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Universidade Católica de Pernambuco - 10 Ciências, Humanidades e Letras O psicodiagnóstico interventivo em grupo para pais e crianças numa clínica-escola* Iaraci Advíncula** Patrícia Gomes (colaboradora)*** Resumo: Este é um texto que enfoca a implanta- ção do Serviço do Psicodiagnóstico Interventivo para Pais e Crianças na Clínica-Escola da Univer- sidade Católica de Pernambuco. Inicialmente, em- preendem-se algumas considerações sobre a pro- dução do conhecimento, regido pelo paradigma que dicotomiza sujeito e objeto e que determina as prá- ticas clínicas da modernidade. Ressalta-se que o psicodiagnóstico tradicional seria um exemplo des- tas práticas e que corresponderiam ao projeto de sujeito epistêmico pleno, próprio desta época. Como contraponto e exemplo de uma nova práti- ca, põe-se em relevo o Psicodiagnóstico Interventivo Fenomenológico-Existencial, regido por uma outra visão de mundo e um novo princí- pio paradigmático. A época contemporânea, com as questões múltiplas e complexas e com a constatação dos princípios da incerteza e da complementariedade, engendra, na equivalência dos saberes, uma nova forma de constituir o co- nhecimento. Em seguida, apresenta-se a caracterização da Clí- nica-Escola, onde o serviço foi implantado, e pro- cede-se ao relato da execução do projeto, e conse- qüente modificações ocorridas, do seu início em novembro de 1995, até os dias atuais, setembro de 1997. Finalmente, conclui-se enfatizando que a implan- tação do serviço, juntamente com outras mudan- ças ocorridas na dinâmica da Clínica, muito tem contribuído para a renovação da instituição e de seus membros, particularmente para a formação dos alunos e atendimento da clientela, na medida em que têm sido promovidas relações que visam à instalação do ethos. Palavras-chave: psicodiagnóstico interventivo, pais, crianças, clínica-escola. Abstract: This text focusses on the implementation of intervening pshycho-diagnosis service for parents and children at Universidade Católica de Pernambuco. At the outset, some considerations on the production of knowledge are used, governed by the paradigm that dichotomizes subject/object and that determines contemporary clinical practices. It is emphasized that traditional psycho- diagnosis would be an example of these practices and they would correspond to the project of full epistemic subject, common to this age. As a counterpoint and example of a new practice, existential-phenomenological-intervening psycho- diagnosis controlled by another worldview and a new paradigmatic principle is thrown into relief. The current age with its multiple and complex questions and by acknowledging principles of uncertainity and complementarity establishes new ways of producing knowledge. ____________________ * Trabalho inicialmente apresentado no VII Encontro Nordesti- no da Abordagem Centrada na Pessoa, em maio de 1997, Forta- leza-CE Trabalho a ser apresentado na XI Jornada da Clínica do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, em 04 de outubro de 1997, Recife-PE ** Ambas as autoras são Psicólogas-Clínicas, facilitadoras de gru- pos, Professoras Assistentes e Supervisoras de Estágio, da Uni- versidade Católica de Pernambuco. *** Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco, Rua do Príncipe, 526, Recife, PE, CEP 50050-900, Fone: (081) 216.4114 e 216.4172, Fax: (081) 231.1842 Revista Symposium Revista Symposium

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Universidade Católica de Pernambuco - 10

Ciências, Humanidades e Letras

O psicodiagnósticointerventivo em

grupo para pais ecrianças numaclínica-escola*

Iaraci Advíncula**Patrícia Gomes (colaboradora)***

Resumo: Este é um texto que enfoca a implanta-ção do Serviço do Psicodiagnóstico Interventivopara Pais e Crianças na Clínica-Escola da Univer-sidade Católica de Pernambuco. Inicialmente, em-preendem-se algumas considerações sobre a pro-dução do conhecimento, regido pelo paradigma quedicotomiza sujeito e objeto e que determina as prá-ticas clínicas da modernidade. Ressalta-se que opsicodiagnóstico tradicional seria um exemplo des-tas práticas e que corresponderiam ao projeto desujeito epistêmico pleno, próprio desta época.Como contraponto e exemplo de uma nova práti-ca, põe-se em relevo o Psicodiagnóstico

Interventivo Fenomenológico-Existencial, regidopor uma outra visão de mundo e um novo princí-pio paradigmático. A época contemporânea, comas questões múltiplas e complexas e com aconstatação dos princípios da incerteza e dacomplementariedade, engendra, na equivalênciados saberes, uma nova forma de constituir o co-nhecimento.Em seguida, apresenta-se a caracterização da Clí-nica-Escola, onde o serviço foi implantado, e pro-cede-se ao relato da execução do projeto, e conse-qüente modificações ocorridas, do seu início emnovembro de 1995, até os dias atuais, setembro de1997.Finalmente, conclui-se enfatizando que a implan-tação do serviço, juntamente com outras mudan-ças ocorridas na dinâmica da Clínica, muito temcontribuído para a renovação da instituição e deseus membros, particularmente para a formaçãodos alunos e atendimento da clientela, na medidaem que têm sido promovidas relações que visam àinstalação do ethos.

Palavras-chave: psicodiagnóstico interventivo,pais, crianças, clínica-escola.

Abstract: This text focusses on the implementationof intervening pshycho-diagnosis service forparents and children at Universidade Católica dePernambuco. At the outset, some considerationson the production of knowledge are used, governedby the paradigm that dichotomizes subject/objectand that determines contemporary clinicalpractices. It is emphasized that traditional psycho-diagnosis would be an example of these practicesand they would correspond to the project of fullepistemic subject, common to this age. As acounterpoint and example of a new practice,existential-phenomenological-intervening psycho-diagnosis controlled by another worldview and anew paradigmatic principle is thrown into relief.The current age with its multiple and complexquestions and by acknowledging principles ofuncertainity and complementarity establishes newways of producing knowledge.

