aspectos o filósofo GADAMER na cons-
trução de sua teoria sobre a hermenêutica.
Para HEIDEGGER, a interpretação não é originalmente um método; ela
representa o próprio comportamento da existência humana. HEIDEGGER
afirma que a filosofia é a hermenêutica, ou ao menos deveria ser. A herme-
nêutica, para o filósofo, refere-se à explicação fenomenológica da existência
humana. Tanto a compreensão como a interpretação são igualmente modos
que constituem essa existência. A hermenêutica é ligada com as dimensões
ontológicas da compreensão e com a fenomenologia. Em sua obra, o ser e o
tempo, HEIDEGGER se refere ao seu próprio método fenomenológico de in-
vestigação como sendo uma hermenêutica. Para ele, a ontologia transforma-
se em uma hermenêutica da existência, pois “o logos de uma fenomenologia
do dasein tem o carácter de herméneuein (interpretar) através do qual se
tornam conhecido ao dasein, a estrutura do seu próprio ser e o significado
autêntico do ser dado na sua compreensão.” Portanto, ele concebe o poder
ontológico de compreender e interpretar como ponto central da hermenêuti-
ca e essa característica define as potencialidades do próprio ser do dasein.
Esse filósofo também foi responsável por redefinir a palavra herme-
nêutica, comparando-a com a fenomenologia, sendo que a hermenêutica,
para ele, direciona-se para o fato da compreensão como ela mesma, e não
por métodos históricos, pois ele não se prende à dicotomia histórico-
científica que DILTHEY defendia. Com essa nova concepção de HEIDEGGER,
GADAMER cria sua hermenêutica filosófica. 3
O leitor tem sempre uma pré-compreensão sobre aquilo que interpre-
tará. Não há interpretações inalteradas. Antes de tudo, o homem tem em
mente a pré-compreensão, que nos abre um novo sentido, uma nova possi-
2 PALMER, Richard. E. Hermenêutica. O saber da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1969. p.91-96; 105-128.
3 PALMER, op. cit., p.15, 51; 132-135; 164-165.
224 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
bilidade de interpretação. Para HEIDEGGER, a compreensão trabalha dentro
de um conjunto de relações já interpretadas, atuando no círculo hermenêuti-
co que é inseparável da existência do intérprete. Não se pode conceituar a
compreensão a não ser que seja inserida num contexto histórico-social. 4 A
interpretação não cessa e é o método que leva à compreensão.
Toda vez que o homem realiza uma interpretação, ele se projeta para
uma possibilidade, que antecipa algo que está por vir. Quando se compreen-
de algo, já se possui uma pré-compreensão, um conceito prévio a que se
refere HEIDEGGER.
A hermenêutica contemporânea é baseada nos estudos de Martin HEI-
DEGGER e Hans-Georg GADAMER, e ela se preocupa em conceituar a com-
preensão como totalidade e a linguagem como uma forma de acesso ao
mundo e também às coisas. 5
Antes de relatar alguns aspectos importantes sobre a hermenêutica fi-
losófica de GADAMER, serão expostos dois conceitos importantes acerca
dessa hermenêutica gadameriana, fundamentais para a sua compreensão. Os
conceitos são a tradição e o preconceito.
A tradição nos é transmitida por meio da linguagem, pode ser concei-
tuada como uma transmissão, nas palavras de Lenio STRECK6. Ela tem por
base a lingüística. É na tradição que ocorre o crescimento contínuo do me-
lhor e do novo para uma validade repleta de vida, sem que nenhum deles se
ressalte por si mesmos.
Ora, a verdade pode ser compreendida partindo-se de todas as expec-
tativas de sentido que nos chegam por meio da tradição. Para GADAMER,
toda experiência hermenêutica implica uma inclusão no processo de propa-
gação da tradição.
Na visão de GRONDIN, o intérprete está preso a um meio cultural e em
uma tradição, sem a qual não pode ter acesso a um texto. O ser humano,
naturalmente, está sempre imerso em tradições, e a sua própria acaba coin-
cidindo com o sentido vertical e fidedigno da história, com a única condição
de possibilidade da verdade. 7
4 NUNES JÚNIOR, op. cit., p.3.
5 Ibidem, p. 4.
6 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 2 ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.192-193. 7 FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. O preconceito de H.G. Gadamer: Sentido de uma
reabilitação. Coimbra: JNICT, 1995. p. 269; 282.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 225
Para GADAMER, conforme se verá adiante, toda interpretação é basea-
da em preconceitos. Temos esses preconceitos antes de formular um juízo
correto sobre as coisas. Nesse diapasão, um pré-julgamento pode ser falso
ou correto.
