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RAÍZES JURÍDICAS V.7 N.2 Revista do Curso de Direito e da Pós-Graduação Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação VOLUME 7 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2011 JURÍDICAS Raízes

Revista Raízes Jurídicas

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O curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua Pós-Graduação, contam com uma revista acadêmica, intitulada Raízes Jurídicas. A publicação tem como objetivo tornar pública a produção acadêmica dos professores e dos alunos, além de contar com artigos de professores convidados.

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VOLUME 7

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2011

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Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação

VOLUME 7

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2011

JURÍDICASRaízes

9 7 7 1 8 0 9 5 1 1 0 0 4

ISSN 1809-5119

1 CONVIDADOS

Amarildo Souza de Paula

Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins

Alexandre Morais da Rosa

2 DOCENTES

Alexsandra Marilac Belnoski

Angela Couto Machado Fonseca

Claudia Regina Baukat Silveira Moreira

Fernanda Busanello Ferreira

Guilherme Roman Borges

3 ACADÊMICOS

Andriessa Ortega

Anneliese Gobbes Faria

Anneliese Gobbes Faria

4 RESENHA

Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde e Thiago da Luz Ruizs

• Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008

O princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos

no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo entre a responsabilidade

social e a educação ambiental

O que resta do Direito no Estado não mais nacional

Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e da legislação de software

Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-lidade e corpo

Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no Ensino Superior

O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann

A normalização e o jogo da exclusão: o louco e o criminoso em Michel Foucault

A inconstitucionalidade da modalidade de licitação convite frente aos princípios da publicidade e da

isonomia

A importância do planejamento estratégico no plano de recuperação judicial e extrajudicial de empresas

• Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica

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ISSN 1809-5119

Raízes

JURÍDICAS

Revista do curso de Direito da Universidade Positivo

e da Pós-Graduação v. 7, n. 2, jul./dez. 2011

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2 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido – Curitiba – PR

(41) 3317-3000

Reitor

José Pio Martins

Vice-Reitor e Pró-Reitor Administrativo

Arno Antônio Gnoatto

Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão

Bruno Henrique Rocha Fernandes

Coordenação do Curso de Direito

Marcos Alves da Silva Eros Belin de Moura Cordeiro

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da Universidade Positivo – Curitiba

IMPRESSO NO BRASIL – PRINTED IN BRAZIL

Raízes Jurídicas/Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais

Aplicadas. Curso de Direito. – v. 7, n. 2 (jul./dez. 2011) - .– Curitiba, Univer-

sidade Positivo, 2012 –

Periodicidade semestral

ISSN 1809-5119

1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito - Periódicos I. Universidade

Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito.

CDU 3

34

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Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas

Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS

Raízes Jurídicas. Curitiba. v. 7, n. 2, jul./dez. 2011

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4 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS

Editores Responsáveis

Clara Maria Roman Borges Fernando Borges Mânica

Conselho Editorial

Abili Lázaro Castro de Lima (UFPR)

Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)

Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux (USP)

Ester Kosovski (UFRJ)

Flavio de Azambuja Berti (UP)

Guilherme Roman Borges (UP)

James Marins (PUCPR)

João Maurício Adeodato (UFPE)

José Roberto Vieira (UFPR)

José Souto Maior Borges (UFPE)

Luiz Edson Fachin (UFPR)

Raúl Cervini (Uruguai)

René Ariel Dotti (UFPR)

Romeu Felipe Bacellar Filho (UFPR)

Roque Antonio Carrazza (PUCSP)

Simone Maria Maluceli Pinto (PUCPR)

Silvana Maria Carbonera (UFPR)

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (USP)

Projeto Gráfico e Diagramação

Yvana Savedra de Andrade Barreiros

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Raízes

JURÍDICAS

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6 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 7

curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua Pós-

-Graduação, apresentam novo volume da revista acadêmica intitulada

Raízes Jurídicas, com o objetivo primordial de tornar novamente pú-

blica a produção interna que está sendo realizada pelos seus professores,

pelos acadêmicos do curso, que, desde cedo, dedicam-se à pesquisa e à

extensão universitária, bem como pelas demais personalidades jurídicas que

desejam mostrar o conteúdo de suas investigações.

Destinada a contribuir para a formação de um sólido pensamento aca-

dêmico no país, comprometido com a seriedade de pesquisa, a profundidade

de investigação, o rigor conceitual e a austeridade acadêmica, Raízes Jurídi-

cas torna-se um prestimoso veículo para colmatar lacuna interna existente,

assim como para criar uma nova possibilidade de diálogo acadêmico e inte-

rinstitucional entre todas as áreas do curso e com outras entidades externas.

Trata-se de uma publicação semestral da Universidade Positivo, mas

controlada e dirigida pelo Curso e pela Pós-Graduação de Direito, cuja linha

editorial se encontra atenta à dinamicidade da ciência e à sua abertura con-

temporânea, tendo caráter transdisciplinar, de tal modo que serão publica-

dos artigos das mais diversas áreas, sempre afins à técnica jurídica: Filosofia,

História, Arte, Sociologia, Literatura, Teoria Geral e Dogmática Estrita.

Por tratar-se de uma revista acadêmica e jurídica, Raízes Jurídicas pro-

cura alcançar, especialmente, a leitores versados na sua respectiva área,

conquanto busque também proporcionar um encontro com as mais diversas

áreas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, especialmente a Sociologia,

a História, a Filosofia, a Antropologia, a Psicologia e a Ciência Política. Toda-

via, seu alvo se expande, ao objetivar também leitores que estejam mais

próximos à instrumentalidade da prática, a ver-se pelo trabalho de juízes,

promotores, advogados, delegados, procuradores, etc., bem como de enti-

dades da sociedade civil organizada, de organizações não governamentais,

de organismos internacionais e de executores de políticas públicas em maté-

rias pertinentes ao universo jurídico.

O maior número de leitores tem em vista a ampliação do conhecimento

técnico-jurídico, a ditongação dos horizontes filosóficos e linguísticos e,

sobretudo, o despertar do pensamento crítico e o favorecimento de opções

de análises teóricas que não obriguem o leitor à concordância com a opinião

comum, tão comum no dogmatismo da ciência.

O

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8 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

O Princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do

“Direito” dos Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Amarildo Souza de Paula.......................................................................... 11

O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo

entre a responsabilidade social e a educação ambiental

Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins ...................................... 57

O que resta do Direito no Estado não mais nacional

Alexandre Morais da Rosa ....................................................................... 77

Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e

da legislação de software

Alexsandra Marilac Belnoski ................................................................... 103

Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-

lidade e corpo.

Angela Couto Machado Fonseca ............................................................. 117

Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no

Ensino Superior

Claudia Regina Baukat Silveira Moreira ................................................... 125

O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann

Fernanda Busanello Ferreira ................................................................... 135

A normalização e o jogo da exclusão: o louco e o criminoso em Michel Fou-

cault

Guilherme Roman Borges ....................................................................... 145

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 9

A inconstitucionalidade da modalidade de licitação convite frente aos princí-

pios da publicidade e da isonomia

Andriessa Ortega ................................................................................... 185

A importância do planejamento estratégico no plano de recuperação judicial

e extrajudicial de empresas

Anneliese Gobbes Faria .......................................................................... 199

Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica

Anneliese Gobbes Faria .......................................................................... 221

Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janei-

ro: Zoar, 2008.

Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde eThiago da Luz

Ruiz....................................................................................................... 233

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10 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 11

Amarildo Souza de Paula Advogado e Engenheiro Florestal. Doutor em Engenharia Florestal.

O presente trabalho de pesquisa constitui um estudo a cerca da prote-

ção normativa dos Direitos Humanos na perspectiva da sociedade, e na or-

dem internacional. Reúne alguns exemplos de normas e de ponderação entre

direitos humanos e os direitos fundamentais, que têm como premissa a tría-

de da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Analisa par-

ticularmente o princípio da fraternidade, sob a ótica do Direito, enfatizando

que seu conteúdo pode contribuir de forma decisiva para a efetivação e pro-

moção da dignidade da pessoa humana, na medida em que abre novos hori-

zontes para os operadores no direito, na satisfação das demandas sociais.

Constata em derradeiro que a natureza das normas que disciplinam os Direi-

tos Humanos e as garantias fundamentais é de direito constitucional na me-

dida em que estas se inserem no texto de uma Constituição, tendo, portanto,

uma aplicabilidade imediata. A Constituição Federal do Brasil descreve ainda,

os direitos e as garantias individuais, com presteza das Constituições mais

modernas do mundo.

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12 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A pretensão de abordagem do tema “O Princípio da Fraternidade como

conteúdo necessário na efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos no

Ordenamento Jurídico Brasileiro” objetiva demonstrar a verossimilhança

existente na relação do Direito e o Princípio da Fraternidade, elemento, me-

diador entre os princípios da liberdade e da igualdade, que a luz de estudos

científicos, vem sendo objeto de pesquisa na Ciência Jurídica.

Estudos mais aprofundados sobre o tema iniciaram através de um gru-

po de estudiosos e pesquisadores, que por alguns anos ficou restrito na Eu-

ropa, a “priori” na Itália, que ficou conhecido como Movimento “Comunhão e

Direito”, ou seja, o Direito posto em “comunhão.” Ainda na fase inicial deste

movimento, esta ideia se propagou para outras partes do mundo, tendo não

só a participação dos estudiosos do Direito, mas, como aderentes também

os operadores do Direito, disposto a levar para frente este desafio do início

do século XXI.

Nas palavras de Munir Cury, o termo “Comunhão e Direito” tem um du-

plo significado:

De um lado, propõe-se a colocar à disposição do mundo jurídico conhe-cimentos e experiências da atividade profissional; de outro, descobrir no direito um meio eficaz e necessário para contribuir na transformação da vida da sociedade em autêntica comunhão, a começar pelo operador do direito, sendo ele o primeiro a acolher a todos, a desejar a promoção da parte envolvida no processo como se fosse a sua própria, a se identificar com o sofrimento daquele que bate à porta da Justiça.1

Desta vasta difusão originou-se o Congresso Internacional “Relações

no Direito Qual o espaço para a fraternidade?” em 2005 em Roma-Itália, no

Brasil, a primeira discussão sobre o assunto, aconteceu em São Luís/MA, no

período de 12 a 14 de outubro de 2006, com o tema “Fraternidade: Novo

Elemento ao Conceito de Justiça”, e posteriormente o Congresso Nacional

Direito e Fraternidade, realizado em Vargem Grande Paulista/SP, no período

de 25 a 27 de janeiro de 2008. E a foi partir da influência e do entusiasmo

de acolhimento dessa nova perspectiva de enxergar o Direito sobre o prisma

da fraternidade, que nasceu essa proposta de trabalho de pesquisa científica.

A iniciativa em estudar a matéria no Brasil, sob o rigor da ciência, bem

como a produção de textos científicos tendo como objeto a “fraternidade

como categoria jurídica”, se deu por iniciativa da Pesquisadora e Cientista

Josiane Rose Petry Veronese, Professora Titular da disciplina Direito da Cri-

ança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina, na quali-

1

CURY, Munir. O instituto da adoção e a realidade social brasileira. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 105.

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dade de Vice-diretora do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Fede-

ral de Santa Catarina e Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Soci-

ais da Criança e do Adolescente, que ofereceu no Programa de Pós-

Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) à disciplina: “Seminário Direito

e Fraternidade”, que tem como ementa:

Um diálogo com a cultura contemporânea, cuja ementa é Direito e justi-ça. Direito e fraternidade. A fraternidade como categoria jurídica. Frater-nidade e direitos humanos. Elementos do conceito de fraternidade e de Direito Constitucional. A fraternidade e a cultura contemporânea. A fra-ternidade no ordenamento jurídico brasileiro. Relações jurídicas e frater-nidade. A produção jurisprudencial e a categoria fraternidade.2

No que tange os procedimentos de pesquisa, destaca-se que a meto-

dologia empregada consistiu em pesquisa bibliográfica, pois são as fontes

de pesquisa que propiciam um contato direto com estudos realizados sobre

a temática, valendo se também da análise de dispositivos legais.

Os dados bibliográficos foram coletados a partir da seleção de reno-

mados autores conforme a natureza da temática. Dentre eles: Flavia Piose-

vam, Fábio Konder Comparato, Norberto Bobbio, Paulo Bonavides, Miguel

Reale, Maria Tereza Uille Gomes, Antonio de Padua Ribeiro, bem como os

autores italianos Antonio Maria Baggio, Marco Aquini, Fausto Goria.

Para uma melhor compreensão do tema proposto, o trabalho está or-

ganizado em dois capítulos.

O Capítulo 1 aborda a gênese e evolução dos Direitos Humanos sob a

perspectiva da sociedade, e na ordem internacional, notadamente a partir da

II Guerra Mundial, e o valor do princípio da fraternidade no cumprimento do

princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Assim, com especial

destaque à fraternidade que, neste contexto, é preconizada como categoria

jurídica e atua na efetivação desses Direitos que é de toda a Humanidade.

O Capítulo 2 trata do princípio da fraternidade frente a diversos ramos

do Direito, como princípio que melhor confirma a unidade do Ordenamento

Jurídico Brasileiro, e que é (ou deve ser) expressão da estreita correlação

entre direitos e deveres. Enfatiza o conteúdo jurídico fraternal que a Consti-

tuição Federal de 1988 inaugura em nosso país ao assegurar o exercício dos

direitos fundamentais “como valores supremos de uma sociedade fraterna.”

Por fim, a conclusão que chegou este trabalho de pesquisa, realizado

através das fundamentações teóricas demonstradas.

2 VERONESE, Josiane Rose Petry. Seminário direito e fraternidade: um diálogo com a cultura contempo-rânea. Florianópolis: Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, 2009.

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14 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Quando se fala em direitos humanos, corre-se o risco de se deparar na

literatura, com significados errôneos a respeito, tendo-se em conta a diver-

sidade de interpretações motivadas por tal expressão.

Em diferentes situações de arguição sobre a questão, a maioria das

respostas evidencia deduções supérfluas, comprovando que cada ser huma-

no tem seus próprios direitos, descaracterizando o sentido real da expres-

são, que se perfaz num conjunto de atribuições que estimam tais direitos e

derivam deles com antecedentes históricos significativos e realidades socio-

políticas com significados precisos.3

Elizabete Maniglia ressalta que direitos humanos supõem uma cons-

tante histórica, cujas raízes remontam a instituições do mundo clássico. Por

outro lado ao contrário pode ser ainda sustentado na ideia de que os direitos

humanos nascem com a afirmação cristã da dignidade moral do homem co-

mo pessoa.4

O comum é dizer que, os direitos humanos nascem contra o regime

feudal e a formação das relações burguesas.

Para Norberto Bobbio direitos humanos, como um termo não realmente

definido e, quando o é, torna-se mal formulado. Para tanto, Bobbio analisou

o tema “direitos humanos” em três dimensões, para assim apresentar um

conceito que ele chama de razoável: uma tautológica que não aporta ne-

nhum elemento novo que permita caracterizar tais direitos. Assim, os direi-

tos do homem são os que correspondem ao homem por direito de ser ho-

mem.5

A definição formal não especifica o conteúdo desses direitos, limitan-

do-se a alguma indicação sobre seu estatuto, desenhado ou proposto, como

os direitos do homem sendo aqueles que pertencem e devem pertencer a

todos os homens e dos quais ninguém pode ser privado. Por fim, Bobbio

atribui uma definição na qual apela a certos valores últimos, suscetíveis de

diversas interpretações como: “Os direitos dos homens são aqueles impres-

cindíveis para o aperfeiçoamento da pessoa humana, para o progresso social

e para o desenvolvimento da civilização.” 6

A expressão “direitos humanos” altera-se de acordo com a realidade e

a experiência de cada povo. Nos ensinamentos de Maniglia, os direitos hu-

3 MANIGLIA, Elizabete. As interfaces do direito agrário e dos direitos humanos e a segurança alimen-tar. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. p. 67. 4

MANIGLIA, 2009, p. 67.

5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 04. 6 BOBBIO, 1992, p. 05.

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manos constituem a conjunção dos direitos naturais, ou seja, correspondem

ao homem pelo mero direito de ser membro da sociedade humana.7

À luz dos direitos fundamentais, após 1770, na França, passa-se a

adotar o posicionamento de que os direitos fundamentais são aqueles direi-

tos humanos positivados nas constituições estatais e, ainda, aqueles princí-

pios que resumem a concepção do mundo e que informa a ideologia política

de cada ordenamento jurídico.

Na busca de uma definição para os direitos humanos, Maniglia ensina

que:

[…] os direitos humanos aparecem como um conjunto de faculdades e instituições que em cada momento histórico concertam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humana, as quais devem ser re-conhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacio-nal e internacional.8

Nesse sentido, é dado objetivar os direitos humanos como uma facul-

dade que corresponde às necessidades humanas nos fatos históricos, para

situar as necessidades que se alteram ao longo do tempo, pois os direitos

alteram-se num caráter dinâmico e real e, ao mesmo tempo, precisam vol-

tar-se para valores de dignidade, liberdade e igualdade.

Para Maniglia a dignidade humana é o ponto de referência de todas as

faculdades que se dirigem ao reconhecimento e à afirmação da dimensão

moral da pessoa. Sua importância é a gênese da moderna compreensão dos

direitos humanos.9

A liberdade ensina Maniglia constitui o princípio aglutinante da luta

dos direitos humanos, confundida por muito tempo com a própria noção de

direitos humanos.10

A igualdade é o postulado fundamental de toda moderna construção

teórica e jurídica positiva dos povos. Por fim a positivação do conjunto des-

sas faculdades incorre no enfoque formalista de se efetivarem, por meio de

instrumentos normativos, até as técnicas de proteção e garantia.11

A origem dos direitos humanos no processo evolutivo se dá com os di-

reitos individuais desde o Egito e na Mesopotâmia. Na Grécia, havia o ideal

de emancipação do homem cidadão, surgindo, também estudos sobre a li-

berdade e igualdade do homem, como as previsões de participação política e

crença num direito natural superior às leis escritas.

7 MANIGLIA, 2009, p. 68. 8 Ibid., p. 71. 9 MANIGLIA, loc. cit. 10 MANIGLIA, 2009, p. 71. 11 MANIGLIA, loc. cit.

Page 17: Revista Raízes Jurídicas

16 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Segundo Gilberto Giacóia o homem, enquanto soberano em sua indivi-

dualidade, não pode inspirar conformismo próprio daqueles que renegam a

dignidade de sua condição humana.12

Nessa mesma linha, indaga, afinal, qual a nossa lei-regente? A de An-

tígona ou a de Creonte? Tarda perceber que, aos poucos, vão sendo relega-

dos princípios emanados das leis imutáveis e não escritas dos céus, que não

nasceram ontem nem hoje, que nunca morrem e que ninguém sabe de onde

provieram.

Para o mestre, importa, pois, tornar coeva a resposta de Antígona ao

rei de Tebas, figura do tirano, na peça de Sófocles, diante da acusação de

descumprimento de seu édito, ao enterrar o corpo do irmão Polícines (morto

em batalha contra aquele reino), declarado insepulto para ser devorado por

cães e abutres, frente à indagação:

Ousaste infringir minha lei? Sim. Porque não foi Zeus quem a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos a Justiça – quem aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a mortal permita violar aquelas não escritas e intangíveis leis dos deuses. Estas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; Ninguém sabe quando foram promulgadas.13

O cristianismo, segundo Maniglia desenvolveu e universalizou a ideia

judaica do homem criado à imagem e semelhança de Deus, e, por isso, mais

tarde, Santo Tomás de Aquino, em sua Summa theologica, no século XIII, já

afirmava que o homem não pode ser rebaixado a nenhuma outra condição,

pois é reconhecido a todo ser humano um valor radical e distinto do atribuí-

do ao restante dos seres da criação.14

Porém, para a autora, foi o direito romano, com a Lei das XII Tábuas,

que iniciou um procedimento escrito sobre liberdade, propriedade e prote-

ção dos direitos do cidadão.

Na Idade Média, consagra-se a ideia de que os direitos humanos têm

sempre o mesmo traço: a limitação do poder estatal que, segundo Fábio K.

Comparato desde os séculos XI e X a.C., até os dias de hoje, são marcas que

acompanham pari passu esses direitos.15

12 GIACOIA, Gilberto. Invasão da intimidade. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 2, n. 1, p.123, jan./jun. 2001. 13 GIACOIA, loc. cit. 14 MANIGLIA, 2009, p. 72. 15 COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 40.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 17

Para Olivier Nay o período revolucionário evoluiu sensivelmente duran-

te os dois últimos séculos. Segundo o autor o processo teria dado início com

as revoluções inglesas do século XVII (1642-1649), e com a “Revolução Glo-

riosa” de (1688-1689), inspirada nas teorias de John Locke, e teria acelerado

no final XVIII com as revoluções da Suíça, dos Países Baixos e da Irlanda.16

Nesta mesma época, na França, a revolução industrial, que ocorreu na

Inglaterra, teve um desfecho dramático: a Revolução Francesa, com o seu

documento fundamental; “Declaração dos Direitos do Homem” de 1789.

As transformações ocorridas na Europa nos séculos XVII e XVIII, princi-

palmente no que se refere à economia, alteram a forma de pensar no mundo.

O Iluminismo – iniciado por René Descartes (1596-1650), e os ingleses

Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704) e o holandês Baruck

Espinosa (1632-1677) – criticavam o absolutismo, a religião e o mercantilis-

mo como elementos limitadores do avanço da sociedade como um todo,

nesse sentido, aduz Nay, que a Revolução Francesa (1789), já numa primeira

perspectiva espelhava o resultado conquistado nos séculos anteriores.17

Para os revolucionários de 1789 a proclamação da soberania do povo é

uma etapa necessária para romper com um sistema absolutista e feudal o

qual julgavam inócuo.

Nos dizeres de Nay a visão política na França colocada em 1789,

apóia-se no princípio de uma justiça igualitária, supondo a possibilidade de

garantir aos homens os mesmos direitos no espaço público, onde os cida-

dãos não devem ser identificados, de fato, por sua origem social ou por sua

riqueza, não se apoiando nas diferenças de status que justificam a existência

de privilégios e de direitos desiguais.18

No regime anterior a Revolução Francesa, os laços comunitários eram

definitivos, como se fosse uma condição “natural” da qual não podiam sair,

onde uma minoria abastada era protegida pelo nascimento e a fortuna, man-

tendo os demais indivíduos num estado de servidão.

Segundo Nay, ao proclamar a soberania da nação e ao romper definiti-

vamente com os quadros da sociedade cristã e a monarquia, à Revolução

Francesa abre assim o caminho da construção democrática.19

Em 04 de julho de 1776, nos Estados Unidos das Américas é assinada

pelo Congresso a Declaração de Independência dos Estados Unidos, outro

marco na história da sociedade ocidental, cuja, redação redigida na Filadélfia

16 NAY, O. Histórias das ideias políticas. Trad. Jaime A. Clasen. R.J. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 255. 17 NAY. 2007, p. 253. 18 Ibid., p. 254. 19 Ibid., p. 255.

Page 19: Revista Raízes Jurídicas

18 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

por Thomas Jefferson (com a ajuda de Benjamim Franklin) é o prelúdio de

oito anos de guerra entre os Insurgentes e a autoridade britânica. Neste con-

texto, treze colônias proclamam altivamente sua independência referindo-se

no dizer de Nay “às verdades evidentes.” 20

Segundo Bobbio, foram consagrados documentos políticos de suma

importância, como a Declaração da Virgínia (1778), com a seguinte afirma-

ção: Todos os homens são por natureza igualmente livres e possuem alguns

direitos inatos, dos quais, entretanto no estado social, não podem privar ou

despojar seus descendentes” e a Constituição dos Estados Unidos da Améri-

ca (1787).21

Por ocasião da Revolução Russa, de outubro de 1917, tendo como

principal líder Lenin (Vladimir Ilitch Ulianov – 1870-1924). O governo bol-

chevique já instalado desde 1917 toma medidas como: trabalho obrigatório

a todos e salário único; nacionalização dos bancos, nacionalização das em-

presas industriais com mais de cinco ou dez operários; entrega obrigatória

das colheitas quando requisitadas, salvo a parcela de consumo próprio, situ-

ação que perdurou até o final do século XX, quando então decaiu o comu-

nismo soviético com a extinção da União da República Socialista Soviética e a

criação da Comunidade de Estados Independentes.22

Tais medidas abriram o caminho para o Estado Socialista e despertou a

consciência do mundo para a necessidade de assegurar aos trabalhadores

um nível de vida compatível com a dignidade da pessoa humana.

Nas palavras de Maria Teresa Uille Gomes “O reconhecimento dos di-

reitos humanos de caráter social e econômico foi o principal benefício que a

humanidade recolheu do movimento socialista.” 23

Para a autora, o industrialismo do século XIX, ao mesmo tempo em que

procurava levar às últimas consequências as ideias liberais, mostrava tam-

bém outra faceta, que era a diferença de classes sociais, com a concentração

de indivíduos que nada mais tinham do que a força de trabalho.

Era imperiosa a necessidade de se implantar uma nova ordem social

igualitária e justa.

A “Declaração dos Direitos do Homem” da Revolução Francesa (1789) e

a doutrina sobre os direitos civis na “Declaração de Independência dos Esta-

dos Unidos” de 1776, foram fruto da filosofia iluminista francesa, juntamente

com as doutrinas de Locke e Rousseau, sobre o indivíduo e a sociedade, fi-

20 Ibid., p. 288. 21 BOBBIO, 2003, p. 198. 22 NAY, 2007, p. 288. 23 GOMES, M. T. U. Direito humano à educação. Curitiba: Juruá, 2009. p. 88.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 19

xando em sete pontos fundamentais, entre outros: “a revolta contra as auto-

ridades”, “o racionalismo”, “o pensamento do Iluminismo”, “o otimismo cul-

tural”, “o retorno à natureza”, “o cristianismo humanista” e “os direitos hu-

manos.” 24

Inácio Strieder faz referência às ideias sociopolíticas, das declarações

que, no seu dizer, estavam impregnadas de pressupostos libertários e revo-

lucionários da burguesia contra as monarquias, a aristocracia e seus defen-

sores. E, nessa época, a maioria das autoridades das igrejas cristãs e, princi-

palmente, da Igreja Católica, estavam comprometidas com as monarquias e

as classes aristocráticas.25

Para o autor, foi esse o motivo que levou por mais de um século, a

Igreja ter-se ocupado em reprovar os direitos humanos, assim como haviam

sido formulados pela Revolução Francesa. Esta atitude de reprovação total

perdurou, praticamente, até o Papa Leão XIII, que em sua encíclica “Libertas”,

publicada em 1889, fez a distinção entre o aceitável e reprovável nas “novas

liberdades.”

Strieder, em sua obra assegura que esta primeira aproximação da Igre-

ja com os Direitos Humanos foi motivada pela situação histórica da segunda

metade do século XIX com o avanço do liberalismo econômico e do socialis-

mo. Estas duas ideologias foram vistas pela Igreja como ameaças para a dig-

nidade da pessoa humana.26

Segundo Strieder os princípios proclamados pela Declaração da inde-

pendência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão de 1789 se inspiraram nos mesmos valores: liber-

dade de consciência, liberdade de culto, liberdade de expressão, direito de

propriedade, liberdade de negócio, igualdade perante a lei, direito a uma

justiça igual para todos.27

Para o autor as duas declarações se baseiam na crença de que existem

verdades universais e eternas, anteriores a qualquer sistema governo ou ide-

ologia, dentre essas verdades estão os “direitos fundamentais do homem”

Strieder aduz, ao comparar a Declaração de Independência dos Estados

Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa que é

possível encontrar, em ambas, uma clara fusão de duas interpretações ideo-

lógicas que se desenvolvem paralelamente, desde o século II de nossa Era:

sendo primeiro, um humanismo idealista de origem grega; e segunda inter-

pretação, a tradição profética judaico-cristã.28

24 STRIEDER, Inácio. A Fundamentação filosófica-teológica dos direitos humanos. In: ARAUJO, G M. L.de.; MOMESSO. L.A. (Orgs.). Cadernos de Direitos Humanos. Recife: Universitária. 2008. p. 19. 25 Ibid., p. 18. 26 STRIEDER, op. cit. 27 STRIEDER, 2008, p.15. 28 STRIDER, 2008, p. 16.

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20 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Na explicação do autor, a interpretação cristã predomina no Documen-

to dos Estados Unidos, pois ele afirma que “todos os homens são iguais,

porque o Criador os dotou com os mesmos direitos”, essa mesma Declaração

também se dirige ao Supremo Juiz do mundo e menciona a Divina Providên-

cia, ao passo que, a humanística grega se destaca na Declaração francesa,

onde, apenas no preâmbulo, se refere ao “Ser Supremo”, afirmando que to-

dos os homens nascem com direitos iguais, por possuírem a mesma nature-

za humana.

A compreensão do homem que subjaz a essas declarações supõe que

todos os homens foram criados pelo único Deus, pai de todos, que os dotou

com uma única natureza racional, que lhes confere a dignidade de pessoas

humanas.29

A igualdade e a fraternidade são características dessas duas proclama-

ções.

Para Strieder sua herança religiosa é inconfundível, pois declara que

esses direitos são sagrados e invioláveis. O primeiro panfleto com os “Direi-

tos dos Cidadãos”, distribuído em Paris trazia, logo abaixo do título, um olho

dentro de um triângulo, esse símbolo é tradicionalmente o símbolo da San-

tíssima Trindade, mas os revolucionários franceses explicavam esse símbolo,

dizendo, que ele representava “o supremo olho da razão que ilumina toda a

humanidade.”30

É verdade, como já sublinhara Locke no final do século XVII, e que con-

tinua no século XVIII, que o reconhecimento, dos direitos naturais têm im-

portantes incidências políticas, sobretudo, a ideia de que todo indivíduo

possui direitos que nenhuma autoridade poderia contestar. Ligados à natu-

reza humana, esses direitos não podem ser limitados sem que, se quer se-

jam enquadrados pela lei.

Nesse sentido Nay, esclarece que ao pertencer ao âmbito da “legislação

natural”, são considerados como anteriores à “lei positiva” que é colocada

sob a responsabilidade do soberano.31

A espécie humana, em seu longo processo evolutivo, cuidou de moldar

características próprias de uma raça que se destaca por deliberar sobre seu

destino, aliás, não pode o poder identificar-se à vontade apenas de um ho-

mem, mas emanar-se da coletividade para lhe assegurar as condições de

vida e desenvolvimento.

29 Ibid., loc.cit. 30 Ibid., loc.cit. 31 NAY, 2007, p. 288.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 21

Nessa mesma linha Nay relata a ideia de incluir os direitos naturais

numa declaração está particularmente em voga no fim do século XVIII.32

Esse desejo, veio com a consagração mundial da Declaração dos Direi-

tos do Homem e do Cidadão (Déclaration des droits de l'homme et du cito-

yen, August 26,1789), com 17 artigos, entre os quais se destacam algumas

previsões lembradas por Maniglia:

Princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reser-va legal e anterioridade em matéria penal princípio da presunção de ino-cência, liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento.33

Os partidários da Declaração conseguem seus objetivos políticos, ou

seja, transformar os direitos inscritos na natureza em lei positivada a fim de

que seu valor seja publicamente reconhecido, e mais, de caráter universalis-

ta, tornando-se referência para todas as elites que, na Europa, depois no

mundo, procuraram desfazer-se dos poderes autoritários.34

Todavia, a Declaração do Direito do Homem e do Cidadão é precedida,

na história, por outros documentos que corroboraram para efetivação desses

direitos que foram a Petition of Right, de 1628, que previa a não obrigatorie-

dade do pagamento de impostos ou taxas que não tivessem o consentimento

do parlamento; o Habeas Corpus, de 1679, a Bill of Rights, que restringiu o

poder estatal, fortalecendo o princípio da legalidade; o direito de petição,

vedação de penas cruéis, entre outras; o Act Seattlement, de 1701, que rea-

firmou o princípio da legalidade e a responsabilidade política dos agentes

públicos.35

Ressalta Maria Tereza Uille Gomes, que o sucesso da Declaração fez da

França, por muito tempo, a campeã das ideias liberais, justamente pelo fato

dos autores da Declaração, reconheceram e declararem que os “homens nas-

cem e continuam livres e iguais em direitos” e que “as distinções sociais só

podem fundar-se na utilidade comum.” 36

Para a autora, esse fato significou um progresso na afirmação dos va-

lores fundamentais da pessoa humana, como símbolo do exercício da liber-

dade, sob o império da lei, em condições de igualdade.37

Guimarães diz que a concepção contemporânea dos direitos humanos

só vem a surgir numa 3a fase de sua evolução histórica, que se dá em 10 de

dezembro de 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, como

32 NAY, loc. cit. 33 MANIGLIA, 2009, p. 72. 34 NAY, op. cit. 35

MANIGLIA, 2009, p. 72.

36 GOMES, 2009, p. 89. 37 GOMES, loc. cit.

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22 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

marco maior do processo de reconstrução dos direitos humanos, face às

atrocidades praticadas pelos nazistas na II Guerra Mundial.38

O que segundo Gomes, em nome do Estado, abalaram de tal forma o

sentimento das pessoas do mundo todo, ultrajando a consciência da huma-

nidade, vindo a Declaração, desta forma, a buscar a manutenção da liberda-

de, da justiça e da paz no Mundo.39

Neste contexto aduz Gomes:

As guerras são o terreno de desenvolvimento dos piores crimes. E conti-nua, durante a primeira Guerra Mundial, foram mortos mais de um mi-lhão de armênios e de outros cristãos no Império Otomano, com massa-cres e incríveis deportações no coração do deserto sírio, permanecendo cravado o Metz Yegbern, o grande mal, o massacre de grande parte do povo armênico na Anatólia […]. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Sboab acabou no aniquilamento de seis milhões de judeus, vítimas ino-centes de um ódio antigo e novo. A Sboab, com seus mortos de modo violento e científico, como numa cadeia de produção da morte, perma-nece como o monumento fúnebre da loucura anti-semita […]. Com os judeus, foram mortos milhões de poloneses, de eslavos, de pessoas de outros povos e, enfim, de ciganos que eram considerados associais pe-los nazistas. É Samudaripen, o genocídio em língua romani, com o mas-sacre de uma boa parte do povo cigano, cujas vítimas são calculadas en-tre duzentos e cinquenta e quinhentos mil. Entre os mortos desse povo, houve quinze mil franceses, mil italianos, quinze mil alemães, vinte e oi-to croatas, trinta e sei mil romenos […]. Os ciganos, especialmente cri-anças, foram material humano de eleição para as experiências médicas do famigerado médico nazista Mengele […]. A perseguição dos ciganos baseava-se na convicção da diversidade das raças. Esse povo sem-terra, que jamais se tornou uma nação na Europa, considerada associal por natureza, parece aos bem-pensantes um elemento de desordem até os dias de hoje.40

Nesse sentido o conjunto desses fatores contribuiu para a criação de

uma ordem internacional capaz de agrupar os interesses dos Estados em

busca de um ideal comum. É neste contexto que é proclamada a Declaração

Universal de Direitos Humanos, em 10-12-1948, data em que também é

ratificada pelo Brasil.41

Nas palavras de Gomes, é possível afirmar que os direitos humanos

são objeto de preocupação mundial histórica, que se desenvolveram gradati-

vamente, visando garantir o direito à liberdade, à igualdade e à dignidade da

pessoa humana.42

38 GUIMARÃES, M. A. Fundamentação dos direitos humanos: relativismo ou universalismo?. In: PIOVE-SAN. F.(Coord.) Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2007. p. 57. 39 GOMES, op. cit., p. 89. 40 GOMES, 2009, p. 89. 41 GUIMARÃES, 2007, p. 57. 42 GOMES, 2009, p. 91.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 23

Leciona Flávia Piovesan, os direitos humanos compõem assim uma

unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, capaz de conjugar o

catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econô-

micos e culturais.43

Piovesan ao abordar o tema Direitos Humanos destaca: “É no princípio

da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra o próprio

sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a herme-

nêutica constitucional contemporânea.” 44

Conforme Maniglia é na segunda metade do século XX, que se passou

a classificar os direitos humanos em três gerações, instalando-se, assim, os

direitos humanos da época contemporânea, conforme alinhavados a seguir:

1a geração: os direitos civis (direito à vida, à integridade física e moral, à dignidade, etc.) e políticos (direito de participar de organizações políti-cas, de eleger e ser eleito, etc.); realçam o princípio da liberdade e os di-reitos dos cidadãos. Paulo Bonavides considera que essa primeira gera-ção de direitos valoriza, primeiramente, o homem singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista, que com-põe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual, não tendo, dessa forma, preocupação com os problemas sociais, até porque a igualdade burguesa era exclusivamente formal. 2a geração: é conhecida como dos direitos econômicos (direito à propri-edade individual e/ou coletiva, etc.); sociais (direitos à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à seguridade social, ao salário justo e equitativo, etc.) e culturais (direito aos benefícios da ciência e da tecno-logia, direito à investigação científica, etc.); se identificam com as liber-dades positivas reais ou concretas e acentuam o princípio da igualdade. Esses direitos surgem em decorrência da deplorável situação da popula-ção pobre das cidades industrializadas da Europa ocidental, que era constituída por trabalhadores expulsos do campo. Os camponeses ex-pulsos do campo tornaram-se, muitas vezes, mendigos nas cidades. Conclui Maniglia que, quando se proclamaram os direitos humanos co-mo emancipação política, realizou-se apenas uma etapa da dinâmica histórica. Ao longo dos anos, os direitos sociais foram se consolidando em direito ao trabalho, à saúde, à educação e a previdência social, direi-tos estes que exigem uma atividade positiva do Estado por meio de polí-ticas públicas. 3a geração: materializa poderes de titularidade coletiva, atribuídos gene-ricamente a todas as formações sociais, e consagra o princípio da soli-dariedade ou fraternidade. Desenvolve o estudo dos direitos humanos como os mais consolidados e representativos, como direitos à paz, ao desenvolvimento econômico, a livre determinação dos povos, direito da criança e do adolescente, ao meio ambiente, etc. Maniglia assinala, que os direitos e as liberdades da terceira geração se apresentam como uma resposta ao fenômeno da denominada “contaminação das liberdades.” A

43 PIOVESAN, Flávia. Pobreza como violação de direitos humanos. In: NOLETO, M. J.; WERTHEIN,J.(Org.) Pobreza e desigualdade no Brasil: traçando caminhos para a inclusão Social. Brasí-lia: UNESCO. 2003. p. 137. 44 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva. 2006. p. 31.

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24 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

autora acentua que a revolução tecnológica redimensionou as relações entre os seres humanos, entre o homem e a natureza, e do ser humano com o seu contexto ou marco cultural de convivência, já que essas mu-danças claramente incidem na esfera dos direitos humanos.45

Ainda sob o ponto de vista das gerações dos direitos humanos, o as-

sunto não é pacífico. Paulo Bonavides cita ainda uma 4a geração o direito à

democracia, a informação e ao pluralismo (como reflexo da globalização) e a

garantia do futuro da cidadania e da liberdade de todos os povos.46

Segundo o autor, essa evolução deu-se no plano dos direitos internos,

e, no âmbito internacional, nesse processo os direitos que primeiro surgiram

foram os econômicos e sociais.47

No que observa o autor, a sequência correta seria: em primeiro lugar,

os direitos ao trabalho e condições de trabalho; em segundo, os direitos in-

dividuais, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.48

A terminologia “gerações” para Trindade, leva ao raciocínio de seres

humanos que se sucedem no tempo, não a ideia de somatização dos direitos

anteriores aos posteriores.49

Afirma ainda, que os novos direitos – os direitos de solidariedade ou

fraternidade, como o direito ao desenvolvimento e ao meio ambiente sadio –

interagem com os direitos individuais e sociais, não os substituindo, distin-

tamente do que a noção simplista das chamadas gerações de direitos huma-

nos se sucedem no tempo, os direitos, por outro, se acumulam e se sedi-

mentam.50

Nos ensinamentos de Vojin Dimitrijkevi, a evolução dos direitos huma-

nos é um processo dinâmico infindável: não só os direitos reconhecidos se-

rão aperfeiçoados, enriquecidos e ampliados, como também se farão acom-

panhar de novos direitos, tão logo haja consenso sobre a importância notó-

ria dos valores que estes veiculam e sobre sua capacidade de serem expres-

sos positivamente.51

Nesse sentido corrobora Hannah Arendt, “Os direitos humanos não são

um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante proces-

so de construção e reconstrução.”52

No Brasil, os direitos humanos ganharam nova expressão, a partir de

1988, com a Constituição Federal. O Art. 5o descreve os direitos e as garan-

tias individuais, com presteza das Constituições mais modernas do mundo,

45 MANIGLIA, 2000, p. 74. 46 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 564. 47 BONAVIDES, loc. cit. 48 BONAVIDES, loc. cit. 49 TRINDADE, A. A. C. Direitos Humanos e meio ambiente. Porto Alegre: Sérgio Fabris,1993. p.191. 50 TRINDADE, 1993, p. 191. 51 DIMITRIJKEVI. Vojin. Direitos humanos e paz. In: SYMONIDES, Janusz. (Org.). Direito humanos novas dimensões e desafios. Brasília: UNESCO, 2003. p. 85. 52 ARENDT. H. As origens do totalitarismo. Rio de Janeiro. 1979. p. 34.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 25

mas não é só: o meio ambiente, política dos direitos sociais, a política eco-

nômica, os direitos do consumidor, a lei tributária e fiscal, suas funções so-

ciais estão presentes em diferentes capítulos da Carta Magna.

Para Maniglia num primeiro olhar, a ideologia e o positivismo proposto

na Constituição Federal de 1988, revelam a expressão de um país consolida-

do em princípios democráticos que respeitam e implantam a dignidade do

cidadão, ao menos em seu teor legal.53

Diz Gomes, que no Brasil, estamos diante do surgimento muito recente

de um novo ramo do Direito, o “Direito dos Direitos Humanos”, autônomo, e

que provoca nos juristas e acadêmicos o desafio de estudar a temática dos

direitos humanos a partir da interpretação e aplicação dos tratados e decla-

rações internacionais e seus reflexos na realidade social, identificando os

mecanismos de proteção de tais direitos em favor dos manifestantes pobres

e, em especial, dos excluídos que são vítimas de violação de seus direitos

fundamentais (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais).54

Dimitrijkevic relata em seu artigo “Valores como Direitos”, que a pro-

posição de que certos valores reconhecidos devem ser expressos em termos

de direitos individuais, necessários para o alcance ou a proteção do bem

relevante (valor), está na origem do pensamento dos direitos humanos.55

Cita o autor, como exemplo os instrumentos internacionais de direitos

humanos, o valor mais protegido é a dignidade da pessoa humana; dentro

desta, não é a vida humana o que mais se valoriza (uma vez que, sob certas

circunstâncias, admite-se a pena capital e é legítimo matar nos conflitos

internacionais), mas a integridade física da pessoa. Há um consenso de que

qualquer tentativa de transgressão do sistema orgânico do corpo humano é

inaceitável.56

Comparato entende que os direitos fundamentais são: Os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de aceitar normas, tanto no interior dos Esta-dos quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, leis, nos tratados internacionais.57

E cada vez mais, o reconhecimento de tais direitos converge com a

consciência ética coletiva, de que a dignidade da pessoa humana exige o

53 MANIGLIA, 2000, p. 77. 54 GOMES, 2009, p. 82. 55 DIMITRIJKEVI, 2003, p. 79. 56 DIMITRIJKEVI, loc. cit. 57 COMPARATO, 2003, p. 85.

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26 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

respeito a certos bens e valores em qualquer circunstância, ainda que não

reconhecidos no ordenamento jurídico estatal ou internacional.

Ensina Gomes, que as Normas internacionais de direitos humanos, pelo

fato de exprimirem a consciência ética universal, estão num patamar acima

do ordenamento jurídico de cada Estado. Havendo conflito entre regras in-

ternacionais e internas, que digam respeito aos direitos humanos, prevalece

sempre a regra mais favorável à proteção da dignidade da pessoa humana no

caso concreto.58

Segundo Comparato os princípios fundamentais do sistema dos direi-

tos humanos são de duas ordens: princípios axiológicos e princípios estrutu-

rais.59

Os princípios axiológicos dizem respeito aos valores éticos supremos:

liberdade, igualdade e fraternidade, conforme a tríade da tradição francesa

reafirmada no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Huma-

nos.60

O princípio da liberdade tem como referencial axiológico a ideia de au-

tonomia, ou seja: de submissão de cada qual às normas por ele mesmo edi-

tadas.

O princípio da igualdade está relacionado à abolição dos privilégios es-

tamentais e a igualdade individual perante a lei.

O princípio da fraternidade está vinculado à ideia de responsabilidade

de todos pela carência ou necessidade de qualquer indivíduo ou grupo soci-

al. Com base nesse princípio é que passaram a ser reconhecidos os direitos

humanos sociais, que se realizaram através da efetivação das políticas públi-

cas e visam proteger aqueles que não dispõem de recursos próprios para

viver com dignidade.

Ainda nas lições de Comparato, os direitos sociais englobam o direito

ao trabalho, o direito à seguridade (saúde, previdência e assistência), o direi-

to a educação e, de modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11). “o direito de toda

pessoa a um nível de vida adequado para si própria e sua família, inclusive á

alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria

contínua de suas condições de vida.” 61

Quantos aos princípios estruturais dos direitos humanos, eles são de

duas espécies: a irreversibilidade e a complementaridade solidária.

O princípio da irreversibilidade dos direitos humanos está ligado ao fa-

to de que, na medida em que se amplia a consciência ética e coletiva e se

instituem os direitos fundamentais em vigor, estes se tornam irreversíveis e

se impõem pela sua própria natureza. Não podem ser suprimidos pelos Po-

58 GOMES, 2009, p. 86. 59 COMPARATO, 2008, p. 62. 60 COMPARATO, loc. cit. 61 Id., 2003, p. 64.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 27

deres Públicos, pelo Poder Constituinte e nem pela Organização das Nações

Unidas. Simplesmente é inválido suprimir direitos fundamentais por via de

novas regras constitucionais ou convenções internacionais.

O princípio da complementaridade solidária dos direitos humanos diz

respeito à essência do ser humano que é uma só, razão pela qual, de forma

igualitária e independente das diferenças, é dever dos Estados promover e

proteger dos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

Tal princípio foi proclamado pela Conferência Mundial de Direitos Hu-

manos em Viena em 1993 nos seguintes termos: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de modo justo e equitativo, com o mesmo fun-damento e a mesma ênfase. Levando em conta a importância das parti-cularidades nacionais e regionais, bem como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados, independen-temente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.62

O homem é um ser social e criou a figura do Estado para disciplinar

essas relações da vida em sociedade. A Lei é que dá vida aos Estados sobe-

ranos, e como o mundo é uma sociedade de Estados, que demanda a inte-

gração de interesses jurídicos, econômicos e políticos, surge uma ordem

internacional constituída de organismos que, mesmo destituídos de sobera-

nia, buscam a interação entre os Estados, cuja prevalência deve ser a digni-

dade da pessoa humana e a paz social.

O Direito internacional público, também conhecido como Direitos das

Gentes, constitui-se no conjunto de princípios ou regras destinados a reger

os direitos e deveres internacionais dos Estados, dos organismos e dos indi-

víduos. Surgiu como ciência autônoma em princípios do século XVII.

Nas palavras de Amartya Sen, a ideia dos direitos humanos tem avan-

çado muito nas décadas recentes, adquirindo assim uma espécie de status

oficial no discurso internacional. Comitês influentes reúnem-se regularmente

para debater a fruição e a violação direitos humanos em diversos países do

mundo.63

62 DECLARAÇÃO e Programa de Ação de Viena. 1993. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 03 jun. 2010. 63 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. 6. ed. São Pau-lo:Companhia das Letras, 2007. p. 261.

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28 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Para o autor a retórica dos direitos humanos hoje em dia é muito mais

aceita – na verdade, invocada com muito maior frequência – do que já foi no

passado. Pelo menos a linguagem da comunidade internacional parece refle-

tir uma mudança de prioridades e ênfase em comparação com o estilo dialé-

tico prevalecentes de algumas décadas atrás.64

No século XX o Direito Internacional atingiu seu pleno desenvolvimen-

to, com importantes acontecimentos, tais como: as Conferências Internacio-

nais Americanas, as Conferências Internacionais da Cruz Vermelha, a 2a Con-

ferência da Paz de Paris, a criação da Liga das Nações, em 1919, o Tratado

de Versalhes, na França, a criação da Corte Permanente de Justiça Internacio-

nal, a instituição em Haia da Academia de Direito Internacional, o pacto Bri-

and-Kellong de proscrição da guerra e a Conferência Internacional da Con-

solidação da Paz, promovida pelo Presidente Franklin Roosevelt, bem como a

criação da Organização das Nações Unidas.65

Para Gomes a questão dos direitos fundamentais da pessoa humana –

Direitos Humanos – que até então eram tratados de forma isolada por cada

um dos Estados, a partir do século XX passou a ser objeto de estudos e de-

bates no campo das relações internacionais.66

Segundo Piovesan, o processo de universalização dos direitos humanos

permitiu, por sua vez, a formação de um sistema normativo internacional de

proteção destes direitos.67

A concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos

processos de universalização e internacionalização destes direitos, compre-

endidos sob o prisma de sua indivisibilidade.

Piovesan ressalta ainda que a Declaração de Direitos Humanos de Vie-

na, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu

parágrafo 5o, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interde-

pendentes e interrelacionados.” A comunidade internacional deve tratar os

direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igual-

dade e com a mesma ênfase.68

Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, en-

dossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando

o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos

humanos, introduzida pela Declaração de 1948.

Piovesan, ao abordar o tema Direitos Humanos e tecer considerações

sobre o princípio da dignidade humana como referência ética maior a orien-

tar a ordem jurídica interna e internacional, consagra-o como verdadeiro

64 SEN, loc. cit. 65

ACCIOLY, Hidelbrando, Manual de direito Internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva. 1980. p. 90. 66 GOMES, 2009, p. 91. 67 PIOVESAN, 2003, p. 139. 68 PIOVESAN, 2003, p. 142.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 29

super princípio e destaca que “é no princípio da dignidade da pessoa huma-

na que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de par-

tida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contempo-

rânea.” 69

De acordo com o pensamento de Gomes é a partir da recepção do valor

da dignidade humana no sistema internacional, que se inaugura um novo

tempo histórico: a era da cidadania mundial.70

Como já mencionado em 10-12-1948, em Paris foi proclamada pela

Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas a Declaração Universal

dos Direitos Humanos que, ao introduzir a concepção contemporânea de

direitos humanos, tornou-se o marco de criação do chamado “Direito Inter-

nacional dos Direitos Humanos”, um sistema jurídico normativo de alcance

internacional, com o objetivo de proteger os direitos humanos.

Direitos Humanos é tema de interesse comum para toda a humanida-

de, cuja observância é exigência universal. Além da característica universal,

os direitos humanos também são indivisíveis e interdependes.71

A Declaração definiu pela primeira vez, em nível internacional e como

um padrão comum para todos os povos e nações, os direitos humanos e as

liberdades fundamentais – noções até então difusas e tratadas de maneira

não uniforme.

Nos dizeres de Gomes, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,

modificou radicalmente a premissa que tinha o Estado como centro das

atenções como forma de fortalecimento econômico e militar. Estabelecendo

o ser humano como centro das preocupações da Política e do Direito, não

podendo o Estado intervir de forma arbitrária violando a liberdade e o direito

à existência digna dos seres humanos.72

A Declaração estabelece que: “O reconhecimento da dignidade inerente

a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é

o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”73

A Declaração em seus 30 artigos (anexo A) é precedida de um preâm-

bulo, onde se diz que a Assembléia Geral das Nações Unidas proclama:

A presente Declaração Universal dos Direitos do Homem com o ideal comum a ser atingindo por todos os povos e todas as nações, com o ob-jetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração se esforce através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdade, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto

69 PIOVESAN, op. cit., p. 31. 70 GOMES, 2009, p. 92. 71 Ibid., p. 94. 72 GOMES, 2009, p. 95 73 DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos Nações Unidas. Assembléia Geral, Resolução 217 A.

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30 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

entre os povos dos Estados-Membros, quanto entre os povos dos terri-tórios sob sua jurisdição.74

A luz do pensamento de Celso Dallari apud Gomes: “Tratando-se de

direitos fundamentais inerentes à natureza humana, nenhum indivíduo ou

entidade, nem os governos, os Estados ou a própria Organização das Nações

Unidas, tem legitimidade para retirá-las de qualquer indivíduo.” 75

A Declaração também estabelece além do direito à liberdade, igualdade

e dignidade da pessoa humana, um elenco de direitos fundamentais, sem

distinção de qualquer espécie tais como:

Direito à vida, à segurança pessoal; direito de não ser mantido em es-cravidão; de não ser submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante; direito de reconhecimento como pessoa na forma da lei; direito a receber dos tribunais remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais; direito a não ser preso arbi-trariamente; direito à presunção de inocência até julgamento final; direi-to de não ser preso arbitrariamente; direito à presunção de inocência até o julgamento final; direito de não sofrer interferência na sua vida priva-da, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação; direito à liberdade de locomoção; direito de asilo político, direito a uma nacionalidade; direito de contrair matrimô-nio; direito à propriedade, direito à liberdade de pensamento; direito à liberdade de opinião e expressão; direito à liberdade de reunião e asso-ciação pacíficas; direito de tomar parte no governo de seu país direta ou indiretamente; igual direito de acesso ao serviço público de seu país; di-reito de votar; direito a segurança nacional social, e à realização dos di-reitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade; direito ao trabalho em condições adequadas; direito a repouso, lazer e férias remuneradas; di-reito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstância fora de seu alcance; direito a cuidados especiais na maternidade e na infância; direito à instrução; di-reito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e participar do progresso científico, direito autorais; direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabeleci-dos na Declaração possam ser plenamente realizados.76

Conforme Gomes, os direitos humanos costumam ser relacionados, in-

clusive pelas Nações Unidas, em duas categorias: os civis e os políticos (art.

3o a 21); os econômicos, sociais e culturais (22 a 18).

74

DECLARAÇÃO, loc. cit. 75 GOMES, 2009, p. 95. 76 DECLARAÇÃO, 217. A

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 31

Gomes valendo-se dos ensinamentos de Jack Donnelly revela uma

classificação melhorada nos seguintes termos:

a. direitos Pessoais, incluindo os direitos à vida, à nacionalidade, ao reconhecimento perante a lei, à proteção contra tratamentos ou punições cruéis, degradantes ou desumanas, e à proteção contra a discriminação racial, étnica, sexual ou religiosa (arts. 2o a 7o e 15);

b. direitos Judiciais, incluindo o acesso a remédios por violações dos direitos básicos, a presunção de inocência, a garantia de processo público justo e imparcial, a irretroatividade das leis penais, a proteção contra prisão, detenção ou exílio arbitrários, e contra a interferência na família, no lar e na reputação (arts. 8o a 12);

c. liberdades Civis, especialmente as liberdades de pensamento, consciência e a religião, de opinião expressão pacífica (arts. 13 e de 18 a 20);

d. direitos de Subsistência, particularmente os direitos à alimenta-ção e a um padrão de vida adequado à saúde e ao bem-estar próprio e da família (art. 25);

e. direito Econômico, incluindo principalmente os direitos ao tra-balho, ao repouso e ao lazer, e à segurança social (arts. 22 a 26 – proposital ou acidentalmente, Donnely omite o art. 17, sobre o direito a propriedade, que acabaria excluído dos Pactos Interna-cionais de Direito Humanos);

f. direitos Sociais e Culturais, especialmente os direitos à instrução e à parte na vida cultural da comunidade (arts. 26 e 28); e

g. direito Políticos, principalmente os direitos a tomar parte no go-verno e a eleições legítimas com sufrágio universal e igual (art. 21), mais os aspectos políticos de muitas liberdades civis.77

Segundo Gomes uma vez, tendo sido proclamados todos esses direitos

na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como normas jurídicas, estes

devem ser aplicados independentemente de sua inclusão nos direitos dos

Estados pela formalização legislativa. Entretanto, diante da inexistência de

um órgão que possa impor sua efetiva aplicação ou impor sanções em caso

de não-observância da Declaração, o Estado tem adotado como praxe, inclu-

ir nas próprias Constituições um capítulo referente aos direitos e garantias

individuais justamente porque, uma vez incorporadas ao direito positivo dos

Estados, aquelas normas adquirirem plena eficácia.78

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reproduziu uma série de di-

reitos humanos que estão previstos da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, dotando-os de plena eficácia:

77 GOMES, 2009, p. 95. 78 GOMES, 2009, p. 99.

Page 33: Revista Raízes Jurídicas

32 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

O art. 5o, § 1o da Constituição Federal prevê que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (Título II CF – aí inserido o capítulo que trata dos direitos sociais – educação, saúde, trabalho, moradia, la-zer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) tem aplicação imediata.79

Neste contexto, aduz Gomes, negar a aplicação imediata dos direitos

econômicos e sociais – especialmente o direito a educação, a saúde, ao tra-

balho, à moradia, à segurança, à previdência social, à maternidade e à infân-

cia e à assistência aos desamparados – equivale a manter o status quo que

ampara a injustiça social.80

Os direitos econômicos, sociais e culturais integram a chamada “con-

cepção contemporânea de direitos humanos”, enunciada pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948, e reiterada pela Declaração de Vie-

na de 1993. Tais direitos pertencem à mesma categoria hierárquica dos di-

reitos civis e políticos.

Ao internalizá-los na ordem constitucional, os direitos humanos pas-

saram a ser denominados direitos fundamentais, em especial com o legado

da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se fez com que os direitos

humanos transcendessem os interesses exclusivos dos Estados para salva-

guardar a dignidade dos seres humanos protegidos.

Nos dizeres de Gomes Direitos Humanos é matéria de interesse inter-

nacional e não, apenas de interesse particular de um Estado ou da relação

entre os Estados, é objeto próprio de regulação, do emergente Direito Inter-

nacional dos Direitos Humanos como um novo ramo do Direito Internacional

Público, dotado de autonomia, princípios e especificidades próprias, cuja

finalidade é a de assegurar a proteção do ser humano nos planos nacional e

internacional concomitantemente.81

O Quadro número 1, apontando marcos importante na evolução dos

direitos humanos.

Quadro 1: Marcos importantes na evolução dos direitos humanos

1945 - Final da II

Guerra Mundial

Surgimento dos direitos humanos na ordem

internacional. Primazia do princípio da dig-

nidade da pessoa humana com superprincí-

pio.

79 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Atualizada. Disponível em: <http:///www.amperj.org.br/legislação>. Acesso em: 05 jun. 2010. 80 GOMES, op. cit., p. 102. 81 GOMES, 2009, p. 104.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 33

1945 - Rússia

Encontro de Roosevelt, Churchil e Stalin- na

busca de uma “organização mundial” em

nome da paz.

1945 - San Francisco

Conferência – Carta das Nações Unidas e

criação da Organização das Nações Unidas

(ONU). A Carta reafirma a fé nos direitos

humanos fundamentais do homem e na dig-

nidade da pessoa humana em nome da paz.

1948 – Paris

Promulgada a Declaração Universal dos Di-

reitos, com base na Carta das Nações Uni-

das. Um dos documentos mais importantes

do mundo. O Estado deixa de ser o centro

das atenções, que passa a ser exercido pelo

Homem. A Declaração definiu pela primeira

fez os direitos humanos e as liberdades fun-

damentais. Nenhum Estado ou Organismo

tem legitimidade para retirar os direitos fun-

damentais ali consagrados. Para evitar dis-

cussões quanto à eficácia dos direitos, a

Constituição de vários Países vem encam-

pando o reconhecimento de tais direitos.

1976 - Entrada em

vigor dos dois Pactos

que regulamentam a

Declaração Universal

dos Direitos Humanos.

a) Pacto Internacional dos Direitos Econômi-

cos, Sociais e Culturais.

b) Pacto Internacional de Direitos Civis e Po-

líticos.

Inobstante a classificação em duas categori-

as, não há hierarquia entre os direitos

econômicos, sociais, e culturais e, prevalece

a ideia de indivisibilidade dos direitos fun-

damentais.

Um desafio para o di-

reito Internacional dos

Direitos Humanos:

como efetivar os direi-

tos fundamentais?

A eficácia dos direitos fundamentais que

foram reconhecidos, especialmente dos di-

reitos fundamentais sociais e econômicos é o

ponto crucial de maior dificuldade

Page 35: Revista Raízes Jurídicas

34 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Fonte: Gomes, com modificações feitas pelo autor.82

Do quanto foi exposto, em síntese, é possível afirmar que os direitos

humanos são objeto de preocupação mundial histórica, que se desenvolve-

ram gradativamente, visando garantir o direito à liberdade, à igualdade à

fraternidade e à dignidade da pessoa humana.

Neste capítulo, será dado especial destaque ao tema fraternidade, que

diversamente do que aconteceu com os princípios da liberdade o da igualda-

de, o da fraternidade que tradicionalmente vem sendo tratado como ideal de

filosofia política e social ou relegado ao plano moral, agora é redescoberto

também como categoria jurídico-constitucional.

Para Antonio Maria Baggio, a fraternidade, no decorrer da história, foi

adquirindo um significado universal, chegando a identificar o sujeito ao qual

ela pode referir-se plenamente como o sujeito “humanidade” - comunidade

de comunidades - como o único que garante a completa expressão também

aos outros dois princípios universais: a liberdade e a igualdade.83

O princípio da fraternidade tem fundamento religioso explicito e é a

partir disso, ou seja, da compreensão, que as religiões disponibilizaram para

o conhecimento do homem que se pode falar de liberdade e igualdade, e é a

partir dessa compreensão de que homem nasce livre e igual, porque são ir-

mãos, que o pensamento moderno desenvolveu a liberdade e igualdade co-

mo categorias políticas, mas não fez o mesmo com a fraternidade.

Entende Baggio que a fraternidade é o alicerce da liberdade e da

igualdade, sendo este o princípio regulador dos outros dois princípios: se

vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a

igualdade não se degenera em igualitarismo opressor.84

Para o mesmo autor, a fraternidade teve aplicação política, embora

parcial, com a ideia da “solidariedade”, porque houve um progressivo reco-

nhecimento dos direitos sociais em alguns regimes políticos, dando origem a

políticas do bem-estar social, ou seja, políticas que tentaram realizar a di-

mensão social da cidadania.

De fato, a solidariedade dá uma aplicação parcial aos conteúdos da

fraternidade. Mas esta, para Baggio, não pode ser reduzida a todos os outros

significados, ainda que bons e positivos, pelos quais se procura dar uma

82

Ibid., p. 106. 83

BAGGIO. A. M. (Org). O princípio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. (Org.). Tradução Durval Cordas, Iolanda Gaspar, José Maria Almeida. São Paulo: Cidade Nova. 2008. p. 21. 84

Ibid., p. 54.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 35

aplicação. E cita um exemplo, dizendo que solidariedade – tal como histori-

camente tem sido muitas vezes realizada – permite que se faça o bem aos

outros embora mantendo uma posição de força em relação “vertical” que vai

do forte ao fraco.85

No entanto também é verdade que algumas formas de “solidariedade

horizontal” se desenvolveram por meio de movimentos de defesa dos direi-

tos humanos e, em particular, dos direitos dos trabalhadores, e no movi-

mento cooperativo, na economia solidária que vem se desenvolvendo nas

últimas décadas.

Para Baggio, a fraternidade sempre pressupõe o relacionamento “hori-

zontal”, com divisão de bens e poderes. É a partir dessa ideia que está se

elaborando – na teoria e na prática – o pensamento de uma “solidariedade

horizontal”, em referência à ajuda recíproca entre sujeitos diferentes, seja

pertencentes ao mesmo âmbito social ou mesmo nível institucional.86

Marco Aquino apud Calvo diz Uma coisa é ser solidário com um outro, associando-me à sua causa; outra é ser seu irmão. Sou irmão de alguém por nascimento, e isso im-plica uma relação pessoal, não com a causa do outro, mas com o outro enquanto pessoa, membro da mesma e única família humana.87

Defende Marco Aquini que a fraternidade não pode ser reduzida ao

conceito de solidariedade, pois esta não implica a ideia de efetiva paridade

dos sujeitos que se relacionam, e não considera constitutiva a dimensão de

reciprocidade.88

O termo fraternidade sempre remete à ideia de consanguinidade, laços

entre parentes, designando a qualidade que liga membros de uma mesma

família. No dicionário da língua portuguesa Hoauiss, o entendimento cami-

nha na mesma direção: “Parentesco de irmãos, União fraternal, Amor ao pró-

ximo, Boa inteligência entre os homens, Harmonia.” 89

Desses significados não tão precisos, é possível retirar aspectos jurídi-

cos, que mostram que a fraternidade supõe o relacionamento concreto entre

pessoas, no qual cada um tem valor absoluto.

A fraternidade, à luz da doutrina de Chiara Lubich, nos remete que:

85

BAGGIO, 2008, p. 22. 86

BAGGIO, loc. cit. 87

AQUINI, Marcos. Fraternidade e direitos humanos. In: BAGGIO, A. M. (Org.) O princípio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Traduções Durval Cordas, Iolanda Gaspar,José Maria Almeida. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova. 2008. p. 138. 88

Ibid., p. 137. 89

DICIONÁRIO Houaiss. Disponível em: <http://houaiss.uol.com>. Acesso em: 16 jul. 2010.