____________________* Trabalho inicialmente apresentado no VII Encontro Nordesti-no da Abordagem Centrada na Pessoa, em maio de 1997, Forta-leza-CETrabalho a ser apresentado na XI Jornada da Clínica do Centrode Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, em 04 de outubro de1997, Recife-PE** Ambas as autoras são Psicólogas-Clínicas, facilitadoras de gru-pos, Professoras Assistentes e Supervisoras de Estágio, da Uni-versidade Católica de Pernambuco.*** Endereço para correspondência: Departamento de Psicologiada Universidade Católica de Pernambuco, Rua do Príncipe, 526,Recife, PE, CEP 50050-900, Fone: (081) 216.4114 e216.4172, Fax: (081) 231.1842

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Then a profile of the University-Clinicwhere the service is implemented is presented andgoes on to report on the execution of the project,and consequent modifications which took place,from its inception in November 1995 up toSeptember 1997.

Finally the paper emphasizes thatimplementation of the service together with otherchanges in the clinic’s dynamics has contributedto the modernization of the institution and of itsmembers, particularly in the approach to teachingstudents and attending the patients, as long asrelationships have been entered into with full regardto ethos.

Key words: Intervening – psycho-diagnosis –parents – children – university-clinic.

APRESENTAÇÃO

Neste artigo, relatamos a implantação e atu-al desenvolvimento do “Serviço dePsicodiagnóstico Interventivo em Grupo para Paise Crianças” na Clínica-Escola da UniversidadeCatólica de Pernambuco (UNICAP). Mais do querefletir sobre a necessidade da implantação desseserviço, fazemos algumas considerações sobre osignificado e características do PsicodiagnósticoInterventivo numa Abordagem Fenomenológico-Existencial e sobre o outro modelo dePsicodiagnóstico, tradicionalmente adotado naspráticas da Psicologia da modernidade.Concomitantemente, reconhecemos, neste novotipo de enfoque, uma visão contemporânea da Psi-cologia, fazendo algumas incursões teóricas sobreo tema. Nesse sentido, apontamos para apertinência dos trabalhos de grupo e da perspecti-va da Abordagem Fenomenológico-Existencial,como uma forma de a Psicologia se posicionar di-ante das questões do mundo pós-moderno.

INTRODUÇÃO

A cultura da modernidade esteve, duranteséculos, preocupada com a produção do conheci-mento e com a sua validação através do métodocientífico. O sujeito racional do modelo cartesianofoi, a partir do século XVII, até as primeiras déca-das do século XX, o ideal a ser atingido. O métodocientífico operaria a separação mente e corpo, pos-sibilitando ao homem o controle da suaracionalidade e, conseqüentemente, a representa-ção do mundo sem as ilusões enganadoras do sen-tir humano. Na cultura contemporânea, com a pos-sibilidade de olharmos a história desse ideal dosujeito da modernidade, verificamos o reiterado fra-casso desse sujeito epistêmico pleno. O mal-es-tar e os sofrimentos da humanidade apontam paraa impossibilidade de o homem se cindir e produzirum conhecimento representacional.

A fenomenologia husserliana, apesar de su-gerir um método rigoroso para a abordagem dosfenômenos a serem conhecidos, reproduzindo, emparte, o ideal ascético de confiabilidade da sua pro-dução, introduz a idéia da intencionalidade daconsciência. Esse novo conceito permite pensara produção do conhecimento não como resultadode uma consciência representacional, onde su-jeito e mundo estão separados, e sim entender oconhecimento como resultado da constituição en-tre sujeito e mundo, na medida do reconhecimen-to da sua relação indissolúvel.

O pensamento psicológico surge, ainda, den-tro do projeto do sujeito racional da modernidade.Mas, ao mesmo tempo que fracassa junto com esseprojeto, na impossibilidade de fazer-se científica,verificamos que, no espaço aberto por esse fracas-so, é que se cria a situação especial para a Psicolo-gia.

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Foi necessário, portanto, ter-se instituído aseparação mente e corpo para se criar uma situa-ção ideal para o surgimento da Psicologia, comoaquela que não mais confirma essa cisão, mas que,à margem dela, viesse desenvolver um saber e umcuidar daquilo que escapa àquela cisão. Como nosensina Figueiredo (1995), “... o lugar do excluídoou do expurgável pelo método... veio a ser preci-samente o território de eleição de todas as psicolo-gias.” (p. 19).

É, pois, dentro dessa contradição, e a repro-duzindo, que o fazer psicológico se desenvolve. Aformação do psicólogo e as práticas psicológicasestão impregnadas do modelo do sujeito damodernidade.

O mito da neutralidade científica com o “co-gito ergo sum” de Descartes é um modelo poderoso,visto que dá à humanidade a ilusão de se protegerdas suas fragilidades e finitude.

Mas, como pontifica Dora Schnitman (1994),“a perda da certeza que atravessa a cultura con-temporânea leva a uma nova consciência da igno-rância da incerteza” (p. 15) e ao desenvolvimentode um novo paradigma para o conhecimento. DoraSchnitman, citando Edgar Morin, diz que esseparadigma seria o da COMPLEXIDADE, consi-derado por esse pensador como um NOVO MÉ-TODO para o saber, que teria como objetivo nãoo de desenvolver uma teoria única, mas, sim, o deidentificar as ligações e as articulações. E ela mes-ma aprofunda-se, dizendo que “isto implica umprincípio organizador do conhecimento que asso-cie a descrição do objeto com a descrição dadescrição e a descrição do descritor, que outor-gue tanta força à articulação e à integração comoà distinção e à oposição.” (op. cit., p. 15, os grifossão meus).

Acredito que a fenomenologia anterior a essenovo método proposto por Edgar Morin já nos in-troduz na arte da descrição e cria a possibilidadepara a multiplicidade dessas descrições apontada

por Dora Schnitman.