Para GADAMER a interpretação se inicia a partir de conceitos prévios,
que serão ao longo do tempo substituídos por outros mais corretos e con-
vincentes. A compreensão começa com os nossos preconceitos (pré-juízos),
que são muito mais do que juízos individuais, mas a realidade histórica de
nosso ser. Esses preconceitos podem ser verdadeiros ou falsos. 8
O preconceito, nas palavras de FERREIRA DA SILVA,9 aponta uma vincu-
lação não subsuntiva, porém dialógico-histórica do singular em relação a
uma comunidade e também à tradição (cultura). Esse preconceito é respon-
sável por promover na tradição a compreensão como forma de integração,
um efeito histórico.
E se tratando do círculo hermenêutico, para HEIDEGGER, ele possui um
sentido ontológico positivo. Toda interpretação correta tem que se desviar
da arbitrariedade. Como defende GADAMER, “a compreensão somente alcan-
ça sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias, com as quais ela
inicia, não são arbitrárias.” Pode-se afirmar que no procedimento jurispru-
dencial um preconceito, que não significa sempre um falso juízo, é como
uma pré-decisão jurídica, tida antes de ser proferida uma sentença definiti-
va. Entretanto, os preconceitos de um indivíduo são mais que seus juízos,
são concebidos como a realidade histórica do ser. 10
HEIDEGGER e GADAMER, na visão de NUNES JÚNIOR,11
nos levam a con-
ceber que a hermenêutica se refere ao mundo da experiência, da pré-
compreensão, em que nos compreendemos como seres partindo de uma
estrutura prévia de sentido. A interpretação, como já foi mencionada, não é
uma questão de método, ela está interligada com a existência do leitor. Con-
forme relata GRONDIN, na obra Verdade e Método de GADAMER, o aspecto
universal da hermenêutica representa uma passagem da tradicional herme-
nêutica a uma filosófica, sendo que cada compreensão é impulsionada por
perguntas que elucidam o real sentido da compreensão. 12
Considerando as palavras de GADAMER, compreender é entender a
coisa e, depois disso, compreender a opinião do outro. Observa-se que a
8 NUNES JÚNIOR. op. cit., p.4-5.
9 FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. op. cit., p.328.
10 GADAMER, Hans - Georg. op. cit., p.401, 402;403; 407 e 416.
11 NUNES JÚNIOR, op. cit., p. 01.
12 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Coleção Focus. São Leopoldo: UNISINOS,
1999. p. 195 e 202.
226 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
primeira condição da hermenêutica é a pré-compreensão, que surge do ter
de se encontrar com a coisa. Após isso, institui-se o que tem que ser reali-
zado conforme um sentido unitário e a aplicação da concepção prévia da
perfeição. 13
Com GADAMER, a hermenêutica antes posta como técnica de compre-
ensão das ciências do espírito concebe-se como uma ontologia do leitor e de
seus principais condicionamentos existenciais. Pois a compreensão, a inter-
pretação e a aplicação não podem mais ser apartadas. Outra diferença refe-
rente à antiga e à nova hermenêutica é que a antiga afirmava que a interpre-
tação dos fenômenos históricos era um conflito por força da distância tem-
poral existente no passado, enquanto que no presente ela se dá sem desta-
car-se a historicidade.
Cada leitura dá origem a novas percepções, porque em cada época o
entendimento muda conforme suas circunstâncias. Para compreender é ne-
cessário considerar a opinião do autor. Isso se refere ao círculo hermenêuti-
co, conceito que foi desenvolvido por SCHLEIERMACHER para explicar a rela-
ção dialética entre a parte e o todo. Para compreender um texto por com-
pleto, deve-se entender as suas partes, que geram uma visão do todo, pois
são dois estágios que ocorrem num único momento.
GADAMER, acolhendo as concepções de HEIDEGGER, relata que a inter-
pretação significa o desenvolvimento das possibilidades abertas do “dasein”.