Page 37: Revista Raízes Jurídicas

36 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

[...] A ideia da fraternidade começou assim, a abrir caminho na história. E se poderia refazer a evolução do pensamento das diversas épocas, identificando na história a presença da fraternidade - como base de muitas concepções políticas fundamentais - às vezes manifestas, outras vezes mais ocultas. Uma fraternidade frequentemente vivida, embora de maneira limitada. Sempre que, por exemplo, pessoas de diferentes con-vicções superaram toda desconfiança para afirmar um direito humano. O quanto à descoberta da fraternidade seja central, em especial para a po-lítica, no-lo afirma também o importante evento histórico, que constitui um divisor de águas entre duas épocas, a Revolução Francesa. Em seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, ela sintetiza o grande projeto político da modernidade. Embora ela mesma tenha entendido os três princípios de modo muito restrito. Além disso, se inúmeros países, construindo regimes democráticos, conseguiram dar uma certa efetivi-dade à liberdade e à igualdade, a fraternidade, no entanto, foi mais pro-clamada do que vivida. Mas a Revolução Francesa, apesar de suas con-tradições, havia intuído o que as experiências sucessivas demonstraram: os três princípios estão em pé ou caem juntos; só o irmão pode consen-tir plena liberdade e igualdade ao irmão.90

O conceito de fraternidade para Bernhard pressupõe a liberdade indivi-

dual e a igualdade de todos os homens, e está numa relação de interdepen-

dência mútua com esses dois princípios, onde os três conceitos tem por pri-

mazia a dignidade da pessoa humana.91

O objetivo de proteger os Direitos Humanos quanto o alcance da tutela

e da garantia do indivíduo, deve valer – segundo o conceito de fraternidade –

como garantia mínima para cada indivíduo, em cada tempo e em cada lugar,

inclusive os direitos sociais.

Como se sabe a história dos Direitos Humanos têm suas raízes na an-

tiguidade, pois é somente na Modernidade que seus conceitos se apropria-

ram de seu significado próprio e distinto.

Nesse sentido Baggio aponta não ser novidade encontrar alguns con-

ceitos fundamentais do cristianismo nas raízes teológicas dos Direitos Hu-

manos. Os Direitos Humanos fazem parte da tradição histórico-conceitual do

cristianismo, e a prova direta é que assim são percebidos pelas tradições

não-ocidentais, que acusam os Direitos Humanos de não serem universais,

mas justamente ocidentais e cristãos.

Se não vejamos:

No conceito de pessoa, na sua unicidade e dignidade, na ideia de que cada ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, e que existe

90

LUBICH, Chiara. Ideal e luz: pensamento, espiritualidade, mundo unido. Traduções Irani B. Silva, José M. de Almeida e Iracema do Amaral. São Paulo: Brasiliense; São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2003. p. 321. 91

BERNHARD, Agnes. Elementos do conceito de fraternidade e de direito constitucional. In: CASO, Gio-vanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 39.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 37

em todos os homens, inclusive no mais desprezível, uma chama, uma centelha divina que não se apaga; na ideia que existe um Pai e que, por isso, todos, os homens são irmãos, superando assim as barreiras sociais e culturais.92

Afirma Giussepe Tosi, que não só os direitos humanos e a fraternidade

encontram suas raízes no cristianismo, mas também a igualdade e a liberda-

de.93

John Rawls apud Pasquale Ferrara, em seu trabalho “Uma teoria de jus-

tiça”, firmada no pensamento onde se tem “o maior bem para o maior núme-

ro”, ou seja, não em princípios de utilidade, mas numa ideia mais profunda

de justiça, com base “na ordem social onde a distribuição do poder e da ri-

queza, serão justas se alcançar os membros menos favorecidos da socieda-

de, bem como, os cargos e posições deverão ser abertos a todos.” Rawls

chamou essa ideia de “princípio da diferença” que vincula expressamente à

ideia de fraternidade.94

Ferrara com base nos ensinamentos de Rawls, considera que desse

modo, o conceito de fraternidade, frequentemente obscurecido na teoria

política moderna, por ser julgado restritivo e “familiar”, torna-se um modelo

perfeitamente aceitável e politicamente praticável.95

Nesse sentido Agnes Bernhard, ressalta que a fraternidade requer a

contribuição ativa de todas as pessoas envolvidas e a assunção de responsa-

bilidades comuns e, se necessário, também de responsabilidades diferencia-

das.96

A doutrina é clássica em afirmar que a sociedade não vive sem o direi-

to, posto que este regula as relações entre todos, disciplinando os direitos e

instituindo os deveres comuns.

Nesse sentido, é fácil imaginar o que seria a sociedade sem o direito:

anarquia, violência e tudo o que dela se extrai.

92

BAGGIO, A. M. O princípio esquecido/2: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Traduções Durval Cordas e Luciano Menezes Reis. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Cidade Nova. 2009. p. 560. 93

TOSI, Giussepe, A fraternidade é uma categoria política? In: BAGGIO, A. M. (Org.). O princípio esqueci-do/2: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. Traduções Durval Cordas e Luciano Mene-zes Reis. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Editora Cidade Nova. 2009. p. 57. 94

FERRARA, Pasquale, A fraternidade na teoria política internacional. In: BAGGIO, A. M. (Org.). O princí-pio esquecido/1: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Traduções Durval Cordas, Iolanda Gaspar e José Maria Almeida. São Paulo: Vargem Grande Paulista, Editora Cidade Nova. v. 1. 2008. p. 175. 95

FERRARA, loc. cit. 96

BERNHARD, Agnes. Elementos do conceito de fraternidade e de direito constitucional. In: CASO, Gio-vanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 63.

Page 39: Revista Raízes Jurídicas

38 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A sociedade passou por inúmeras fases, não distintas e estanques en-

tre si, até alcançar a ideia de Jurisdição como é hoje, ou seja, o poder atribu-

ído ao Estado-Juiz que tem como a função dirimir conflitos de interesses.

Aponta Fernando Bolque, que em tempos pretéritos vigorava a lei do

mais forte, fase conhecida como a vingança privada, autotutela e/ou autode-

fesa. Como não poderia deixar de ser, as ideias eram eminentemente indivi-

dualistas, onde aquele que detinha a força física impunha a sua vontade so-

bre o outro, que simplesmente cedia e subjugava.97

Nessa mesma época conforme o autor, também vigorava outra espécie

de resolução de conflitos que era a autocomposição. Esta se caracterizava

pela forma pacífica de resolução dos conflitos.98

Este intróito revela que a sociedade, desde antiguidade, tinha uma pre-

ocupação essencialmente individualista.

Tanto é verdade que, basta lembrar que no desenvolvimento da socie-

dade temos a realidade dos feudos, onde os senhores proprietários das ter-

ras eram soberanos, inclusive decidindo a sorte de seus camponeses.

Bolque, citando Paulo S. Frontini et al., lembra que mesmo com o ad-

vento da Revolução Francesa com seu lema de liberdade igualdade e frater-

nidade, a sociedade de modo geral, ainda pensavam no individual, posto que

a ideia de respeito absoluto ao indivíduo foi a marca característica da Revo-

lução.99

A ideia tradicional do lema liberdade, igualdade e fraternidade, nos

remete, que os dois primeiros, são princípios de Justiça. Mas, e a relação

entre Direito e Fraternidade é possível?

Antes, porém de iniciar qualquer discussão, vale lembrar que a expres-

são “Direito” será aqui usada como Ciência cujo, objeto é o conjunto das

regras de um ordenamento jurídico estatal. A expressão fraternidade por sua

vez será utilizada como categoria jurídico-constitucional, princípio protetor

(tutela) dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, nos dizeres de Carlos Augusto Alcântara Machado, fra-

ternidade e Direito não são necessariamente excludentes, fato que a frater-

nidade enquanto valor foi recepcionada tanto na Constituição Portuguesa de

1976, como na Brasileira de 1988, há referência expressa à fraternidade ou à

solidariedade.100

É importante salientar que os direitos fundamentais em sentido formal

são aqueles previstos no texto constitucional, mas, também, fala-se em di-

97

BOLQUE, Fernando. Interesses difusos e coletivos: conceitos e legitimidade para agir. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v.1, n.1, p. 86, set.-dez. 2000. 98

BOLQUE, loc. cit. 99

BOLQUE, 2000, p. 90. 100

MACHADO, C. A. A. A fraternidade como categoria jurídico-constitucional. In: Congresso Nacional Direito e Fraternidade. Vargem Grande Paulista. Anais... Vargem Grande Paulista/SP: Direito e Comunhão, 2008. p. 3.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 39

reitos fundamentais em sentido material, embora não previstos no texto

constitucional, mas devido à importância de seu conteúdo, a eles se equipa-

ram.

Segundo Machado, para enfrentar o tema fraternidade como categoria

jurídica, considerado por muitos e particularmente para juristas em geral

como extrajurídico ou meta jurídico, é mister que seja posta uma premissa,

sem a qual a fraternidade não pode ser perseguida: o reconhecimento da

ideia de igualdade contida no primeiro princípio unida ao conceito de igual

oportunidade, entre todos os seres humanos. Para o autor a igualdade por

ele entendida é antes de tudo uma igualdade em dignidade, considerada

numa perspectiva dinâmica e não estática.101

Fausto Goria, diz que o Direito, segundo uma concepção muito difun-

dida, tem como fim a permanência ordenada de um grupo bem como a coe-

xistência pacífica dos sujeitos que o compõem, de modo que os conflitos

sejam reduzidos ao mínimo e rapidamente resolvidos.102

A fraternidade aspira certamente a realizar muito mais, mas não se po-

de dizer que ela vá em direção oposta ao Direito.

Ressalta Bernhard, que o conceito de fraternidade é tão rico de impli-

cações que ele não pode acontecer com os meios muitas vezes limitados do

Direito. Nessa perspectiva, o primeiro passo a ser dado será identificar, os

princípios adequados que instituíam juridicamente, as condições para se

realizar à fraternidade.103

De acordo com Óscar Vasquez, ao tratar das relações jurídicas e frater-

nidade, certamente não se pode prescindir do Direito privado, que, por sua

natureza, é o campo privilegiado das relações, que nascem da experiência

cotidiana e se exprime em regras que buscam fundamentá-las na dimensão

da Justiça.104

Quando se rompe uma relação, acontece no grupo um trauma. As ex-

tremas dificuldades com que, geralmente, a convivência em todos os níveis

se debate, bem como, os desafios que se colocam, frente às próprias regras

da convivência, intui-se, que o instituto fraternidade ajuda os sujeitos no

cumprimento de seus deveres recíprocos e apóia o desenvolvimento normal

das relações.105

101

MACHADO, loc. cit. 102

GORIA, Fausto. Fraternidade e direito: algumas reflexões. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 25. 103

BERNHARD, 2008, p. 63. 104

VASQUEZ, Óscar. Relações jurídicas e fraternidade. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e frater-nidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 110. 105

VASQUEZ, 2008, p. 25.

Page 41: Revista Raízes Jurídicas

40 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Para Vasquez, a ideia de fraternidade como força motriz da relação que

impulsiona um unir-se a outro, a se construir e reconstruir a vida em socie-

dade, não se está, com isso, fechando os olhos à existência de interesses

egoístas na sociedade ou mesmo à maldade humana que provoca os confli-

tos. O “conflito” é, na verdade, um dado sociológico que o Direito tem em

conta.106

Se Caim não tivesse matado Abel, não haveria o Direito.

Escreve Giuseppe Tosi:

Se a fraternidade remete à ideia de um “outro” que não sou eu nem meu grupo social, mas o “diferente” diante do qual tenho deveres e respon-sabilidade, e não somente direitos a opor. A fraternidade é entendida aqui de maneira oposta à famosa resposta de Caim quando interpelado pelo Senhor: “'Onde está teu irmão Abel? ' E ele respondeu: 'Não sei. Acaso sou eu responsável por meu irmão?''' (Gn 4,8-9). Caim era irmão no sentido carnal, mas não foi fraterno, porque não se sentia responsá-vel pelo outro. Por isso Jesus Cristo disse que seus irmãos eram o que o seguiam (cf. Mt 12,46-50), desvinculando o sentido de fraternidade dos laços de sangue para laços mais amplos e tendencialmente universais.107

O direito não é por si mesmo, aquele que resolve o conflito, é um ins-

trumento, embora não o único, que serve à prevenção, um meio para cami-

nhar em direção à solução dos litígios ou lides. O Direito exprime, portanto,

as forças construtivas do homem e não as destrutivas.108

Goria afirma que o Direito tem como fim a permanência ordenada de

um grupo e, como premissa, a coexistência pacífica dos sujeitos que o com-

põem, de modo que os conflitos sejam reduzidos ao mínimo e rapidamente

resolvidos.109

Para o autor o Direito não se limita a relação particular, mas esta é co-

lada no cenário do grupo no seu conjunto e no seu ordenamento: assim co-

mo numa família as relações não se realizam só entre um irmão e outro, mas

atinge toda à família.110

O Direito privado tem um apelo, para a responsabilidade com a comu-

nidade e, ao mesmo tempo, para com os indivíduos, valoriza as realidades

associativas e econômicas que buscam um desenvolvimento econômico e

social e os Direitos Humanos.

Ressalta Goria, que quando a autoridade pública intervém em relações

privadas com leis vinculadas, faz isso tendo em vista da dimensão comunitá-

106

Ibid., p. 110. 107

TOSI, 2009, p. 59. 108

VASQUEZ, 2008, p. 110. 109

GORIA, 2008, p. 25. 110

GORIA, loc. cit.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 41

ria e a tutela dos valores coletivos, mediante sanções indisponíveis para o

sujeito, cuja aplicação, este não pode renunciar.111

No entanto, se os valores da relação requererem uma tutela maior, a

sanção deixa o âmbito do Direito privado para se situar em outros ramos,

como por exemplo, o Direito penal, tendo em conta a dimensão comunitária

o dever de respeitar, o devido processo legal, o princípio do contraditório e

os direitos fundamentais da pessoa humana.

Substancialmente, portanto o Direito parte de um de fato: a vida con-

creta cotidiana das pessoas, de um grupo e a sua propensão em direção a

uma relação de fraternidade. Para manter essas relações o Estado pode favo-

recê-las por meio de leis, que propõe normas supletivas, sanções dentre

outras.112

Outro exemplo é no ramo do Direito empresarial, a lei do Estado pode

contribuir de forma positiva ou negativa com respeito à possibilidade de de-

cisão com relação aos empresários aos quais concede ou nega incentivos. Ao

passo que se os concede na perspectiva da fraternidade, o Direito empresa-

rial pode se colocar a serviço, numa relação recíproca com a economia, cuja

finalidade passa a ser vencer a pobreza e a injustiça.

Segundo Vasquez, no âmbito do Direito de família vê se claramente

que a lei do Estado pode favorecer, ou desfavorecer, determinados tipos de

convivência. O Estado pode tutelar de modo permanente a família, não só do

ponto de vista do Direito Privado, mas também do Direito Público, reconhe-

cendo, desse modo, que não há sociedade sem a preexistência do núcleo

familiar, pedra angular sobre a qual se apóia.113

Para o mesmo autor, o conceito de fraternidade tem na família uma va-

lidade intuitiva e etimológica, e a sua matriz sociológica é evidente.114

A família é o “lugar” onde nasce à fraternidade, com os consequentes

valores de solidariedade, afeto e cooperação, gerando unidade entre seus

membros.

Na família, é mais natural a partilha dos bens, a acolhida, a correção

fraterna, o cuidado com o outro, com a casa comum, a transmissão de co-

nhecimentos e valores a sadia circulação de notícias.

Tais comportamentos verificam-se, depois, na vida do cidadão, à me-

dida que foram vividos, de algum modo, na família.

Todavia, o Direito, pela sua parte, pode cooperar de maneira significa-

tiva no sentido de inserir a família no seu desígnio natural, atraindo sua na-

tural propensão à unidade, quer na esfera legislativa, quer no campo da apli-

cação da lei.

111

Ibid., p. 30. 112

VASQUEZ, 2008, p. 111. 113

VASQUEZ, loc. cit. 114

VASQUEZ, loc. cit.

Page 43: Revista Raízes Jurídicas

42 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

À fraternidade é evidente na dimensão dos direitos humanos, e nesse

sentido, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, recepcionada pela As-

sembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, considerada o

instrumento internacional mais completo no que concerne à defesa das cri-

anças, referindo-se tanto a direitos econômicos, como sociais, culturais,

civis e políticos e, em especial a vulnerabilidade destas.115

A Convenção dos Direitos da Criança veio suceder a Declaração de Ge-

nebra dos Direitos da Criança de 1924 e a Declaração dos Direitos das Cri-

anças da Assembléia Geral das Nações Unidas de 1995.

Tendo sido adotada em uma votação pela Assembléia Geral das Nações

Unidas em 20 de Novembro de 1989 e entrado em vigor em 2 de setembro

de 1990, sendo que apenas dois países ainda não a ratificaram, a saber, os

Estados Unidos que tem a intenção de assiná-la formalmente e a Somália

que não tem um Estado reconhecido.

A Convenção mencionada foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro

de 1990, ocasião, já estava em vigor a Constituição Federal de 1988, que

consagra à criança e ao adolescente um dos mais expressivos textos de di-

reitos fundamentais da pessoa humana, cujo, conteúdo foi explicitado pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei 8.069 de 13 de ju-

lho de 1990, que assume função de elevada dignidade de ser espaço desti-

nado à garantia dos direitos da população infanto-juvenil.116

José A. da Silva, enfatiza que o art., 227 da Constituição Federal de

1988 é, por si só, uma carta de direitos fundamentais da criança e do ado-

lescente, assim, o transcrevemos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à crian-ça ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cul-tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e co-munitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.117

Aponta Munir Cury em sua contribuição para o Estatuto da Criança e

Adolescentes, a cerca idéia de família e adoção:

Interessa-nos no momento o tema família e adoção. A convivência com a pobreza e a injustiça que antes provocava e justificava a perda do po-

115

BÁRBARA, C. C. D. de. A proteção internacional dos direitos das crianças envolvidas em conflito armados. 98f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007. p.12. 116

SILVA, J. A. Direitos humanos da criança. Igualdade, Curitiba, v. 10, n. 37, p. 09 out.-dez. 2002. 117

SILVA, 2002, p. 9.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 43

der familiar, ofereceu-nos a oportunidade de inserir expressamente na lei a determinação de que “a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder”, Não existindo outro motivo além da pobreza a criança será mantida na sua família de origem, a qual será incluída em programas oficiais de au-xílio.118

Para o autor a necessidade de tal previsão legal que foi posteriormente

confirmada pela jurisprudência pelos Tribunais, ao consagrarem reiterada-

mente.119

A regra visa a proteger os pais pobres, porém diligentes no cuidado dos filhos. Tem por fito amparar aqueles que lutam com dificuldades, muitas vezes extremas, mas que não desistem dos filhos. Tutela o interesse dos pobres em preservar a prole, quando esse interesse é manifestado pelo inconformismo de quem,não se acomoda não se o omite nas tentativas de propiciar uma vida digna aos filhos. De quem aceita as orientações e oportunidades que necessariamente devem ser ofertadas pelos órgãos de assistência social.120 (Tribunal de Justiça de São Paulo, apelação nn.22984-0/0 e 260910/4)

É inegável que o Brasil, pela via das crianças e adolescente deu um

passo interveniente obrigatório e fundamental, no que tange a Justiça da

Infância e Juventude, objetivando a implementação das regras da Constitui-

ção Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Goria em seu artigo “Fraternidade e Direito: algumas reflexões” faz a

seguinte pergunta: o que tem a ver a fraternidade com o Direito? Existem

correlações ou trata-se de relações antagônicas? Para o autor o antagonismo

parece ser o mais difundido.121

No entendimento do autor à fraternidade tem natureza espontânea,

enquanto é típico do Direito, a co-atividade.122

Para Goria, a relação entre Direito e fraternidade se dá no sentido que

o Direito será, tanto mais necessário, quanto menos à fraternidade age, e vai

além, no seu pensamento, afirmando, que em uma sociedade impregnada de

fraternidade poderia dispensar o Direito.123

118

CURY, Munir. O instituto da adoção e a realidade social brasileira. In: CASO, Giovanni et al. (Orgs.). Direito e fraternidade: ensaios, prática forense. São Paulo: LTr; Cidade Nova, 2008. p. 105 119

CURY, loc. cit. 120

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nn.22984-0/0 e 260910/4. 121

GORIA, 2008, p. 25. 122

GORIA, loc. cit. 123

GORIA. loc. cit.

Page 45: Revista Raízes Jurídicas

44 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Na idade Moderna, o valor da fraternidade foi proclamado, pela Revo-

lução Francesa, em simbiose com os princípios da liberdade e da igualdade.

Estes dois últimos transformaram-se em importantes valores jurídicos.

Na Constituição Federal do Brasil de 1988, ao que parece à fraternida-

de restou o status de princípio pragmático, estabelecendo como objetivo

fundamental da República a construção de uma sociedade solidária (art.3o, I

CF).124

Tosi defende que ao enfatizar a liberdade e a igualdade em detrimento

da fraternidade, a Modernidade acentuou aspectos individualistas e egoístas

até mesmo nos Direitos Humanos, esquecendo o caráter social, fraterno e

solidário desses mesmos Direitos, que não são simplesmente do indivíduo e

dos grupos, mas também, do “outro”, do pobre, do menos favorecido.125

Nos dizeres do autor se a liberdade remete ao indivíduo na sua singu-

laridade, e a igualdade abre-se para uma dimensão social, ao passo que à

fraternidade, remete à idéia de um “outro” que não sou eu nem meu grupo

social, mas o “diferente” diante do qual se tem deveres e responsabilidades,

e não somente direitos a opor.126

Boaventura de Souza Santos enfatiza que no Brasil, nos últimos vinte

anos foram promulgadas legislações que de modo ou outro, foram ao en-

contro dos interesses sociais das classes trabalhadoras e também dos inte-

resses emergentes nos domínios da segurança social e da qualidade de vi-

da.127

Para o autor, muitas dessas legislações têm permanecido como letra

morta, “quanto mais caracterizante uma lei que protege os interesses popu-

lares e emergentes, maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada.” 128

Assim, a busca democrática pelo direito deve ser no Brasil, a busca pe-

lo direito vigente, tanto quanto pela mudança do entendimento do direito no

que for possível, mediante interpretações inovadoras da lei, obter proteções

voltadas ao desenvolvimento das classes sociais menos favorecidas.

Santos, chamou de “uso do alternativo do Direito”, um estudo que teve

origem na Itália, cujo, objetivo era dar proteção integral aos pobres, tendo

como retaguarda o “aumento dos poderes do juiz.” No Brasil o estudo foi

aplicado na cidade de Recife-PE, em litígios relacionados a conflitos urbanos,

sobretudo no direito de propriedade da terra, na periferia onde vive a meta-

de da população da cidade.129

124

CONSTITUIÇÃO, 1988, art.3o, I.

125 TOSI, 2009, p. 58.

126 TOSI, loc. cit.

127 SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortes,

2005. p. 178. 128

SANTOS, loc. cit. 129

SANTOS, loc. cit.

Page 46: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 45

O resultado revelou que os moradores da periferia têm conseguido al-

gumas vitórias nos tribunais, ainda que os argumentos alegados sejam rela-

tivamente frágeis em termos jurídicos.130

Para o autor essas vitórias nos tribunais, configuram o autêntico uso

alternativo do Direito, que tem como premissa: combinar uma argumentação

tecnicamente sofisticada feita por advogados, que trabalham para as classes

populares, sob a perspectiva de dar uma interpretação inovadora do direito

positivado.131

No caso especifico da cidade de Recife essa iniciativa teve como pano

de fundo a comissão de Justiça e Paz da diocese de Olinda e Recife por inici-

ativa do bispo D. Helder Câmara.

Corrobora Mário Luiz Ramidoff, o tratamento fragmentário dos dramas

humanos, que justifica o modelo de atuação profissional sob a perspectiva

de ser neutra e isenta, a fim de se evitar “transferências” supostamente ca-

pazes de afetar a racionalidade técnica do advogado, não aumentou e sequer

melhorou a eficácia resolutiva das práticas pautadas numa impessoalidade

racional.132

Nessa perspectiva, sugere a autor que o primeiro passo a ser dado é

procurar princípios adequados que consintam criar, juridicamente, as condi-

ções para se realizar à fraternidade.133

É preciso, fazer valer o princípio da fraternidade, estampado como

compromisso ideológico e doutrinário que serve de pilar ao Estado Demo-

crático de Direito, fulcrado a partir do preâmbulo da nossa Lei Maior, que

dispõe:

Para instituir um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundamentada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.134

Lembra Samia Saad Gallotti Bonavides, que nosso procedimento civil,

tem seu modelo, sua terminologia, e seus métodos de raciocínio nos direitos

romano e germânico. Para a autora, mesmo sendo fiel a sua origem, ora dela

130

SANTOS, loc. cit. 131

SANTOS, loc. cit. 132

RAMIDOFF. M. L. Trajetórias jurídicas desafios e expectativas. Florianópolis: Habitus, 2002. p. 26. 133

RAMIDOFF, loc. cit. 134

RAMIDOFF, loc. cit.

Page 47: Revista Raízes Jurídicas

46 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

se difere de forma sutil, sendo influenciado por um ramo francês, sobretudo,

por movimentos como a Revolução Francesa de 1789, razão que leva alguns

doutrinadores a filiar a nossa tradição ao que denominam de sistema franco-

germânico.135

Ressalta ainda, autora que foi pela influência da Revolução Francesa,

plena de ideias novas, e em si um esperançoso alento para a humanidade,

marcando o século XIX, como os das codificações.136

Grande inspiradora da lei codificada foi a Escola de Direito Natural, no

século XVIII, ao teorizar que, fazer leis é atributo do legislador (monarca ou

parlamento) autorizado a reformar o direito de modo a abstrair os erros do

passado, partindo daí a nova fórmula dos códigos, adotados até hoje.

No ensinamento do clássico francês Charles de Montesquieu que sus-

tentou a doutrina da divisão de poderes, assinalando que “estaria perdido se

um mesmo corpo de príncipes ou nobres exercesse esses três poderes: o de

fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou

demandas dos particulares.” 137

Nessa linha de entendimento, a Declaração dos Direitos do Homem e

do cidadão de 26 de agosto de 1789, obra da Revolução Francesa e que re-

sume a sua ideologia político-jurídica, proclamou no seu art. 16 que “toda

sociedade que não assegure a garantia dos direitos nem estabeleça a sepa-

ração dos poderes, não tem constituição.” 138

No entanto Bolque enfatiza que toda a legislação processual civil brasi-

leira, traz implícita, uma ideia individualista e egoísta.139

Para do autor, Institutos como o das partes, da legitimação para agir,

do interesse processual, da sentença, da coisa julgada que faz lei entre as

partes, demonstra a índole egoísta da legislação.140

Não há restrição de que existam regras a respeito das relações interin-

dividuais, mas a preocupação do Código de Processo Civil Brasileiro é tão

somente a individualidade.

Esta marca de individualidade do processo deve-se segundo a lição de

José Marcelo Menezes Vigliar, ao fato de que foi concebida e influenciada por

codificadores, que vivenciavam ainda a segunda fase metodológica da Ciên-

cia Processual, preocupados e devotados com a busca da identificação do

Direito Processual como Ciência em relação ao direito material.141

A modernidade do século XXI parece ter acentuando os aspectos indi-

vidualistas e egoístas da legislação em vigor, esquecendo o caráter social,

135

BONAVIDES, S. S. G. Direito e civilização: a contribuição do processo civil (o triunfo da verdade busca do bem comum sobre a retórica). Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 1, n.1, set.-dez. 2000. p. 118. 136

BONAVIDES, loc. cit. 137

MONTESQUIE, Charles de. O espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 163. 138

DECLARAÇÃO, 217 A. 139

BOLQUE, 2000, p. 90. 140

BOLQUE, loc. cit. 141

VIGLIAR, J. M. M. Ação civil pública. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 17.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 47

fraterno e solidário desses mesmos direitos, que não são simplesmente do

indivíduo e dos grupos, mas também do “outro”, do mais pobre.

Para Bonavides, o processo civil vem sofrendo profundas mudanças,

estimulado pelo pensamento daqueles que preconizaram a ideia da efetivi-

dade do processo, ou seja, de um instrumento com destinações definidas,

cujos objetivos precisam ser alcançados para que se cumpra seu fim de utili-

dade e para que seja socialmente legítimo.142

Chiovenda apud Bonavides, já havia afirmado, com propriedade e de

forma precisa, que “na medida do que for praticamente possível o processo

deve proporcionar a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo

que ele tem o direito de obter.” 143

Nas palavras da autora o processo deve outorgar a quem tem razão,

toda a tutela jurisdicional a que tem direito. Nesse sentido Cássio M. Hono-

rato, frisa que o melhor entendimento desse pensamento pode ser compre-

endido por meio de uma conhecida passagem, muitas vezes repetida em sala

de aula: Em meio ao tumulto, o repórter aproximou-se do chefe indígena e per-guntou o que o índio queria. Em resposta, certeira como a flecha, o bra-vo guerreio afirmou: “Índio quer Justiça.” Não perdeu tempo o repórter e emendou uma segunda pergunta: “o que é Justiça?” E o sábio chefe res-pondeu:” Dar o que é meu!”144

Nos dizeres de Paulo Dourado Gusmão a resposta do sábio cacique vai

ao encontro da definição romana de Justiça: “Justitia est constans et perpetua

voluntas jus suum cuique tribuendi (justiça é a constante e perpétua vontade

de dar a cada um o que é seu).145

Antônio de Pádua Ribeiro é enfático em dizer que é preciso ter-se em

conta que num Estado Democrático de Direito, o governo é das leis e não

dos homens.146

Corrobora José Afonso da Silva: “O democrático qualifica o Estado, o

que irradia os valores da democracia sobre a ordem jurídica. O direito, então,

imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajus-

tar-se ao interesse coletivo.” 147

Na clássica afirmação kelseniana que: o Direito reflete a norma, ou se-

ja, se uma regra de conduta estiver prevista em norma jurídica, isto é Direito.

142

BONAVIDES, 2000, p. 115. 143

BONAVIDES, loc. cit. 144

HONORATO, C. M. Virtudes do direito: elementos a legitimar o Estado Democrático de Direito. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 4, n. 3, p. 109, jan.-jul. 2007. 145

GUSMÃO, P. D. de. Introdução ao estado do direito. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 72. 146

RIBEIRO, A. P. O judiciário como poder político no século XXI. Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 12, set.-dez. 2000. 147

SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 119.

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48 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

E viver em um Estado de Direito seria viver sob o Império da Lei, fosse ela

imoral ou contrária à ética deveria ser cumprida pois a lei é a lei.

Neste patamar aduz Ramidoff, que o paradigma reducionista e cientifi-

cista, impõe a apropriação do conflito pelo Estado, sob a promessa de segu-

rança jurídica, que as lides terão adequado tratamento e receberão respostas

satisfatórias, levando em conta, que o sistema atuará através de um opera-

dor que conhece a lei (é técnico), que não se deixa envolver emocionalmente

(é neutro), que não vai pender nem para um nem para outro lado (é imparci-

al), e que terá como instrumental (absolutamente seguro) a lei e a dogmática

jurídica.148

Para Bonavides, o grande objetivo da legislação em vigor (Código de

Processo Civil), é atingir a sociedade como um todo, nos seus valores básicos

e fundamentais e propiciar a realização dos direitos que abranjam um núme-

ro cada vez maior.149

Nas bem ponderadas e lúcidas lições de Antônio de Pádua Ribeiro.

Nesta época de globalização e liberalismo econômico, acerbas críticas são dirigidas aos entes públicos, ao fundamento de que não funcionam a contento a serviço da coletividade e de que se tem esquecido da sua finalidade precípua, qual seja, a de realizar o bem comum e, em decor-rência, ajudar a população a alcançar a sua grande aspiração, que é de toda a Humanidade: efetivar o sonho de ser feliz.150

Esclarece ainda Marco Mondaini ao afirmar que:

No decorrer da segunda metade dos anos 1980, o Brasil tenha realizado a sua transição para uma autêntica “Era dos Direitos.” Isso não apenas porque começamos a deixar para trás todo um passado marcado pela existência de inúmeros regimes de caráter ditatorial no plano político, mas também devido ao fato de que os direitos que começavam a ser conquistados passaram a ser reconhecidos de uma maneira universal, tanto nos campos civil, político e social quanto nos níveis individual e coletivo.151

Nesse sentido Ribeiro é enfático ao afirmar que em termos de garantias

jurisdicionais dos cidadãos, relativamente à administração da justiça, a

Constituição Federal de 1988, adota como postulado constitucional funda-

mental:

o “devido processo legal”, expressão da inglesa “due process of law” ao dizer, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art.5o, LIV). Adota, ainda o princípio da inafastabilidade

148

RAMIDOFF, 2002, p. 27-28. 149

BONAVIDES, 2000, p. 117. 150

RIBEIRO, 2000, p. 14 151

MONDAINI, Marco. Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. p. 97.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 49

do controle jurisdicional, ao estatuir que a “a lei não excluirá da aprecia-ção do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.5o, XXXV). Consa-gra o princípio da isonomia: “Todos são iguais perante a lei, sem distin-ção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-ros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade”, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,nos termos desta Constituição” (art.5o, caput e inciso I). Estabelece ainda, o princípio do juiz ou promotor natural, ao dizer que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art.5o, XXXVII e LIII). Estatui o princípio do contraditório: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são asse-gurados o contraditório e ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes” (art.5o, LV). Prevê o princípio da proibição da prova ilícita: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art.5o, LVI); o princípio da publicidade dos atos processuais: “todos os julga-mentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos” (art.93, IX), acrescentando que “só a lei poderá restringir a publicidade dos atos pro-cessuais quando a defesa da intimidade ou interesse social o exigirem” (5o,LX); e o princípio da motivação das decisões judiciais sob pena de nulidade (art. 93, IX).152

Nesse sentido resgata Miguel Reale, que o princípio da equidade em-

pregado como elemento de integração do direito, preenchendo as lacunas da

lei “a fim de que possa dar sempre resposta jurídica, favorável ou contrária, a

quem se encontre ao desamparo da lei expressa.” 153

Por sua vez Honorato, a luz dos ensinamentos de Vicente Ráo, desen-

volve o seguinte conceito de equidade:

Designa-se por equidade uma particular aplicação do princípio da igual-dade às funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos, sem exclusão, sejam tratados igualmente e com humanidade, ou benignidade, corrigindo, para este fim, a rigidez das fórmulas gerais usadas pelas normas jurídicas, ou seus erros, ou omissões.154

A equidade, sendo por sua vez, uma virtude anexa à Justiça, também

se concretiza por meio dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e

também contém aspectos do princípio da fraternidade.

Mais uma vez o autor apoiado nas lições de Ráo, acrescenta que a es-

ses princípios, supracitados, a necessidade “do Direito ser aplicado de modo

humano e benigno”, trazendo consigo não só não a noção de dignidade da

pessoa humana, mas sobretudo a ideia de fraternidade.155

152

RIBEIRO, 2000, p.14. 153

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 292. 154

HONORATO, 2007, p.118. 155

HONORATO, 2007, p. 113.

Page 51: Revista Raízes Jurídicas

50 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

No ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade, de emprego do

princípio da equidade encontrava prevista de forma muito limitada no artigo

127 do Código de Processo Civil: “O juiz só decidirá nos casos previstos em

lei”, na hipótese, por exemplo, de procedimento de jurisdição voluntária

(art.1109 do Código de Processo Civil).156

Este quadro sofreu alteração substancial com a promulgação da Cons-

tituição Federal de 1988, que recepcionou explicitamente como fundamento

princípiológico de nosso Estado Democrático de Direito a dignidade da pes-

soa humana, vertido nos seguintes termos:

Art. 1o - A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolú-vel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Esta-do Democrático de Direito e tem com fundamento: III- a dignidade da pessoa humana.157

Nesse sentido Ingo W. Sarlet, que desenvolve com maestria estudos

sobre a dignidade da pessoa humana e, com propriedade ensina:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distin-tiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e con-sideração por parte do Estado e da comunidade implicando, neste senti-do, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra o todo e qualquer ato de cunho degradante e desu-mano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.158

Nesse sentido é pertinente o pensamento de Ribeiro, a Lei e a Justiça

“compõem as duas faces deste universo sobre o qual gravitam todos os fe-

nômenos jurídicos.” 159

E o autor é enfático em dizer que existe uma “crise da Lei” e uma “crise

da Justiça” e, que essas, decorrem da “distorção entre a lei e os anseios soci-

ais” e da “ineficiência da realização da justiça.” 160

Por outro lado os conflitos multiplicam-se na sociedade e, a cada ins-

tante, os cidadãos estão a clamar por justiça, estes precisam de decisões

para serem solucionadas, mas, em outra medida, a justiça da decisão depen-

de da justiça legal. No entanto, o magistrado tem como atividade essencial a

submissão dos fatos às normas.

156

BRASIL. Código de processo civil. Disponível em: <http:/www.planalto.gov.brccivil/Decreto- Lei/De14657.htm> Acesso em: 20 jul. 2010. 157

CONSTITUIÇÃO, 1988, art. 1. 158

SARLET, 2002, p. 62. 159

RIBEIRO, 2000, p. 15. 160

RIBEIRO, 2000, p. 15.

Page 52: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 51

É nesse sentido que Ribeiro diz que a “uma sentença em que se cons-

trói o 'jurídico' antes do 'justo' se equipara uma casa onde se erige o teto

antes do solo”, e valendo-se dos conhecimentos de Plauto Faraco de Azeve-

do, preconiza a era de um poder judicial criativo:161

Que preconiza atenda às exigências de justiça perceptíveis na sociedade e compatíveis com a dignidade humana, um poder para cujo exercício o juiz se abra ao mundo ao invés de fechar-se nos códigos, interessando-se pelo que se passa ao seu redor, conhecendo o rosto da rua, a alma do povo, a fome que leva o homem a viver no limiar da sobrevivência.162

Mas não basta apenas repensar o judiciário, o deslinde dos conflitos

ocorre mediante atuação dos Poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e

o Judiciário. Portanto, a justiça em termos estatais, não é praticada só pelo

Judiciário, mas também pelos outros Poderes. Ao judiciário cabe solucionar

apenas certos conflitos denominados litígios e/ou lides.

Pelo exposto é possível concluir que o direito processual vem evoluin-

do a guisa de diferentes fatores, mas, no limiar do Terceiro Milênio, há o

aspecto prevalente que se convencionou chamar “acesso a justiça”, que nas

palavras de Ribeiro mais é do que a “abertura da ordem processual aos me-

nos favorecidos da fortuna e à defesa de direitos e interesses supra-

individuais, com a racionalização do processo.” 163

Que nos dizeres Cândido Rangel Dinamarco o que se almeja é a efeti-

vidade do processo, sendo indispensável, para isso, pensar no processo co-

mo algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve os

seus objetivos sob pena de ser menos útil torna-se socialmente ilegítimo.164

Watanabe apud Dinamarco diz que acesso a justiça é o acesso à ordem

jurídica justa, e enfatiza que “não tem acesso a justiça aquele que sequer

consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas maze-

las do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer

ordem.165

Como visto, hoje não se pede ao Estado apenas proteção, mas muito mais

que isso. Entretanto essa obrigação, não pode ser realizada através de pura e

simples manifestação do voluntarismo político, que enseja ainda, aquela deficiên-

cia a contínua edição de leis, muitas delas aprovadas e mal redigidas causadoras

de insegurança jurídica - quiçá um dia uma verdadeira nação – puder reunir os

princípios da liberdade igualdade e fraternidade, de modo a concretizar o funda-

mento principiológico da dignidade da pessoa humana.

161

RIBEIRO, loc. cit. 162

RIBEIRO, loc. cit. 163

Ibid., p. 16. 164

DINAMARCO. C. R. A reforma do código de processo civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 21. 165

DINAMARCO,1998, p. 22.

Page 53: Revista Raízes Jurídicas

52 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A natureza das normas que disciplinam os Direitos Humanos e as ga-

rantias fundamentais é de direito constitucional na medida em que estas se

inserem no texto de uma constituição, tendo, portanto, uma aplicabilidade

imediata.

Entende-se por Direito Humanos aqueles que são inerentes aos indiví-

duos pela simples razão de pertencerem à raça humana, independente de

vinculação a um determinado Estado, entendimento esse que contribuiu para

a criação de uma ordem internacional capaz de agrupar os interesses dos

Estados em busca de um ideal comum.

A Constituição Federal de 1988, expressamente reproduziu uma série

de direitos humanos no seu texto constitucional, prevendo na Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, data em que

também é ratificada pelo Brasil. Dotando-os de plena eficácia no ordena-

mento jurídico brasileiro.

O art. 5o da Constituição Federal do Brasil, descreve os direitos e as ga-

rantias individuais, com presteza das Constituições mais modernas do mun-

do. Mas não é só: ramos do direito como, meio ambiente, direito do consu-

midor, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, a lei tributária e

fiscal, bem como a função social, presente em diferentes capítulos do texto

constitucional.

O Princípio da Fraternidade é recepcionado na Declaração Universal dos

Direitos Humanos nos seguintes termos: assegurando a liberdade, a igualda-

de, e a dignidade da pessoa humana, bem como o dever de cada ser humano

agir com o espírito de fraternidade.

Faz-se mister aos operadores do direito sejam eles, juízes de direito,

promotores de justiça, defensores públicos, advogados, estudiosos do Direito, e

aos detentores do poder, que não se restrinjam apenas em entender os signifi-

cados das termos expressos nas leis, mas, que se nutram do princípio da frater-

nidade, para que possam selecionar dentre às opções de aplicação da lei, a que

melhor atenda a demanda do ser humano, considerando, seus dramas e sua

esperança na justiça. De nada resolve conferirem direitos aos cidadãos, se não

lhes são dados meios eficazes para a concretização desses direitos.

Neste início de século, quando a Constituição e o próprio Estado, ado-

tam posturas que vem sendo denominado de “constitucionalismo fraternal”

que nada mais é se não o resultado de um sentimento de renovação, não se

pode olvidar que no regime democrático, a atuação precípua do Estado me-

diante seus órgãos, há de visar sempre à afirmação, que ao redor do homem

é que deve circular a sociedade e o Estado.

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Anna Christina Gonçalves de Poli Advogada. Mestre em Direito pela PUCPR. Professora de Direito Empresarial da FESPPR.

Tais Martins Advogada. Mestre em Direito pela Unicuritiba/PR. Professora da FESP/PR; FAESP/PR Autora do livro Anjo Negro - poemas que escondem histórias pela Editora Baraúna. Co-autora dos livros: Jurisdição - Crise, Efetividade e Plenitude Institucional; e Tutela dos Direitos da Per-

sonalidade na Atividade Empresarial Vol I - ambos pela editora Juruá. Fundadora e ex-coordenadora da Revista Acadêmica da Faculdade de Ciência Jurídicas da Faculdade Dom Bosco - EOS - 1980-7430. Membro dos stafs jurídicos: IBRADH, AJIAL de Curitiba e IDCC de

Londrina. Parecerista da Revista Opinião Jurídica - ISSN n. 1806-0420 de Fortaleza/CE.

A pesquisa justifica-se plenamente pela atualidade e relevância do te-

ma escolhido. Com efeito, a educação ambiental, a cidadania e a responsabi-

lidade pelos danos causados têm apresentado novos contornos nas discus-

sões acadêmicas propiciando a precaução ambiental. A intrínseca relação

entre direito, sociedade e mercado propicia um debate permanente acerca do

meio ambiente. As escolhas econômicas devem ser redirecionadas para a

proteção aos bens ambientais e esse novo vértice tende para a confluência

de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

Palavras-chave: Meio ambiente; sustentabilidade; educação.

Page 59: Revista Raízes Jurídicas

58 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A pesquisa justifica-se plenamente pela atualidade e relevância do te-

ma escolhido. A proteção do meio ambiente promove a genuína inclusão

social. Com esta forma de amparo se dá um passo seguro em relação ao

desenvolvimento sustentável, porque não se deve deixar de considerar o

homem sem sua relação de dependência com o meio ambiente.

O intuito desse trabalho é trazer um novo olhar no que diz respeito a

interação direito e política – dimensionando suas imbricações com o meio

ambiente. Portanto, os principais conceitos operacionais a serem trabalhados

são: desenvolvimento sustentável, dignidade humana, cidadania, sociedade

de risco, inclusão social, direitos fundamentais, educação ambiental e a res-

ponsabilidade social diante da globalização.

O debate permanente sobre o meio ambiente nos traz um panorama

conflitivo entre a ecologia, a ética e a economia. As estruturas do discurso

econômico ao longo dos séculos têm sufocado uma ótica sustentável. Um

futuro longínquo de incertezas permeou a manutenção da vida, surge então

uma racionalidade cultural preocupada com as alterações ambientais e com a

fundamentalidade da ligação do homem com a sua humanidade através da

natureza.

Para Amartya Sen a relação com o meio ambiente deve capitanear juí-

zos econômicos calcados no bem-estar: A posição da economia do bem-estar na teoria econômica moderna tem sido muito precária. Na economia política clássica não existiam frontei-ras definidas entre análise econômica do bem-estar e outros tipos de investigação econômica. Porém à medida que aumentou a desconfiança acerca do uso da ética em economia, a economia do bem-estar foi se afigurando cada vez mais dúbia. Confinaram-na em um compartimento arbitrariamente exíguo, separada do restante da economia. O contato com o mundo exterior tem ocorrido principalmente na forma de um re-lacionamento de mão única, no qual se permite que as conclusões da economia preditiva influenciem a análise da economia do bem-estar, mas não se permite que as idéias da economia do bem-estar influenci-em a economia preditiva, pois se considera que a ação humana real tem por base unicamente o auto interesse, sem impacto algum de considera-ções éticas ou de juízos proveniente da economia do bem-estar1.

A relação mercado, Estado e sociedade não pode se divorciar do signi-

ficado social e político do meio ambiente. A questão ecológica é multidisci-

plinar e a problematização em torno da proteção dos bens ambientais é de-

corrente de uma ação humana que não se restringe a proliferação legislativa.

1 SEN. Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 45.

Page 60: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 59

A sociedade vislumbra através do Estado o conteúdo efetivo da garantia jurí-

dica.

As escolhas econômicas não podem superar a renovação ética. O equi-

líbrio ambiental não está restrito a profusão legislativa, essa não pode se

divorciar da prevenção dos danos ambientais e da ponderação entre o de-

senvolvimento e a degradação.

O significado social da norma ganha um escopo renovado apelando

para uma visão integrada de preservação que conjuga os setores estatais e

privados garantindo um desenvolvimento sustentável real. Os comportamen-

tos humanos ganham um contorno diferenciado na assunção de suas res-

ponsabilidades estruturais que afastam a escassez dos bens ambientais e

garantem a sua conservação.

A instrumentalização do direito é uma conseqüência de ações públicas

e privadas, o apelo a norma legal por sua força coercitiva não basta, neces-

sário um significado social, político e econômico que reconstrua esse novo

tecido dogmático que não encerra seu entrecorte nas questões entre a pro-

teção pública e privada. A idéia básica que norteia o pensamento ambienta-

lista original incide na alteração de paradigmas que propiciam um desloca-

mento da racionalidade econômica para a racionalidade ecológica.

A alimentação e a energia traçam o paradoxo com as novas tecnologi-

as, os riscos ambientais globais carecem de um planejamento adequado e

com soluções racionais. O uso do meio ambiente pela empresa transita entre

a utilização e a exploração e o revés de tecnologia e meio ambiente e do

homem e meio ambiente abarca novas variáveis culturais, sociais e instituci-

onais.

O desgaste da natureza e o avanço da industrialização não ameaçam

somente a fauna e a flora. O paradoxo no bem-estar advindo da natureza,

agora, recai sobre um comprometimento do futuro comum do próprio ho-

mem e, conseqüentemente, da natureza. O conjunto de saberes dinamiza o

estudo e a proteção ambiental a cada dia. A proteção do ecossistema torna-

se uma proteção à vida e à dignidade humana.

Uma alfabetização social é a mola propulsora de um pequeno elenco

de soluções para uma imensa gama de problemas. O desgaste ambiental é

maior quando o nível cultural é inferior, já ensina Amartya Sen2. A realidade

social não propicia uma interpretação ambiental; essa leitura é da competên-

cia do Estado e da empresa que garantem a difusão de seus resultados pro-

piciando um bem-estar coletivo com alcance nos verdadeiros fins constituci-

onais e sociais.

2 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. p. 17.

Page 61: Revista Raízes Jurídicas

60 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Cíntia Maria Afonso traz dados sobre o analfabetismo atualizados até

2002:

As condições relativas à educação costumam ser analisadas através da conjugação de três indicadores que mostram o número de pessoas alfa-betizadas, o número de crianças e adolescentes que freqüenta as esco-las e o número médio de anos de estudos dos adultos. No Brasil 96,9% das pessoas com idade entre 7 e 14 anos freqüentam a escola, mas esse percentual diminui para 81,5% na faixa entre 15 e 17 anos e mais ainda entre 18 e 19 anos, faixa na qual apenas 51,1% das pessoas freqüentam a escola, Mesmo assim, a média de anos de estudo de cidadão brasileiro é de 6,1 anos, o que significa que a maior parte das pessoas com mais de 25 anos sequer concluiu o ensino fundamental (o ideal seria de 11 anos de estudo, ou seja, os níveis fundamental e médio de ensino com-pletos). O analfabetismo ainda não está erradicado no Brasil. Em 2002, 88,2% das pessoas com mais de 15 anos era alfabetizada, portanto ain-da 11,8% de brasileiros analfabetos. Esta situação é pior na região Nor-deste, onde apenas 76,6% das pessoas com mais de 15 anos são alfabe-tizadas3.

A pesquisa acima menciona datada de 2002 pode ser analisada sob os

dados divulgados pelo IBGE4 em 2010. Os números dão conta de uma média

crescente de analfabetos entre os adolescentes na média dos 15 anos – ou

seja, na fase de encerramento da fase escolar básica/fundamental. Em dez anos, o analfabetismo no país caiu só quatro pontos percentu-ais. Hoje, há ainda 13,9 milhões de brasileiros, com 15 anos ou mais, analfabetos, diz o Censo de 2010 divulgado. É o equivalente a 9,63% da população nessa faixa etária – no Censo de 2000, esse percentual era de 13,64%. Apesar de ser uma das áreas do país com maior crescimento econômico e aumento de mercado consumidor, o Nordeste continua sendo a região com maior número de analfabetos. Para pesquisadores, a queda na taxa de analfabetismo tem sido lenta. O próprio presidente do IBGE, Eduardo Pereira Nunes, afirma que essa taxa “não cai tão rápido”. O principal motivo para isso, diz Nunes, é a dificuldade da alfabetização de pessoas mais velhas. Isso é apontado pelo fato de que, à medida que se avança na faixa etária, maior é o percentual de analfabetos. Na faixa de 60 anos ou mais, são 26,5% de analfabetos.

A árdua tarefa educacional precisa incorporar valores ecológicos de

conservação e reciclagem. Os pressupostos econômicos já encontram raiz

em relação ao emprego, consumo e relações pessoais. A incorporação efici-

ente do capital produtivo não pode convergir para a degradação ambiental,

3 AFONSO, Cintia Maria. Sustentabilidade. Caminho ou utopia? p. 43.

4 http://www.ibge.gov.br/home.

Page 62: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 61

mas a parcela da responsabilidade social somente será assumida diante de

um processo educacional eficiente5.

A uniformização da proteção pelo direito de uma relação individual en-

tre sujeito e objeto justifica-se pelo seu efeito na sociedade. As funções do

direito ambiental devem propiciar um reencontro da ética com o direito. O

meio ambiente pode ser encarado como um bem jurídico autônomo e de

interesse público que se dimensionam como um direito fundamental do ho-

mem, seja ele consumidor ou não. Leff propicia entendimento sobre a pro-

dutividade ecotecnológica6.

Isso tem relevância para a compreensão do processo social de constru-

ção de um paradigma de produtividade ecotecnológica7, assim como para a

análise da eficácia do movimento ambientalista para reverter os custos soci-

ais e ambientais da racionalidade econômica dominante e para construir ou-

tra racionalidade social No entanto, esta racionalidade transcende e a refun-

cionalização é indispensável, pois a racionalidade econômica precisa ter em

conta os padrões de sustentabilidade, uma vez que na degradação dos pro-

cessos ecológicos há o autômato do comprometimento futuro.

Para Leff:

O meio ambiente é um patrimônio universal, um macrobem, que possui um caráter interdisciplinar e que envolve em sua proteção todos os seres vivos. Esquema de fins e meios ‘ecologizados’, inclusive aqueles que ho-je em dia procuram incorporar a incerteza dos processos ecológicos e os processos dissipativos a análise multicriterial na forma de tomada de decisões e abertura da ciência para outros saberes e em uma gestão ambiental participativa8.

O desfrutar do meio ambiente é coletivo e indissociável. O indivíduo

faz uso desse material como cidadão, consumidor, empresário ou emprega-

do, e o meio ambiente permanece na confluência da solidariedade social, é

um bem a ser protegido e esse entendimento é sustentado por Cristiane De-

rani

O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico, consti-tucionalmente protegido. Este bem não pode ser desmembrado em par-celas individuais. Seu desfrute é necessariamente comunitário e reverte ao bem-estar individual. 9:

5 SEIFFERT, Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambien-

tal. p. 30 e 31. 6 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. p. 255.

7 http://www.scielo.br/pdf/asoc/n6-7/20433.pdf

8 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. p. 256.

9 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. p 248.

Page 63: Revista Raízes Jurídicas

62 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A ecologia política surge por meio de uma redefinição de saberes com

base no saber ambiental e recebe uma influência notória da ética ecológica,

que vislumbra transcender a racionalidade econômica dominante. O conjunto

sistêmico das regras de direito aponta a globalização como realidade irre-

versível no plano ecológico, econômico, educacional e empresarial e, nesse

contexto, o Estado acaba por redescobrir sua função e o intervencionismo

ganha um viés distintivo do processo histórico-econômico 10

.

As mudanças surgidas no contexto econômico e social nos últimos

anos têm levado as organizações a uma série de alterações, tendo em vista a

necessidade delas se adaptarem a um ambiente crescente e competitivo.

A figura do empreendedor tem despertado interesse de pesquisa e

também questionamentos de seu papel nas organizações. O ponto crucial da

gestão corporativa está calcado na visão holística dos empreendimentos, na

observância das vocações regionais e nos riscos da escolha de uma atividade

que comprometa a manutenção humana no local.

As mudanças tecnológicas podem ser includentes e excludentes ao

mesmo tempo. A dinâmica da informação não se opera por filtros qualitati-

vos na convergência do bem-estar e da manutenção da vida. O excesso de

informação sem qualidade leva, como indicou Morin11

, a uma cabeça “cheia”

e não uma cabeça “bem-feita”.

A multiplicidade de formas de direito, em especial do direito ambien-

tal, apontam primeiramente ao questionamento de que faltam leis para re-

gular todas as novas realidades. Ocorre que a rapidez e a intensa agilidade

das inovações sociais não permitem que os legisladores consigam aprovar e

regulamentar novas regras de conduta para cada novo comportamento ou

cada novidade tecnológica produtora de negócios jurídicos.

A gestão ecológica, como já foi mencionado, compreende uma análise

transdisciplinar entre crescimento e sustentabilidade ecológica. Os pontos

decisórios na empresa compreendem uma visão preventiva e conjugam con-

dições socioeconômicas e tecnológicas que implicam na conservação, sem

deixar para um segundo plano o angariar pecuniário. Isso quer dizer que o

modelo de desenvolvimento convencional pautado no mercado como instân-

cia reguladora da vida social vislumbrava uma política de desenvolvimento

científico-tecnológico que almejava prioritariamente a maximização dos lu-

cros como princípio vetor. Ocorre, sobretudo, que em função da demanda do

mercado em maximizar o lucro, os bens ambientais apresentaram mudanças

10

http://tede.unicuritiba.edu.br/dissertacoes/TaisMartins.pdf 11

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. p. 5.

Page 64: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 63

na sua oferta. E a proximidade da “exaustão” ou “extinção” propiciou a ne-

cessidade de redimensionar a velocidade da captura dos bens para soluções

menos agressivas ao “lar humano.”

A metafísica de um mercado global possibilita a escolha do modus vi-

vendi12 de cada indivíduo na sociedade, e essa escolha depende da manuten-

ção e da conservação do meio ambiente pelos seus agentes exploradores.

Porém, a proteção ecológica não está restrita à manutenção do meio ambi-

ente, pois o natural e o social estão interligados13

.

Ignacy Sachs observa:

A ética imperativa da solidariedade sincrônica com a geração atual so-mou-se à solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para al-guns, o postulado ético da responsabilidade com o futuro de todas as espécies vivas na Terra. Em outras palavras, o contrato social no qual se baseia a governabilidade de nossa sociedade deve ser complementado por um contrato natural14.

Em outra obra, de Sachs, o autor aponta para uma responsabilidade

sociopolítica:

Parece evidente que a concretização desse ideário exigirá a adoção de um conjunto interdependente de reformas de natureza sociopolítica, so-cioeconômica e sociocultural dificilmente alcançáveis atualmente. Mais do que nunca, deveríamos admitir que estamos enfrentando uma corre-lação de forças dramaticalmente desigual, num momento histórico em que, aparentemente, as chaves-mestras da cultura já não conservam mais o poder de abrir novas portas, descortinar novos horizontes e ins-pirar novos avanços. Pressupondo que, daqui em diante, a experimenta-ção sistemática e coordenada com o enfoque de ecodesenvolvimento não acontecerá pelo simples poder do verbo15.

Ignacy Sachs adverte que existe o desafio de formularem-se planos de

ação muito mais concretos e precisos em termos de recursos e prazos, sem

esperar mais por avanços significativos no âmbito das negociações interna-

cionais16

.

Os tempos da industrialização trazem em seu bojo um novo conceito

de empresa e, para essa empresa moderna, há desafios e exigências das

mais variadas ordens e que precisam atender aos consumidores e proteger a

qualidade de vida deles, por meio da manutenção do meio ambiente.

12

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Op cit. p. 137. 13

SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes.; PAVIANI, Jaime. Direito ambiental: um olhar para a cidada-nia e sustentabilidade planetária. p 47. 14

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. p. 49. 15

SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. p. 22 e 23. 16

http://www.iica.int/Esp/regiones/sur/brasil/Lists/Publicacoes/Attachments/33/S%C3%A9rie%20DRS%20vol%2010%20-%20Gestao%20Social%20dos%20Territorios.pdf.

Page 65: Revista Raízes Jurídicas

64 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Economia, direito e meio ambiente mostram-se indissociáveis no que

concerne à administração e gestão dos bens ambientais. Ligações intrínsecas

e extrínsecas dimensionam concomitantemente o mercado consumidor, a

livre iniciativa e a proteção ambiental. Os eixos cultural, econômico e social

da vida humana apresentam a tênue linha situada entre o explorar e o pre-

servar o meio ambiente.

Uma gestão descomprometida com as questões ecológicas não viabili-

za a manutenção dos bens naturais e privilegia um desenvolvimento econô-

mico predatório. Essa degradação paulatina e sem limites fere os princípios

constitucionais e compromete a dignidade humana. O meio ambiente, o

ecossistema e a natureza necessitam de uma proteção permanente, pois o

gerenciamento constante da biosfera transforma o desafio ambiental em

uma oportunidade.

Epistemologicamente, a proteção ambiental está diluída nas questões

sobre propriedade, saúde, segurança, educação, vida humana, animal e ve-

getal, e esses saberes, empírica e tecnicamente, são debatidos no que con-

cerne à desigualdade de renda e de cultura. Não há sociedade homogênea e

os componentes econômicos levam a uma incessante busca pelo equilíbrio

por meio do ordenamento jurídico. O direito é uma modalidade de conheci-

mento humano que tem três dimensões: dogmática jurídica ou ciência do

direito, a sociologia do direito e a filosofia do direito17

, e o direito ambiental

não está isolado dessas dimensões cognoscíveis.

A relação entre sujeito e objeto tem sua distribuição jurídica nas nor-

mas constitucionais, que dispõem sobre a livre iniciativa, a propriedade pri-

vada, o direito do consumidor; a responsabilidade civil no que concerne à

responsabilidade objetiva e subjetiva; o direito processual, por meio das

questões proprietárias de apropriação e desapropriação de áreas comuns; o

direito penal, no que concerne aos crimes ambientais e o tangenciamento da

cidadania, da dignidade humana.

A educação faz os contornos de uma sociedade solidária e que têm in-

cidência direta na gestão ambiental. O crescimento econômico é o processo

pelo qual o Produto Interno Bruto - PIB por habitante aumenta em um de-

terminado período de tempo, por meio de ganhos contínuos na produtivida-

de dos fatores produtivos, e o desenvolvimento econômico, mas é importan-

te destacar que isto está relacionado com a distribuição do produto e com o

grau de utilização da capacidade produtiva de um país.

O crescimento precisa ser mensurado, assim, são objetivos do desen-

volvimento econômico o crescimento do produto interno per capita, a gera-

ção de emprego e a maior igualdade na distribuição de renda apresentam os

reais indicadores de uma gestão privada responsável e coerente com os pa-

17

SANTOS, Roberto. Ética ambiental e funções do direito ambiental. São Paulo, Revista de direito ambiental, v. 5, n. 18, p. 241-250, abr./jun. 1999.

Page 66: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 65

râmetros constitucionais da livre iniciativa e da manutenção do meio ambi-

ente.

Para Demajorovic do discurso a ação valorizada pela educação ambien-

tal há um longo caminho:

[...] Do discurso à ação, no entanto, há um longo caminho. Ainda que valorizada a educação ambiental, promover um processo reflexivo no âmbito das organizações enfrenta as barreiras estabelecidas por uma lógica baseada na busca constante do lucro imediato. [...] em que medi-da a educação ambiental deve constituir-se num dos instrumentos ne-cessários para a gestão ambiental na iniciativa privada empresarial. Além disso, procurou-se identificar a contribuição da educação ambiental pa-ra a melhoria do desempenho ecoeficiente do setor privado para que, atendendo às suas próprias demandas específicas, possa também cum-prir com a responsabilidade social.18.

A implementação de condutas de desenvolvimento econômico integra-

das à manutenção ambiental garante a sustentabilidade que previne ou di-

minui a poluição e garante a dignidade humana por meio da ecoeficiência

real. As tecnologias trazem consigo os riscos preconizados pelas atividades

desenvolvidas, facilitadores da vida humana, na mesma medida em que tra-

zem riscos à saúde humana e ao meio ambiente associados19

.

O enfoque preventivo é fundamental, bem como a compreensão dos

riscos da produtividade tecnológica. Essa também é uma tarefa corporativa e

pessoal que ganha um viés mais amplo do que a análise corporativa restrita.

A responsabilidade social é essencial para a garantia de um meio am-

biente sadio e equilibrado, visto que essa é condição essencial para a tutela

da pessoa humana, pois não se pode retirar esta preocupação da atividade

empresarial, que traz a aproximação entre a preocupação ambiental, inserin-

do o homem como elemento essencial desta relação com a natureza.

A intervenção do Estado apresenta uma roupagem dissonante da órbita

do liberalismo e da Revolução Francesa, os excessos históricos restam subs-

tituídos por um Estado Democrático de Direito que assegura uma liberdade

econômica permeada pelos direitos fundamentais. No Brasil, o diagnóstico

18

SIMONS, Mônica Osório. Educação ambiental na empresa: mudando uma cultura. In: DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de Gestão ambiental. Op cit. p. 201. 19

FERREIRA, Edson; GASI, Tânia Tavares. Produção mais limpa. In DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de Gestão ambiental. Op cit. p. 50 e 51.

Page 67: Revista Raízes Jurídicas

66 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

das contradições se corporifica pela frase de Ignacy Sachs: Quo vadis20, Bra-

sil? 21

A crise ambiental apresenta o conflito entre desenvolvimento e explo-

ração ambiental. O desenvolvimento pressupõe uma abertura de ordem eco-

nômica e a sustentabilidade engaja o seu contexto na utilização, manutenção

e no equilíbrio dos bens naturais. Destaca-se que a utilização deveria sobre-

pujar a palavra exploração, pois o exaurimento não condiz com a sustenta-

bilidade.

A equação entre essas temáticas está alicerçada na preservação mais

coerente do meio o progresso e o desenvolvimento econômico não precisam

ser negativos aos indivíduos, mas devem, sim, estimular uma finalidade so-

cial que promove o equilíbrio entre as gerações na busca pela humanização

das relações pessoais e também as empresariais, visto que os administrado-

res e empresários na mesma medida em que fazem uso do meio ambiente

devem preservá-lo, pois o modelo predatório já demonstrou seu fracasso no

processo histórico.

No dizer de Amartya Sen:

Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento do Produto Nacional Bruto e de outras variáveis relacionadas à renda. Sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar muito além dele22.