É, portanto, no fluir e refluir desse processohistórico-social, que práticas tradicionais da Psi-cologia da modernidade vão sendo substituídas porpráticas que respondam às questões emergentes deum mundo pós-moderno. As teorias existentes es-tão em falência e não dão conta dos novos fenô-menos que emergem da prática.

Surge, portanto, o meio propício para que oPsicodiagnóstico tradicional, como representantedo antigo paradigma das cisões mente e corpo esujeito e objeto, dê lugar a um novo modelo deprática psicodiagnóstica. Nesse novo modelo, nãoé mais possível pensar na cisão, e sim considerar aconstituição recíproca e permanente entre sujei-to e objeto, que se situam um a partir do outro. Énesse sentido que, no PsicodiagnósticoInterventivo, num enfoque fenomenológico-exis-tencial, “psicólogo e cliente se envolvem a partirde pontos de vista diferentes mas igualmenteimportantes, na tarefa de construir sentidos daexistência de um deles - o cliente.” (Cupertino,APUD: LOPEZ, M. Ancona, 1995, p. 138, osgrifos são meus).

Além do enfoque fenomenológico, queenseja reflexões no caminho do “novo método parao saber” (Schnitman, op.cit.), a ênfase no trabalhogrupal, no psicodiagnóstico interventivo implan-tado, é particularmente importante pelamultiplicidade de interações que possibilita.

Nesse aspecto, vamos focalizar, comoembasamento a essa atividade grupal, os trabalhosdesenvolvidos pela Gestalt-terapia e, especialmen-te, pela abordagem centrada na pessoa, na produ-ção de elementos significativos dentro das novasperspectivas paradigmáticas. O conceito de “ten-dência formativa”, utilizado por Rogers (1983)implica o reconhecimento de uma tendência nossistemas abertos, em qualquer nível do universo, ase transformar em todos mais complexos. Esseenfoque torna-se esclarecedor no seguinte texto:

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“... a tendência sempre atuante em direção auma ordem crescente e a uma complexidadeinter-relacionada, visível tanto no nívelinorgânico como no orgânico. O universo estáem constante construção e criação, assimcomo em deterioração. Este processo tambémé evidente no ser humano.” (Rogers, op. cit., p.45). Esse conceito é particularmente utilizado nostrabalhos com grupos que contêm a idéia de auto-organização dos sistemas. E, é precisamente essaidéia o ponto central de Prigogine (1977), autorcitado por Rogers (op. cit., p. 48), paraconsubstanciar suas idéias. Prigogine (op. cit.) fo-caliza o papel construtivo que a desordementrópica tem na criação da ordem. A sua visãoesclarece e referenda a dialética entre a ordem e adesordem. “O caos pode conduzir à ordem,como o faz com os sistemas auto-organizantes.Novos estados da matéria emergem em esta-dos distanciados do equilíbrio; esses estados,e também a desordem, podem ter estruturasde ordem profunda, codificadas dentro de si.”(Schnitman, op. cit., p. 12-13). É dentro dessesprincípios que a abordagem centrada na pessoadesenvolve os trabalhos com grupos, onde o caose a crise são entendidos não como antagônicos daordem, mas como um conjunto múltiplo de infor-mações e que tende a todos mais complexos. Con-tida nessa idéia está a compreensão fundamentaldas “interações mútuas” desenvolvidas dentro dogrupo e que é básica para a compreensão dos sis-temas vivos.

As práticas atuais parecem comprovar essaquestão. É na epistemologia morfogenética queRogers (op. cit.) vai encontrar confirmações, quan-do diz que: “... Murayama e outros autores acre-ditam que há interações mútuas de causa eefeito, que aumentam as possibilidades dedesvio e permitem que se desenvolvam novospadrões e novas informações.” (p. 42).

Em busca, então, desses “novos padrões” edestas “novas informações”, estamos investindonessa nova prática do psicodiagnóstico

interventivo, exercitando-o numa situação grupal.No capítulo seguinte, focalizaremos melhor essaquestão.

1. A QUESTÃO GRUPAL

A ênfase no trabalho grupal é particularmen-te importante, como anunciamos na introduçãodeste trabalho, pela multiplicidade de interaçõesdiferenciadoras que viabiliza. Isso não significa queo psicodiagnóstico interventivo só seja possívelnuma situação grupal. A postura interventiva, comojá foi dito anteriormente, insere-se num novo mo-delo de prática psicológica, decorrente da mudan-ça paradigmática na concepção de homem e mun-do. A ênfase, portanto, não é no grupo, em detri-mento do indivíduo, mas na postura que o psicólo-go assumirá nas várias modalidades de atuaçãopsicológica.

No entanto, o grupo é a configuração porexcelência para a manifestação da multiplicidadedas diferenças que compõem o humano e a huma-nidade. Essa afirmação se baseia no reconheci-mento de que a constituição humana se dá e seprocessa num grupo. O homem já nasce num mun-do dado, logo o seu processo de “vir a ser” nãoacontece num mundo virgem. Desde o grupodiádico, mãe-bebê, nas suas variadas implicações,até a relação do bebê com o grupo família e todasas possíveis díades que aí se formarão, apontampara a rede de inter-relações e complexas influên-cias em que todos estão inseridos.

Essas considerações evidenciam as múltiplasconfigurações que se dão e se processam num gru-po humano com seus inúmeros segmentos e facetashistórico-culturais. Evidencia-se, particularmente,a imbricação do coletivo no particular e do parti-cular no coletivo.

Essas premissas possibilitam direcionar onosso olhar para a compreensão de que o indiví-duo se constitui entre outros indivíduos. Este “en-tre”, muito mais do que “no meio” de outros, sig-

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nifica a constituição de cada um de nós na ponteentre homem e mundo. “A unidade atual é o sujei-to-mundo, o ENTRE como nos indica a dialéticasem síntese proposta por Merleau Ponty (1971) eque implica na permanente tensão entre os pólos.”(ADVÍNCULA, 1997, p. 1).

A dicotomia do nosso pensar e agir tem queser superada, à medida que um novo olhar se cons-trói, com a visão de um mundo em que o intra, ointer e o múltiplo estão em mútua e permanenteformação.

Não estamos propondo a dissolução da sin-gularidade pessoal, mas o seu redimensionamentoao compreender “o caráter plural e dinâmico dasua constituição.” (FONSECA, 1988, p. 137).

Estamos falando, pois, de sistemas aber-tos e, conseqüentemente, em processos de perma-nente construção e reconstrução.

É dentro deste contexto de unidade-múlti-pla que o grupo deve ser compreendido. A unida-de grupal transcende a soma dos indivíduos que ocompõem, formando uma nova configuração ouuma nova unidade dinâmica.

O todo grupal, por potencializar os aspectosmúltiplos, potencializa também a mobilidade e,conseqüentemente, a mudança.

Nesse sentido, estamos focalizando, aqui, aquestão grupal, não somente quando o atendimen-to esteja sendo feito em grupo, mas também asvárias situações grupais que se constituem e cons-tituem o homem. Estamos focalizando o coletivo,nesta e desta pessoa em particular, compreenden-do-a num sistema múltiplo e amplo. Estamos fo-calizando desde o grupo família até as várias situ-ações que produzem e se reproduzem sucessiva-mente, nas inúmeras interações que o ser humanoestabelece na vida.

Posto isso, aprofundar-nos-emos a seguir nas

questões em torno do psicodiagnóstico, como umaprática clínica interventiva.

2. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DOPSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO

A visão dicotômica do homem, que impli-ca nas cisões já evidenciadas na introdução des-te texto, determina algumas crenças que impreg-nam as práticas psicológicas. Entre elas, pode-mos mencionar a idéia de que o psicodiagnósticoé um momento anterior ao atendimento propri-amente dito, e, só então, o contato com o psicó-logo se torna significativo e capaz de provocarmudanças. Essa determinação, resultante da ci-são sujeito-objeto, contém a idéia de que o psi-cólogo é o detentor do saber e que o cliente nãotem condições para conhecer aspectos da suaprópria existência. Além de implicar, também,na crença de se poder manter a neutralidade pelapostura distanciada do profissional. Nessa for-ma de atuar, o psicólogo se restringe apenas aoprocesso investigatório, à medida que coleta osdados para organizar o seu raciocínio clínico.Não escuta o pedido de ajuda do cliente, apenasavalia a situação para posterior encaminhamen-to. “A visão clássica do psicodiagnóstico re-comenda uma atitude de neutralidade, o queleva a certo distanciamento do profissional,para facilitar as manifestações inconscientesdo cliente. Além disso, recomenda-se que oscontatos com o psicólogo durante opsicodiagnóstico não se estendam além do‘necessário’, a fim de evitar o desenvolvimen-to de uma relação transferencial que exigi-ria outro tipo de atendimento.” (LOPEZ, S.Ancona, p. 31, apud: LOPEZ, M. Ancona,1995). Deduz-se que a idéia de intervenção estáligada ao processo terapêutico, onde só entãoaconteceriam as mudanças.

O cliente, nessa perspectiva tradicional dopsicodiagnóstico, se mantém numa postura passi-va de objeto de estudo; ele tem que esperar paraser efetivamente ajudado; fica fora do processo.

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Essa postura implicará, em conseqüência, o nãoenvolvimento no trabalho que está sendo efetua-do e o não comprometimento com o posterior aten-dimento. Além do mais, as conclusões diagnósticase encaminhamentos não são devidamente compre-endidos, o que prejudica todo o trabalho.

Numa visão mais ampla da psicologia, “asquestões concernentes à relação entre o psi-cólogo e o cliente, vistos como sujeitos quepossuem interioridade psíquica e que se mo-vem numa rede de inter-relações, têm um ca-ráter central em toda práxis psicológica.” (TSU,Citado por LOPEZ, 1995, p. 31).

Portanto, não se pode mais pensar, nem em-preender, um psicodiagnóstico que não seja, elemesmo, um momento significativo de contato en-tre o cliente e o psicólogo. Não se pode mais com-preender qualquer ação psicológica, a não ser comouma ação interventiva e, conseqüentemente,possibilitadora de mudanças. “O relacionamen-to psicológico será significativo se produzir umconhecimento que se dê na possibilidade deuma formulação conjunta da experiência vivi-da naquela relação, tanto no contexto de umpsicodiagnóstico como em uma sessão depsicoterapia.” (LOPEZ, S. Ancona, p. 32-33,apud: LOPEZ, M. Ancona, 1995).

Nessa nova perspectiva de visão de mundoe de homem, abre-se a possibilidade para a co-par-ticipação do cliente. Essa questão se viabilizaquando se acredita na sua capacidade de poder com-partilhar os conhecimentos que se configurarão ese constituirão na mutualidade das interações.

O Psicodiagnóstico Interventivo fundamen-ta-se na psicologia fenomenológica e implica mos-trar ao cliente a situação que ele apresenta, de umnovo modo. Essa nova forma desestrutura, mo-mentaneamente, percepções antigas e obriga o cli-ente a reorganizações perceptuais e, conseqüente-mente, novas opções de vida poderão acontecer.

As intervenções são efetivas quando provocar “aestranheza no relacionamento, como nos ensi-na LOPEZ S. Ancona, (op. cit.), de modo a fa-zer o cliente a confrontar-se com uma ruptu-ra: a ruptura de seus comportamentos usuais,a ruptura da compreensão costumeira, a rup-tura dos jogos relacionais que aprendeu a jo-gar.” (p. 34).

A perspectiva fenomenológica influencia,diretamente, na prática do psicodiagnóstico em al-guns aspectos fundamentais. O saber teórico einstitucionalizado do psicólogo perde a primazia eequivale ao saber pessoal da criança e seus pais.Essa equivalência se efetua num trabalho conjun-to e participativo entre profissional e cliente. Aqueixa não é mais olhada de forma isolada, e siminserida no mundo de significações do sujeito. Ten-ta-se compreender o ser-no-mundo do cliente,através da queixa relatada, numa tentativa deressignificação e possíveis modificações na rela-ção consigo mesmo e com os demais. É enfatizadoo trabalho grupal, como já dito, por ser maispotencializador da multiplicidade de interações edecorrentes explorações subjetivas na medida dasconfrontações com as diferenças. Além do mais,garante a compreensão conjunta e partilhada dosfenômenos a serem compreendidos.

Postas essas premissas teóricas a respeito dopsicodiagnóstico, empreenderemos o relato da im-plantação do serviço e caracterização da Clínica-Escola da UNICAP.

3. CARACTERIZAÇÃO DA CLÍNICA-ES-COLA DA UNICAP E A IMPLANTAÇÃODO SERVIÇO DO PSICODIAGNÓSTICOINTERVENTIVO

As clínicas-escola das universidades brasi-leiras surgem para atender à necessidade de for-mação do aluno do curso de Psicologia, de acordocom uma disposição do Conselho Federal de Edu-cação. Faz-se necessário um local e clientes para

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que os futuros psicólogos exerçam uma prática queos habilitem ao exercício profissional.

Uma vez criadas, essas clínicas, além do ob-jetivo inicial, também atendem a uma demanda dapopulação de atendimento psicológico a preçosmais acessíveis.

O corpo técnico da clínica da UNICAP, es-pecificamente, é composto de um psiquiatra e devários psicólogos. Durante muitos anos, esses pro-fissionais desenvolveram um trabalho atrelado amodelos peculiares à maioria das universidades. Opsiquiatra atendia à clientela externa, aos alunos eorientava os estagiários no caso de dúvidas nosdiagnósticos e encaminhamentos dos clientes compareceres psiquiátricos. Os psicólogos surgiamcomo supervisores, sendo que alguns atuavam aindacomo técnicos, atendendo à população e aos alu-nos do curso de Psicologia, em razão da inconve-niência ética e técnica de os estagiários empreen-derem atendimento aos seus colegas.

Os supervisores tinham como “clientes” osestagiários, pois todo seu trabalho era desenvolvi-do, até então, com eles e para eles. Cada supervisortinha o seu grupo de estagiários e empreendia seutrabalho isolado dos demais. Sem se aperceberem,e pela força do hábito profissional, foram isolan-do-se em castas, adotando medidas e desenvolven-do práticas, segundo modelos próprios e particula-res. Em decorrência disso, as atividades e práticasinstitucionais deixaram de ser coletivas e padroni-zadas. Perdia-se, então, a noção de que se estavatrabalhando numa instituição, inclusive, negandoaos estagiários essa vivência institucional, tão im-portante para sua formação e inserção na realida-de social.

Como fruto de reflexões e da evidência desintomas de inadequações, a equipe da clínica daUNICAP foi apercebendo-se das imprecisões dasua forma de funcionamento, tanto em relação aocliente externo (a comunidade) quanto em relaçãoao cliente interno (o estagiário).

Um desses sintomas detectados era a cons-tante e enorme lista de espera de crianças para aten-dimento e o pouco envolvimento dos seus paisquando elas iniciavam a psicoterapia.

Outro sintoma evidenciado era o grande ní-vel de evasão da clientela inscrita para atendimen-to, o que ocorria antes mesmo de se iniciar o pro-cesso de triagem. Na prática corrente, o cliente, aoprocurar a clínica, era inscrito numa lista de espe-ra, onde poderia permanecer meses e até anos. Osintoma da evasão nos fez refletir sobre algunspontos importantes. A simples inscrição do clienteefetuada pela secretaria da clínica não possibilita-va a vinculação necessária que uma escuta pri-meira da sua demanda permitiria.

O terceiro e evidente sintoma deinadequação das nossas atuações na clínica-escolaera o abandono constante da clientela adolescen-te, mal iniciado o processo terapêutico, fato que serepetia ano após ano. Esse sinal apontava paraquestionamentos em relação à indicação dapsicoterapia convencional para aquele tipo de cli-entela. As características próprias àquela faixaetária, com uma cultura peculiar face à nossa reali-dade social, exigiam soluções mais criativas.

Era evidente a necessidade de mudança noprocesso de funcionamento da nossa instituição, oque repercutiria na prática do estágio e no atendi-mento à população.

Em anos anteriores, na tentativa de quebraros encastelamentos, foram instituídos encontrossemanais com toda a equipe de estagiários esupervisores. Em princípio, palestrantes convida-dos vinham apresentar temas de interesses clíni-cos. Posteriormente, trabalhos efetuados pelossupervisores e estagiários eram o foco dos deba-tes.

Nos dias atuais, toda a equipe trabalha natentativa de elaborar um diagnóstico da nossa ins-tituição e, juntos, construirmos a nossa identida-

A INSPIRAÇÃO DESSE CAPÍTULO DEVE MUITO AO TEXTO DE VERA OLIVEIRA, COORDENADORA DE ESTÁGIO DA CLÍNICA-ESCOLA DA UNIVERSIDADE CATÓ-

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de. No princípio, discutimos a elaboração de umapesquisa que apontasse as demandas concretas dapopulação como norteadora para a consecução demudanças pautadas na realidade. Essa pesquisa en-contra-se em andamento. Porém, já tínhamos indí-cios suficientes à implantação de alguns serviços ereformulação de outros já existentes.

A primeira mudança efetuada se deu com acriação dos serviços de plantão e recepção. Osestagiários, agora em sistema de plantão,recepcionam a clientela, possibilitando uma escu-ta inicial da sua queixa no momento emergencialde sua chegada à clínica. Com esse novo procedi-mento, diminuiu-se a lista de espera e a conseqüenteevasão, pois os clientes eram mais prontamenteouvidos e mais rapidamente encaminhados para atriagem e, em alguns casos, redirecionados os en-caminhamentos equivocados.

A outra mudança ocorrida se deu com a cri-ação do Grupo Operativo para Adolescentes,servindo como uma outra forma de trabalho psi-cológico com essa clientela, que não a psicoterapiaconvencional.

Paralelo à implantação desse Serviço, foramtambém instituídos os GRUPOS DE PSICOTE-RAPIA INFANTIL também como conseqüên-cia das demandas institucionais.

Ainda nesse processo mutacional, instituiu-se o PSICODIAGNÓSTICO INTERVEN-TIVO EM GRUPO PARA PAIS E CRIANÇAS,que poderia receber as crianças encaminhadas darecepção e que, sem contra-indicação para gru-po, concordassem em ser triadas dessa forma. Esseserviço atenderia também à lista de crianças à es-pera de triagem há três anos.

Afora os dados quantitativos aqui citados,como aumento de potencial de atendimentos e eli-minação da fila de espera, esse tipo depsicodiagnóstico nos apontava uma mudança qua-litativa no enfoque da triagem convencional. Por

envolver, necessariamente, encontros dos psicó-logos com os pais, em grupo, foi-lhes retirada aposição de meros espectadores, para serem, agora,parte fundamental do processo. Os pais, neste novoenfoque de triagem, não “levariam” os filhos aopsicólogo à espera de um diagnóstico e posteriorencaminhamento. Juntos, psicólogos, pais e crian-ças construiriam esse parecer.

Deixávamos de confirmar de forma velada,como antes fazíamos, que a problemática estavana criança. E mais: estávamos dividindo a respon-sabilidade do encaminhamento com a consciênciade que a multivisão é fundamental para que se aper-ceba o sistema familiar como um todo.

A elaboração e implantação do projeto, soba inspiração do texto de LOPEZ, M. Ancona,(1995), deram-se no segundo semestre de 1995,no princípio sob a responsabilidade de trêssupervisoras da Abordagem Fenomenológico-Exis-tencial, por estarem disponíveis na ocasião e porjá terem uma prática referenciada nesse paradigma.Os estagiários não participaram dessa experiência-piloto, por não terem ainda referencial teórico desustentação a essa nova prática. Esse primeiro gru-po funcionou com encontros semanais de uma horae meia de duração, distribuídos da seguinte forma:

• 2 encontros com os pais;• 2 encontros com as crianças;• 1 encontro com pais e crianças;• 1 encontro com os pais, para devolução.

Após a conclusão do processo, houve umnúmero mínimo de desistências, tendo a grandemaioria dado continuidade aos encaminhamentosposteriores. Como a percepção da problemática dacriança era multifocal, os pais não se sentiam “per-seguidos” pelos psicólogos, podendo assumir suaparcela de responsabilidade no trabalho e até su-gerir um auto-encaminhamento, aliado ou não àindicação da criança para algum serviço psicológi-co ou de outra ordem.

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A mudança nesse tipo de psicodiagnósticoocorre durante o processo, levada pela interaçãomúltipla entre todos os participantes. No entanto,percebemos que faltou um maior entrosamentoentre pais e crianças, pois só tínhamos um encon-tro com eles juntos. Também falhamos ao discutirapenas com os pais os encaminhamentos. A he-rança do psicodiagnóstico tradicional que carrega-mos fez com que deixássemos de fora da decisão apessoa que deu origem ao processo - a criança.Sem fugir à regra, a prática nos orientava para anecessária reformulação do projeto, que ocorreu apartir do primeiro semestre de 1996. O número deencontros do processo aumentou de seis para dez,seguindo a seguinte distribuição:

• 3 encontros com os pais;• 3 encontros com as crianças;• 2 encontros com pais e crianças;• 1 encontro com os pais, para devolução;• 1 encontro com as crianças, para devolução.

Apesar de chamarmos os dois últimos en-contros de “entrevista de devolução”, é importan-te ressaltar que, por tratar-se de um trabalhoparticipativo e processual, a constatação dos en-caminhamentos vai-se dando, gradativa e espon-taneamente, sendo a referida “entrevista de devo-lução” apenas um fechamento e checagem das ela-borações efetuadas.

Outro passo importante nesse período foi aparticipação de uma supervisora da AbordagemAnalítica, com seu grupo de estagiários, propici-ando uma ampliação da visão. Agora nosso campode percepção era bem mais diversificado, tendo emvista que passamos a contar com os pais, as crian-ças e psicólogos, e estagiários de abordagens dis-tintas.

Parece-nos que começávamos a exercitar otrabalho institucional, com sua necessária atuaçãosistêmica, atendendo, de forma bem mais adequa-da, à população. Outra vitória constatada referia-

se à abertura da nossa compreensão quanto ao tra-balho do psicólogo-clínico, retirada a limitação dasua atuação específica em consultório particular.Com isso, ampliávamos a capacitação dos nossosestagiários, adequando-a à nova realidade social.O estágio passou a fazer mais sentido para os alu-nos, também, devido à integração das atividadesteóricas com a prática clínica por eles exercida, ouseja, nos seminários de que eles participavam, eramdiscutidos temas sobre atendimento a famílias, gru-po operativo, grupo infantil e psicodiagnósticointerventivo, além de serem aprofundados osconstrutos teóricos da abordagem por eles esco-lhida.

Nesse período, porém, a supervisora de Abor-dagem Analítica foi solicitada pela instituição a re-alizar um outro projeto, inviabilizando a continui-dade do seu engajamento no processo doPsicodiagnóstico Interventivo. A mudança na cul-tura institucional agora pôde dar provas da suaexistência, já que duas estagiárias dessa aborda-gem se interessaram em participar do grupo, sob asupervisão de um profissional da AbordagemFenomenológico-Existencial.

Com efeito, neste ano de 1997, avançamosum pouco mais no que se refere ao atendimentoda população. Iniciamos, no primeiro semestre,com dois grupos funcionando, cada um sob a co-ordenação de uma supervisora, e com a participa-ção de estagiários e monitores. Percebemos, apósdiscussão com o grupo, que poderíamos separar-nos, aumentando, assim, a quantidade de gruposem funcionamento. Atualmente há quatro gruposagendados para acontecer, só neste segundo semes-tre de 1997. Cada um deles será coordenado poruma estagiária-monitora, auxiliada por outros es-tagiários. Esses grupos têm suas datas de inícioorganizadas de forma a contemplar um númerogrande de clientes interessados e que venham aprocurar a nossa clínica em períodos diversos. Naprática, até o final do semestre, todo mês haveráum grupo sendo iniciado.

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A fim de contribuirmos para a compreensãodo funcionamento do Serviço do PsicodiagnósticoInterventivo, é importante detalhar a dinâmica dosencontros do grupo do PsicodiagnósticoInterventivo e seus objetivos, ilustrando algunsmomentos com exemplos de falas dos participan-tes, ora pais, ora crianças.

O primeiro encontro com os pais tem comoobjetivos definir e estruturar a situação grupal, es-clarecer os objetivos dos encontros subseqüentes,apresentar o cronograma de trabalho, bem comoindicar o período de duração de cada sessão, defi-nir contrato e modalidade de pagamento.

Parece-nos primordial, nesse encontro, a com-preensão dos pais não só da estruturação do grupoe seus objetivos, como a transposição que fazemdessa situação para a do seu grupo familiar.

EXEMPLO 1:

Num dos grupos, onde a faixa etária das cri-anças variava de 8 a 10 anos, a mãe de uma delasfaltou aos dois primeiros encontros, vindo a avóda menina para substituí-la. Ao comparecer, já noterceiro encontro, a mãe é questionada pelo grupose ela não pode faltar algumas horas ao trabalhopara cuidar da filha, participando do nosso grupo.Ela se dá conta da importância da sua presença,não só para o caso da sua filha, como para contri-buição com as outras mães. “Afinal, avó não é mãe”,diz uma participante. Exsurge, nesse momento, oinício da compreensão da importância de cada umpara a estruturação da situação grupal e, conse-qüentemente, para desvelamento da queixa trazidapor essa cliente. Parece também ter ficado claro,para essa mãe, que, talvez a queixa da sua filha(medos e “nervosismo”) esteja relacionada à au-sência dela, vivida pela criança como descaso ouabandono.

As outras reuniões do Psicodiagnóstico comos pais objetivam facilitar a compreensão da quei-xa inicial, motivo da procura, além de possibilitar,

a partir do que é vivido, um maior contato com oprocesso experiencial de cada participante, facili-tando uma atitude de abertura e deredimensionamento das dificuldades nas relaçõespais e filhos. Nesses encontros, a queixa parece fi-car mais clara, inclusive, dimensionado-a e locali-zando-a na vida da família.

As discussões em grupo parecem posicionara problemática da criança no contexto familiar,devolvendo a cada um dos membros desse grupoa responsabilidade pela relação instaurada.

Os relatos que se seguem ilustram esse proces-so de elucidação, fazendo-nos refletir acerca da ino-vação desse tipo de psicodiagnóstico no que se refe-re, inclusive, à “entrevista de devolução”. À medidaque ocorrem os encontros, os participantes vão per-cebendo-se como “construtores” dos relacionamen-tos com seus filhos e vão assinalando, um para osoutros e todos para si próprios, os encaminhamentospsicológicos adequados a cada caso.

EXEMPLO 2:N (mãe): Essa semana, em casa, eu disse:hoje não quero ver ninguém...P (outra mãe): Mas não pode. Quem tem fi-lho não tem esse direito!

A partir desse diálogo, transcorreu uma sériede intervenções de outras mães direcionadas paraN, colocações que a fizeram refletir e expor para ogrupo, dando-se conta de que estava dispensandopouca atenção às filhas e se esquivando do seupapel de mãe.

EXEMPLO 3:P (uma mãe) se refere que PG, sua única fi-lha, dorme no quarto do casal.C (uma avó) argumenta: “mas isso não é cer-to. Além de casal ter que dormir só os dois,você está concordando com ela que dormirsozinha é ruim. (A queixa de PG era medode várias ordens, inclusive, de dormir no seuquarto).

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É interessante como P, mãe de PG, foiconscientizando-se, no decorrer do processo, deque sua filha era saudável, inclusive, lembrandoque ela começou a ter medos após a morte de umparente próximo. A cada encontro que ela compa-recia, o desejo de que a filha “se curasse” diminuíaaté que ela não mais veio aos encontros. Num dosúltimos em que estava presente, deixou bem claroque percebia PG como “normal”, não precisandode “tratamento”, quando falou para N (outra mãe):“o seu problema, realmente, não merece cuidadosespeciais.”

EXEMPLO 4:N (uma mãe) conversava tudo com a filhade 7 anos, inclusive o que se relacionava aproblemas de sexo entre ela e o marido.MJ (outra mãe) aponta para ela que, ao refe-rir-se a A, sua filha, ela mais parecia falar deuma amiga e que isso era muito ruim, poisfilho é filho, não é amigo.N concordou e parece ter-se dado conta decomo esse seu comportamento era ruim parasua filha e, bem antes da “devolução”, já re-feria que ela precisava se tratar para, aí sim,cuidar das filhas.A entrevista final de devolução e encami-

nhamento realizada com os pais pretende, a partirda constatação de como estão experienciando, ago-ra a queixa inicial, auxiliá-los a construir, com ogrupo, o processo de orientação e encaminhamen-to (caso necessário), procurando redimensionar aconstrução das relações, visando a novas possibi-lidades de interação.

Nesse encontro, o próprio grupo define quemencaminhar e para onde.

EXEMPLO 5:

MH (uma mãe), na última entrevista, cons-tata que ela e o marido tem duas opções: te-rapia de casal ou separação. “Nosso filho, re-almente, não é o problema”, diz ela.

A entrevista inicial com as crianças tem porobjetivo sondar qual a informação que receberamdos pais com relação à sua participação no grupo,definir e estruturar a situação grupal e, principal-mente, perceber o sentido e a disponibilidade des-tes em participar do processo.

EXEMPLO 6:PG (uma criança): “Não entendo como vocêtem medo de cachorro. Eu gosto muito des-tes animais.”C (outra criança): “Eu também não entendocomo você tem medo de alma. Morreu, mor-reu”.

A partir desse diálogo, ambas, junto com ogrupo, constataram que cada um tem seus medose que é preciso respeitá-los. Expuseram, também,como era bom saber que “os outros também têmseus medos.” As outras crianças assentiram e algu-mas se sentiram à vontade para se exporem em suasangústias. Parece, nesse momento, que é firmadoo acordo do trabalho em grupo e da intenção detodos em colaborar com todos.

EXEMPLO 7:An (uma criança) não conseguia falar nadae as demais crianças do grupo cobravam suafalaA (outra criança) colocou que sabia por queela não queria falar. É que, quando se estavasentido tristeza, era melhor não falar, ou nãose conseguia falar.An fez uma expressão de quem estava, real-mente, sendo compreendida e desabou emprantos.

É importante salientar que a criança An, de8 anos, quase não se expressou verbalmente nosnossos encontros. Porém, quando alguma criançase referia a ela, prontamente demonstrava ter-sesentido compreendida e aceita pelo grupo.

As sessões realizadas com pais e criançasjuntos visam a identificar o nível e a qualidade de

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interação entre eles, além de auxiliar na elucidaçãoda queixa e dos encaminhamentos.

EXEMPLO 8:V (uma criança) estava na sessão do grupocom as outras crianças e as mães, quando sereferiu que estava com dor de barriga (essador a acompanhava desde a morte do seupai, sobre a qual não queria falar).

Foi sugerido que ela desenhasse a dor e des-se um nome a ela. No início, era “DOR CHATA”,mas ela foi enfeitando o desenho e trocou seu nomepor “DOR BONITA”. Quando foi perguntado seela deixaria o desenho conosco, ela disse: “E euvou deixar minha dor com vocês?” E riu como senos dissesse que ainda precisava daquela dor (tal-vez por não poder assumir a dor pela ausência dopai ou por não querer perder mais nada). A mãedemonstrou ter ficado muito impressionada com ofato e convencida de que a dor de barriga tinharelação com a queixa da criança (ela achava que“não tinha nada a ver”).

EXEMPLO 9:

H (uma mãe) nos traz a filha de 8 anos, comqueixa de que a criança era “retardada”. Acriança, ao contrário da avaliação da mãe, ébastante esperta e sensível. Num dos encon-tros pais e crianças, a menina faz um dese-nho muito bonito na presença de todos nós.H, apesar de ter visto a filha confeccionan-do o desenho, duvida de que foi ela que fez.MH (outra mãe), após perceber o que haviaocorrido, perguntou a H o que se passavacom ela que não podia ver a inteligência esensibilidade da menina. H desconcertou-see as outras mães expuseram sua surpresa emver aquela criança, tão esperta, ser taxadapela mãe de “retardada”.

CONCLUSÃO

Tomarmos conhecimento do Psicodiagnós-tico Interventivo e reconhecê-lo como uma práti-ca inovadora mudou o atendimento à população emudou a nós que fazemos a Clínica-Escola da Uni-versidade Católica de Pernambuco. Afirmamos issopelo que já demonstramos no decorrer deste tra-balho e, principalmente, reconhecemos que estanova prática inaugura uma forma de exercer a psi-cologia, que cria caminhos para que ela cumpra oseu projeto libertário. Acreditamos que o exercíciodeste serviço, muito mais do que contribuir paraas modificações necessárias que urgiam na insti-tuição, estabeleceu uma nova relação do psicólo-go com seu cliente.

O cliente, agora, ao procurar o parecer psi-cológico, não só encontra palavras de um “doutosaber” mas também reconhece e se reconhece, notecer dos saberes, o processo de constituição doconhecimento de si e dos demais. E é nesse pro-cesso que se amplia a capacidade de elaboraçãodas próprias vivências. Só assim, então, podemoscompreender o fazer psicológico como um fazerético, no sentido etimológico do termo, em queETHOS significa além de “hábitos”, “abrigo”,“morada”. É, portanto, neste fazer, em que sepossibilita no outro a capacidade de ampliação dasubjetividade pessoal, compreendida como “en-vergadura interior”, como nos ensina NaffahNeto (1995), uma espécie de VAZIO “capaz depropiciar abrigo, morada, aos acontecimentosda vida” (p.198), que cumprimos com a meta dofazer psicológico. Ao se promover o desenvolvi-mento dessa envergadura interior, estaremos pro-movendo a capacidade de o homem dar “abrigo”,“morada” às experiências da sua existência, con-seqüentemente ampliando a sua capacidade de ela-boração dos acontecimentos que o afetam. Con-cluo, fazendo minhas as palavras de NAFFAHNETO (op.cit.): “...só as experiências capazes deencontrar abrigo, acolhimento, nesse espaço inte-rior, conseguem ser elaboradas, transmutando-seem proveito da expansão vital; as outras permane-cem marginalizadas, de diferentes formas” (p. 199).

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