Não existe interpretação sem preconceitos, sem condicionamentos prévios
do “dasein”. Na concepção de LOPES, GADAMER reconhece o conceito de
preconceito denominando-o como essencial na teoria hermenêutica.14
GA-
DAMER defende que, ao considerar a historicidade da compreensão, esse
fato permite diferenciar os verdadeiros dos falsos preconceitos, e ao con-
frontar a história efeitual do texto com a própria tradição do intérprete, é
essa ocasião que extirpa o falso preconceito.
Portanto, a pré-compreensão é a condição prévia que torna viável a
compreensão textual. O círculo hermenêutico efetua um processo circular
que percorre a tradição do leitor e a do texto. A relevância da hermenêutica
de GADAMER é ter solidificado que toda interpretação é a compreensão atual
do passado. Mas, como pondera LOPES, tem-se o problema de delimitar se a
compreensão é dotada de uma natureza ontológica ou se depende do leitor,
cuja tradição é inseparável à interpretação textual, porque se pergunta como
é possível um dever-ser da verdade da teoria da hermenêutica. Em busca
dessa resposta, utilizando como alicerce o pensamento aristotélico acerca do
13
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. v.1. p.441. 14
LOPES, Ana. Hermenêutica jurídica de Gadamer e a antiga hermenêutica. Disponível em: <http://universitario.educacional.com.br/dadps/materialdeapoio/47180001/1024712/ana%20lopes%20%2D%20hermen%Eautica%20jur%EDdica%20de%20gadamer%2Epdf. > Acesso em 25/10/2008.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 227
saber ético, GADAMER o resgata a fim de aplicá-lo às ciências do espírito,
que tem como objeto o saber em si mesmo.
Para ARISTÓTELES, a sabedoria moral não dispensa um bom senso que
concorde com a verdade, que possibilite a distinção do eqüitativo, o que,
portanto, está conforme a verdade. GADAMER usa essas explicações também
para aplicar na hermenêutica jurídica, definindo que o bom senso se refere
ao juízo compreensivo, sendo que compreender é viver a situação alheia
como se fosse nossa. A verdade ocorrerá no embate entre sujeito e objeto,
cuja distância é a tradição.
A linguagem na hermenêutica, para GADAMER, também é primordial,
pois significa o mundo interpretado pelo homem e, além disso, o filósofo
propõe uma hermenêutica universal que considera toda relação que o ho-
mem tem com o mundo. Pois, para o mesmo, “a linguagem é a estrutura
ontológica do ser histórico.”15
O filósofo não só faz um importante estudo, como foi visto acima,
acerca da hermenêutica filosófica, como também analisa a função da herme-
nêutica jurídica. Com efeito, GADAMER definiu que o sujeito é forçado a
fazer uma relação do texto com a situação hermenêutica em que se encontra
para possibilitar a compreensão de algo. Nesse sentido, o autor conclui que
a distância que existe entre a hermenêutica espiritual-científica e a herme-
nêutica jurídica não é tão assombrosa como se supõe, pois acredita-se que a
hermenêutica jurídica não tem como meta a compreensão de textos, já que
se concebe como um auxílio da práxis jurídica. Assim, tem por função elimi-
nar pontos falhos no sistema da dogmática jurídica. Desse modo, a herme-
nêutica não teria a obrigação de compreender a tradição característica da
hermenêutica espiritual-científica. O que se constata é uma separação da
hermenêutica jurídica da teoria da compreensão, considerando que ela pos-
suía um objetivo dogmático.
GADAMER se propõe a investigar o comportamento do historiador jurí-
dico e do jurista. Ele pretende responder à dúvida sobre se a diferença entre
o interesse dogmático e a interpretação histórica é uma diferença unívoca.
Logicamente existe uma distinção, pois o jurista tende a dar o sentido da lei
em decorrência de um caso concreto fornecido. O historiador procura desco-
brir o sentido da lei quando percebe a aplicação da mesma no conjunto des-
sas aplicações, tornando-se concreto o seu sentido.
Para adequar de forma correta o sentido de uma lei tem de se ter, em
primeiro lugar, ciência de seu conteúdo de sentido originário, considerando
os termos histórico-jurídicos. Observa-se que, em 1840, SAVIGNY concebeu
a tarefa da hermenêutica jurídica como histórica somente. Em sua concep-
15
LOPES, op. cit. p. 105-109.
228 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
ção, SAVIGNY não crê que exista uma tensão entre o sentido jurídico origi-
nário e o atual. GADAMER, por sua vez, defende que, com o passar dos anos,
essa visão foi se concebendo como uma ficção.