A crise ambiental está calcada no ser e não no ter. A empresa como

agente modificador do meio transita entre esferas protetivas ambivalentes a

livre iniciativa num vértice e a proteção ao meio ambiente de outro.

Os sistemas legislativos indicam que o indivíduo deve ser o centro da

proteção jurisdicional para além das relações contratuais e empresariais e

que a garantia ao meio ambiente é um debate interdisciplinar e necessário,

visto que a ausência de efetividade nas medidas jurídicas tem comprometido

a saúde e levado as empresas a custear o preço de suas escolhas por meio

da responsabilidade civil e da quantificação das indenizações. No entanto, o

cálculo exato dos danos ambientais escapa a qualquer legislação.

O desenvolvimento humano deve ser debatido no ambiente corporativo

no que diz respeito a sua aplicabilidade, ou seja, é preciso modificar os pa-

radigmas para que a sociedade e a empresa não estejam restritas a uma so-

ciedade de risco. O reconhecimento do risco está em curso.

Uma ciência reflexiva é indispensável para amenizar os danos ambien-

tais, segundo Tavolaro:

20

N.A O termo pode ser entendido como “para onde vai?” ou “Para que direção seguirá?” 21

http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n51/a02v1851.pdf. 22

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. p. 28.

Page 68: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 67

A cientifização primária é o período no qual se deposita uma fé inque-brantável na ciência e no progresso por ela proporcionado; já na cientifi-zação reflexiva, as ciências são confrontadas com sua própria objetivi-dade passada e presente, isto é, são confrontadas consigo mesmas co-mo produtoras e produtos da realidade e de problemas que devem ana-lisar e superar. Isso faz Beck acreditar na idéia de que, hoje em dia, as possibilidades de expansão da ciência encontram-se ligadas à própria crítica da ciência, à crítica de seus próprios fundamentos, de suas pro-messas, de suas realizações e dos resultados e conseqüências delas. Beck acredita que seja possível resgatar as promessas iluministas do es-clarecimento desde que a razão que moldou o desenvolvimento da ciên-cia e da tecnologia seja convertida em uma teoria dinâmica de racionali-dade científica que sintetize a experiência histórica, desenvolvendo em si mesma a capacidade de aprender23.

A inquietude dessa temática não aponta para um exaurimento na

abordagem. A sobrevivência da espécie humana promove o reconhecimento

de um ecossistema planetário que é interdependente. O futuro comum se

constitui, muito mais do que um discurso, mas em uma realidade incontes-

tável.

A dinâmica da vida humana coloca os seres vivos humanos no mesmo

cenário, seja ele de manutenção ou extinção. Nesse aspecto, os movimentos

ambientais ecológicos surgem e a globalização indica a impossibilidade de

separação entre o local e o global.

O trâmite mercadológico se constrói por meio da informação e as me-

todologias administrativas precisam manter o foco no global, no geral e na

amplitude de suas decisões. A ecoeficiência é um fim almejado, mas alcan-

çado por poucas empresas, pois o aprimoramento dos benefícios ambientais

se depreende da visão holística e não da lucratividade absoluta e das peque-

nas indenizações por danos causadas pela pessoa jurídica ao meio ambiente.

O novo paradigma proposto dá conta de um novo modelo de sociedade

e um novo modelo de empresa, e não somente no tipo de crescimento alme-

jado. A inovação tecnológica indica que quanto mais intenso o desenvolvi-

mento mais aguda a pobreza e a deterioração ambiental24

.

Nas lições de Leonardo Boff:

23

TAVOLARO, Sérgio Barreira de Faria. Movimento ambientalista e modernidade: sociabilidade, risco e moral. p. 83-84. 24

DEMAJOROVIC, Jacques. Sociedade de risco e responsabilidade socioambiental. Op cit. p. 45.

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68 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

O desenvolvimento não deveria ser chamado como tal, mas a apenas de crescimento, querido em si mesmo, dentro de um mesmo modelo quan-titativo e linear. Não se procura o desenvolvimento como potencialização das virtualidades humanas nas suas várias dimensões, especialmente aquela espiritual, própria do homo sapiens/demens sempre ligado às in-terações globais com o cosmos ou a Terra em sua imensa diversidade e em seu equilíbrio dinâmico. Buscando-se apenas aquelas que atendem aos interesses de lucro. Por esta razão o desenvolvimento, neste mode-lo, apresenta-se apenas como material e unidimensional, portanto como mero crescimento. A sustentabilidade é apenas retórica e ilusória

25.

O desenvolvimento sustentável deve ser analisado entre dois vértices

basilares: o meio ambiente e o desenvolvimento econômico. O equilíbrio

desses vértices é destinado a propiciar a proteção do homem e da sua digni-

dade humana, pois o meio ambiente equilibrado assegura a cidadania, a so-

brevivência e a dignidade do indivíduo, o desenvolvimento econômico não

pode ser sobreposto em detrimento do desenvolvimento humano. Um exem-

plo disso está no confronto entre slogan e prática. Na era globalizada, a for-

ça do marketing arrebanha consumidores e desrespeita o cidadão.

Para Capra, a teia de vida serve como diretriz da ação humana e do

equilíbrio entre a pessoa e a natureza:

A ecologia profunda não separa os seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma cole-ção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão profundamente interconectados e são interdependentes. A ecologia pro-funda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida26.

O gerenciamento de riscos é a forma mais econômica e correta do

ponto de vista administrativo para concatenar a sustentabilidade da atividade

empresarial e a produção dos efeitos colaterais que ela possa provocar. O

debate traz a preocupação com a finitude do bem natural, independente-

mente dos benefícios que sua utilidade possa trazer à vida humana.

Melhorando esse aspecto, as medidas eficazes para evitar a degrada-

ção ambiental apontam para um desenvolvimento tecnológico competente,

que interfira na comunidade, mas evitando que os impactos sobre os vetores

de natalidade, solo e educação não sejam negativos. E a educação ambiental

moderna exige cada vez mais dos gestores e administradores no tocante ao

25

BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. p 97. 26

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma compreensão científica dos sistemas vivos. Apud CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. p. 139.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 69

planejamento eficiente, que traz em seu bojo, irmanamente, o crescimento e

o desenvolvimento, bem como a sustentabilidade da atividade econômica27

.

A relação da sociedade com o meio ambiente é conexa, visto que os

problemas ambientais são sistêmicos. O desenvolvimento econômico e o

desenvolvimento ambiental têm um futuro comum, numa teia de interde-

pendências que garante o equilíbrio ecológico e, conseqüentemente, o cres-

cimento/desenvolvimento da empresa e da sociedade.

O desenvolvimento sustentável frente a esse binômio parece utópico,

se o parâmetro exposto levar em conta uma sociedade global capitalista e

consumista. A delimitação desse conteúdo não se restringe a esses panora-

mas, mas parte deles para a análise da complexidade da questão ambiental.

Para Morin, necessária é uma reforma do pensamento 28

.

Capra, por sua vez, indica um problema de percepção da realidade.

Logo, é importante identificar o tipo de sociedade, exatamente, para saber a

qual regime jurídico ela deve se submeter, pois os danos no que concerne a

sua dimensão podem ser visíveis ou invisíveis, na dimensão de sua previsibi-

lidade. A intervenção do direito na atividade empresarial se presta ao sus-

tentáculo entre atividade empresarial e não-degradação ambiental.

A crise valorativa afeta o desenvolvimento ambiental. O crescimento

desenfreado consome as energias fósseis, provoca intempéries climáticas e

propicia uma nova categoria de refugiados: os refugiados ambientais. A ex-

ploração desprendida da ética e da sustentabilidade compromete a existên-

cia coletiva, mesmo que a responsabilidade pelo consumo desenfreado não

seja compatível com todos os seguimentos de consumo.

O crescimento selvagem29

compromete os recursos naturais abióticos,

bióticos, o ar, a água, a fauna e a flora e a interação do homem com esses

recursos promove uma extinção paulatina do patrimônio natural, cultural das

gerações existentes e, conseqüentemente, das gerações futuras.

O consumo traz, em seu bojo, uma análise sociológica que transita en-

tre o consumo sustentável, o subconsumo e o superconsumo. Ana Luíza Spí-

nola indica que as populações que apresentam consumo sustentável são

aquelas localizadas em países europeus. Por sua vez, o superconsumo apon-

ta para os países desenvolvidos e, por fim, o subconsumo está localizado

nos países em desenvolvimento.

O padrão do subconsumo apresenta uma rápida exaustão dos recursos

naturais, pois a sobrevivência dos indivíduos e suas necessidades são supri-

27

DEMAJOROVIC, Jacques. Sociedade de risco e responsabilidade socioambiental : perspectivas para a educação corporativa. p. 45. 28

MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade. In: FRIED-SCHNITMAN, Dora. Novos Paradigmas, cultura e subjetividade. p. 4. 29

SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia – teoria e prática do desenvolvimento. p. 25.

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70 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

das de maneira não-planejada e que não predispõe uma preocupação com a

conservação ambiental.

O superconsumo, por sua vez, apresenta um quadro de individualismo

e imediatismo, despreocupado com a coletividade e sem atenção ao trata-

mento de resíduos.

A atividade empresarial transita por esses vértices e busca uma har-

monia entre a economia, o processo produtivo e a manutenção ambiental. O

bem estar dos indivíduos se relaciona de maneira direta com os recursos

naturais disponíveis e, conseqüentemente com os padrões de consumo. Es-

ses, por sua vez, ligam-se diretamente ao desenvolvimento.

A determinação conceitual associa o consumo ao nível de desenvolvi-

mento em três conceitos basilares:

Subconsumo: padrão típico observado em países em desenvolvimento, onde as populações apresentam um baixo nível de renda, sobrevivendo com menos de um salário mínimo por mês. Estas populações apresen-tam um padrão de consumo marginalizado, não apresentando condições de optar por produtos ecologicamente corretos, uma vez que simples-mente ignoram a questão ambiental, e também por não apresentarem um nível de renda familiar que lhes possa permitir realizar esta escolha, simplesmente optando pelo produto mais a acessível (mais barato); con-sumo sustentável: padrão tipicamente observado em países desenvolvi-dos, em que as famílias apresentam uma renda familiar compatível com um maior nível de consumo, os quais independentemente disso utilizam esses recursos de maneira racional. O consumidor preocupa-se em sele-cionar produtos que evidenciem um processo de produção ambiental-mente mais adequado, evidenciando um comprometimento com a con-servação dos recursos naturais, ainda que tenham que pagar mais caro pelo mesmo. Alguns países europeus apresentam-se mais próximos a esse padrão de consumo; superconsumo: padrão de consumo observado também em países desenvolvidos, em que a população apresenta um padrão de consumo com potencial para seleção de produtos ambiental-mente mais adequados, mas que não realiza por limitações culturais. Este tipo de população é em geral mais imediato e consumista30.

Mari Seiffert aponta os parâmetros de consumo indicando dois padrões

de consumo insustentável, que propiciam um tipo de degradação distinto,

como representado no gráfico abaixo, que seria o subconsumo e o super-

consumo 31

.

Numa rápida análise, a autora evidencia o tríplice caráter do consumo.

O consumo sustentável se constitui no equilíbrio entre o uso exacerbado da

30

SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 275. 31

SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 276.

Page 72: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 71

natureza pela necessidade e o uso desmedido pelo prazer do consumismo,

que propicia uma degradação inescrupulosa 32

.

Os mercados verdes representam oportunidades de negócios e abertu-

ra de mercados internos e internacionais. A bioeconomia, os ecoprodutos, os

produtos reciclados atingem o mercado consumidor e atraem o consumo

consciente e os economistas prevêem grandes investimentos nessa área. O

ecodesenvolvimento necessita de um planejamento local e participativo e há

necessidade de uma consciência ambiental coletiva, o que tende a convergir

para um consumo sustentável, equilibrado e coerente com o custo-

efetividade.

Os reflexos entre economia e consumo são indissociáveis. A alternân-

cia dos padrões entre consumo sustentável, sub e superconsumo conduz o

consumidor a manter uma relação de responsabilidade na seleção dos pro-

dutos e serviços de sua preferência. O modo de produção capitalista subme-

teu a natureza à logicidade de mais valia e da apropriação econômica, mas a

racionalidade produtiva encontra berço no consumo sustentável.

A velocidade do consumo está ligada à “coisificação da natureza”. A

degradação ambiental e a escassez de bens, sentida por alguns segmentos

mercadológicos e motivada por distúrbios ecológicos e intempéries climáti-

cas convergem no preço e na escassez absoluta previsível33

. O aumento de

preço e a restrição de alguns produtos receberam influência das externalida-

des e da socialização dos custos ambientais.

Os marcos ecológicos apontam para um nível de desenvolvimento edu-

cacional e ambiental, no vértice da interferência de padrões, garantindo ao

direito ambiental esse caleidoscópio valorativo e a harmonia entre cresci-

mento/desenvolvimento ambiental e econômico.

No diapasão do desenvolvimento equilibrado, consumo sustentável ou

abusivo, o ecodesenvolvimento funciona com a ecologização do pensamento

e suas dimensões convergem para a sustentabilidade e para o equilíbrio do

mercado consumidor e da economia.

As relações de interdependência e interdisciplinaridade são caracterís-

ticas do direito ambiental. A permanente tensão, a mutação histórica, ou os

câmbios paradigmáticos chamam também atenção para a dimensão utópica

dos direitos ambientais no que concerne à limitação absoluta de seu uso.

32

SEIFFERT; Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental. Instrumentos, esferas de ação e educação ambi-ental. p. 277. 33

BORGER. Fernanda Gabriela. Responsabilidade corporativa; a dimensão ética, social e ambiental das organizações. In: DEMAJOROVIC, Jacques; JÚNIOR; Alcir Vilela (org). Modelos e ferramentas de gestão ambiental. Op cit. p. 39.

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72 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Para Leff, é necessária e urgente uma racionalidade ambiental geral e

não apenas setorizada. As bases culturais do desenvolvimento sustentável

encontram berço no âmbito urbano e rural, pois todos os grupamentos soci-

ais são dotados de cultura. Nas suas manifestações e indicativas, Leff con-

corda com Sachs no que concerne às estratégias do ecodesenvolvimento34

.

Sachs, ao formular a noção de ecodesenvolvimento35

, propunha uma

estratégia multidimensional e alternativa de desenvolvimento que articulava

promoção econômica, preservação ambiental e participação social, configu-

rando-se uma superação da marginalização, da dependência política, cultu-

ral e tecnológica das populações envolvidas nos processos de mudança soci-

al36

,.

As políticas ambientais surgem pela necessidade de modificar o com-

portamento das pessoas nos aspectos de produção e consumo. A superex-

ploração deve ser erradicada. Os bens ambientais garantem a justiça social

por meio de sua manutenção. O compromisso com as gerações futuras é

ameaçado pelo superconsumo.

Para compensar as inevitáveis perdas de vantagens comparativas, ba-

seadas na disponibilidade dos recursos naturais e na localização geográfica,

a região que oferece uma atividade inovativa concentra maiores investimen-

tos públicos e privados. A conseqüência da não captação dos custos da de-

gradação ambiental nas relações de mercado é a exclusão destes da concor-

rência ativa no ciclo de produtos.

De outro vértice, porém as dimensões da utopia e da realidade devem

ser vislumbradas em conjunto. A garantia do bem ecológico intocável, prote-

gido por uma legislação rígida e livre de interpretações não seria cabível. E

porque não dizer impossível como indica Milaré quando da abordagem de

ecologia, pois a proteção dos recursos naturais seria mais relevante que a

vida humana37

.

As normas, por meio dos seus agentes públicos elaboradores e aplica-

dores das normas jurídicas devem propiciar a eficiência das medidas de ca-

ráter fiscalizador e punitivo, assegurando a prestação de contas dos agentes

poluidores bem como as respectivas punições. Com esse viés a cultura hu-

mana não se restringirá a ludíbrios inalcançáveis delineados meandro jurídi-

co.

Os impactos ambientais e o seu controle trazem clara a tarefa que

transita entre a possibilidade da implementação e do uso lícito dos bens na-

turais. A proteção jurídica traz consigo uma tarefa holística conforme menci-

34

LEFF. Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. p. 414. 35

LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental. Op. cit. p. 414. 36

http://material.nerea-investiga.org/publicacoes/user_35/FICH_ES_32.pdf.. 37

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. Doutrina. Jurisprudência. Glossário. p. 757.

Page 74: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 73

ona Canotilho38

. Manter a biosfera intacta não é possível diante das necessi-

dades humanas; de outro vértice, degradá-la de maneira irreparável com-

prometerá muito mais do que as necessidades humanas, a vida planetária.

O desenvolvimento da gestão e da responsabilidade social diante dessa

complexidade necessita de processos de avaliação que levem em considera-

ção padrões culturais, econômicos e sociais em relação à avaliação de im-

pactos ambientais e os seus meios de controle.

O meio ambiente sadio e equilibrado depende da responsabilidade so-

cial para que seja possível assegurar a dignidade humana. As ações comuni-

tárias também colaboram com a preservação ambiental.

As formas ecologizadas, as experiências sustentáveis, os valores éticos

do ambientalismo, dos ecossistemas, passam por uma revitalização da eco-

nomia num processo vagaroso e repleto de paradigmas retrógrados que de-

pendem de uma autogestão produtiva dos bens ambientais superando o dis-

curso histórico.

É emergencial o transcender da racionalidade econômica dominante

para uma ecologia política a partir dos saberes ambientais. A refuncionaliza-

ção das empresas é indispensável. A racionalidade econômica precisa respei-

tar os parâmetros da sustentabilidade no que concerne à degradação dos

processos ecológicos, pois esses processos podem confluir para uma falên-

cia ecológica e conseqüentemente humana. As reformas das políticas eco-

nômicas têm o dever de promover um planejamento social eficiente, que

viabilize a utilização eficiente dos recursos para o desenvolvimento susten-

tável, convergindo para a eliminação das distorções sociais.

O ecossistema equilibrado é a garantia de permanência e da existência

das tarefas públicas e privadas. O bem-estar dos indivíduos independe da

sua participação direta/indireta na administração dos bens ambientais, mas

a sua não participação pode, e vai, a longo prazo, demonstrar que essa ne-

gação eleva os custos dos bens ambientais e os custos da dignidade huma-

na.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 77

Alexandre Morais da Rosa Doutor em Direito. Professor Adjunto de Processo Penal e do Mestrado em Direito da UFSC.

Juiz de Direito (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR.

O artigo procura discutir os impactos do discurso neoliberal em face da

noção moderna de soberania.

Palavras-chave: Estado. Neoliberalismo. Soberania.

Estado como o ente que pode exercer o poder em seu território, ou se-

ja, impor o terror, daí território. Esse poder, diante das novas coordenadas

simbólicas de um direito reflexivo, globalizado, intima o Estado a realizar

demandas impossíveis. Os administradores, pois, perdidos do aspecto políti-

co não sabem como fazer valer a soberania pelo e no Direito. Está em ques-

tão, assim, a própria autonomia do Direito e do Estado Nação. Nessa viagem

talvez a advertência de Michel Onfray possa nos seguir de guia: “Nós mes-

mos, eis a grande questão da viagem. Nós mesmos e nada mais. Ou pouco

mais. Certamente há muitos pretextos, ocasiões e justificavas, mas em reali-

1 Excerto constante, em parte, no livro: Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material: aportes hermenêuticos, 2a Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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78 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

dade só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria

busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem

sabe, de nos encontrarmos.”2

A superação da noção de Soberania no contexto do Direito Transnacio-nal implica na releitura de diversas noções herdadas da Modernidade, espe-cialmente a de Soberania, a saber, do poder de estabelecer as normas jurídi-cas válidas no território nacional3, em um ambiente mundializado pela pro-eminência do condicionante econômico neoliberal. Isto porque, segundo Allard e Garapon: “O Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada.”4 Neste contexto e articulando as repercussões do discurso da Law and Economics, baseado em Posner5, pretende-se apontar para a necessidade do (re)estabelecimento de um novo sentido e função do campo jurídico no Es-tado Democrático de Direito6.

A magnitude das questões econômicas no mundo atual implica no es-

tabelecimento de novas relações entre campos até então complementares.

Direito e Economia, como campos autônomos, sempre dialogaram desde

seus pressupostos e características, especificamente nos pontos em que ha-

via demanda recíproca. Entretanto, atualmente, a situação se modificou. Não

só por demandas mais regulares, mas fundamentalmente porque há uma

inescondível proeminência economicista em face do discurso jurídico. Dito

diretamente: o Direito foi transformado em instrumento econômico diante da

mundialização do neoliberalismo. Logo, submetido a uma racionalidade di-

versa, manifestamente pragmática de custos/benefícios (pragmatic turn),

capaz de refundar os alicerces do pensamento jurídico, não sem ranhuras

democráticas. Neste pensar a noção de Soberania, diante da Mundialização,

precisa ser recolocada.

2 ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre. L&PM, 2009. 3 BECK, Ulrich. O que é Globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 18: “A sociedade mundial, que tomou uma nova forma no curso da globalização – e isto não apenas em sua dimensão econômica -, relativiza e interfere na atuação do Estado nacional, pois uma imensa variedade de lugares conectados entre si cruza suas fronteiras territoriais, estabelecendo novos círculos sociais, redes de comunicação, relações de mercado e formas de convivência.” 4 ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova revolução do Direito. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 07. 5 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003; Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, Law and Legal Theory in the UK and USA. New York: Oxford University Press, 1996; Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998; The Little Book of Plagiarism. New York: Phatheon, 2007; Problemas de filosofia do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 6 MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 79

A clássica noção weberiana de que Estado é “uma comunidade humana

que, dentro dos limites de determinado território, reivindicava o monopólio

do uso legítimo da violência física”7, com as modificações operadas nas duas

últimas décadas do século XX, não mais se sustenta8. A busca da legitimação

do uso da força, embora guarde certa relevância, passou a ser contingente,

pois o Mercado, sem rosto, nem bandeira, veio roubar a cena de um mundo

globalizado, sem fronteiras. Os desafios daí decorrentes são imensos, pois

esta nova cartografia do poder não implica, necessariamente, no estabeleci-

mento de relações entre Estados soberanos, mas se perde em mecanismos

mais “brandos” de poder, mediados por um Mercado que não faz barreira,

nem respeita, fronteiras, mitigando, por assim dizer, a noção de Soberania.

O discurso do Mercado único, traz consigo, a destruição dos limites simbóli-

cos que representavam as balizas dos Estados Soberanos.

Com efeito, o rompimento com o Estado-Nação implica uma nova rela-

ção entre o colonizador e o colonizado. Isto porque não se trata mais da

proeminência de um Estado-Nação sobre outro, mas do deslocamento deste

lugar para as formas motrizes do Mercado (Conglomerados, Bancos, Multi-

nacionais, etc...) as quais se valem dos “Aparelhos Ideológicos do Mercado”

para manter a situação de opressão, naturalizada. Uma metrópole sem rosto,

nem etnia, representada pelo capital. Não há ninguém nos comandos justa-

mente porque tal poder não existe, inexiste um Outro do Outro (Lacan, na

pena de Zizek9). Na última quadra do Século passado, todavia, diante do dito

“progresso do neoliberalismo”, em nome do pode-tudo-que-quiser-em-

nome-da-liberdade operou-se um declínio deste lugar de Referência, a sa-

ber, a “norma” deixou de ter a função de limitar a satisfação, entregue a um

mercado vazio e iluminado de satisfações, em que tudo pode ser vendido e

comprado, já que a categoria Direitos Fundamentais é extinta e tudo passa a

ser direito de propriedade, negociado no Grande Mercado globalizado.

7 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2. Brasília: UNB, 1999. 8 Para uma leitura atualizada: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 9 ZIZEK, Slavoj. Las metástasis del goce: seis ensayos sobre la mujer y la causalidad. Trad. Patrícia Wilson. Buenos Aires: Paidós, 2005; Mirando al sesgo: una introdución a Jacques Lacan a través de la cultura popular. Trad. Jorge Piatigorsky. Buenos Aires: Paidós, 2004; Visión de paralaje. Trad. Marcos Mayer. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2006; The Univesal Exception. New York: Continuum, 2006; Interrogating the Real. New York: Continuum, 2006; The Indivisible Remainder. New York: Verso Books, 2007; Amor sin pie-dad: hacia una política de la verdad. Trad. Pablo Marinas. Madrid: Síntesis, 2004; Beinvenidos al desierto de lo Real. Trad. Cristina Vega Solís. Akal, 2005; Arriesgar lo Imposible: Conversaciones com Glyn Daly. Trad. Sonia Arribas. Madrid: Trotta, 2004; La Revolución Blanda. Buenos Aires: Buenos Aires: Parusia, 2004.

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80 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Dentro da premissa de que o “mercado” é o melhor mecanismo para

uma situação “otima”, o discurso neoliberal10

estipulou, por suas agências,

uma agenda de políticas centradas no “crescimento econômico", modelo típi-

co da Modernidade. O conceito de desenvolvimento foi re-significado para

se juntar crescimento econômico com progresso técnico, via expansão da

produção e acumulação privada de riqueza, pelo aumento dos lucros, a car-

go dos mais capazes (ricos), com a redução do status dos trabalhadores a

consumidores mínimos.11

A consequência deste receituário se dá pela paula-

tina diminuição do gasto público social, aceitando-se a desigualdade como

saudável, um custo inerente ao sistema12

. Um dos mitos é o de que o consu-

mo livre dos ricos favorece o crescimento do Mercado, mesmo custando a

vida de milhares de sujeitos, tido como custos reflexos do sistema livre. Há

muita gente no mundo que não consome cujos custos de manutenção são

altos. Não se os pode matar diretamente, mas os excluir o suficiente para

que a as doenças e ausência de comida os matem. O discurso neoliberal não

pode dizer sua pretensão latente diretamente. Deve escamotear, sempre, via

discurso manifesto e humanitário. Por isto uma adubação ideológico-midiá-

tica anestesiante da crítica13

, assimilada pelo buraco negro do Mercado e seu

direito reflexivo. Assim é que o máximo crescimento econômico andaria jun-

to com o livre mercado14

e o lucro do capital privado, contracenando com a

diminuição dos custos dos trabalhadores e a diminuição dos gastos sociais.

Estes verdadeiros dogmas ainda perduram no discurso latente, ainda que no

discurso manifesto tenha havido algumas concessões retóricas, principal-

mente pelo discurso de mitigação da pobreza.

Superada a fase marginal do discurso neoliberal, seus pressupostos fo-

ram acolhidos pelos governos de Thatcher e Reagan, no início dos anos 80,

implicando na Revolução Neoliberal do Estado, sob a batuta da banca de

10 HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade: Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Trad. Ana Maria Capovilla et al. São Paulo: Visão, 1985; Democracia, Justicia y Socialismo. Trad. Luis Reig Albiol. Madrid: Union, 2005; Principios de un orden social liberal. Trad. Paloma de la Nuez. Madrid: Unión Editorial, 2001; FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Trad. Luciana Carli. São Paulo: Abril, 1984; FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Free to Choose: a personal state-ment. Orlando: Harcourt Books, 1990. 11 Crítica consistente de: EZCURRA, Ana María. ¿Qué es el Neoliberalismo? Evolución y límites de un modelo excluyente. Buenos Aires: Lugar, 2007. 12 KLEIN, Naomi. A doutrina do Choque: A ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 13 ANDERSON, Perry. Além do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org.). Pós-neoliberalis-mo: as políticas sociais e o estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995; AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; WAINWRIGHT, Hilary. Uma res-posta ao Neoliberalismo: argumentos para uma nova esquerda. Trad. Angela Melim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo: o direito na infância. In: Anais do Congresso Internacional de Psicanálise e sua conexões: Trata-se uma criança. Rio de Janeiro, Tomo II, pp. 225-238, 1999; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Jurisdição, Psicanálise e o Mundo Neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo: Elementos para uma Leitura Interdisciplinar. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (et alii). Curitiba: EdiBEJ, 1996, pp. 67-69. 14 CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2002, pp. 229-242.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 81

Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Banco Inte-

ramericano de Desenvolvimento, este último criado posteriormente),15

apon-

tando para a necessidade de ajustes estruturais nos Estados Nacionais (pri-

vatização, desregulação dos mercados interno/externo, contenção do gasto

público social), rumo ao crescimento econômico alto e sustentável. Sua exe-

cução se deu por políticas de estabilização tendentes ao fomento da livre

operação dos mercados no plano mundial, dando especial relevo às exporta-

ções. A maneira de se conseguir competitividade externa se dá pela diminui-

ção dos custos internos dos agentes de produção (empresas), principalmente

nos custos do trabalho (mero input) e dos impostos. O deslocamento da ava-

liação exclusivamente pelos números, no paraíso da estatística, deixa de

lado toda a questão social, para se estabelecer num mundo matemático, sem

rostos, nem vítimas, mas meras “externalidades".16

A pobreza passa a ser

uma mera externalidade, um custo do sistema...

Talvez o golpe de mestre do discurso tenha sido o de colocar seus

fundamentos ligados à noção de “capitalismo democrático", a saber, a im-

possibilidade da democracia sem capitalismo. Com esta bandeira – capitalis-

mo democrático – como único meio de crescimento econômico manipula-se

o discurso para se promover, no âmbito mundial, os pressupostos do livre

mercado e, após o 11 de setembro, da “ordem mundial".17

A “manipulação

do medo"18

passa a ser a pedra de toque do discurso ideológico do mercado

livre, apresentando-se com a face “humanitária". A crise humanitária se ma-

nifesta pela pasteurização e a aparente neutralidade do discurso de Direitos

Humanos, a qual funciona como mecanismo da ideologia intervencionista,

com interesses latentes e, por básico, diversos do discurso manifesto. O dis-

curso manifesto é o de ajuda humanitária. Mas é o fundamento de uma in-

tervenção capaz de imaginariamente aplacar a culpa e justificar a opressão

com a qual, no fundo, se compactua. As intervenções ditas humanitárias

escondem os interesses econômicos silenciados no discurso manifesto, co-

mo no caso do Iraque,19

em que o petróleo é bem mais importante do que a

pretensa implementação democrática no país. A política humanitária é o le-

15 BORÓN, Atilio. A Sociedade Civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, pp. 91-93. 16 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2000. 17 Chosmky, Noam. A Política Externa dos Estados Unidos da Segunda Guerra Mundial a 2002. Trad. Paulo Alves de Lima Filho. São Paulo: Movimento Consulta Popular, 2005. 18 Com a utilização ideológica do sistema de controle social e com o fim da guerra fria, o inimigo externo, então representando pelo Bloco Socialista, é astutatamente substituído pelo “terrorista”, com a face de qual-quer um que resista… 19 Esta nova missão “democrática” é o argumento para a intervenção nos demais países. O exemplo palmar é o Iraque. A política do EUA de “a nossa democracia para todos” encontra estabilidade e assentimento de Republicanos e Democratas. Logo, é de longo prazo. Dar-se conta disto é fundamental... ZIZEK, Slavoj. Irak: la tetera prestada. Trad. Luis Álvarez-Mayo. Madrid: Losada, 2006.

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82 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

ma que faz caminhar a massa composta de “Almas Belas”20

no caminho de

uma finalidade mal-dita, da qual se fazem instrumento. Congrega, sob a

mesma bandeira, desde religiosos pseudo-assépticos ideologicamente até

desiludidos agnósticos, fascistas de direita e revolucionários de esquerda,

em nome da “Causa Humanitária”. Este engajamento em nome dos Direitos

Humanos, todavia, cobra um preço pouco percebido pela maioria jogada na

inautenticidade, para usar a gramática heideggeriana. Este movimento hu-

manitário invoca a necessidade de salvação, suspendendo os limites demo-

cráticos, as fronteiras e desloca a noção de Soberania. Serve de instrumento

alienado da opressão de um capital que não quer e derruba, incessantemen-

te, as fronteiras nacionais.21

Acrescente-se que esta revolução neoliberal democrática global22

se

desenvolve a partir da construção de um discurso único, sem alternativas, ou

seja, do capitalismo vencedor – como se verificou na redação da Constituição

Européia23

–, ao qual todos devem se adaptar, sob pena de ineficiência. Por

isso o discurso crítico acaba não encontrando eco por se iludir com o discur-

so latente, das aparências. É preciso aceitar, pois, que o neoliberalismo é o

paradigma englobante24

– hegemônico, diria Gramsci25

– da sociedade con-

temporânea com os mais variados efeitos (formais e materiais). A lógica que

subjaz ao modelo acaba sendo o custo/benefício (eficiência – maximização

de riqueza). Conquanto não se possa falar numa autoridade central, o proje-

to neoliberal conta com diversas e poderosas agências26

capazes de ditar as

regras gerais e abstratas apontadas por Hayek como fundamentadoras das

ações dos sujeitos e das Instituições. Não se preocupa (diretamente) com as

capilaridades sociais, acolhendo uma atuação balizadora das iniciativas e

usando seus mecanismos para impedir ações que estejam em desacordo

com suas premissas. Condiciona as ações no campo social por sua “violência

simbólica" e ideológica através da eleição do significante eficiência. Este sig-

20 ZIZEK, Slavoj. Arriesgar lo Imposible: Conversaciones com Glyn Daly. Trad. Sonia Arribas. Madrid: Trotta, 2004, p. 52. O argumento de Zizek é o que de se “te metes em política é preciso uma certa dose de pragmatismo e crueldade, para que o projeto se realize.” Não há pureza possível. Zizek critica os acadêmicos liberais – almas belas – que deixam que os executores façam o trabalho sujo, pois admira gente que assume suas posturas e admite executar o trabalho sujo. Aí reside a assunção de uma responsabilidade pelos atos per-dida no âmbito das sociedades descompromissadas, da plena liberdade. O poder faz vítimas, sempre. 21 CUNHA MARTINS, Rui. O método da fronteira. Coimbra: Almedina, 2008; ZIZEK, Slavoj. Elogio da Intolerância. Lisboa: Relógio D’Água, 2006, pp. 14-16. 22 MEAD, Walter Russel. Poder, terror, paz e guerra: os Estados Unidos e o mundo contemporâneo sob ameaça. Trad. Bárbara Duarte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 23 AVELÃS NUNES, António José. A Constituição Européia. A constitucionalização do neoliberalismo. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 63-118. 24 Inclusive religiosa, bastando conferir a encíclica “Centesimus Annus”, do Papa João Paulo II. 25 GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 26 Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Programas Mundiais. Tudo articulado em face das orien-tações históricas e tradicionais: “Bretton Woods”, “Consenso de Washington”, etc.

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nificante tomado do campo da Administração ganhou, no Direito, um sentido

colonizado e aferido pelo critério mercadológico de custos/benefícios27

.

Cria-se, assim, um novo princípio jurídico: o do melhor interesse do

mercado. O Direito é um meio para atendimento do fim superior do cresci-

mento econômico. É necessário simbolicamente para sustentar a pretensa

legitimidade da implementação dos ajustes estruturais mediante reformas

constitucionais, legislativas e normativas executivas. Na perspectiva de unifi-

car o novo “mercado mundial" as normas de comércio devem se adequar ao

novo modelo diminuindo os custos e os riscos das transações. Significa a

construção de uma estrutura mundial em que os Estados são incapazes de

sozinhos provocar modificações significativas, embora tenham um papel

fundamental na garantia da “ordem pública", principalmente na “esfera de

controle social". Assim é que não há mais lugar para o Estado-Nação entre-

gue ao jogo sem regras de uma globalização neoliberal do pensamento úni-

co, sem possibilidade de garantir as normas necessárias ao estabelecimento

do Estado Democrático de Direito. Surge agora um Direito Flutuante, Reflexi-

vo, com pretensão de universalidade28

, à mercê do Mercado. Ao Estado, en-

tão, é resguardada a função interna de garantia da ordem social mediante o

agigantamento do sistema de controle social (crimes, penalização e progra-

mas sociais), não sem a intervenção de organismos internacionais, como se

verifica atualmente com o terrorismo, ameaça ecológica, armas quími-

cas/nucleares e droga. A globalização é complexa, com fatores culturais,

jurídicos, sociais, ideológicos e culturais, especialmente econômicos. O mer-

cado mundial unificado implica numa proeminência do mercado como lugar

vazio, destruindo os ordenamentos jurídicos internos, com diversas estraté-

gias: a) Criação de Órgão Supranacionais (OMC, dentre outros), nos quais as

decisões não são legitimadas por qualquer processo democrático29

; b) Vali-

dade das normas internacionais sobre o direito interno, para além da noção

clássica de Soberania, abrindo-se as portas pelo discurso dos Direitos Hu-

manos; c) reflexibilidade da estrutura do ordenamento jurídico interno; d)

Poder de conglomerados e do capital financeiro que circula sem limites, em

face dos Estados.

Neste sentido, Zizek está certo ao afirmar que a ideologia congrega

uma multidão de escravos, a partir do discurso do Senhor, não por uma ilu-

são, mas por um aspecto de realidade (terrorismo, ameaça ecológica, armas

27 MARCELLINO JÚNIOR, Júlio Cesar. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa: (des)encon-tros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009. 28 ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: ..., p. 39: “No campo económico e comercial, não é uma ilusão esperar que, um dia, venha a emergir um direito global. E já isso que, em parte, ocorre, por exemplo, com a Convenção de Viena sobre as transacções, que é aplicada por um grande número de países.” 29 BAUMAN, Zygmunt. Archipiélago de excepciones. Buenos Aires: Katz, 2008. Os mecanismos democráti-cos de deliberação restam superados por decisões que refogem ao espaço democrático, a saber, são tomadas pelo Mercado e suas corporações, sem que os concernidos possam tomar um lugar no feudo de deliberação.

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químicas/nucleares e droga) escamoteando, todavia, a finalidade latente

(ideológica) destes discursos. A “realidade" entendida como os limites sim-

bólicos – construídos – é manipulável. A razão instrumental, portanto, trans-

forma-se no fundamento da própria dominação simbólica. Quanto menos

forem manifestos os interesses ideológicos, mais eficazes serão.30

A aparên-

cia deste afastamento é o mote para sua eficiência. É somente pela crítica ao

sintoma deste velamento, a saber, pelo silêncio, contradições, deslizes, que

se pode estabelecer um lugar para o discurso crítico. Isto porque o slogan

“liberdade e igualdade" atende aos interesses dos donos do capital. A aceita-

ção sem maiores reflexões de que todos são iguais para contrair obrigações

aponta para uma miopia ideológica. Dito de outra forma, em nome da Liber-

dade se esquece das forças reais de poder. Cinicamente, claro. A ordem es-

pontânea pretende que o mercado se construa por si mesmo, esquecendo-se

dolosamente que a ordem espontânea não se dá por si mesmo, mas por uma

leitura (particular) dela. Uma leitura pré-dada. Enfim, é a legitimação racional

da ordem existente, na leitura hegemônica do capital.

Este modelo gera “vítimas” e depois as constata via “Relatórios Mundi-

ais”, para os quais se apressa em apresentar novas (ilusórias) soluções. En-

fim, o problema social é antevisto e fomentado para, depois, justificar um

novo recrudescimento de controle social,31

na implementação da “doutrina

de choque” de que fala Klein. Vale destacar que o “Informe sobre o Desen-

volvimento Humano” produzido pelo “Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento” (PNUD) e pelo “Banco Mundial” sobre a pobreza, foi a jus-

tificativa retórica para o redirecionamento das políticas públicas, agora cata-

lisadas para redução da pobreza, dando azo a uma nova investida de “ajus-

tes estruturais", ou seja, mitigação de Direitos Fundamentais. A questão -

social é circunscrita dentro dos limites máximos à estabilização econômica,

alterando o critério do modelo do Bem Estar Social. Mediante cooperações

internacionais (dos Fundos), obriga-se a realização dos ajustamentos estru-

turais necessários ao modelo neoliberal, no que se denomina de soft power,

pelo qual a cooptação econômica substitui o hard power militar.32

Este soft

power não apresenta a face do capital, mas a de organismos multilaterais

capazes de implementar uma ingerência interna acentuada, ainda que siga

silenciosamente o receituário neoliberal. Daí seu efeito deslumbre e assenti-

30 ZIZEK, Slavoj. Ideología: Un mapa de la cuestión. Trad. Cecilia Betrame et alii. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 15: “La lógica de la legitimación de la relación de dominación debe permanecer oculta para ser efectiva. En otras palabras, el punto de partida de la crítica de la ideología debe ser el reconoci-miento pleno del hecho de que es muy fácil mentir con el ropaje de la verdad. (...) La forma más notable de ‘mentir con el ropaje de la verdad’ hoy es el cinismo: con una franqueza cautivadora, uno ‘admite todo’ sin que este pleno reconocimiento de nuestros intereses de poder nos impida en absoluto continuar detrás de estos intereses. La fórumula del cinismo ya no es la marxiana clásica ‘ellos no lo saben, pero lo están haciendo’; es, en cambio, ‘ellos saben muy bien lo que está haciendo, y lo hacen de todos modos’.” 31 VIANNA, Túlio. A Transparência Pública, Opacidade Privada: o Direito como instrumento de limitação do poder na sociedade do controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 32 ZIZEK, Slavoj. La Revolución Blanda. Buenos Aires: Parusia, 2004.

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mento irrefletido de muitos preocupados em ser eficiente. Sob a bandeira do

combate à pobreza, implementam-se programas de controle social sob o

papel de presente de assistência, sempre transitória. Estes programas sociais

normatizantes são focados nos mais pobres, dentro dos limites orçamentá-

rios, deixando a extragrande maioria da população excluída.

De outro lado, há uma redução nas despesas estatais com saúde, edu-

cação e previdência social, as quais são entregues ao capital privado (direta-

mente,33

via Parcerias Público-Privado, concessões ou organizações não-

governamentais34

– ong’s). Por fim, divulga-se o combate à corrupção, a cri-

ação de Agências Reguladoras e a flexibilização dos contratos de trabalho,

dentre outras iniciativas, como medidas dolorosas, mas necessárias ao bom

funcionamento do mercado. Apesar deste realinhamento estatal, a idéia do

mercado como mecanismo ótimo de auto-resolução de desigualdades per-

manece inatacado. Este seria, enfim, para os neoliberais, o Estado Eficiente.35

Assim é que o discurso do desenvolvimento econômico é o principal disfarce

do discurso neoliberal, naturalizado como sendo uma das exigências decor-

rentes da globalização, sem qualquer possibilidade de discussão. Esta estra-

tégia evita o confronto de ideias advindo de um devido embate democrático

e gera, no seu cúmulo, o espetáculo contemporâneo do luxo e da pobreza.

Denomina-se Análise Econômica do Direito (AED) o movimento meto-

dológico surgido na Universidade de Chicago no início da década de 60 do

século passado, o qual busca aplicar os modelos e teorias da Ciência Econô-

mica na interpretação e aplicação do Direito. O movimento, fortemente influ-

enciado pelo liberalismo econômico, tem como precursores e expoentes os

professores Ronald Coase e Richard A. Posner, ambos da Universidade de

Chicago, e Guido Calabresi, da Universidade de Yale. Law and Economics,

contudo, não é um movimento coeso. Apresenta diversas escolas e orienta-

ções, com diversas publicações regulares. O fator comum é o da implemen-

33 Interessante que as responsabilidades pela criação de filhos, da velhice, da aposentadoria, dentre outras, são recolocadas como responsabilidade familiar. Com isto, surgem os discursos de previdência privada, planos de saúde, enfim, toda uma gama de atendimentos de assistência social dos quais o Estado se retira em nome da liberdade dos sujeitos e seus núcleos de auxílio privados. Implica, pois, na rejeição do Estado do Bem Estar Social. Os que não conseguirem meios, pois, estarão fadados, por suas escolhas e (in)competências singulares, ao (des)alento. 34 CASTRO JR, Osvaldo Agripino de. Direito Regulatório e Inovação nos Transportes e Portos nos Estados Unidos e Brasil. Florianópolis: Conceito, 2009. 35 EZCURRA, Ana María. ¿Qué es el Neoliberalismo?..., pp. 64-65: “Los gobiernos no gobiernan, sino que gerencian políticas de paternidade internacional. Y el papel de los partidos sería unicamente legitimarlas. (...) Em suma, las políticas fundamentales, atinentes a los modelos domésticos de sociedad, no son dispuestas ni por los ciudadanos, ni por los partidos, ni por los gobiernos latinoamericanos. Así pues, la estructura del oder internacional ciñe la gama de decisiones al alcance de los sistemas políticos locales y, con ello, la soberanía nacional y ciudadana. La democracia, tan exaltada por el neoconservadorismo-liberal, queda en entredicho.”

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tação de um ponto de vista econômico no trato das questões que eram emi-

nentemente jurídicas. O objeto de estudo da AED deixou de acontecer exclu-

sivamente no plano do Direito da Concorrência para ganhar novos campos:

propriedade, contratos, responsabilidade civil e contratual, direito penal,

processo (civil e penal), direito administrativo, direito constitucional, direito

de família, infância e juventude, dentre outros.36

A Análise Econômica do

Direito ganhou fôlego na segunda metade do século passado a partir, funda-

mentalmente, de três fatores: a) a construção de um estatuto teórico especí-

fico (Coase, Becker, Calabresi e Posner, dentre outros); b) proeminência do

discurso neoliberal; c) imbricamento entre as tradições do civil law e do

common law.

Esta corrente metodológica adota, além dos princípios do liberalismo

econômico, a idéia de que o objeto da ciência jurídica possui uma estrutura

similar ao objeto da ciência econômica e, por isso, pode ser estudado do

ponto de vista da teoria econômica. Assim, busca o movimento transformar

o Direito, que se encontraria em um estado pré-científico, incapaz de se

adaptar a nova realidade mundial, caracterizada pela crise do Estado de

Bem-Estar Social, em uma verdadeira ciência, racional e positiva, mediante a

análise e investigação do Direito de acordo com os princípios, categorias e

métodos específicos do pensamento econômico. A Law and Economics pro-

cura analisar estes campos desde duas miradas:37

a) “positiva": impacto das

normas jurídicas no comportamento dos agentes econômicos, aferidos em

face de suas decisões e bem-estar, cujo critério é econômico de “maximiza-

ção de riqueza"; e, b) “normativa": quais as vantagens (ganhos) das normas

jurídicas em face do bem-estar social, cotejando-se as consequências. Dito

de outra maneira, partindo da racionalidade individual e do bem estar social

– maximização de riqueza –, busca responder a dois questionamentos: a)

quais os impactos das normas legais no comportamento dos sujeitos e Insti-

tuições; e b) quais as melhores normas.

Com efeito, o Sistema jurídico38

é acusado de ser dos principais obstá-

culos ao crescimento econômico, especificamente pelos custos necessários

para o contractual enforcement e o contratual repudiation,39

ou seja, de se

36 STEPHEN, Frank H. Teoria econômica do direito. Trad. Neusa Vitale. São Paulo: Makron Books, 1993; MERCADO PACHECO, Pedro. El analisis economico del derecho. Madrid. Centro de Estudios Constitucio-nales, 1994. FRANZONI, Luigi Alberto. Introduzione all’economia del diritto. Bologna: Mulino, 2003; TOR-RES LÓPEZ, Juan. Análisis Económico del Derecho: Panorama doctrinal. Madrid: Tecnos, 1987; -POLINSKY A., Mitchell. Introducción al análisis económico del derecho. Barcelona: Ariel, 1983; RODRI-GUES, Vasco. Análise Económica do Direito: uma introdução. Coimbra. Almedina, 2007; BOURDIEU, Pierre. As estruturas sociais da economia. Trad. Lígia Calapez. Porto: Campo das Letras, 2006. 37 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003, pp. 24-26. 38GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005; ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Rachel. Direito & Economia: análise eco-nômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 39 GORDLEY, James. The Enforceability of Promises in European Contract Law. Princenton: Cambridge University Law, 2001.

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constituir um obstáculo ao bem estar do mercado na ótica neoliberal. O cus-

to país, entendido como todos os custos acrescidos ao da transação, aponta

para a ausência de maior eficiência do Poder Judiciário na garantia dos dog-

mas (propriedade privada e contrato), já que estes elementos seriam funda-

mentais para o perfeito funcionamento do mercado. A deficiente qualidade

do Sistema de Justiça é apontada como um dos fatores responsáveis pela

estagnação econômica, demandando, assim, um realinhamento à nova or-

dem mundial. Exige-se, portanto, a revisão das normas legais, dos limites da

intervenção do Estado e da própria Constituição.40

Isto porque as Constitui-

ções da segunda metade do século passado são, em regra, compromissó-

rias41

e voltadas à construção do Estado do Bem Estar Social mediante o

cumprimento de programas de redistribuição de riqueza, mitigação da po-

breza, relativização da propriedade privada (função social, reforma agrária,

etc.) e relativização da autonomia da vontade nos contratos (proteção ao

consumidor, vedação de cláusulas abusivas), enfim, buscava a garantia de

Direitos Fundamentais. Este indicativo constitucional é apontado como um

fator prejudicial, dado que não atrai o capital internacional e, desta forma,

implica na estagnação econômica. Em nome do crescimento econômico, en-

tão, na perspectiva de fins, indica-se o receituário neoliberal capaz de tornar

o país eficiente. Um alto custo para garantia da propriedade e cumprimento

dos contratos torna – dizem – o país menos atrativo (custo/benefício). A ba-

tizada luta pela “estabilidade econômica", guindada à condição de “grau ze-

ro” (Barthes) implica na manipulação do conceito para que se entenda como

uma unidade de desígnios, em nome de todos, apagando as diferenças polí-

ticas e sociais. A internacionalização do “mercado sem fronteiras" pratica-

mente obriga uma uniformização judicial dos países baseada no custo/bene-

fício para que se tornem competitivos. O Mercado mundial impõe regras cla-

ras em todos os territórios (ainda) nacionais, mitigando a Soberania. Este é

40 AVELÃS NUNES, António José. A Constituição Européia. A constitucionalização do neoliberalismo. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 63-118: “Salienta-se desde logo o facto de a CE considerar ‘liberdades fundamentais’ não aquelas que em regra integram o núcleo dos direitos, liberdades e garantias, mas antes ‘a livre circulação de pessoas, serviços, mercadorias e capitais, bem como a liberdade de estabelecimento’. Estas são as liberdades do (grande) capital (sobretudo o capital financeiro).” (…) “Mas os autores desta ‘Constituição’, que decidiram não fazer referência ao deus dos cristãos, escolheram outro deus omnipresente, que pretendem impor aos cidadãos dos países da EU, um deus que deve ser venerado acima de tudo, um deus que tudo resolve, ainda que à custa de ´sacrifícios humanos’: o deus-mercado.” (…) “É o fim da política, a morte da política económica, o reinado do deus-mercado, enquanto ordem natural, espontânea, que tudo resolve, acima dos interesses, acima das classes, para lá do justo e do injusto, como defendem os monetaristas mais radicais (ou mais coerentes) e todos os defensores da libertação da sociedade civil.” 41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coim-bra Editora, 2001; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Consitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constituicional. São Paulo: Malheiros, 2001; CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006.

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um dos fatores do imbricamento entre as tradições do civil law com o com-

mon law.

O estabelecimento de um critério, no caso, a eficiência, entendida co-

mo a melhor alocação de recursos, na perspectiva do mercado (ordem es-

pontânea), no território da AED, implica na avaliação das Instituições por

suas consequências (custo/benefício).42

No âmbito do Sistema Judiciário,

este cotejo acontece no registro (i) Macro: da organização e administração da

Justiça, especificamente no plano Legislativo e Organizacional do Ordena-

mento Jurídico (pluralista); e (ii) Micro: da decisão judicial stricto senso, inse-

rida no contexto do discurso jurídico. Em ambas dimensões procura reler a

estrutura e práticas do Sistema Judicial desde um ponto de vista específico,

num embate que transcende a simples mudança de critério (jurídico para

econômico), mas de tradições jurídicas (common law e civil law) e filosóficas

diversas, pretendendo a unificação do discurso mundializado. De um lado

indica ajustes estruturais43

no Poder Judiciário, inclusive com formas alterna-

tivas de resolução de conflitos (arbitragem e mediação), por outro, a partir

do pragmatic turn refunda a Teoria da Decisão Judicial pelo critério da maxi-

mização de riqueza, levado a efeito por agentes racionais enleados num pro-

cesso de desenvolvimento social.44

Há uma rearticulação interna do Direito

pela intervenção externa (e decisiva) da Economia, no que se pode chamar de

“Economização do Direito”.45

De qualquer forma, o estranhamento entre Law and Economics com o

Direito herdado da Modernidade acontece, de logo, pela ausência de produ-

ção legislativa conforme os critérios apontados economicamente. A tensão

que se instala é a da revisão do ordenamento jurídico e da mentalidade dos

atores jurídicos ao menor custo econômico possível. A resistência a uma

total reforma é mais do que sabida, deslocando-se, assim, para estratégias

42 A relação custo/benefício estabelece em termos monetários o coeficiente da ação do ponto de vista do para-digma. A questão, antecipa-se, está nos critérios para o estabelecimento destes custos; critérios, não só no aspecto qualitativo, como também espaço/temporal. 43 KORNHAUSER, Lewis A. Judicial Organnization & Administration; Appel & Supreme Courts. In: En-cyclopedia of Law and Economics (www.encyclo.findlaw.com); CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006, p. 144. 44 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício: Um Diálogo com a Law & Economics Scholarship. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, pp. 65-178, 2002, p. 68. “E assim a enfrentar a relação complexa que vincula a jurisdictio enquanto estrutura à jurisdicitio enquanto intenção (material) de realização… e ambas (ainda que porventura em planos distintos) às expectativas (e exigências) de uma juridicidade autónoma.” 45 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício: Um Diálogo com a Law & Economics Scholarship. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, pp. 65-178, 2002, p. 89: “Uma estratégia global, insista-se, capaz assim mesmo de se projectar numa espeficificação táctica racionalmente sustentada (iluminada pela ordem de fins, macroscopica-mente inteligível decidida pela primeira). Porque outro é certamente o problema dos comportamentos estraté-gicos individuais. (…) Só estaremos em condições de reconstituir a prática judicial como uma pragmática determinada (entre outros objectivos-goals) pela finalidade da wealth maximization se pudermos autonomizar um plano de relevância que permaneça imune aos comportamentos estratégicos dos operadores envolvidos.”

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 89

mais eficientes de interferência e colonização. Uma preocupação de redire-

cionar o sentido histórico (da tradição), a partir de novas coordenadas her-

menêuticas e o compromisso inalienável (como se fosse Direito Funda-

mental) com a “Boa Governança” do Estado e o compromisso (absoluto) com

o “Livre Mercado”, esquecendo-se das conquistas democráticas.46

Há uma

inescondível sedução pelos pressupostos lógico-racionais da Análise Econô-

mica do Direito. A premissa de que todos atuam como sujeitos racionais,

capazes, pois, de tomar decisões a partir de um domínio dos atos da vida,

gera, no seu cúmulo, a adesão irrefletida aos seus fundamentos, na perspec-

tiva da assunção de um lugar racionalizado, enfim, de encontrar um lugar -

social e jurídico indicado como sendo apto ao enfrentamento da sociedade

contemporânea (complexa e global). Um encantamento sedutor... que cobra

um preço, caro.47

A apuração deste preço democrático, para efeito deste -

ensaio, derivado de um maior48

, enfrentará, de maneira crítica e direta, o

modelo da Law and Economics. Será, portanto, uma crítica ao modelo, espe-

cialmente a pretensão megalomaníaca de Posner.

A possibilidade de crítica aos fundamentos da AED depende da percep-

ção de que, desde o início, o critério do Sistema é diverso, daí a incomensu-

rabilidade, isto é, a impossibilidade de se fazer uma crítica aos seus pressu-

postos a partir exclusivamente do Direito. É preciso adentrar-se no campo

da Economia. E esta primeira barreira é materializada pela matemática e o

desconhecimento dos fundamentos econômicos latentes. O segundo obstá-

culo pode ser indicado pela tradução do bem estar econômico como um

dogma a ser acolhido pelo Direito. A terceira restrição pode se dar pelo cará-

ter heterodoxo de sua imposição, ou seja, sedutoramente, sem capacidade

de reação ao “discurso único". Com efeito, o discurso neoliberal se apodera

do jurídico de maneira instrumental e avassaladora. Isto porque há um ines-

46 CANOTILHO, J. J. GOMES. Brancosos e Interconstitucionalidade: Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra. Almedina, 2006, pp. 325-334. “Como se sabe, trata-se de um conceito gerado no âmbito da economia e política do desenvolvimento e que, nos tempos mais recentes, adquiriu direi-tos de cidade no contexto das ciências sociais. (…) Good governan-ce significa, numa compreensão normati-va, a condução responsável dos assuntos do Estado. (…) Em segundo lugar, a good governance acentua a interdependência internacional dos estados, colocando as questões de governo como problema de multilatera-lismo dos estados e de regulações internacionais. Em terceiro lugar, a ‘boa governança’ recupera algumas dimensões do New Public Management como mecanismo de articulação de parcerias público-privadas, mas sem enfatização unilateral das dimensões econômicas. Por último, a good governance insiste novamente em questões politicamente fortes como as da governabilidade, da responsabilidade (accountability) e da legitima-ção.” Todavia, (…) “Fica também calro que a ‘good governance’ não pode consistir numa simples política de alocação de recursos e de boas práticas orçamentais, se necessário autoritariamente impostas, com desprezo dos direitos fundamentais humanos e dos princípios basilares da democracia e do Estado de Direito. Compre-ende-se, assim, os esforços de uma significativa parte da doutrina na firme elevação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais a pré-condição básica de qualquer boa governação contra as tentativas de, a partir de teorias da ingovernabilidade, legitimar uma qualquer ‘metagovernação’ ancorada na violência, na ideologia e nos interesses.” 47 MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso neolibe-ral (Law and Economics). Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), n. 06, pp. 15-34, 2008. 48 MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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condível desconhecimento das regras formais do funcionamento do mercado

pelo campo do Direito. De regra o ensino da Economia se dá nos limites da

“Economia Política” colonizada ou de instrumentos fiscais específicos, tor-

nando o diálogo intersubjetivo (quase) impossível. O resultado é o embate de

forças, no qual o discurso econômico prepondera justamente porque no

centro do mercado existe apenas um vazio iluminado: o nada. Uma máquina

kafkiana sem rosto nem vontade centralizada; é impossível se estabelecer

materialmente o modo de seu funcionamento. Daí sua eficácia e dificuldade

de compreensão crítica porque o Direito – na versão moderna – pensa equi-

vocadamente numa vontade central: única, coerente e completa. Assim é que

um dos equívocos da crítica formulada ao neoliberalismo aconteça pela pre-

tensão de dominá-lo, na totalidade, pela reflexão racional, a partir de um

princípio unificador substancial. O neoliberalismo parte de um princípio for-

mal.49

Logo, os discursos críticos acabam sendo de tão pouca eficácia, pois

não atacam este significante.50

A proliferação do discurso técnico-econômico implica na – aparente –

despolitização do jurídico. As consequências podem se fazer ver na maneira

pela qual os conflitos sociais são encaminhados, ou seja, na lógica contratual

de custos/benefícios sociais, sem uma vinculação normativa estrita. Longe

de se defender um retorno (saudosista) ao normativismo (positivismo) e sua

maneira formalista de compreender o mundo, pretende-se demonstrar como

este diálogo opressor e sem “hospitalidade" entre o neoliberalismo sobre o

Direito tornou a teoria da decisão judicial um instrumento a ser medido pela

“eficiência do provimento". Para além da resolução dos conflitos (cível) ou

caso penal,51

percebe-se a colocação da decisão judicial numa cadeia de sig-

nificantes que deve, necessariamente, guardar uma parametricidade com as

diretrizes econômicas, transformadas em critério do sistema decisório. Esta

intrincada relação não se faz tranquilamente, mas ao preço de muita mani-

pulação ideológica (Zizek) e “violência simbólica" (Bourdieu). O jurídico é

transformado, assim, numa esfera técnica aparentemente despolitizada. O

preço de tal “lugar” é o do desfazimento da Democracia e o do esvaziamento

do que se denominou Justiça Social.52

O ponto de vista econômico é trazido

como um a priori indiscutido, verdadeiro dogma sagrado. A proeminência do

discurso economicista é pré-dado; único caminho adequando ao sujeito (di-

49 HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade…, v. I, p. 40. 50 DUSSEL, Enrique. Hacia una Filosofia Política Crítica. Bilbao: Desclée, 2001, p. 9. 51 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1998. Não se pode equipara lide com «caso penal» por se tratarem de registros diversos. O processo penal, entendido como Direito Fundamental, não pode ser renunciado, negociado, enfim, não pode ser tratado como um direito disponível. A Law and Economics, por suas noções, aterra a distinção, proporcionando a livre negociação, como se mercado fosse, da pena. E isto é insustentável. Neste escrito não se abordará a questão penal. Enten-de-se que ela demanda a construção de outros alicerces de crítica. O que se pode dizer, com certeza, é que a Law and Economics possui uma concepção de Direito e Processo Penal anti-democrática, pois desconsidera os Direitos Fundamentais. 52 AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos..., p. 118.

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to) racional. Com a introdução do critério rígido da eficiência econômica a

resposta está garantida, não obstante seu conteúdo variável no tempo, espa-

ço e contexto. É a tradução do discurso único no campo do Direito.53

Por outro lado, é no mínimo curioso que o modelo propugnado pelo

neoliberalismo, especialmente Hayek, se aproxime, na estrutura, do modelo

de Ferrajoli. Tanto Hayek como Ferrajoli fundamentam suas propostas teóri-

cas na impossibilidade de um “Estado Ilimitado”, ou seja, é preciso colocar-

se limites democráticos ao Estado. Buscam, para tanto, a contribuição teórica

de John Locke.54

Defendem, ambos, a existência de Direitos não transferidos

para a esfera estatal e que, para usar a gramática de Ferrajoli, encontram-se

na “esfera do indecidível". De sorte que o sistema lógico de ambos é similar.

A variação (manipulação) encontra-se justamente nos significantes que da-

rão ensejo a este critério. Enquanto para Ferrajoli se trata de “Direitos Fun-

damentais”, para Hayek a propriedade privada e a autonomia contratual

constituem este limite estatal. Com esta divergência de critério do Sistema,

os caminhos “substanciais" restam distintos. Isto demonstra que a modifica-

ção do princípio da cadeia do Sistema altera o sentido dos significantes pos-

teriores. Por este motivo pode-se entender porque Posner insiste tanto na

maximização da riqueza como critério da decisão. Os significantes trazidos à

colação na cadeia metonímica acabam enleados na trama colonizada. Reside

justamente na alteração do significante primeiro uma das possibilidades

mais eficazes de resistência. De pouco adianta a discussão crítica posterior

se houver aceitação do critério, uma vez que condiciona o sentido.

Anote-se, também, que a Constitucionalização da “esfera privada" tor-

nou a “esfera pública" ampliada55

e gerou um paradoxo. Significou a possibi-

lidade retórica de ingerências estatais no que antes era protegido por Direi-

tos Fundamentais (intimidade, liberdade de expressão, etc.). Os Direitos

Fundamentais acabam se tornando desprovidos de suas características e

submetidos aos dois únicos Direitos Fundamentais do Mercado: propriedade

e liberdade de contratar. Pode-se dizer que há uma “contratualização/priva-

tização neoliberal da esfera pública” ou o que denomina Aroso Linhares co-

mo Teoria Horizontal-Pragmática dos Direitos.56

A metáfora explicativa –

como mito fundante – da Grande Sociedade é reificada no contrato, mas com

53 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Economia. Uma introdução ao Movimento Law and Economics. Revista Brasileira de Direito, n. 2, ano I, pp. 40-55, 2006: “O movimento direito e economia, em contrapartida, vincula-se ao neoliberalismo, do qual é porta-voz forense, e cujos ideais de eficiência defende. (…) Para Posner, a importância da toga, se não utilizada para realizar os objetivos econômicos da sociedade, reveste-se de um nada absoluto, e isso é muito mais do que mero oxímoro.” 54 LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimen-to humano. São Paulo: Abril, 1973, p. 46. 55 O discurso da constitucionalização das demais esferas do direito acaba sendo um tiro que saiu pela culatra. Com a justificativa de interesse público generalizado e ampliação do espectro constitucional, tudo passa a jus-tificar a necessidade de intervenção para realinhamento às regras do mercado. 56 AROSO LINHARES, José Manuel. A Unidade dos Problemas da Jurisdição ou As Exigências e Limites de uma Pragmática Custo/Benefício…, p. 161.