Como exposto na obra de GADAMER, Verdade e método, o jurista co-
nhece a lei em si mesma. Mas o conteúdo normativo tem que ser nivelado ao
caso ao qual se aplicará. Para corretamente determinar esse conteúdo, o ju-
rista necessita ter em mãos um conhecimento histórico do sentido originário,
ao contrário do que pensava SAVIGNY. O jurista deve aceitar que as circuns-
tâncias se modificaram e que ele tem que novamente determinar a função
normativa da lei. É uma tarefa contínua, dinâmica e complexa.
Observa-se que o conhecimento histórico somente existirá se o passa-
do for entendido na sua continuidade com o presente, porque o jurista deve
fazer o direito ser algo que se modifica incessantemente, além de também
permitir a preservação da sua tradição. GADAMER afirma que a hermenêutica
jurídica tem como característica o procedimento das ciências do espírito.
Quando o juiz adequa a lei transmitida conforme as necessidades presentes,
por exemplo, ele tenciona resolver uma tarefa da práxis, ou seja, “interpretar
e conhecer significam conhecer e reconhecer um sentido vigente.” O juiz
apreende a idéia jurídica de uma lei e faz sua intermediação com o presente,
pois a sua função não é equivalente com a do historiador. O jurista possui,
portanto, sua própria história no tempo presente.
Para a hermenêutica jurídica é importantíssimo que a lei vincule de
forma equânime para todos os componentes da comunidade jurídica. Evi-
dencia-se que compreender é dar uma concretização acoplada à atitude de
uma denominada distância hermenêutica. Esse é um dos chamados requisi-
tos da ciência, como define GADAMER.
Como GADAMER escreveu na obra Verdade e Método, o modelo da
hermenêutica jurídica mostrou-se fecundo. O jurista então é compelido a
concretizar a complementação do direito dentro da devida função judicial,
conforme o sentido original de um texto dito legal, sendo que isso não pres-
cinde de qualquer compreensão. Essa fecundidade da hermenêutica jurídica
pode ser explicada pela frase: “a velha unidade das disciplinas hermenêuti-
cas recupera seus direitos e se reconhece a consciência da historia efeitual
em todo afazer hermenêutico, tanto no do filólogo como do historiador.” O
que isso significa é que o sentido da aplicação já está presente em toda for-
ma de compreensão. Na concepção de GADAMER, a aplicação é a real com-
preensão do próprio comum que o texto significa para nós, é uma forma de
efeito, que se denomina a si mesma como esse efeito. 16
Efetivamente, na visão de Paulo SCHIER, no método concretista da in-
terpretação do direito, o momento da pré-compreensão é determinante em
toda a problemática da hermenêutica, pois:
16
GADAMER, Hans- Georg. op. cit., p. 482-505.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 229
“O sujeito cognoscente, que é o intérprete constitucional, no seu traba-lho de compreensão/construção da realidade, para além de assumir uma postura passiva diante do seu objeto, participa com toda a sua carga histórica e ideológica no estabelecimento da norma constitucional.”
17
E conforme define STRECK, é por causa da hermenêutica de GADAMER
e RICOUER que a conhecida tensão entre a dogmática jurídica e a sociologia
vem a ser superada, pois a linguagem é colocada no centro dos debates.
Considerando esse fato, GADAMER quebra com qualquer possibilidade de
um saber reprodutivo do direito; para ele, interpretar a lei se resume numa
tarefa criativa do direito. Partindo, portanto, desse projeto hermenêutico
gadameriano, pode-se inferir que a hermenêutica jurídica não é uma simples
oferta de métodos científicos, e sim uma proposta de demonstrar as reais
condições do intérprete.
Baseando-se igualmente em GADAMER, Konrad HESSE propõe novas
atitudes para a hermenêutica jurídica, pois para ele o teor da norma tem no
ato normativo a sua complementação. A concretização da norma pelo intér-
prete engloba uma compreensão dela, conferindo uma pré-compreensão. O
intérprete, por exemplo, compreende o conteúdo da norma partindo de uma
pré-compreensão, que lhe possibilita a contemplação da norma seguindo
algumas expectativas. Toda compreensão tem um prejuízo e não se deve
limitar a fazer as antecipações da pré-compreensão, pois é necessário se
proteger do arbítrio das idéias e da “estreiteza” das formas de pensar, e isso
se concebe como uma tarefa da teoria constitucional.
Para GADAMER, como lembra STRECK, existe apenas um valor histórico
com a condição de o passado ser compreendido na sua continuidade com o
presente. Evidentemente, são esses fatos que fazem com que haja a realiza-
ção do jurista em seu trabalho prático-normativo. A tarefa da interpretação
consiste na concretização da lei em cada caso na sua aplicação. Consideran-
do, portanto, esses princípios, vale ressaltar que a teoria gadameriana muito
contribuiu para o direito e tem sido utilizada amplamente como uma das
bases para o método concretista da interpretação da ciência jurídica. 18
A hermenêutica foi interpretada de forma diferenciada por cada filóso-
fo, em épocas distintas. Da hermenêutica antiga, dois grandes nomes são
importantes: SCHLEIEMACHER e DILTHEY. O primeiro afirmou que, para se
compreender um texto, é necessário compreender a linguagem e a intenção
17
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 117. 18
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2 ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 165; 192-199; 244.
230 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
de um autor, pois para ele a compreensão é como a expressão dos procedi-
mentos mentais do autor do texto. Ele se utiliza do conceito de “círculo her-
menêutico” para definir que a compreensão é circular.
O outro importante filósofo foi DILTHEY, que colocou a hermenêutica
no horizonte da historicidade. Para ele, a vida só poderia ser compreendida a
partir dela mesma, e o objeto da ciência deveria ser estudado a partir de um
processo que não apartasse a expressão, a experiência e a compreensão.
Já na moderna hermenêutica, HEIDEGGER faz uma leitura fenomenoló-
gica da mesma. Ele concebe o poder ontológico de compreensão e interpre-
tação como a meta da hermenêutica. Além disso, ele afirma que, toda vez
que o homem realiza uma interpretação, ele se projeta para uma nova possi-
bilidade.
HEIDEGGER influenciou GADAMER em muitos aspectos, pois, para o úl-
timo, a interpretação está vinculada à existência do intérprete.
Assim, GADAMER reconhecerá o conceito de preconceito como funda-
mental para a hermenêutica, pois ao considerar a historicidade da compre-
ensão é possível diferenciar os verdadeiros dos falsos preconceitos. Para ele,
a pré-compreensão é uma condição prévia que possibilita a compreensão
adequada de um texto. O filósofo também se propõe a investigar o compor-
tamento do jurista e do historiador. Para o jurista adaptar corretamente uma
lei, deve-se ter conhecimento de seu conteúdo de sentido originário, consi-
derando os termos histórico-jurídicos. Para GADAMER, a aplicação de uma
lei no caso concreto é a real compreensão do próprio comum que o texto
significa para nós.
Dois juristas brasileiros analisaram a hermenêutica jurídica de GADA-
MER. Paulo SCHIER defende que a pré-compreensão é determinante na pro-
blemática da hermenêutica no método concretista de interpretação do direi-
to. Este método se resume na concretização da norma pelo intérprete através
da compreensão e da interpretação hermenêutica. O outro jurista é Lenio
STRECK, que afirma ter GADAMER influenciado os juristas a resumir a lei em
uma tarefa criativa, ou seja, não-reprodutiva do direito.
Portanto, percebe-se que a teoria gadameriana, amplamente utilizada
pela filosofia, tem também como qualidade demonstrar-se como uma das
bases para o método concretista da interpretação do direito, contribuindo
sobremodo para a mais justa interpretação dos sentidos da norma diante de
um caso posto, de modo dinâmico e sempre atual, ao jurista.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 231
FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. O preconceito de H.G. Gada-
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232 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 233
Por Anneliese Gobbes Faria
Rosangela Moreira Barbosa Athayde
Thiago da Luz Ruiz
SÓFOCLES. Antígona.
Trilogia Tebana. 13. ed.
Rio de Janeiro: Zoar, 2008.