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a ressignificação do sentido, pelo qual os direitos são horizontalmente con-

siderados e valorados para efeito de quantificação e ensejar as trocas no

mercado (jurídico). Pode-se negociar tudo, em nome da liberdade. Ao invés

de o Estado estipular limites desde uma perspectiva pública, a AED acolhe a

mediação formal do mercado e suas auto-regras cambiantes, desprezando a

“esfera do indecidível". As normas gerais e abstratas do mercado apontariam

à maximização de riqueza, embora com alguma atividade Estatal de mitiga-

ção das externalidades. O paroxismo desta liberdade de contratar se deixa

ver quando transforma os próprios sujeitos em mercadorias e gera, no seu

cúmulo, um grande “Shopping Humano”, onde tudo é comprável, vendável e

permutável.57

Neste caminho se reconhece que não há salvação transcendente; ine-

xiste um método absoluto, universal, capaz de dar o conforto prometido

pela Law and Economics. A decisão judicial não confere a verdade anunciada

pelo critério, salvo pela fé – que remove retoricamente montanhas –, baseada

no mito Divino, da Ciência ou do Mercado que estruturalmente funcionam no

mesmo lugar e podem aplacar a angústia, tamponar a falta, dos sujeitos,

mas é incapaz de impedir o reconhecimento de seus limites. Por este motivo,

Feyerabend58

anda com acerto ao aduzir que as metodologias são incapazes

de orientar adequadamente as atividades (ditas) científicas e os métodos

devem ser vistos como ferramentas, utilizáveis conforme a necessidade, sem

que se possa, assim, eleger definitivamente “o método", dada a “incomensu-

rabilidade" dos paradigmas (Kuhn).59

O que resta, pois, é o gume da lingua-

gem e suas artimanhas retóricas, pelas quais apenas se pode cercar, sem

nunca prender, a pletora de significantes.60

Há limites de sentido nos textos

normativos61

que são desconsiderados em nome da finalidade maior da

pragmatic adjudication.

Partindo-se do Mercado como Instituição necessária, mas não suficien-

te, o pensamento neoliberal reconhece a necessidade da manutenção do

57 O sintoma disto pode ser visto quando se defende a venda de órgãos humanos, de crianças no caso de ado-ção, a liberação da droga, enfim, uma série de pontos cujo único critério é o econômico e os seres humanos rebaixados à condição de simples mercadorias. A própria honra e a dignidade são cotadas nas diversas indeni-zações de danos (ditos) morais… 58 FEYRABEND, Paul. Contra o método… 59 RORTY, Richard. Pragmatismo..., p. 166: “Outra coisa é dizer, corretamente, que não há um terreno neutro e comum no qual um filósofo nazista e eu possamos nos encontrar e discutir nossas diferenças. Aos olhos desse nazista, eu sempre parecerei estar fugindo da discussão das questões cruciais, argumentando em círcu-los. Aos meus olhos, ele parecerá estar fazendo a mesma coisa.” O exemplo pode ser aplicável aqui. Um adep-to da AED pode fazer a mesma crítica e vice-versa. 60 MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e Sistema Constitucional: a decisão judicial entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. 61 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.). Diálogos Constitucionais…, p. 229 “As palavras da lei, porém, não são desprovidas de um valor que já antes se aceitava, razão por que foram utilizadas – em detrimento de outras –, sempre na doce ilusão de terem a capacidade de segurar o sentido. Nada seguram, todavia, como demonstram os infindáveis exemplos. Há, sem embargo, um conteúdo na lei, que se não pode ignorar.”

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 93

Estado, como uma ferramenta de conserto. Não como um agente econômico

dirigente, mas garantidor reformado da Instituição maior: o mercado. Assim,

desde este ponto de vista, há um caráter acessório do Sistema Jurídico. A sua

função é a de reduzir os “ruídos/externalidades" capazes de impedir um

utópico “custo zero” de transação. A intervenção do Estado somente é con-

vocada como último recurso. Nesta perspectiva o Estado é reduzido em suas

atividades, isto é, passa a ser um Estado Mínimo, permanentemente fixado

para além das fronteiras do mercado. O Estado fica no “banco de reservas"

sendo convocado a participar do jogo do mercado sempre que houver ne-

cessidade da redução/exclusão de ruídos internos em que a força, desde

antes legitimada pelo Estado, possa se justificar; fica em posição de espera.

A proeminência é a de mecanismos próprios do mercado e/ou privilegiando-

se meios privados de resolução de conflitos (ADRs). Assim é que somente

nos casos limites é que a convocação do Estado se faria presente, justifican-

do o sacrifício da auto-regulação, mediante uma intervenção subsidiária.

Consequência disto é a redução das possibilidades de intervenções estatais,

sob o fundamento de que os próprios sujeitos – donos do direito de liberda-

de inalienável – possam buscar por si e no ambiente do mercado, as melho-

res escolhas.62

Somente as condutas lesivas ao ideal funcionamento do mer-

cado poderiam ser implementadas, sempre na perspectiva de devolvê-lo ao

seu funcionamento perfeito. O princípio unificador do Sistema é o vazio ab-

soluto do mercado. Qualquer intervenção do Estado precisa estar justificada

por “lesividades mensuráveis" do funcionamento do mercado. Não pode pro-

curar intervir no funcionamento natural do mercado para o efeito de conferir

direitos (sociais), na trilha de uma Justiça Social.

Posner,63

ao se filiar parcialmente ao neopragmatismo, mantêm o lega-

do dos clássicos (Pierce, James e Dewey), manipula a herança filosófica para,

convocando Benjamin Cardozo,64

justificar a intervenção judicial alinhada ao

bem estar social, enjeitando, assim, a tradição ocidental do racionalismo

jurídico. O Judiciário seria composto por homens de acordos sobre a decisão

correta no campo de uma matriz de verdade diversa. Os textos jurídicos se-

rão ferramentas para escolha da melhor decisão conforme o critério econô-

62 CARTER, Lief. H. Derecho constitucional contemporaneo: la Suprema Corte y el arte de la política. Bue-nos Aires: Abeledo-Perrot, 1992, p. 181: “En esta perspectiva, la política debe conferir ‘derechos’ a aquellos que podrian ganarlos de todas formas en la competência privada, y concentrarse en minimizar los costos de las transacciones en negocios privados e en facilitar la compensación social.” 63 POSNER, Richard A. Overcoming Law…, pp. 394-396. 64 CARDOZO, Benjamin. N. A natureza do processo judicial. Trad. Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fon-tes, 2004.

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94 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

mico,65

sem que os critérios hermenêuticos lógicos de um Direito, alicerça-

dos em Direitos Fundamentais, possam oferecer a melhor resposta ao mer-

cado. Dito de outra forma, a Law and Economics analisa o impacto jurídico

na economia desde uma perspectiva interna, não de campos distintos. Impli-

ca em analisar as consequências do Direito na estrutura econômica, partindo

de conceitos previamente dados sobre a conformação do Direito, de Justiça,

de Teoria do Direito, de Moralidade, alterando o que estiver em desconfor-

midade. O cotejo destes elementos é feito diante dos critérios de maximiza-

ção do sistema econômico em detrimento a qualquer outro, especialmente

de Justiça Distributiva. A escolha pela matriz filosófica do pragmatismo de-

corre justamente do acolhimento da deficiência de fundamentação em nome

da finalidade. Posner defende a maximização de riqueza (do valor agregado

a todos os bens e serviços, econômicos ou não-econômicos como a melhor

justificativa filosófica da atuação do Sistema de Justiça. O valor significa o

maior valor a que o que o titular do bem/serviço quer para dele se separar

ou o que o não-titular está disposto a pagar para o ter. A riqueza, por sua

vez, é o valor total dos bens/serviços (econômicos e não-econômicos) e é

eficiente quando potencializada nos usos mais rentáveis, sem distinção entre

Direitos Fundamentais e Direitos Patrimoniais. A AED, todavia, não pode ser

reduzida a um método de interpretação eficiente. Ela é muito mais. Repre-

senta uma ruptura no modelo hermenêutico ocidental, tencionando encon-

trar-se num universo filosoficamente pragmático. Esta mudança da matriz

filosófica é o meio pelo qual a lógica causa-efeito é desconsiderada, passan-

do-se a usar o padrão da eficiência. A manipulação é maior se considerada

deste o paradigma da Filosofia da Consciência. Já no caso da Filosofia da

Linguagem, acolhida de bom grado neste escrito, o que se dá é a percepção

de que os significantes são manipulados para se postarem de maneira diver-

sa, mas vinculados ao significante um: a eficiência, a qual, de seu turno, mo-

difica-se conforme as necessidades do caso. É uma forma de interpretar que

parte de escolhas ideológicas pré-dadas, indiscutidas e encantadoras. A Jus-

tiça equivale ao significante eficiência e, portanto, pretende evitar que se

aponte a fragilidade da teoria. Mas não consegue. Definitivamente.

65 MACHADO FILHO, Sebastião. Pragmatismo jurídico crítico de Ricard A. Posner e sua análise econômica do direito. Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série n. 9, Brasília, pp. 79-94: “A interpretação dos textos -legais não é um exercício de lógica, e seus limites são tão elásticos que põem em dúvida a utilidade dos con-ceitos. Os pragmatistas indagarão qual das possíveis soluções produzirá as melhores consequências, uma vez reconhecida a dificuldade da problemática natureza da interpretação das leis. (…) De outro lado, é improvável que um juiz pragmatista se comova com considerações sentimentais, como piedade, ou com tradições morais. Mas é sempre admissível que pelos menos alguma parte do discurso do formalismo legal – no que concerne à preocupação com uma rigorosa adesão aos precedentes judiciais – seja considerada como o melhor guia para a prolação da decisão judicial.”

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 95

Para terminar, a questão crucial: como reinventar o espaço jurídico-

político nacional vinculado à noção de Soberania no contexto da globalização

de hoje? Um dos caminhos é o da necessidade de suspender o espaço neutro

da lei. A premissa ideológica do Mercado Livre, por seu centro vazio (absolu-

tamente vazio) promove a busca de satisfação dos interesses particulares as

quais, no conjunto de ações individuais, seria capaz de garantir um equilí-

brio global. Enfim, perdem-se os registros Simbólicos de uma Referência,

passando-se tudo ao sabor de um Mercado (re)flexível. O Mercado possui

uma dimensão de risco inexorável66

. Não se pode prever, com segurança, o

resultado de um dia de “bolsa de valores” e as repercussões nas vidas das

pessoas do mundo inteiro, dadas as repercussões globais. O Mercado, por

não possuir (e ser impossível) uma autoridade central, pela ausência de es-

tratégia, acaba regulando a interação de maneira formal. Não raro os (perdi-

dos) sujeitos buscam a redenção, ou segurança, em delírios coletivos, dentre

os quais a Religião e as Teorias da Conspiração (da sociedade do risco67

, da

poluição ambiental, do terror, etc...), acabam se constituindo em ilusórios

ancoradouros.

Giorgio Agamben aponta que o poder encontra-se na exceção, a saber,

na possibilidade de que se exclua a regra de aplicação geral e se promova,

para o caso, uma outra decisão. Este poder encontra-se indicado pela estru-

tura, segundo a qual, existe um lugar autorizado a escolher, o qual encon-

tra-se, ao mesmo tempo, dentro e fora de uma estrutura jurídica, conforme

o pensamento de Carl Schmitt, na interseção entre o jurídico e político. Esta

distinção, todavia, entre jurídico e político precisa ser problematizada, não

se podendo colocar, em absoluto, incomunicáveis, apesar de ocuparem luga-

res diversos (Zizek e Werneck Vianna). Neste pensar, segundo Agamben, “o

estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode

ter forma legal.”68

Com efeito, a representação Simbólica compartilhada da noção de Es-

tado perdeu seu caráter de Referência, ou seja, não se trata mais de um cen-

66 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999; HARDT, Michel; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001; VIERIA, Liszt. Argonautas da Cidadania. Rio de Janeiro; Record, 2001; Arnaud, André-Jean. Governar sem Fronteiras: entre globalização e pós-globalização. Crítica da Razão Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-Nação. Trad. Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1999; RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Demo-cracia. Trad. Fernando Marques. Lisboa: Mareantes, 2006; FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo mo-derno. Trad. Carlo Coccioli et. São Paulo: Martins Fontes, 2002; SILVA, Karine de Souza. Direito da Comu-nidade Européia: Fontes, Princípios e Procedimentos. Ijuí: UNIJUÍ, 2005; LEGENDRE, Pierre. El Tajo: discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia. Trad. Irene Agoff. Buenos Aires: Amorrortu, 2008; SPENGLER, Fabiana Marion. Tempo, Direito e Constituição: reflexos na prestação jurisdicional do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 67 O problema da crítica da sociedade do risco é que mantém o estatuto do sujeito da Modernidade, a saber, o da plena racionalidade, capaz de escolher e decidir ponderadamente sobre as suas ações. 68 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.

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96 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

tro, sob o qual giram as demais instituições69

e pessoas, pois o centro – Es-

tado – foi deslocado e não substituído pelo Mercado, justamente porque su-

as características, fundadas na liberdade extremada, sem regras, impede

qualquer autoridade central70

. Sem ela, já se sabe, não há limite. E sem limi-

tes, não há ilícito, nem ética que se sustentem no espaço público. Por isto

Boaventura de Souza Santos dirá: “A erosão da soberania do Estado acarreta

consigo, nas áreas em que ocorre, a erosão do protagonismo do poder judi-

cial na garantia do controle da legalidade.”71

Acrescente-se, de outro vértice,

que a fusão “forçada” de tradições jurídicas incrementa esta perda de refe-

rentes. A doutrina e jurisprudência de países estrangeiros, acompanhada dos

órgãos internacionais, passam a influenciar, cada vez mais, a hermenêutica

interna. Os protagonistas do processo decisório se valem de argumentos

expendidos noutras tradições para decidir temas internos. A internet e as

facilidades de pesquisa atuais, acrescidas da difusão acadêmica de algumas

teorias, fornecem os meios para que sejam convocadas construções de ou-

tras tradições para compor o sentido interno. De uma lado há uma atitude

complementar e, por outro, subversão da ordem posta pela inserção de

pressupostos filosóficos distintos, como é o caso da Law and Economics.

Assim é que a noção de Soberania como um atributo rígido dentro de um

território deixa de ser forte para se transformar num conceito fraco, em que

o Estado não consegue mais, por si, sustentar. Neste espaço paradoxal, pois,

resta apontar para o limite, dar-se conta do que se passa e, de alguma for-

ma, resistir72

!

69 BADIOU, Alain. De um desastre oscuro: sobre el fin de la verdad de Estado. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. 70 CASTEX, Paulo Henrique. Os blocos econômicos como sociedade transnacional: a questão da Soberania. IN: BORBA, Paulo Casella. MERCOSUL: Integração Regional e Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 291: “relações que não transitam necessariamente pelos canais diplomáticos do Estado, mas que influem nas sociedades e revelam que nenhum Estado é uma totalidade auto-suficiente.” 71 SANTOS, Boaventura de Souza. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. O caso Português. Porto: Afrontamento, 1996, p. 29. 72 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2ª ed., p. XXX.

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Alexsandra Marilac Belnoski Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo. Mestre em Gestão Ambiental pela

Universidade Positivo. Advogada

A sociedade contemporânea é reflexo da Revolução Industrial, pela

qual foram incluídas as máquinas a vapor no processo produtivo, desenhan-

do um novo perfil da sociedade. Destaca-se que com essa modificação, a

produção se estabeleceu em grande escala, ou seja, os produtos eram in-

dustrializados com mais velocidade a partir de um padrão comum. Com a

padronização dos produtos e, consequentemente, a fabricação mais ágil, foi

possível a distribuição em larga escala. Frente a isso, se inicia a formação de

uma nova sociedade, a sociedade massificada.

Esse fato é relevante, vez que a partir do momento histórico da Revo-

lução Industrial, houve a transformação na forma de industrializar e comer-

cializar produtos, bem como do público a que se destinava. A sociedade de

massas, nada mais é do que a sociedade contemporânea, a qual consome

produtos fabricados de modo escalonado, sem a identificação do consumi-

dor, tendo as indústrias preocupação no aumento da sua linha de venda.

Na transformação da sociedade a informática tem papel importante,

haja vista a concepção dos programas de computador que auxiliam, acele-

ram e verificam toda a cadeia produtiva. Além disso, no final da década de

90, com a implementação da rede mundial de computadores nas empresas,

a divulgação e venda dos produtos foi facilitada. A informática ampliou a

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104 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

possibilidade de comercialização em todo mundo com o mero uso do com-

putador.

É possível perceber que os computadores e seus programas contribu-

em para a fortificação do mercado de consumo, já que atuam de vários mo-

dos, quais sejam, programas de computador desenvolvidos para o fabrican-

te, distribuidor, vendedor e até mesmo para o consumidor final, que é bene-

ficiado com o uso da rede mundial de computadores para a aquisição de

qualquer produto que esteja disponível.

Com essa alteração ao longo dos anos e a inclusão dos sistemas de in-

formática para viabilizar a comercialização, algumas preocupações se torna-

ram evidentes, em especial, com relação a proteção dos direitos daqueles

que desenvolvem os programas para as empresas, os seus “sites” e a plata-

forma de comércio eletrônico.

O foco central diz respeito ao direito do autor dessas ferramentas, pois

a velocidade da informação por meio do computador pode ser incontrolável.

Indubitavelmente, o legislador se atenta para esse fato e inclui os autores

dos programas de computador nas normas que protegem os criadores, in-

cluindo norma específica para tratar do tema.

No Brasil, os desenvolvedores de sistemas computacionais são prote-

gidos pelo ordenamento jurídico, dispostos na Lei No. 9609/98, denominada

Lei de “Software” e na Lei No. 9610/98 relativa aos Direitos Autorais.

Os direitos autorais fazem parte da propriedade intelectual, na qual a

imaterialidade decorrente da criação humana devidamente externada se su-

jeita a tutela do Direito. Ao externar a sua criação, seja de natureza artística,

literária, científica ou desenvolvimento de programa computacional, o autor

estabelece uma relação jurídica devidamente protegida em lei, que é consi-

derada de cunho pessoal-patrimonial.

A Lei 9610/98 dispõe nos artigos 24 e 28 os direitos morais e patri-

moniais, sendo que o seu desrespeito representa possível pleito de indeni-

zação por danos morais1 e materiais

2 a favor do autor da obra.

A título de direitos morais, a legislação determina ao autor: a reivindi-

cação, a qualquer tempo, da autoria da obra; a inclusão do seu nome, pseu-

dônimo ou sinal convencional na utilização de sua obra; a conservação da

1 "... são morais os danos e atributos valorativos (virtudes) da pessoa como ente social, ou seja, integrada à

sociedade (como, v.g., a honra, a reputação e as manifestações do intelecto)(...)". BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos Direitos da Personalidade e dos Direitos Autorais nas Atividades Empresariais, Revista dos Tribu-nais, SP, 1993, p. 24 2 “... atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima, entendendo-se como tal o conjunto de relações jurídi-

cas de uma pessoa apreciáveis em dinheiro." - CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª edição, 3ª tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.71.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 105

obra inédita; a oposição de quaisquer modificações ou à prática de atos que

prejudiquem ou atinjam a sua reputação ou honra; a modificação da obra,

antes ou depois de utilizada, inclusive com a retirada da obra de circulação;

a suspensão de qualquer forma de utilização já autorizada, desde que impli-

quem em afronta à sua reputação e imagem; o acesso a exemplar único e

raro da obra, quando se encontre em poder de outrem.3

Com relação aos direitos patrimoniais, a legislação determina que o

autor possui o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária,

artística ou científica. Portanto, é necessária a sua autorização prévia e por

escrito para que a obra seja utilizada para reprodução parcial ou integral;

para a sua edição; para a sua adaptação, inclusive de arranjo musical ou ou-

tras transformações; para a sua tradução para qualquer idioma; a sua inclu-

são em fonograma ou produção audiovisual; para a sua distribuição, quando

não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou ex-

ploração da obra; para a sua distribuição para oferta de obras ou produções

mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que

permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la

em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a de-

manda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por

qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário; a utilização, di-

reta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante represen-

tação, recitação ou declamação; execução musical; emprego de alto-falante

ou de sistemas análogos; radiodifusão sonora ou televisiva; captação de

transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva; sonorização

ambiental; a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo asseme-

lhado; emprego de satélites artificiais; emprego de sistemas óticos, fios tele-

fônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares

que venham a ser adotados; exposição de obras de artes plásticas e figurati-

vas; a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a mi-

crofilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; quaisquer ou-

tras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.4

A lei contempla amplamente os direitos morais e patrimoniais do au-

tor, fixando os parâmetros para o seu uso. Assim, sendo os mesmos viola-

dos, é possível buscar em juízo a devida reparação pelo lesado, sendo o

direito extensivo aos seus familiares, já que há previsão legal de que, com a

morte do autor os direitos morais são transmissíveis aos seus sucessores.

Ressalta-se que o legislador incluiu na Lei dos Direitos Autorais o arti-

go 7º, § 1º prevendo que: “Os programas de computador são objeto de le-

gislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam apli-

cáveis.”

3 Previsão expressa do artigo 24 da Lei No. 9610/98.

4 Previsão expressa do artigo 29 da Lei No. 9610/98.

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106 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

É importante destacar a redação do artigo 2º, § 1º da Lei de “Software”

sobre os direitos morais e patrimoniais, com a seguinte previsão: “Não se

aplicam ao programa de computador as disposições relativas aos direitos

morais, ressalvado, a qualquer tempo, o direito do autor de reivindicar a pa-

ternidade do programa de computador e o direito do autor de opor-se a al-

terações não-autorizadas, quando estas impliquem deformação, mutilação

ou outra modificação do programa de computador, que prejudiquem a sua

honra ou a sua reputação.”

Nessa linha, se faz necessária a análise conjunta das legislações para

tratar o tema, eis que, a Lei de “Software” é específica para os desenvolvedo-

res de programas de computadores

A partir da década de 90, os programas de computador estão inseridos

no cotidiano tanto das empresas quanto dos indivíduos brasileiros. A expan-

são da informática, nos últimos dez anos, ocorreu com extrema velocidade,

a ponto de ser designada como a Era Digital5. A dependência das ferramen-

tas tecnológicas e o acesso facilitado para a aquisição de computadores con-

tribuíram para a sua disseminação junto a população6.

Vale destacar que, a contrapartida do Governo Federal brasileiro com a

redução da carga tributária e o interesse na inclusão digital facilitaram a am-

pliação da informática no país, muito embora, há muito a ser feito nesse

sentido.

Com a ampliação do segmento, houve a necessidade da sua regula-

mentação, até mesmo porque, a informática desperta interesses econômicos,

e com isso, surge a legislação específica sobre o assunto, a Lei No. 9609/98,

conhecida como Lei de “Software”. A preocupação do legislador se voltou

para a proteção da propriedade intelectual dos programas de computador e

a sua comercialização, incluindo até mesmo penalidades e infrações.

O artigo 1º. da Lei de “Software” define o programa de computador da

seguinte forma: “é a expressão de um conjunto organizado de instruções em

linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer na-

tureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da

informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, basea-

dos em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para

5 (...) com o desenvolvimento tecnológico, verificou-se uma mudança radical nas sociedades modernas. Assim

como a roda representou a maior invenção da civilização primitiva, o computador revolucionou a civilização moderna, desencadeando a Revolução da Informação e a Era Digital.(...) GOUVEA, Sandra. O Direito na Era Digital – crimes praticados por meio da informática. Ed Mauá, Série Jurídica, p. 39. 6 ... “ a informação já não pode mais ser dispensada, quer pela qualidade, quer pela quantidade, pois se trans-

formou em novo bem jurídico, de primeiríssima ordem, para o homem contemporâneo...” - PAESANI, Liliana Minardi. Direito de informática: comercialização e desenvolvimento internacional do software. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. 121 p. (Coleção temas jurídicos, 2). p. 14.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 107

fins determinados.” A conceituação proposta pretendeu abranger toda e

qualquer forma de programas de computador, a fim de que aqueles que la-

boram na área estejam contemplados pelo resguardo da lei.

Salienta-se que o desenvolvedor está protegido independentemente de

efetuar o registro do programa junto ao órgão competente, Instituto Nacio-

nal da Propriedade Industrial (INPI), conforme prevê o artigo 2º, § 3º da Lei

de “Software.” Ocorre que, sem o devido registro a prova da autoria deverá

ser realizada pelo próprio autor, devendo ser contundente para que não ge-

rem dúvidas a esse respeito.

O registro do programa de computador, embora facultativo, atribui a

condição de autor àquele que efetuar o registro, devendo o mesmo apenas

apresentar a sua concessão em juízo, no momento de eventual discussão.7 É

importante informar que com o registro do programa de computador junto

ao INPI, o autor tem direito a sua exploração pelo período de cinqüenta anos,

a contar no primeiro dia de janeiro subseqüente a data da criação8.

O referido prazo está previsto em lei, assegurando ao autor inclusive o

reconhecimento internacional do seu registro.9 Apenas para elucidar, os pro-

gramas estrangeiros não têm obrigatoriedade de registro no Brasil, exceto se

as partes pretendam garantir direitos relativos às cessões de uso e explora-

ção.

Quanto aos direitos autorais, a legislação no artigo 6º. fez considera-

ções específicas, determinando os pontos que não são caracterizados como

ofensa ao autor, quais sejam, a reprodução, em um só exemplar, de cópia

legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou

armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de

salvaguarda; a citação parcial do programa, para fins didáticos, desde que

identificados o programa e o titular dos direitos respectivos; a ocorrência de

semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das

características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos nor-

mativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expres-

são; a integração de um programa, mantendo-se suas características essen-

ciais, a um sistema aplicativo ou operacional, tecnicamente indispensável às

necessidades do usuário, desde que para o uso exclusivo de quem a promo-

veu.10

7 A Resolução INPI No. 58, de 14 de julho de 1998, no artigo 1o, caput determina que: "o registro de progra-

ma de computador poderá ser solicitado ao INPI, para segurança dos direitos autorais a ele relativos, imedia-tamente após sua data de criação". 8 A data da criação é considerada aquela na qual o programa torna-se capaz de executar a função para que foi

projetado. 9 Tratado sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio Internacional -

TRIPs; Lei nº 9.609/98, art. 2º, § 4º 10

Previsão expressa do artigo 6º da Lei no. 9609/98.

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108 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

A legislação de “software” no Brasil apresenta as possibilidades para a

caracterização do autor como desenvolvedor do sistema. A especificação

contempla a obra individual, de colaboração e coletiva.

A obra individual é atribuída ao indivíduo que desenvolve o programa

de computador isoladamente. Nessa condição, os direitos sobre a obra di-

zem respeito exclusivamente àquele que a produziu, submetendo-se as re-

gras impostas pela Lei dos Direitos Autorais e a Lei de “Software”.

A obra de colaboração se caracteriza pela reunião de esforços de duas

ou mais pessoas, surgido a figura jurídica da co-autoria. Diante disso, a titu-

laridade da obra é compartilhada entre aqueles que a desenvolveram em

igual parte, salvo se contratado de forma diversa. Importa esclarecer que,

embora o compartilhamento em igual proporção seja adequado para o caso,

é possível que as partes envolvidas redijam um contrato específico para o

desenvolvimento do programa e por meio desse termo estabeleçam as con-

dições de trabalho e percentuais de participação, sem que, com isso, a legis-

lação seja afrontada.

A obra coletiva ocorre quando a mesma é realizada por diversas pes-

soas, porém organizadas por um coordenador. É originada pela composição

de trabalho de uma equipe devidamente supervisionada por um indivíduo ou

pessoa jurídica. Nessa modalidade, os direitos autorais também são compar-

tilhados, exceto se tratar de relação empregatícia entre as partes.

Em sendo o programa de computador desenvolvido sob encomenda

pela empresa ao funcionário ou com uso da sua tecnologia e recursos finan-

ceiros em horário de trabalho, é crível que o programa em questão se carac-

teriza como uma obra coletiva, sendo o seu titular o empregador.

Na situação apresentada, as partes devem negociar os valores a título

de direitos autorais, via contrato, para que o desenvolvedor não seja penali-

zado após a comercialização. Em sendo o desenvolvimento do programa

inerente a função do desenvolvedor, esse não está acobertado pelas regras

trabalhistas quanto ao sistema, devendo estipular os direitos decorrentes da

autoria em contrato específico. Esse entendimento é trazido por OPICE BLUM

e VAINZOF (2005), como se verifica na transcrição que segue:

...a titularidade para pleitear qualquer direito sobre o programa de com-putador, salvo estipulação em contrário das partes, será sempre do con-tratante que pactua com prestador de serviço para sua produção, bem com do empregador, durante a vigência de um contrato, ou que a pró-pria natureza do serviço enseje um vínculo empregador/empregado, in-clusive em relação a bolsistas, estagiários e assemelhados...

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 109

A Lei de “Software” contempla as possibilidades de salvaguardar os di-

reitos do desenvolvedor, e a Lei dos Direitos Autorais estabelece a penaliza-

ção a ser fixada em juízo face à violação dos direitos do autor.11

O avanço tecnológico permite o acesso às ferramentas de informática

por grande parte do público, mas da mesma forma que há o amplo acesso,

existem as cópias e divulgações de programas de computador sem autoriza-

ção.

A chamada pirataria nada mais é do que a reprodução e comercializa-

ção de um programa de computador sem a devida chancela do seu autor. A

pirataria atinge diretamente aquele que desenvolveu a obra, uma vez que

fica privado no recebimento dos direitos autorais. Porém, é imperioso ressal-

tar que além do autor, o indivíduo que adquire um programa pirata também

sofre as conseqüências daquele produto.

Como exemplos são citados a qualidade e a manutenção do programa

de computador, os quais não possuem garantia pelo indivíduo que comer-

cializa sem autorização, gerando prejuízos para o adquirente tanto no pro-

duto quanto no seu computador. Nessa condição, o consumidor final não

pode questionar a qualidade do produto junto ao fornecedor, haja vista que

a venda não ocorreu com autorização do autor, eximindo, assim a sua res-

ponsabilidade na eventual reparação.12

Ao comprar um programa pirata, o consumidor está contribuindo para

a cadeia de comércio ilegal do produto, participando na condição de recep-

tador da pirataria, o qual é devidamente tipificado no Código Penal brasilei-

ro.13

A pirataria não está vinculada unicamente ao consumidor final do pro-

duto, mas também é estendida ao revendedor e aquele que a reproduz in-

discriminadamente pela rede mundial de computadores. A distribuição de

cópias não autorizadas se realiza tanto no meio físico quando cibernético,

tendo ambas igual gravidade, podendo ser tipificados como conduta crimi-

nosa. Nas palavras de OPICE BLUM e FLORENCIO (2002), os crimes na área de

informática são tratados da seguinte forma:

11

“Art. 103. ... Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudu-lenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos. – Lei No. 9610/98 – Lei dos Direitos Autorais 12

Art.12... § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. – Lei 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor - 13

Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. – Código Penal -

Page 111: Revista Raízes Jurídicas

110 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

...Cumpre ressaltar que a legislação vigente aplicada aos crimes pratica-dos no meio físico, pode ser utilizada com perfeição, outrossim, para os delitos informáticos, ou para aqueles crimes que de alguma forma, utili-zaram o ambiente virtual....

Os autores entendem que a ação não deve ser pontual, mas sim de

forma cooperada com outros países, para que a questão da pirataria não

seja tratada de forma isolada pelo Brasil, até mesmo porque, com a facilida-

de do ambiente virtual, as ilicitudes não se limitam ao espaço territorial na-

cional:

...Necessária, também, a celebração de tratados internacionais que coí-bam as condutas criminosas no ambiente da Internet (como, p. ex. a ex-celente Convenção de Budapeste de 2001, também conhecida como Convenção sobre o Cybercrime), bem como uma política mundial para cooperação recíproca, dada a questão que envolve a extraterritorialidade desses crimes(...)

A Lei de “Software” estabelece as infrações e penalidades relativas aos

programas de computador14

, porém, mesmo com a previsão expressa, a

tendência em juízo é aplicação na norma em conjunto com o Código Penal

brasileiro, a fim de tipificar o delito dentro da norma específica. Vale infor-

mar que a redação da Lei 10.695/03 apresenta penalizações diversas para

aquele que reproduz a obra do autor visando ou não a lucratividade, alteran-

do o artigo 184 do Código Penal brasileiro15

.

Conforme o relatório oficial publicado pela Associação Brasileira de

Empresas de Software (ABES) a proliferação da pirataria no segmento tecno-

lógico se dá em face dos gravadores de CD e DVD disponíveis nos computa-

14

Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador: Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente: Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa. – Lei No. 9610/98 – Lei dos Direitos Autorais - 15

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º. Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. § 3º. Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonogra-ma, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 111

dores de acesso aos consumidores de uso doméstico. A ABES apresenta a

classificação da pirataria, conforme tabela que segue:

Falsificação

cópia e comercialização ilegal de software com a intenção de imitar o material original, buscando ilu-dir o consumidor, que pensa estar adquirindo uma versão original.

CD-ROM Pirata

duplicação ilegal e comercializa-ção das cópias com objetivo de lucro. Entretanto, diferentemente da falsificação, neste caso, o usu-ário sabe que está comprando uma cópia ilegal.

Integrador de Hardware

integradores de computador, so-bretudo aqueles que atuam no mercado informal, gravam cópias não autorizadas de software nos discos rígidos dos PCs vendidos, sem fornecer ao usuário a licença original.

Pirataria Corporativa

execução de cópias não autoriza-das de software para computado-res dentro de organizações. As cópias adicionais são feitas para uso na corporação (empresas, es-colas, repartições públicas, etc), sem a necessária aquisição de novas licenças.

Pirataria Cliente/Servidor

instalação de cópias ilegais no servidor, ou mesmo uma cópia original, mas não destinada ao uso em rede ou ainda, permitir mais usuários do que a quantida-de definida na licença.

Pirataria Online

software piratas podem ser trans-feridos e instalados através de downloads aos usuários.

Fonte: Relatório Oficial da CNI – Pirataria de Software no Brasil

Constata-se na tabela da ABES que a pirataria não é caracterizada ape-

nas por uma única conduta, mas sim, por qualquer isolado ou coletivo que

execute, instale, comercialize, transfira ou utilize programas de computador

não autorizados pelo o autor. É importante destacar que o referido relatório

oficial, afirma que a pirataria de software teve uma redução de dez pontos

percentuais em todo mundo em apenas oito anos, passando de 49% em

1994 para 39% em 2002.

Page 113: Revista Raízes Jurídicas

112 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Muito embora tenha sido constatada a redução, a pirataria ainda é tida

como um tema relevante para a área de informática, já que os danos atingem

diretamente autor e a economia e indiretamente o mercado de trabalho liga-

do a esse segmento.

Para que a situação seja minimizada, implica no apoio das autoridades

administrativas em conjunto com campanhas educativas para que se comba-

ta realmente a ilegalidade. A eficácia das ações será comprovada no decorrer

do tempo, haja vista a necessidade de conscientização da população em ge-

ral.

A partir disso, o Ministério da Justiça brasileiro em conjunto com a Sin-

dicato Nacional dos Técnicos da Receita Federal (SINDIRECEITA) lançaram o

Programa Nacional de Educativo de Combate à Pirataria no ano de 2006, com

o uso de uma linguagem informal e direta para atingir o maior número de

consumidores.

A campanha se intitulou “Pirataria tô fora! Só uso original”, cuja divul-

gação se deu em todas as mídias, inclusive com o lançamento de produtos,

como camisetas, adesivos, bonés, relativos a campanha. O objetivo central

da campanha é o combate dos produtos piratas e a defesa dos direitos da

propriedade intelectual e para isso contam com o apoio de outras entidades

que são focadas do desenvolvimento do cidadão e na ética.16

Dessa maneira, para que seja combatida a pirataria se faz necessário o

apoio institucional do Estado de forma veemente, reforçando os preceitos de

ética, moralidade e legalidade aos indivíduos.

As demandas envolvendo programas de computadores, na área cível,

tem, como um dos pontos centrais, a discussão em face da aplicação da pe-

na pecuniária ao infrator. A legislação de “Software” estabelece a fixação de

indenização de até 3.000 (três mil) vezes o valor do programa de computa-

dor violado. Porém, se faz necessário, analisar a posição do Superior Tribu-

nal de Justiça (STJ) quanto a esse aspecto.

O STJ reconhece que o programa de computador está equiparado a

obra literária, em face disso, está protegido pelo artigo 2º da Lei n.º

9.609/98, artigo 7º da Lei n.º 9.610/98 e 10, V, da Lei n.º 9.279/96. Para

tanto, aplica-se a artigo penalidade prevista no parágrafo único do artigo

103 da Lei de “Software”, a qual, no entendimento é vista como caráter pe-

dagógico.

16

Informações extraídas da página oficial da campanha na internet <http://www.piratatofora.com.br> acesso em 23.07.2009 às 1h15min.

Page 114: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 113

A discussão em torno de tema se dá, se a aplicação do referido artigo

deve ser feita no programa de computador sobre o valor de mercado ou so-

bre o valor de aquisição à época?

Esse questionamento é levado ao STJ para a referida análise e o posici-

onamento, até então, segue a tendência de aplicar o valor de mercado como

base de cálculo, eis que, é presunção para que se iniba o cometimento da

prática ilícita. A recente ementa do REsp 1185943 demonstra a posição do

STJ:

RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO AUTORAL. PROGRAMA DE COMPUTA-DOR (SOFTWARE). AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DOS ARTIGOS 186, 944 e 927, DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO NUMÉRICA DA CONTRAFAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 103, PA-RÁGRAFO ÚNICO DA LEI 9610/98. INDENIZAÇÃO DEVIDA NOS TERMOS DO ARTIGO 102 DA LEI 9.610/98. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. "A pena pecuniária imposta ao infrator não se encontra restrita ao valor de mercado dos programas apreendidos. Inteligência do art. 102 da Lei 9.610/98 - 'sem prejuízo da indenização cabível.' - na fixação do valor da indenização pela prática da contrafação" (REsp 1.136.676 - RS, Rel. Min. Nancy Andrighi) 2. O simples pagamento, pelo contrafator, do valor de mercado por cada exemplar apreendido, não corresponde à indeni-zação pelo dano causado decorrente do uso indevido, e muito menos inibe a sua prática. 3. O parágrafo único do art. 103 da Lei nº 9.610/98 tem sua aplicação condicionada à impossibilidade de quantificação dos programas de computador utilizados sem a devida licença, o que não é o caso dos autos. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e provido.( Processo REsp 1185943 / RS - RECURSO ESPECIAL 2010/0046959-9 - Relator(a) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140) - Órgão Julgador - T4 - QUARTA TURMA - Data do Julgamento - 15/02/2011 - Data da Publicação/Fonte - DJe 18/02/2011- RDDP vol. 98 p. 123 )

É possível perceber que o posicionamento do STJ, em matéria de viola-

ção autoral de programas de computadores, não atribui pena com caráter

compensatório, mas sim, punitivo, já que a finalidade é evitar a propagação

de ilícitos dessa natureza.

Page 115: Revista Raízes Jurídicas

114 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE SOFTWARE (ABES) – disponível na

inter-

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 117

Angela Couto Machado Fonseca Doutoranda do PPGD da UFPR. Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo

Ao tratar da noção de direito subjetivo, Michel Villey aponta para a falta

de interesse de boa parte dos juristas franceses em buscarem sua compre-

ensão histórica e filosófica, de modo que acabam por conceituá-lo dogmati-

camente e produzindo leituras inconsistentes e difíceis de alcançar para o

grande público1. Este mesmo autor lembra a origem do direito subjetivo no

ambiente do nominalismo de Guilherme de Ockham e da influência da ver-

tente jusnaturalista em sua construção, ambientes estes separados por con-

textos históricos diversos, nos quais, cada um a seu modo teria gerado con-

dições para a peculiaridade dos direitos subjetivos. No nominalismo ockha-

miano estaria marcada a ênfase numa rejeição de universais que não se refe-

rissem a nenhuma entidade concreta, viabilizando, assim, um desvio de

olhar para a particularidade e a individualidade. A referência jusnaturalista, e

no caso dos direitos subjetivos o jusnaturalismo moderno2, remete a um

campo de compreensão do homem e seus direitos naturais num plano de

abstração. É preciso abstrair, retirar o homem de qualquer rede de pertenci-

1 VILLEY, Michel. A Formação do pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

2 Para reflexões mais extensas acerca do jusnaturalismo moderno, vide WELZEL, Hans. Diritto naturale e

giustizia materiale. Milano: Giuffré, 1965, p. 163 e sgs. Bem como, PADOA SCHIOPPA, Antonio. Storia del diritto in Europa: dal medioevo all’ettá contemporânea. Bologna: Il Mulino, 2007, p. 329 e sgs. E GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, p. 33 e sgs.

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mentos sociais que o definem no interior de suas relações, para concebê-lo

a partir de características (ou atributos) originários. Neste caso, os direitos

naturais modernos se delineiam como expressões da natureza humana, po-

tências típicas do próprio homem, independentes de circunstâncias ou situa-

ções fáticas. Aqui é possível pontuar o caminho de uma compreensão jurídi-

ca que começa a construir o indivíduo como seu ponto de inflexão.

Tais seriam algumas fontes a partir das quais os direitos subjetivos en-

contram suas raízes.3 A partir da consideração destes ambientes, aqui me-

ramente esquematizados, podemos pinçar uma das características centrais

dos direitos subjetivos, que seria a de operar num campo de atendimento e

proclamação dos poderes do indivíduo. Eles remetem a uma associação entre

direito e “uma faculdade do sujeito, a um de seus poderes”4. Se de um lado

na visão pré-moderna, que não vislumbra a dimensão do direito subjetivo,

aponta-se o direito para o universo das coisas, seus usos e partilhas que

são atribuídos aos homens, por outro lado, na leitura que leva em considera-

ção o direito subjetivo o protagonista do direito é o próprio homem. O direi-

to pode ser lido como uma manifestação de suas capacidades e vontades

(lembre-se aí das concepções contratualistas como exemplos deste modo de

interpretar). Daí o direito subjetivo poder ser considerado uma manifestação

de um poder, ou uma faculdade, juridicamente acolhidos (no espaço dos

direitos objetivos que abrigam, numa situação específica, tal manifestação).

Coloca-se em cena uma modalidade de direito que não é extrínseca ao

homem e nem se aplica a ele como uma atribuição, mas, de um direito que

se amarra a uma potencialidade, estabelecida em primeiro plano apoiada nas

profundezas da natureza humana (de suas prerrogativas que revelam-se de

maior importância). As situações concretas, nesta ótica, colocam-se como

ocasião de manifestação ou de atendimento das faculdades humanas.

Os direitos da personalidade, considerados direitos absolutos, irrenun-

ciáveis e intransmissíveis, relacionam-se com os direitos subjetivos. Esta

relação sustenta-se por uma interpretação de fundo jusnaturalista (que não

é unívoca na consideração dos direitos de personalidade), na medida em que

aponta os direitos de personalidade como direitos inerentes à pessoa e a sua

dignidade. Seriam, portanto, o desdobramento (ou prolongamento) dos atri-

butos e potências do indivíduo, considerando o atributo imanente e trans-

3 Embora Villey mencione tais fontes e inclusive defenda uma herança do próprio jusnaturalismo de cunho individu-

alista na tradição do nominalismo de Guilherme de Ockham, existem leituras que apontam uma compreensão diver-sa. Brian Tierney entende que antes mesmo do nominalismo o realismo moderado de Aristóteles presente na teoria de São Tomás de Aquino, bem como vários juristas canonistas, já teriam apontado para um pensamento da vontade no direito e na intenção individual. Conferir: TIERNEY, Brian. L ‘Idea dei diritti naturali: diritto naturale, legge naturale e diritto canonico (1150 – 1625). Bologna: Il Mulino, 2002, pgs. 34 e sgs. 4 VILLEY, Michel. A Formação do pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pg. 253.

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cendente. O imanente revela a interioridade, o auto-pertencimento, o que

nos porta para a noção de autonomia da vontade/liberdade. O transcendente

trata da abertura do indivíduo para o outro, para a alteridade, para seu per-

tencimento social (porta à noção de igualdade e dignidade).

Se é possível, por um lado, construir a íntima relação dos direitos da

personalidade com os direitos subjetivos já que aqueles seriam expressão

destes últimos, também é preciso levar em consideração a existência de

entendimento diverso. No caso, de que tais direitos de personalidade não

representam qualidades naturais e sim apenas representação jurídica5. Tratar

o homem como pessoa seria considerá-lo dentro de um contexto de capaci-

dades jurídicas. O que se desenha nesta linha de entendimento é a tendência

atual de trazer novas bases menos abstratas do que aquelas tradicionais e

traçar os direitos de personalidade não à sombra da noção de sujeito univer-

sal, mas a partir da concepção de pessoa. A pessoa humana seria o espaço

de representação, defesa e acolhimento de cada homem particular.

Abre-se, diante desta perspectiva, a compreensão histórica de como se

situa o homem e seus direitos. Passa-se a analisar as diferentes leituras pos-

síveis no lugar de assumir como válida uma interpretação de algo natural e

dado. Os direitos amarram-se aos seus horizontes concretos de criação his-

tórica e o seu protagonista também recebe não uma imagem natural, mas

sim percebida pelos diferentes contextos do qual emana. Os direitos subjeti-

vos, consequentemente, são vistos não como expressões puras de capacida-

des inatas (ou inerentes), mas de uma conjuntura dentro da qual sua elabo-

ração é possível. Mais particularmente, o racionalismo moderno.

A respeito da distancia que pretende ser concebida entre sujeito e pes-

soa, o civilista italiano contemporâneo Stefano Rodotá, em passagem impor-

tante, elabora a seguinte reflexão:

“Há um momento na reflexão dos juristas no qual o sujeito abstrato não aparece mais como um instrumento capaz de compreender a realidade por meio de sua elevada formalização. Apresenta-se, ao contrário, co-mo um impedimento, um obstáculo. Não estamos mais diante da abs-tração, e sim do cancelamento do sujeito, que perde um contorno cog-noscível como ocorre às figuras de Francis Bacon. O corpo está ali, ainda visível, porém seu contorno é desfigurado, cancelado. Mas uma figura permanece, e o problema torna-se, propriamente, o de restituir-lhe um contorno, um rosto, torná-la novamente reconhecível, atraí-la para a re-

5 Neste sentido conferir: GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica

do corpo humano. In: Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin (coord.), Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

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120 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

alidade. É esta a razão do progressivo deslocamento da atenção do su-jeito à pessoa, testemunhado pela prevalência desta última palavra em grande parte da literatura jurídica recente. Quase com prepotência, a pessoa tende a ocupar o centro da cena, com a força que lhe deriva da capacidade imediata de exprimir a materialidade das relações. A realidade contra a abstração? Mas aqui, pelo menos na aparência, é possível imediatamente perceber um paradoxo. Na linguagem do direito também ‘pessoa’ é um termo que reenvia a um processo de abstração das puras condições materiais, como é particularmente evidente na fic-ção que rege a pessoa ‘jurídica’. Como diz o seu étimo, pessoa é prósopon, máscara, portanto um meio que oculta um rosto real e o substitui com uma convenção, com uma duplicação jurídica que consen-te a qualquer um em mover-se também no mundo real como se nada o distinguisse dos outros, ou melhor, em pretender ser formalmente reti-rado de discriminações, estigmatizações, seleções, de sua própria natu-ralidade. Porém o preço é o afastamento da realidade, para não dizer a sua supressão, com o ator grego que, portando a máscara a atuando na cena, dizia a todos em ser outro em face da pessoa real que podia ser encontrada na cena ordinária do mundo. No momento no qual, contrari-amente, a referência à pessoa vem assumida como conotação realista, que faz emergir a pessoa por aquilo que é efetivamente, o discurso jurí-dico toma distância daquela ficção histórica. Mas qual é o sentido desta separação do sujeito e da pessoa?”

6

A passagem acima se esforça por diferenciar o conceito de sujeito e de

pessoa. O sujeito é lido como uma abstração que reúne de modo unívoco e

universal todos os atributos do homem e o constituem do modo como é.

Noção esta que é problematizada na passagem acima transcrita como um

instrumento que, atualmente, por seu elevado grau de abstração e formali-

dade, no lugar de sustentar uma imagem comum de validade do homem,

acaba por encobrir e não deixar aparecer o homem em suas formas materi-

ais, precisas e relacionais. O homem abstrato (seu desenho ideal) acaba por

suprimir o homem empírico (suas vivências concretas).

O conceito de pessoa, apesar de remeter à noção de máscara, ou seja,

de uma veste que encobre a pessoa concreta em sua situação real, pretende

ser encarado de um modo menos abstrato e formal.

A tentativa de fazer do conceito de pessoa, no interior de uma dimen-

são jurídica, menos abstrato, não se refere a uma indicação do homem natu-

ral, trata-se sempre de inseri-lo numa representação (ou numa significação)

válida para o direito. O lugar desta representação jurídica se desenha no es-

paço dentro do qual os juristas se esforçam por encontrar não apenas um

termo, mas um caminho para traçar o homem a partir de considerações mais

precisas (que, apesar de situá-lo de modo universal, permitem a pontuação

6 RODOTÁ, Stefano. Dal soggetto alla persona. Università degli studi Suor Orsola Benincasa: editoriale

scientifica, 2007, pg. 7/8. (tradução livre)

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 121

de valores básicos a serem observados nas situações materiais e concretas

da vida).

Se a leitura atualmente pretendida pelo direito, como supõe Rodotà,

não é a de pessoa como máscara, como encobrimento da pessoa real, e sim,

contrariamente, o instrumento que pinça e alcança a pessoa como realidade

menos abstrata e ideal à qual nos enviava o conceito de sujeito, ainda será

preciso lembrar que por meio da consideração de pessoa o homem é visto

por aquilo que gostaria ou deveria ser. A máscara (se é permitido usar este

termo) traduz a concepção que o homem cria de si mesmo e os valores que

devem ser preservados neste horizonte. De modo que, ainda que todos seus

contornos e limites mínimos não sejam realizados concretamente, por meio

da ficção (pela veste usada) eles podem reportar aos valores a serem alcan-

çados e defendidos. O deslocamento, assim, entre sujeito e pessoa, está in-

timamente ligado aos usos e defesas que o direito estabelece.

Ao tratar de pessoa e sua personalidade jurídica, uma dimensão tipifi-

cada de valores e direitos se desenha (caminho para aquela maior materiali-

dade e menor abstração). Se os contornos gerais expressam aquelas cama-

das abstratas do sujeito (autonomia da vontade, liberdade, dignidade), al-

guns contornos específicos foram desenhados, tais como os conhecidos íco-

nes dos direitos da pessoa: vida/integridade física, honra, imagem, nome,

intimidade, etc.

Ao considerar que pessoa é uma representação comum, ela é também

uma via de acesso ao homem concreto nos momentos em que este se inves-

te das características gerais da pessoa.

Se for tomada como válida a consideração de que o conceito jurídico

de pessoa viabilizaria uma menor abstração, chama a atenção entre os vários

direitos da personalidade o direito à integridade física e a disposição do cor-

po como um dos direitos que apresenta uma maior concretude e materiali-

dade.

No caso do corpo - não por se tratar daquela parcela do homem que

pela sua própria natureza possui realidade concreta -, entram em cena as

tecnologias de sua proteção e melhoramento. Neste ambiente as normas

tratam de expor as formas de disposição do corpo e seus limites.

O tratamento jurídico do corpo, entendido na ótica da integridade físi-

ca e preservação da vida, encontra-se presente nos arts. 13 a 15 do capítulo

dos direitos de personalidade do Código Civil Brasileiro.

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

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Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gra-tuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Ainda não se está, aqui, no interior de uma análise do alcance das tec-

nologias sobre o corpo e para o campo do imprevisível que elas podem por-

tar. Antes mesmo destas importantes reflexões, os próprios direitos da per-

sonalidade, tal como positivados no código civil, revelam muito acerca de

como se interpreta o homem como um todo. Uma superficial leitura do art.

13 aponta para os limites da autonomia da vontade no que se refere à dis-

posição do corpo. Os direitos da personalidade sinalizam, em sua proteção à

saúde e ao corpo, uma forma de não concebê-lo (corpo) como coisa, como

propriedade, o que permitiria falar de direitos que dimensionam o homem

em sua unidade. Não se trata, neste caso, do corpo como res. Mas, por outro

lado, no tratamento específico dispensado no artigo em questão, parece ha-

ver um retorno a uma leitura corrente do pensamento moderno que fraciona

o homem (corpo e mente). Isto porque se trata de estabelecer os limites de

intervenção no corpo, dentro dos quais a decisão racional e a autonomia da

vontade podem se exercer.

Assim, a vantagem da concretude do corpo nas formas precisas de sua

preservação e defesa superaria a clássica autonomia e auto-gestão do ho-

mem? Ou, de modo oposto, estaria abrindo-se nesta limitação do uso do

corpo, uma compulsória costura entre mente e corpo? Costura ou junção

esta porque o homem, nos limites do uso do corpo, é forçado a conceber sua

corporeidade, refletir acerca de suas funções e até aonde pode-se sobre ele

intervir e agir sem desfigurá-lo. Dizendo de outro modo, a realidade do cor-

po, na consideração de suas regras e funcionamento, obrigaria o pensamen-

to a descobrir (ou buscar descobrir) seus limites biológicos típicos além dos

quais se estaria entrando num campo de artificialidade. Neste campo, o pró-

prio homem, tal qual se concebe (ainda que por trás de uma máscara) perde-

ria seus contornos conhecidos (tornando-se necessária uma nova máscara).

Curiosamente a via do corpo (e isto seria ainda mais patente diante da

consideração da multiplicação incessante de técnicas sobre o corpo) coloca o

homem a refletir sobre si mesmo, a definir-se. Assim, a distinção entre res

extensa e res pensante perde seus limites claros. A res pensante é chamada

pelo corpo e o corpo “natural” que a mente concebe é o corpo ‘para aquela

mente’. Afinal, ultrapassando os limites naturais e propriamente humanos do

corpo, não seria possível supor que a própria racionalidade é obrigada a ex-

pandir-se para outras vias? Se o corpo transmuta-se, a razão que o concebe

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 123

também é afetada e deslocada. O panorama do pensado e de seus conteúdos

são modificados pela concretude e mutações do corpo. Alteradas as configu-

rações usuais do corpo, altera-se o próprio personagem como um todo.7

Por fim, o que parece ser uma consideração possível, é justamente

perceber nas imposições do corpo e da manutenção de sua integridade uma

via de acesso à compreensão da distância entre sujeito e pessoa. O que se

quer dizer é que o corpo, como valor da pessoa a ser protegido, remete a

percepção de que sua mutação pode também implicar na mutação da racio-

nalidade que o define e considera. Assim, a proteção do corpo, seria tam-

bém, neste aspecto, a proteção da razão que o concebe. Ou pelo menos a

proteção do registro de significados desta razão. Se pessoa envia a um cam-

po que pretende maior concretude, seu fundamento não se retira das tradi-

cionais características da subjetividade moderna.

7 O que se quer apontar é que o corpo, para muito além de ser a representação da mente que o pensa, configura

também as formas da racionalidade que o tornam possível. Sair dos limites desse corpo é também extraviar os limites da racionalidade que o acolhe, o que enviaria para a abertura de outro modo de ser, para outra visão de mundo. A este respeito conferir Le BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 18: “As representações do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributários de um estado social, de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de pessoa”. Le Breton ainda estabelece a diferença entre a leitura ocidental e moderna de corpo como o corpo de um indivíduo e outras concepções de corpo, como por exemplo aquela da sociedade canaque. Nesta leitura da diversidade mostra um corpo que é pensado como extensão da natureza, não é matéria dissociada do mundo. “O ‘corpo’ não é frontei-ra, átomo, mas elemento indiscernível de um todo simbólico. Não existe aspereza entre a carne do homem e a carne do mundo”. Op. Cit. P. 25. Neste exemplo é de se deduzir que o corpo aí situado remete a uma razão outra.

Page 125: Revista Raízes Jurídicas

124 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

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WELZEL, Hans. Diritto naturale e giustizia materiale. Milano: Giuffré, 1965.

Page 126: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 125

Claudia Regina Baukat Silveira Moreira Mestre em História pela UFPR. Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo.

“A árvore que não dá frutos

É xingada de estéril.

Quem examina o solo?

O galho que quebra

É xingado de podre, mas

Não haveria neve sobre ele?

Do rio que tudo arrasta

Se diz que é violento,

Ninguém diz violentas

As margens que o cerceiam”

Bertolt Brecht

O presente artigo pretende apresentar uma reflexão acerca das práti-

cas docentes no Ensino Superior, particularmente articulada à minha experi-

ência pessoal como professora do Curso de Direito. Por essa razão, de ante-

mão peço escusas pela falta de formalidade na linguagem, pois assumida-

mente o texto possui um caráter confessional. Isto não significa abdicar do

rigor acadêmico, que caracteriza nosso exercício profissional.

A intenção inicial do texto era de levantar diretrizes para a elaboração

de avaliações (particularmente cuidados a serem tomados quando da reda-

Page 127: Revista Raízes Jurídicas

126 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

ção de questões de provas). Sem descuidar disso, posto que é constituinte

de nosso trabalho rotineiro, decidi prestar-me ao objetivo de pensar sobre a

natureza do trabalho docente articulada às práticas de avaliação e à realida-

de concreta com as quais nos deparamos cotidianamente.

Ano após ano, vemos ingressar centenas de alunos na Universidade.

Para alguns (e aqui não me refiro exclusivamente aos professores) a sensa-

ção é de que, finalmente, o Ensino Superior no Brasil está acessível àqueles

que o desejam. Para muitos de nós, infelizmente, fica a expectativa em rela-

ção ao perfil desses ingressantes: serão interessados? Conseguirão apreen-

der os conceitos importantes da disciplina? Ou, pelo contrario, o ambiente

em sala de aula será marcado pelo conflito e pela tensão entre a expectativa

do professor versus a expectativa dos alunos?

Aqui recorro à análise empreendida por Gaudêncio Frigotto, que iden-

tifica na redução do Ensino Superior à mera transmissão de conhecimentos

técnicos um grave problema que se desdobra naquilo que considera ser duas

formas de violência: uma de ordem técnico-científica, já que nega ao aluno a

possibilidade de desenvolver outros conhecimentos, habilidades e compe-

tências que não a mera reprodução dos saberes técnicos; e uma segunda,

por ele chamada de ideológica, que se traduz no discurso que afirma que a

Universidade faz sua parte ao acolher todos os alunos (oferecendo vagas em

numero suficiente para o atendimento da demanda). A evasão e a repetência

são resultado exclusivo das escolhas equivocadas feitas pelo indivíduo (em

relação ao curso ou à instituição)1.

Essa dupla violência apontada pelo autor se faz presente cotidiana-

mente em nossas salas de aula, sem nos darmos conta dela. Isso é perceptí-

vel sobretudo quando reduzimos nosso trabalho à mera transmissão de in-

formações e conceitos que consideramos necessários ao exercício profissio-

nal. Quando nos limitamos a considerar que ministrar boas aulas é atitude

suficiente. Quando afirmamos (para nós mesmos ou publicamente, aos alu-

nos) que nossa parte está feita e que o resto depende dos alunos.

Esta constatação aponta para a permanência de uma visão tradicional da

educação, em que o professor emerge como o grande sujeito do ensino. O bom

aluno é aquele que deposita conhecimentos em sua memória e os saca quando

necessário, a saber, no momento das provas. Dirigindo uma rigorosa critica a essa

forma de educação, Paulo Freire deu-lhe o nome de “Educação Bancária”2. Nessa

perspectiva, o aluno é encarando como um ser passivo, receptáculo de todo o saber

do professor.

Ao pensarmos nessas questões aplicadas ao Ensino Superior, há um

outro elemento que deve ser fortemente considerado: a identidade do pro-

1 FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico-profissional: desafios neste fim de século. In: SIL-

VA, L.H. (Org.) Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. 2 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra,1987.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 127

fessor. Como este nível de ensino possui como principal objetivo a formação

profissional, a formação humana dos acadêmicos acaba por ser negligencia-

da. Como não se trata de uma questão simples, a explicação para isso tam-

bém não é. Mas é possível levantar alguns aspectos que nos ajudem a com-

preender a dimensão do problema. A formação do professor do Ensino Su-

perior não promove uma reflexão efetiva sobre a natureza do trabalho do-

cente. Esse profissional, em suma, não se enxerga como um educador. O

que esse docente domina fica restrito ao domínio da sua área de ensino,

muitas vezes reduzido a um saber técnico, passível de mera transmissão.

Some-se a isso o fato de que, para alguns professores, fica difícil com-

preender que o aluno que a ele chega ainda está em processo de construção

da própria identidade; que chega cheio de dúvidas sobre o curso escolhido;

que tem construída uma relação com a informação, com o conhecimento,

que em muito diverge da formação do professor. Se para muitos de nós os

alunos nos parecem estranhos, não devemos nos enganar: os alunos nos

consideram verdadeiros “alienígenas” vindos de algum lugar que, definitiva-

mente, não é o mundo deles3. Instala-se um verdadeiro diálogo entre sur-

dos.

O que fazer? Como fazer? Talvez essas questões norteiem boa parte de

pensamentos torturantes aos quais nós, professores, somos cotidianamente

acometidos. Aqui, vejo indispensável que o professor, que se pensa como

educador, estabeleça pressupostos éticos ao seu trabalho, tendo por base,

sobretudo, humildade e tolerância.

O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade [ou à falta dela], à sua timidez, que não devo agravar com procedimen-tos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Co-mo posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar meu desconhecimento? Como ser educador, (...) sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fa-zê-lo bem.

4

É premente colocarmos nossa atividade docente em seu devido lugar,

para que, tendo clareza acerca de nosso papel e da nossa importância na

vida dos alunos, possamos estabelecer critérios de conduta diante de tantos

problemas enfrentados cotidianamente. Não, não cativaremos todos os alu-

nos. Continuarão a ser freqüentes o desinteresse e as dificuldades para a

3 GREEN, Bill; BIGUM, Chris. Alienígenas na sala de aula. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas

na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p.208 – 243. 4 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. 24.ed. São Paulo: Paz e

Terra, 2002. p.74-75.

Page 129: Revista Raízes Jurídicas

128 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

compreensão de muitos conceitos. Mas é possível que, ao mudarmos a nossa

postura, alguns alunos consigam estabelecer a necessária relação entre o

nosso trabalho e a sua própria formação. Pode ser, ainda, que alguns alunos

passem a enxergar a própria condição de sujeitos do processo de ensino e

aprendizagem. Mas para isso, é imprescindível que o professor abandone a

postura de transmissor de conteúdos e passe a assumir a condição de medi-

ador entre o aluno e o conhecimento.

Nesse sentido, a mediação serve de ponte entre o sujeito de conheci-mento e o objeto conhecido. Nessa passagem, o objeto não é tomado de forma neutra, mas, pelo contrário, carregado de significado simbólico. A noção de mediação pode, de certa forma, também ser aplicada à figura do professor em sua relação com o aluno. (...) Como mediador, o docen-te não pode ser neutro em relação aos conteúdos escolares, devendo haver um engajamento tanto cognitivo quanto moral. Em outras pala-vras, o professor deve defender aquilo que acredita ser cognitivamente verdadeiro e moralmente correto. Assim(...) o papel desempenhado pelo professor é fundamental e imprescindível. No entanto, diferente do que ocorre na pedagogia tradicional, o aluno não fica eternamente na de-pendência do professor. Pelo contrário, a aprendizagem deve promover uma autonomia crescente do aluno.

5

Essa redefinição dos papéis em sala de aula reivindica também uma

nova forma de abordagem da avaliação, que permita uma articulação maior

entre esta e as atividades de ensino e aprendizagem. A meu ver, toda e

qualquer atividade em sala somente pode ser levada a cabo se estiver a ser-

viço da promoção da aprendizagem de nossos alunos. Esta deve ser a meta,

o objetivo. Assim, também as provas e outros trabalhos didáticos devem ser

compreendidos: se não for para promover a aprendizagem (ou aferi-la), de

nada serve. É trabalho inútil. Nesse sentido, uma questão que pode nortear a

elaboração dessas atividades é “Para quê?”, que impõe como resposta a

aprendizagem de determinados conteúdos ou sua verificação.

Particularmente útil nesse processo é a realização de atividades no de-

correr de cada um dos bimestres. Além de atender a um dispositivo regi-

mental6, o professor pode fazer uso desse expediente para acompanhar o

ritmo de aprendizagem de seus alunos, corrigindo eventuais “desvios de

rota”: é preciso reconhecer que, às vezes, mesmo alunos extremamente ze-

losos e cientes de participação na vida acadêmica são passíveis de se equi-

vocar quanto à compreensão e apreensão de conceitos. Por que não, eventu-

almente, solicitar que os alunos respondam algumas questões que, uma vez

5 MOREIRA, Claudia Regina B. S.; VASCONCELOS, José Antonio. Didática e avaliação da aprendiza-

gem no ensino de História. Curitiba: IBPEX, 2007. p.43. 6 No caso da Universidade Positivo, as Normas Acadêmicas impõem a realização de pelo menos duas avalia-

ções a cada bimestre letivo.

Page 130: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 129

corrigidas pelo professor, servirão de parâmetro para uma avaliação do pro-

cesso (sem valer nota)7?

Uma outra questão que deve ser trazida ao horizonte é relativa à co-

municação entre professores e alunos: estarei, enquanto professor, sendo

suficientemente claro acerca das minhas expectativas em relação àquilo que

o aluno produz? Estarei explicitando com precisão o que ele deve fazer numa

atividade? Para tanto, os enunciados das questões não podem ter margem

para a ambiguidade. Sob esse aspecto, os comandos das questões dirigidas

aos alunos devem guardar objetividade.

Este é um ponto particularmente importante: mudanças nos pressu-

postos que organizam as atividades de avaliação devem, necessariamente,

mudar a própria lógica da avaliação. É necessário reconhecer que as práticas

classificatórias fazem parte não só das experiências dos alunos. Os profes-

sores encontram-se entranhados de visões de avaliação que priorizam a

classificação dos alunos, até porque o próprio processo de formação do pro-

fessor, muitas vezes, observou essa lógica. Dessa forma, atribuir apenas ao

aluno a dificuldade de comprometer-se com uma avaliação formativa, signi-

fica ocultar metade do problema. O aluno foi condicionado a pensar e agir

em função da nota. Como afirma o professor Celso Vasconcellos:

Um problema constante do cotidiano escolar diz respeito à grande preo-cupação dos alunos com a nota. Isto é constatado em qualquer sala de aula (...). Este condicionamento do aluno pode ser entendido se anali-sarmos toda a história da avaliação seletiva. É fácil acusar o aluno de só pensar em nota; precisamos, no entanto, ter muito claro que foi a pró-pria escola que provocou este tipo de preocupação em função de sua prática distorcida: enquanto existir sistema classificatório, objetivamente o aluno não pode esquecer a nota, pois ela é seu passaporte para a série seguinte...

8

Aqui, algum cético pode argumentar: não há o que fazer, pois os pro-

fessores não detém o controle sobre algumas variáveis. A estrutura educaci-

onal exige que o professor atribua notas ao desempenho dos alunos. A des-

peito do fato de que essa é uma situação que no curto prazo não é passível

de mudança, há questões que se encontram, sim sob nosso poder de inter-

venção! Se não é possível, especialmente devido à grande quantidade de

alunos, pensar em avaliação sem pensar em provas, que façamos uso desse

instrumento disponível da melhor forma.

7 Nessa correção, pode-se perceber quais são as dificuldades que os alunos têm em relação aos conteúdos da

disciplina: como (e se) estudam, de que forma se expressam por escrito, quais são os equívocos de compreen-são. Sob este aspecto, é possível retomar questões controversas em sala e promover, efetivamente, a aprendi-zagem. 8 VASCONCELOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança (por uma práxis trans-

formadora). 4.ed. São Paulo: Libertad, 1998. p. 62.

Page 131: Revista Raízes Jurídicas

130 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Sim, é possível elaborar provas que respeitem a inteligência do aluno,

exijam seu compromisso com a aprendizagem e, de fato, promovam a avali-

ação daquilo que o aluno aprendeu. Só que isso exige que o professor dedi-

que tempo à sua elaboração buscando sempre nortear seu trabalho pela pre-

ocupação com o que o aluno aprende (ou deixa de aprender) e como ele

aprende. Mais uma vez é necessário destacar que todo o trabalho do profes-

sor deve ser antecedido pela questão : “para quê?”, definidora dos objetivos

e dos critérios da avaliação.

(...) Esse avaliar se baseia em alguns critérios para valorar, mas serão in-terpretados em cada caso particular. O instrumento é um mediador en-tre os critérios de avaliação e a informação que tem origem na realidade apreendida para ser avaliada. A utilidade desse instrumento no contexto da avaliação de alunos está fundamentalmente em sua potencialidade para evidenciar aquilo que se pretende avaliar em sua possibilidade real de ser bem utilizado. Isto é, utilidade e viabilidade

9.

No momento de elaboração de uma prova, há que se levar em conside-

ração qual a utilidade de um determinado modelo e quais são suas dificulda-

des. Com este objetivo, recorro à análise realizada por Dino Salinas10

na sín-

tese apresentada na tabela a seguir:

TABELA 1 – MODELOS DE PROVAS

Formato Definição Utilidades Dificuldades Orientações

Prova

escrita de

ensaio

(com

resposta

livre

ou

orientada)

Poucas pergun-

tas (temas a

serem desen-

volvidos); re-

quer organiza-

ção de idéias

num discurso

coerente.

Permite avaliar

a construção do

discurso lógico

do aluno; per-

mite que este

exponha infor-

mações, opini-

ões e avaliações

sobre os conte-

údos.

Disponibilidade

de tempo para

sua correção;

uma má for-

mulação de

seu enunciado

abre margem

para a subjeti-

vidade de cri-

térios de cor-

reção.

Apresentar a

prova por es-

crito (sem ditá-

la); explicitar

claramente o

tipo de raciocí-

nio que se

demanda (des-

crever, analisar,

comparar),

esclarecer quais

critérios foram

utilizados na

correção, paci-

ência na

correção.

9 SALINAS, Dino. Prova amanhã! A avaliação entre a teoria e a realidade. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 90.

10 Idem, p. 98-114.

Page 132: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 131

Prova de

respostas

breves

Demanda uma

definição, uma

descrição ou

argumentação

de poucas li-

nhas.

Pode abranger

conteúdos mais

amplos; são

úteis para com-

provar a memo-

rização e, tam-

bém, à aplica-

ção de um pro-

cedimento.

Dificuldade na

elaboração de

questões que

permitam res-

postas breves,

mas que per-

mitam verificar

aprendizagem

além da me-

morização;

formulação de

questões pou-

co representa-

tivas do con-

junto a ser

avaliado.

Apresentar a

prova por es-

crito; enuncia-

do familiar,

utilizando do

léxico das

aulas (ou tex-

tos); a corre-

ção deve es-

clarecer os

problemas das

respostas.

Prova

objetiva de

verdadeiro-

falso

Exige que o

estudante opte

entre duas al-

ternativas ex-

cludentes.

Constituída por

um amplo re-

pertório de

perguntas ou

itens cujas res-

postas são de-

limitadas. Bus-

ca-se objetivi-

dade na avalia-

ção.

Exige conhe-

cimentos de

baixa comple-

xidade cogniti-

va; simplifica

os conteúdos ,

reduzindo-os a

“falsos” ou

“verdadeiros

O conteúdo da

questão deve

ser relevante; a

formulação

deve ser curta,

sem ambigui-

dades e com

apenas uma

idéia; certifi-

car-se de que

há apenas uma

resposta pos-

sível.

Prova obje-

tiva de múl-

tipla esco-

lha

Propõe-se um

enunciado e um

conjunto de

opções de res-

postas. Geral-

mente uma é

verdadeira e as

demais são

falsas.

Constituída por

um amplo re-

pertório de

perguntas ou

itens cujas res-

postas são de-

limitadas. Bus-

ca-se objetivi-

dade na avalia-

ção.

Exige conhe-

cimentos de

baixa comple-

xidade cogniti-

va; simplifica

os conteúdos ,

reduzindo-os a

“falsos” ou

“verdadeiros”.

O enunciado

deve conter a

parte principal

da pergunta;

as questões

falsas devem

ser verossí-

meis; evitar

pistas que

permitam res-

ponder a partir

de procedi-

mentos lógicos

Page 133: Revista Raízes Jurídicas

132 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

ou do senso

comum; exclu-

ir alternativas

como “todas as

anteriores” ou

“nenhuma das

anteriores”.

Prova

objetiva de

relação de

pares

Propõe-se o

estabelecimento

de relações

entre elementos

que se encon-

tram distribuí-

dos em duas

colunas.

Conteúdos que

visam a classifi-

cação, estabe-

lecimento de

relações podem

ser melhor ava-

liados por meio

deste instru-

mento.

Se mal utiliza-

da, pode per-

mitir que uma

resposta seja

dada por meio

do uso da lógi-

ca, por exclu-

são.

O conteúdo da

pergunta deve

ser relevante;

aconselha-se o

uso de distra-

tores, isto é,

que uma colu-

na tenha mais

elementos do

que a outra;

explicar com

clareza as

bases sobre as

quais se as-

sentam a rela-

ção solicitada.

FONTE: SALINAS, Dino. Prova amanhã! A avaliação entre a teoria e a realida-

de. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Evidentemente que a tabela contempla modelos ideais, “tipos puros”.

Em nosso cotidiano fazemos uso de diferentes estratégias, que devem ser

adequadas aos objetivos que pretendemos atingir quando avaliamos. Por

exemplo, há momentos em que a objetividade se faz necessária. Não porque

demanda menos tempo para correção, mas porque se deseja avaliar o que o

aluno de fato conseguiu apropriar de conhecimentos. Os Exames Finais são

um bom exemplo disso.

Há também a possibilidade de uso de adaptações dos modelos. Por

exemplo, numa prova de verdadeiro ou falso, pode se exigir que o aluno

explique porque as questões são falsas. Nesse caso não se trata apenas de

um exercício de identificação, mas também de argumentação. A questão

continua sendo objetiva, com a diferença de que, nesse caso, a margem para

“chutes” fica minimizada. Neste caso, diferentemente do que apregoam os

livros sobre avaliação, creio que a proporção de questões falsas deve ser

maior (70%), para que o aluno veja-se obrigado a pensar sobre a prova. Isso

Page 134: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 133

porque, especialmente se tratando de Exame Final, alguns simplesmente

identificam todas como verdadeiras, na esperança de um percentual de 50%

de acerto.

O trabalho do professor não se torna menos árduo porque passou por

uma reflexão sobre sua prática. Muitas vezes, pensar o fazer pedagógico

acarreta em ampliação de seu escopo de trabalho, pois significa a superação

da condição de mero “transmissor” de conhecimento.

(...) Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício edu-cativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substancialmente formar.

11

E é nesse sentido que a avaliação deve ser encarada, como constituinte

desse processo de formação, sob pena de, ao negar-lhe essa vocação, redu-

zi-la a uma prática formal, classificatória e, sobretudo, excludente.

11

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. 24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.37.

Page 135: Revista Raízes Jurídicas

134 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:Paz e Ter-

ra,1987.

_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa.

24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico-profissional: desafios

neste fim de século. In: SILVA, L.H. (Org.) Novos mapas culturais, novas

perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.

GREEN, Bill; BIGUM, Chris. Alienígenas na sala de aula. In: SILVA, Tomaz Ta-

deu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos

culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p.208 – 243.

MOREIRA, Claudia Regina B. S.; VASCONCELOS, José Antonio. Didática e ava-

liação da aprendizagem no ensino de História. Curitiba: IBPEX, 2007.

SALINAS, Dino. Prova amanhã! A avaliação entre a teoria e a realidade. Porto

Alegre: Artmed, 2004.

VASCONCELOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudan-

ça (por uma práxis transformadora). 4.ed. São Paulo: Libertad, 1998.

Page 136: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 135

Fernanda Busanello Ferreira Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo. Advogada. Mestre

em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná/PR.

Sociologicamente, três autores se destacaram na análise da sociedade

contemporânea ao investigar a concepção de risco e suas consequências

sociais, especialmente no que tange ao âmbito decisional. Ulrich Beck e An-

thony Giddens justificaram a sociedade atual como uma sociedade produtora

de novos riscos e destacaram seu papel no controle e previsibilidade destes.

Já Niklas Luhmann introduziu uma importante diferenciação entre o conceito

de risco e perigo, tendo destacado a impossibilidade de escolha por uma

decisão segura. A observação dos principais pontos das teorias de tais auto-

res é o objeto desse artigo.

Palavras-chave: Risco; Perigo; Teorias Sociológicas

O sociólogo Ulrich Beck tematiza sobre a emergência da “sociedade de

risco”, expressão essa que o consagra e torna o tema um grande referencial

nos dias de hoje. O respaldo de sua teoria é basicamente a degradação am-

biental e seu potencial para conseqüências catastróficas. O grande diferenci-

al de seus escritos é justamente o fato de colocar “as origens e conseqüên-

Page 137: Revista Raízes Jurídicas

136 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

cias da degradação ambiental no centro de uma teoria da sociedade moder-

na” 1.

Sua tese é a de que ao transformar o meio-ambiente para gerar produ-

ção, a sociedade acabou produzindo algo inimaginável e imperceptível: aca-

bou produzindo a socialização das destruições da natureza2. Isso significa

que a própria sociedade industrial produziu suas ameaças e se auto-

transformou em sociedade de risco. Para Beck, somos testemunhas (sujeito e

objeto) de uma fratura dentro da modernidade, a qual se desprende dos

contornos da sociedade industrial clássica e embala uma nova figura: a da

“sociedade industrial de risco” (grifo do autor)3.

A observação de Beck é que no lugar do sistema axiológico da socie-

dade desigual entra o sistema axiológico da sociedade insegura. Evidencia-

se, na concepção do autor, a passagem da sociedade diferenciada em classes

para a sociedade de risco, ou seja, a sociedade industrial foi marcada pela

diferenciação trabalhador/empregador, ou do que pode ser colhido da obra

maior de Marx, pela antinomia capital/trabalho.

Em suma, nesse tipo de sociedade, os ricos (capitalistas, donos do

meio de produção) não estavam expostos ao perigo; ao contrário das classes

pobres (operários), cujas condições de vida e trabalho eram precárias. No

entanto, “a degradação ameaça de igual modo o capital e o trabalho”4. As

novas frentes de conflito ultrapassam essa antiga fronteira e mais uma vez o

exemplo ambiental faz-se importante. Conforme satiriza Beck: “a miséria é

hierárquica, o smog é democrático” 5(grifo do autor).

Ademais, os problemas de risco são ambivalentes, pois se reproduzem

junto às decisões e aos pontos de vista tomados na avaliação das decisões

numa sociedade plural. Justamente por isso o risco não pode simplesmente

ser relacionado com as questões de ordem, ou seja, os problemas ambiva-

lentes de risco trazem de volta o reinado da incerteza (onde a ordem não

tem vez).

Por outro lado, diante da imprevisão e da desordem, torna-se necessá-

rio repensar uma nova maneira de agir que aceite e ambivalência6. A crise

das ficções da segurança da sociedade industrial implica na aceitação da

incerteza como experiência básica, pois não se pode reivindicar soluções

definitivas. No entanto, denuncia Beck que:

1 GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 228 2 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p.13 3 BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 179 4 GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 235. 5 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p. 42 6 BAUMANN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 74

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 137

enquanto esses desenvolvimentos forem vistos em contraposição ao ho-rizonte conceitual da sociedade industrial, e, portanto, como efeitos ne-gativos de ação aparentemente responsável e calculável, seus efeitos de destruição do sistema permanecerão irreconhecíveis. Suas conseqüên-cias sistemáticas aparecem apenas nos conceitos e na perspectiva da sociedade de riscos, e somente então elas nos tornam conscientes da necessidade de uma nova autodeterminação reflexiva

7.

Ou seja, embora haja questões latentes originadas pela dinâmica social

de risco no sistema jurídico, há ainda uma grande contradição no cenário

atual, pois a sociedade ainda toma decisões e realiza ações segundo o pa-

drão da velha sociedade industrial8. Nesse sentido dá-se o desafio da socie-

dade de risco, que é uma sociedade de autocriação, de ação nova, devendo

“inventar” tudo9.

Para Beck a sociedade global dos riscos é observada como uma socie-

dade de riscos inasseguráveis10

, sendo que a própria sociedade industrial

produziu suas ameaças e se auto-transformou em sociedade de risco11

. As-

sim, decorre do desenvolvimento da sociedade moderna a produção de ris-

cos políticos, ecológicos e individuais que escapam, devido à sua proporção,

ao controle e proteção das instituições existentes12

.

O risco, para Beck, “é o enfoque moderno da previsão e do controle das

conseqüências futuras da ação humana, as diversas conseqüências não de-

sejadas da modernização radicalizada”13

. Ele contém um componente futuro

e não se esgota em conseqüências e danos já provocados, tendo também

relação com as destruições intermitentes, que ainda não ocorreram. Em su-

ma, para Beck, “os riscos apresentam algo de irreal, pois são ao mesmo tem-

po reais e irreais”. Sua parte real corresponde aos danos já concretizados;

sua parte irreal corresponde ao “impulso social do argumento do risco que

reside na proteção de ameaças para o futuro”14

(grifo do autor).

Isso significa que, de um modo geral, a centralidade da consciência do

risco não se encontra tanto no presente, mas no futuro. Na sociedade atual,

o passado perde a força de determinar o presente. Em seu lugar, aparece

7 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria de modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 19. 8 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 80 9 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria de modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 34. 10 As armas de destruição massiva, a ameaça da bomba nuclear, de um vazamento em uma Usina Nuclear não poderiam ser compensada em termos de prêmios de seguros. 11 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998. p.13 12 BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del riesgo. In. BAUMAN, Z.; BECK, U.; GIDDENS, A.; LUH-MANN, N. Las consecuencias perversas de la modernidad. Barcelona: Anthropos, 1996. 13 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno, 2002. p. 5. 14 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad. México: Paidós, 1998.

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138 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

como ‘causa’ da vivência e da atuação presentes o futuro, quer dizer, algo

que não existe, construído, fictício.

A sociedade industrial, segundo BECK, produziu seus próprios perigos

que viajam com o vento (nuvem atômica), com a água (chuva ácida) e colo-

cam em crise as fronteiras tradicionais de proteção (especialmente a dos

Estados-Nacionais)15

. Todavia, para BECK os riscos dependem das decisões

e, em princípio, podem ser controlados; já o perigo escapa ou neutraliza os

requisitos de controle da sociedade industrial.

Verifica-se que essa nova forma de sociedade caracteriza-se pela dis-

tribuição dos males, pela impossibilidade de se compensar pelo sistema de

cálculos de risco os danos causados e pela impossibilidade de assegurar-se

frente à recessão global.

Outro importante expoente na concepção contemporânea de risco é

sem dúvida Anthony Giddens. Para Giddens, a idéia de risco acompanhou

toda a modernidade, mas assume agora novas proporções, pois se outrora o

risco ligava-se à regulação, normalização e domínio do futuro, na atualidade

todas as tentativas de controle do futuro voltam-se contra a própria socie-

dade16

.

Sua forma de entender o risco divide-se, dualmente, entre o risco ex-

terior e o risco provocado17

. A forma típica do risco exterior seria aquela ori-

ginada pela natureza, em suma, aquela que nos chega de fora; o risco pro-

vocado, por sua vez, resulta do impacto das criações tecnológicas sobre o

meio18

.

Segundo Giddens as primeiras relações com o risco eram derivadas da

lógica do risco exterior, isto é, a humanidade estava à mercê das influências

naturais. No entanto, há uma inversão de perspectiva que faz com que o

risco provocado pela humanidade adquira maior relevância. Isto porque a

sociedade atual interveio em todos os setores. Não é só o meio ambiente que

é afetado pela intervenção humana, também a família e as instituições foram

modificadas, de modo que os sujeitos dessa nova realidade terão de começar

do zero. Por esses motivos, o futuro passa a ser cada vez mais aberto do que

o passado e disso decorrem grandes incertezas, mas também oportunida-

des19

.

15 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno, 2002. p. 49 16 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 35 17 FLORIANI, Dimas. Conhecimento, Meio Ambiente & Globalização. Curitiba: Juruá, 2004. p. 66 18 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 35 19 GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 93

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 139

Há um acréscimo de risco à medida que o homem aprimora o risco

provocado e justamente devido à novidade desses riscos não se pode en-

frentá-lo a partir de premissas de certeza. Exemplificando: as vítimas de

Chernobil e da vaca louca não são ainda conhecidas, nem as suas conse-

qüências. Outro exemplo controverso é o do aquecimento global: derivaria

esse do risco provocado?

Resumidamente, Giddens pontua que os riscos rotineiros da nova soci-

edade não possuem manual de instrução. Por essa razão, entra-se na era

dos adeptos do princípio de precaução, que implicaria na tomada de medi-

das de proteção, mesmo não existindo provas do dano efetivo, a mera hipó-

tese deve ser atacada, impedindo que o risco gerasse efeitos no mundo.

Assim, a questão de gestão dos riscos passaria a ser problema e tema

para a sociedade como um todo: tanto os Estados (inclusive e principalmente

a partir de ações integradas), como os indivíduos não podem ignorar os no-

vos riscos. Os Estados devem gerir em conjunto, pois os riscos da moderni-

dade tardia não esbarram nas fronteiras político-tradicionais. Da mesma

forma, os indivíduos, ao escolher enquanto consumidores o que desejam

ingerir, estão participando do processo de decisão sobre os riscos que se

deseja manter ou não.

Em suma, Giddens destaca a necessidade de se encarar o risco como

algo positivo, a necessidade da aceitação do risco para que se possa geri-lo.

Fala sobre a ousadia quanto à mudança e acredita no risco como a mola pro-

pulsora de uma sociedade inovadora20

.

Percebe-se que Beck concentra-se na escala coletiva, enquanto Gid-

dens procura de forma mais significativa a interlocução entre a coletiva e a

individual.

A noção de risco, para Giddens, só faz sentido se utilizada numa pers-

pectiva de futuro, ou seja, numa sociedade orientada para o futuro, no senti-

do de ver o amanhã como terreno a ser conquistado. O risco implicaria a

existência de uma sociedade desligada do passado, teria essa característica

positiva de impulsionar a mudança.

A teoria sistêmica contemporânea, luhmanniana, advém denunciando a

esterilidade das ideias de controle e segurança, transformando, mais uma

vez, a concepção de risco. Passa-se de uma ideia de controle e racionalidade

para uma era de incerteza e probabilidades.

Para a formulação de sua teoria dos sistemas, Luhmann parte da cons-

tatação de que a sociedade contemporânea é profundamente complexa e

20 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 1997. p. 40

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140 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

contingente e funcionalmente diferenciada21. Nesse sentido, por complexi-

dade quer-se dizer que “sempre existem mais possibilidades do que se pode

realizar” 22. Isto é, por complexidade, entende-se tudo aquilo que é um ex-

cesso de possibilidades; ou, em termos práticos, significa seleção forçada. Já

por contingência, “entendemos o fato de que as possibilidades apontadas

para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas” 23. Em

suma, contingência indica a possibilidade de que um dado seja diferente

daquilo que é. Significa risco.

O conceito de risco dado por Luhmann implica no reconhecimento de

que as decisões condicionam as possibilidades de danos futuros, ainda que

não se saiba de que modo este processo ocorra.

Segundo Luhmann é impossível uma decisão ser tomada num contexto

de oposição risco/segurança. A única oposição existente é entre risco e peri-

go. Nesta senda, o risco associa-se ao processo decisório e o perigo asso-

cia-se a não participação no processo decisório. Veja-se o exemplo do fu-

mante: ao decidir por fumar, o fumanente passa a submeter-se às conse-

quências de sua escolha, ainda que ninguém possa precisar, com certeza, se

ele, por exemplo, terá ou não um efizema pulmonar, câncer ou impotência

sexual. Isto significa que a decisão por fumar é contingencial. Da mesma

forma, optando por não fumar, nada garante que o não-fumante não terá

efizema pulmonar, câncer ou impotência sexual. A decisão por não fumar

também é contigencial. Por outro lado, o perigo ocorre quando uma pessoa

que não participou no processo decisório sofre as consequências da decisão

tomada por outra pessoa que não si próprio. Assim, o fumante passivo está

submetido ao perigo e não ao risco, já que a escolha de outrem afetará a sua

vida, sem que tenha havido uma decisão pessoal do agente. Risco implica

decisão, perigo implica estar suscetível à decisão de outrem, significa não ter

podido decidir e arriscar-se.

Isto significa que a tomada de decisão no presente condiciona o que

acontecerá no futuro e que tais decisões deverão ser tomadas sem existir

uma certeza sobre o que de fato ocorrerá. Afinal, a negação da aceitação dos

riscos é em si mesma um fator arriscado (grifo nosso).

Nesta perspectiva, o processo de decisão sempre será contingencial

(devido a sua seletividade) e, portanto, implicará risco. Isto significa que a

decisão tomada pode não ser a correta, mas ela alivia a contingência. Desta

forma, não há como decidir optando pelo lado seguro, porque a segurança

21 Como refere LUHMANN “definimos o conceito de sociedade moderna através da forma da diferenciação da sociedade; assim mantemos o conceito como algo distinto das descrições que até os dias de hoje se dispo-nibiliza na sociedade moderna para a compreensão de sua específica particularidade”. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona: Anthropos, 1998, p. 339. 22 LUHMANN, Niklas. Sociologia...Op. cit. p. 45. 23 Idem.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 141

não existe (ou existe apenas como ficção operativa do sistema). Como apon-

ta Luhmann:

é impossível que existam situações nas quais se possa – ou inclusive, que se tenha que – eleger entre risco e segurança, entre uma alternativa arriscada e outra segura. Este problema nos obriga a ajustar mais preci-samente nossa conceitualização. Como frequência se afirma tal possibi-lidade eletiva. A alternativa aparentemente segura implica então a dupla segurança de que não surja nenhum dano e de que se perca a oportuni-dade que possivelmente poderia realizar-se por meio da variável arris-cada. Sem dúvida, este argumento é enganoso, posto que a oportunida-de perdida não era, em si mesma, nenhuma coisa segura.

24

Nesta linha de raciocínio não se pode mais falar em decisão segura,

pois os acontecimentos sociais são provocados por decisões contingentes

(poderiam ser de outra forma). Entende Rocha que “o risco é um evento ge-

neralizado da comunicação, sendo uma reflexão sobre as possibilidades de

decisão. A sociedade moderna possui condições de controlar as indetermi-

nações, ao mesmo tempo que não cessa de produzi-las. Isto gera ao ‘para-

doxo’ na comunicação”.25

O risco é entendido, no âmbito da teoria sistemista como uma “aquisi-

ção evolutiva do tratamento das contingências que, se exclui toda a segu-

rança, exclui também todo o destino” 26

. Desta forma, todo ato decisório será

gravado de risco27

. Mesmo a decisão intencional de evitar o risco pode se

converter em risco, ou seja, a possibilidade pode converter-se em dano e

este ônus está presente em toda decisão28

(grifo nosso).

A decisão, assim, passa a ser vista num plano pragmático-sistêmico

como um processo complexo, caracterizado pelo risco, ou seja, que deve

absorver a insegurança. Como refere Ferraz Jr.29

:

absorção de insegurança significa, pois, que o ato de decidir transforma incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, ainda que, num momento subsequente, venha a gerar novas situações de incompa-tibilidade eventualmente até mais complexas que as anteriores. Absor-ção de insegurança, portanto, nada tem a ver com a ideia mais tradicio-nal de obtenção de harmonia e consenso, como se em toda decisão ti-vesse em jogo a possibilidade e eliminar-se o conflito. Ao contrário, se o conflito é incompatibilidade que exige decisão é porque ele não pode ser dissolvido, não pode acabar, pois então não precisaríamos de deci-

24 LUHMANN, Niklas. Sociología del...Op. cit. p. 64 25 ROCHA, Leonel. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leo-nel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Op. cit. p. 36 26 DE GEORGI, Rafaelle. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998. p. 198. 27 SCHWARTZ, Germano. O tratamento…Op. cit. p. 151 28 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Op. cit. p. 142 29 Ibidem. p. 313

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142 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

são, mas de simples opção que já estava, desde sempre, implícita entre as alternativas. Decisões, portanto, absorvem insegurança, não porque eliminem o conflito, mas porque o transformam.

A assimilação do risco é deveras importante nos dias atuais em que a

sociedade aumentou sua necessidade de decidir sobre o seu futuro, em que

ela se tornou reflexiva. A reflexividade permite à sociedade se auto observar

de modo que “o temor de que algo saia mal tem aumentado e com ele se

aumenta o risco que se atribui às decisões” 30

.

Isso significa que Luhmann ao incorporar a variável risco como típica

da sociedade complexa contemporânea percebe o futuro não mais como

algo exterior à sociedade, nem como certeza derivada das decisões, mas

considera-o em termos de probabilidade e improbabilidade, como aponta

Luhmann31:

é somente com essa mudança (de enxergar o futuro como probabilida-de/improbabilidade) que se cria a oportunidade para compromissos presentes. Pode-se somente fazer uma decisão arriscada – ou sentar e esperar. E a forma do risco significa que esperar também é uma decisão arriscada.

Os danos futuros podem ou não ocorrer. O futuro está aberto e é in-

certo, todavia os futuros presentes serão determinados de maneira desejável

ou indesejável, mas não se sabe neste momento como ocorrerão, como ex-

plica Luhmann, “podemos, sem dúvida, saber agora que nós mesmos e ou-

tros observadores saberão no futuro presente qual é o caso e que julgarão

sobre este de modo diferente do que fazemos no presente”32. Conquanto

talvez isto não ocorra de maneira unânime.

O risco entra em questão quando se verifica que, paradoxalmente, o

que possa ocorrer no futuro depende das decisões tomadas no presente.

Nessa perspectiva, a contingência é percebida como um valor próprio da

sociedade moderna, estando, indiscutivelmente, relacionada com a ideia de

risco. Não existe decisão segura, isenta de risco.

Como aludido, os riscos, numa concepção luhmanniana, são entendi-

dos como uma forma de descrição presente do futuro, isto é, tendo em conta

os riscos é possível optar entre as alternativas possíveis. Em suma, o risco

implica aceitação de que a forma do futuro é a forma da probabilidade33.

Não é possível definir qual decisão é melhor. Não existe uma decisão

segura. Não há seguro quanto ao futuro. Decidimos no presente, mas o fu-

30 LUHMANN, Niklas. Sociología del…Op. cit. p.40 31 LUHMANN, Niklas. Risk: a sociologial theory. New York: Aldine de Gruyter, 1993. p. 72. 32 LUHMANN, Niklas. Sociología del...Op. Cit. p. 59. 33 LUHMANN, Niklas. Observaciones de la modernidad: racionalidade y contingencia en la sociedad mo-derna. México: Paidós, 1997. p. 131

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 143

turo continuará incontrolável. Toda decisão é arriscada, incontrolável quanto

a seus efeitos futuros.

Enquanto BECK e GIDDENS compreendem o risco em oposição à ideia

de segurança, Luhmann34 estabelece o risco em oposição ao perigo35, colo-

cando a segurança como uma ficção operativa do sistema. Assim, a noção de

segurança deixa de ser algo delimitável e passa-se a observar que todo pro-

cesso de decisão é contingente. Essa visão aponta para o leque de opções

abertas ao futuro quando se coloca o risco como ponto reflexivo das deci-

sões.

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34 LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Iberoamericana, 1992. p. 65 35 Como explica Rocha “a diferença entre risco e perigo está ligada à possibilidade ou não da tomada de decisões. Por exemplo, um motorista de automóvel corre risco ao dirigi-lo numa auto-estrada, já o passageiro corre perigo. O motorista decide as manobras a serem executadas, e o carona apenas observa”. ROCHA, Leonel Severo. Análise pragmático-sistêmica e teoria do direito. In Revista Faculdade de Direito. N. 11. Caxias do Sul: UCS, 2000. p. 56

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 145

Guilherme Roman Borges Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP (2007/2011). Bolsista doutoral anual do governo brasileiro na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma

Philosophías - Universidade de Patras – Grécia (2008). Pesquisador-Bolsista junto ao Max Planck Institut für europäische Rechtsgeschichte de Frankfurt – Alemanha (2010 e 2011). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut für ausländisches und internationales

Strafrecht de Freiburg – Alemanha (2010). Pesquisador-Visitante Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Bologna – Itália (2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre em Direito do Estado na UFPR (2005). Graduado em Direito na UFPR

(1998/2002). Ex-Professor Adjunto de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal Substituto – TRF3 (2011).

A estrutura da relação saber-poder em Michel Foucault diz respeito ao

modo como a doença mental, o louco, e, por conseguinte, o inimputável e o

criminoso foram vistos pela humanidade, sobretudo nos seus reflexos jurídi-

cos, isto é, como o saber médico, psiquiátrico, psicanalítico e jurídico e a

governamentalidade foram capazes de construir o binômio normal-

patológico na sociedde; porque razões, através de que modelos espaciais e

científicos, para que fins, foi objetivado demarcar e separar radicalmente a

tênue linha entre a loucura e normalidade; eis o que se pretende investigar

nas próximas linhas dentro do pensamento foucaultiano.

A doença mental e a questão da loucura foi amplamente refletida por

Foucault, tanto em seus artigos, entrevistas, quanto em seus primeiros tra-

balhos institulados Maladie Mentale et Psychologie e Histoire de La Folie à

L’Âge Classique. Trata-se de um tema central nos primeiros anos de vida

acadêmica de Foucault, enquanto tinha sua formação essencialmente na área

da psicologia, que vai se transformar lentamente na problemática do encar-

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146 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

cerado, e, por fim, na potencialidade normalizadora do poder, tanto nos ci-

dadãos pelo Estado em suas condutas, quanto nos homens em sua sexuali-

dade, como visto acima. Em Maladie Mentale et Psychologie, Foucault realiza,

após uma radical transformação em sua pesquisa anterior Maladie Mentale et

Personnalité, um estudo estrutural e perspectivo da doença mental, anali-

sando as suas dimensões psicológicas, isto é, seus aspectos evolucionistas,

individualistas e existenciais, e sua configuração como elemento cultural,

bem com sua posição dentro da história da humanidade, ensaiando, ainda, a

possibilidade de uma futura fuga à psicologização do ser humano e das do-

enças mentais, através de uma postura que compreendesse a patologia em

sua estrutura global. Nesse sentido, entende Foucault que um erro fatal

ocorria anteriormente no estudo das doenças mentais, isto é, o seu posicio-

namento igualitário às doenças orgânicas. A partir do conceito de totalidade

orgânica, essa “metapatologia”, que se caracterizava por ser geral e abstrata,

equiparava a medicina mental à medicina orgânica, de tal modo que, utili-

zando-se de uma mesma sintomatologia e de uma mesma nosografia (estu-

do das próprias formas da doença; descrição de suas fases e de sua evolu-

ção; observação de suas variantes; análise de suas manifestações episódicas

e da alternância de sintomas e suas evoluções), procurava encontrar a rela-

ção entre a causa orgânica e a psicológica da doença, com vistas à compre-

ensão e apreensão de seus sintomas, sua evolução, seus efeitos, suas varia-

ções, suas curas, etc. Dentro dessa concepção, destaca Foucault as orienta-

ções de Bleuler e de Kraepelin, que procuravam, a partir de um conceito abs-

trato de doença orgânica, manifestado como uma entidade específica indica-

da pelos sintomas,1 conferir à doença mental um privilégio à existência de

uma unidade real, isto é, um privilégio às reações globais dos indivíduos.

Nesse sentido, com base numa patologia mental abstrata, fundada nas res-

postas globais do organismo atacado, Foucault afirma que as doenças men-

tais seriam alterações intrínsecas da personalidade, ou melhor, desorganiza-

ções internas de suas estruturas, caracterizadas por um desvio progressivo

de seu desenvolvimento. É por essa razão, que, então, as doenças mentais se

classificavam somente em neuroses e psicoses, dada a amplitude das per-

turbações da personalidade. As psicoses eram perturbações da personalida-

de global, engendrando um distúrbio do pensamento, por vezes maníaco e

esquizofrênico (porque salta e ultrapassa os intermediários) e uma alteração

geral da vida afetiva e do controle da consciência. Por sua vez, as neuroses

atacavam não a globalidade, mas um setor da personalidade, caracterizando

o indivíduo acometido por ritualismos, angústias, fobias, mas conservando a

sua lucidez crítica com relação a seus fenômenos mórbidos.2 Com base nes-

sa dúplice divisão, as doenças mentais da psicose e da neurose, que englo-

1 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 12. 2 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 15.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 147

bavam assim, as síndromes paranóides, hebefrênicas, e catatônicas, bem

como a psicastenia, a histeria e a obsessão tinham como elemento central,

no qual se desenvolvia a doença, a personalidade, que reunia, em si, a totali-

dade e a unidade do domínio do corpo, equiparando-as à patologia orgâni-

ca.

Todavia, afirma Foucault, que a partir da interpretação de Goldstein

em 1933, tendo como base a síndrome neurológica da afasia, recusando,

assim, as explicações orgânicas da existência de uma lesão local, bem como

as interpretações psicológicas por um déficit global da inteligência, é que se

procurou separar a patologia mental da patologia orgânica. Aprouve-se, en-

tão, a partir de Goldstein, demonstrar que a patologia mental exigia métodos

de análise e estruturas lógicas diferentes da patologia orgânica, e a sua rela-

ção, antes imperiosa, só seria possível por um artifício de linguagem.3

Essa diferenciação teve seu fundamento em três recortes epistemológi-

cos distintos: a abstração, o binômio normalidade/patologia, e o binômio

doente/meio. Primeiro, no que tange à abstração, consoante Foucault, a me-

dicina orgânica permite que se considere a totalidade material do indivíduo,

isto é, a anatomia e a fisiologia possibilitam a realização de abstrações sobre

o fundo da totalidade orgânica, a fim de tanto compreender elementos isola-

dos, quanto elementos inseridos no conjunto, ao compasso que a medicina

mental, através da psicologia, não obteve o mesmo êxito em demonstrar,

através de um estudo delimitado do distúrbio, a totalidade da doença que

afeta a personalidade. Deste modo, o âmbito de abstração exige especifica-

ções e amplitude distintas. Segundo, no que se refere à relação entre o nor-

mal e o patológico, destaca Foucault que a diferenciação entre esses dois

parâmetros, no universo da patologia orgânica se dá, na grande maioria das

vezes, de maneira nítida, separando-se claramente os fatos anormais das

reações adaptativas de um organismo funcionando segundo a sua norma,

enquanto que, na patologia mental, a passagem dessa linha se demonstra

sempre muito tênue, tornando difícil demonstrar a ruptura do contato com a

realidade produzida pela doença mental. Por fim, no que diz respeito à cor-

relação entre o doente e o louco, Foucault afirma que o doente mental não

pode receber um tratamento similar ao doente orgânico, pois cada patologia

mental exige que seja tratada sendo observadas as particularidades de cada

caso clínico, ao contrário dos doentes orgânicos, que, diagnosticada a mes-

ma doença, permitem o mesmo tratamento, assim, afirma que “a dialética

das relações do indivíduo e seu meio não se faz, então, no mesmo estilo em

fisiologia patológica e em psicologia patológica.”4

A partir dessas três ordens de diferenciação, em que se refuta, por-

tanto, a existência de uma metapatologia, desligando-se quaisquer relações

3 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 17. 4 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 20.

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148 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

entre a doença orgânica e a mental, já que a unidade seria meramente teóri-

ca, lingüística, estimativa e artificial, entende Foucault que a doença mental

deveria ser sempre refletida sob suas dimensões psicológicas, para a real

compreensão do doente mental, ou, ao que aqui interessa, do louco. Essas

dimensões seriam, portanto, a doença e seu aspecto evolutivo, a doença e

sua relação de passado e presente, e a doença como fenômeno material.

Na primeira dimensão, sob um plexo evolutivo, argumenta Foucault

que a partir de uma análise da doença como fato de evolução da personali-

dade, é que se pode compreender, em parte, a doença mental, isto é, a partir

de uma investigação sobre o indivíduo adoentado, procura-se identificar no

seu regresso à fase evolutiva os sintomas e as causas remotas de sua pato-

logia, a fim de compreender as suas reais especificidades. Desse modo, des-

taca Foucault que todo doente mental tem suas funções primárias abolidas,

deixando um vazio funcional, no qual aparecem reações exageradas e vio-

lentas, destacando caracteres de automatismos de repetição, interiorização

da linguagem, monólogos desordenados e fragmentários, ausência de coe-

rência espaço-temporal, e substituição das funções complexas, instáveis e

voluntárias, por funções simples, estáveis e automáticas.5 Percebe-se, con-

soante as leituras foucaultianas, um contexto em que o indivíduo mental-

mente acometido apresenta sinais de regresso a tempos arcaicos, quer dizer,

à vida infantil, em que as sublimações, o controle das emoções, e o contato

da realidade se tornam frágeis e de difícil consecução. É, portanto, a partir

de um estudo do caráter evolutivo da doença, procurando-se demonstrar na

vida inicial possíveis eventos causadores da patologia mental, que se eviden-

cia, segundo Foucault, a importância de se refletir a doença mental em seu

aspecto evolutivo. Tal reflexão está presente na obra foucaultina, principal-

mente, através de sua análise sobre a neuropatologia e psicopatologia de

Jackson, bem como das teorizações sobre a evolução das neuroses de Freud,

e dos ensinamentos sociológicos de Janet.

Em Jackson, Foucault aborda a questão da evolução como forma de se

atingir o fato patológico, interpretando a loucura como elemento que coloca

temporária ou permanentemente fora de funcionamento uma parte dos cen-

tros cerebrais superiores. Com Freud, Foucault procura fazer uma arqueolo-

gia da história da libido no desenvolvimento do indivíduo6 a fim de conseguir

chegar às origens particulares da neurose. Segundo as concepções freudia-

nas interpretadas por Foucault, todas as pessoas passariam por quatro fases

principais em sua evolução da libido, que, para compreender o fenômeno

neurótico eventualmente no indivíduo, deveriam ser analisadas, quais sejam:

a fase do erotismo bucal, em que a criança procura os alimentos como forma

de prazer no seio da mãe e obtém suas primeiras frustrações; a fase ou o

5 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 25. 6 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 29.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 149

estágio sádico-anal, que se caracteriza pela disciplina esfincteriana, em que

a presença paterna sob sua forma repressiva e sua relação com o mundo

começam a aparecer e sofrer limites; a fase do espelho, que marca o reco-

nhecimento do indivíduo na sua experiência com o corpo próprio, e a identi-

ficação do narcisismo como figura central na estrutura da sexualidade para o

descobrimento do corpo como objeto sexual; e a fase da escolha objetal ou

do complexo de Édipo, que se caracteriza pela fixação heterossexual, numa

identificação com o pai do mesmo sexo, e na relação de ciúme e erotismo

pelo desejo irresoluto da mãe. É a partir dessa arqueologia da libido, que

Foucault afirma ter Freud contribuído para a compreensão do aspecto evolu-

tivo da doença mental, em especial, das neuroses, já que, na grande maioria

das vezes, tem sua causa em momentos infantis, perdidas em uma dessas

fases descritas. Por fim, defende Foucault uma perspectiva evolucionista da

doença mental, a partir das lições de Janet, em que a doença se demonstra

como uma queda de energia psicológica hábil a impedir os homens de ter

um convívio social, marcando o regresso de comportamentos sociais primiti-

vos, uma vez que o diálogo, o universo do simbólico, passa a ser destituído

de seu centro, e em seus lugares surgem patologias da crença, em que o

critério social da verdade (o que todos crêem) deixa de ter sentido para o

doente mental. Entretanto, entende Foucault que quaisquer perspectivas

estruturais e descritivas que se adotem, dentro desse eixo evolutivo, nenhu-

ma é capaz de apreender o fenômeno patológico por si só, exigindo que se

analise outra dimensão psicológica da doença mental, qual seja, a individua-

lista.

Nesse compasso, acredita Foucault que a sua melhor compreensão se

dá através de uma análise da relação entre passado e presente na história

individual da doença mental, isto é, apenas pelo enlace desses dois momen-

tos, é que a compreensão do “devir psicológico” poderia ser concretizada,

permitindo uma historiografia da patologia dentro de sua individualidade, a

fim de explicar seus diversos fenômenos e suas mais remotas causas. A par-

tir desse relato historiográfico da doença mental no tempo, verifica Foucault

que seria possível compreender como determinadas neuroses e paranóias

teriam suas origens traumáticas e suas fixações ocorridas em momentos

anteriores na vida individual, na infância, na adolescência ou na juventude. É

a partir do deslocamento do passado para o presente, que a partir da teoria

freudiana, Foucault acredita ser possível descobrir os verdadeiros sentidos

de uma doença mental, haja vista que os medos e as angústias estariam

sempre “regressando” ao presente, fazendo com que o indivíduo criasse me-

canismos atuais de defesa contra seu próprio passado e seu próprio presen-

te, numa espécie de círculo vicioso do devir psicológico.7 Todavia, somente

com a compreensão das dimensões entre o anterior e o posterior, ou mesmo

7 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 51.

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150 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

entre o passado e o presente, a doença mental não adquiriria sua eficácia

argumentativa e explicativa, haja vista que restaria interpretar a dimensão

psicológica existencial da patologia, isto é, compreender a própria manifes-

tação isolada da doença mental.

Nessa linha, uma terceira perspectiva psicológica se abre para as teori-

as foucaultianas, que diz respeito à manifestação existencial da doença

mental, ou seja, para compreendê-la seria indispensável analisar o fato pa-

tológico não exclusivamente em seu âmbito estrutural, mas especialmente

buscar apreender a totalidade da doença na situação histórica do homem.

Nessa interpretação, afirma Foucault: “... não basta dizer que o mêdo da cri-

ança é a causa das fobias no adolescente, mas é preciso reencontrar, sob

êste aspecto originário e sob êstes sintomas mórbidos, o mesmo estilo de

angústia que lhes confere sua unidade significativa.”8 Para Foucault, a partir

das teorizações de Minkowski e de Binswanger,9 tendo com base uma meto-

dologia fenomenológica, é indispensável penetrar na própria existência da

doença, compreender suas fases, suas faces, e, em especial, o modo como o

próprio indivíduo acometido é capaz de interpretar o seu estado mórbido,

isto é, o modo como ele aceita e recusa a doença mental em suas fugas tem-

porais, haja vista que haveria sempre um momento em que o doente, apesar

das subtrações que a doença impõe, compreenderia o conjunto dos sinais

histéricos, hipocondríacos e os sintomas psicossomáticos freqüentes em seu

estado de doente mental, em suma, haveria sempre uma espécie de consci-

ência da doença. “A doença mental, quaisquer que sejam suas formas, os

graus de obnubilação que comporta, implica sempre numa consciência da

doença; o universo mórbido não é jamais um absoluto no qual se aboliriam

todas as referências ao normal; pelo contrário, a consciência doente desdo-

bra-se sempre, por si mesma, numa dupla referência, quer ao normal e ao

patológico, quer ao familiar e ao estranho, seja ainda ao singular e ao uni-

versal, seja, finalmente, à vigília e ao onirismo.”10

A partir da reflexão das dimensões da doença, Foucault também de-

senvolve em seus ensaios a necessidade de se repensar a doença mental em

direção ao modo através do qual o conceito de louco foi efetivado pela hu-

manidade, em especial, através da existência de uma ciência objetiva e sin-

gular. Nesse sentido, então, Foucault entende que, para melhor compreender

este processo que resulta na completa exclusão do louco e a manifestação

de soberania da razão em relação à desrazão, necessário é visualizar a lou-

cura sob dois aspectos fundamentais, quais sejam: a loucura como objeto

cultural, e a loucura na sua constituição ao longo da história (recorte esse

8 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 56. 9 Nesse sentido, veja-se a introdução feita por Michel Foucault para o livro Traum und Existenz de Biswanger em 1954 em: FOUCAULT, Michel. Introduction à Biswanger. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994, p. 65-119. 10 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 61.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 151

que permite Foucault fazer a relação entre a maioria de seus escritos de sua

primeira fase, enquanto se dedicava incessantemente à psicologia e seus

escritos posteriores, que encontra guarida em suas concepções historiográfi-

cas e filosóficas).

Nesse sentido, em Maladie Mentale et Psychologie Foucault lança três

questionamentos essenciais que parecem resumir o sentido finalístico de

suas pesquisas seqüenciais e o objeto de pesquisa que procura: “Não há na

doença todo um núcleo de significações que releva do domínio no qual ela

apareceu – e inicialmente o simples fato de que ela aí é caracterizada como

doença?”11; mais adiante salienta: “Como chegou nossa cultura a dar à doen-

ça o sentido do desvio, e ao doente um status que o exclui?”12 e acrescenta

“Como, apesar disso, nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas

quais recusa reconhecer-se?”13

O primeiro questionamento é enfrentado por Foucault em dois mo-

mento principais nas linhas de Maladie Mentale et Psychologie e Histoire de

la Folie. Segundo as concepções foucaultianas, indispensável é investigar

como o conceito de anormalidade e loucura foram vistos na história da civili-

zação como elementos culturais, isto é, para Foucault a constituição do con-

ceito de louco está intimamente relacionada à própria formação cultural da

humanidade, referido em cada particularidade, quer dizer, em cada comuni-

dade e em cada sociedade a partir da experiência comum e do julgamento

com base em valores únicos e historicizados, conforme o estágio civilizatório

em que se encontrassem os seus membros. Nesse sentido, afirma: “ ... o que

há de positivo e de real na doença, tal como se apresenta numa sociedade.

Há, de fato, doenças que são reconhecidas como tais, e que têm, no interior

de um grupo, status e função; o patológico não é mais então, em relação ao

tipo cultural, um simples desvio; é um dos elementos e uma das manifesta-

ções deste tipo.”14 Assim, Foucault conclui que a doença, antes de ser um

elemento exclusivo da psicologia ou da psicanálise, é um fenômeno cultural,

preso aos padrões de cada época, de cada sociedade e de cada estado evo-

lutivo.15 Nesse sentido, Hubert Lepargneur entende que é preciso ver em

Foucault a loucura antes como cultura que fato natural, isto é, a doença

11 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 69. 12 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 74. 13 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 74. 14 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 73. 15 FOUCAULT, Michel. La folie et la société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 130. “Dans tous ces cas (travail, sexualité, famille, langage, parole, jeux et fêtes), ceux qui sont exclus diffèrent d’un domaine à l’autre, mais il arrive que la même personne soit exclue dans tous les domaines: c’est le fou. Dans toutes les sociétés ou presque, le fou est exclu en toute chose et, suivant les cas, il se voit accorder un statut religieux, magique, ludique ou pathologique.” [trad. do autor. “Em todos esses casos (trabalho, sexualidade, família, linguagem, palavra, jogos e festas), os que são excluídos distinta-mente de um domínio ao outro são os loucos. Em todas as sociedades ou quase todas, o louco é excluído em todas as coisas e, de acordo com o caso, ele se vê concordar com um estatuto religioso, mágico, lúdico ou patológico.”]

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mental precisa ser vista como sendo ligada a um sistema de práticas, isto é,

todo um conjunto de dispositivos de uma determinada cultura, de formas de

organização da rede médica, de um sistema de detecção e profilaxia, de

formas de assistências e distribuição de cuidados, “critérios de cura, defini-

ção da incapacidade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal; em

resumo, todo um conjunto que define, numa cultura dada, a vida concreta do

louco. (...) a loucura é um fenômeno cultural, muito mais do que fisiológi-

co.”16

O segundo e o terceiro questionamentos, que dizem respeito ao modo

como a cultura excluiu o desviante, procuram ser respondidos por Foucault

através de uma análise da formação e da constituição histórica do conceito

de louco. Afirma Foucault, que somente numa época recente é que o Oci-

dente deu à loucura um status de doença mental, isto é, somente com o sur-

gimento de uma medicina positiva é que o louco saiu de sua condição de

“possuído” para ingressar no campo das patologias mentais,17 quer dizer,

tornou-se ‘doente mental’, em razão da obra da Psiquiatria, o monólogo da

razão sobre a loucura. Para a historiografia psiquiátrica tradicional, o louco

da era medieval e do renascimento eram considerados doentes ignorados,

em especial pelas malhas do poder religioso, que lhe impunham significa-

ções e classificações místicas. Desse modo, a história dos loucos não diz

respeito à própria cientificidade, como se quisera sempre afirmar, mas, antes

disso, constitui uma história das idéias religiosas. Foucault ressalta, por

exemplo, que a própria Igreja católica teve duas formas bem distintas de

relacionamento com a loucura, sempre com vistas à manutenção de seu po-

der régio e social: num primeiro momento, procurou a interferência da me-

dicina, por volta de 1560 a 1640, a pedido dos parlamentos, dos governos e

das hierarquias eclesiásticas, para prosseguir com as Inquisições, compro-

vando que os loucos eram, na verdade, pessoas que através de suas imagi-

nações desregradas demonstravam pactos e ritos diabólicos, que precisavam

ser contidos e excluídos; num segundo instante, por volta de 1680 a 1740,

quando houvera a explosão do misticismo protestante e jansenista, em vir-

tude das perseguições do final do reinado de Luís XIV, novamente tornou a

Igreja católica a procurar a medicina, convocando inúmeros médicos para

demonstrar, então, que todos os atos e movimentos violentos dos humores

dos espíritos eram, na verdade, manifestações do êxtase, da inspiração, do

profetismo, da possessão pelo Espírito-Santo.18

A partir dessa interpretação, afirma Foucault que o nascimento do

“olhar” da medicina positivista esteve, inicial e lateralmente, ligado ao episó-

16 LEPARGNEUR, Hubert. Introdução aos ..., p. 76 e 78. 17 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 75. 18 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 76.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 153

dio histórico recente19 das malhas do poder das autoridades reais e eclesiás-

ticas, razão pela qual o louco foi, desse modo, permeado na sua configura-

ção por tais tramas. Nessa perspectiva, a loucura, enquanto fenômeno cultu-

ral, apresenta-se sob diversas formas, ora de maneira restritiva, em que se

buscava internar os doentes mentais, sem qualquer preocupação médica,

mas exclusivamente como forma de enjaular os furiosos para interná-lo,

demonstrando-se invisíveis aos olhares comuns; ora de modo amplo e aber-

to, na Idade Média, visível a todos e às manifestações culturais. A partir do

século XV, e por todo o Renascimento, a loucura se transforma num ponto

essencial de linguagem, e tal como a morte, precisa ser retratada, para que

todos a temessem. Nesse sentido, inúmeras obras literárias, artísticas e ma-

nifestações festivas são produzidas a fim de não fazer a loucura calar, como:

A Dança Macabra, no cemitério dos Inocentes, o Triunfo da Morte dos muros

de Campo Santo de Pisa, bem como as cotidianas festas dos loucos, o Navio

Azul em Flandres, a Nave dos Loucos, de Bosch, a Margot a Louca de

Breughel, a Stultifera Navis de Brant ou mesmo o Elogio da Loucura de Eras-

mo de Roterdam. É nessa orientação que muitos escritos trarão a loucura

como tema central, sobretudo Shakespeare e Cervantes.20

Esse período se caracteriza, como afirma Foucault, pela existência das

Naus dos Loucos, isto é, antes da loucura ser colocada no centro dos inter-

namentos em substituição aos leprosários como forma de exclusão, foi ela

posta diante dos olhares distantes das famílias, mas não sob a forma do en-

clausuramento, e sim, através de barcas destinadas a carregar os loucos para

fora da cidade, como forma de purificação. Annie Guedez claramente se per-

gunta: “Não seria o primeiro passo de nossa sociedade para o ‘grande aprisi-

onamento’?”21 Certamente que sim. A Stultifera Navis, tanto retratada nas

obras artísticas, como se vê na Narrenschiff de Brant, em 1947, constituía-se

num ‘dispositivo’, inicialmente imaginário, mas que ganhou sua concretude

nas paisagens européias da época, para realizar o anseio social de, ao mes-

mo tempo, retirar de vista os furiosos que ameaçavam a paz pública, e fazer

com que esses ‘errantes’ pudessem encontrar no horizonte suas próprias

verdades e seus destinos. Eram barcos loucos, que deslizavam ao longo dos

calmos rios da Renânia e dos canais de flamengos, destinados a levar a carga

insana de uma cidade para a outra. Barcos que, ao invés de confiar os loucos

e os criminosos a celas de retenção, para que se encontrassem com o divino,

confiava-os aos marinheiros, para que fossem excluídos da vida familiar, e,

como verdadeiros e míticos heróis, tal a disposição de Baluwe Schute de Ja-

cob Van Oestvoren de 1943, fossem levados prisioneiros de suas próprias

ações e de seus próprios rumos.

19 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. “A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também.” 20 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 77. 21 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 17.

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Retratadas tantas vezes, além de Oestvoren, mas por Josse Bade em

sua Stultiferae naviculae scaphae fatuarum mulierum, e por Sumphorien

Champier em sua Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza ou Nau das

Damas Virtuosas, do começo do séc. XVI, estas naus do desatino se resumi-

am no objetivo primordial de torná-los prisioneiros de sua própria partida,

isto é, ao levar-lhes de um lugar incerto a outro nenhum, fazê-los prisionei-

ros no interior do exterior, prendê-los em sua própria passagem, retirar-

lhes de circulação, eis as palavras poéticas de Foucault: “.. confiar o louco

aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinida-

mente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é

torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a

massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que

isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza

da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é,

potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua

barca louca, é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta na-

vegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem abso-

luta. Num certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma

geografia semi-real, semi-imaginária, a situação liminar do louco no hori-

zonte das preocupações do homem medieval – situação simbólica e realizada

ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas

da cidade; sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter ou-

tra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. (...) É um

prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente

acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o

Prisioneiro da passagem (...) Sua única verdade e sua única pátria são essa

extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.”22 Além da

existência das naus, a loucura antes de ser simplesmente excluída, era liber-

ta aos discursos poéticos e artísticos, representando tantas vezes uma forma

geral de crítica, isto é, através das farsas e das tramas que envolviam perso-

nagens loucos, fosse o Bobo, o Simplório. Igualmente se manifestava a lou-

cura, através das Festas e das Danças dos loucos, realizadas, sobretudo, na

22 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 22-23. “... confier le fou à des marins, c’est éviter à coup sûr qu’il ne rôde indéfiniment sous les murs de la ville, c’est s’assurer qu’il ira loin, c’est le rendre prisonnier de son propre départ. Mais à cela, l’eau ajoute la masse obscure de ses propres valeurs; elle emporte, mais elle fait plus, elle purifie; et puis la navigation livre l’homme à l’incertitude du sort; là chacun est confié à son propre destin, tout embarquement est, en puissance le dernier. C’est vers l’autre monde que part le fou sur as folle nacelle; c’est de l’autre monde qu’il vient quand il débarque. Cette navigation du fou c’est à la fois le partage rigoureux, et l’absolu Passage. Elle ne fait, en un sens, que développer, tout au long d’une géographie mi-réelle, mi-imaginaire, la situation liminaire du fou à l’horizon du souce de l’homme médiéval – situation symbolisée et réalisée à la fois par le privilège qui est donné au fou d’être enfermé aux portes de la ville: son exclusion doit l’enclore; s’il ne peut et ne doit avoir d’autre prison que le seuil lui-même, on le retient sur le lieu du passage. (...) Il est prisonnier au milieu de la plus libre, de la plus ouverte des routes: solidement enchaîné à l’infini carrefour. Il est le Passager par excellence, c’est-à-dire le prisonnier du passage (...) Il n’a sa vérité et sa patrie que dans cette étendue inféconde entre deux terres qui ne peuvent lui appartenir.” [trad. br. História da loucura ..., p. 11-12.]

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 155

região de Flandres e no Norte da Europa, a ver-se nas sátiras de Corroz Con-

tre Fol Amour e de Louse Labé Débat de Folie et D’Amour, a pintura de Jerô-

nimo Bosch A Cura da Loucura e a Nau dos Loucos, a de Brueghel Dulle Gre-

te, as danças dos mortos na música, e, especialmente, na obra Bosch Nau

dos Loucos e de Erasmo de Roterdam, O Elogio da Loucura, apesar da sutil

diferença existente entre estas duas últimas visões da loucura, ora como

punição cósmica do saber, ora no relacionamento do homem consigo. Nesse

sentido, pode-se afirmar que a loucura na época das naus, tão próxima da

morte, do nada, em continuação ao mal da lepra, representa um dos estágios

colocados na hierarquia dos vícios, quer dizer, é colocada como um espetá-

culo a ser reconhecido satiricamente pelos homens. Nasce, nesse período, o

que Foucault chama de uma “consciência crítica da loucura”, isto é, um con-

fronto entre a consciência crítica e a experiência trágica da loucura, que pos-

teriormente com os internamentos desaparece, salvo nas ricas obras de Ni-

etzsche, Van Gogh e Artaud.

No mesmo compasso que a loucura passa a ser posta em discurso, em

linguagem, demonstrando o relapso dos estudos sobre os loucos, então me-

ra manifestação artística, surgem, ainda por volta do séc. XV, os primeiros

estabelecimentos reservados aos loucos, nos quais estes eram submetidos a

rígidos tratamentos, especialmente na Espanha, em Saragossa, e na Itália.

Todavia, apesar da existência incipiente desses internamentos, o louco con-

tinuou a fazer parte da experiência cotidiana, circulando pelas peças de tea-

tro e pelas ruas das cidades. É nesse contexto que surgem, enfim, já no séc.

XVII os grandes internamentos como forma de exclusão, criando-se por toda

a Europa estabelecimentos comuns, chamados de “casas de internamento”

(as Workhouses na Inglaterra, as Zuchthäusern na Alemanha, o agrupamento

dos hospitais franceses de Salpêtrière e Bicêtre em torno do Hôpital Général,

etc.),23 destinados a inúmeros indivíduos, que não só os loucos, como os

pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos,

os portadores de doenças venéreas, os libertinos de toda espécie, as pessoas

a quem a família ou o poder real queria evitar um castigo público, os pais de

família dissipadores, os eclesiásticos em infração, em suma, como bem ex-

pressou Annie Guedez, no mesmo ano da publicação de Histoire de la Folie,

os “espelhos deformantes” da sociedade.24 Tratam-se de estabelecimentos,

segundo Foucault, sem qualquer vocação médica,25 cujo único objetivo se

caracteriza na exclusão, quer dizer, retirar dos olhos da população o acome-

tido pela loucura. Nestes lugares, procura-se, quando possível, submeter os

doentes e os excluídos a regimes de trabalho forçado a preços baixos, para

que incitem desde o início o espírito do capitalismo, que na época reinava, e

23 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 53. [trad. br. História da loucura ..., p. 48.] 24 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 19. 25 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 79.

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que tanto Weber já afirmara, como visto acima. É, por isso, que certamente

os primeiros internamentos se deram na Inglaterra, berço da sociedade in-

dustrial, que precisava colocar nos espaços vagos da lepra outro elemento de

exclusão. Por essa razão, as casas de internamentos se convertiam em ver-

dadeiros mecanismos de reestruturação do espaço social, a partir da exclu-

são dos que estivessem fora do padrão de conduta, em suma, fora do mer-

cado de trabalho, como bem ressalta Annie Guedez: “é também quando se

desenvolve a ideologia da produtividade que a marginalização e a anormali-

dade se definem em relação aos modos de produção e que a loucura é, em

primeiro lugar, uma forma de improdutividade.”26 Eis as palavras de Fou-

cault: “A exclusão a que são condenados está na razão direta desta incapaci-

dade e indica o aparecimento no mundo moderno de um corte que não exis-

tia antes. O internamento foi então ligado nas suas origens e no seu sentido

primordial a esta reestruturação do espaço social.”27

A época clássica começa a nascer, e o louco é gradativamente excluído,

assim como tantos outros, pela razão da sociedade. Considerado um erro

descartiano a loucura é uma espécie de ofuscamento e de perturbação da

razão por “negros vapores da bílis,”28 isto é, o sujeito que erra é louco, e

deve ser excluído por aquele que duvida. Foi com o renascimento que a lou-

cura se separou da razão, constituindo, tal a visão de Descartes, como uma

imaginação, retirando, então, dos loucos o seu direito à palavra. Para excluí-

la, são criadas por toda Europa essas casas de internamento, como se vê

com o Hôpital Général surgido no dia 07 de maio de 1757, que a partir do

Édito Real, substituiu os leprosários, na função maior de retirar dos olhos da

sociedade os vagabundos, pobres, desempregados, correcionários e até os

insanos.29 Convém observar que, a criação do Hôpital Général, e seus inter-

namentos, e posteriormente a libertação dos acorrentados de Bicêtre, em

1794, com o advento do saber psiquiátrico, são certamente, dentro da obra

de Foucault, os dois momentos mais importantes na construção da separa-

ção da loucura e da razão. Retornando, naquele sentido, afirma Foucault que

com o internamento, “a experiência clássica da loucura nasce. A grande

ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietan-

tes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas for-

mas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevi-

tável cortejo da razão. A loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do

homem e da morte, uma figura escatológica; a noite na qual ela tinha os

olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O esque-

cimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não

26 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 20. 27 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 79. 28 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 49. [trad. br. História da loucura ..., p. 45.] 29 FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 533-534.

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irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca

mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no

meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca,

porém o hospital.”30

Destaca Foucault que essas casas de internamento, a ver-se pelo Hôpi-

tal Général, não eram casas para tratamento da doença ou do corpo, mas

verdadeiros instrumentos do monarca para controlar esse contingente ‘des-

regrado’ e ‘anômico’. Dessa maneira, pode-se dizer que os estabelecimentos

destinados ao internamento não detinham somente apenas poderes admi-

nistrativos burocráticos e policiais, porém especialmente poderes judiciários

em relação a esses excluídos, aptos a julgar, condenar, executar e fiscalizar

o cumprimento das penas impostas. Diante das crises econômicas que asso-

lavam a Europa, em especial do desemprego e da miséria, que permitirá mais

tarde uma ideologia protestante do capitalismo fulgurar, os internamentos

representam verdadeiros mecanismos de poder destinados a reconduzir a

inutilidade social ao trabalho, devolvendo aos loucos a sua sanidade. Mas ao

mesmo tempo em que o internamento vai lentamente se restringindo aos

loucos, que serão abordados pelo olhar médico do final do séc. XVIII, res-

tringe-se a punir todos aqueles que estavam distantes do comportamento

modal da sociedade. Eis as palavras de Foucault: “o Hospital Geral não é um

estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de

entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos

tribunais, decide, julga e executa. Soberania quase absoluta, jurisdição sem

apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer – o Hos-

pital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justi-

ça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão (...) É uma instância da

ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa

mesma época.”31

Nessas casas administrativas, médicas (saliente-se que o médico so-

mente era requisitado em casos extremos de fúria nessa época) e judiciais de

30 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 50. “L’expérience classique de la folie naît. La grande menace montée à l’horizon du XVe siècle s’atténue, les pouvoirs inquiétants qui habitaient la peinture de Bosch ont perdu leur violence. Des formes subsistent, maintenant transparentes et dociles, formant cortège, l’inévitable cortège de la raison. La folie a cessé d’être, aux confins du monde, de l’homme et de la morte, une figure d’eschatologie; cette nuit s’est dissipée sur laquelle elle avait les yeux fixés et d’où nais-saient les formes de l’impossible. L’oubli tombe sur le monde que sillonnait le libre esclavage de sa Nef: elle n’ira plus d’un en-deça du monde à un au-delà, dans son étrange passage; elle ne sera plus jamais cette fuyante et absolue limite. La voilà amarrée, solidement, au milieu des choses et des gens. Retenue et maintenue. Non plus barque mais hôpital.” [trad. br. História da loucura ..., p. 42.] 31 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 56. “l’Hôpital général n’est pas un établissement médical. Il est plutôt une structure semi-juridique, une sorte d’entité administrative qui, à côté des pouvoirs déjà constitués, et en dehors des tribunaux, décide, juge et exécute. Souveraineté quasi absolue, juridiction sans appel, droit d’exécution contre lequel rien ne peut prévaloir – l’Hôpital général est un étrange pouvoir que le roi établit entre la police et la justice, aux limites de la loi: le tiers-ordre de la répression. Il est une instance de l’ordre, de l’ordre monarqchique et bourgeois qui s’organise en France à cette même époque.” [trad. br. História da loucura ..., p. 50.]