A tragédia não é apenas um drama que exalta o sofrimento humano,
mas uma aproximação da realidade que retrata os principais aspectos da
Humanidade. Ela, antes de tudo, significa um ritual religioso e político na
forma de encenação num teatro para os habitantes da pólis e como forma de
agradecimento aos deuses. A encenação originou-se como homenagem ao
deus Dionísio (deus do vinho, promotor da civilização e amante da paz),
sendo posteriormente vinculada ao culto de Apolo1. Em sua origem mais
primeva envolvia o sacrifício de um bode, em honra a Dionísio. O próprio
nome tragédia evoca essa origem religiosa (trago + avidé = canto do bode). 2
Segunda obra da trilogia que encerra a trajetória de Édipo e seus des-
cendentes a ser escrita por Sófocles, Antígona passa-se em um período pos-
terior a Édipo em Colono. A tragédia versa sobre Antígona, filha da relação
incestuosa de Édipo e Jocasta, indignada com a interdição de Creonte de
sepultar seu irmão Polinices, acusado de haver traído a pátria. Antígona en-
frenta as ordens de Creonte e atende os preceitos consuetudinários e os
prescritos na lei religiosa, realizando o sepultamento do irmão. Dessa forma,
ela desafia a lei do Estado, imposta por Creonte e, como conseqüência, é
sentenciada à morte. Hémom, noivo de Antígona, tenta salvá-la e estabelece
com seu pai Creonte um diálogo sobre a importância de se respeitar as opi-
niões divergentes e, dessa forma, realizar um governo justo. Informa seu pai
sobre o fato de que todo o povo clama pela preservação da vida de Antígona
1 Em Atenas, havia a divisão do teatro em tragédia e comédia. A Dionísio destinavam as encenações cômicas,
e as tragédias passaram a ser dedicadas a Apolo, motivo pelo qual foram desvinculadas do sacrifício do bode. Acredita-se que isso ocorreu, visto que o bode berrava, atrapalhando a apresentação da peça. 2 GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo, Loyola, 2001. p.18.
234 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011
em razão de ser justo o ato de enterrar todos os mortos, inclusive Polinices.
Seus apelos são ignorados e Hémon suicida-se. Diante desses acontecimen-
tos e após o suicídio da esposa, Creonte se arrepende de seu posicionamen-
to e percebe que desrespeitou as leis divinas ao crer que o Estado seria a
única fonte de direito, com o poder de interferir em todas as esferas huma-
nas.
SÓFOCLES foi apelidado pelos antigos de “abelha”, pois tal como verte
sobre os espectadores o doce mel das palavras, usa-as qual ferrão, crava
fundo em nossas almas o terror do castigo, para instigar-nos à virtude. É
sob esta dicotomia que deve ser sentida a tragédia grega, se por um lado
encanta com a sublimidade de seus temas e versos, fere-nos com a brutali-
dade imposta pelo Destino às personagens, sofrimento que parece injusto,
mas tem a função de demonstrar o alcance do castigo divino, instigando a
platéia à obediência e à justiça. Antígona sofre as penas impostas pelo Esta-
do, e sofre-as resignada, pois são, independentemente do critério de justiça,
válidas; Creonte sofre também, mas por impor intransigentemente obediên-
cia a lei. Ao condenar Antígona, mesmo que apenas para manter a ordem e
cumprir seu dever como soberano ante Tebas, desobedece às leis divinas,
sendo merecedor do castigo das Fúrias.
A imagem que nos evoca a peça é da luta entre as tradições e a lei, ou
Direito Positivo versus Direito Natural – como diríamos hoje. Mas, tal qual
não poderia deixar de ser nos áureos anos de Atenas, em que vicejava a tra-
gédia moralista e onde Sócrates já caminhava pelas ruas questionando os
cidadãos3, o texto aponta para a superioridade daquele direito existente pre-
viamente aos homens. É importante lembrar que no governo de Péricles,
Atenas viveu o auge de sua democracia, sendo natural que a obra de Sófo-
cles encerre uma crítica a tirania, submetendo o direito potestativo a uma
visão de injustiça e inferioridade as normas ditadas pela moral tradicional e
religiosa. Observa-se ainda que o Coro demonstra um posicionamento sub-
jetivo favorável à Antígona, mas por medo posta-se a favor de Creonte, essa
atitude valoriza a democracia, pois sendo nesta expressa a vontade dos ci-
dadãos, a vontade do Coro prevaleceria à de Creonte e conformar-se-ia a lei
positiva à lei moral.
O debate de Creonte e Antígona ilustra, para HEGEL4, a oposição entre
poder público e consciência privada, a ordem vinda do poder e o indivíduo
defensor do imperativo de seu próprio dever ético. Esse debate jusfilosófico
é importante, pois não se trata apenas de traçar uma pesquisa de ordem
3 Sófocles viveu em Atenas durante o governo de Péricles, período de grande expansão econômica e eferves-
cência cultural, em sua vida adulta conviveu com Sócrates (469-399 a.C.), e foi nesse período que escreveu Antígona. 4 BAVARESCO, Agemir; CHRISTINO, S. B. Eticidade e direito na Fenomenologia do espírito de Hegel.