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internamento, adota-se uma terapêutica singular de tratamento de loucos e

pobres, ingressando a medicina a incorporar o tratamento moral e, servindo,

de certa maneira, aos ideais da Igreja católica para insculpir o sagrado na

espiritualidade de cada doente. Apesar do que se possa imaginar, a Igreja

não esteve de fora desses internamentos, ainda que subsumidas ao poder

real: “Ainda que tenha deliberadamente ficado à margem da organização dos

hospitais gerais – sem dúvida, de cumplicidade entre o poder real e a bur-

guesia – a Igreja, no entanto, não permanece estranha ao movimento. Ela

reforma suas instituições hospitalares, redistribui os bens de suas funda-

ções; cria mesmo congregações que se propõem a finalidades análogas às

dos hospitais gerais.”32

Essa terapêutica se caracteriza por uma série de procedimentos médi-

cos e administrativos que se destinavam, à época da ‘grande internação’, a

estruturar uma forma de vigilância dos loucos, que mais tarde se estenderá

às prisões e para além da loucura a toda a sociedade (como se percebe na

interpretação do panóptico que Foucault, analisando Bentham, descreve em

Surveiller et Punir). Seu objetivo, segundo Pierre Billouet, traduz-se em fazer

da loucura um não-ser, um conteúdo essencialmente negativo.33 A partir da

classificação das doenças do espírito, reinante na época, em frenesi, mania,

melancolia e imbecilidade, segundo a interpretação de Doublet, os interna-

mentos possuíam uma estrutura rígida, e não dispensavam a formas de tra-

balho e culto como ortopedia social de medicamento. Em busca de seu obje-

tivo fatal, isolar para excluir, cujo gesto não se restringe a uma significação

mais simples, mas à tentações políticas, sociais, religiosas, econômicas e

morais, os internamentos se demonstravam como obra de religião e de or-

dem pública, mas, especialmente, de punição e ‘normalização’ dos corpos

indóceis,34 eis o que Foucault tão bem ressalta no capítulo do Mundo Corre-

cional de Histoire de la Folie, ao caracterizar o aspecto correcional dos inter-

namentos, com vista à associação entre a sociedade e o aparato policial.

Nesse sentido, uma série de caminhos lógicos e coordenados eram estabele-

cidos para o tratamento dos loucos na era clássica, eis o que Foucault traz

acostado à segunda edição de seu manuscrito de Histoire de la Folie, ao res-

gatar os regulamentos do Hôpital Général e da Maison de Saint-Louis de la

Salpêtrière: a) os horários: 5h era dado o toque de despertar, em seguida, os

32 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 58. “Même si elle a été assez délibéré-ment tenue à l’écart de l’organisation des hôpitaux généraux – de complicité sans doute entre le pouvoir royal et la bourgeosie – l’Église pourtant ne demeure pas étrangère au mouvement. Elle réforme ses institutions hospitalières, redistribue les biens de ses fondations; elle crée même des congrégations qui se proposent des buts assez analogues à ceux de l’Hôpital Général” [trad. br. História da loucura ..., p. 51.] 33 BILLOUET, Pierre. Figures du ..., p. 29-30. 34 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 59. “Les grands hospices, les maisons d’internement, oeuvres de religion et d’ordre public, de secours et de punition, de charité et de prévoyance gouvernementale sont un fait de l’âge classique ...” [trad. br. História da loucura ..., p. 53. “Os grandes hospí-cios, as casas de internamento, obras de religião e de ordem pública, de auxílio e punição, caridade e previ-dência governamental são um fato da era clássica...”]

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 159

oficiais, as oficiais, os domésticos, e todos os pobres deveriam se levantar,

salvo os enfermos e as crianças com menos de 5 anos – ia-se à missa, e,

após, começavam os trabalhos até às 6h, quando novamente se faziam ora-

ções e se fechavam em seus dormitórios; b) plano de trabalho: era indispen-

sável que nesses locais existisse um ar puro e que a água fosse salubre, bem

como era preciso que se praticassem passeios – haveria um departamento

dividido em vários corpos de alojamento, tendo cada um pátio, etc.; c) medi-

camentos: para o frenesi, por ser a doença menos difícil de curar dentre as

afecções do cérebro, utilizavam-se sangrias, purgantes, e, se necessário,

raspavam-se as cabeças e as umedecia – para a mania, banhos e duchas –

para a melancolia, tisanas leves, soro e banhos tépidos – e para a imbecilida-

de, infusão com aguardente, banhos frios e duchas.35

Enfim, os internamentos, na análise foucaultiana, a partir de toda essa

disposição do saber sobre a loucura e de uma terapêutica excludente da ra-

zão como não-ser, servem como instituições morais, isto é, não são meros

refúgios para aqueles que assim necessitam, mas instituições destinadas a

castigar e corrigir esses indivíduos considerados laboral e socialmente inú-

teis; servem como forma de ascese, lugar de coação moral, e, desta maneira,

determinam um novo estatuto da experiência da loucura em relação à alta e

à baixa Idade Média. Assim, muito bem sintetiza Foucault: “A internação é

uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início,

uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como

esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução

social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa

um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte

social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de

integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos

problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a impor-

tância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados

determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o senti-

do.”36

Com o surgimento das casas de internamento, um fenômeno significa-

tivo passa a nascer, quer dizer, a loucura, antes solta, pública e loquaz, res-

tringe-se então em seus espaços arquitetônicos, excluída, ingressando num

35 FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 536-540.] 36 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 80. “L’internement est une création institutionnelle propre au XVIIe siècle. Il a pris d’emblée une ampleur qui ne lui laisse aucune commune dimension avec l’emprisionnement tel qu’on pouvait le pratiquer au Moyen Âge. Comme mesure économique et précaution sociale, il a valeur d’invention. Mais dans l’histoire de la déraison, il désigne une événement décisif: le moment où la folie est perçue sur l’horizon social de la pauvreté, de l’incapacité au travail, de l’impossibilité de s’intégrer au groupe; le moment où elle commence à former texte avec les problèmes de la cité. Les nouvelles significations que l’on prête à la pauvreté, l’importance donnée à l’obligation du travail, et toutes les valeurs éthiques qui lui sont liées déterminent de loin l’expérience qu’on fait de la folie en infléchis-sent le sens.” [trad. br. História da loucura ..., p. 78.]

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tempo de silêncio, sendo despojada de sua linguagem por um vasto tempo,

até que Freud, já no séc. XX, abriu espaço para a razão e a desrazão se co-

municassem. Nesse sentido, afirma Foucault em maio de 1964: “... a loucura

é a língua do excluído – , aquele que, contra o código da língua, pronuncia

palavras sem significações (os ‘insensatos’, os ‘imbecis’, os ‘dementes’), ou

aquele que pronuncia palavras sacralizadas (‘os violentos’, os ‘furiosos’), ou

aquele ainda que faz passar significações proibidas (os ‘libertinos’, os ‘tei-

mosos’). Essa repressão da loucura como palavra proibida.”37 Esse período

de internamento, em que a loucura é calada, fez surgir concomitantemente

um acontecimento extraordinário, que foi a aproximação da loucura com

outros parentescos, isto é, com os doentes venéreos, os pobres, os liberti-

nos, os idosos, os criminosos, etc. É, pois, nesse ínterim que os loucos e os

criminosos se tocam, a ver-se pelos aportes realizados entre os loucos e os

criminosos passionais,38 numa relação que conservará, de certo modo, ao

menos do ponto de vista de um poder de normalização, uma relação indis-

pensável, como se verá adiante.

No entanto, o internamento não tem sua duração muito estável, e tam-

pouco consegue atingir seus objetivos, isto é, manter especialmente a loucu-

ra silenciosa,39 de tal maneira que, a partir da metade do século XVIII, a in-

quietude renasce pelo medo de que todos passam a ter em relação às suas

estruturas, haja vista a deturpação de sua idéia tradicional de assistência, e o

louco retorna às paisagens públicas, restituindo, assim, a antiga liberdade à

loucura. “Bruscamente, em alguns anos no meio do século XVIII, surge um

medo. Medo que se formula em termos médicos mas que é animado, no

fundo, por todo um mito moral. Assusta-se com um mal muito misterioso

que se espalhava, diz-se, a partir das casas de internamento e logo ameaça-

ria as cidades. Fala-se em febre de prisão...”40 Nesse sentido, interpreta Fou-

cault, que as casas de internamento não simplesmente assumem o lugar da

lepra na exclusão, mas a colocam diante da própria cidade. Os internamen-

tos se transformam em verdadeiros espaços de punição e controle social,

37 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence d’œuvre. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994, p. 417. “... la folie, c’est le langage exclu –, celui que, contre le code de la langue, prononce des paroles sans signification (les ‘insensées’, les ‘imbéciles’, les ‘déments’), ou celui qui prononce des paroles sacralisées (‘les violents’, les ‘furieux’), ou celui encore qui fait passer des significations interdites (les ‘libertins’, les ‘entêtés’). Cette répression de la folie comme parole interdite.” [trad. do autor.] 38 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. “Não nos espantemos que se tenha desde o século XVIII descoberto uma espécie de filiação entre a loucura e todos os ‘crimes de amor’, que a loucura tenha-se torna-do, a partir do século XIX, a herdeira dos crimes que encontram, nela, ao mesmo tempo sua razão de serem, e de não serem crimes; que a loucura tenha descoberto no século XX, em seu próprio centro, um núcleo primiti-vo de culpa e de egressão.” 39 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 80. 40 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 204-205. “Brusquement, en quelques années au milieu du XVIIIe siècle, surgit une peur. Peur qui se formule en termes médicaux, mais qui est animée au fond par tout un mythe moral. On s’effraye d’un mal assez mystérieux qui se répandrait, dit-on, à partir des maisons d’internement et menacerait bientôt les villes. On parle des fièvres des prisons...” [trad. br. História da loucura ..., p. 353.]

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 161

carregando consigo, segundo a leitura foucaultiana, todos os males e as de-

turpações existentes na época do contágio da lepra. Nessa perspectiva, atra-

vés de uma linguagem poética, Foucault argumenta que o mal da lepra, en-

terrados sob a pavimentação dos internamentos, vem novamente à tona, e se

espalha por toda a cidade, mas não sob a forma contagiosa da doença orgâ-

nica, mas sob a forma do desatino, que toma os espaços e liberta a loucura

na sua linguagem: “... o mal entra em fermentação nos espaços fechados do

internamento. Tem todas as virtudes atribuídas ao ácido na química do sé-

culo XVIII: suas finas partículas, cortantes como agulhas, penetram nos cor-

pos e nos corações tão facilmente como se fossem partículas alcalinas, pas-

sivas e firáveis. Essa mistura logo entra em ebulição, soltando vapores noci-

vos e líquidos corrosivos. Esses vapores ferventes elevam-se a seguir, espa-

lham-se pelo ar e acabam por cair nas vizinhanças, impregnando os corpos,

contaminando as almas (...) o círculo está fechado: todas essas formas do

desatino que haviam ocupado, na geografia do mal, o lugar da lepra e que se

havia banido para bem longe das distâncias sociais, tornaram-se agora lepra

visível, e exibem suas chagas comidas à promiscuidade dos homens”41 (essa

é, certamente, segundo Foucault, a primeira das causas de reforma ocorrida

na segunda metade do século XVIII: reduzir a contaminação, destruindo as

impurezas e os vapores, impedindo que o mal se dissipe).

O grande medo da loucura retoma seu lugar na problemática do século

XVIII, antes resolvido com os internamentos, de conseqüência, a loucura en-

tra num novo ciclo, separa-se do desatino (que se dedica a partir de então à

experiência poética ou filosófica, como em Sade, Hölderlin, Nerval e Nietzs-

che), e se tranforma, numa visão médico-positivista, meramente fisiológica,

naturalista e anti-histórica, que permite o homem encontrar sua verdade

imediata. A loucura, segundo Foucault, retorna à discussão, faz o desatino

falar as velhas obsessões, e se desprende dos internamentos, que, consegui-

ram, por certo tempo, mantê-la enclausurada. Nesse sentido, aquém do me-

do da loucura, o retorno dos loucos às ruas é marcado pelos ideais políticos

dos reformadores, uma espécie de luta contra a opressão e o anti-

assistencialismo das casas de internamento. Ao mesmo tempo em que os

loucos são libertados de suas correntes de Bicêtre, como dissera Annie Gue-

dez, são feitos prisioneiros de um domínio científico, pois, classificados co-

mo ‘doente mentais’, são enclauruados num lugar privilegiado, espaço de

cura e terra de verdades.42 Entretanto, igualmente precisam ser contidos, a

41 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 206-207. “...le mal entre en fermentation dans les espaces clos de l’internement. Il a toutes les vertus qu’on prête à l’acide dans la chimie du XVIIIe siècle: ses fines particules, coupanes comme des aiguilles, pénètrent les corps et les coeurs aussi facilement que s’ils étaient des particules alcalines, passives et firables. Les mélange aussitôt bouillonne, dégageant vapeurs nocives et liquides corrosifs. Ces vapeurs brûlantes s’élèvent ensuite, se répandent dans l’air et finis-sent par retomber sur le voisinage, imprégnant les corps, contaminant les âmes.” [trad. br. História da loucu-ra..., p. 354-355.] 42 GUEDEZ, Annie. Foucault ..., p. 23.

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fim de que não se tornem verdadeiros perigos públicos, razão pela qual sur-

ge a idéia de imposição de uma sanção penal, aplicável tanto aos que deixam

errar os loucos e os animais perigosos. Nessa perspectiva, durante a Revolu-

ção Francesa e o império napoleônico, as casas de internamento acabam

sendo paulatinamente restringidas somente aos loucos, tornando, assim, o

internamento uma medida de caráter médico. É nesse momento que a loucu-

ra e desatino se consolidam na divisão. Esse período, de restrição dos esta-

belecimentos de internamento exclusivamente aos loucos, em especial pelas

contribuições de Philippe Pinel na França, de Willian Tuke na Inglaterra, e de

Wagnitz e Riel na Alemanha, marcam uma reviralvolta tanto em direção ao

humanismo, quanto em direção a uma ciência médica positiva. É o momento

em que o Ocidente efetivamente separa o senso do contra-senso, e surge,

com os ideais revolucionários, para fazer triunfar o princípio da liberdade, a

necessidade de se destacar a responsabilidade individual. Nesse compasso,

medicina e direito caminham juntos na exclusão do louco. Saber e práticas

se misturam nas malhas do poder.

Nessa época, surgem, portanto, concepções em torno de internamen-

tos ideais, isto é, de “asilos ideais”43, uma espécie de reconstrução da própria

família ao redor do alienado, sendo esse submetido imediatamente a um

controle social e moral ininterrupto. A partir dessa noção, a noção de “cura”

da doença mental passa pela idéia de reinculcar no indivíduo acometido os

sentimentos de dependência, humildade, culpa e reconhecimento, de conse-

qüência, surgem diversos modelos de cura, como privações alimentares,

humilhações, ameaças, castigos, mas todos se resumem na idéia de “vigilân-

cia moral” do louco: “... o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebai-

xado nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus

êrros: a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a

uma conduta normal. E isto sob a direção do médico que está encarregado

mais de um contrôle ético que de uma intervenção terapêutica. Êle é, no asi-

lo, o agente das sínteses morais.”44 Os asilos se tornam, portanto, novas

formas de exclusão no interior da anterior exclusão operada pelos interna-

mentos, mas então, sob os olhares de uma medicina positiva.

Todavia, ao mesmo tempo em que esses novos tratamentos do louco

aparecem, mantinham-se, ainda, sob o ponto de vista teórico, as mesmas

cartilhas médicas de estudos sobre a loucura, de tal modo que, a partir dos

estudos dos sintomas de uma metapatologia, procurava-se, assim, não dis-

tinguir tão claramente, já que o raciocínio cartesiano não havia atingido as

práticas médicas, os tratamentos psicológicos e os orgânicos ou físicos,

submetendo-se, inevitavelmente, os pacientes acometidos por doenças de

pele, por exemplo, e os esquizofrênicos a banhos de água fria, a fim de lhes

43 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 81. 44 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 82.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 163

resfriar o espírito e lhe impondo “impressões vivas para modificar o curso da

sua imaginação”.45 Com o passar dos anos, esses mecanismos que objetiva-

vam a cura, como as máquinas rotatórias e as gaiolas móveis, são substituí-

dos pela idéia de punição por erros eventualmente cometidos, tendo seus

usos restringidos. Portanto, a partir das práticas médicas da época de Pinel,

a loucura deixa de ser considerada um fenômeno global relativo, para se

tornar, nesse universo dos “asilos”, um “ato que concerne essencialmente à

alma”, isto é, um fato que precisa ser punido, para inculcar a culpa e a liber-

dade, razão pela qual adquire, assim, um status de doença mental sob o

ponto de vista científico. A loucura surge, desta maneira, enquanto fato a ser

estudado, ligada diretamente à existência de um sistema de valores e de

repressões morais, inserida num sistema punitivo, em que o louco passa a

ser equiparado à criança e os seus erros. Nesse sentido, afirma Michel Fou-

cault “.. toda esta psicologia não existiria sem o ‘sadismo moralizador’ no

qual a ‘filantropia’ do século XIX enclausurou-a, sob os modos hipócritas de

uma ‘liberação’.”46

O desatino, no início do séc. XIX, definitiviamente se distancia da lou-

cura, e se reserva a rotular os libertinos, como Sade, que faziam do corpo e

da sexualidade a linguagem de seus delírios.47 Separaram os alienados e os

insensatos, antes confusos na mentalidade do séc. XVIII. Dessa maneira, o

alienado seria aquele que havia perdido completamente a verdade, entregue

à ilusão de seus sentidos, enquanto o insensato, rescende sua loucura, e se

transforma numa razão pervertida, desviada em seus movimentos do espíri-

to. Portanto, a loucura, tal como ficara recôndita no internamento do séc.

XVII, isola-se no asilo e retoma a linguagem que havia conquistado no silên-

cio de sua clausura. É o momento em que humanitarismo da psiquiatria clás-

sica, que vai de Pinel a Bleuler ressente, provocando a reforma das institui-

ções e o destaque de Esquirol e da ciência da loucura. A loucura, portanto,

para ser compreendida pela ciência médica, ao mesmo tempo em que ganha

seu lugar, precisa ser afastada, e, esse lugar, certamente, é o lugar de seu

exílio. “O louco não é a primeira e a mais inocente vítima do internamento,

porém o mais obscuro e o mais visível, o mais insistente dos símbolos do

poder que interna.”48

Para Foucault, ao contrário do que o humanitarismo sempre havia pre-

gado, o deslocamento dos loucos encarcerados como criminosos para os

45 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 82. 46 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 84. 47 Nesse sentido, ver uma entrevista de Foucault, concedida a G. Dupont, em 1975: DUPONT, G. Sade, sergent du sexe. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 818-822.; e também um artigo de Eliane Moraes sobre a concepção foucaultiana de Sade: MORAES, Eliane Robert. Sade: uma proposta de leitura. Foucault Vivo (org. Ítalo Tronca) Campinas: Pontes, 1987, p. 43-52. 48 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 230. “Le fou n’est pas la primière et la plus innocente victime de l’internement, mais le plus obscur et le plus visible, les plus insistant des symboles de la puissance qui interne.” [trad. br. História da loucura ..., p. 396.]

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‘asilos ideais’, a fim de que a medicina lhes compusesse seus problemas, na

verdade, seria efeito de um fenômeno muito mais complexo, que só uma

consciência política do internamento é que poderia explicar. Nas orientações

foucaultianas, a libertação da loucura acorrentada como criminosa não teria

sido simples atenção filantrópica ou médica, mas, pelo contrário, a crítica

política dos anteriores internamentos que havia se estabelecido, tinha por

escopo maior a própria união entre a loucura e o internamento, num duplo

elo: “um fazia dela o próprio símbolo do poder que encerra e seu represen-

tante irrisório e obsedante no interior do mundo do internamento; o outro,

que a designava como o objeto por excelência de todas as medidas de inter-

namento.”49 A segunda metade do séc. XVIII, salienta Foucault, teria sido

marcada, desde a guerra dos sete anos, por uma crise imensa, advinda de

más colheitas, e do comércio, provocando desemprego e miséria. Os vintes

anos que precederam a Revolução, a qual tem esta como um de seus esto-

pins, é marcado por uma recessão abrupta, aumentando significativamente a

população das casas de internamento (poderoso instrumento sobre o merca-

do da mão-de-obra), razão política que jamais pode ser esquecida como

propulsor das teorias humanitárias de Pinel. Foucault entende que a forma-

ção dos asilos, e, conseqüentemente, a constituição de uma medicina positi-

va, só teria sido possível porque essa indesejada alteração econômica havia

acometido os horizontes mundiais do comércio, e internar a mão-de-obra,

tal como se fazia nas casas de internamento, seria um contra-senso, já que

deixá-la em plena liberdade, serviria a uma potencialidade de mão-de-obra

barata necessária para desenvolver as indústrias que começam a polular o

ambiente rural.

Essa consciência política da loucura, que pode ser encontrada em Fou-

cault, é melhor ressaltada pelo intelectual em seu livro Naissance de la Clini-

que, quando dois anos mais tarde à publicação de Folie et Désaison, como

visto, interpreta por uma arqueologia do olhar médico o nascimento dos

hospitais e da medicina positiva, como forma de reforma das práticas médi-

cas não simplesmente operada pelos ideais humanitários dos revolucioná-

rios, mas como fruto da própria reforma burocrática do Estado. Para Fou-

cault, o surgimento do hospital, a grosso modo, visto como tecnologia médi-

ca, é recente e marcado por uma ruptura essencial com a anterior forma de

medicina hospitalar existente no regime imperial. Nesse sentido, convém

trazer à lume uma conferência proferida por Foucault em outubro de 1974

na Universidade Estadual do Rio de Janeiro intitulada L’Incorporation de

49 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 233. “l’un qui faisait d’elle le symbole même de la puissance qui enferme, et son représentant dérisoire et obsédant à l’intérieur du monde de l’internement; l’autre qui la désignait comme l’objet par excellence de toutes les mesures d’internement.” [trad. br. História da loucura ..., p. 399.]

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l’Hôpital dans la Technologie Moderne,50 quando afirma: “O hospital como

instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, uma vez que

data do final do séc. XVIII. É em torno de 1760 que apareceu a idéia de que o

hospital podia e devia ser um instrumento destinado a curar a doença. Isso

se produz através de uma nova prática: a visita e a observação sistemática e

comparada dos hospitais.”51 O hospital terapêutico e asilar vem por substitu-

ir o hospital da época dos grandes internamentos, que era configurado como

uma instituição de assistência aos pobres, uma espécie de “institucionaliza-

ção da miséria”, isto é, uma forma de impedir que existissem focos de de-

sordem econômica e social52, bem como fonte de separação e exclusão soci-

al, já vez que a pobreza seria portadora de doença (tal é a miséria que as-

sombrava os internamentos, que os próprios montanheses no período revo-

lucionário declaravam em altos brados seus ideais: “não mais indigentes, não

mais hospitais”).53

Nessa perspectiva, salienta Foucault que os asilos vêm por compor a

situação emergente da Europa dos internamentos, que eram antes de insti-

tuições filantrópicas verdadeiros espaços de igual exclusão, de mortes cole-

tivas, "templos de morte”54, em que os leitos, ou melhor, as celas de clausura

não eram organizadas por médicos, tal como hodiernamente o são, mas por

50 Essa conferência, que segundo Daniel Defert e François Ewald teria sido proferida no ano de 1974 na UERJ, o que é fruto de algumas controvérsias entre os biógrafos, como anteriormente salientado; há duas versões distintas, uma, acostada na compilação feita por esses intelectuais no terceiro volume do Dits et Écrits, sob o título L’Incorporation de l’Hôpital dans la Technologie Moderne, de tradução de D. Reynié [Ver: FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital dans la technologie moderne. (trad. D. Reynié) Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 3 Paris: Gallimard, 1994, p. 508-521.]; outra, intitulada O Nascimento do Hospital, colhida junto à compilação brasileira feita por Roberto Machado na clássica Microfí-sica do Poder [Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 99-112.]. Desconhece-se nesta pesquisa a razão da existência de duas versões, embora talvez seja fruto de duas anotações ou gravações distintas da conferência, já que fora proferida aqui no Brasil. Todavia, opta-se nas citações pela edição francesa, já que tem sido o escopo deste ensaio desde o início. 51 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 508. “L’hôpital en tant qu’instrument thérapeu-tique est en effet un concept relativement moderne, puisque’il date de la fin du XVIIIe siècle. C’est autour de 1760 qu’est apparue l’idée que l’hôpital pouvait et devait être un instrument destiné à guérir le malade. Cela se produit a travers d’une nouvelle pratique: la visite et l’observation systématique et comparée des hôpitaux.” [trad. do autor.] 52 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 15-16. “L’hôpital, comme la civilisation, est un lieu artificiel où la maladie transplantée risque de perdre son visage essentiel. Elle y rencontre tout de suite une forme de com-plications que les médecins appellent fièvre des prisons ou des hôpitaux: asthénie musculaire, langue sèche, saburale, visage plombé, peau collante, dévoiement digestif, urine pâle, oppression des voies respiratoires ...” [trad. br. O nascimento ..., p. 17. “O hospital, como a civilização, é um lugar artificial em que a doença, trans-plantada, corre o risco de perder seu aspecto essencial. Ela logo encontra nele um tipo de complicação que os médicos chamam febre das prisões ou dos hospitais: astenias muscular, língua seca, saburra, rosto lívido, pele pegajosa, diarréia, urina descorada, opressão nas vias respiratórias.....”] 53 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 66. “Plus d’indigents, plus d’hôpitaux.” [trad. br. O nascimento ..., p. 75.] 54 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 16. “Et puis, peut-on effacer les fâcheuses impressions que fait sur un malade, arraché à sa famille, les spectacle de ces maisons qui ne sont pour beaucoup que ‘le temple de la mort.’” [trad. br. O nascimento ..., p. 17. “... e, além disso, pode-se apagar as desagradáveis impressões que causam ao doentes, afastado de sua família, o espetáculo dessas casas que não são para muitos senão ‘o tem-plo da morte’.”]

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leigos, normalmente religiosos e caridosos, que procuravam auxiliar os do-

ente a fim de que obtivessem não a mera cura orgânica, mas a salvação

eterna. Era uma espécie de passagem, quer dizer, um lugar de transição en-

tre a condição viva e o estado da morte, entre a população sã e os indivíduos

desregrados e perigosos à sociedade e à sua saúde. Nesse sentido, congre-

gando loucos, doentes, libertinos, prostitutas, pobres e devassados, como

organização de assistência e transformação espiritual, os hospitais das “cor-

rentes” serviam à época, até o momento em que precisaram ser extintos ou

modificados, aos desígnios da política estatal: “proteção das pessoas sadias

contra a doença; proteção dos doentes contra as práticas das pessoas igno-

rantes.”55 Eram, enfim, instituições que se destinavam antes aos pobres que

aos doentes, tanto que os funcionários desses hospitais de internamento

buscavam não a cura, mas a própria salvação dos doentes; e isso porque o

pobre como miserável possuía a necessidade de que o Estado o excluísse do

seio social para que os demais membros da sociedade fossem preservados.56

Nesse sentido, os asilos eram, sem dúvida, uma forma de exclusão, um

espaço que, conservadas as inovações propiciadas pelo olhar da medicina

positiva, permanecia em seu objetivo maior, que era retirar do centro das

atenções sociais a figura do louco, e recolocá-lo sob um novo dispositivo de

internamento supostamente mais democrático. É necessário destacar que

alguns autores foram de encontro a essa posição foucaultiana da exclusão,

especialmente Alain Renault e Luc Ferry, que em 1985, num clássico livro

intitulado La Pensée 68: Essai sur l’Anti-Humanisme Contemporain, quando,

assumindo uma crítica fantástica, impuseram a Foucault os tristes predica-

dos de “confuso”, já que resgatava a Nau dos Loucos ao invés da abertas

camisas-de-força e incorria em inúmeros equívocos de registro; e de “dis-

crente”, porque, utilizando-se da vulgata do pensamento de 68 (a “cancione-

ta anti-repressiva”: isto é, asilos, prisões, escolas, etc.) entendia ser o asilo

55 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 41. “Protection des gens sains contre la maladie; protection des malades contre les pratiques des gens ignorants.” [trad. br. O nascimento ..., p. 45.] 56 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 511. “Avant le XVIIIe siècle, l’hôpital était essen-tiellement une institution d’assistance aux pauvres. Il était en même temps une institution de séparation et d’exclusion. Le pauvre, en tant que tel, avait besoin d’assistance; comme malade, il était porteur de maladie qu’il risquait de propager. En résumé, il était dangereux. De là l’existence nécessaire de l’hôpital, tant pour les recueillir que pour protéger les autres du danger qu’ils représentaient. Jusqu’au XVIIIe siècle, le personnage idéal de l’hôpital n’était donc pas le malade, celui qu’il fallait soigner, mais le pauvre, qui était déjà moribond. Il s’agit ici d’une personne qui nécessite une assistance matérielle et spirituelle, qui a besoin de recevoir les ultimes secours et les derniers sacrements. C’était là la fonction essentielle de l’hôpital. On disait alors – et avec raison – que l’hôpital était un lieu où l’on venait mourir.” [trad. do autor “Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Ele era, ao mesmo tempo, uma institui-ção de separação e de exclusão. O pobre, como pobre, tinha necessidade de assistência; como doente, ele era portador de doença que poderia se propagar. Em suma, ele era perigoso. Por estas razões, os hospital é neces-sário tanto para recolher os pobres quanto para proteger os outros do perigo que eles representavam. Até o século XVIII, o personagem ideal do hospital não era o doente, que era preciso ser curado, mas o pobre que estava morrendo. Trata-se aqui de uma pessoa que necessita uma assistência material e espiritual, que tem necessidade de receber os últimos socorros e os últimos sacramentos. Era essa a função essencial do hospital. Dizia-se, então – e com razão – que o hospital era um lugar onde se morria.”]

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um instrumento da lógica de exclusão da razão e do estado, e não uma uto-

pia democrática, que procurava tratar a loucura não sob banhos de aguar-

dente, choques e sangrias, mas por um tratamento moral.57 Todavia, tal

pensamento está, certamente, dentro da lógica a que muito bem se propu-

seram os autores, entretanto, acabam por atribuir uma abordagem um tanto

restrita e diferente a que o próprio Foucault havia dado, colocando-o na li-

nha dos niilistas, o que evidentemente não se pode dizer, já que seus quesi-

tonamentos são imbuídos de uma crítica fundamentada na própria ciência,

embora precisasse ser repensada (como visto outrora na relação com Nietzs-

che).

Destaca Foucault, então, que uma das principais razões para a modifi-

cação dos hospitais-assistência para os hospitais-terapêutica, isto é, dos

internamentos para os asilos, foi antes uma busca pela anulação dos efeitos

prejudiciais ao desenvolvimento de novas doenças,58 que fervilhavam da mi-

séria do povo, e, logo, antes uma tentativa de controlar a desordem institu-

cional e econômica que assolava a Europa, especialmente a França da pré-

revolução, do que simples atuação para melhorar as condições dos hospitais

e dos doentes mentais (eis a crítica aos ideais puros de Pinel). Nesse sentido,

acrescenta Foucault, que um fato signo-presuntivo da necessidade de se ter

uma consciência política do nascimento dos hospitais terapêuticos e dos

asilos que não a humanização, diz respeito ao nascimento dos primeiros

regulamentos do Estado, que, na busca pela ordem hospitalar, teriam surgi-

do inicialmente nos hospitais marítimos e das bases militares, lugares esses

marcados por uma desordem abominável, vez que havia um tráfico incontro-

lável de mercadorias trazidas das colônias: “Foi nos hospitais militares que

se organizou primeiramente o ensino clínico”.59 Segundo Foucault, na citada

conferência proferida na Bahia, toda a organização hospitalar da Europa no

século XVII havia começado nos hospitais marítimos e militares: “O ponto de

partida da reforma hospitalar não foi o hospital civil, mas o hospital maríti-

mo. A razão é que o hospital marítimo era um lugar de desordem econômi-

ca. De fato, era a partir dele que se organizava o tráfico de mercadorias, ob-

jetos preciosos e outras matérias raras provenienteS das colônias. O trafi-

cante se fazia doente e era levado para o hospital no momento do desem-

57 FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68 ..., p. 108-109. 58 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 18. “L’hôpital, créateurs de la maladie par le domaine clos et pestilentiel qu’il dessine, l’est une seconde fois dans l’espace social où il est placé.” [trad. br. O nascimento ..., p. 20. “O hospital, criador de doença, pelo domínio fechado e pestilento que representa, também o é no espaço social em que etá situado.”] 59 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 57. [trad. br. O nascimento ..., p. 64.]

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barque. Aí, ele dissimulava os objetos que escapavam, assim, do controle

econômico da alfândega.”60

Paralelamente aos asilos, esses hospitais terapêuticos, ou hospitais-

exclusão, e a formação da nova clínica, surgidos no final do séc. XVIII e ex-

postos aos mesmos ideais do Estado, representam uma espécie de tecnolo-

gia política, quer dizer, são construções novas, substitutivas das formas de

internamento e dos antigos leprosários, e representam um deslocamento,

sob três pontos de vista: primeiro, administrativo, uma vez que são retirados

da periferia e relocados nos centros urbanos, a fim de que os doentes pos-

sam melhor serem mapeados (o internos passaram a utilizar pulseiras, como

forma de identificação, permitindo, assim, que bancos de dados e registros

fossem construídos, transformando o hospital para além da terapia, isto é,

em cadastros documentais, de acúmulo de saber e informação); segundo,

arquitetônico, porque sofrem uma alteração estrutural, passando a integrar

leitos individuais e isolados, com o objetivo primordial de permitir que a

intervenção especializada seja sobre o doente e não sobre a doença, tal co-

mo se fazia; terceiro, acadêmico, decorrente da alteração das demais, já que

o médico, numa perspectiva clínica, é inserido entre os corredores da insti-

tuição, em substituição aos leigos benevolentes e aos religiosos. “Esta nova

definição da clínica estava vinculada a uma reorganização do domínio hospi-

talar.”61 Dessa maneira, nos hospitais terapêuticos, os médicos, insertos en-

tre leitos, servindo-se antes de garantia que verdadeira ação real,62 avizi-

nham-se de seus doentes, e passam a acompanhar-lhes a vida, os sintomas

da doença, a sua evolução e seus efeitos, não mais exclusivamente dos ricos,

que assim podia pagar-lhes o serviço em domicílio, mas de toda uma popu-

lação, recolocada pela miséria não ‘da economia’, mas da doença. Com o

aparecimento da medicina positiva, os médicos, como visto, ganham desta-

que, isto é, ganham uma espécie de dimensão institucional e política: “A

primeira tarefa do médico é, portanto, política: a luta contra a doença deve

começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e

definitivamente curado se for primeiramente liberto.”63

60 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 513. “Le point de départ de la réforme hospitaliè-re n’a pas été l’hôpital civil, mais l’hôpital maritime que était un lieu de désordre économique. En effet, c’est à partir de lui que s’organisait le trafic de marchandises, d’objets précieux et autres matières rares provenant des colonies. Le trafiquant feignant d’être malade était conduit à l’hôpital dès son débarquement.” Là, il dissimu-lait les objets qu’il soustrayait ainsi au contrôle économique de la douane.” [trad. do autor.] 61 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 82. “Cette nouvelle définition de la clinique était liée à une réorganisation du domaine hospitalier.” [trad. br. O nascimento ..., p. 93.] 62 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 519. “On appelait le médecin pour s’occuper des malades les plus gravement atteints. Moins qu’une action réelle, il s’agissait en fait d’une garantie, d’une simples justification.” [trad. do autor. “Chamava-se o médico para cuidar dos doentes mais graves. Menos que uma ação real, tratava-se, de fato, de uma garantia, de uma simples justificação.”] 63 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 33-34. “La première tâche du médecin est donc politique: la lutte contre la maladie doit commencer par une guerre contre les mauvais gouvernements: l’homme ne sera totale-ment et définitivement guéri que s’il est d’abord libéré.” [trad. br. O nascimento ..., p. 37.]

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Concomitantemente ao nascimento dos hospitais terapêuticos e dos

asilos, dois fatos ascendem igualmente: primeiro, a hierarquia institucional,

isto é, tal como a valorização administrativa do médico, apareceram novas

fontes de emprego organizadas: enfermeiros, assistentes, alunos, aprendizes

de enfermaria; de outro lado, a medicina clínica, que pela abertura do saber

nos corredores dos hospitais, através de aulas práticas, sai dos livros e se

demonstra no aparecimento da experiência clínica.64 Nesse sentido, a clínica

é, no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, um espaço de organização do

hospital e um espaço de formação e transmissão do saber médico: “... o lu-

gar em que se forma o saber não é mais o jardim patológico em que Deus

distribui as espécies; é uma consciência médica generalizada, difusa no es-

paço e no tempo, aberta e móvel, ligada a cada existência individual, mas

também à vida coletiva da nação, sempre atenta ao domínio indefinido em

que o mal trai, sob seus aspectos diversos, sua grande forma.”65 Portanto, a

clínica é o lugar de acumulação positiva do saber médico, quer dizer, é cons-

tante olhar sobre o doente, uma espécie de atenção milenar,66 determinada

pela maneira de dispor a verdade adquirida ao longo da sintomatologia e da

nosografia, bem como apresentada, como um caso a ser estudado pelo alu-

nos futuros médicos. A partir da clínica, a medicina positiva singulariza os

doentes e suas doenças, escutando e permitindo, assim, que a doença fale

sua língua através do corpo do doente. Sobre os doentes, estabelece-se toda

uma técnica de identificação dos doentes, como por exemplo: amarra-se no

pulso do doente uma etiqueta que permite distingui-lo dos demais e separá-

lo na sua eventual morte. Fichas são colocadas em cima dos leitos, bem co-

mo uma série de registros começam a ser praticados e suas informações

anotadas; colhem-se registros de entradas, saídas, visitas, diagnósticos dos

médicos, razões de internamento e de cura, dos medicamentos e dos trata-

mentos terapêuticos, de farmácia e de diagnósticos. Estabelece-se, assim,

todo um aparato de registro, quer dizer, todo um campo documental no in-

terior do hospital que não é somente um lugar de cura, mas também de re-

gistro, acúmulo e formação de saber, o que, por si, confere ao saber médico,

antes recluso nos livros, uma espécie de “jurisprudência médica”,67 que toma

seu lugar no cotidiano dos registros hospitalares. Nessa orientação, a clínica,

como lugar não só de cura, mas de formação de médicos, estabelece um

novo código de saber para a medicina, longe do simples olhar observador,

mas um olhar fundamentado no conhecimento e na instituição, que garan-

64 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 68. [trad. br. O nascimento ..., p. 77.] 65 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 31. “Le lieu où se forme le savoir, ce n’est plus ce jardin patho-logique où Dieu avait distribué les espèces, c’est une conscience médicale généralisée, diffuse dans l’espace et dans le temps, ouverte et mobile, liée à chaque existence individuelle, mais aussi bien à la vie collective de la nation, toujours éveillée sur le domaine indéfini où le mal trahit, sous ses aspects divers, sa grande forme massive.” [trad. br. O nascimento ..., p. 35.] 66 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 53. [trad. br. O nascimento ..., p. 59.] 67 FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital ..., p. 521.

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tem ao médico o poder de estudar, decidir e intervir. É um novo olhar médi-

co, baseado numa nova análise do visível e do invisível e numa nova lumino-

sidade,68 um olhar não de internamento, mas científico, um olhar clínico e

analítico, que disseca cadáveres, um olhar que escuta e que fala, como a

anátomo-clínica de Bichat e Broussais, um olhar que conjuga o domínio hos-

pitalar da prática e um domínio hospitalar da pedagogia, que busca conhe-

cer, para dominar. Uma forma de interpor a doença pela razão, tal como no

asilo se faz da loucura um monólogo pela razão.

Apesar de ater-se adiante no que tema que diz respeito à verdade, é

preciso afirmar que a prática médica do profissional que vai construir o ver-

dadeiro da doença tem início, segundo Foucault, no mesmo período em que

os hospitais expurgam os pobres e se debruçam sobre os doentes e os lou-

cos. O nascimento dos asilos e dos hospitais do século XVIII, ao romper com

a idéia de simples internamento e trazer à lume a ciência positiva, estabele-

ceu um novo regime de verdade em torno da doença, fato significativo que

dá ao olhar médico a natureza científica e de único discurso capaz de abor-

dar o doente e o louco. Começa, pois, então, sob as arcadas do bacharelis-

mo, toda uma série de novas exclusões que passam a ser praticadas pelos

médicos dos hospitais terapêuticos e dos asilos ao redor do conceito de ver-

dadeiro. Eis aí, segundo Foucault, o grande equívoco nascido junto com a

hospitalização, quer dizer, o hospital, então estrutura de acolhimento da

doença, transfomou-se num espaço de conhecimento e de lugar de prova.69

O hospital terapêutico passou a ser visto como o lugar de eclosão da verda-

deira doença, quer dizer, acreditava-se que se deixando livre o paciente, em

meio à sua família, em seus hábitos, preconceitos e ilusões, poder-se-ia

retirar todos os empecilhos de qualquer internamento, garantindo-se que a

verdadeira doença pudesse se produzir na autenticidade de sua natureza.

Nesse sentido, o hospital aprisionava a verdade da doença, e a fazia mani-

festar-se na sua própria realidade; em suma, o hospital-exclusão, tal como o

asilo dos loucos, permitiu que as condições ideais fossem criadas para que a

verdade do mal viesse à tona, tranformando-se num lugar de observação e

de prova. “Constituía uma espécie de aparelhagem complexa que devia ao

mesmo tempo fazer aparecer e produzir realmente a doença. Lugar botânico

para a contemplação das espécies, lugar ainda alquímico para a elaboração

68 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 202. [trad. br. O nascimento ..., p. 229.] 69 FOUCAULT, Michel. La maison des fous. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 697. [trad. br. A casa dos loucos. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 118.]

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das substâncias patológicas.”70 Nesse sentido, tal como os hospitais tera-

pêuticos, os asilos adquiriram, segundo Foucault, as mesmas funções no

início do século XIX em relação aos loucos, quer dizer, permitir que a verda-

de da doença mental fosse descoberta. Assim, a loucura, vista ora como

vontade perturbada, ora paixão pervertida, passa a encontrar uma verdade

vista pelo médico, uma vontade reta e de paixões ortodoxas.

Nessa perspectiva, tendo em mente essa concepção política do surgi-

mento dos hospitais terapêuticos e da clínica, bem como dos asilos, isto é,

dessa consciência política da loucura, destaca Foucault, que toda uma nova

formulação da loucura dentro dos asilos se forma, mas, especialmente, na

própria Justiça Criminal, que através das audiências públicas nos processos

pós-revolução, demonstram que duas formas de loucura precisariam sob o

ponto de vista jurídico serem separadas: de um lado uma loucura boa, que

está dentro dos ditames da razão, e de outro, uma loucura má, que se posta

do lado de toda imoralidade. A loucura, embora ganhe nova liberdade nas

mãos de Pinel, segundo Foucault, já tinha adquirido a sua liberdade pouco

tempo antes, diante deste aspecto da criminalidade, nesse sentido, teria

ocorrido um duplo movimento de liberação e sujeição, que teria permitido o

nascimento dos asilos. É com Pinel, consoante as interpretações foucaultia-

nas, que a loucura efetivamente teria se tornado objeto, mas não simples-

mente um objeto alienado, mas um estigma da existência alienada.

Convém esclarecer, que o fato da liberação da loucura pelas mãos hu-

manitárias de Pinel, criticado por Foucault e questão de tantas polêmicas,

como visto anteriormente, diz respeito ao seguinte: até 1793, quando Pinel é

então nomeado diretor das enfermarias de Bicêtre, sua estrutura era vista

como a ‘casa dos pobres’, posto que nela se encontravam misturados indi-

gentes, velhos, condenados, libertinos, loucos, a massa colocada por força

da revolução, e prisioneiros políticos. Nesse sentido, como usualmente sem-

pre se colocou, teria sido Pinel responsável por retirar o louco deste lugar,

bem como, por rever os anteriores internamentos e separar aqueles real-

mente doentes mentais e os que o fossem por força de posicionamentos

políticos contrários. Para Foucault, sob o ponto de vista intelectual, pensar a

70 FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 676. “Il constituait une sorte d’appareillage complexe qui devait à la fois faire apparaître et produire réellement la maladie: lieu botanique pour la contemplation des espèces, lieu encore alchimique pour l’élaboration de substances pathologiques.” [trad. do autor]. Obs: Convém esclarecer que, segundo Daniel Defert e François Ewald, no segundo volume de Dits et Écrits, o resumo elaborado para o curso do biênio 1973/1974, intitulado Le Pouvoir Psychiatrique vem indicado como continuação do artigo escrito por Foucault sob o título La Maison des Fous. Todavia, não se utilizou a tradução já existente dos artigos citados (metodologia usualmente empregada neste trabalho), uma vez que a tradução brasileira de Le Pouvoir Psychiatrique, publicada sob o título O Poder Psiquiátrico nos Resumos dos Cursos do Collège de France [FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). (trad. Andréa Daher e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 45-59] se trata apenas de um texto resumido, distinto do original, bem como a tradução de Le Maison des Fous, sob o título A Casa dos Loucos, inserta na compilação de Roberto Machado Microfísica do Poder, é bem mais ampla, abarcando os dois textos do original, sob um único título.

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liberação de Pinel de maneira a ter sido capaz de contornar o anterior esta-

tuto do louco, é, pois, um grande preconceito,71 uma vez que, de fato, ela

teria contribuído para constituir o imenso abismo que separa a razão e a

loucura, especialmente pelo império desta sobre a loucura, e sob o ponto de

vista institucional, a construção dos asilos ideais teriam sido fruto muito

mais dos acontecimentos políticos, como a proteção dos aristocratas e sa-

cerdotes, do que a simples substituição dos internamentos.72

Para Foucault, a partir da separação dos loucos e dos pobres, com o

nascimento de um olhar médico no final do séc. XVIII, com Tuke e Pinel, es-

pecialmente, a loucura passa a integrar um momento fundamental, em que

se estabelece um rígido elo entre a loucura internada, loucura tratada e a

razão. Nessa perspectiva, salientam as interpretações foucaultianas, que os

asilos são criados, e as novas práticas de internamento são trazidas à lume

com o intuito de tratar dessa nova visualização da loucura, como dissera em

seu prefácio autre tour da loucura.73 Assim, as correntes destinadas a acal-

mar os loucos bestados são desvencilhadas e substituídas pelas camisas de

força, tal como descreve Foucault a liberação dos acorrentados de Bicêtre, e

se destinam não ao objetivo único de evitar que a natureza animal viesse à

tona, mas de conduzir e limitar sua liberdade e seu espaço social. Afirma

Foucault que é, justamente, o momento em que a consciência política do

internamento, antes do que assistencial e filantrópica, demonstra-se nas

crises do internamento e no aparecimento dos asilos. Nesse sentido, critica

de maneira rígida Pinel: “Num único e mesmo movimento, o asilo, nas mãos

de Pinel, se torna um instrumento de uniformização moral e de denúncia

social. Trata-se de fazer reinar sob as espécies do universal uma moral que

se imporá do interior às que lhe são estranhas e onde a alienação já é dada

71 FOUCAULT, Michel. La folie et la société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 131. 72 Essa liberação de Pinel, é oportuno esclarecer, para evitar confusões sobre a noção foucaultiana, não se trata realmente de um ato físico realizado por Pinel, mas antes um ato intelectual e institucional, quer dizer, um mito ao redor da abolição das correntes, que Foucault não desconhecia, mas o criticava na sua humanidade mítica. Isto porque, para alguns autores, como Glays Swain, no ensaio Le Sujet et la Folie (1977), segundo Elisabeth Roudinesco, teria Foucault ‘levado ao pé da letra esse mito’, dando a entender que acreditava real-mente ter acontecido, razão porque o havia criticado. Para Swain, consoante Roudinesco, o mito da abolição era fundamental, pois servia antes para eliminar Pussin (que era o enfermeiro responsável pelos loucos) do que realmente para liberar os doentes mentais, demonstrando, assim, o ingresso da medicina positiva, e, portanto, o reinado de Esquirol sobre os manicômios e o de Philippe Pinel. Todavia, não há como encontrar no texto passagens capazes de expressar o que a autora interpretara, mas, pelo contrário, é evidente, segundo suas linhas, que o que estava sendo criticado era não um verdadeiro ato material, até porque Foucault não se ateve a esse detalhe em sua obra, mas uma concepção política que nascia de um jacobino. Nesse sentido ver: ROU-DINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 21-22. Obs.: Sobre a crítica da pensadora Gladys Swain ver também: FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68 ..., p. 117-135. 73 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, p. 07. “Pascal: ‘Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou’” [trad. do autor. “Pascal: ‘Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco por um outro ‘modo’ de loucura não ser louco’.”] Questão outrora argumentada.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 173

antes de manifestar-se nos indivíduos.”74 Elisabeth Roudinesco, por ocasião

do IX Colóqio da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psi-

canálise, no dia 23 de novembro de 1991, é ainda mais enfática em relação à

perspectiva foucaultiana contra Pinel: “Ele destroçava a prolongada persis-

tência do humanismo pineliano e declarava guerra a todas as formas de re-

formismo institucional.”75

A partir dessa compreensão, afirma Foucault que o asilo impôs um si-

lêncio à loucura, ao contrário do incessante diálogo entre a razão e loucura

da Renascença. Para substituir os olhares de vigilância e julgamento dos juí-

zes de fato dos Tribunais do Júri, que se dedicavam a condenar os loucos

por seus crimes, e, dessa maneira os excluir, tal como às medidas adminis-

trativas dos hospitais gerais, os asilos aparecem no limiar do século XIX, tra-

zendo consigo a loucura na sua forma vigiada e tornada objeto, quer dizer,

portando os olhares de uma medicina positiva, que faz da loucura seu objeto

cognoscível, e, ao mesmo tempo em que a liberta, aprisiona-a, objetivando,

assim, pela primeira vez, o próprio homem, como forma de saber (questio-

namento esse que Foucault retoma alguns anos mais tarde da publicação

sobre a loucura, em Les Mots et les Choses). Foucault afirma que os asilos e

toda a medicina que o acompanhou, transformaram-se em verdadeiras for-

mas de punição e não de libertação da loucura: “O asilo da era positivista,

por cuja fundação se glorifica a Pinel, não é um livre domínio de observação,

de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço judiciário onde se é acusado,

julgado e condenado e do qual só se consegue a libertação pela versão desse

processo nas profundezas psicológicas, isto é, pelo arrependimento. A lou-

cura será punida no asilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito

tempo, e pelo menos até nossos dias, permanecerá aprisionada num mundo

moral.”76 Com os asilos e as teorias humanistas, o positivismo se impõe à

medicina e à psiquiatria, trazendo destaque aos médicos e dando poder aos

psiquiatras, bem como constituindo uma nova e fundamental relação: o par

médico-doente.

Diante do nascimento dos asilos, e desenrolar do séc. XIX, destaca

Foucault que a psicanálise não permitiu um debate com a loucura, somente

impôs o seu olhar e sua razão, transformando o debate incansável do renas-

cimento num tácito monólogo com a loucura, uma espécie de olhar absoluto

74 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 269. “En un seul et même mouvement, l’asile, entre les mains de Pinel, devient un instrument d’uniformization morale et de dénonciation sociale. Il s’agit de faire régner sous les espèces de l’universel lui sont étrangères et où l’aliénation est déjà donnée avant de se manifester chez les individus.” [trad. br. História da loucura ..., p. 488.] 75 ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 07. 76 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 280. “L’asile de l’âge positiviste, tel qu’on fait gloire à Pinel de l’avoir fondé, n’est pas un libre domaine d’observation, de diagnostic et de théra-peutique; c’est un espace judiciaire où on est accusé, jugé et condamné, et dont on ne se libère que par la version de ce procès dans la profondeur psychologique, c’est-à-dire par le repentir. La folie sera punie à l’asile, même si elle est innocente au-dehors. Elle est pour longtemps, et jusqu’à nos jours au moins em-prisionnée dans un monde moral.” [trad. br. História da loucura ..., p. 496.]

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do vigilante.77 Nesse sentido, foi com o surgimento da psicologia,78 datada

dessa época, que a verdade do homem pôde vir à tona e formular a terrível e

excludente distinção entre loucura, então como problema médico, e razão.

Momento em que a liberdade do louco é fato exclusivo da razão. Do mesmo

modo, a psicologia, através de suas práticas no tratamento do doente, como

levar o louco a percepções artificiais da realidade, para que, através do cho-

que ‘desperte’ sua razão, ou como dá-lo aos passeios e aos retiros, para que

se reencontre com sua natureza, acaba por fechar a loucura num círculo ra-

cional, continuando a impor-lhe o silêncio. O médico, desta maneira, assume

um papel indispensável de levar os doentes mentais à suas próprias razões,

conduzindo-os através da ordem jurídica e moral.79 A loucura se torna, en-

tão, em virtude da razão, a coisa mais rigorosamente regrada, eis as palvras

de Foucault em 1975 ao comentar o filme Histoire de Paul, de R. Féret.80 Esse

tratamento, que engloba não mais o espaço religioso,81 mas moral, perma-

nece no olhar médico da loucura, através da psicologia e da psiquiatria até o

surgimento das teorias psicanalíticas de Freud, quando, então, retira da ob-

jetividade do positivismo médico a condenação moral existente na loucura. A

partir desse momento, a loucura se torna escrava da razão, e só encontra

sua linguagem na linguagem falada pela razão, pela razão médica.82 Nessa

perspectiva, entende Foucault que um círculo antropológico se instaura, quer

dizer, a partir do momento que a razão impera sobre a loucura, a verdade do

louco se sujeita à verdade que o médico impõe e procura recriar, mas, ao

reconhecê-la, acaba por perdê-la nesse mesmo momento, uma vez que aca-

ba igualmente por torná-la objeto, não se tornando mais simplesmente a sua

77 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 259. [trad. br. História da loucura ..., p. 482.] 78 Para uma justa interpretação foucaultiana da relação entre a medicina mental, através do poder social da psiquiatria e a necessidade do isolamento asilar, ver: BIRMAN, Joel; SERRA, Antônio. Os descaminhos da subjetividade: um estudo da instituição psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da UFF, 1988, p. p. 233-236. 79 FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 41. “Outre son rôle de technicien de la médecine, il joue un rôle économique dans la répartition des secours, un rôle moral et quasi judiciaire dans leur attribuition; le voilà devenu le ‘surveillant de la morale, comme de la santé publique’.” [trad. br. O nascimento ..., p. 45. “Além do papel de técnico da medicina, ele desempenha um papel econômico na repartição dos auxílios, um papel moral e quase judiciário em sua atribuição: ei-lo convertido no ‘vigilante da moral e da saúde pública’.”] 80 FOUCAULT, Michel. Faire les fous. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gal-limard, v. 2, 1994, p. 805. “... la folie, cette chose du monde la plus rigoureusement réglée.” [trad. do autor. “... a loucura, a coisa mais rigorosamente regrada do mundo.”] 81 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 267. “L’asile, domaine religieux sans religion, domaine de la morale pure, de l’uniformisation éthique. Tout ce qui pouvait conserver en lui la mar-que des vieilles différences vient à s’effacer. (...) L’asile doit figure maintenant la grande continuité de la morale sociale. Les valeurs de la famille et du travail, toutes les vertus reconnues, règnent à l’asile....” [trad. br. História da loucura ..., p. 486. “O asilo, domínio religioso sem religião, domínio da moral pura, da unifor-mização ética. Tudo o que nele podia conservar a marca das velhas diferenças acaba por sumir. As últimas recordações do sagrado se extinguem. (...) O asilo deve figurar agora a grande continuidade da moral social. Os valores da família e do trabalho, todas as virtudes reconhecidas, imperam no asilo...”] 82 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Le langage de la psychiatrie, qui est monologue de la raison sur la folie, n’a pu s’établir que sur un tel silence.” [trad. do autor. “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, não pode se estabelecer senão sobre tal silêncio.”]

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própria verdade, quer dizer, a verdade do alienado, mas a verdade do racio-

nal. Por isso, para Foucault, há sempre uma intimidade entre loucura e ver-

dade.83 Nesse sentido, a verdade do homem acaba por ser a loucura, a não-

razão, presa pela própria razão, de tal modo que, o louco e o homem dizem

a si suas próprias verdades, e o homem para indagar sua verdade, precisa

fazer-se objeto, aprisionando, assim, sua razão em seu determinismo e seus

condicionamentos. Para se conhecer o que o homem é, sua posição de sujei-

to, seria necessário saber o que o homem não é (o que se apresenta em sua

loucura), o que o separa, através do conhecimento médico, da sua negação,

de sua loucura, só possível por expressões máximas da literatura, enquanto

formas livres, como de Nietzsche, Van Gogh e Artaud.

Nesse senti0do, uma nova perspectiva para reler a loucura se abre para

Foucault em Histoire de la Folie, pois somente através dos desatinos desses

autores, é que a loucura se torna ausência de obra84, quer dizer: “... a loucu-

ra ocidental se tornou uma não-linguagem, posto que se tornou uma lingua-

gem dupla (linguagem que apenas existe nesta palavra, palavra que não diz

senão sua língua) –, isto é, uma matriz da linguagem que, em sentido estrito,

não diz nada. Uma dobra do falado que é uma ausência de obra”,85 ruptura

absoluta da obra, um momento de abolição, que fundamenta o seu tempo e

sua obra, e que permite, na sua ausência, demonstrar-se e estabelecer sua

própria linguagem, sem o ‘não-senso’ da razão impositiva. É preciso ressal-

tar ainda, que Foucault, apesar do que muitos críticos procuram mistificar,

tenta lançar as bases para um correto pensamento sobre a loucura, isto é,

busca encontrar saídas para se repensar a doença mental como maneira de

fuga ao projeto disciplinar e excludente, através do conceito de estrutura

global. No último capítulo de Maladie Mentale et Psychologie Foucault sali-

enta que se deveria procurar realizar um estudo que se fundasse numa “lou-

83 FOUCAULT, Michel. Folie, littérature, société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 112. “On peut alors tenter une histoire panoramique de la culture occidentale: cette coappartenance de la vérité et de la folie, cette intimité entre la folie et la vérité, qu’on pouvait recon-naître jusqu’au début du XVIIe siècle, ont été, par la suite, pendant un siècle et demi ou deux siècles, niées, ignorées, refusées et cachées. Or, dès le XIXe siècle, d’un côté, par la littérature et, de l’autre, plus tard, par la psychanalyse, il est devenu clair que ce dont il était question dans la folie était une sorte de vérité et que quel-que chose qui ne peut être que la vérité apparaît sans doute à travers les gestes et les comportements d’un fou.” [trad. do autor. “Pode-se tentar, então, uma história panorâmica da cultura ocidental: esta coexistência da verdade e da loucura, esta intimidade entre a loucura e a verdade, que se podia reconhecer até no início do século XVII, foi, desse modo, durante um século e meio ou dois séculos, negada, ignorada, recusada e escon-dida. Ora, desde o século XIX, de um lado, pela literatura, e, de outro, mais tarde, pela psicanálise, tornou-se clara que na loucura havia verdade, e que, qualquer coisa que só pode ser verdade aparece, sem dúvida, atra-vés dos gestos e dos comportamentos de um louco.”] 84 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 302. [trad. br. História da loucura ..., p. 529.] 85 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence ..., p. 418. “... la folie occidentale est devenue un non-langage, parce qu’elle est devenue un langage double (langage qui n’existe que dans cette parole, parole qui ne dit que sa langue) –, c’est-à-dire une matrice du langage qui, au sens strict, ne dit rien. Pli du parlé qui est une absence d’oeuvre” [trad. do autor]

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cura alienada,”86 quer dizer, a melhor maneira de se compreender a loucura

seria a partir de sua configuração livre e desalienada, restituindo-lhe, de

certo modo, sua linguagem de origem, a partir de uma reflexão que de-

monstrasse ser através de sua forma que a própria civilização procuraria

exprimir-se positivamente em seu fenômeno. Todavia, mantém-se aqui esse

questionamento de Foucault, tal como ele o deixara, sem ir adiante, por se

tratar de tema específico e complexo, que não condiz com as dimensões e

tampouco os objetivos deste ensaio. Ademais, porque, para muitos autores,

como Pierre Macherey, a posição intelectual defendida em 1954 teria sido

substancialmente alterada pela de 1961, tanto que as críticas que lhe foram

feitas na publicação de Folie et Déraison, não o poderiam ser feitas igual-

mente à Maladie Mentale et Psychologie, já que a loucura, antes vista numa

perspectiva evolucionista e latente na história, teria sido abordada de outra

maneira, totalmente diferente, renunciando ao seus continuísmo históricos.

Nesse sentido, afirma: “Ao contrário, porém, no seu livro de 62 Foucault

mostra que o conceito de doença mental só tem sentido contra o fundo des-

se procedimento de exclusão, cujas origens ou razões não se devem procu-

rar numa forma qualquer de saber positivo, procedimento este que, antes

mesmo de reconhecê-la e descrevê-la como alienação, instala entre a doen-

ça e as demais formas da existência humana uma intransponível fronteira,

uma separação que já basta para conferir aos fenômenos patológicos a sua

realidade de objetos oferecidos ao saber. (...) não está mais em questão pro-

por-se, a qualquer nível que seja, uma explicação psicológica da doença:

pois fica evidente que psicologia alguma jamais conseguirá dar conta do

fenômeno cujas condições de surgimento ela precisa, justamente, fazer es-

quecer. (...) E, para nos convencermos de que essa retificação não tem mais

que o valor limitado, e não definitivamente fundador ou instaurador, de um

ato discursivo inscrito no movimento de conjunto de um dispositivo de co-

nhecimento do qual a História da loucura constitui apenas o primeiro passo,

basta lermos a conclusão de Maladie mentale et psychologie: pois nessas

páginas aparecem de maneira evidente o caráter heurístico e também os

limites da nova problemática que Foucault definiu no começo dos anos 60, e

86 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 87.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 177

que devia servir de ponto de partida, mas somente de ponto de partida, para

suas investigações futuras.”87

Apesar de Foucault ter se concentrado sobre o modo como o conceito

de louco fora construído pela cientificidade da medicina, e principalmente

pelas malhas do poder, não deixou o intelectual de mencionar em dispersas,

mas instigantes páginas, a relação que o anormal e o patológico estabelece-

ram com o discurso jurídico, isto é, sem embargo preocupações da ordem

do discurso e do saber, Foucault trouxe contribuições significativas sobre o

modo como o “olhar” jurídico estendeu seus horizontes a fim de dominar

esse “objeto”, fosse enquanto simplesmente homem, núcleo das ciências

humanas, fosse como um sujeito desviante da sociedade, sob o ponto de

vista estatal da repressão social e penal.

Tendo em vista as considerações já realizadas, e antes de se construir

um paralelo entre o louco e o criminoso como “anormais”, como cidadãos

“patológicos”, é oportuno investigar a título exclusivo de esclarecimento para

posteriores questionamentos sobre as prisões e os manicômios brasileiros,

ainda que brevemente, e fugindo exclusivamente às concepções de Foucault,

o modo como o “louco” foi tratado pelo ordenamento jurídico nacional. Ape-

sar da relação entre a loucura e o discurso jurídico ter suas bases em tempos

arcaicos, nos quais o Direito Romano já procurava interpretá-la e delimitá-la

em sua própria externalização, de tal modo que os jurisconsultos romanos,

numa disposição entre mente captus e mentis alienatione, dedicavam-se,

por exemplo, a classificar as diferentes formas de manifestação da loucura

em: furiosus, assim denominados porque apresentavam momentos de inten-

sa raiva entrecortados por espaços de total lucidez, reconhecidos como sen-

su saniore, em dementia, caracterizada pela loucura plena e sem intervalos,

ou mesmo em imbecilitas, pela ausência total de capacidade para gerir seus

bens, o ordenamento brasileiro conferiu ao “louco” seu status non dignatatis,

87 MACHEREY, Pierre. Aux sources de l’Historie de la folie: une rectification et ses limites. Critique: Revue générale des publications françaises et étrangère, Paris, n. 471-472, p. 772 e 773, août/septembre, 1986. “Dans son livre de 62, Foucault montre au contraire que le concept de maladie mentale n’a de sens que sur le fond de cette procédure d’exclusion, dont les origines ou les raisons ne sont pas à chercher dans une quelconque forme de savoir positif, procédure qui, avant même de la reconnaître et de la décrire comme aliénation, installe entre la maladie et les autres formes de l’existence humaine une infranchissable frontière, cette séparation à elle seule conférant aux phénomènes pathologiques leur réalité d’objets offerts au savoir (...) il n’est plus question, à quelque niveau que ce soit, de proposer une explication psychologique de la maladie: car il est évident qu’aucune psychologie jamais ne parviendra à rendre compte du phénomène dont elle doit justement faire oublier les conditions d’apparition. (...) Et pour se convaincre que cette rectification n’a elle même que la valeur limitée, et non pas définitivement fondatrice ou instauratrice, d’un acte discursif qui s’insère lui-même dans le mouvement d’ensemble d’un dispositif de connaissance dont l’Histoire de la folie n’est que le premier jalon, il suffit de lire la conclusion de Maladie mentale et psychologie: car dans ces pages apparaissent de manière éclatante le caractère euristique et aussi les limites de la problématique nouvelle que Foucault a définies au début des années soixante, et qui devait servir de point de départ, mais de point de départ seule-ment, à ses investigations ultérieures.” [trad. br. Nas origens da história da loucura: uma retificação e seus limites. Recordar Foucault (org. Renato Janine Ribeiro). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 69-70.]

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se assim puder ser dito, sempre sob duas vertentes nas legislações, isto é,

no direito civil e no direito penal.

No Brasil, o primeiro tratamento que se deu aos loucos foi por força

das Ordenações Filipinas, também chamadas de Ordenações do Reino, data-

das de 11 de janeiro de 1603. Apesar dessa disposição legal não trazer cla-

ramente a particularização do “louco”, tendo em vista que se estava ainda

sob o império da Igreja católica, como mesmo invocado por Foucault, havia

um tratamento direcionado aos indivíduos que possuíssem desenvolvimento

mental incompleto no tópico da responsabilidade penal, em especial, quando

se referia à menoridade, isto é, aos loucos se aplicava, ao critério do juiz, as

mesmas penalidades que competia aos menores de 20 anos ou entre 17 e 20

anos quando assim entendesse o magistrado, podendo, segundo as circuns-

tâncias e a personalidade do agente atribuir-se diversas sanções. Havia, por-

tanto, naquele período, certa restrição a algumas sanções aos que possuís-

sem desenvolvimento mental incompleto, tal como, por exemplo, a morte

natural, existente na época para os plenamente capazes, como bem salien-

tam Almeida Júnior e J. B. de O. Costa Júnior: “A pena de morte, nas ‘Ordena-

ções do Reino’, era chamada ‘morte natural’ distinta da ‘morte civil’ ou pri-

vação dos direitos civis. Havia a pena de morte ‘atroz’ (depois da morte, o

condenado era açoitado, queimado ou esquartejado, seus bens eram confis-

cados, etc.); e a pena de morte ‘cruel’ (que tinha por fim fazer sofrer antes

da execução capital, mediante tenazes ardentes, esquartejamento, etc.). Ser-

vindo-se os juízes, na sentença, da expressão ‘morte natural’, o réu era exe-

cutado, mas logo enterrado. Quando a sentença condenava a ‘morte natural

para sempre’, ele a sofria na forca, onde o cadáver ficava pendente até de-

compor-se.”88

Após a vigência das Ordenações Filipinas, o Código Criminal do Impé-

rio de 16 de dezembro de 1824, embora ainda não tivesse tratado exclusi-

vamente do “louco”, como figura específica, trouxe em seu art. 10, §§ 1º e 2º,

uma intensão de excluir os doentes mentais da imputabilidade da prática de

crimes, deixando a critério do juiz, em seu livre arbítrio, já que vigia na épo-

ca o princípio do livre e absoluto convencimento, ou da convicção íntima, a

possibilidade de determinar ao louco, autor do fato punível, a internação ou

a entrega em confiança da família para tratamento. Em seguida, o Código

Republicano, chamado Código Penal dos Estados Unidos do Brasil – Decreto

nº 847, de 11 de outubro de 1890 – com todos os ideais políticos que alber-

gava em seu bojo, os quais não convêm nestas linhas serem alongados, tra-

zia uma nova disposição, não mais como mero esboço tal a legislação ante-

rior, a respeito dos loucos. Além dos menores de 9 anos, os que tivessem

entre 9 e 14 anos sem discernimento, o referido Código, em seu art. 27,

88 ALMEIDA JÚNIOR, A.; COSTA JÚNIOR, J. B. de O. Lições de medicina legal. 16 ed. São Paulo: Com-panhia Editora Nacional, 1979, p. 236.

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também afastava a configuração de crime para os que fossem portadores de

imbecilidade nativa, enfraquecimento senil, os privados totalmente dos sen-

tidos e da inteligência e os surdos-mudos sem discernimento.89 Alguns au-

tores entendiam que o Código Republicano havia albergado uma redação

errônea ao dispor “privação” em relação aos alienados, ao invés de “pertur-

bação”, como é o caso de Alvarenga Netto,90 em suas anotações, todavia,

hoje já ficou consagrada a redação de melhor técnica a de “privação”, para

evitar discriminações. Desse modo, tendo em vista a “humanização” pela

qual passava o direito penal, uma importante alteração de tratamento ocor-

reu, ou seja, além de vir expressamente na redação legal a previsão do louco

como inimputável, através da figura do “imbecil”, passou-se a determinar

que o juiz não simplesmente aos seus sabores e dissabores aplicasse qual-

quer pena, mas que, através de uma exigência de fundamentar o seu con-

vencimento, com base na doença mental do autor do delito, verificasse a

periculosidade do agente para a aplicação da medida de internamento ou de

entrega aos familiares,91 tendo em vista a segurança pública.

Todavia, o próprio Código Republicano já nascera marcado por inúme-

ras críticas, tanto dos oposicionistas monárquicos quanto dos liberais repu-

blicanos, sofrendo algumas alterações por conta da publicação do Decreto nº

22.213, de 14 de dezembro de 1934, que no governo getulista deu azo à

famosa Consolidação das Leis Penais, por influência do Des. Vicente Piragibe.

Essa compilação, além dos menores de 14 anos e dos surdos-mudos, tam-

bém excluiu o louco da capacidade para cometer delitos e serem considera-

dos penalmente responsáveis, tornando inimputáveis os portadores de im-

becilidade nativa, os portadores de enfraquecimento senil e os que se achas-

sem em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência; e

determinou que esses fossem remetidos a asilos públicos, enquanto não

fossem construídos manicômios estaduais.

Após as consolidações, veio o Código Penal de 1940, trazendo novas

idéias para a própria ciência do direito penal, como a concepção de isenção

de pena no que tange à culpabilidade e inexistência de crime no que diz com

a antijuridicidade. Deste modo, todo aquele indivíduo portador de doença

89 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) e leis penaes subsequentes annotado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1929, p. 30-31. “Título III: Da responsabilidade criminal; das causas que derimem a criminali-dade e justificam os crimes”. “Art. 27. Não são criminosos: § 1º Os menores de nove annos completos; § 2º Os maiores de nove e menores de quatorze, que obrarem sem discernimento; § 3º Os que, por imbecilidade nativa; ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; § 4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime; ... § 5º Os surdos-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento.” 90 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 31. “A redação deste paragrapho, que durante muitos annos serviu de thema a discussões estereis, foi assim substituida pelo art. 38, do Dec. 4.780, de 27 de dezembro de 1921: No artigo 27 § 4, do Código Penal, em vez de ‘privação, leia-se ‘perturbação’.” 91 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 33. “Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabili-dade em resultado de affecção mental, serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do público.”

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mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, seria conside-

rado inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de

determinar-se de acordo com esse entendimento se assim fosse no tempo

da ação ou da omissão. É assim, que, pela primeira vez no ordenamento ju-

rídico pátrio surgiu, em substituição à antiga sanção republicana da interna-

ção para segurança do público,92 a “medida de segurança”. Essa medida,

segundo dispunha o art. 78, seria aplicada nos casos em que a periculosida-

de era absolutamente presumida por lei, em especial, nos portadores de do-

ença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado inteira-

mente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se

de acordo com este entendimento, e aos agentes que, em virtude de pertur-

bação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retar-

dado, estava privado da plena capacidade de entender o caráter criminoso do

fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Além do mais,

a despeito de invocar com a criação da “medida de segurança”, em virtude do

princípio da legalidade, que se impunha como preceito fundamental no or-

denamento jurídico penal, essa passou a ser obrigatória de ser imposta pelo

juiz, sempre que previstas as disposições a que remete o art. 91, não dei-

xando, mais, como o era no período imperial – a cargo da convicção íntima

do juiz –, ou no período republicano – a cargo da convicção facultativa, mas

motivada do juiz.

No entanto, o Código Penal de 1940, por influência do ordenamento

italiano, em especial do Código Rocco, com a publicação da Lei nº 6.416/77,

sofreu uma significativa alteração nos elementos caracterizadores daquela

periculosidade a que se referia o art. 77 na redação original, quais sejam:

personalidade do agente, antecedentes, motivos, e circunstâncias do fato,

passando, assim, com a adoção do sistema binário da pena, a admitir a pos-

sibilidade de aplicação sucessiva de pena e de medida de segurança, bem

como de elastecer os critérios formadores do juízo de periculosidade em:

antecedentes, personalidade, motivos determinantes, circunstâncias de fato,

meios empregados para o crime, modos de execução, intensidade do dolo e

o grau de culpa.

É válido ainda mencionar, adotando-se uma arqueologia foucaultiana,

o Código Penal de 1969, de influência doutrinária do ilustre penalista Nelson

Hungria, que embora nem sequer tenha entrado em vigor, ‘revogado’ ainda

em sua vaccatio legis, apesar de ter sofrido algumas vãs alterações por força

da Lei nº 6.016 de 1973, trouxe indispensável tratamento para o tema do

“louco” no ordenamento nacional. Segundo a redação original, o Código de

1969 abandonou o sistema do duplo-binário no que dizia respeito aos semi-

imputáveis em prol do sistema vicariante, cessando, então, a aplicação su-

cessiva de pena e medida de segurança, de tal modo que a pena sofreria

92 NETTO, Alvarenga. Código penal brasileiro (1890) ..., p. 33. “... assim exigir para segurança do público.”

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 181

uma diminuição ou então seria substituída pela medida de segurança. Ade-

mais, o referido Código fez frente à presunção de periculosidade absoluta

contida na redação original da legislação de 1940, prevendo a possibilidade

de não internação do louco caso não houvesse a periculosidade (a qual era

medida e classificada pelo juiz na sentença, com base na perícia médica, em

três graus: periculosidade “acentuada”, periculosidade “escassa” e periculosi-

dade “nenhuma”), ou seja, caso o inimputável não mostrasse oferecer perigo

à incolumidade alheia, consoante disposição do art. 92, não poderia ser in-

ternado em manicômio judiciário. A idéia do tratamento através da medida

de segurança, foi, sem dúvida, o grande avanço do Código Penal de 1969,

ou, ao menos, o que o fez distinguir-se dos demais, todavia, a despeito da

opinião de muitos autores, que entendem que o “aprisionamento” nos mani-

cômios seria uma forma de regeneração e cura pela medida de segurança, é

oportuno sempre tecer críticas, sobretudo do ponto de vista prático e nor-

malizador dos hospitais psiquiátricos, como ser verá adiante, realidade essa

triste no Brasil.

Por fim, houve a reforma de 1984, por força da Lei nº 7.209, de 11 de

julho de 1940, que alterou significativamente a parte geral do Código de

1940. Pela nova redação, em especial no que tange ao tratamento do louco,

viu-se extinguir definitivamente o sistema do duplo-binário para os imputá-

veis e semi-imputáveis, aplicando-se a estes o sistema vicariante, cabendo

ao juiz a possibilidade de aplicar a pena com ou sem a redução de um a dois

terços, consoante disposição do art. 26, § único, ou substituí-la por medida

de segurança, caso venha o semi-imputável necessitar de um tratamento

considerado curativo, tal como prevê o art. 98, igualando-se aos inimputá-

veis. A exposição de motivos da nova parte geral põe como ideal o fim “pre-

ventivo” e “assistencial” da medida de segurança, em especial a partir do fim

da presunção de periculosidade, ainda que formalmente; todavia, na prática

o que existe é verdadeiramente uma presunção total, absoluta e inafastável

da periculosidade dos doentes mentais, que sofrem a medida de segurança

sem qualquer forma de exame, e somente podem ter sua pena substituída

por tratamento ambulatorial, conforme redação do art. 98, nos casos que se

tratar de pena de detenção.

No âmbito civil,93 convém informar que a regulação expressa, e que

aqui importa, só se deu com o Código Civil de 1916, outrora vigente (recen-

temente substituído pelo Código Reale – Lei. 10.406/02), que buscou fazer

uma distinção entre os absolutamente e os relativamente incapazes para

praticar atos civis, trazendo em seu art. 5º, II, uma disposição significativa ao

afirmar que “os loucos de todo o gênero” seriam incapazes para exercer pes-

93 O Código Napoleônico de 1804, inspiração do código brasileiro, e o que fora referido por Foucault, trata da questão dos loucos entre os arts. 488 e 515, referindo-se ao estado habitual de imbecilidade, demência ou de furor. in Código Napoleão ou Código Civil dos Franceses. (org. Souza Diniz) Rio de Janeiro: Record, 1962, p. 109-111.

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soalmente, o que significa dizer que exigem uma representação, os atos da

vida civil, sob pena de serem quaisquer de suas ações consideradas nulas,

isto é, juridicamente sem efeito.94 Do mesmo, atualmente, no direito penal, a

percepção da “doença mental” e do “louco” está relacionada ora no próprio

conceito de crime, ora na idéia de responsabilidade penal, através da noção

de inimputabilidade. Destaque-se, por fim, que as incoerências exauridas

pelo novo código certamente poderiam ser questionadas, mas não se põem

como escopo desse trabalho, tão somente algumas reflexões, para se repen-

sar os modelos de tratamento do louco e também do criminoso pelo orde-

namento jurídico, ainda marcados pelo modelo normalizador sobre o qual

Foucault se debruçara.

Feitas essas considerações, é inevitável deixar de investigar, dentro da

genealogia foucaultiana, o modo como foi construído o conceito de crimino-

so, análogo ao louco na idéia de exclusão, pelo discurso jurídico, isto é, co-

mo se dera a relação entre o fato criminoso, o seu agente e a resposta em-

preendida pelo discurso jurídico, desde o momento de seu cometimento até

a sua punição pelas prisões. Em Surveiller et Punir, Foucault reflete clara-

mente a situação do criminoso e sua situação de exclusão, tal como o inter-

namento dos loucos. Como visto anteriormente, é especialmente no modelo

francês que o internamento do século XIX, contrariamente ao que havia no

século XVIII, demonstra que todas as instituições – “fábrica, escola, hospital

psiquiátrico, hospital, prisão – têm por finalidade não excluir, mas, ao con-

trário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um

aparelho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechando-

os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O hospital psiquiátri-

co não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um apare-

lho de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de cor-

reção ou com a prisão. Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclu-

são do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em

um aparelho de normalização dos homens.”95 A relação dos criminosos está

relacionada ao surgimento das prisões no séc. XVIII, como casas de correção

e punição, como se verá em seguida.

94 Destaque-se que o NCCB, o código realeano, alterou a equivocada expressão “loucos de todos gênero”, - uma das hipóteses de absoluta incapacidade – prevista no Código Beviláqua (Código Civil de 1916), pela redação mais correta e apropriada: “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos.” (art. 3º, II). 95 FOUCAULT, Michel. A verdade ..., p. 114. [trad fr. La vérité ..., p. 614. “... usine, école, hôpital psychia-trique, hôpital, prison – ont pour finalité non pas d’exclure mais, au contraire, de fixer les individus. L’usine n’exclut pas les individus, elle les attache à un appareil de production. L’école n’exclut pas les individus, même en les enfermant; elle les fixe à un appareil de transmission du savoir. L’hôpital psychiatrique n’exclut pas les individus, il les attache à un appareil de correction, à un appareil de normalisation des individus. Il en va de même de la maison de correction ou de la prision. Même si les effets de ces instituions sont l’exclusion de l’individu, elles ont comme finalité preimière de fixer les individus dans un appareil de normalisation des hommes....”]

Page 184: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011 183

Enfim, estabelecida a impiedosa relação, no campo exclusivo do saber,

entre a formação, a constituição e o conceito de louco e de criminoso a partir

de paradigmas sociais e científicos de normalidade, bem como no campo

governamental das políticas públicas entre a forma de encarceramento e

isolamento, que aprisionou loucos e criminosos sob os mesmos motivos,

convém refletir, então, alguns questionamentos, diretamente ligados à essa

necessidade de exclusão e de tratamento, isto é: através de que dispositivos

se procurou normalizar os corpos indóceis dos criminosos, e readaptar os

recorrentes de patologias mentais?; sob que fundamentos e finalidades se

constituíram mecanismos de poder em torno dos loucos e dos criminosos?

São essas indagações referentes às prisões e aos manicômios, e conduzido

pelas crises carcerárias que estavam ocorrendo no mundo pós-guerra, em

especial na França, que Foucault, a partir da idéia de vigilância e punição se

propôs a respondê-las, alçando temas críticos como punibilidade, pena de

morte e abolicionismo.

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184 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

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Page 186: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 185

Andriessa Ortega Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Positivo

O presente trabalho buscou analisar de que maneira a modalidade de

licitação convite viola os princípios constitucionais da publicidade e da iso-

nomia. Ademais, o estudo contemplou o Projeto de Lei nº 7.709/2007 que

prevê alterações na Lei Federal nº 8.666/1993, estatuto atual que rege as

licitações públicas.

Palavras-chave: Princípios; Lei Federal nº 8.666/1993; Licitação; Convi-

te.

As despesas realizadas no âmbito do Estado merecem destaque no

contexto sócio-econômico do País, uma vez que certos programas de gover-

no podem contribuir sobremaneira para o desenvolvimento de determinados

setores. Não obstante, a tendência do Estado contemporâneo seja a terceiri-

zação de atividades prestadas pelo setor público, levando a uma diminuição

do espaço de atuação estatal, os gastos gerados pelo Estado ainda tem

grande relevância para a economia brasileira.

A estrutura estatal continua absorvendo boa parcela de serviços, obras

e compras, portanto, a redução do seu alcance deve ser analisada sob a ótica

Page 187: Revista Raízes Jurídicas

186 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

da realidade social em que o País se encontra, haja vista que em determina-

das regiões o papel que o Estado desempenha, por mais precário que seja,

ainda é fundamental para a sobrevivência das populações mais carentes, não

sendo possível a sua substituição pela iniciativa privada.

Dada a importância da atuação estatal no que tange à contratação de

serviços, aquisição de bens e construção de obras públicas, faz-se relevante

a análise da legislação e dos princípios pertinentes ao tema das licitações,

tendo em vista que o processo licitatório é dever da Administração Pública,

ressalvadas as exceções previstas em lei.

O objeto de estudo do presente trabalho versa sobre a inconstituciona-

lidade da modalidade de licitação convite, no que se refere aos princípios da

publicidade e da isonomia nas licitações públicas. Será abordado o princípio

constitucional da publicidade e a sua importância, uma vez que seu escopo

fundamental é informar o conteúdo dos atos administrativos, pois a Admi-

nistração Pública tem o dever de agir com transparência. Por isso, no que

tange à licitação, via de regra, a publicidade deve estar presente em todas as

suas fases. A publicidade é benéfica não apenas para a própria Administra-

ção, mas, também, para os licitantes e, sobretudo, para a coletividade. Na

medida em que os cidadãos têm a possibilidade de controlar e fiscalizar os

atos do Estado, a sociedade pode se resguardar contra arbitrariedades e im-

pugnar atos que atentem contra o interesse público.

A publicidade administrativa decorre dos vários princípios que regem o

Estado Democrático de Direito, e consiste não apenas em informar à popula-

ção sobre os atos praticados pela Administração Pública, mas, principalmen-

te, tem por objetivo explicar o porquê da sua atuação de determinada ma-

neira, e não de outra, bem como avaliar o nível de influência da sociedade no

processo de tomada de decisões.

No presente estudo será contemplado outro preceito constitucional, a

isonomia. Será analisada a sua relevância para o ordenamento jurídico brasi-

leiro, uma vez que o princípio da isonomia funciona como importante meca-

nismo regulador das normas, na medida em que todos os destinatários de

determinada lei devem ser tratados de forma igual. No entanto, o conteúdo

do princípio da isonomia aplicado à licitação não se limita à ideia de trata-

mento igualitário entre os concorrentes, mas remete à aplicação de outros

princípios dele decorrentes. No momento em que o agente público oferece

tratamento isonômico a todos os licitantes, ele está agindo em conformidade

com os demais princípios que são correlatos ao processo licitatório, como a

moralidade e a probidade administrativa.

Como bem asseverou a professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, o

convite é a única modalidade de licitação para a qual a lei não impõe que o

Page 188: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 187

ato convocatório seja publicado, haja vista que a convocação é feita por es-

crito, por meio de expedição de carta-convite, com antecedência de, no mí-

nimo, cinco dias úteis.1

O professor Joel de Menezes NIEBUHR também faz a mesma observa-

ção, ao afirmar que na modalidade de licitação “convite” não é obrigatória a

publicação do resumo da carta-convite em diário oficial, jornal de grande

circulação ou em outro meio que assegure a efetiva publicidade do certame.

Todavia, basta apenas o envio do convite a pelo menos três potenciais inte-

ressados e a fixação de cópia do instrumento convocatório nos murais ou

quadros de avisos das repartições públicas, para estender o convite a todos

os demais interessados que se encontrem cadastrados.2

Portanto, é possível afirmar que este procedimento licitatório viola o

princípio da publicidade, uma vez que a Administração somente afixa cópia

do instrumento convocatório em um quadro de avisos da repartição, prática

esta que não é hábil a garantir a devida publicidade ao acontecimento. No

entanto, se fosse conferida a publicidade adequada ao certame, a própria

Administração seria beneficiada, visto que acorreria um número maior de

potenciais licitantes e, consequentemente, as propostas seriam mais vanta-

josas. Além disso, a falta da devida publicidade facilita possíveis negociações

fraudulentas.3

Com vistas a não afrontar esse princípio, o Estado do Paraná instituiu a

Lei nº 15.608/2007 que impõe, em seu artigo 37, parágrafo 3º, o dever de

publicar o convite na imprensa oficial e por meio eletrônico, a fim de garantir

que a licitação seja publicada adequadamente.4

O princípio da publicidade reclama a ampla divulgação dos atos admi-

nistrativos, a fim de que seja demonstrada a transparência da gestão pública,

assim como possibilita que a sociedade exerça controle e fiscalize a conduta

da Administração. Logo, o fato de simplesmente afixar o convite no mural ou

quadro de avisos da repartição não atende à exigência deste princípio.5

Tal procedimento se revela muito problemático, posto que a Lei n.

8.666/93, ao não exigir a publicação do resumo do convite em jornal im-

presso, mas apenas o envio do instrumento convocatório aos convidados e a

1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 384. 2 NIEBUHR, Joel de Menezes. Modalidade convite: Inconstitucionalidade, aspectos controvertidos e proposta de extinção. Revista Zênite de Licitações e Contratos, p. 1-8, ago. 2007. Disponível em: <http://www.valeriacordeiro.pro.br/artigos.htm>; <http://www.zenite.com.br>. Acesso em: 14/02/2010. 3 DAMICO, Rodolpho Pandolfi. As Fragilidades da carta convite. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, n. 50, ano XI, p. 1-2, fev. 2008. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 14/02/2010. 4 PARANÁ. Lei de licitações, contratos administrativos e convênios no âmbito dos Poderes do Estado do Paraná, Lei n. 15.608 de 16 de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.pr.gov.br>. Acesso em: 14/02/2010. 5 MARRA, Luciana Cardoso. A mitigação do princípio da publicidade no processo licitatório na modalidade convite. Revista Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 34, p. 193-200, 2006. Dispo-nível em: <http://www.revista.fadir.ufu.br>. Acesso em: 14/02/2010.

Page 189: Revista Raízes Jurídicas

188 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

fixação de cópia do mesmo no quadro de avisos do órgão licitante, não ga-

rante a menor publicidade do ato.6

Para exemplificar, considera-se uma hipótese na qual, por algum moti-

vo, o agente administrativo responsável pela carta-convite deixou de afixá-

la no quadro de avisos da repartição pública que promove o certame e, ao

final do processo, alguém se sentiu prejudicado por não ter tomado o devido

conhecimento da licitação. Nesse contexto, será pouco provável que o indi-

víduo disponha de meios para provar que a carta-convite realmente não fora

colocada no lugar devido. A única forma que lhe restaria, a fim de comprovar

o fato, seria comparecer diariamente ao prédio do órgão licitante, munido de

testemunhas ou pedir certidões diárias acerca da publicação ou não da car-

ta-convite. Tal sugestão, seguramente, é improvável que seja praticada. Res-

salte-se que para as outras modalidades de licitação tal situação não se veri-

fica, pois a obrigatoriedade da publicação do instrumento convocatório na

imprensa oficial e/ou em jornal de grande circulação faz prova irrefutável da

existência de possíveis irregularidades.7

O doutrinador José Afonso da SILVA ensina que a publicidade sempre

foi considerada como um princípio administrativo, pois se conclui que o Po-

der Público, justamente por ser público, tem o dever de atuar com a maior

transparência possível para que os administrados tenham, a todo o momen-

to, ciência acerca das condutas da Administração.8

Portanto, publicar é não apenas tornar público e sim tornar claro e

compreensível ao público. É fazer com que a publicidade cumpra o papel

fundamental de verdadeiramente informar o público, considerado tanto o

conjunto de cidadãos em face de normas gerais como, igualmente, o univer-

so restrito de administrados sujeitos aos efeitos de determinado ato admi-

nistrativo.

A publicidade é condição absolutamente imprescindível para se verifi-

car a regularidade de qualquer licitação. Imaginar uma licitação secreta, rea-

lizada às escondidas, é tão incoerente quanto efetuar a adjudicação do obje-

to ao último classificado. Além disso, uma licitação oculta será, na maioria

das vezes, eivada de vícios como o dolo, o desvio de finalidade, a má-fé da

Administração e os favoritismos. Por mais este motivo, é racionalmente

inadmissível.9

Logo, a precariedade da publicação da modalidade convite facilita so-

bremaneira a corrupção e todo tipo de imoralidades, favorecendo a realiza-

ção de negociatas, a fim de burlar os contratos administrativos. Haja vista

que não havendo controle efetivo quanto à publicidade da carta-convite, o

6 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 3. 7 Idem. 8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 653. 9 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. Manual Prático das Licitações. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 92.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 189

agente administrativo que desejar agir com má-fé poderá deixar de afixar o

instrumento convocatório no quadro de avisos e terá ampla liberdade para

escolher o vencedor da licitação, pactuando previamente com ele o que qui-

ser. Uma fraude perfeitamente possível de ocorrer é que o agente público

pode mandar um convite para o “licitante”, que será beneficiado, e outros

dois convites a empresas mancomunadas com o primeiro. Assim, as duas

empresas apenas participariam da licitação como meros figurantes com o

intuito de validar a contratação.10

A limitação imposta pela própria Lei de Licitações ao princípio da pu-

blicidade, na modalidade convite, não é compatível com a lógica constitucio-

nal que exige do administrador público o dever de respeitar as leis e os prin-

cípios da boa administração, os quais convergem para efetivar o Estado De-

mocrático de Direito.11

O princípio da publicidade encontra respaldo no inciso XXXIII, do artigo

5º, da Constituição Federal, no que se refere ao direito à informação, pre-

vendo que o sigilo é excepcional. Portanto, a regra geral é que a publicidade

dos atos administrativos deve ser ampla, sendo restringida apenas para pre-

servar a segurança nacional.

Também, por força do artigo 5º, XXXIV, “b”, da Constituição da Repú-

blica, que garante ao cidadão o direito de obter certidões em repartições

públicas, ensina a doutrina que “toda licitação é, antes de mais nada, intei-

ramente pública, devendo ser literalmente, mesmo, escancarada aos olhos

de qualquer cidadão, nela interessado diretamente ou não”.12

Nesse sentido, a Lei de Licitações falha ao dispensar a publicidade do

convite por meio de órgão oficial, sendo suficiente a afixação do instrumento

convocatório no quadro de avisos da entidade administrativa, consoante o

artigo 22, §3º, da Lei nº 8.666/93.13

Essa disposição normativa constitui violação gritante ao princípio

constitucional da publicidade, pois são restringidos os meios que possibi-

litariam o acesso ao conhecimento do convite. Concomitantemente, esti-

mula o favoritismo, vez que a Administração pode selecionar previamente

somente alguns dentre os cadastrados, em número mínimo de três, para

participarem do certame. Os outros cadastrados, se desejarem participar,

deverão manifestar seu interesse com antecedência de até 24 horas da

apresentação das propostas. Porém, o problema reside na dificuldade de

que efetivamente chegue ao conhecimento desses potenciais licitantes a

realização do certame.14

10 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 3. 11 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit., 198. 12 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. op. cit., p. 92. 13 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit., 195. 14 Ibidem. p. 198.

Page 191: Revista Raízes Jurídicas

190 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Na lição de Marçal JUSTEN FILHO, não há obrigatoriedade da publicação

do aviso do convite pela imprensa, mas é imperioso tornar pública a instau-

ração da licitação. Assim, se não for considerada a possibilidade de expedi-

ção de convites, pela Administração, a pessoas não cadastradas, outros inte-

ressados poderão participar do certame, desde que cadastrados. Por isso,

deve-se assegurar a possibilidade dos cadastrados tomarem ciência do con-

vite. Por óbvio, não é proibido valer-se da imprensa como meio de divulga-

ção. Há situações em que o recurso à imprensa seria a saída mais apropria-

da. Assim acontece quando não acudirem interessados aos certames e a

Administração julgar inadequadas as propostas apresentadas. No caso de

licitações frustradas ou desertas, seria adequado veicular o aviso do convite

pela imprensa.15

Como acertadamente afirmou Wallace Paiva MARTINS JUNIOR, “o convi-

te é o caldo de cultura mais propício e fértil para disfunções da licitação”.16

Portanto, adverte-se sobre a imprescindibilidade da publicidade no convite,

a fim de evitar que esta modalidade de licitação fraude os princípios da

igualdade e da moralidade.17

Portanto, não é admissível manter uma situação que privilegia o segre-

do, a partir de uma restrição ao princípio constitucional da publicidade. Tal

preceito é fraudado por meio de uma publicidade mascarada, configurando

uma inconstitucionalidade que deve ser evitada e expurgada do ordenamen-

to jurídico brasileiro.18

Conforme prescreve o artigo 22, parágrafo 3º, da Lei de Licitações, a

cópia do instrumento convocatório deve ser afixado, pela unidade adminis-

trativa, em local apropriado. Acerca desta regra, a professora Maria Sylvia

Zanella DI PIETRO ensina que, dessa forma, outros interessados que não fo-

ram convidados, desde que estejam cadastrados, poderão participar da lici-

tação se manifestarem seu interesse com até 24 (vinte e quatro) horas de

antecedência da abertura das propostas. Segundo a autora, a afixação do

instrumento convocatório visa permitir a participação de outros interessados,

contribuindo para ampliar o rol de licitantes. No entanto, as exigências feitas

pela Lei nº 8.666/93, no sentido de que os não convidados devem estar ca-

dastrados e devem manifestar seu interesse em participar do certame com

antecedência de até 24 (vinte e quatro) horas da apresentação das propostas,

15 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 239. 16 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Convite e número mínimo de interessados. Revista Nacional de Direito e Jurisprudência. Brasil, v. 6, n. 72, p. 21-24, 2005. 17 Idem. 18 MARRA, Luciana Cardoso. op. cit. p., 198.

Page 192: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 191

acaba por tornar mais complexo um procedimento que tem como principal

característica a simplicidade, posto que é cabível para contratações de pe-

queno vulto.19

É possível concluir que a intenção do legislador, ao exigir que o ins-

trumento convocatório fosse afixado em local adequado, na repartição da

unidade administrativa promotora do certame, foi estender o convite àqueles

interessados que não foram convidados pela Administração. No entanto, o

legislador impôs condições à participação destes, ou seja, estes interessados

devem possuir cadastro naquela entidade administrativa e devem manifestar

seu interesse em participar do certame no prazo determinado pela lei. Logo,

a norma obstaculiza a participação de interessados cadastrados, embora não

convidados, ferindo o princípio da isonomia, pois não garante a todos os

licitantes acesso igualitário à disputa.

Tal exigência é considerada disparatada pelo professor Joel de Mene-

zes NIEBUHR, posto que é desprovida de qualquer sentido ou justificativa.

Ressalte-se que a referida previsão legal impõe a manifestação da intenção e

não a apresentação da proposta. A propósito, a intenção pode ser demons-

trada de qualquer forma, até oralmente. Pode ser manifestada por meio de

ofício, formulário, entre outros. Em que pese a liberdade de forma, é reco-

mendável que o interessado adquira um comprovante acerca da manifesta-

ção do seu interesse em participar da licitação.20

Quanto à escolha dos destinatários do convite, como afirma ainda Joel

de Menezes NIEBURH, “A Administração, diga-se, decide de modo discricio-

nário sobre os convidados, não havendo qualquer pré-requisito legal”.21 So-

bre este tema, o professor Marçal JUSTEN FILHO adverte sobre os riscos de

se violar a moralidade e a isonomia, uma vez que a seleção dos convidados é

feita de forma discricionária pela Administração. Restará caracterizado des-

vio de finalidade, se determinados licitantes forem excluídos ou selecionados

devido a preferências puramente subjetivas, o que resultará na invalidação

do ato. A seleção prévia dos licitantes deve ser feita considerando o interesse

da Administração com vistas à realização de suas funções.22

Ainda, segundo Marçal JUSTEN FILHO, o problema mais grave diz res-

peito ao envio de convite a sujeitos não cadastrados. O autor explica que os

cadastrados não precisam necessariamente receber o convite por parte da

Administração, uma vez que basta a manifestação prévia para que possam

participar. Por outro lado, o ponto nevrálgico está no fato de a Administração

destinar convite a não cadastrados.23 A questão apresenta dois aspectos

problemáticos. O primeiro problema enfrentado é que a falta de cadastra-

19 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. op. cit., p. 384. 20 NIEBUHR, Joel de Menezes. op. cit., p. 5. 21 Ibidem. p. 4. 22 JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 249. 23

Ibidem. p. 250.

Page 193: Revista Raízes Jurídicas

192 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

mento espontâneo por parte do particular pressupõe a ausência de interesse

do sujeito em participar de licitações. O segundo ponto crítico é que, a au-

sência de cadastro não permite verificar ao menos a capacidade jurídica do

particular para ser contratado. O cadastramento possibilita que a Adminis-

tração analise algumas condições mínimas de idoneidade. Dessa forma, ao

expedir convite a um sujeito não cadastrado, a Administração assume riscos

muito maiores. É muito provável que um determinado sujeito não tenha efe-

tuado seu cadastro por saber que não dispunha de condições para fazê-lo.24

Para convidar sujeito não cadastrado, a Administração deve contar com

evidências objetivas de que o convidado reúne as condições necessárias para

executar o objeto, não podendo valer-se apenas de sua competência discri-

cionária para convidá-lo. A falta de motivação acerca da escolha de um su-

jeito não cadastrado é passível de impugnação por parte dos licitantes ca-

dastrados. Assim, o envio de convite a não cadastrados compreende a elabo-

ração de critérios discriminatórios adequados, bem como o cuidado para

evitar a celebração de contratos com sujeitos inidôneos.25

No entanto, convidar apenas sujeitos cadastrados também pode ferir o

princípio da igualdade, conforme entende o professor Jessé Torres PEREIRA

JUNIOR. Para o autor, ainda que a Administração possa convidar apenas em-

presas cadastradas para participar do certame o que segundo ele, muitos

sugerem a fim de evitar o direcionamento do convite e consequentemente

reforçar o princípio da moralidade, tem se mostrado inexequível na prática.

Ocorre que, por se tratar de licitação cujo objeto é sempre de baixo valor, as

empresas do ramo pertinente são geralmente de pequeno porte e não se

interessam em reunir a documentação necessária para realizar o cadastro,

que é numerosa e onerosa. Logo, se apenas as empresas cadastradas pudes-

sem ser convidadas, o número de empresas convocáveis seria pequeno, o

que resultaria em baixa competitividade e em discriminação atentatória ao

princípio da igualdade.26

Portanto, consoante assevera o professor Joel de Menezes NIEBUHR,

podem participar da licitação, além dos convidados, todos os demais cadas-

trados perante a Administração. Significa dizer que, de acordo com o pará-

grafo 3º, do artigo 22, da Lei nº 8.666/96, aqueles interessados não cadas-

trados e não convidados não podem participar do convite. Então, se um inte-

ressado não cadastrado e não convidado tomar ciência da realização do con-

vite e quiser participar da licitação, será necessário que providencie antes o

seu cadastramento, o qual deverá ser efetuado de pronto pela Administra-

ção, sob pena de infringir o princípio da isonomia. A regra contida no dispo-

sitivo legal em questão atrai inúmeras críticas, posto que o convite deveria

24 Idem. 25 Idem. 26 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da Administração Pública. 7.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 268.

Page 194: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 193

ser acessível a qualquer interessado que atendesse aos requisitos estabele-

cidos no instrumento convocatório, independentemente de cadastramento

prévio.27

Para o aludido professor, a modalidade convite, além de ferir o princí-

pio da publicidade, também encerra uma afronta veemente ao princípio da

isonomia. Para explicar tal violação, o autor fornece o seguinte exemplo: de

um lado, três supostos interessados recebem o convite em suas próprias

sedes, ao passo que, de outro lado, outros possíveis interessados, que deve-

riam receber o mesmo tratamento, não chegam a tomar conhecimento da

existência da licitação, pois não existem condições razoáveis para isso. Con-

figura-se completamente desarrazoado imaginar que os sujeitos consigam

verificar diariamente os quadros de avisos de todos os órgãos licitantes, à

exceção de grandes centros, onde empresas especializadas realizam tal ati-

vidade. Logo, é notório o tratamento desigual, ofensivo ao princípio da iso-

nomia, na medida em que para alguns foi oportunizado o conhecimento da

existência do certame, porque receberam as cartas-convite em seus endere-

ços, ao passo que outros possíveis interessados sequer tiveram condições

razoáveis para saber da existência da licitação.28 Portanto, é possível vislum-

brar exemplo claro e perfeitamente fatível de ofensa à isonomia.

Consoante entendimento da professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO,

no que se refere à habilitação dos licitantes, esta é imprescindível apenas

para aqueles que se apresentarem sem que a Administração os tenha convi-

dado, pois devem estar cadastrados. Para os demais, a habilitação é faculta-

tiva, conforme redação do artigo 32, parágrafo 1º, da Lei 8.666/93. Esse

tratamento diferenciado ofende o princípio da isonomia, pois a exigência de

certificado para os não convidados só seria justificável nos casos em que a

Administração exigisse habilitação dos convidados. Da forma como está re-

digido o texto legal, essa norma poderá permitir a inabilitação de um licitan-

te que não tenha o certificado de registro cadastral regular, ao passo que,

para os licitantes convidados não se exigiu nenhum documento.29

Porém, o professor Jessé Torres PEREIRA JUNIOR adverte que o pará-

grafo 1º, do referido artigo 32, pode levar ao entendimento incorreto de que

a Administração poderia eliminar a fase de habilitação da modalidade convi-

te, uma vez que seria possível dispensar, no todo ou em parte, os documen-

tos relativos a tal fase. O autor entende que, no mínimo, o documento refe-

rente à comprovação de regularidade com a seguridade social é imprescindí-

vel, pois decorre de diretriz constitucional.30

27 NIEBUHR, Joel de Menezes. op.cit., p. 5. 28 Ibidem. p. 3. 29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. op. cit., p. 384. 30 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. op. cit., p. 273.

Page 195: Revista Raízes Jurídicas

194 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Assim, o Tribunal de Contas da União já firmou posicionamento quanto

“à obrigatoriedade de exigir-se certidão negativa para com o INSS no mo-

mento da habilitação do licitante”.31

Ademais, aplicar o princípio da isonomia à licitação significa dizer que,

a princípio, antes de realizar algum tipo de diferenciação legítima entre os

potenciais licitantes, a todos eles é conferido direito igual à disputa pela

contratação com a Administração Pública. Nesse caso, a igualdade represen-

ta a expectativa igual que todos têm de contratar com a Administração, ven-

cendo a disputa aquele que apresentar a maior vantagem.32

Em sentido amplo, a isonomia significa que todo e qualquer interessa-

do tem acesso livre a competir pela contratação com o poder público. Como

consequência direta do princípio da isonomia, a Administração está impedi-

da de escolher um determinado sujeito sem observar um procedimento sele-

tivo apropriado e prévio, do qual constem exigências razoáveis acerca do

objeto a ser executado.33

O descumprimento deste princípio representa a forma mais ardilosa de

desvio de poder, com o qual a Administração rompe a isonomia entre os

licitantes. Por esse motivo, o Poder Judiciário vem anulando editais e julga-

mentos nos quais se constatam perseguições ou favoritismos, posto que tais

práticas são desprovidas de objetivo ou interesse público.34

Assim, resta claro que essa modalidade vai de encontro aos princípios

da publicidade e da isonomia. Pelo fato de somente três licitantes serem

convidados, acaba por conferir tratamento desigual aos não convidados, vez

que os mesmos não possuem meios razoáveis para conhecer da licitação

pública.

O Projeto de Lei n. 7.709 foi enviado ao Congresso Nacional pelo Poder

Executivo, em fevereiro de 2007, com vistas a conferir celeridade e minimi-

zar o custo das contratações, assim como facilitar a participação de interes-

sados. Esse projeto faz parte do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Constam do Projeto algumas propostas tendentes a simplificar as contrata-

ções públicas, como a obrigatoriedade de utilização do pregão para contratar

bens e serviços comuns; a possibilidade de valer-se de recursos eletrônicos

para as modalidades de concorrência, tomada de preços e convite e a inver-

31 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão nº 527/95, Plenário. Relator Ministro José Antonio Barre-to de Macedo. Brasília, publicado em 31/10/95. Disponível em: <http://www.tcu.gov.br >. Acesso em: 15/02/2010. 32 RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. op. cit., p. 90. 33 JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 67 34 MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 277.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 195

são das fases de classificação e habilitação nas referidas modalidades.35 O

projeto não põe fim ao convite, porém passa a exigir a adoção da modalida-

de pregão para a maioria das situações em que se fazia possível a utilização

dessa modalidade.

A Lei nº 10.520/2002, que instituiu o pregão, determinou que essa

modalidade poderia substituir o convite, a tomada de preços e a concorrên-

cia, quando os serviços e bens contratados fossem considerados comuns.36

Porém, o Projeto de Lei estabelece que o pregão, especialmente o eletrônico,

seja obrigatório nessas situações.37

Com a utilização dos meios eletrônicos, a tendência é que as licitações

se tornem mais transparentes, mais competitivas e mais baratas, gerando

maior economia para os cofres públicos. Este é um dos motivos que tornará

a modalidade convite obsoleta.38

É por meio da Administração Pública que o Estado realiza as suas fun-

ções, por isso são necessárias regras para nortear a sua própria atuação. Os

agentes que o representam devem obedecer às regras impostas à Adminis-

tração, pois trabalham gerindo a coisa pública, que é de interesse de toda a

coletividade.

Dentre os princípios que devem direcionar a atuação estatal, o dever

de licitar é um deles. Quando a Administração precisa realizar obras ou con-

tratar serviços, ela não pode escolher um determinado fornecedor de acordo

com sua própria vontade. O poder público tem o dever de instaurar uma

competição e torná-la pública, com vistas a receber um grande número de

propostas. Assim, terá um vasto campo de escolha e poderá contratar, ob-

servados todos os critérios legais, aquele fornecedor que oferecer a melhor

vantagem para atender ao interesse público.

É de interesse da coletividade que a Administração Pública disponha de

várias propostas de preços, pois assim terá maiores chances de selecionar o

melhor fornecedor, pelo preço mais adequado. As despesas com contrata-

ções oneram os cofres públicos, por isso, ao realizar uma licitação idônea e

embasada nos ditames da lei, tanto o erário quanto a coletividade estarão

sendo resguardados.

35 TOLOSA FILHO, Benedicto de. Propostas do PAC para Alteração da Lei de Licitações. Disponível em: <http://www.investidura.com.br/biblioteca- juridica/artigos/administrativo/2543-propostas-do-pac-para-alteracao-da-lei-de-licitacoes.html>. Acesso em: 13/03/2010. 36 Lei do Pregão, Lei nº 10.520 de 18 de julho de 2002. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14/03/2010. 37 CONLICITAÇÃO 2010. Câmara aprova projeto para desburocratizar licitações. Disponível em <http://www.conlicitacao.com.br/futuro/lei/noticias/semana_licitacoes.php>. Acesso em: 14/03/2010. 38 Idem.

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196 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

No entanto, se a licitação não for amplamente divulgada, ou seja, se

não tornar viável que um universo amplo de pessoas tome conhecimento

acerca da sua realização, poucos ou nenhum interessado acorrerá ao certa-

me e não serão concretizados os ideais de competição, melhor vantagem,

isonomia entre os participantes, buscados em uma disputa, posto que não

haverá disputa.

Devido à divulgação insuficiente do convite, (afixação do ato convoca-

tório nos quadros de avisos da repartição e envio do convite a, no mínimo,

três convidados), não é possível que a sociedade tome conhecimento da rea-

lização do certame. Como ocorre com as outras modalidades, a veiculação

do aviso de licitação por meio de jornal impresso é uma maneira de se con-

ferir ampla publicidade aos atos da Administração Pública e, em decorrência

disso, alcançar um número maior de potenciais licitantes.

Na medida em que nem todas as pessoas têm a possibilidade concreta

de tomar ciência acerca da realização de uma licitação, elas não terão acesso

igualitário à disputa, portanto o princípio constitucional da isonomia restará

violado.

Na modalidade convite, apenas os fornecedores convidados, cadastra-

dos ou não, terão conhecimento efetivo de que acontecerá um certame lici-

tatório.

Ante ao exposto no presente trabalho, o acesso à licitação sob a mo-

dalidade convite é extremante restrito. Por esse motivo, é muito fácil que o

agente público inescrupuloso direcione a licitação para beneficiar determina-

do licitante e firme com este os mais sórdidos acordos. Ademais, a suposta

divulgação, completamente ineficaz, contribui sobremaneira para a realiza-

ção de todo o tipo de negociatas, pois se a licitação é feita às escondidas,

dificilmente as irregularidades serão descobertas, uma vez que praticamente

ninguém ficou sabendo da realização do certame.

Dessa forma, o Projeto de Lei nº 7.709/2007, é bem vindo no sentido

de utilizar o pregão presencial ou eletrônico para a maioria das situações nas

quais seria possível utilizar o convite. Na medida em que tal modalidade co-

mece a ser pouco empregada, com o passar do tempo cairá em desuso. En-

tão, será extirpada do seio da Administração Pública a possibilidade de se

engendrar as fraudes que hoje são acobertadas sob a modalidade convite.

Page 198: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 197

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198 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Page 200: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 199

Anneliese Gobbes Faria

Acadêmica do 4º ano do Curso de Direito da Universidade Positivo

É extremamente comum o empresário “em crise” encontrar abissais di-

ficuldades para reerguer sua empresa, sendo a falência um terrível pesadelo.

Este artigo busca estabelecer formas de planejamento estratégico, como so-

lução dentro do contexto de um plano de recuperação da empresa. É impor-

tante ressaltar que a empresa deve apresentar viabilidade econômico-

financeira para poder se manter no mercado. Os beneficiados da reinserção

da empresa no mercado serão, além dos empresários e empregados, os cre-

dores, a sociedade como um todo e a economia do país. A insolvência é

muitas vezes causada pela má administração. São por meio do planejamento

estratégico, do planejamento tático e operacional que os caminhos a serem

trilhados pela empresa serão traçados e executados. Um dos métodos que

pode ser empregado é o Balanced Scorecard. Os objetivos e medidas do Ba-

lanced Scorecard focalizam o desempenho organizacional sob quatro pers-

pectivas: financeira, do cliente, dos processos internos e do aprendizado e

crescimento. No entanto, não existe um método único e perfeito para todas

as empresas em crise. Cada caso deverá ser analisado separadamente.

Palavras-chave: Falência; recuperação de empresas; plano de recupera-

ção; viabilidade econômico-financeira; planejamento estratégico; Balanced

Scorecard.

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200 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Quando o estrategista erra, o soldado morre.

Lincoln

Desde a Roma antiga, o devedor falido enfrenta dificuldades em se

restabelecer com dignidade. Com o decorrer dos séculos, a legislação fali-

mentar foi se aprimorando e trazendo mais opções para impedir ou ameni-

zar os efeitos do processo falimentar.

Portanto, através de uma pesquisa na doutrina, além da análise da le-

gislação sobre o assunto, buscamos tentar encontrar quais seriam as melho-

res soluções para resolver o problema da insolvência e da falência.

Será demonstrado neste artigo um breve histórico sobre a legislação

falimentar, suas características e as soluções para a empresa sair da crise,

tais como os meios de recuperação e os diversos métodos modernos de pla-

nejamento estratégico.

O objetivo geral é perceber a relação causal direta do planejamento es-

tratégico com a efetiva recuperação de empresas sob este regime.

No Brasil, com a lei nº 11.101/2005 atualmente vigente, surgiram duas

novas figuras jurídicas: a recuperação judicial e extrajudicial de empresas.

O objetivo maior dessa lei é viabilizar a superação da situação de crise

econômica do devedor promovendo a preservação da empresa, se a mesma

apresentar viabilidade econômica.

No entanto, no processo de recuperação é fundamental que seja traça-

do um planejamento estratégico para o soerguimento da empresa. Existem

várias ferramentas gerenciais, e cabe a escolha pelos especialistas de quais

poderão ser aplicadas.

O Balanced Scorecard é uma ferramenta eficaz e tradicional que serviu

de base para o surgimento de outros métodos mais modernos e usuais.

Em todo esse processo é fundamental que haja uma interdisciplinari-

dade entre o Direito e as ciências da Economia, da Contabilidade e da Admi-

nistração de Empresas.

O essencial é diagnosticar corretamente o problema e planejar de for-

ma estratégica a solução para a empresa sair da crise. Deve ser elaborado

um plano de recuperação para ser executado de forma prudente a fim de

preservar a empresa, trazendo benefícios não só ao empresário e aos em-

pregados, mas também à sociedade e ao país e sua economia.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 201

Com objetivo do leitor se interar no tema, iniciaremos com uma breve

retrospectiva histórica do instituto em questão.

Na Roma antiga, no medievo ou na moderna Europa, o devedor falido

era sempre considerado um criminoso, um ser execrável. Essas legislações

eram extremamente rigorosas e, em algumas épocas, chegaram a estipular

punições como o amputamento e a decapitação, inclusive.

No Brasil, segundo Domingos1, a primeira regulamentação sobre cre-

dores foram com as Ordenações Filipinas, na época do Império. As quebras e

concordatas foram melhores detalhadas no Código Comercial do Império do

Brasil de 1850.

Em inovação legislativa, o Código Comercial de 1848, no seu artigo

898, criou a moratória para os comerciantes que necessitavam de dilação de

prazo para sobrevivência de dívidas.

Ademais, o Decreto nº 917 de 24/11/1890 instituiu o acordo extraju-

dicial ou concorrência extrajudicial com a edição da Lei nº 859/02. A mora-

tória foi abolida pela Lei nº 2024/1908.

Até que a Lei atualmente vigente, a 11.101/2005, revogou o Decreto

Lei nº 7661 de 1945 e surgiram duas novas figuras: a recuperação judicial e

a recuperação extrajudicial, com o escopo de manter a empresa economica-

mente viável no mercado, gerando benefícios de forma mais eficiente que o

antigo instituto da concordata.

Constata-se que essa inovação legislativa revolucionou o direito, pois

se deixou de lado a visão puramente capitalista que se tinha a respeito do

direito empresarial. Na visão de Domingos: “Insolvente ou não, a empresa é

uma unidade econômica que interage no mercado, compondo uma labiríntica

teia de relações jurídicas com extraordinária repercussão social”.2

O instituto da recuperação judicial e extrajudicial de empresas foi a so-

lução prevista na Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências- LRF)

para tentar manter em funcionamento as empresas em dificuldades econô-

micas temporárias, visando garantir os empregos e os interesses de terceiros

como credores, fornecedores, consumidores e do fisco. Segundo Austrau-

1Domingos, Carlos Eduardo Quadros. As fases da Recuperação Judicial. Curitiba: J.M. Livraria Jurídica,

2009. p. 54-56. Ressalte-se que até hoje estão em vigor em nosso direito pátrio algumas disposições do Códi-go Comercial de 1850. 2Op. cit.Carlos apud Waldo Fazzio Junior. p.78. Essa nova visão se aperfeiçoou com o advento da Constitui-

ção de 1988.

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202 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

kas3, a recuperação judicial pode ser definida como uma série de atos prati-

cados sob o domínio judicial com o fim do soerguimento e manutenção da

empresa em dificuldades financeiras transitórias.

Conforme a visão de Abaldilo4, a LRF (Lei nº 11.101/2005) tem o obje-

tivo de viabilizar a superação da situação de crise econômica do devedor, a

fim de permitir a manutenção da fonte produtora; do emprego e dos interes-

ses dos credores, promovendo a preservação, bem como a função social e

estímulo à atividade econômica.

A empresa, segundo Domingos5, “representa o papel do empresário ou

da sociedade empresária dentro da esfera social de um país, pois cria em-

pregos e gera riqueza e influencia diretamente na vida cultural, social e eco-

nômica da nação”. Deve-se fazer o máximo possível de esforços para que a

empresa seja recuperada, caso ela apresente viabilidade econômica, diante

de sua real importância para a sociedade e para o país e sua economia.

Contudo, esse instituto não é útil para qualquer empresa em crise. A

LRF é destinada apenas àquelas empresas que, embora apresentem dificul-

dades financeiras temporárias, são plenamente recuperáveis, ou seja, eco-

nomicamente viáveis e devem passar por um cuidadoso planejamento para a

sua recuperação.

Já foi demonstrada a enorme importância da manutenção da empresa

no mercado para a sociedade e para os interesses individuais, além da fun-

ção do instituto de recuperação de empresas. É importante ressaltar os prin-

cípios constitucionais inerentes ao instituto em questão. Percebe-se que está

ocorrendo uma “constitucionalização” do direito empresarial, visto a tama-

nha importância da atividade empresarial para a sociedade e seus potencias

reflexos quando a empresa cessa sua produção.

Em razão disso, os procedimentos falimentares ou de recuperação es-

tão considerando de modo exponencial a aplicação e efetivação dos princí-

pios constitucionais. Citaremos os mais usuais. Em pleno século XXI, não

podemos deixar de mencionar o princípio constitucional da proteção ao meio

ambiente sadio (artigo 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988).

Segundo Alexsandra Marilac Belnoski6, a partir da década de 80 se au-

mentou o cuidado com o meio ambiente, pois houve o esgotamento de re-

3Astrauskas, Fábio Bartolozzi. O Planejamento Estratégico e o Plano de Recuperação Judicial. Disponível

em: http://www.administradores.com.br/informe-se/informativo/o-planejamento-estrategico-e-o-plano-de-recuperacao-judicial/15129/ p. 01. 4Carvalho. Albadilo Silva. Recuperação Judicial da empresa com fundamento no princípio da viabilida-

de econômico-financeira. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1730. p.56. 5 Domingos, op. cit, p.80.

6Belnoski. Alexsandra Marilac. Consumo sustentável: a crise da modernidade e a gestão urbana. In:

Raízes Jurídicas. Revista do Curso de direito e da pós-graduação. Volume 5. Número 2. Julho-Dezembro 2009. p. 207-208.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 203

cursos naturais, o que é de fato alarmante. Com isso, houve uma maior

conscientização mundial em relação ao consumo e ao desenvolvimento sus-

tentável. Todavia, o Brasil é um país de substanciais dimensões e a socieda-

de contemporânea é caracterizada pela crescente industrialização e incentivo

descontrolado ao consumo.

Mesmo com todas essas dificuldades, não se pode olvidar em incluir

como objetivo comum de todas as empresas, em processo de recuperação

ou não, a adoção de medidas a minimizar danos ao meio ambiente.

A adoção de práticas que preservem o meio ambiente leva a empresa a

ser vista de outro modo, com um diferencial competitivo relevante para os

interessados em com ela negociar. Os consumidores e o mercado respeitarão

mais aquela empresa e, inclusive quando ela for formalizar parcerias e em-

préstimos, terá preferência por apresentar esse diferencial.

Esse princípio deve constar no planejamento estratégico a ser adotado

na empresa em fase de recuperação, pois ele pertence à missão e aos valores

que a empresa deve seguir. É fundamental ter responsabilidade social e am-

biental, pois é através da racionalização de recursos naturais esgotáveis que

se obtém redução dos gastos financeiros e proteção do meio ambiente.

Conforme a doutrina de Carlos Claro7, outros princípios inerentes à re-

cuperação de empresas ou ao procedimento falimentar são: a dignidade hu-

mana; a livre concorrência e a livre iniciativa; proteção do trabalho; o não

retrocesso social, entre outros.

É evidente que um eficaz planejamento estratégico posto em prática

resultará na recuperação da empresa, que gerará lucro para os empresários e

manutenção do emprego para os trabalhadores. Mas não é só isso que ocor-

re. Ainda seguindo a linha de pensamento de Claro, pode-se observar que a

empresa contribui para uma ordem social e econômica mais justa, de modo

a ajudar na erradicação da pobreza e da marginalização, recrudescendo as-

sim as desigualdades sociais existentes em nosso país.8

O instituto de recuperação só é viável se for apresentado um plano de

recuperação para a empresa. Ele deve ser elaborado por especialistas, sob a

supervisão dos empresários e do administrador judicial.

O objetivo principal do plano de recuperação Judicial previsto na Lei nº

11.101/2005, nas palavras de Fábio Austrakas9, é permitir às empresas em

dificuldades financeiras que voltem a se tornar integrantes competitivas e

produtivas no cenário econômico. Consequentemente, os beneficiados serão

7Claro, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: Sustentabilidade e função social da empresa. Disponível

em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp060317.pdf>. Acesso em 22/07/2010. 8 Op. cit. p.51-53.

9 Austrakas, Fábio. op. cit. p.01.

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204 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

os atores envolvidos economicamente (controladores, credores, fornecedores

e empregados), mas, também, a sociedade como um todo. Assim, os credo-

res devem se convencer que o plano é factível e bem elaborado.

Na opinião de Austrakas10

, ao elaborar o plano de recuperação o em-

presário poderá escolher entre cumprir uma formalidade jurídica ou dar a si

mesmo uma segunda oportunidade de se inserir no mercado.

O plano de recuperação é certamente o ponto central para a recupera-

ção da empresa. É o que está contido nele que permitirá pôr em prática o

planejamento traçado para a reestruturação da empresa. Para tanto, deverá

ser muito bem elaborado e executado. O problema é o prazo exíguo que o

Judiciário fornece para a sua confecção, e os empecilhos para sua execução.

Entre as diversas obrigações e responsabilidades do administrador ju-

dicial encontra-se a tarefa de comandar a execução do plano de recupera-

ção, bem como de fiscalizar o cumprimento, pois caso contrário deverá pedir

a convolação da falência.

É o administrador judicial que deve saber como ninguém como está a

real situação da empresa e se o plano adota um planejamento estratégico

factível para a sua recuperação. Os credores devem sempre participar dessa

execução do plano e possuem o direito de fiscalizá-lo.11

Acerca da importância abissal desse instituto mencionado para a vida

da empresa e da sociedade, vamos descrever resumidamente todas as suas

fases e características. Segundo Domingos12

, a primeira fase da recuperação

é o pedido inicial. A petição inicial deverá ser encaminhada ao juízo compe-

tente seguindo os requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil.

Caso o juiz encontre vícios sanáveis na petição inicial, poderá fornecer

um prazo para o autor emendar a exordial. Após o recebimento da petição

inicial, o juiz deferirá o procedimento da recuperação judicial e nomeará o

administrador judicial;poderá determinar dispensa de apresentação de certi-

dões negativas para contratar com o poder público e ordenará a suspensão

de ações ou execuções pendentes.

Ademais, segundo o mesmo autor supracitado, ainda nessa fase, o juiz

determinará que o devedor apresente contas mensalmente enquanto perdu-

rar a recuperação sob pena de destituição do administrador judicial. O Mi-

nistério Público será intimado e haverá a expedição de edital para publicação

em órgão oficial que conterá resumo do pedido do devedor e da decisão que

defere o procedimento, relação nominal de credores com valor atualizado e

10

Ibidem, p.01. 11

Para isso, a assembléia geral de credores bem como o comitê possuem um papel primordial em todo o pro-cesso falimentar ou de recuperação. 12

Domingos, Carlos Eduardo Quadros, op. cit. p.111.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 205

classificação de crédito; advertência para prazos para habilitar crédito e ob-

jeção do credor.

Na fase apuratória, o devedor deve apresentar o plano de recuperação

judicial no prazo de 60 dias da publicação da decisão do processamento do

pedido. O plano não pode prever mais de um ano para quitar obrigações

trabalhistas. Com o plano, o juiz ordena a publicação do edital e os credores

possuem 30 dias para impugná-lo.

Na fase deliberatória, há as objeções do credor ao plano. Em relação à

certidão negativa de dívida tributária, o juiz pode ou não dispensá-la. Con-

forme o artigo 58 da LRF, depois de cumpridos todos esses requisitos, o

magistrado deve conceder a recuperação judicial que se constitui como um

título executivo judicial.

Na última fase, a executória, o devedor deve cumprir com a obrigação

do plano de recuperação em 2 anos, caso contrário, o magistrado efetuará a

convolação em falência. Se for cumprido o plano, encerra-se a recuperação

judicial. Aqui vale discutir se 2 anos são suficientes para que se possa cum-

prir com todas as obrigações do plano, visto a complexidade da recuperação

de uma empresa em dificuldades.

Diante de um pedido de recuperação judicial, o juiz deve analisar se a

empresa possui viabilidade econômica. Caso a empresa não possua essa

viabilidade, o pedido de recuperação deve ser indeferido. Caso contrário, a

recuperação deve ser processada.13

Na recuperação extrajudicial, é feito um acordo entre os empresários e

os credores e elaborado um plano que é homologado em juízo. Homologado

por sentença, o plano gera efeitos imediatos e se constitui um título executi-

vo judicial.14

No plano de recuperação da empresa, Restiffe15

assevera que devem

constar quais serão os meios a serem adotados durante o processo de recu-

peração empresarial. Os meios de recuperação que a empresa pode adotar

estão previstos no artigo 50 da LRF de 2005. São dezesseis meios no total,

vejamos:

1 - Concessões de prazo e condições especiais para pagamento das

obrigações vencidas ou vincendas;

2 - Cisão, incorporação, fusão ou transformação, constituição de sub-

sidiária integral, ou cessão de quotas ou ações, respeitados os direitos dos

sócios;

3 - Alteração do controle societário;

13

Ibidem, p.117-131. A real viabilidade econômica da empresa deve estar claramente demonstrada no plano de recuperação. 14

Negrão, Ricardo. Direito empresarial: estudo unificado. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010. p.251-252. 15

Restiffe. Paulo Sérgio. Recuperação de empresas: de acordo com a lei 11.101, de 09-02-2005. Barueri, SP: Manole, 2008. p.211.

Page 207: Revista Raízes Jurídicas

206 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

4 - Substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou

modificação de seus órgãos administrativos;

5 - Concessão aos credores de direito de eleição em separado de ad-

ministradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especi-

ficar;

6 - Aumento de capital social;

7- Trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à socie-

dade constituída pelos próprios empregados;

8- Redução salarial, compensação de horários e redução da jornada,

mediante acordo ou convenção coletiva;

9 - Dação em pagamento ou novação de dívidas;

10 - Constituição de sociedade de credores;

11 - Venda parcial dos bens;

12 - Equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qual-

quer natureza, inclusive crédito rural;

13 - Usufruto da empresa;

14 - Administração compartilhada;

15 - Emissão de valores mobiliários- securitização;

16 - Constituição de sociedade de propósito específico- SPE- para ad-

judicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.

Restiffe16

afirma que o empresário tem liberdade na escolha dos meios

de recuperação a serem adotados, mas deve se limitar às disposições e prin-

cípios gerais do direito. Ademais, deve-se se ater aos recursos disponíveis e

ao capital da empresa.

Em se tratando de empresas em um país capitalista como o nosso, que

defende a livre iniciativa, os empresários requerem o máximo de liberdade

de mercado e o mínimo de interferência estatal.17

O artigo 170 da Constitui-

ção Federal de 1988 preconiza a função social da propriedade, a livre inicia-

tiva e a livre concorrência.

Luís Felipe Martini18

afirma que: “O princípio da livre concorrência é a

multiplicidade de agentes econômicos que estejam em um mesmo patamar

de igualdades com a finalidade de disputar mercados”.19

Isso significa que

não pode haver concorrência desleal ou qualquer abuso econômico.

16

Op. cit. p.212-214. 17

Abranches, Sérgio. Solução de mercado. Disponível em: <http://www.oeco.com.br/sergio-abranches/16512-oeco_15834>. Acesso em: 31/08/2010. p.01. 18

Martini, Luís Felipe. A concentração de mercado sobre a ótica do CADE. In: Raízes Jurídicas. Revista do Curso de direito e da pós-graduação. Volume 5. Número 2. Julho-Dezembro 2009. p. 118. 19

Op. cit, p.118-119.

Page 208: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 207

Embora os empresários possuam a liberdade de se inserir no mercado,

de escolher o ramo em que desejam atuar (desde que lícito), essa liberdade

conferida não é absoluta. Como nossa Constituição é eminentemente social e

visa promover a construção de uma sociedade justa e solidária, ela disciplina

a interferência do Estado no mercado privado, a fim de atender interesses

sociais e econômicos e impedir abusos econômicos.

Para o alcance desses objetivos, em 1994 foi criada a Lei federal nº

8884, que veio a proibir o abuso do poder econômico. É importante ressal-

tar que muitas firmas “quebram” devido ao abuso econômico de outras, não

controlados pelo governo.

Em 1994 foi criada uma autarquia federal, o CADE, com a finalidade de

fiscalizar as atividades econômicas empresariais e a concorrência de merca-

do, criando políticas para a prevenção do trust. O CADE surge como órgão

administrativo que tem a função de fiscalizar a ordem econômica, sendo que

seus atos administrativos estão sujeitos ao controle jurisdicional. Quando

alguma empresa domina deslealmente o mercado, deve haver a intervenção

do CADE.

Pode-se citar, segundo Evangelista, um exemplo de intervenção do

CADE no mercado: em 1999, se operou a fusão de duas das maiores fábricas

de cervejas e refrigerantes do país: Antarctica e Brahma. Mais de 70 % do

mercado nacional de cerveja ficou concentrado nas mãos dessa nova forma

societária. O CADE acabou aprovando essa fusão, pois constatou vantagens

nessa operação como geração de sinergias, mercado mais globalizado e

competitivo.

Na visão de Pedro Evangelista20

:

“A proteção da concorrência – como instrumento da colaboração inteli-gente para o desenvolvimento do país - não se limita apenas em proibir toda fusão, incorporação ou outra forma de concorrência empresária que possa existir já que o aumento da concentração de mercado não fundamenta, por si só os motivos para desconstituir a operação”.

Como já citado anteriormente, a fusão é um potencial meio de recupe-

ração, previsto no artigo 50 da Lei nº11. 101/2005. No entanto, deve ser

observada a real situação do mercado e a adoção dessa medida numa em-

presa em recuperação, pois esse meio pode ser viável ou não para tal em-

presa. E vale ressaltar que, se esse meio causar abusos contra a ordem eco-

nômica, deverá ser restringido pelo CADE e pelo poder judiciário.

Se no plano estiver traçado como meios de recuperação a fusão ou ci-

são da empresa, essa proposta deverá ser autorizada pelo CADE, para que

assim o plano possa ser devidamente cumprido.

20

Ferreira. Pedro Luciano Evangelista. O caso AMBEV; um estudo de caso de abuso de poder econômico e a importante atuação do CADE. In: Raízes Jurídicas- Volume 2. Número 1- Janeiro-Junho 2006. p. 167.

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208 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

O CADE está diretamente interligado com a recuperação de empresa e

com o planejamento estratégico. Para o cumprimento do plano e para o ideal

andamento da recuperação deve haver ostensiva fiscalização do CADE, a fim

de se impedir abusos econômicos.

Por razões lógicas, antes de se ingressar com o pedido de recuperação

ou com a falência, os dirigentes devem fazer o possível para não entrar em

crise econômico-financeira, sempre trabalhando com a teoria da precaução.

Os empresários podem se valer de diversos expedientes, como financi-

amentos e empréstimos. As chamadas sociedades de crédito, de financia-

mento e investimento possuem como escopo o fornecimento de investimen-

to para a empresa poder adquirir bens e serviços, além de alimentar o seu

capital de giro. 21

Sendo assim, a empresa deve sempre buscar atingir seu ponto de

equilíbrio. A economia tradicional, nas palavras de George Soros, define a

ideal situação econômica que uma empresa deve ostentar:

“O ponto de equilíbrio é alcançado quando cada firma produz num nível em que seu custo marginal se iguala ao preço de mercado e cada con-sumidor compra uma quantidade cuja ‘utilidade’ marginal se iguala ao preço de mercado”.

22

No entanto, a empresa se prevenindo ou não pode passar por crises.

Conforme Abaldilo23

, a crise pode surgir por causas externas, como aumento

das taxas de juros, e retração do mercado consumidor; por causas internas,

como desentendimento e briga entre os sócios, capital insuficiente, desvios

monetários pela diretoria, operações de alto risco e causas acidentais, como

bloqueio de papel moeda pelo BACEN, crise econômica generalizada e maxi-

desvalorização da moeda nacional.

Todavia, na maioria das vezes a insolvência empresarial é causada por

falta de planejamento ou má-administração ou brigas entre familiares ou

sócios. Não são sempre as crises financeiras ou flutuações financeiras as

causas da insolvência. Planejando pode-se prevenir até das possíveis oscila-

ções de mercado.

No entanto, depois de fracassadas todas as medidas para o não in-

gresso da empresa numa crise, é o momento de estudar as possibilidades de

21

Santos. José Evaristo dos. Mercado Financeiro brasileiro. Instituições e instrumentos. São Paulo: Atlas, 1999. p.112. 22

Soros, George. A alquimia das Finanças. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.36. 23

Abaldilo, op. cit, p.30.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 209

viabilidade econômica e partir para o próximo passo, que seria avaliar se a

empresa pode se recuperar com a elaboração e a execução de um eventual

plano, ou se ela é irrecuperável, e deve pedir a sua falência.

Para Carlos Roberto Claro24

, se a empresa for irrecuperável ela deverá

ser afastada do mercado. Caso contrário, ela acarretará prejuízos para a or-

dem econômica e social, pois não estará gerando lucro e produtividade.

Em caso de crise econômica e/ou insolvência, que ocorre quando o

passivo total é maior que o ativo total, os empresários devem avaliar, de

forma clara, quais são os fatores causadores de seu fracasso e como vencê-

los a partir de um planejamento estratégico.

Como já mencionado, a insolvência não é sempre resultado de circuns-

tâncias imprevistas, e sim, muitas vezes, da má administração e de decisões

econômicas incorretas. Para aumentar as chances de sucesso do plano de

recuperação, segundo Austrakas25

, é necessário ouvir todos os credores para

a formação do plano no caso de a empresa apresentar viabilidade econômi-

ca. Outros terceiros devem participar da elaboração do plano, como os fi-

nanciadores, fornecedores, clientes e empregados.

Numa empresa em recuperação, segundo o mesmo autor, o principal

objetivo é o retorno da empresa a uma situação de geração de fluxo de caixa

positivo que torna possível o pagamento de débitos contraídos durante a

crise.

No entanto, é importante o Judiciário e a assembléia e o comitê de cre-

dores investigarem minuciosamente a real situação financeira da empresa,

tendo em vista que existem muitas crises fabricadas com o fim de fraudar

credores e fisco.

Tendo discutido sobre a necessidade de se adotar o planejamento es-

tratégico para a elaboração do plano de recuperação, vamos abordar esse

tópico mais detalhadamente.

A origem do termo estratégia, conforme afirmam Brondani e Barbosa,

existe desde a época dos babilônios.26

A empresa deve se basear em um

poderoso planejamento, antes de seu nascimento e enquanto perdurar.

Nas palavras de Rubens Fava e Maria Carolina Andion, o planejamento

estratégico27

:

24

Claro, Carlos Roberto.op. cit, p.204. 25

Austrakas, Fábio. op. cit, p.01. 26

Barbosa, Emerson Rodrigues. Brondani, Gilberto. Planejamento estratégico organizacional. Disponível em: < http://w3.ufsm.br/revistacontabeis/anterior/artigos/vIn02/a08vIn02.pdf>. p. 109-110. 27

Andion, Maria Carolina. Fava, Rubens. Planejamento Estratégico. Disponível em: http://www.fae.edu/publicacoes/pdf/empresarial/3.pdf. Coleção Gestão empresarial.p. 27.

Page 211: Revista Raízes Jurídicas

210 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

“é um importante instrumento de gestão para as organizações na atuali-dade. Constitui uma das mais importantes funções administrativas e é através dele que o gestor e sua equipe estabelecem os parâmetros que vão direcionar a organização da empresa, a condução da liderança, as-sim como o controle das atividades. O objetivo do planejamento é for-necer aos gestores e suas equipes uma ferramenta que os municie de informações para a tomada de decisão, ajudando-os a atuar de forma pró-ativa, antecipando-se às mudanças que ocorrem no mercado em que atuam”.

Eduardo Pimenta28

afirma que, com a globalização dos mercados, a in-

tensificação das redes e parcerias, a exigência cada vez maior dos consumi-

dores, a diferenciação gigantesca dos produtos e o aumento vertiginoso da

concorrência são fatores que influenciam o planejamento nas empresas.

Sem dúvida, o planejamento bem utilizado é imprescindível à gestão

empresarial. Segundo o renomado doutrinador Restiffe29

, o plano de recupe-

ração empresarial pode indicar o planejamento estratégico a ser aplicado,

sendo importante que esse planejamento seja prático, flexível, rápido e pos-

sível de se adequar à realidade.

Na visão de Mary T. Bontempo:

“O planejamento estratégico, juntamente, com planejamento tático e o planejamento operacional formam processo de planejamento, que visa a vislumbrar uma situação futura desejada para a empresa e traçar os ca-minhos para alcançar esta situação”.

30

E métodos de planejamento estratégico é que não faltam, citando al-

guns deles: Basics, CSM, future mapping e análise prospectiva.

Para Oliveira31, o processo de planejamento estratégico tradicional é

dividido em várias fases. São elas: diagnóstico estratégico; missão da empre-

sa; instrumentos prescritivos e quantitativos e controle e avaliação. No diag-

nóstico é importante realizar: a identificação das expectativas dos represen-

tantes, a análise do mercado e da concorrência e a análise externa e interna

da empresa, além da análise dos concorrentes.

Para se estabelecer a missão na empresa, deve-se debater e estruturar

cenários, estabelecer propósitos atuais e potenciais, além de uma postura

estratégica e fazer uma macro estimativa e macro política da empresa.

28

Pimenta, Eduardo Goulart. Recuperação judicial de empresas: Caracterização, avanços e limites. Disponí-vel em: http://www.direitogv.com.br/subportais/publica%C3%A7%C3%B5e/RDGV_03_p151_166.pdf. Revista eletrônica de contabilidade: Curso de ciências contábeis- UFSM. p.99. 29

Restiffe.op. cit. p. 215. 30

Bontempo. Mary Tsutsui. Análise comparativa dos métodos de construção de cenários estratégicos no planejamento empresarial. Orientador. Dr. Fábio Frezatti. São Paulo: USP. Janeiro, 2000. p.33. 31

Oliveira apud Mary, op. cit. p.33-36.

Page 212: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 211

Por sua vez, disciplina Oliveira que32, na terceira fase, o empresário

deve estabelecer metas e a estratégia para atingi-las. Ele deve estabelecer a

partir das diretrizes estratégicas e da política da empresa planos de ação.

Ademais, os instrumentos quantitativos correspondem aos recursos neces-

sários e expectativas de retorno para se atingir os objetivos. E isso consiste

basicamente no planejamento orçamentário.

Por fim, a última fase consiste na avaliação de desempenho da empre-

sa, da eficiência da ação de natureza corretiva, sendo que o controle e avali-

ação devem ser feitos passo a passo no planejamento estratégico, de forma

periódica.33

Entre os diversos métodos de planejamento empresarial, destacamos o

método inovador do Oceano Azul. Ele consiste na adoção de atitudes pró-

prias na gestão empresarial com o fim de criar novas fronteiras no mercado

e conquistar espaços inexplorados. As empresas devem buscar a inovação de

valor. Essa inovação é atingida quando as empresas assimilam inovação com

utilidade, com o preço e com ganhos de custos.

Para se atingir o espaço do Oceano Azul as sugestões são, entre ou-

tras: criar espaços de mercado inexplorados; tornar a concorrência irrelevan-

te; alinhar todo o sistema de atribuição da empresa em busca da diferencia-

ção e baixo custo. Um dos erros crassos na gestão empresarial é que, na

perspectiva de se obter sempre mais lucro, os preços se elevarem.

Todavia, essa alternativa acaba se tornando frustrante, pois a elevação

de preços afasta os clientes e esse não é o objetivo. A solução, segundo os

criadores, não é restringir a produção a um preço alto, mas sim criar uma

nova demanda agregada, tornando o preço acessível juntamente com outras

características especiais a fim de agradar o consumidor.

Essas medidas postas em prática causam uma reformulação das fron-

teiras e da estrutura do setor e criam um oceano azul de um novo espaço

conquistado no mercado. Resumindo, em vez de insistir em águas sujas, é

forçoso se inserir num límpido e livre oceano azul. 34

32

Oliveira. Djalma de Pinho Rebouças de. Planejamento Estratégico: conceitos, metodologia e práticas. São Paulo: Atlas, 1995. p. 73-77 33

Oliveira. Djalma de Pinho Rebouças de. op. cit, p77. Vale comentar que essas diretrizes propostas pelo autor são seguidas no mundo inteiro, com o fim de orientar o planejamento a ser seguido por qualquer empresa. 34

W. Chan Kim. Mauborgne. Renée. A estratégia do oceano azul; como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 13; 17; 210-214.

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212 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Na elaboração do plano de recuperação da empresa e também na con-

fecção de seu planejamento estratégico, um dos fatores a serem avaliados é

a causa do bom ou do mau desempenho da empresa. Segundo o economista

Michael Porter “o desempenho de qualquer empresa é motivado pela renta-

bilidade derivada do negócio e pela rentabilidade resultante da posição que a

companhia ocupa no âmbito de sua competência principal.”35

A melhor estratégia, muitas vezes, é mudar a mentalidade, pois não

há apenas uma forma de competir. Agir estrategicamente é necessário para

agradar muitos clientes, mesmo que alguns fiquem insatisfeitos.

Segundo Porter:

“não tem que esperar o governo fazer tudo. Chegou o momento de os empresários não se concentraram somente nas estratégias de suas pró-prias empresas, chegou o momento em que cada homem de negócios deve se transformar em um estadista”.

36

O bom desempenho da empresa deve ser sempre avaliado periodica-

mente, mesmo ela estando em excelentes condições econômicas. Prevenir é

sempre melhor que remediar. Segundo o economista, é necessário contar

com insumos de altíssima qualidade, recursos humanos qualificados; bons

clientes e ainda criar as regras corretas para o jogo. 37

Pesquisamos diversos instrumentos de gestão empresarial e todos são

importantes, mas como não há possibilidade para analisarmos cada um de-

talhadamente, elegemos um desses métodos para uma visão mais minucio-

sa: O Balanced Scorecard.

O planejamento estratégico pode seguir as diretrizes do Balanced Sco-

recard, que é um método para estratégia e gestão empresarial criado por

dois norte-americanos; Robert Kaplan e David Norton. Os criadores definem

esse método como:

“O choque entre a força irresistível de construir capacidades competiti-vas de longo alcance e o objeto estático do modelo tradicional de conta-bilidade financeira de custos criou uma nova síntese: O Balanced Score-card.”

38

35

Porter. Michael. A nova era da estratégia. In: Revista HSM-Management- Edição Especial- Março- Abril-ano 2000. Editora Savana Ltda. p.18. 36

Op. cit, p.28. 37

Ibidem, p.25-26. 38

Kaplan, Robert S. Norton, David P. A estratégia em ação: Balanced Scorecard. Tradução: Luiz Euclydes Trindade Frazão Filho. 13 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.8.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 213

Os objetivos do Balanced Scorecard se pautam no desempenho organi-

zacional da empresa sob quatro perspectivas: a financeira, a do cliente, a dos

processos internos e a do aprendizado e crescimento.

Na opinião dos criadores, os executivos deverão estabelecer e planejar

metas para os objetivos do scorecard, e isso deve ser feito com três a cinco

anos de antecedência.

Nas palavras dos autores, o Balanced Scorecard cria um modelo holísti-

co da estratégia mostrando para toda a equipe como podem contribuir para

o sucesso organizacional da empresa em que trabalham.

Para facilitar o planejamento estratégico a ser adotado na empresa, os

criadores sugerem a formulação de mapas estratégicos a partir das diretrizes

do Balanced Scorecard, visando à consecução de objetivos a serem alcança-

dos, pois: “O mapa estratégico representa o elo perdido entre a formulação e

a execução da estratégia.”39

Uma das soluções propostas aqui é elaborar o mapa estratégico ado-

tando o Balanced Scorecard para o procedimento da recuperação judicial ou

extrajudicial de empresas. Nesse planejamento devem ser incluídos os qua-

tros processos de gestão operacional.

São eles:

1-Desenvolver e sustentar relacionamentos com os fornecedores, pois:

“Empresas como Toyota e Wall Mart dependem de seus fornecedores para produzir produtos de alta qualidade, encomendados com pouca antecedência pelos clientes, e para entregá-los de maneira confiável no respectivo ponto de venda. Essas empresas desfrutam de vantagens competitivas significativas, decorrentes de suas redes tradicionais de re-lacionamentos com fornecedores”.

40

2-Produzir produtos e serviços: O principal objetivo aqui é a redução

de custos de produção e melhorar a eficiência do capital de giro.

3-Distribuir e entregar produtos e serviços aos clientes: Abrangem o

cuidado com os custos, com a qualidade e os prazos de entrega de produtos

aos clientes.

4-Gerenciar riscos: Gerenciamento de riscos decorrentes de operações

de crédito, movimento da de taxas de juros e flutuações das caixas de câm-

bio e do mercado em geral.

Evidentemente, os investidores devem manter portfólios diversificados

que recrudesça o choque de variações não-sistemáticas nos resultados do

desempenho de uma empresa sobre o retorno total.

39

Kaplan, Robert S. Norton, David P. Mapas Estratégicos. Balanced Scorecard. Convertendo ativos intan-gíveis em resultados tangíveis. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. 8 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.10. 40

op. cit, p.70.

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214 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Sem dúvidas, o Balanced Scorecard (BSC) é uma competente ferramenta

gerencial. Ao projetar essa ferramenta, a estratégia da organização deve me-

dir os poucos parâmetros críticos que representam suas estratégias para a

criação de valor em longo prazo. Na verdade, as falhas ocorrem devido à

má-execução e não devido à má-estratégia. Segundo os autores, a pedra

angular do Balanced Scorecard é: se você pode medir, pode gerenciar o que

conseguiu medir.

Os autores desse método também retratam o conceito de ativos inatin-

gíveis: “Os ativos intangíveis foram definidos como ‘conhecimento existente

na organização para criar vantagem diferencial’ ou capacidades dos empre-

gados da empresa para satisfazerem as necessidades dos clientes”.41

Eles

também englobam itens diversos como direitos autorais, conhecimento da

força de trabalho, liderança, sistemas de informação e processos de traba-

lho.

Na visão dos autores Robert Kaplan e David Norton:

“A estratégia de uma organização descreve como ela pretende criar valor para seus acionistas, clientes e cidadãos. Se os ativos intangíveis da or-ganização representam mais de 75% do seu valor, a formulação e a exe-cução da estratégia de vê tratar explicitamente da mobilização e alinha-mento dos ativos inatingíveis”.

42

Com esse conceito de ativos inatingíveis, foram estudadas as perspec-

tivas de aprendizado e crescimento de centenas de mapas estratégicos base-

ados no Balanced Scorecard, e nesse estudo se constatou que seis objetivos

aparecem com freqüência; são eles:

1-Capital Humano: a disponibilidade de habilidades, talento e conhe-

cimento para executar as atividades requeridas pela estratégia (cerca de 80%

dos scorecards incluem esse objetivo).

2-Capital da Informação: disponibilidade de sistemas de informação,

de infra-estrutura e de aplicativos de gestão do conhecimento necessários

para suportar a estratégia (cerca de 80% dos scorecards incluem esse objeti-

vo).

3-Capital Organizacional e Cultura: conscientização e internalização da

missão, da visão e dos valores comuns, necessários para executar a estraté-

gia. (90% dos scorecards incluem esse objetivo).

4-Liderança: disponibilidade de líderes qualificados em todos os níveis

hierárquicos, para impulsionar as organizações na execução da estratégia.

(cerca de 90% dos scorecards incluem esse objetivo).

41

Kaplan, Robert S. Norton, David P. Mapas Estratégicos. Balanced Scorecard. Convertendo ativos intan-gíveis em resultados tangíveis. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. 8 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.207. 42

Kaplan, Robert S. Norton, David P. op. cit, p.5.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 215

5-Alinhamento: alinhamento das metas e incentivos com a estratégia

em todos os níveis hierárquicos (cerca de 70% dos scorecards incluem esse

objetivo).

6-Trabalho em equipe: Compartilhamento dos conhecimentos e recur-

sos das pessoas com potencial estratégico (presente em 60% dos score-

cards).43

Se for feita uma pesquisa, pode-se encontrar a aplicação desses obje-

tivos nas principais empresas de sucesso em todo o mundo.

No Brasil, várias empresas e instituições públicas empregam as bases

desse método para compor o planejamento estratégico. O próprio Tribunal

de Justiça do Paraná adota um planejamento estratégico pautado na socieda-

de, na missão da instituição, na aprendizagem e crescimento e na gestão e

sustentabilidade financeira.

Ademais, os objetivos a serem cumpridos pelo Tribunal incluem a cele-

ridade na prestação jurisdicional, responsabilidade cultural e ambiental,

atendimento de qualidade aos cidadãos, a qualidade de vida e a motivação

dos servidores, gestão dos recursos orçamentários disponíveis, treinamento

de pessoal, racionalização de água, energia elétrica e papel, além do aprimo-

ramento da tecnologia. 44

Porém, há outras opiniões sobre o método. Para Pedro Bicudo, o Balan-

ced Scorecard: “Funciona, porém está ultrapassado. O BSC acabou se tornan-

do uma ferramenta auxiliar por justamente ter esse caráter de comunicar

para toda empresa a estratégia alinhada às ideias do plano” diz ele, ressal-

tando que a estratégia necessariamente deve vir seguida de uma gestão da

mudança.45

Bicudo também enfatiza que:

“Além de definir os pontos que devem ser alterados, é preciso apontar os projetos que viabilizam essa transformação e suas devidas ações – que devem ser medidas pelo BSC – e, sobretudo, identificar quais os processos de negócio que serão afetados para que sejam implantadas medidas de acompanhamento”.

46

Na nossa visão o Balanced Scorecard é altamente eficiente se for em-

pregado com outros instrumentos de gestão concomitantemente.

A saber, modernamente, estes são os 25 instrumentos de gestão mais

comuns: ABM; aferição da satisfação do cliente; alianças estratégicas; análi-

se da cadeia de valor; análise de migração de mercado; análise de portfólio;

43

Op. cit, p.207-208. 44

Informações disponíveis no sítio eletrônico: https://portal.tjpr.jus.br/web/planejamento_estrategico/objetivos_estrategicos 45

Bicudo, Pedro. Disponível em: http://www.financialweb.com.br/noticias/index.asp?cod=45635 p.01. 46

Op. cit, p.01.

Page 217: Revista Raízes Jurídicas

216 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

análise do valor para o acionista; benchmarking; competências essenciais;

equipes autodirigidas; equipes de integração pós-fusão; estratégias de cres-

cimento; gestão do conhecimento; gestão da qualidade total groupware;

missão/visão; planejamento de cenário; planejamento estratégico; redução

do tempo de ciclo; reengenharia; remuneração por desempenho retenção do

cliente; segmentação da clientela e terceirização.47

Na Roma antiga, no medievo ou na moderna Europa, o devedor falido

era considerado um criminoso, um ser execrável. Suas respectivas legisla-

ções eram extremamente rigorosas, pois estipulavam punições com lesões

corporais.

No Brasil, a primeira regulamentação sobre credores foram as Ordena-

ções Filipinas, na época do Império. A Lei de Recuperações e Falências nº

11.101/2005 revogou o decreto lei de 1945 e surgiram duas novas figuras

judiciais: a recuperação judicial e extrajudicial, com a missão de minimizar

ou evitar a falência de uma forma mais estruturada que a concordata.

Contudo, a recuperação judicial, como hoje legislada, está enraizada

em princípios. São eles: preservação da empresa, viabilidade econômica,

função social, participação ativa dos credores e proteção do trabalho.

A Lei nº 11.101/2005 tem como principal objetivo facilitar a superação

da situação de crise econômica financeira do devedor, a fim de permitir a

manutenção da fonte produtora; do emprego e dos interesses dos credores,

promovendo a preservação da empresa, bem como a função social e o estí-

mulo à atividade econômica.

Vimos também que o artigo 170 da Constituição Federal preconiza a

função social da propriedade, a livre iniciativa e a livre concorrência e, como

os abusos econômicos, interferem na recuperação de uma empresa em crise.

Em 1994 foi criada uma autarquia federal, o CADE, com a finalidade de

fiscalizar as atividades empresariais e a concorrência de mercado, criando

políticas antitrustes. O CADE surge como órgão administrativo que tem a

função de fiscalizar a ordem econômica, sendo que seus atos administrativos

estão sujeitos ao controle jurisdicional.

Foram analisadas as causas da insolvência. Em caso de crise econômica

ou insolvência, que ocorre quando o passivo total é maior que o ativo total,

os empresários devem avaliar, de forma clara, quais são os fatores causado-

res desse fracasso.

47

Pesquisa Bain & Company. HSM: Management. Informação e conhecimento para gestão empresarial. Nú-mero 19, ano 4 março-abril 2000. Editora Savana Ltda, São Paulo. p.122-130.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 217

A insolvência não é resultado de circunstâncias imprevistas, e sim,

muitas vezes, da má administração e de decisões econômicas incorretas.

Para aumentar as chances de sucesso do plano de recuperação, segundo

Austrakas, é necessário ouvir todos os credores para a formação do plano de

recuperação, no caso de a empresa apresentar viabilidade econômica. Outros

terceiros devem participar da elaboração do plano, como os financiadores,

fornecedores, clientes e empregados. Esse plano deve ser elaborado seguin-

do as técnicas do planejamento estratégico. E métodos de planejamento es-

tratégico é que não faltam, citando alguns deles: Basics, CSM, Future Map-

ping e análise prospectiva.

Para Oliveira, o planejamento estratégico é dividido em quatro fases,

entre elas diagnóstico estratégico; missão da empresa; instrumentos prescri-

tivos e quantitativos e controle e avaliação.

O Oceano Azul é um método proposto baseado em inovação de valor.

Para se atingir o espaço do “Oceano Azul”, as sugestões são, entre outras:

criar espaços de mercado inexplorados; tornar a concorrência irrelevante e

alinhar todo o sistema de atribuição da empresa em busca da diferenciação e

baixo custo.

O planejamento estratégico também pode seguir as bases do Balanced

Scorecard, que foi um método para estratégia empresarial criado por dois

americanos. Os criadores definem esse método como: “O choque entre a

força irresistível de construir capacidades competitivas de longo alcance e o

objeto estático do modelo tradicional de contabilidade financeira de custos

criou uma nova síntese: O Balanced Scorecard”.

Os objetivos e medidas do Balanced Scorecard focalizam o desempe-

nho organizacional sob quatro perspectivas: a financeira, a do cliente, a dos

processos internos e do aprendizado e crescimento.

Sem dúvidas, o Balanced Scorecard é uma competente ferramenta ge-

rencial. Ao projetar essa ferramenta, a estratégia da organização deve medir

os poucos parâmetros críticos que representam suas estratégias para a cria-

ção de valor em longo prazo.

Portanto, mesmo com todas essas ferramentas e métodos de planeja-

mento estratégico, não é possível apontar qual é a mais eficaz, pois depen-

derá de cada caso concreto e um bom profissional e especialista no assunto

traçará o melhor plano e método para aquela empresa vencer a crise, obser-

vando vários fatores como a conjuntura da empresa e os recursos disponí-

veis.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 221

Anneliese Gobbes Faria Acadêmica do 7º período de Direito da Universidade Positivo.

O objetivo do trabalho é explicitar os principais aspectos da herme-

nêutica filosófica de GADAMER e demonstrar como a hermenêutica jurídica

se mostrou fecunda ao auxiliar na interpretação da norma jurídica.

Primeiramente, serão expostos os conceitos dos filósofos SCHLEIER-

MACHER e DILTHEY, sendo que o primeiro definiu como meta da hermenêu-

tica a reconstrução da experiência mental do autor de um texto, e o segundo

filósofo, DILTHEY, colocou a hermenêutica no horizonte da historicidade,

observando nela o fundamento para todas as ciências sociais.

Já HEIDEGGER, outro filósofo importante para o estudo da hermenêuti-

ca, fez uma leitura fenomenológica da mesma, tendo influenciado GADAMER

em muitos aspectos.

Partindo de uma hermenêutica filosófica, GADAMER aceita as concep-

ções de HEIDEGGER acerca da teoria ôntica da compreensão e entende que a

interpretação significa o desenvolvimento das possibilidades abertas do “da-

sein” (ser-aí), visto que não existem interpretações sem pré-conceitos, ou

seja, sem condicionamentos prévios do “dasein”. GADAMER também afirmou

que o sujeito está obrigado a fazer uma conexão do texto com a situação da

hermenêutica em que se encontra para poder compreender algo. Dessa for-

ma, a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a jurídica não se

torna tão chocante. Nas palavras de GADAMER, o jurista é levado a concreti-

zar a complementação do direito frente ao sentido original de qualquer texto

legal.

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222 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

Além disso, é importante expor que juristas utilizam amplamente con-

ceitos da hermenêutica gadameriana, como Paulo SCHIER, que afirma que no

método concretista da interpretação do direito o momento da pré-

compreensão influencia toda a problemática da hermenêutica.

Por fim, conforme definiu STRECK, pretende-se também demonstrar

que a interpretação de uma norma não se limita em fazer antecipações da

pré-compreensão, pois o que se busca fundamentalmente é se proteger dos

arbítrios das idéias e da “estreiteza” nas formas de pensar.

A palavra hermenêutica tem origem grega no substantivo “hermeneia”

e está relacionada com a figura de Hermes, da mitologia grega, que era o

tradutor da linguagem dos deuses e que a tornava compreensível aos ho-

mens. 1

Da história da hermenêutica antiga dois nomes serão trabalhados, co-

meçando com SCHLEIERMACHER. Para esse filósofo, não existe uma herme-

nêutica geral; o que há são diversas hermenêuticas como a filológica, a teo-

lógica e a jurídica. Para interpretar uma lei ou um texto, na visão de SCH-

LEIERMACHER, devia se levar em consideração o contexto histórico no qual

foi escrito a obra, ou seja, devia-se fazer uma interpretação gramatical e

uma interpretação psicológica, que engloba os conceitos de empatia e mente

em uníssono - que têm como função a compreensão da intenção do autor.

Para esse filósofo, a compreensão é como a experimentação dos pro-

cessos mentais do autor do texto. A interpretação do leitor consiste no mo-

mento gramatical e psicológico, e tudo o que é compreensível é posto em

unidades sistemáticas ou círculos compostos de várias partes. O círculo co-

mo um todo define uma parte, e as partes definem o círculo. Ocorre, portan-

to, uma interação dialética entre o todo e a parte, um dá sentido ao outro,

sendo que a compreensão é circular. Esse é o chamado círculo hermenêutico.

Para SCHLEIERMACHER, também, a interpretação gramatical pertence ao

momento da linguagem, e para ele esse é um procedimento limitativo. Já a

interpretação psicológica demonstra a individualidade do autor, o seu gênio

particular. Portanto, ele define a meta da hermenêutica como a realização da

reconstrução da experiência mental do autor de um texto.

O outro filósofo importantíssimo para a história da hermenêutica é Wi-

lhelm DILTHEY, que colocou a hermenêutica no horizonte da historicidade.

Ele observou nela o fundamento para as “geisteswissenschaften”, ou seja,

todas as ciências sociais que têm por função interpretar as expressões da

1 NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêu-

tica. Disponível em: <http://universitario.educacional.com.br/dados/materialapoio/47180001 /1024712/Armandino%20Jr%20%2D%20%20pr%Eq%2Dcompreens%E30%20em%20heidegger%2Edoc.> Acesso em: 25/10/2008.p.01.

Page 224: Revista Raízes Jurídicas

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 223

vida interior do homem, expressões essas que podem ser leis, obras de arte,

entre outras. Para DILTHEY, a vida só pode ser compreendida a partir dela

mesma e o objeto da ciência deveria ser viável a partir de um processo que

relacionava a experiência, a expressão e a compreensão.

A experiência, para DILTHEY, é algo temporal, histórico, ela não pode

ser compreendida e encaixada em categorias científicas. Por sua vez, a ex-

pressão pode se referir a uma linguagem, a um conceito, algo que demons-

tre a marca da vida interior do homem. E a compreensão, para o filósofo,

tem o seu objeto na expressão da própria vida, pois ela é o processo mental

que possibilita o entendimento da experiência humana. 2

Esse filósofo fez uma leitura fenomenológica da hermenêutica. Essa re-

interpretação influenciou em muitos aspectos o filósofo GADAMER na cons-

trução de sua teoria sobre a hermenêutica.

Para HEIDEGGER, a interpretação não é originalmente um método; ela

representa o próprio comportamento da existência humana. HEIDEGGER

afirma que a filosofia é a hermenêutica, ou ao menos deveria ser. A herme-

nêutica, para o filósofo, refere-se à explicação fenomenológica da existência

humana. Tanto a compreensão como a interpretação são igualmente modos

que constituem essa existência. A hermenêutica é ligada com as dimensões

ontológicas da compreensão e com a fenomenologia. Em sua obra, o ser e o

tempo, HEIDEGGER se refere ao seu próprio método fenomenológico de in-

vestigação como sendo uma hermenêutica. Para ele, a ontologia transforma-

se em uma hermenêutica da existência, pois “o logos de uma fenomenologia

do dasein tem o carácter de herméneuein (interpretar) através do qual se

tornam conhecido ao dasein, a estrutura do seu próprio ser e o significado

autêntico do ser dado na sua compreensão.” Portanto, ele concebe o poder

ontológico de compreender e interpretar como ponto central da hermenêuti-

ca e essa característica define as potencialidades do próprio ser do dasein.

Esse filósofo também foi responsável por redefinir a palavra herme-

nêutica, comparando-a com a fenomenologia, sendo que a hermenêutica,

para ele, direciona-se para o fato da compreensão como ela mesma, e não

por métodos históricos, pois ele não se prende à dicotomia histórico-

científica que DILTHEY defendia. Com essa nova concepção de HEIDEGGER,

GADAMER cria sua hermenêutica filosófica. 3

O leitor tem sempre uma pré-compreensão sobre aquilo que interpre-

tará. Não há interpretações inalteradas. Antes de tudo, o homem tem em

mente a pré-compreensão, que nos abre um novo sentido, uma nova possi-

2 PALMER, Richard. E. Hermenêutica. O saber da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1969. p.91-96; 105-128.

3 PALMER, op. cit., p.15, 51; 132-135; 164-165.

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224 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

bilidade de interpretação. Para HEIDEGGER, a compreensão trabalha dentro

de um conjunto de relações já interpretadas, atuando no círculo hermenêuti-

co que é inseparável da existência do intérprete. Não se pode conceituar a

compreensão a não ser que seja inserida num contexto histórico-social. 4 A

interpretação não cessa e é o método que leva à compreensão.

Toda vez que o homem realiza uma interpretação, ele se projeta para

uma possibilidade, que antecipa algo que está por vir. Quando se compreen-

de algo, já se possui uma pré-compreensão, um conceito prévio a que se

refere HEIDEGGER.

A hermenêutica contemporânea é baseada nos estudos de Martin HEI-

DEGGER e Hans-Georg GADAMER, e ela se preocupa em conceituar a com-

preensão como totalidade e a linguagem como uma forma de acesso ao

mundo e também às coisas. 5

Antes de relatar alguns aspectos importantes sobre a hermenêutica fi-

losófica de GADAMER, serão expostos dois conceitos importantes acerca

dessa hermenêutica gadameriana, fundamentais para a sua compreensão. Os

conceitos são a tradição e o preconceito.

A tradição nos é transmitida por meio da linguagem, pode ser concei-

tuada como uma transmissão, nas palavras de Lenio STRECK6. Ela tem por

base a lingüística. É na tradição que ocorre o crescimento contínuo do me-

lhor e do novo para uma validade repleta de vida, sem que nenhum deles se

ressalte por si mesmos.

Ora, a verdade pode ser compreendida partindo-se de todas as expec-

tativas de sentido que nos chegam por meio da tradição. Para GADAMER,

toda experiência hermenêutica implica uma inclusão no processo de propa-

gação da tradição.

Na visão de GRONDIN, o intérprete está preso a um meio cultural e em

uma tradição, sem a qual não pode ter acesso a um texto. O ser humano,

naturalmente, está sempre imerso em tradições, e a sua própria acaba coin-

cidindo com o sentido vertical e fidedigno da história, com a única condição

de possibilidade da verdade. 7

4 NUNES JÚNIOR, op. cit., p.3.

5 Ibidem, p. 4.

6 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do

direito. 2 ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.192-193. 7 FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. O preconceito de H.G. Gadamer: Sentido de uma

reabilitação. Coimbra: JNICT, 1995. p. 269; 282.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 225

Para GADAMER, conforme se verá adiante, toda interpretação é basea-

da em preconceitos. Temos esses preconceitos antes de formular um juízo

correto sobre as coisas. Nesse diapasão, um pré-julgamento pode ser falso

ou correto.

Para GADAMER a interpretação se inicia a partir de conceitos prévios,

que serão ao longo do tempo substituídos por outros mais corretos e con-

vincentes. A compreensão começa com os nossos preconceitos (pré-juízos),

que são muito mais do que juízos individuais, mas a realidade histórica de

nosso ser. Esses preconceitos podem ser verdadeiros ou falsos. 8

O preconceito, nas palavras de FERREIRA DA SILVA,9 aponta uma vincu-

lação não subsuntiva, porém dialógico-histórica do singular em relação a

uma comunidade e também à tradição (cultura). Esse preconceito é respon-

sável por promover na tradição a compreensão como forma de integração,

um efeito histórico.

E se tratando do círculo hermenêutico, para HEIDEGGER, ele possui um

sentido ontológico positivo. Toda interpretação correta tem que se desviar

da arbitrariedade. Como defende GADAMER, “a compreensão somente alcan-

ça sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias, com as quais ela

inicia, não são arbitrárias.” Pode-se afirmar que no procedimento jurispru-

dencial um preconceito, que não significa sempre um falso juízo, é como

uma pré-decisão jurídica, tida antes de ser proferida uma sentença definiti-

va. Entretanto, os preconceitos de um indivíduo são mais que seus juízos,

são concebidos como a realidade histórica do ser. 10

HEIDEGGER e GADAMER, na visão de NUNES JÚNIOR,11

nos levam a con-

ceber que a hermenêutica se refere ao mundo da experiência, da pré-

compreensão, em que nos compreendemos como seres partindo de uma

estrutura prévia de sentido. A interpretação, como já foi mencionada, não é

uma questão de método, ela está interligada com a existência do leitor. Con-

forme relata GRONDIN, na obra Verdade e Método de GADAMER, o aspecto

universal da hermenêutica representa uma passagem da tradicional herme-

nêutica a uma filosófica, sendo que cada compreensão é impulsionada por

perguntas que elucidam o real sentido da compreensão. 12

Considerando as palavras de GADAMER, compreender é entender a

coisa e, depois disso, compreender a opinião do outro. Observa-se que a

8 NUNES JÚNIOR. op. cit., p.4-5.

9 FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. op. cit., p.328.

10 GADAMER, Hans - Georg. op. cit., p.401, 402;403; 407 e 416.

11 NUNES JÚNIOR, op. cit., p. 01.

12 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Coleção Focus. São Leopoldo: UNISINOS,

1999. p. 195 e 202.

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226 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

primeira condição da hermenêutica é a pré-compreensão, que surge do ter

de se encontrar com a coisa. Após isso, institui-se o que tem que ser reali-

zado conforme um sentido unitário e a aplicação da concepção prévia da

perfeição. 13

Com GADAMER, a hermenêutica antes posta como técnica de compre-

ensão das ciências do espírito concebe-se como uma ontologia do leitor e de

seus principais condicionamentos existenciais. Pois a compreensão, a inter-

pretação e a aplicação não podem mais ser apartadas. Outra diferença refe-

rente à antiga e à nova hermenêutica é que a antiga afirmava que a interpre-

tação dos fenômenos históricos era um conflito por força da distância tem-

poral existente no passado, enquanto que no presente ela se dá sem desta-

car-se a historicidade.

Cada leitura dá origem a novas percepções, porque em cada época o

entendimento muda conforme suas circunstâncias. Para compreender é ne-

cessário considerar a opinião do autor. Isso se refere ao círculo hermenêuti-

co, conceito que foi desenvolvido por SCHLEIERMACHER para explicar a rela-

ção dialética entre a parte e o todo. Para compreender um texto por com-

pleto, deve-se entender as suas partes, que geram uma visão do todo, pois

são dois estágios que ocorrem num único momento.

GADAMER, acolhendo as concepções de HEIDEGGER, relata que a inter-

pretação significa o desenvolvimento das possibilidades abertas do “dasein”.

Não existe interpretação sem preconceitos, sem condicionamentos prévios

do “dasein”. Na concepção de LOPES, GADAMER reconhece o conceito de

preconceito denominando-o como essencial na teoria hermenêutica.14

GA-

DAMER defende que, ao considerar a historicidade da compreensão, esse

fato permite diferenciar os verdadeiros dos falsos preconceitos, e ao con-

frontar a história efeitual do texto com a própria tradição do intérprete, é

essa ocasião que extirpa o falso preconceito.

Portanto, a pré-compreensão é a condição prévia que torna viável a

compreensão textual. O círculo hermenêutico efetua um processo circular

que percorre a tradição do leitor e a do texto. A relevância da hermenêutica

de GADAMER é ter solidificado que toda interpretação é a compreensão atual

do passado. Mas, como pondera LOPES, tem-se o problema de delimitar se a

compreensão é dotada de uma natureza ontológica ou se depende do leitor,

cuja tradição é inseparável à interpretação textual, porque se pergunta como

é possível um dever-ser da verdade da teoria da hermenêutica. Em busca

dessa resposta, utilizando como alicerce o pensamento aristotélico acerca do

13

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. v.1. p.441. 14

LOPES, Ana. Hermenêutica jurídica de Gadamer e a antiga hermenêutica. Disponível em: <http://universitario.educacional.com.br/dadps/materialdeapoio/47180001/1024712/ana%20lopes%20%2D%20hermen%Eautica%20jur%EDdica%20de%20gadamer%2Epdf. > Acesso em 25/10/2008.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 227

saber ético, GADAMER o resgata a fim de aplicá-lo às ciências do espírito,

que tem como objeto o saber em si mesmo.

Para ARISTÓTELES, a sabedoria moral não dispensa um bom senso que

concorde com a verdade, que possibilite a distinção do eqüitativo, o que,

portanto, está conforme a verdade. GADAMER usa essas explicações também

para aplicar na hermenêutica jurídica, definindo que o bom senso se refere

ao juízo compreensivo, sendo que compreender é viver a situação alheia

como se fosse nossa. A verdade ocorrerá no embate entre sujeito e objeto,

cuja distância é a tradição.

A linguagem na hermenêutica, para GADAMER, também é primordial,

pois significa o mundo interpretado pelo homem e, além disso, o filósofo

propõe uma hermenêutica universal que considera toda relação que o ho-

mem tem com o mundo. Pois, para o mesmo, “a linguagem é a estrutura

ontológica do ser histórico.”15

O filósofo não só faz um importante estudo, como foi visto acima,

acerca da hermenêutica filosófica, como também analisa a função da herme-

nêutica jurídica. Com efeito, GADAMER definiu que o sujeito é forçado a

fazer uma relação do texto com a situação hermenêutica em que se encontra

para possibilitar a compreensão de algo. Nesse sentido, o autor conclui que

a distância que existe entre a hermenêutica espiritual-científica e a herme-

nêutica jurídica não é tão assombrosa como se supõe, pois acredita-se que a

hermenêutica jurídica não tem como meta a compreensão de textos, já que

se concebe como um auxílio da práxis jurídica. Assim, tem por função elimi-

nar pontos falhos no sistema da dogmática jurídica. Desse modo, a herme-

nêutica não teria a obrigação de compreender a tradição característica da

hermenêutica espiritual-científica. O que se constata é uma separação da

hermenêutica jurídica da teoria da compreensão, considerando que ela pos-

suía um objetivo dogmático.

GADAMER se propõe a investigar o comportamento do historiador jurí-

dico e do jurista. Ele pretende responder à dúvida sobre se a diferença entre

o interesse dogmático e a interpretação histórica é uma diferença unívoca.

Logicamente existe uma distinção, pois o jurista tende a dar o sentido da lei

em decorrência de um caso concreto fornecido. O historiador procura desco-

brir o sentido da lei quando percebe a aplicação da mesma no conjunto des-

sas aplicações, tornando-se concreto o seu sentido.

Para adequar de forma correta o sentido de uma lei tem de se ter, em

primeiro lugar, ciência de seu conteúdo de sentido originário, considerando

os termos histórico-jurídicos. Observa-se que, em 1840, SAVIGNY concebeu

a tarefa da hermenêutica jurídica como histórica somente. Em sua concep-

15

LOPES, op. cit. p. 105-109.

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228 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

ção, SAVIGNY não crê que exista uma tensão entre o sentido jurídico origi-

nário e o atual. GADAMER, por sua vez, defende que, com o passar dos anos,

essa visão foi se concebendo como uma ficção.

Como exposto na obra de GADAMER, Verdade e método, o jurista co-

nhece a lei em si mesma. Mas o conteúdo normativo tem que ser nivelado ao

caso ao qual se aplicará. Para corretamente determinar esse conteúdo, o ju-

rista necessita ter em mãos um conhecimento histórico do sentido originário,

ao contrário do que pensava SAVIGNY. O jurista deve aceitar que as circuns-

tâncias se modificaram e que ele tem que novamente determinar a função

normativa da lei. É uma tarefa contínua, dinâmica e complexa.

Observa-se que o conhecimento histórico somente existirá se o passa-

do for entendido na sua continuidade com o presente, porque o jurista deve

fazer o direito ser algo que se modifica incessantemente, além de também

permitir a preservação da sua tradição. GADAMER afirma que a hermenêutica

jurídica tem como característica o procedimento das ciências do espírito.

Quando o juiz adequa a lei transmitida conforme as necessidades presentes,

por exemplo, ele tenciona resolver uma tarefa da práxis, ou seja, “interpretar

e conhecer significam conhecer e reconhecer um sentido vigente.” O juiz

apreende a idéia jurídica de uma lei e faz sua intermediação com o presente,

pois a sua função não é equivalente com a do historiador. O jurista possui,

portanto, sua própria história no tempo presente.

Para a hermenêutica jurídica é importantíssimo que a lei vincule de

forma equânime para todos os componentes da comunidade jurídica. Evi-

dencia-se que compreender é dar uma concretização acoplada à atitude de

uma denominada distância hermenêutica. Esse é um dos chamados requisi-

tos da ciência, como define GADAMER.

Como GADAMER escreveu na obra Verdade e Método, o modelo da

hermenêutica jurídica mostrou-se fecundo. O jurista então é compelido a

concretizar a complementação do direito dentro da devida função judicial,

conforme o sentido original de um texto dito legal, sendo que isso não pres-

cinde de qualquer compreensão. Essa fecundidade da hermenêutica jurídica

pode ser explicada pela frase: “a velha unidade das disciplinas hermenêuti-

cas recupera seus direitos e se reconhece a consciência da historia efeitual

em todo afazer hermenêutico, tanto no do filólogo como do historiador.” O

que isso significa é que o sentido da aplicação já está presente em toda for-

ma de compreensão. Na concepção de GADAMER, a aplicação é a real com-

preensão do próprio comum que o texto significa para nós, é uma forma de

efeito, que se denomina a si mesma como esse efeito. 16

Efetivamente, na visão de Paulo SCHIER, no método concretista da in-

terpretação do direito, o momento da pré-compreensão é determinante em

toda a problemática da hermenêutica, pois:

16

GADAMER, Hans- Georg. op. cit., p. 482-505.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 229

“O sujeito cognoscente, que é o intérprete constitucional, no seu traba-lho de compreensão/construção da realidade, para além de assumir uma postura passiva diante do seu objeto, participa com toda a sua carga histórica e ideológica no estabelecimento da norma constitucional.”

17

E conforme define STRECK, é por causa da hermenêutica de GADAMER

e RICOUER que a conhecida tensão entre a dogmática jurídica e a sociologia

vem a ser superada, pois a linguagem é colocada no centro dos debates.

Considerando esse fato, GADAMER quebra com qualquer possibilidade de

um saber reprodutivo do direito; para ele, interpretar a lei se resume numa

tarefa criativa do direito. Partindo, portanto, desse projeto hermenêutico

gadameriano, pode-se inferir que a hermenêutica jurídica não é uma simples

oferta de métodos científicos, e sim uma proposta de demonstrar as reais

condições do intérprete.

Baseando-se igualmente em GADAMER, Konrad HESSE propõe novas

atitudes para a hermenêutica jurídica, pois para ele o teor da norma tem no

ato normativo a sua complementação. A concretização da norma pelo intér-

prete engloba uma compreensão dela, conferindo uma pré-compreensão. O

intérprete, por exemplo, compreende o conteúdo da norma partindo de uma

pré-compreensão, que lhe possibilita a contemplação da norma seguindo

algumas expectativas. Toda compreensão tem um prejuízo e não se deve

limitar a fazer as antecipações da pré-compreensão, pois é necessário se

proteger do arbítrio das idéias e da “estreiteza” das formas de pensar, e isso

se concebe como uma tarefa da teoria constitucional.

Para GADAMER, como lembra STRECK, existe apenas um valor histórico

com a condição de o passado ser compreendido na sua continuidade com o

presente. Evidentemente, são esses fatos que fazem com que haja a realiza-

ção do jurista em seu trabalho prático-normativo. A tarefa da interpretação

consiste na concretização da lei em cada caso na sua aplicação. Consideran-

do, portanto, esses princípios, vale ressaltar que a teoria gadameriana muito

contribuiu para o direito e tem sido utilizada amplamente como uma das

bases para o método concretista da interpretação da ciência jurídica. 18

A hermenêutica foi interpretada de forma diferenciada por cada filóso-

fo, em épocas distintas. Da hermenêutica antiga, dois grandes nomes são

importantes: SCHLEIEMACHER e DILTHEY. O primeiro afirmou que, para se

compreender um texto, é necessário compreender a linguagem e a intenção

17

SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 117. 18

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2 ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 165; 192-199; 244.

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230 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

de um autor, pois para ele a compreensão é como a expressão dos procedi-

mentos mentais do autor do texto. Ele se utiliza do conceito de “círculo her-

menêutico” para definir que a compreensão é circular.

O outro importante filósofo foi DILTHEY, que colocou a hermenêutica

no horizonte da historicidade. Para ele, a vida só poderia ser compreendida a

partir dela mesma, e o objeto da ciência deveria ser estudado a partir de um

processo que não apartasse a expressão, a experiência e a compreensão.

Já na moderna hermenêutica, HEIDEGGER faz uma leitura fenomenoló-

gica da mesma. Ele concebe o poder ontológico de compreensão e interpre-

tação como a meta da hermenêutica. Além disso, ele afirma que, toda vez

que o homem realiza uma interpretação, ele se projeta para uma nova possi-

bilidade.

HEIDEGGER influenciou GADAMER em muitos aspectos, pois, para o úl-

timo, a interpretação está vinculada à existência do intérprete.

Assim, GADAMER reconhecerá o conceito de preconceito como funda-

mental para a hermenêutica, pois ao considerar a historicidade da compre-

ensão é possível diferenciar os verdadeiros dos falsos preconceitos. Para ele,

a pré-compreensão é uma condição prévia que possibilita a compreensão

adequada de um texto. O filósofo também se propõe a investigar o compor-

tamento do jurista e do historiador. Para o jurista adaptar corretamente uma

lei, deve-se ter conhecimento de seu conteúdo de sentido originário, consi-

derando os termos histórico-jurídicos. Para GADAMER, a aplicação de uma

lei no caso concreto é a real compreensão do próprio comum que o texto

significa para nós.

Dois juristas brasileiros analisaram a hermenêutica jurídica de GADA-

MER. Paulo SCHIER defende que a pré-compreensão é determinante na pro-

blemática da hermenêutica no método concretista de interpretação do direi-

to. Este método se resume na concretização da norma pelo intérprete através

da compreensão e da interpretação hermenêutica. O outro jurista é Lenio

STRECK, que afirma ter GADAMER influenciado os juristas a resumir a lei em

uma tarefa criativa, ou seja, não-reprodutiva do direito.

Portanto, percebe-se que a teoria gadameriana, amplamente utilizada

pela filosofia, tem também como qualidade demonstrar-se como uma das

bases para o método concretista da interpretação do direito, contribuindo

sobremodo para a mais justa interpretação dos sentidos da norma diante de

um caso posto, de modo dinâmico e sempre atual, ao jurista.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 231

FERREIRA DA SILVA, Maria Luísa Portocarrero. O preconceito de H.G. Gada-

mer: Sentido de uma reabilitação. Coimbra: JNICT, 1995.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meu-

rer. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. v.1.

GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dis-

chinger. Coleção Focus. São Leopoldo: UNISINOS, 1999.

LOPES, Ana. Hermenêutica jurídica de Gadamer e a antiga hermenêutica.

Disponível em:

<http://universitario.educacional.com.br/dadps/materialdeapoio/471

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ca%20de%20gadamer%2Epdf. > Acesso em 25/10/2008.

NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na

experiência hermenêutica. Disponível em: <http://universitario. edu-

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PALMER, Richard. E. Hermenêutica. O saber da filosofia. Lisboa: Edições 70,

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SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: Construindo uma nova

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração her-

menêutica da construção do direito. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Li-

vraria do Advogado, 2000.

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Por Anneliese Gobbes Faria

Rosangela Moreira Barbosa Athayde

Thiago da Luz Ruiz

SÓFOCLES. Antígona.

Trilogia Tebana. 13. ed.

Rio de Janeiro: Zoar, 2008.

A tragédia não é apenas um drama que exalta o sofrimento humano,

mas uma aproximação da realidade que retrata os principais aspectos da

Humanidade. Ela, antes de tudo, significa um ritual religioso e político na

forma de encenação num teatro para os habitantes da pólis e como forma de

agradecimento aos deuses. A encenação originou-se como homenagem ao

deus Dionísio (deus do vinho, promotor da civilização e amante da paz),

sendo posteriormente vinculada ao culto de Apolo1. Em sua origem mais

primeva envolvia o sacrifício de um bode, em honra a Dionísio. O próprio

nome tragédia evoca essa origem religiosa (trago + avidé = canto do bode). 2

Segunda obra da trilogia que encerra a trajetória de Édipo e seus des-

cendentes a ser escrita por Sófocles, Antígona passa-se em um período pos-

terior a Édipo em Colono. A tragédia versa sobre Antígona, filha da relação

incestuosa de Édipo e Jocasta, indignada com a interdição de Creonte de

sepultar seu irmão Polinices, acusado de haver traído a pátria. Antígona en-

frenta as ordens de Creonte e atende os preceitos consuetudinários e os

prescritos na lei religiosa, realizando o sepultamento do irmão. Dessa forma,

ela desafia a lei do Estado, imposta por Creonte e, como conseqüência, é

sentenciada à morte. Hémom, noivo de Antígona, tenta salvá-la e estabelece

com seu pai Creonte um diálogo sobre a importância de se respeitar as opi-

niões divergentes e, dessa forma, realizar um governo justo. Informa seu pai

sobre o fato de que todo o povo clama pela preservação da vida de Antígona

1 Em Atenas, havia a divisão do teatro em tragédia e comédia. A Dionísio destinavam as encenações cômicas,

e as tragédias passaram a ser dedicadas a Apolo, motivo pelo qual foram desvinculadas do sacrifício do bode. Acredita-se que isso ocorreu, visto que o bode berrava, atrapalhando a apresentação da peça. 2 GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo, Loyola, 2001. p.18.

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234 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

em razão de ser justo o ato de enterrar todos os mortos, inclusive Polinices.

Seus apelos são ignorados e Hémon suicida-se. Diante desses acontecimen-

tos e após o suicídio da esposa, Creonte se arrepende de seu posicionamen-

to e percebe que desrespeitou as leis divinas ao crer que o Estado seria a

única fonte de direito, com o poder de interferir em todas as esferas huma-

nas.

SÓFOCLES foi apelidado pelos antigos de “abelha”, pois tal como verte

sobre os espectadores o doce mel das palavras, usa-as qual ferrão, crava

fundo em nossas almas o terror do castigo, para instigar-nos à virtude. É

sob esta dicotomia que deve ser sentida a tragédia grega, se por um lado

encanta com a sublimidade de seus temas e versos, fere-nos com a brutali-

dade imposta pelo Destino às personagens, sofrimento que parece injusto,

mas tem a função de demonstrar o alcance do castigo divino, instigando a

platéia à obediência e à justiça. Antígona sofre as penas impostas pelo Esta-

do, e sofre-as resignada, pois são, independentemente do critério de justiça,

válidas; Creonte sofre também, mas por impor intransigentemente obediên-

cia a lei. Ao condenar Antígona, mesmo que apenas para manter a ordem e

cumprir seu dever como soberano ante Tebas, desobedece às leis divinas,

sendo merecedor do castigo das Fúrias.

A imagem que nos evoca a peça é da luta entre as tradições e a lei, ou

Direito Positivo versus Direito Natural – como diríamos hoje. Mas, tal qual

não poderia deixar de ser nos áureos anos de Atenas, em que vicejava a tra-

gédia moralista e onde Sócrates já caminhava pelas ruas questionando os

cidadãos3, o texto aponta para a superioridade daquele direito existente pre-

viamente aos homens. É importante lembrar que no governo de Péricles,

Atenas viveu o auge de sua democracia, sendo natural que a obra de Sófo-

cles encerre uma crítica a tirania, submetendo o direito potestativo a uma

visão de injustiça e inferioridade as normas ditadas pela moral tradicional e

religiosa. Observa-se ainda que o Coro demonstra um posicionamento sub-

jetivo favorável à Antígona, mas por medo posta-se a favor de Creonte, essa

atitude valoriza a democracia, pois sendo nesta expressa a vontade dos ci-

dadãos, a vontade do Coro prevaleceria à de Creonte e conformar-se-ia a lei

positiva à lei moral.

O debate de Creonte e Antígona ilustra, para HEGEL4, a oposição entre

poder público e consciência privada, a ordem vinda do poder e o indivíduo

defensor do imperativo de seu próprio dever ético. Esse debate jusfilosófico

é importante, pois não se trata apenas de traçar uma pesquisa de ordem

3 Sófocles viveu em Atenas durante o governo de Péricles, período de grande expansão econômica e eferves-

cência cultural, em sua vida adulta conviveu com Sócrates (469-399 a.C.), e foi nesse período que escreveu Antígona. 4 BAVARESCO, Agemir; CHRISTINO, S. B. Eticidade e direito na Fenomenologia do espírito de Hegel.

Revista eletrônica de estudos hegelianos, ano 4, n.7, dezembro-2007; p.49-72. Disponível em: <http://www.hegelbrasil.org/agemir-sergio.pdf> p.62-63.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 235

literária ou filosófica. O valor maior, para os juristas, é exatamente a questão

do confronto ente o positivismo e o jusnaturalismo e a transposição desse

confronto para a contemporaneidade.

Norberto BOBBIO5, em sua obra Teoria da norma jurídica, demonstra os

três critérios de valoração de uma norma, que originam a três ordens distin-

tas de problemas: justiça, validade e eficácia. Creonte, ao impor a lei de não

sepultar Polinices tornou-a válida, pois ele era Rei de Tebas e tinha o poder

soberano para tanto. Observa-se, então, que a lei de Creonte era válida, po-

rém, injusta. Antígona ao defender a lei dos deuses e respeitar os direitos

consuetudinários, acreditava agir de forma justa, mas a ação não era válida

nem eficaz. Diante desse impasse entre Creonte e Antígona, é possível fazer

a correspondência com o entrave entre justiça e validade. Para os positivistas

a justiça é a confirmação da validade; para os defensores do jusnaturalismo

a validade é a confirmação da justiça.

Essa concepção radical dos positivistas gerou conseqüências graves,

pois como demonstra BOBBIO6 o positivismo vem sendo extremamente criti-

cado nos últimos anos por ser considerado como um dos fatores que ocasi-

onaram o surgimento dos regimes totalitários europeus. Após esses aconte-

cimentos, não só os juristas, mas a humanidade também se viu diante de

uma importante indagação: a finalidade do direito é a ordem ou a justiça?

Será possível ter como fim do direito uma ordem justa, que possa promover

o bem da sociedade?

Os conflitos jusfilosóficos da tragédia grega são atemporais. O bri-

lhantismo de Sófocles fica evidente com a universalização do tema discutido,

que permanece relevante no contexto atual, pois permite a reflexão do que é

e de como deve ser o Direito. Questões como Justiça, Direitos Humanos, Éti-

ca, Política e Tolerância são fundamentais quando analisamos as relações

entre as pessoas. A leitura de Antígona é emblemática para enfatizar a ne-

cessidade de valores éticos nas relações humanas, visando à construção de

uma vida digna para todos.

Anneliese Gobbes Faria Rosangela Moreira Barbosa Athayde

Thiago da Luz Ruiz Acadêmicos do 4º ano do Curso de Direito da Universidade Positivo

5 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3.ed. revista. Bauru: EDIPRO, 2005. p.48.

6 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo; Ícone, 1995. p. 225.

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BAVARESCO, Agemir; CHRISTINO, Sérgio B. Eticidade e direito na Fenomeno-

logia do espírito de Hegel. Revista eletrônica de estudos hegelianos,

ano 4, n.7, dezembro-2007; p.49-72. Disponível em:

<http://www.hegelbrasil.org/agemir-sergio.pdf>

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. Tra-

dução de Marcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo;

Ícone, 1995.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3.ed. revista. Bauru: EDIPRO,

2005

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo:

Loyola, 2001.

SAINT-VICTOR, Paul de. As duas máscaras. São Paulo: Germape, 2003.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011 237

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VOLUME 7

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2011

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Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação

VOLUME 7

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2011

JURÍDICASRaízes

9 7 7 1 8 0 9 5 1 1 0 0 4

ISSN 1809-5119

1 CONVIDADOS

Amarildo Souza de Paula

Anna Christina Gonçalves de Poli e Tais Martins

Alexandre Morais da Rosa

2 DOCENTES

Alexsandra Marilac Belnoski

Angela Couto Machado Fonseca

Claudia Regina Baukat Silveira Moreira

Fernanda Busanello Ferreira

Guilherme Roman Borges

3 ACADÊMICOS

Andriessa Ortega

Anneliese Gobbes Faria

Anneliese Gobbes Faria

4 RESENHA

Anneliese Gobbes Faria, Rosangela Moreira Barbosa Athayde e Thiago da Luz Ruizs

• Resenha da obra: SÓFOCLES. Antígona. Trilogia Tebana. 13. ed. Rio de Janeiro: Zoar, 2008

O princípio da fraternidade como Conteúdo Necessário na Efetividade do “Direito” dos Direitos Humanos

no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O meio ambiente e a relação entre direito e política – um arcabouço reflexivo entre a responsabilidade

social e a educação ambiental

O que resta do Direito no Estado não mais nacional

Os programas de computadores no Brasil: uma análise dos direitos autorais e da legislação de software

Sujeito e Pessoa: uma reflexão sobre direitos subjetivos, direitos da persona-lidade e corpo

Avaliando a avaliação: algumas considerações sobre a prática da avaliação no Ensino Superior

O risco nas teorias sociológicas contemporâneas: Beck, Giddens e Luhmann

A normalização e o jogo da exclusão: o louco e o criminoso em Michel Foucault

A inconstitucionalidade da modalidade de licitação convite frente aos princípios da publicidade e da

isonomia

A importância do planejamento estratégico no plano de recuperação judicial e extrajudicial de empresas

• Influências filosóficas para a construção da hermenêutica jurídica