Revista eletrônica de estudos hegelianos, ano 4, n.7, dezembro-2007; p.49-72. Disponível em: <http://www.hegelbrasil.org/agemir-sergio.pdf> p.62-63.
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literária ou filosófica. O valor maior, para os juristas, é exatamente a questão
do confronto ente o positivismo e o jusnaturalismo e a transposição desse
confronto para a contemporaneidade.
Norberto BOBBIO5, em sua obra Teoria da norma jurídica, demonstra os
três critérios de valoração de uma norma, que originam a três ordens distin-
tas de problemas: justiça, validade e eficácia. Creonte, ao impor a lei de não
sepultar Polinices tornou-a válida, pois ele era Rei de Tebas e tinha o poder
soberano para tanto. Observa-se, então, que a lei de Creonte era válida, po-
rém, injusta. Antígona ao defender a lei dos deuses e respeitar os direitos
consuetudinários, acreditava agir de forma justa, mas a ação não era válida
nem eficaz. Diante desse impasse entre Creonte e Antígona, é possível fazer
a correspondência com o entrave entre justiça e validade. Para os positivistas
a justiça é a confirmação da validade; para os defensores do jusnaturalismo
a validade é a confirmação da justiça.
Essa concepção radical dos positivistas gerou conseqüências graves,
pois como demonstra BOBBIO6 o positivismo vem sendo extremamente criti-
cado nos últimos anos por ser considerado como um dos fatores que ocasi-
onaram o surgimento dos regimes totalitários europeus. Após esses aconte-
cimentos, não só os juristas, mas a humanidade também se viu diante de
uma importante indagação: a finalidade do direito é a ordem ou a justiça?
Será possível ter como fim do direito uma ordem justa, que possa promover
o bem da sociedade?
Os conflitos jusfilosóficos da tragédia grega são atemporais. O bri-
lhantismo de Sófocles fica evidente com a universalização do tema discutido,
que permanece relevante no contexto atual, pois permite a reflexão do que é
e de como deve ser o Direito. Questões como Justiça, Direitos Humanos, Éti-
ca, Política e Tolerância são fundamentais quando analisamos as relações
entre as pessoas. A leitura de Antígona é emblemática para enfatizar a ne-
cessidade de valores éticos nas relações humanas, visando à construção de
uma vida digna para todos.
Anneliese Gobbes Faria Rosangela Moreira Barbosa Athayde
Thiago da Luz Ruiz Acadêmicos do 4º ano do Curso de Direito da Universidade Positivo
5 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3.ed. revista. Bauru: EDIPRO, 2005. p.48.
6 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo; Ícone, 1995. p. 225.
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BAVARESCO, Agemir; CHRISTINO, Sérgio B. Eticidade e direito na Fenomeno-
logia do espírito de Hegel. Revista eletrônica de estudos hegelianos,
ano 4, n.7, dezembro-2007; p.49-72. Disponível em:
<http://www.hegelbrasil.org/agemir-sergio.pdf>
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. Tra-
dução de Marcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo;
Ícone, 1995.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3.ed. revista. Bauru: EDIPRO,
2005
GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo:
Loyola, 2001.
SAINT-VICTOR, Paul de. As duas máscaras. São Paulo: Germape, 2003.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 237
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NÚMERO 2
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VOLUME 7
NÚMERO 2
JULHO-DEZEMBRO 2011
JURÍDICASRaízes
9 7 7 1 8 0 9 5 1 1 0 0 4
ISSN 1809-5119
1 CONVIDADOS
Amarildo Souza de Paula
Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins
Alexandre Morais da Rosa
2 DOCENTES
Alexsandra Marilac Belnoski
Angela Couto Machado Fonseca
Claudia Regina Baukat Silveira Moreira
Fernanda Busanello Ferreira
Guilherme Roman Borges
3 ACADÊMICOS
Andriessa Ortega
Anneliese Gobbes Faria
Anneliese Gobbes Faria
4 RESENHA
Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde e Thiago da Luz Ruizs
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• Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008
O princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos
no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo entre a responsabilidade
social e a educação ambiental
O que resta do Direito no Estado não mais nacional
Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e da legislação de software
Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-lidade e corpo
Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no Ensino Superior
O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann
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• Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica