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A arte da transgressão 20 :30 de uma quinta-feira, quatro rapazes chegam ao Edifício Copan, um dos maiores e mais conhecidos símbolos de São Paulo. O objetivo do grupo é simples: alcançar o topo dos seus 140 metros de altura, divididos em 37 andares, e por lá dei- xarem a sua marca, em letras que poucos podem entender, de uma arte que quase ninguém tolera, a pichação. Vista pelo poder público como poluição visual e vandalismo, a pichação sempre esteve presente na história da humanidade. Geralmente usada para fins ideológicos, o ato de rabiscar muros era praticado por monges na idade média, que pichavam conventos de outras doutrinas, de modo a registrar suas idéias. Durante a Guerra Fria, o Muro de Berlim, simbolo máximo da cortina de ferro, tinha todo o seu lado ocidental (sob domínio americano) coberto por pichos e Graffitis em spray, enquanto o lado oriental, dominado pelo governo linha dura dos soviéticos se manteve impe- cavelmente limpo até a sua queda em 89, o que mostrava a opção dos blocos com relação à liberdade de expressão dada ao povo em seus territórios. No Brasil, durante a época da ditadura, a pichação era intolerada e apenas uns poucos revolucionários de esquerda tinham coragem de se armar com uma lata de spray e desafiar a repressão. Com a queda do regime em 85, houve um aumento considerável de pichadores (principalmente nas grandes capitais, como São Paulo), que não mais propagavam ideologias políticas, mas que queriam deixar sua assinatura e sair do anonimato. Nessa época, os pichadores agiam sozinhos, apenas assinando seus nomes. Depois, começaram a se unir em mulas, as mulas a se organizarem em grifes, e seus integrantes a adotar pseudônimos em suas assinaturas, começou uma competição feroz que perdura até os dias de hoje para ver quem consegue mais ibope, tendo como métodos de desempate a audácia do pichador e a dificuldade apresenta- da pelo local atacado. Nesse contexto, pontes e beirais de prédios são os locais mais desejados, e quanto mais alto melhor, ficando por conta da coragem do pichador que quiser subir e se arriscar. Desde 98 que a pichação é considerada crime ambiental e de vandalismo no Brasil, nos termos da Lei 9.605. A pena para os infratores pode chegar a um ano de detenção e multa. Porém, normalmente a pena nesses casos é abrandada, sendo comutada em prestação de serviço à comunidade por tempo vari- ável em cada caso. Alheio a isso, entre os quatro jovens que sobem pelo elevador do Copan e se pas- sando por um dos mais de 5 mil residentes do edifício, está Kitty, um rapaz de estatura média e magrelo, cabeça da “Zona ? Loca”, mula conhecida na Zona Leste de São Paulo. Na mochila, ele carrega garrafas “pet” cheias de tinta, rolinhos, alicate para cortar cadeados e pé-de-cabra para o caso de encontrar alguma barreira pelo caminho. Já no final do percurso, um imprevisto: A partir do 35º andar, as portas têm alarme e a única maneira de se chegar ao topo é pela parte externa. Pergunto como eles fizeram e Kitty me responde com um sorriso de satisfação: “A gente subiu por fora oras”. Apesar do vento forte e da ausência de qualquer proteção, os quatro rapazes escalam a fachada, e alcançam o terraço do edifício para começar o trabalho. As tintas na cor clara são espalhadas aos poucos pelas paredes do telhado com a ajuda dos rolinhos, formando letras garrafais, destacadas pela cor acidentada da fachada suja do velho arranha-céu. Para descer, mais uma vez é necessário se arriscar pela beira da fachada, escalar de volta até o 35º andar e de lá seguir para casa, com a sensação de “dever cumprido”. Na sexta-feira, às 11 da manhã os rapazes sobem no edifício em frente munidos de máquinas digitais dispostos a retratar sua obra. Por questão de minutos não perdem a chance, pois os funcionários do prédio já haviam começado a limpeza. Apesar de a assinatura “Kitty” já estar meio apagada, “Zona ? Loca” ainda aparece bem visível, mas até o fim do dia, qualquer vestígio da aventura já estaria apagado. Apesar do pouco tempo de exibição, a marcação do grupo e a assinatura de Kitty ficaram impressos na história do grupo, que em questão de dias era cumpri- mentado por centenas de outros pichadores da cidade inteira, tanto na internet quanto nos points. 26 TEXTO: Flávio Faria FOTOS: Acervo pessoal/Divulgação Projeto UP 02.indd 26 14/11/2008 11:10:33

Revista UP (parte dois)

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Segunda parte do primeiro número da Revista Universo Paralelo (UP)

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A arte da transgressão

20:30 de uma quinta-feira, quatro rapazes chegam ao Edifício Copan, um dos maiores e mais conhecidos símbolos de São Paulo. O objetivo do grupo é simples: alcançar o topo dos seus 140 metros de altura, divididos em 37 andares, e por lá dei-xarem a sua marca, em letras que poucos podem entender, de

uma arte que quase ninguém tolera, a pichação.Vista pelo poder público como poluição visual e vandalismo, a pichação sempre

esteve presente na história da humanidade. Geralmente usada para fins ideológicos, o ato de rabiscar muros era praticado por monges na idade média, que pichavam conventos de outras doutrinas, de modo a registrar suas idéias. Durante a Guerra Fria, o Muro de Berlim, simbolo máximo da cortina de ferro, tinha todo o seu lado ocidental (sob domínio americano) coberto por pichos e Graffitis em spray, enquanto o lado oriental, dominado pelo governo linha dura dos soviéticos se manteve impe-cavelmente limpo até a sua queda em 89, o que mostrava a opção dos blocos com relação à liberdade de expressão dada ao povo em seus territórios.

No Brasil, durante a época da ditadura, a pichação era intolerada e apenas uns poucos revolucionários de esquerda tinham coragem de se armar com uma lata de spray e desafiar a repressão. Com a queda do regime em 85, houve um aumento considerável de pichadores (principalmente nas grandes capitais, como São Paulo), que não mais propagavam ideologias políticas, mas que queriam deixar sua assinatura e sair do anonimato. Nessa época, os pichadores agiam sozinhos, apenas assinando seus nomes. Depois, começaram a se unir em mulas, as mulas a se organizarem em grifes, e seus integrantes a adotar pseudônimos em suas assinaturas, começou uma competição feroz que perdura até os dias de hoje para ver quem consegue mais ibope, tendo como métodos de desempate a audácia do pichador e a dificuldade apresenta-da pelo local atacado. Nesse contexto, pontes e beirais de prédios são os locais mais desejados, e quanto mais alto melhor, ficando por conta da coragem do pichador que quiser subir e se arriscar. Desde 98 que a pichação é considerada crime ambiental e

de vandalismo no Brasil, nos termos da Lei 9.605. A pena para os infratores pode chegar a um ano de detenção e multa. Porém, normalmente a pena nesses casos é abrandada, sendo comutada em prestação de serviço à comunidade por tempo vari-ável em cada caso.

Alheio a isso, entre os quatro jovens que sobem pelo elevador do Copan e se pas-sando por um dos mais de 5 mil residentes do edifício, está Kitty, um rapaz de estatura média e magrelo, cabeça da “Zona ? Loca”, mula conhecida na Zona Leste de São Paulo. Na mochila, ele carrega garrafas “pet” cheias de tinta, rolinhos, alicate para cortar cadeados e pé-de-cabra para o caso de encontrar alguma barreira pelo caminho. Já no final do percurso, um imprevisto: A partir do 35º andar, as portas têm alarme e a única maneira de se chegar ao topo é pela parte externa. Pergunto como eles fizeram e Kitty me responde com um sorriso de satisfação: “A gente subiu por fora oras”. Apesar do vento forte e da ausência de qualquer proteção, os quatro rapazes escalam a fachada, e alcançam o terraço do edifício para começar o trabalho. As tintas na cor clara são espalhadas aos poucos pelas paredes do telhado com a ajuda dos rolinhos, formando letras garrafais, destacadas pela cor acidentada da fachada suja do velho arranha-céu.

Para descer, mais uma vez é necessário se arriscar pela beira da fachada, escalar de volta até o 35º andar e de lá seguir para casa, com a sensação de “dever cumprido”.

Na sexta-feira, às 11 da manhã os rapazes sobem no edifício em frente munidos de máquinas digitais dispostos a retratar sua obra. Por questão de minutos não perdem a chance, pois os funcionários do prédio já haviam começado a limpeza. Apesar de a assinatura “Kitty” já estar meio apagada, “Zona ? Loca” ainda aparece bem visível, mas até o fim do dia, qualquer vestígio da aventura já estaria apagado.

Apesar do pouco tempo de exibição, a marcação do grupo e a assinatura de Kitty ficaram impressos na história do grupo, que em questão de dias era cumpri-mentado por centenas de outros pichadores da cidade inteira, tanto na internet quanto nos points.

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TEXTO: Flávio Faria FOTOS: Acervo pessoal/Divulgação

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Tudo, aliás, começa nos points. Nesses locais, geralmente praças, obviamente total-mente destruídas (com pichos até nas árvores) os pichadores se encontram, combinam rolês, comentam sobre os últimos ataques mais audaciosos e trocam folhinhas. Nessas folhas rabiscadas, constam as grifes, mulas, assinatura e prezas. “É como pobre dá autó-grafo”, brinca Kitty, que conta que pela quantidade de folhinhas que o cara distribui pelo point que pode se medir o seu prestígio: “Tem cara de longe que pede folhinha até pelo correio”, afirma. Com dia e hora para acontecer, os encontros nos points sempre acabam em rolês. “Quem vai para o point já vai “armado”, e de lá sai para o rolê atrás de vitima”, conta Nanico, de 22 anos, pichador há mais de sete, integrante do “Exagerados” e grifes “Os Podrão”, “União São Paulo” e “Os Superiores”. Baixinho e magro, Nanico já pixou em várias mulas e com outros pseudônimos, mas há alguns anos que mantém seu apelido, o único que sua mãe não descobriu. “Por causa dela, que sempre descobria e vinha brigar, eu ia sempre mudando, até que esse chegou e ficou”, comenta.

Segundo ele, os lugares são escolhidos geralmente no próprio rolê e a única regra é ser chamativo e durável “A preferencia é por lugares onde será difícil apagar e o mais alto possível, para dar mais visão e, conseqüentemente, mais ibope. Prédios e pontes são os mais procurados, mas qualquer muro pode ser alvo.” Entre as preferencias de Nanico, estão os muros ornados com pedras, cuja remoção é praticamente impossível e o dono “deixa do jeito que tá”, o que garante que o picho ficará por muito tempo, vários anos em alguns casos. Com o tempo, esses locais se tornam Sopas (com diversos pichos), ou Agendas (quando vários pichadores fazem todos juntos, com os nomes ordenados).

Para sair para rabiscar, o modo de condução varia muito entre esses jovens. Alguns preferem fazer a pé, limitando-se ao próprio bairro (muitas vezes à própria rua), Outros saem com os companheiros de bicicleta, ônibus ou moto, pela agilidade. Outros porém, preferem a comodidade de ir de carro. Encarado erroneamente pelas autoridades como uma travessura de adolescentes, a pichação é também uma atividade praticada por caras mais velhos. Kitty, por exemplo, tem 27 anos, dez deles dedicados a pintar muros sem autorização. Segundo conta, não há limite de idade: “Tem muito cara aí fazendo muito rolê que tem quase quarenta anos. Normalmente, esses são os que tem mais ibope”. Ní-vel social também não é barreira. Apesar de morar em São Mateus, bairro periférico de São Paulo, Kitty é dono de uma empresa e quando não está em cima de alguma casa ou empoleirado em algum muro, pode ser visto passeando com um Audi A3 pelas ruas do bairro. O porta-malas do carro de luxo ainda é abrigo para as latas, garrafas com tinta e rolinhos. Sempre a disposição, o material fica a espera de um muro limpo que possa eventualmente aparecer pelo caminho em suas andanças pela cidade.

Apesar de normalmente ser vista como uma atividade em grupo, a quantidade de pichadores em um rolê varia muito. O normal é saírem em dois ou três, mas podem ir até mesmo sozinhos, “Vai da coragem de cada um, mas não é bom andar em muitos, para não chamar a atenção”, conta Nanico. Um número maior de pichadores em um rolê também propicia ações mais audaciosas, difíceis de serem realizadas sozinho, como alcançar lugares mais altos sentando-se no ombro do parceiro (cadeirinha) ou ficando em pé sobre eles, muitas vezes chegando a ter três rapazes empilhados uns sobre os outros, em busca do topo de um muro, ou sendo segurado pelos calcanhares no beiral de um prédio, escrevendo de cabeça para baixo. Para eles, qualquer malaba-rismo é válido em busca do lugar que dê mais ibope. Para Nanico, o lugar mais difícil que já pichou foi uma escola no Taboão da Serra, em companhia do primo: “Foi difícil porque nós dois somos baixinhos, e nesse caso uma cadeirinha não resolvia o problema. Sendo assim, a única maneira de fazer em cima dos outros e ter mais des-taque foi escalar o muro pelo portão, engatinhar até o local, me dependurar com uma mão e fazer com a outra. Não adianta, para conseguir se destacar, tem que ter apetite. Nesse mesmo rolê, fizemos acima de outras duas janelas, pendurados no beiral, em frente a um fórum”, conta orgulhoso pela façanha.

Antes de sair para um rolê, é necessário preparar o material, e dependendo do estilo de ataque do pichador, são usadas armas diferentes. Entre os que preferem

fazer de Jet (Spray), a preferencia é pela marca Colorgin, Preto Fosco. Depois de adquiridas, as latas de aerosol são agitadas, viradas de cabela para baixo e pressio-nadas contra o chão, de modo que todo o ar sobressalente seja retirado, para não aparecerem riscos falhados na hora de pintar.

Quem faz de rolinho, compra (ou em alguns casos furta) bisnagas de tinta colorida, que são misturadas ao Cal (pelo custo baixo) para adquirirem a cor desejada. Outros, porém, preferem fazer sua arte usando frascos de Nugget (produto originalmente utili-zado para engraxar sapatos) preenchidos com tinta preta. Por conta da espuma na ponta do frasco, o risco fica mais bem dividido e concentrado. Existem ainda os que fazem rolê com giz de cera, preparado especialmente para isso. Depois de adquiridos, os gizes são derretidos, recebem tinta extra e cera de vela. Depois de seco, o bloco que se forma é dividido e passa a possuir um risco mais forte e mais difícil de ser removido do que os bastões originais. No geral, pichadores de giz e Nugget são mais independentes de mulas, embora existam Crews (grupos) entre os que fazem arte em cera.

Não é incomum ver muros infestados, com pichos em cera e tinta coexistindo, e para conseguir se destacar em um local já cheio de assinaturas, é preciso ter cuidado e respeito com aqueles que já passaram por lá. Atropelar o rolê de alguém é o motivo de 9 em 10 brigas entre os grupos. Tido como sinal de desrespeito, é normal que aquele que foi arrastado tire satisfação com aquele que atropelou. O julgamento nesse ponto é subjetivo, pois pichadores de estilos diferentes reconhecem uma hierarquia natural na arte. Em primeiro, vêm os que picham de jet (spray) e rolinho, depois os que fazem em giz e nugget. Por isso, nem sempre um arrasto acaba em “treta”, uma vez que quem faz tag, sabe que está arriscado a perder o lugar para uma assinatura em tinta. Em outros casos, porém, a ofensa pode tomar proporções gigantescas, que podem chegar a conseqüências extremas. Entre as retaliações por atropelar, o desrespeitado pode vol-tar ao local e reforçar seu picho em outra cor, pode chamar o responsável para trocar idéia no point e acabar com a briga ou começar uma rivalidade com o outro grupo, passando a atropelar todos os pichos da outra mula ou grife, o que pode acabar até em violência, dependendo do ibope e da quantidade de integrantes de cada grupo.. Não apenas atropelar é visto como desrespeito, “Sapar” (usar mais espaço para assinar do que um companheiro, ou não deixar espaço para que ele assine) também é mal visto pelos pichadores e inclusive motivo de uma das tretas mais lendárias do mundo da pichação: Os + IM (Os Mais Imundos) vs Os RGS (Os Registrados).

Segundo Nanico, a história tem diversas versões, mas que ele conheceu apenas uma como a verdadeira: “A lenda da treta entre as duas grifes que é contada até hoje nos points diz que o Negão, cabeça d´Os Mais Imundos estava em cima de um prédio e sapou o beiral, engolindo o espaço reservado ao Telo, cabeça dos RGS. No dia não aconteceu nada, mas dias depois o Telo, com raiva de ter sido sapado, foi lá e picou o rolo em cima da pichação do Negão. A partir daí, começou a maior treta de todos os tempos no mundo do picho, com as duas grifes se atropelando pelos muros da cidade. O resultado dessa treta foi a morte do Telo, por alguém da grife dos + IM e em seguida o Preto, que assinava “Anikiladores” também foi morto por um integrante da grife dos RGS. Até hoje existe treta entre eles, não mais como antigamente, mas ainda rola.”

Além disso, atropelar outro picho sem permissão do cabeça da mula ou da grife pode fazer com que o pichador seja espirrado da mula, ou que a mula seja espirrada da grife. Outros motivos também podem levar à expulsão, como não saber fazer di-reito as letras da mula ou o simbolo da grife, não pichar frequentemente ou “ramelar” (fazer feio ou em lugares sem destaque). Se fizer tudo certo, com regularidade e em lugares difíceis, o ibope do pichador só tende a aumentar, crescendo o nome da mula, assinando novas grifes ou mudando para outro grupo que tenha mais ibope. Picha-dores iniciantes geralmente assinam somente seus pseudônimos, passando a assinar algum grupo somente depois de ter conseguido algum prestigio. Porém, isso não é via de regra. “Depende da relação que o cara tem com o cabeça de algum grupo. Se forem amigos, normalmente não é necessário ter ibope. Caso contrário, o cara tem que ter

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sim um nome na pichação para o dono da mula confiar e deixar um cara novo assinar seu grupo e suas grifes”, explica Nanico, que começou nesse mundo por sua própria vontade, sem influencia de ninguém. “Comecei através de mim mesmo”, faz graça e explica: “ Sempre gostei de rabiscar as carteiras da escola e descobri que tinha um dom pra isso. Como minha mãe não me deixava sair muito na época, eu pichava a escola mesmo. Por causa disso, comecei a fazer amizade com os pichadores de lá e um dos caras, o Heroy, era cabeça do grupo Instinto Natural e me deixou assinar. Depois disso, comecei a fazer em muros, depois janelas e berais”, Conta entusiasmado.

Por ser uma transgressão à lei e um vandalismo ao patrimônio de outras pessoas ou do Estado, fugir da policia e eventuais seguranças ou proprietários estressados é praticamente uma rotina na vida de quem gosta de de sair de casa para rabiscar.

Para tentarem se esquivar da policia, enquanto um está pintando, pelo menos um dos que participam do rolê fica de vigia. Nesses casos, é comum que um dos integrantes assine pelo outro que está encarregado da vigia. Porém, nem sempre a vigia adianta e todo pichador fatalmente irá “rodar” (ser pego) um dia. Quando isso acontece, dificil-mente os jovens são levados à justiça para serem apenados, em vez disso, os policiais ou eventuais seguranças dos locais atacados preferem dar banhos ou fazer beber a tinta utilizada, obrigar a repintar o local ou somente bater nos envolvidos. “Certa vez, depois de fazer nossa assinatura no muro de um restaurante, eu e um amigo fomos seguidos pelos seguranças armados do local, que nos obrigaram a voltar. Não apanhamos nesse dia, mas eu perdi uma camiseta nova limpando o chão sujo de tinta. Também tivemos que pintar o muro de novo, mas deu tudo certo, acabamos até “amigos” dos seguranças, que nos convidaram a voltar lá depois para um café” conta e dá risada.

Arte?No dia 11 de junho, às 21:00, cerca de 40 pichadores compareceram ao metrô Vila

Mariana. De lá, sob a liderança do então universitário Rafael Augustaitiz, de 24 anos, seguiram para o Centro Universitário de Belas Artes. Lá, Rafael era estudante do curso de Artes Visuais e tinha um TCC (trabalho de conclusão de curso) para apre-sentar. No Centro, foram reservados três espaços para a exposição dos 37 trabalhos da turma de Augustaitiz. 36 alunos usaram esses espaços para a publicação. Todos, menos Rafael, pichador desde os 13 anos, que tinha algo diferente em mente. Segun-do ele, seu trabalho seria uma “intervenção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte”. Com isso em mente, tratou a recrutar jovens com idade entre 15 e 25 anos nos points da cidade. No dia, todos estavam ansiosos para mostrar sua “arte”. Muitos deles não tem curso superior, mas em poucos minutos, participariam de um trabalho de conclusão de curso. Assim que alcançaram o Centro Universitário, ves-tiram máscaras usadas em pinturas com compressor ou improvisaram outras usando as próprias camisetas, sacaram os jets dos moletons e começaram a devastação pelas paredes, escadas, salas, corrimão e painéis de aviso. Empilharam-se sobre os ombros uns dos outros e alcançaram as fachadas. Uma das funcionárias, Débora Del Gaudio, de 30 anos, tentando parar a ação foi atingida por um jato de spray no rosto. Minutos depois da “ação”, como Rafael classificou a investida sobre as instalações da institui-ção, os seguranças interviram com violência, transformando o local em uma panca-daria generalizada. Apenas dez minutos depois de começado o ataque, cinco carros da Policia Militar chegaram ao local. Ao ser empurrado para dentro do camburão, Augustaitiz gritava “Olha aí, registra, isso é um artista sendo preso.”

O dia 12 de Junho começou no 36º distrito para o estudante e outros seis compa-nheiros, acusados de vandalismo. Menos de 24 horas depois do ocorrido, não havia nem sombra da ação do grupo de Rafael. Tudo estava limpo e os estudantes da sua tur-ma se reuniriam para “processar esse trauma”, segundo afirmou a artista plástica Helena Freddi, coordenadora do curso de Artes Visuais, que classificou os eventos do dia ante-rior como um “um ato de vandalismo que extrapolou os limites da ação civilizada.”

Para se defender, Rafael escreveu um texto de 28 páginas intitulado “Marchando

ao compasso da realidade”. Nele, o estudante não apenas se justifica, mas desafia os limites da arte e faz pouco da faculdade (onde era bolsista integral em um curso de R$ 900 de mensalidade) que acabara de expulsá-lo. “Somos abusados? Que se foda! É um orgulho para vocês eu estar dentro dessa podre faculdade. Não sou seu filhote, não preciso do seu aval. A arte hoje em dia é para quem está na pegada. Para os bun-da-moles ela morreu faz é tempo.” Em nota, a faculdade mostrou-se decepcionada com o aluno, principalmente por ser um bolsista: “A Direção do Centro Universi-tário só tem a lamentar que um aluno beneficiado com bolsa de estudos durante sua vida acadêmica tenha agido de forma tão rude e grotesca com a instituição que lhe recebeu de braços abertos e protagonizado cenas tão assustadoras para os seus colegas, professores e auxiliares de administração escolar, bem como esclarece que a missão de prestar ensino a quem dele necessitar mediante concessão de bolsa de estudos não foi (nem será) afetada pelos atos criminosos praticados por aluno bolsista”.

À época, a imprensa classificou o ato como vandalismo. Blogs e foruns da Internet fervilharam de opiniões daqueles que eram a favor ou contra o ato do aluno ou da represália da entidade de ensino. No site Canal Contemporâneo (www.canalcontem-poraneo.art.br), por exemplo, o internauta Carlos Pessoa Rosa critica duramente a Universidade e a imprensa pelo tratamento dado a Rafael e sua turma. Segundo Rosa, os “garotos atingiram o objetivo, nota dez para o trabalho final de curso daquele que organizou o Coletivo e questionou o papel da instituição que se diz - sim, se diz - das ARTES. Triste a posição da escola, dos alunos e da coordenadora do curso que ainda vivem um conceito de ARTE enquanto algo etéreo e oriundo dos Deuses. Ainda há esperança... Não da instiuição, mas da reflexão e do questionamento provocada por esses jovens. Ainda há uma saída digna para o Instituição, qual seja, retirar qualquer queixa e passar o aluno com louvor.”

A maioria, porém, foi contra, dizendo haver limites para a manifestação da arte, mesmo em espaço acadêmico. Nesse ponto, foi aberta a discussão entre alunos e não-alunos sobre se a pichação poderia ser considerada arte ou se seria apenas a veia transgressora e vândala do Grafitti. Na opinião de Nanico, a pichação pode sim ser considerada arte, mas muito diferente do Graffiti. “Eu sempre usei a pichação como minha arte, pois envolve talento e agilidade. É uma arte proibida e muitos nunca vão entender. Só mesmo um pichador saberá dar valor a um trabalho bem feito, em con-dições muitas vezes difíceis, onde acima de tudo é necessário ter agilidade. A meu ver, qualquer manifestação de arte é direcionada àqueles que se impressionam com ela. No caso da faculdade, acho que o sentido foi atingir a instituição, a direção do curso, afim de mostrar para todos uma forma diferente de se expressar, a partir do olhar de alguém que considera aquela manifestação uma coisa válida.”

Quanto ao Grafitti, na visão do pichador, seria uma ramificação dessa arte, que muitos transgressores talentosos encontram para que sua arte seja aceita. Muitas ve-zes cansados de viverem à margem da lei e querendo viver do talento que nasceram, muitos pichadores escolhem uma profissão que se encaixe, nem que seja de modo re-moto, ao ato de pichar. Usam o talento que têm para deixar marcas como profissão.

“No fundo, acho que isso parte de cada um. Muitos dos grafiteiros em atividade já foram pichadores um dia. Porém, com o talento que desenvolveram, começam a praticar atividades diferentes, mas relacionadas a isso, deixando para trás o “Hobby” de pichar a cidade para começar a ganhar dinheiro com o que faz. Sendo assim, muitos deles passam a fazer propagandas em muros e desenhos na porta de comércio, viram desenhistas ou começam a trabalhar até com tatuagens. Um grande amigo meu, que inclusive foi quem me apelidou de Nanico, hoje é tatuador, e muito conceituado no bairro.”

Arte ou não, crime ou travessura, a pichação de qualquer maneira é vista como um estilo de vida para esses rapazes, que não se importam em arriscar a vida ou em causar prejuízo para a sociedade ou o sistema. Perguntado sobre como se sentiria caso sua casa fosse pichada por outra pessoa, Nanico dá risada e responde na lata “Se eu conhecesse o vândalo, ficaria puto.”

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De volta à noite fria e chuvosa em al-gum lugar da Rua Augusta no centro de SP. Após abrir a terceira cerveja, entrevistado e entrevistador, não bê-bados de falar torto, mas já alegres

a ponto de pensar menos no que expelir pela boca, continuam a conversa:

− Estou tentando lembrar uma pergunta que eu ti-nha em mente aqui, mas não esto conseguindo!

− Vamos em frente que depois vamos encaixando, olha só eu fico bêbado rápido.

− Isso é legal porque ai você vai...− Cuspindo tudo! É jornalista, eeeeeee jornalista.

Um Quarto(EP 2002 – Dead Fish)

Progresso e paz / quatro canais a mais que ontem / não consigo perceber / estou tentando entender o que quer o 4º poder / respaldar o que não nos serve de nada / mas sim devo fazer, se a verdade está na tela, matar, chorar, linchar / me sinto melhor que antes pois faço o que manda / cada dia da semana, nas quatro temporadas / dia 4 quarta feira, abril, mais campanha, aprendi q pelos seus olhos devo odiar os guer-rilheiros da colombia, os que morreram na Nicaragua, Hon-duras, Guatemala, pois eles, eles sim devem morrer / Devo me conformar! legítimo é você / por mais 4 anos prometo, por mais 4 gerações lhe obedecer, me resignar, sobreviver...

− A mídia manipula?− Nós manipulamos, só que a mídia tem um poder

maior.− E as mídias alternativas têm alguma voz? Pegando

o zine como exemplo, você acha que o zine ainda tem voz nos dias de hoje?

− Tem sim, não massivamente, mas tem sim. Eu aprendi muita coisa lendo zine, mais do que lendo livro da faculdade! A quantidade de informação que eu con-segui lendo zines nos anos 90 fez uma diferença brutal na minha vida.

− Isso meio que acabou hoje com a Internet, não?− Ainda tem uns caras chatos que preferem fazer

a coisa em papel mesmo, pra ter algo físico, e faz uma diferença até, não fica tão cansativo pra ler. A

O Homem Só- Parte IIImídia alternativa tem um poder sim, não massivo, mas tem. Mas as vezes é a mesma merda que a mídia grande.

− Lembrei, no começo da entrevista você falou que baixava filmes pra assistir, como você vê essa questão da pirataria?

− Acho a palavra engraçada hoje. Baixar música é ha-bito e não vejo como pirataria, nos termos que a palavra é colocada hoje já não faz mais sentido.

− O que quer o quarto poder?− Quer poder, o que um poder quer alem de mais

poder? Só poder! Ter tudo sobre poder, e dinheiro. Ter poder para viabilizar, não necessariamente o cara vai ficar a espera de poder para viabilizar uma coisa po-sitiva demais. Ele vai tirar ele do plumo, puta! Já to começando a falar um monte de merda, to ficando bêbado e a culpa é tua Junior!

− Hahaha, Vamos falar de Meio Ambiente então, já estou meio bêbado também.

− Paz Verde!

Enquanto o índio e o povo são massacrados / por todo mundo se vociferou / aquele povo, aquela gente / pulmão do mundo, tudo que sobrou / Destroem por maldade os imbecis / São o próprio diabo de nossa religião, malditos pobres / Malditos imundos que não sabem lucrar / pedem dinheiro pra se endividar / Vamos criar uma instituição / uma insti-tuição nacional pois o verde queremos salvar // Paz verde!! / Hipocrisia mundial!! / Seus bancos a cobrar /meu povo a morrer... / Não me venha com retórica terceiro mundista / seu incompetente miscigenado / a culpa não é do capital! / O meu império ecologista sabe lucrar / sabe vender e o que é melhor / a selva foi internacionalizada / Índio iludido pen-sou que fosse melhorar / todas as bandeiras (do G7) estavam lá! / Mas o que se viu foi mais uma divisão / índios tiveram que financiar suas ocas em bancos silvestres // Paz verde!! / Hipocrisia mundial!! / E o FMI? / E os juros a pagar?! / Tal-vez se não tivéssemos sido colonizados / e se tivessem deixado o índio em paz.... / mas depois desta retórica suja, sectária e desumana / foi você que nos ensinou / a comprar / a vender / e a lucrar!! / Paz verde!! / Hipocrisia mundial!! / Vocês a consumir / e nós a produzir....

− Mas essa música fala mais da questão dos índios, não só do meio ambiente.

− Tem uma música nova que vai entrar no CD novo que chama “Quente Pra Caralho”.

− A questão do aquecimento global.− Não só! E a questão do... a primeira frase é “Meus

pés não me conduzem mais pra onde quero / Pra tra-balhar eu vou pagar bem caro nessa bota de ferro / As ruas da cidade vertem rios de uma sopa preta / Onda de calor refletida num deserto vertical”. Fala de nós, to-mando um rumo terrível, e agora pra tentar dar a volta, achar um retorno...

− É impossível.− É só pelo colapso.− Vegetariano ou Vegan? − Sou vegetariano desde os 17, graças a um Vegan.− O que você acha disso tudo, veganismo, Straight

Edge?− Acho positivo, apesar da segmentação na cena che-

gar ao cume quando eles apareceram. Mas é positivo, não usar drogas, principalmente não comer bicho. É positivo você querer assumir riscos e conseqüências só com sua cara (bate na cara). Acho isso legal!

− Na revista nós temos uma pauta onde um veganista diz não tomar o remédio para o coração, que ele precisa pra sobreviver, porque o remédio tem alguma “parada” animal. Se isso acontecesse com você, o que faria?

− Eu usaria o remédio! Se você quer fazer alguma di-ferença tem que estar vivo pra isso. E eu não quero ser assim: o cara que varre a formiguinha na frente dele. Eu acho o veganismo maravilhoso, já até tentei ser algu-mas vezes, mas é complicadíssimo porque a industria alimentícia esta toda embasada na exploração animal. Seria maravilhoso se todas as pessoas no mundo se tornassem vegetarianas, ou vegans, seria bom ecologi-camente, mais florestas, menos bichos morrendo, mais investimento em diversificação agrícola. As pessoas pensam “o cara é vegetariano, só come soja”, não neces-sariamente. Os caras falam “você é vegetariano, qual a diferença de mim? eu incentivo o pasto, você incentiva a monocultura de soja”. Não! pêra ai, eu não como só soja. Seria muito utópico da minha parte dizer que eu gostaria que a industria de produção de carne acabasse e se tornasse outra coisa. Economicamente, eticamente e politicamente o vegetarianismo é maravilhoso, isso sem ter que mencionar uma palavra, sem ter que dizer “A”.

− Falando em “A”, o que é o lado B pra você?− É o contrário do lado A, a partir do momento que

ele virar não é mais lado B, é lado A. Eu não boto tanta fé na vanguarda, nem nas alternativas. Boto fé em mim, em você e nele (aponta para o cara ao lado). A vanguar-da, a massa, a criatividade única. Eu acho que tem que ter, mas não acho que deva ser levada a sério não.

− E quem é ele (aponta para o cara ao lado também)− Vitor Saleno, meu vizinho, moramos na mesma re-

gião. Ali (aponta para um ponto mais abaixo na rua) vai ter o parque da Augusta onde os caras estão querendo construir um prédio. Estamos aí pra não deixar que isso aconteça!

− Vamos botar fogo em todo mundo. Vitor comenta.− Vocês tem feito alguma coisa com relação a isso? − Na verdade tem uma mulher que se candidatou a

vereadora pelo Partido Verde que conseguiu que o par-que não se tornar-se um Wall-Mart - Responde Rodrigo - Isso já foi lindo. E agora espero não virar um condomí-nio, que é o que da mais grana no final das contas. Não sei se ela vai botar a cara lá, mas agente põe. (risos)

SaideraCanção para Amigos(Sonho Médio – Dead Fish)

As vezes penso que foi tudo em vão / Parei pra pensar tan-tos anos depois / Se lembra quando éramos mais jovens / E tudo parecia ser mais fácil // Acho que crescemos demais / Aconteceu o que temiamos / Não vamos mais nos entender / Se foi a natureza ou o sistema só o tempo, dirá // Vou seguir meu caminho / Lutar pelo o que insisto em acreditar / Vou tentar entender os seus / Desculpe dizer isso mas parece que você se vendeu // Mas que te traga paz / Leveza e força pra continuar / A vida é mesmo estranha / Nada é mais para sempre // Espero um dia poder sentar ao seu lado / E gordos e conformados podemos rir / Que nossos questionamentos não tenham sido em vão / Espero que algo tenha mudado até, en-tão // Somos adultos demais / Caminhos opostos individuais / Tempo de crise e muita confusão / Queria lutar junto com você mas parece que não // Se canto esta canção / É porque ainda tenho fé / Mas meu sorriso é tão forçado / É porque não estou em paz nem ao seu lado // Se não sentirmos nada / Devemos tentar viver / E se o sistema nos separou / Tentar nos entender // E continuar a acreditar / Que o melhor é dialogar

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TEXTO: Wagner Creoruska Junior FOTOS: Acervo Pessoal

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O Homem Só- Parte III

/ Mesmo de longe te evitando / Te considero um irmão / Se tenho dúvidas demais / Por isso escrevo esta canção

− Foi feita pra alguem em especial?− Não, foi uma coisa pra mim. Era um momento que eu

estava me tornando um jovem adulto e as pessoas estavam tomando rumos que eu não achava legal na vida delas mas que eram os rumos certos pra elas. Largar uma banda e arrumar um trabalho, entrar na faculdade e arrumar um estágio, se tornar uma pessoa mais séria, cortar o cabelo, fazer a barba, usar perfume. Pra mim isso não era legal, mas para elas era. Tá acabando a porra do diurético! (risos)

− Hahaha! Deixe uma mensagem pra quem vai ler a Lado B (Na época seria esse o nome da revista).

− O nome da revista vai ser lado B? Nossa, eu falei mal do lado B agora pouco! (risos)

− Hahaha! Mas ta certo, tem que ser sincero mesmo!− Olha pessoal, vocês que vão ler a Lado B por favor,

quando vocês pegarem seus vinis comecem sempre pelo lado B! Eu fazia isso quando era mais novo.

− O labo B é sempre mais experimental, o lado A tem toda aquela coisa de mostrar o sucesso, o mainstream.

− É, mas tem que levar em conta que o lado A é sem-pre o lado de mais empenho. O lado B é uma música mais desencanada.

− Esse lance era sempre motivo de briga entre os Be-atles – Comenta Vitor – Tanto é que, no Abbey Road o lado A fico com o Lennon e o B com o McCartney.

− Antes era só o Paul não é? - fala Rodrigo. Eu não conheço nada de Beatles cara.

− E o lado B do Abbey Road é fantástico heim! - Co-mento. Tem aquele middley com trechos de diversas mú-sicas, muito lindo. E se você for ver, apesar do lado A ter fi-cado com o Lennon tem música ali que ele admitiu depois que detestava, a Maxwell's Silver Hammer por exemplo.

− Ah, tem muita música no “Um Homem Só” que eu não gosto também. Cara, nunca ouvi o Abbey Road.

− Você não sabe o que é vida rapa! - Ri Vitor – Eu ouvia muito Beatles por causa do meu pai.

− Eu também. - Complemento− É cara, meu primeiro vinil foi dos Beatles. - Rodri-

go - Uma coletânea da BMG que tinha Help, Ticket To Ride, só os sucessos. Aí saca o que aconteceu: eu tinha oito anos e tava brincando na rua de cima, morava na rua de baixo, e levei o vinil para os moleques ouvirem. Só que eu acabei tendo que descer a rua correndo porque minha mãe me chamou e eu cai, o vinil arranho no chão, joguei fora e nunca mais ouvi Beatles. É legal essa coisa da geração de vocês, parece que vocês tem mais curiosi-dade. É uma geração mais generosa, no sentido de ouvir tudo e considerar sempre pontos positivos em tudo. É mais curiosa por muito pouco tempo. Vocês são mais curiosos do que eu fui, eu gostava só de punk/rock cara.

− Mas isso é da idade cara, teve época que eu só ouvia

metal, e era metal e metal e metal. - Respondo− É bom estar em São Paulo porque você tem mais

acesso que muita gente no Brasil. Eu por exemplo! De 93 a 98 eu recebia mais de 20 zines: Água, Papacapica, A-Zine, e outros que viraram meio históricos. A mole-cada não precisa mais disso hoje.

− A galerinha vai no Vitrine, usa roupinha de moda, bebe. - Vitor

− Ah mas e os hippies na década de 60 usavam drogas como moda, se bem que na época a droga servia mais como contestação. - pondera Rodrigo.

− Hoje a galerinha usa droga e álcool pra se encaixar no grupo. Se você for no Vitrine e não beber você é um chato Straight Edge – Vitor.

− Mas essa postura de velho que é chata. Hoje meus amigos velhos falam “Aaaaah! acabou! É, já era..aqueles bons momentos”. Meu, simplesmente não aconteceu como agente queria! Ponto. Aconteceu diferente do que tínhamos em mente. E sinceramente o que tínhamos em mente seria muito chato se tivesse acontecido hoje.

Depois de desligar o gravador ainda rolou a saidera e alguns outros assuntos: um casal que, mais ao fundo do boteco, só faltava se beijar ao som de “Amor I Love You”, acabou rendendo boas risadas, a história de uma rixa entre alunos de filosofia da USP com os da Ma-ckenzie que gerou o confronto histórico da Rua Maria Antônia, falar de barba e toda possível filosofia por trás de usá-la, entre outros assuntos. Deixo aqui meus since-ros agradecimentos ao Rodrigo e ao Paulo, vocalista da banda Hurricanes (www.purevolume.com/hurricanes) que me ajudou a conseguir o contato para a entrevista.

− Na Alemanha cara! Eu tenho um traço meio pales-tino, se eu deixar minha barba crescer amanha ela já ta igual a sua (risos). Sou muito misturado, e nós estava-mos em um carnaval na Alemanha em uma cidade que fica perto da Holanda. É onde acontece a festa por lá.

− Vai mais uma aê? Pergunto.− Não tô sossegado.− Vamo ae pô!− Demoro! Então, estava lá e cara, aquele era o carnaval

mais monótono que eu já vi na minha vida. Os caras tem uns bloquinhos que ficam “ta tarara ta tarara ta tarara”, tem o rei, a rainha, uns brancos horríveis. E tinha o bloco dos loucos que fizeram o show do Dead Fish e era zoando horrores. Tinha muitos velhinhos, daí entrou um senhor de bigode e eu estava com uma mochila nas costas cheia de camisetas, CDs. E lá você sabe que é assim: o alemão quando é direita ele é de direita mesmo! Nazi, e lá não tem muita tradição, veio de colônia, é meio progressista, liberal. Mas esse lugar era um vilarejo e eu estava comendo batata com mostarda quando o cara entrou e falou assim: “É você que traz as bombas?”. Eu olhei pra ele e falei assim “Não, eu sou da América do Sul, eu trago as drogas”.

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Pequenas correções...

Quem construiu Tebas, a das sete portas?Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras?Babilônia, tantas vezes destruída,

Quem outras tantas a reconstruiu?Em que casasDa Lima Dourada moravam seus obreiros?

No dia em que ficou pronta a Muralha da China para ondeForam os seus pedreiros? A grande RomaEstá cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quemTriunfaram os Césares? A tão cantada BizâncioSó tinha paláciosPara os seus habitantes? Até a legendária AtlântidaNa noite em que o mar a engoliuViu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias Sozinho?César venceu os gauleses.Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?Quando a sua armada se afundou Filipe de EspanhaChorou. E ninguém mais?Frederico II ganhou a guerra dos sete anosQuem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.Quem cozinhava os festins?Em cada década um grande homem.Quem pagava as despesas?

Tantas históriasQuantas perguntasPerguntas de um operário que lê – Bertolt Brecht

...acerca do fantástico relato da saga dos imigrantes japoneses em sua aventura ao país mais cortês e receptivo do mundo

O que há de errado com a história?A história oficial, aquela que vai para os livros escolares e serve de guia para as gera-

ções futuras, está repleta de erros grosseiros. Em nome da exaltação da pátria, da ma-nutenção dos heróis nacionais e a glorificação dos governos, alguns fatos são, digamos, levemente modificados. Essa espécie de eufemismo, usado para o embelezamento da realidade, já foi usado muito mais do que imaginamos pelos historiadores, que fazem constar nos livros, por exemplo, a justificativa de que a vinda da Família Real Portugue-sa ao Brasil se deve a uma decisão extremamente difícil, já que o Rei Dom João VI se viu numa situação delicada, e para se manter durante o exílio, se viu obrigado a confiscar as riquezas da pátria. O que não foi dito neste caso é que no cagaço de ser aprisionada e posta à mercê de Napoleão, nossa nobre Família Real já havia planejado o saque com bastante antecedência, e durante a fuga na calada da noite, as instruções deixadas para a Junta Governativa do Reino foram as de que, “o quanto possível for”, deviam procurar conservar em paz o Reino, recebendo bem as tropas do Imperador Napoleão. Ou seja, algo como: “O último a sair, apague as luzes. Fui”.

Outro fato notório, e que nos é ligeiramente modificado, envolve o ilustre Joaquim José da Silva Xavier, popularmente conhecido como o Tiradentes. Na necessidade de se criar um herói nacional, ensina-se nas escolas que o destemido líder da In-confidência Mineira foi um mártir, um símbolo da resistência mineira que lutava a favor da liberdade, tal qual um “William Wallace brasileiro”. O que esqueceram de nos avisar é que o pobre do dentista serviu apenas como um laranja, pagando o pato por uma insurreição elaborada pelas classes mais abastadas das Minas Gerais contra o pagamento de impostos. E para dar um toque de santidade, costuma-se retratar seo Joaquim como um homem cabeludo, de barba longa e em vestes brancas, assim como você-sabe-quem, embora, como militar, ele não pudesse ostentar barba e cabeleira, e muito menos como prisioneiro, já que estes, por causa da infestação de piolhos, tinham os pêlos raspados constantemente.

O que dizer então do triunfal grito do Ipiranga? Descrito no hino nacional como “o brado retumbante” de “um povo heróico”, dizem as más línguas que por causa de um surto de cólera que assolava a região na época, Dom Pedro estaria sendo acome-tido por uma terrível diarréia, tendo utilizado as margens plácidas do Rio Ipiranga naquele dia para aliviar-se. Sendo assim, o grito de independência na verdade teria sido um sussurro ou, quando muito, um gemido. De qualquer forma, o melhor, mais bonito e mentiroso registro que se tem do ato é aquele retratado por Pedro Américo no quadro Independência ou Morte, de 1888. Isso pelo simples fato dele ter sido um

TEXTO: Fabio Almeida FOTOS: Divulgação/acervo pessoal

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plágio, ou melhor, livremente inspirado na tela “Batalha em Friedland, 1807”, de Ernest Meissonier. Ironicamente, trata-se da representação de uma batalha vencida por Napoleão, aquele mesmo que obrigou a Família Real Portuguesa a confiscar o conteúdo dos cofres lusitanos e vir para cá.

Por fim, ainda são muitos os exemplos de erros históricos, mas vamos direto à parte que nos interessa – a chegada dos nipônicos em solo nacional. Em pleno ano do cente-nário da chegada do Kasato Maru ao porto de Santos, muitos fatos continuam desco-nhecidos do grande público. Durante sua visita ao país esse ano, o príncipe Naruhito, discursando em português, agradeceu à hospitalidade brasileira durante estes cem anos. Porquê? Talvez, nem ele mesmo saiba o que aconteceu. Mas não vamos estragar as sur-presas, confira você mesmo a saga da trajetória japonesa em território tupiniquim.

A chegada

A história como costuma ser contada...Cem anos atrás, chegavam ao Brasil as primeiras famílias de imigrantes japoneses, a

bordo do majestoso Kasato Maru. O navio, outrora chamado Kazan, era de domínio russo, e foi utilizado na guerra russo-japonesa como navio-hospital, tendo passado para o lado nipônico como uma espécie de indenização ao final do conflito. Os anos seguintes revelaram algumas dificuldades na terra do sol nascente, já que a agricultura não era tão avançada, e as colheitas mal eram suficientes para abastecer a demanda imediata, ex-cluindo a possibilidade de se estocar víveres quando o rigor do inverno assolasse o país.

Foi aí então que o honorável Imperador Meiji (que pode ser traduzido literalmente como o imperador iluminado) resolveu estreitar laços com o Ocidente em busca de uma nova era de modernidade e prosperidade. Enquanto as condições não melhora-vam, o agora renomeado Kasato Maru traria um seleto grupo de súditos à América do Sul, onde eles se instalariam até que a ordem se instaurasse. Agora, depois de ter carregado tantos feridos de guerra, e presenciado tantas mortes, o gigante de aço seria palco apenas de histórias alegres, transportando esperança, com os imigrantes que viriam para cá através de um tratado de ajuda, onde os complacentes brasileiros prontamente se dispuseram a abrigar os cidadãos da nação amiga em apuros.

As novas famílias que aqui chegavam se deparariam com o paraíso, um povo caloroso e de braços abertos, todos curiosos em conhecer seus irmãos do Oriente, tão diferentes em aparência e hábitos. O porto de Santos fervilhava de emoção no dia 18 de junho de 1908, quando do desembarque das 781 pessoas pertencentes a 165 famílias. Após 52 dias de viagem, nossos irmãos de olhos puxados finalmente pisavam em terra firme, e eram recebidos de forma gloriosa e triunfal, sob aplausos efusivos e uma multidão curiosa que abanava lenços brancos em sinal de receptividade aos novos vizinhos.

Depois, as famílias foram encaminhadas para as cidades já pré-estabelecidas no acordo, onde receberiam do governo seu punhado de chão, de onde puderam retirar o sustento e, enfim, prosperar no país. A nova terra era tão boa que a grande maioria resolveu ficar e estreitar laços com os amigos ocidentais, criando aqui a maior colônia japonesa do mundo.

...e como realmente aconteceu:Cem anos atrás, embora já houvesse centenas de japoneses no país, chegavam ofi-

cialmente ao Brasil as primeiras famílias de imigrantes, conforme o acordo firmado no ano anterior, a bordo do remendado (mas ainda assim majestoso) Kasato Maru. O vapor, utilizado pelos russos como navio-hospital em sua guerra contra os nipônicos, foi afundado pelos torpedeiros japoneses, que depois o recuperaram das águas não muito profundas de Port Arthur.

Anos depois do conflito com os russos, surge outro problema: a superpopula-ção japonesa. Com muitas bocas para alimentar, vem a escassez de alimentos, já

que a agricultura, de métodos precários naquela época, atendia apenas à demanda imediata. A iminência de uma catástrofe faz com que o imperador Meiji adira ao capitalismo ocidental, extinguindo o sistema feudal e o xogunato. Com o início da fase industrial, Meiji ajuda a modernizar o maquinário agrícola ao implementar a reforma agrária, mas impõe aos camponeses o pagamento de tributos em dinheiro (ao invés de recolher parte da colheita, como anteriormente), o que torna a situação insustentável a muitos dos habitantes rurais. Era preciso então achar uma saída, de modo que se providenciasse algum lugar para onde mandar o excesso de população que não conseguia se auto-sustentar.

Enquanto isso, do outro lado do mundo, a situação também não era muito favorável pelos campos brasileiros. Com a recém-assinada Lei Áurea, os escravos, depois de anos de exploração, passaram a ser donos de seus próprios narizes (e de todo o resto de seus corpos castigados). Com isso, uma crise de falta de mão-de-obra se alastrou pelo país. Era preciso então achar uma saída, um jeito de arranjar gente desesperada e disposta a trabalhar por um prato de comida. Voilà. Foi nesse contexto que chegaram os japoneses do Kasato Maru.

Os primeiros cinqüenta anosLogo de chegada, os imigrantes não eram bem vistos no Brasil. Em 1907 houve a

tentativa de se formar uma colônia agrícola nipônica na fazenda Santo Antônio, no Rio de Janeiro, que fracassou devido ao ‘lote ruim’ de trabalhadores que foi enviado. Ao invés de lavradores, o grupo era formado por professores, médicos, advogados e funcionários públicos, todos sem experiência no campo. Isso conferiu aos japoneses a má-fama de ‘imprestáveis’, sendo considerados inferiores aos brasileiros, tanto inte-lectual quanto fisicamente. A revista carioca “O Malho” chegou a publicar uma char-ge com a seguinte legenda em dezembro de 1908: “O governo de São Paulo é teimoso. Após o insucesso da primeira imigração japonesa, contratou 3.000 amarelos. Teima pois em dotar o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa”.

Mas a necessidade de se manter trabalhadores nas colheitas de café falava mais alto, e o fluxo de imigrantes continuou pelas cidades do interior paulista, principalmente com a entrada do Japão na Primeira Guerra Mundial, em 1914. E esse número só aumenta-va, até a década de 30, quando o governo brasileiro começou a botar em ação a política de ‘embranquecimento’ da população, limitando a chegada de imigrantes gradativa-mente. Durante as reuniões no congresso nacional, entre os elogios recebidos por parte de nossos amáveis e corteses ministros, estavam os singelos pedidos do “fim da imigração dos degenerados aborígines nipões”; e de Francisco Campos, na época ministro da Justiça, o seguinte discurso: “seu padrão de vida desprezível representa uma concorrência brutal com o trabalhador do país; seu egoísmo, sua má-fé, seu caráter refratário, fazem deles um enorme quisto étnico e cultural localizado na mais rica das regiões do Brasil”.

A desconfiança e o preconceito se agravariam ainda mais alguns anos mais tarde, com a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial, e seu posicionamento contrário ao do Brasil. Durante esse tempo, virou rotina para imigrantes vindos dos países do grupo do Eixo, como italianos e alemães, ter a casa invadida pela polícia e ser levado à delegacia para detenção provisória, sem prévia acusação. Alguns chegaram a ser isolados em espécies de campos de concentração, inclusive na hospedaria onde hoje funciona o Museu do Imigrante, no Brás.

Os cidadãos estrangeiros tiveram os direitos cassados, com a proibição de viagens interestaduais e do aprendizado de línguas estrangeiras, bem como a apreensão de qualquer material escrito e aparelhos de rádio. Para conservar antigos livros de famí-lia, muitas pessoas os enterravam no quintal de casa. Era proibido dirigir, mesmo sen-do proprietário do veículo. Nas ruas, por causa do posicionamento japonês na guerra, muitos cuspiam e xingavam os passantes. Em casos mais graves, alguns chegaram até a apanhar. Mas isso está longe de ser a pior parte.

Com o final da guerra, em 1945, e a rendição do exército japonês após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, parte dos imigrantes se recusava a acreditar na derrota. Rapi-

damente, através de falsificações grosseiras de jornais japo-neses, espalhou-se a notícia de que a rendição não passava de um boato para desestabilizar os súditos do imperador. Estava estabelecida a Shindô Renmei (algo como Liga dos Seguidores do Imperador).

Ou seja: não bastasse a discriminação brasileira, ago-ra os japoneses que acreditassem na derrota eram per-seguidos por seus próprios compatriotas. Basicamente, criaram-se duas ‘facções’: a dos kachigumi (japoneses que acreditavam na vitória do Japão) e os makegumi (que sa-biam da derrota). Os integrantes da Shindô Renmei en-viavam então uma carta às famílias dos makegumi com os seguintes dizeres: “Você tem o coração sujo, então deve ter a garganta lavada”. Isso significa que, por ser considerado antipatriota, o cidadão deveria cometer suicídio para rea-ver a honra perdida. Como aqueles que recebiam a carta não obedeciam as ordens, a Shindô Renmei enviava um tokkotai – o assassino incumbido de cumprir a sentença. No total, 23 integrantes da comunidade japonesa foram assassinados, e 100 atentados foram cometidos, como a destruição de lavouras e de estabelecimentos comerciais. Apesar da violência com que executavam suas vítimas, os tokkotai não fugiam da cena do crime, se entregando às autoridades logo em seguida. Eles declaravam que não tinham nada contra os brasileiros, aceitando pagar pelo crime cometido segundo as nossas leis, e que só estariam cumprindo o dever patriótico.

Esses eventos inflamaram ainda mais o sentimento antinipônico, com ameaças e linchamentos pelo interior de São Paulo. E depois de tudo, quando se imaginou que todas as desgraças possíveis já tivessem acontecido, surgiram ainda os estelionatários conhecidos como lero-lero. Basicamente enganando os kachigumi, os lero-lero vendiam a desvalorizada moeda japonesa a um preço absurdamente elevado, com a promessa de que um iene valeria muito mais no “novo” Japão, já restaurado. Al-gumas pessoas chegaram a vender todas as suas posses na esperança de poder voltar à terra natal, e ao descobrir que haviam sido enganados, chefes de família, em total desgraça e vergonha, cometeram suicídio.

Finalmente, uma década depois do término da guerra, os ânimos se acalmaram, e os japoneses voltaram a ser aceitos, migrando inclusive para as grandes cidades, onde muitos se estabeleceram na indústria e comércio. Depois de cinqüen-ta anos de tempestade, vinha finalmente a calmaria.

A segunda fase da imigração: cinqüenta anos depois

Já conscientizados da situação em que se encontrava o Japão, os primeiros imigrantes, razoavelmente bem estabelecidos, resolveram esquecer o retorno à pátria e trataram de preparar o terreno para os parentes que viriam do país dilacerado pela guerra, e, portanto em pior situação. Algumas ilhas do arquipélago, como a de

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Okinawa, mesmo a mais de uma década do término do conflito, ainda permaneciam sob domínio dos americanos devido à sua posição estratégica, localizada entre o Ja-pão, China, Indonésia e Polinésia.

É a partir desse panorama que chega, vinda da pequena ilhota em agosto de 1959, a família de Tsuneo Nakazato, com quem tive a oportunidade de conversar. Para exemplificar as mudanças ocorridas na segunda metade deste século de imigração japonesa, nada melhor do que o relato de famílias como a Nakazato. Ao contrário dos primeiros imigrantes, que ainda mantinham devoção cega ao imperador e uma disciplina rígida, os Nakazato se adaptaram rapidamente aos costumes brasileiros. Ao mesmo tempo, a busca pela preservação da identidade está sempre presente, através de uma forte ligação com as raízes. O resultado pode ser conferido no verdadeiro pa-radoxo que é Tsuneo: como uma grande síntese do que é o Japão, ele reúne tradição e modernidade em um só lugar.

Sorridente, mas extremamente tímido, Tsuneo se senta no sofá à minha frente, e nunca me olha diretamente nos olhos. Sempre muito simpático, ele pensa bastante antes de responder, e de tudo que foi questionado, o único tema que se recusou a responder foi quanto ao trabalho: quando fui perguntar, sem perder o bom-humor, ele faz um gesto rápido com a mão direita cortando o ar, ao mesmo tempo em que diz “Prefiro não falar sobre isso”.

Desde que chegou, sempre morou no bairro da Casa Verde, zona norte de São Paulo, e nunca se sentiu discriminado por ser estrangeiro. Tanto que, quando ques-tionado quanto a isso, ele chega a estranhar a pergunta, como se fosse algo comple-tamente absurdo. Certamente, o Brasil que ele encontrou era muito diferente do de 50 anos antes. Toda a confusão, os maus-tratos, o preconceito e a perseguição haviam ficado para trás, lembrados pelos mais velhos apenas como um vago relato que pare-cia inconcebível para aquela nova realidade.

Tsuneo revela que apesar de não saber falar português, se adaptou muito fácil ao país. Em Okinawa o clima é subtropical, muito parecido com o daqui, e como lá há bastante plantações de banana, abacaxi e cana-de-açúcar, por exemplo, acostumar com a dieta do brasileiro não seria problema. Mesmo assim, o pequeno Tsuneo, então com 9 anos, ainda teria grandes surpresas ao aportar em Santos, a bordo do Ar-gentina Maru: “uma de minhas primeiras lembranças daqui é a do cheirinho gostoso do café, ainda no porto, e do gosto do pão, que eu nunca tinha comido”, revela ele, hoje com quase 60 anos de idade.

Diferente de outros compatriotas, ele teve uma educação mais à brasileira, sem a habitual rigidez. Tsuneo me conta que, no Japão, era comum a família escolher a carreira profissional e a esposa para os filhos, fato que não aconteceu com ele, que teve total liberdade do que fazer com a sua vida. O resultado disso teve uma forte in-fluência em sua escolha de permanecer no Brasil. Em 1974, dois anos após os Estados Unidos devolverem a ilha de Okinawa ao arquipélago japonês, seus pais resolveram voltar, mas ele não. Já namorando Haruko, que mais tarde viria a se tornar sua espo-sa, ele recusou a repatriação para constituir família por aqui.

Na adolescência, Tsuneo descobriu o bom e velho Rock’n’roll. Tanto que, no pe-queno comércio da família, quando alguém lhe perguntava seu nome, ele logo mos-trava o adesivo dos Beatles colado numa balança e dizia, apontando para George Harrisson: “meu nome é igual o desse aqui”. Tsuneo, ou melhor, George, chegou a formar uma banda com seus amigos na época da jovem guarda, e se apaixonou pelo gênero definitivamente quando ouviu os Rolling Stones pela primeira vez. De ouvi-do, aprendeu a tocar músicas do The Jordans, Os Incríveis, Renato e seus Blue Caps, Bee Gees, Beatles e, é claro, Stones. E se por um lado, George era Rock’n’roll, pelo outro, Tsuneo se mantinha atualizado quanto à cultura japonesa através de discos com a tradicional música okinawana e a revista Heibon, que comprava no bairro da Liberdade, e a participação nas undokai, gincanas esportivas promovidas pela asso-ciação comunitária japonesa.

No quesito religião, George e família freqüentam a igreja católica, mas mantém tradições budistas, como o ritual de reza pelos antepassados. Quando perguntado quanto ao porque de haver muitos casamentos apenas entre integrantes da colônia japonesa, desmistifica: “Isso era no começo, quando os primeiros imigrantes vinham ain-da com o pensamento de voltar pro Japão depois da guerra. Entre os que escolheram ficar aqui, hoje é normal casar com brasileiro. Hoje em dia, em Okinawa, é até motivo de orgulho casar com estrangeiro, as pessoas acham que quanto mais mistura o sangue, mais bonito fica”.

Em seguida, fico sabendo que de suas duas filhas, uma namora um rapaz da co-lônia japonesa, e a outra, um brasileiro, então pergunto se elas estão liberadas para casar com quem quiserem. O sorriso, sempre presente no rosto, some junto com a resposta, que vem em tom sério: “Ah, prefiro que case com gente nossa, né. É bom pra não esquecer as coisas antigas, manter um pouco das coisas da gente. Senão, daí mistura muito e daqui a pouco perde tudo. Mas fazer o quê...” Nesse momento, a filha passa pela sala em direção ao portão da rua, onde o namorado brasileiro a espera. O tom sério permanece, ao responder à filha em sinal positivo com a cabeça, quando ela pede autorização para sair, avisando que volta logo.

Mas o que parece irritação logo se dissipa, e o sorriso franco volta rápido ao ros-to, quando lhe pergunto se, a exemplo de muitos descendentes, hoje ele voltaria à pequena ilha: “Acho que não. Para passear, sim, mas para morar, não dá mais. Quando a gente vai ficando velho, começa a pensar nessas coisas. Mas apesar de tudo, de todos os problemas aqui, aprendi muita coisa. Acho que hoje já não é mais possível.” De fato, mesmo balançado com a pergunta, hoje ele é mais George que Tsuneo.

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O raio-x de um atropelamentoUm atropelamento é só mais um acidente quando você lê no jornal.

Em meio a tantas estatísticas, que banalizam a singularidade de cada evento (a cada cinco minutos, X pessoas são atropeladas), aos poucos, vai-se formando uma couraça de insensibilidade que faz com que as pessoas se acostumem a simplesmente contabilizar seus mortos (mor-

tes no trânsito crescem X% em 2008), e ‘comemorem’ quando esse número decresce. Mesmo quando mostrado na televisão, raramente um atropelamento provoca comoção. Muito pelo contrário, há até um certo fascínio por parte de alguns espectadores, que acompanham as cenas, com direito a replay em câmera lenta, nas imagens diárias exibi-das em programas jornalísticos especializados em explorar a desgraça alheia. Na internet, há quem colecione sadicamente centenas de vídeos como o Top 10 dos ‘melhores atrope-lamentos’, ou fotos e mais fotos de acidentes com vítimas fatais, que são passadas adiante via correntes de e-mail, e até por meio de sites especializados no assunto.

Mas quando o acidentado está ali, agonizando à sua frente, a coisa muda de figura. Foi essa experiência que testemunhei, e a qual faço relato aqui, desde o acidente à bizarra experiência da peculiar cobertura jornalística em si.

O acidenteDomingo, 24 de agosto de 2008. Logo cedo, apressados, os irmãos Nathan e Ale-

xandre tomam café, e vão para a Escola Estadual Domingo Faustino Sarmiento, na qual estudam durante a semana. O plano é simples: na comunidade onde a escola é o único local de lazer, os dois se juntarão a dezenas de outros como eles para passar o dia todo jogando bola. Depois de algumas horas de jogo, Alexandre sai da quadra para descansar, e aproveita pra jogar um pouco de pingue-pongue. Enquanto isso, Nathan, que permanece na quadra, vê a bola passar por cima do muro e ir pra fora da escola. Por ser o menor da turma e, portanto, o mais explorado, mesmo não tendo sido o perna-de-pau responsável por desferir o chute, ele é convocado a ir buscar a redonda. Eram aproximadamente duas e meia da tarde quando, ao atravessar o cruzamento entre as ruas José Monteiro e Vinte e Um de Abril, Nathan cruza com o estudante de jornalismo Fabio Almeida e sua namorada, a professora Lígia Nogueira. O casal assiste, impotente, a menos de dois metros de distância, o pequeno menino de 9 anos de idade ser atropelado. Para se ter uma idéia da proximidade, Fabio chega a sentir o vácuo causado pelo deslocamento do corpo do garoto. O menino atraves-sava a rua em sentido oposto ao do casal, e já ia pegar a bola de futebol quando, em um desses momentos tão rápidos que não dá tempo de pensar em nada, foi atingido em cheio pelo Chevrolet Meriva cor de chumbo. Apesar de atravessar na faixa, o farol estava aberto para a passagem de carros.

O estrondo causado pelo impacto foi assustador, como se o carro tivesse atingido um poste, ou um muro em cheio. Mas nada tão chocante como a própria cena em si. Embora não estivesse em alta velocidade, o motorista também foi pego de surpresa, tanto que só deu conta de que tinha atingido alguma coisa a uns oito metros depois. Juntando o local onde ele parou com a distância a que o menino foi lançado, adicione-se aí ao total pelo menos quinze metros. Em questão de segundos a rua estava tomada por curiosos, todos querendo conferir a desgraça alheia. Das janelas dos prédios em frente, famílias inteiras se dependuravam para conferir os desdobramentos pelo melhor ângulo. O bar da esquina, onde os clientes jogavam dominó e mordiscavam um churrasquinho, foi totalmente esva-ziado, uns ainda com o copo de cerveja na mão. A escola, de onde tinha saído o menino pra buscar a bola, também foi evacuada, num misto de meninos aflitos, com as mãos na cabeça, e outros pouco se importando, que faziam a pergunta sarcástica: pelo menos a bola se salvou? Sem saber o que fazer, Fabio se limita a segurar sua namorada que, mais pálida do que o de costume, a essa altura tremia feito vara verde e tinha os olhos cheios d’água. Por ainda não ser mãe, a professora de primeira série se apega à imagem mais pró-xima que tem por referência, ao comentar que ‘podia ter sido com um de seus alunos’.

De repente, quando ninguém esperava, o menino deitado de bruços no asfalto se levanta. Franzino, ele caminha vagarosamente de braços abertos, e um filete de sangue escorre pelo rosto. Com a boca aberta, ele faz força pra chorar, mas o som não sai de sua boca, só o sangue de um corte nos lábios. Salvas as proporções catastróficas, a semelhança imagética remete imediatamente à famosa foto de Kim Phuc, a meni-na atingida durante um ataque de Napalm na guerra do Vietnã (coincidentemente, também aos 9 anos). Totalmente desorientado e assustado, o menino não sabe pra onde ir, então anda até a calçada e senta no meio-fio. Recuperado o fôlego, ele dá o primeiro e lancinante grito de dor, seguido do incessante choro infantil.

Diante do impasse dos observadores, que não sabiam como reagir ante a situação, um rapaz que tomava seu drinque dominical no bar se aproxima, pega o menino pelos braços e pernas, abre a porta do automóvel e, como se fosse um saco de batatas, lança a pobre carga adentro. A menina, sentada no banco de trás, se assusta quando vê o miú-do, um pouco mais novo que ela, ser lançado todo ensangüentado em seu colo, e sem abrir a porta, pula para o banco da frente. O motorista, sem hesitar, sai cantando pneus e some. Da mesma forma que surgiu, a multidão se dissipa em questão de segundos.

Minutos depois, a rua já não parecia a mesma que abrigou o palco de uma tragé-dia. O barulho de crianças jogando bola na quadra da escola, a cachaça com pagode no bar, as famílias almoçando a típica macarronada de domingo. Como testemunhas ímpares do fato, apenas as gotas de sangue do moleque, já ressecadas sob o sol quente que castigava o asfalto.

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TEXTO: Fabio Almeida FOTOS: Acervo pessoal

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O raio-x de um atropelamento

O socorroNo meio da multidão estava Alexandre Jr., um ano mais velho que seu mano caçula.

Ao ver o irmão atropelado ser jogado dentro do carro, não teve tempo nem de deixar as pernas se recomporem do susto, apenas saiu correndo direto pelos dois quilômetros e setecentos metros que o separam de sua casa, uma pensão localizada na Av. Celso Garcia próximo à Rua Catumbi. Ao chegar no cortiço, tremendo e sem fôlego, só conseguiu pronunciar: “pai... o Nathan... atropelado... carro... hospital...” Alexandre, o pai, tomava banho a essa hora, e entrou em choque. Deficiente físico e visual, ele não possui o antebra-ço direito, e mal conseguiu se recompor do susto. Desesperado e tateando o vazio, como que à procura da figura do menino, pediu ajuda à filha mais velha para se vestir. Depois, tomaram um ônibus em direção ao Hospital do Tatuapé, mesmo sem saber se era pra lá mesmo que o filho havia sido encaminhado. Para a sua sorte, o palpite estava certo.

Ao reencontrar Nathan, que fazia exames radiográficos, seu Alexandre só ficou satisfeito ao constatar que o corpo franzino continuava intacto, e já falante. Nathan tirou várias ‘cha-pas’ da cabeça, local mais atingido com a colisão, mas foi liberado pela equipe médica ainda naquele dia, embora a recomendação costumeira para esses casos seja a de internação por um prazo no mínimo de 24 horas. Recebeu 5 pontos no alto da testa e 3 no braço, além de inúmeros curativos nas pequenas escoriações que teve ao sair ‘ralando’ pelo chão.

No final da tarde, ao receber alta, Nathan e família ainda pegaram carona com o senhor que o atropelou, que fez questão de se autocongratular pelo “gesto de bondade”, já que não havia tido culpa no acidente. Após deixá-los na porta de casa, ele entregou à irmã de Nathan a receita dada pelo médico, indicando que o remédio que ele precisaria usar podia ser retirado “em qualquer postinho de saúde”. O estranho se identificou como sendo vizinho da família, apontando um prédio ali próximo como seu endereço, embora não tenha revelado seu nome nem o número de seu apartamento. Ao se despe-dir, ainda persuadiu seu Alexandre a não fazer qualquer boletim de ocorrência referente ao assunto, já que o carro que dirigia era “emprestado de um amigo”, e que queria evitar futuros problemas a ambos. Sem mencionar mais detalhes foi embora, prometendo

regressar periodicamente com ajuda caso eles precisassem. Nunca mais voltou.Seu Alexandre não deu muita importância para a situação, embora tivesse que

gastar 80 reais em remédios entre antibióticos e vitaminas pelos próximos dois meses, por conta do princípio de desnutrição diagnosticado durante os exames. O precioso dinheiro foi pego sob empréstimo de amigos e parentes, mas o importante era ter o filho de volta, são e salvo, sabendo que daqui a algum tempo, a única lembrança para atestar o incidente seria o pequeno conjunto de cicatrizes.

A entrevistaO tempo passa, e a recuperação de Nathan vai muito bem, obrigado. E é num

sábado cinzento, mas muito abafado, que eu bato à sua porta. Depois de dois meses procurando o menino, que nunca mais foi à escola nos finais de semana, finalmente o reencontro. Foram semanas árduas para chegar até ali, pois mesmo quando encontra-va vizinhos ou pessoas que o conheciam, havia uma forte resistência quanto a mim, algum tipo de desconfiança de que eu fosse querer algum mal contra ele. Talvez eu fosse parente do cara que o atropelou, e quisesse cobrar o estrago que ele fez com o meu carro, me revelaria um dos moleques posteriormente.

Nathan não se lembra de mim, é claro: após o nosso curto contato de alguns se-gundos no dia do incidente, nem eu mesmo o reconheci tão sorridente. Para chegar à pensão a qual não sabia o endereço, fui levado por um vizinho, um menino da mesma faixa etária de Nathan conhecido como “Careca”, e que a princípio parecia desconfiado que eu pudesse causar algum problema. Ao chegar na porta do cortiço, pedi para que Careca chamasse o pai do menino, mas ele responde que “O pai dele é cego e não tem um braço. Ele não vai sair até aqui só pra atender você”.

Sendo assim, pedi licença e entrei no cortiço. Logo na entrada, uma escada descente faz com que o visitante adentre por uma espécie de subsolo, num corredor estreito e escuro que dá para o pátio principal, ao ar livre, que dá ligação a outros dois cortiços

vizinhos. Todas as portas, tanto as do corredor quanto as do pátio principal, são fortemente protegidas por tran-cas com dois, três, quatro cadeados. A casa de Nathan fica logo no começo, subindo um lance de escadas até o pequeno sobrado. O pai vem até a porta me receber, e autoriza que eu entreviste o seu caçula, mas com duas condições: que seja do lado de fora, porque lá dentro não haveria espaço para eu me sentar, e que eu não tire ne-nhuma foto. Preparado, saco o meu gravador, o bloqui-nho de anotações, nos sentamos na escada que conduz à sua casa e começo a fazer as perguntas.

Logo, uma pequena multidão se aglomera, como que espectadores mirins de algum talk-show. Pra quebrar o gelo, pergunto coisas como “pra que time você torce?” e “o que quer ser quando crescer?” e o pequeno corintiano me responde que quer “ser trabalhador, e dar exemplo pra família”. Nessa hora, a entrevista recebe interferência e passa a ser coletiva, pois a cada pergunta, há respostas vindas de pelo menos seis crianças diferentes, todas pare-cidas com Nathan, cada uma dando a sua opinião sobre o assunto. Um grupo de meninas vai até a cerca que divi-de o cortiço vizinho e grita “Vanessa, vem aqui, tem um jornalista entrevistando o Nathanzinho”, e logo o caldo da platéia engrossa. Como se assistissem um espetáculo, eles dão bronca uns nos outros para que os da frente fi-quem quietos e todo mundo possa ouvir a conversa.

Mas a audiência não é formada apenas de crianças: uma moradora chega com meia melancia, e quando fica sabendo da novidade, se apressa em querer compartilhar comigo um pedaço daquilo que pra ela é o almoço do dia. Um outro grupo de senhoras vê o grupo de crianças e presume que estão aprontando algo, e no meio da bronca, quando desco-brem do que se trata, também ficam ali para ver. Alguns sen-tam sob a imundície do esgoto a céu aberto, que no clima abafado do dia às vezes traz uma brisa insuportável. Outros se molham na água descartada pela da lavagem de roupas que escorre lentamente, num fio d’água fino que vem do final do corredor. Enquanto isso, eu coleto mais detalhes, em meio a um público que contabilizo entre mais ou menos trinta pessoas. Além de me contar tudo que você leu acima, ele resume a experiência toda: “Parecia um pesadelo. Nem vi o carro chegar, só vi que saí ‘avoando’, e quando vi aque-le monte de sangue, pensei que já tinha morrido”. Depois, ainda entrevisto o pai, que me cede o relato completo, mas fica um pouco bravo ante a insistência de me deixar tirar a foto. Na saída, Nathan se despede prometendo tomar mais cuidado na rua, eu me despeço e vou embora. Pra minha surpresa, no meio do caminho, paro no farol para atravessar a rua, quando sou ultrapassado por um moleque correndo. Um carro que vinha quase o atropela, tendo que dar uma sonora freada seca pra impedir o acidente. O menino, es-tático, que chega a botar as mãos no capô do carro pra se proteger, é Nathan, que tinha ganhado dinheiro de seu pai pra comprar doces no bar da esquina.

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O homem foi à Lua em 1969?À principio, esta pode parecer uma per-

gunta imbecil e estapafúrdia em meio a tantos registros históricos como vídeos, fotos e até mesmo amostras de solo lu-nar que foram trazidas pela expedição.

Mas em plena era da informação, em que ainda há gente se perguntando se Elvis não morreu, o lema favorito dos céticos de plantão é: desconfiar é preciso. Ao contrário de séculos passados, onde ninguém contestaria se alguém dissesse que a Terra era quadrada e suspensa sobre qua-tro elefantes no meio do universo, a geração Google só acredita vendo, desde a existência de OVNIS até os reais efeitos do aquecimento global. Particularmente no caso da ida à lua, como muitos desses novos contestadores ainda “nem sonhavam em nascer” em 1969, surgem dú-vidas quanto à veracidade dos fatos, já que ultimamente têm pipocado na rede páginas e mais páginas indicando evidências contrárias. Entre as provas, são revelados su-postos arquivos confidencialíssimos, do tipo TOP TOP TOP SECRET, que confirmariam que a alunissagem não passou de uma mera montagem feita pelos america-nos para vencer a corrida espacial, travada com a URSS. No meio do que se costuma chamar de “a grande farsa”, surgem teorias conspiratórias que envolveriam ameaças às famílias dos astronautas, a participação do cineasta Stanley Kubrick e até mesmo lavagem cerebral. Será?

Imagine a cena: em 20 de julho de 1969, exatamente às 23 horas, 56 minutos e 20 segundos (pelo horário de Bra-sília), em transmissão mundial ao vivo, Neil Armstrong desce do módulo lunar, e lentamente põe os pés no solo. Em meio àquele deserto branco, depois de proferir a famo-sa frase “That’s one small step for man, one giant leap for mankind “ (Este é um pequeno passo para um homem, um gigantesco salto para a humanidade), ele dá os primei-

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“Existem dois tipos de tolos: os que acreditam em tudo, e os que não acreditam em nada” – provérbio popular

ros passos, em suaves pulos que formam um harmonioso balé. O mundo inteiro, parado para ver o acontecimento, entra em êxtase. Nos Estados Unidos, cidadãos saúdam a bandeira americana. O resto do mundo bate palmas. Nas ruas, crianças acenam para o céu; em casa, milhões de pessoas boquiabertas. Famílias se abraçam, chorando de emoção com o grande feito realizado pela humanidade, e não conseguem tirar os olhos daquelas imagens em preto e branco, chuviscadas, hipnóticas. Depois de algum tempo, findadas as transmissões, Kubrick enfim dá a ordem: corta! Da Área 51, conhecida base aérea americana localizada no deserto de Nevada, Neil Armstrong solta os ganchos que fazem sua roupa levitar, desprende o fecho de seu capacete e fita a lua, num suspiro apaixonado.

Segundo sites como A fraude do século e Show da Lua, foi exatamente isso o que aconteceu. Neste último, por sinal, há ainda inúmeros outros ensaios científicos, revelando fatos bombásticos como: Bomba atômica não existe, Einstein errou e A terra não gira em torno do Sol. Mas estes não são os únicos exemplos de sites existen-tes. Apesar de a grande maioria de páginas dedicadas ao assunto serem realmente muito toscas, feitas a partir de opiniões pessoais de anônimos e sem embasamento científico nenhum, existem muitas outras bem-feitas, de forma séria e com profissionais qualificados a falar sobre o tema, como o Moonmovie.com, que disponibiliza tre-chos de trechos de documentários e explicações técnicas.

Seja como for, o alto número de pessoas questionando essas informações levanta uma dúvida: como anda a creduli-dade das pessoas nos dias de hoje? No final da década passada, segundo uma pesquisa feita pelo instituto Gallup, cerca de 6% dos americanos não acreditava que o homem foi à lua. E por aqui, qual seria a situação? Para descobrir, fui às ruas mu-nido de duas perguntas simples: Você acredita que o homem foi à lua em 1969? Porque? O resultado foi surpreendente.

Entre as 100 pessoas consultadas, os dois extremos da tabela em termos de idade apresentaram opiniões total-mente contrárias. Entre os nascidos antes de 1969, e que tinham idade o suficiente para entender o que se passava, o simples fato de ter acompanhado a cobertura jornalís-tica da época não deixa dúvidas: o homem pisou na lua. Já entre os que nasceram após o evento, o nível de des-confiança aumenta bastante. Para seu Geraldo, nascido em 1932, a dúvida é ignorância pura. Ao ser questiona-do, ele ri da pergunta e ainda brinca: isso é inveja desses jovens que não sabem de nada, que não vivenciaram as mesmas glórias que a gente, e agora querem tirar isso de nós, comenta ele sorrindo. Já para o gráfico Alexandre, de 1972, não há dúvidas de que o homem já esteve na lua, mas ele acha improvável que isso tenha ocorrido naquele ano: “Não havia tecnologia suficiente na época, mas com certeza eles foram alguns anos mais tarde”.

Outro divisor de águas do nível de credulidade foi a escolaridade – quanto mais estudadas, maior o ceticismo. Aos 59 anos, enquanto apreciava sua dose de pinga no meio da tarde, seu Antônio, que cursou até a quarta sé-rie, “não via motivos pra desconfiar que alguém faria um circo desses por nada”, enquanto a resposta da universi-tária Bruna, 20 anos, foi taxativa: “Não. Se fosse mesmo verdade, porque eles não voltam lá hoje, que tem mais condições? Pra mim, não há provas concretas”. Já entre as surpresas da pesquisa, além do alto índice de pessoas que não acreditam nas alunissagens (27%), está o gran-de número de gente totalmente alienada. Do total, 7% das pessoas consultadas declararam que sequer sabiam da existência do programa espacial norte-americano.

Mas a pergunta não foi a minha única ferramenta para testar a credulidade das pessoas. Durante toda a experiên-cia, a desconfiança foi a tônica entre as pessoas consultadas. Cinco pessoas desconfiaram que se tratava de uma pegadi-

nha, e trinta e duas outras só responderam ao saber exata-mente pra que eu queria a informação. Mas o extremo da falta de confiança tomou forma sob o nome de Ademir, de 56 anos recém completados. Depois de me identificar como estudante de jornalismo e pedir para que ele respon-desse a uma pergunta, fui surpreendido com a alegação que o assustado senhor deu para a negativa de resposta:

– Não estou fazendo nada demais, só estou esperan-do o ônibus, moço.

– Mas é rápido, é só uma pergunta pra se responder com SIM ou NÃO.

– Mas e se você perguntar e eu achar que não quero responder?

– Daí o senhor não responde.– Ta bom, pode perguntar então.– O senhor acredita que o homem foi à Lua em 1969?– Como assim, porque você quer saber isso?– Pra uma matéria que eu estou fazendo pro trabalho

de conclusão da faculdade.– E você só vai usar pra isso mesmo?– Claro.– E você, acredita que o homem foi à lua? Quero

saber a sua resposta antes...– Eu acredito que sim...– E as pessoas que você está entrevistando?– Olha, até agora está bem dividido, acho que

está empatado.– Mas eu posso falar mesmo o que eu acho?– Claro...– (se retrai, falando baixinho) Eu acho que não. É

um absurdo, foi tudo comprado...Depois de falar com o seu Ademir, até eu comecei a

acreditar em teoria da conspiração. Ainda bem que eu não perguntei sobre Elvis...

TEXTO: Fabio Almeida FOTOS: Arquivo NASA

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Houston, we have a problem...Entre as 10 principais evidências da farsa aponta-

das pelos ‘especialistas’, estão:

– Nas fotos, não há qualquer evidência de ater-rissagem, como deformações no solo causadas pe-los jatos propulsores do módulo lunar;

– Devido à falta de umidade no ar, não seriam formadas pegadas, como mostram as fotos;

– Os negativos dos filmes das máquinas não agüentariam a exposição a temperaturas extremas;

– Em diversas fotos, há sombras apontando para locais diferentes, o que indicaria outras fontes de iluminação artificial;

– Nas fotos que mostram a Terra, o planeta apa-rece em diversos tamanhos diferentes;

– Os módulos lunares seriam pequenos demais para conter combustível para voltar ao planeta;

– A bandeira não devia tremular, pois não existe vento na lua;

– Não existia tecnologia suficientemente de-senvolvida como a de hoje para prover navegação segura e comunicação ao vivo para uma distância tão longa;

– A reentrada na atmosfera mataria a todos por causa do design aerodinâmico da cápsula, que não amorteceria a queda;

– A fraude seria necessária, e era a única forma dos americanos, que estavam muito atrasados tec-nologicamente, ganharem a chamada “corrida es-pacial”, após os soviéticos terem enviado ao espaço o primeiro satélite artificial (Sputnik) e o primeiro homem (Yuri Gagarin).

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EXTREMOHá pelo menos seis anos Carlos não coloca os pés em um ci-

nema. O motivo? O telão e as poltronas. Pode parecer boba-gem, mas o que encanta a maioria das pessoas causa repudia ao jovem. Carlos, na verdade, é Carlos Eduardo Purfiro Mo-reira, 23 anos, um vegano/straight-edge A tradução para es-

ses termos americanizados é simples: Vegan ou vegano é um tipo de vegetariano extremista que não come, bebe ou usa qualquer produto de origem animal. Já o straight-edge (esquadro, em português), é aquele que vive sem vícios, sejam eles relacionados a bebida alcoólica, tabaco ou drogas ilícitas. Há ainda uma parcela menor de adeptos que não admite o sexo negligente – para praticá-lo: só com amor!

E só para justificar a “cine-fobia” do rapaz, vale explicar que a película de projeção das salas de exibição dos cinemas é composta por pó de canela de boi – substância que auxilia na boa reprodução das imagens, evitando os famosos “fantasmas”. É esse pó que impede a duplicação da margem da figura em exibi-ção. Ah, faltou falar que algumas poltronas são revestidas com couro e sentar-se sobre a pele de um animal está fora de cogitação para quem segue essa cartilha.

Um “X” marca os adeptos de uma ideologia intransigente. São pessoas que alteram sua rotina para provar que a Teoria da Evolução está errada.

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O último filme que Carlinhos, como o chamam os mais íntimos assistiu foi “Homem Aranha – O Filme”, de 2002 no Shopping Taboão. “Foi uma boa saideira!”, recorda. E como agora os DVDs saem simultaneamente nos cine-mas e nos camelôs ele nem tem que esperar tanto. Assiste tudinho da sala de casa. Afinal, ele não tem nada contra a televisão. Para falar a verdade, é à ela que ele atribui essa mudança drástica de comportamento, que vai de um ex-usuário de drogas à uma pessoa regrada e cheia de ideologias. Tudo graças a um comercial... Acredite!

Vamos às explicações. Ao completar 19 anos ele teve as mais diferentes experi-ências de sua vida. Sejam elas com trabalho, mulheres, drogas, amizades até que um grave problema de saúde ocasionado pelo uso desenfreado de entorpecentes o fez repensar seus conceitos e mudar radicalmente de hábitos. A inconseqüência e a vontade de viver intensamente deixaram rastros irreparáveis na vida dele, entre eles a Síndrome do Pânico.

De cara, o problema foi amenizado com uma consulta ao médico. Remédios de um lado, broncas e puxões de orelha da mãe do outro. Mas isso não durou muito tempo, Carlinhos achava que as mudanças deveriam ser mais profundas. Só não

TEXTO: Aline Nascimento FOTOS: Acervo pessoal Ilustração: Vinícius Stradioto

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sabia como. Até que numa manhã de sábado ligou a tevê e em um comercial de leite de soja ouviu uma frase que lhe serve como lema até hoje: “Para ter uma vida boa é preciso manter uma alimentação saudável”. Bobo? Presumível? Para ele não. Pesquisou um pouco e descobriu o Vegetarianismo.

Extremista, não pensou duas vezes. Aboliu todo e qualquer tipo de alimento de origem animal do seu dia-a-dia. “Como não entendi como isso tudo funcionava, passei os dois primeiros meses comendo batata, batata e mais batata”. De brinde, ganhou uma anemia! Intensificou os estudos e descobriu um termo diferente, o Veganismo - um estilo de vida baseado na ética e nos direitos dos animais, onde os seres são semelhantes e, ao contrário do que prega a Teoria da Evolução, onde o mais forte deve respeitar o mais fraco e não sobressair-se a ele.

A SORVETERIATarde de domingo. Sol a pino. Gente “descolada” subindo e descendo a Rua Au-

gusta, região central da Cidade de São Paulo. São calças xadrezes, cabelos Black-Po-wer, casais homo e heterossexuais passeando com seus poodles com roupa de bailari-na para todos os lados. Esse foi o cenário do primeiro encontro com esse personagem tão rígido consigo mesmo.

Para ser mais específica, o local marcado foi a Sorveteria Soroko – que não tem nada a ver com “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de João Guimarães Rosa, mas que ainda assim carrega a sua poesia particular. O ambiente é agradável, cheio de crianças com cara de garoto propaganda da Johnson & Johnson, papos sobre espetáculos, coreo-grafias, estréias teatrais e cafés de fim de tarde na Avenida Paulista, mas tudo isso irrita depois de uma hora e quinze de espera. Carlos chegou “pontualmente” às 15h15. Antes de ficar brava, me deparei com um jovem de boné e camiseta, alargadores enormes, uma mochila e o celular colado à orelha. Com um sorriso tímido solta a primeira frase: “Tava ligando para ver quem ia atender. Não queria falar com a pessoa errada, sabe?”, justifica.

Cumprimentos, silêncio mortal, e logo o gelo é quebrado: “Sabia que hoje é a primeira vez em um ano que saio de casa sozinho?”. Confesso que fiquei atordoada com a informação. “Um ano, é?”. “É, um ano! A Síndrome do Pânico, sabe como é, né? Vindo para cá meu coração deu aquela disparada, mas vi a sorveteria pertinho e consegui me controlar”. Um sorriso amarelo tomou conta dos dois rostos.

Em minutos a conversa começa a fluir com naturalidade. Fala-se da família, dos amigos, do trabalho, das escolhas e dificuldades em seguir uma ideologia. “Certa noite eu estava num bar com uns amigos, desses que comem qualquer coisa, e eles que não eram vegetarianos nem nada me ofereceram uma coxinha de soja. Eu recusei sem nem provar. Achava bobagem”. O tal bar era o Espaço Impróprio, na Consolação – ponto de encontro de vegetarianos, veganos e pessoas politicamente, ou não, pode ser encarado também como um bar como outro qualquer, mas tem lá seu charme para os mais “certinhos”, quase como quem agrada a gregos e troianos.

Enfim, semanas depois Carlos estava no Germinal – bar vistoso na Bela Vista. Noite de pirações e abusos. Foram doses, tragos, carreiras. O coração disparou, aluci-nações tomaram conta de sua cabeça. Com sorte, conseguiu que um de seus amigos, tão loucos quanto ele naquele momento o ajudasse. Há quase um ano convivia com as sensações decorrentes do uso de drogas, mas nenhuma crise o deixou tão assustado quanto esta. O susto serviu para uma coisa, mudar de vida. Ele só não sabia como.

Na manhã seguinte, confortavelmente sentado no sofá de casa assistiu a um co-mercial de leite de soja - desses com pessoas com caras saudáveis, usando roupas de ioga, sentados em poltronas fofas em cômodos bem decorados. Nele a protagonista dizia que “uma vida boa só depende da alimentação que você tem”. Não é que o Car-los acreditou nas ondas eletromagnéticas e procurou se informar sobre os cuidados que deveria tomar com a alimentação? As duas primeiras semanas foram “confusas”. “Só comia arroz, feijão e batata frita. Depois variei, a batata podia ser assada ou cozi-

da”, risos. O resultado já dá pra imaginar, né? Uma anemia profunda.Com o passar das semanas o cardápio foi se enriquecendo. Até o dia em que ele

se encontrou pela primeira vez com a, até então, temida PVT – Proteína Vegetal Texturizada. “Parei, olhei para aquele pacote e me pergunte ‘será que isso é bom?’”. Questiona daqui, pergunta dali, no final das compras estava lá, dentro da sacola o tal quilo de “carne de soja”.

“Preparei direitinho, olhei para aquilo e confesso que fui obrigado a pensar se era mesmo o que eu queria” – o que é altamente compreensível se levado em consi-deração o aspecto não lá muito agradável do prato. A primeira experiência não foi traumática, mas também não foi suficiente para que ele caísse de amores pela nova receita. Mas como ainda havia praticamente 800 gramas da carne na geladeira, o jeito foi se adaptar. Desperdício é pecado, oras.

Depois de mais algumas semanas a dieta passou a se acertar e ter a dose adequada de quase tudo que o corpo humano necessita para funcionar bem. Quase tudo! Abre-se aí uma exceção para a vitamina B12 ou cianocobalamina, responsável basicamente por ajudar o metabolismo e equilibrar o sistema nervoso. Segundo organização nor-te-americana Food and Nutrition Board, um adulto precisa de pelo menos 2,4 mi-crogramas da substancia diarimamete para um bom funcionamento do organismo, o número cai para metade para crianças com até oito anos.

“Mas eu dou um jeito. Tomo um comprimido de ‘Leve Dura’ a cada refeição principal do dia”, conta o vegano. Um frasco com 400 cápsulas – quantidade sufi-ciente para três meses – custa R$ 7,80. Ah, mas não vá achando que todo e qualquer remédio é aceito com facilidade pelo rapaz não. Carlinhos sofre de disritmia cardíaca ocasionada pela Síndrome do Pânico e para controlar o mal deveria tomar um medi-camento chamado “Paraxetina” usado para tratar depressão, fobia social, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno do pânico. Deveria, mas ele não o toma. E por quê? Porque os remédios são invariavelmente testados em animais. “Então, não sou a favor das cobaias. Acho errado um animal sofrer para que os humanos tenham certeza da eficácia de um ou outro princípio ativo”.

Aliás, o coração, a Síndrome do Pânico, os problemas de anemia... Tudo isso de-veria ser tratado com antibióticos, vitaminas, calmantes, mas não é. Apenas produtos naturais são utilizados pelo jovem. “Para as crises de pânico e para ajudar no sono tomo um calmante feito à base de maracujá, que ajuda, inclusive, o coração e tomo um complemento alimentar de levedo de cerveja”, afirma. E se for necessário tomar algo remédio insubstituível? “Bom, se eu estiver consciente... NADA que tenha sido testado em um bicho vai ser usado em mim”, completa com firmeza.

Quem adora isso é a mãe do rapaz, que fica de cabelo em pé a cada crise ou doença. São chás, ervas medicinais, farelos, moídos de plantas e inúmeras combinações para afastar as enfermidades do filho. “Mãe é mãe, né? A gente sofre, mas acaba apoiando o filho da gente”, conta dona Helena, mulher de 46 anos, que há quatro tenta se adaptar as mudanças ocasionadas pelo filho.

DIA-A-DIAMuitas ideologias, algumas preocupações e poucas atividades. A rotina do nosso

extremista é tranqüila, mas cheia de pequenos detalhes que para ele fazem toda a dife-rença. Lá pelas 9h30 ele se levanta. No café da manhã leite de soja, achocolatado “mas tem que ser daquele mais barato que não tem lactose” e uns dois pãezinhos com PVT fina – a soja processada que se parece, e muito, com a carne moída. Um comprimido de vitamina B12 e ele está pronto.

A manhã normalmente é desperdiçada em frente a televisão ou no Play II. As vezes dá uma forcinha para a mãe, cuida da sobrinho de quatro anos até dar a hora do lan-che. “Nós veganos temos que comer de três em três horas, senão bate uma fraqueza”. Meio dia e meia, chega a hora do almoço. Enquanto a família ataque bifes e filés, Carlos faz um prato reforçado com soja em grãos, salada de tomate, arroz branco e a

VEGANISMOO Veganismo é uma filosofia mais conhecida. É

parecido com o Vegetarianismo, porém mais extre-mista. Além de não comer carne, o adepto não usa qualquer produto de origem animal ou mesmo que tenha sido testado ou demandado algum tipo de sa-crifício a um bicho. Isso inclui remédios, cosméticos, roupas e calçados. Embora praticado há milhares de anos, o termo “vegan” abreviatura de “vegetarian” só foi empregado oficialmente pela primeira vez em 1944 (pela Associação Vegetariana Inglesa). Em pou-co tempo os dois grupo se separaram e os veganis-tas criaram sua própria entidade, a Vegan Socity. O distanciamento aconteceu incialmente por conflitos ideológicos quando os mais extremistas optaram por não consumir lactose e mel. Hoje o slogan do gru-po é comum aos vegetarianos : “Promovendo meios para uma vida livre de produtos de origem animal, em benefício das pessoas, dos animais e do planeta”.

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PVT mais grossa – essa já se parece mais com um bife, é inclusive usada em churras-cos. Ah, claro, e mais um comprimido do complemento alimentar.

À tarde, uma volta rápida pelas ruas próximas, ou então uma visita à casa de algum colega, nada que fuja muito das redondezas, mesmo porque a Síndrome do Pânico não tem hora, nem lugar para dar as caras. Aos finais de semana ainda há os ensaios das duas bandas onde é vocalista. A Westernday é uma banda de Grindcore – um tipo bem “gritado” de rock´n roll. A tradução do nome fica parecida com algo como “Bang Bang Diário”, analogia as batalhas do cotidiano. Já a “Hoje Pior que Amanhã”, banda de Deathcore é tão gritada quanto, mas tem letras mais... positivistas. “Grito, quer dizer, canto nas duas”, brinca Carlos. De uns tempos para cá se envolveu em outro projeto o da banda “Estupra Mas Não Mata?” – barulhenta como não poderia deixar de ser, mas com um apelo mais engraçado. Os garotos-propaganda, para se ter idéia, são Osama Bin Laden e George W. Bush numa situação “íntima” demais para des-crever nessas páginas.

A mochila é inseparável. Dentro dela sempre há quatro bananas e quatro ma-çãs. E se sobrar uma graninha, pode ter certeza que a bolacha vegana tipo waffer não vai ficar de fora. “É só para garantir que vou ter meu lanche na hora certa”.

AS COMPRASNa cesta de compras produtos pouco convencionais. A tal PVT, granola, leite

de soja, soja em grão, salsicha de soja, frutas, pão integral... A dieta é sem dúvida equilibrada. Mas a diferença no bolso é perceptível. Um litro de leite comum, tipo A, por exemplo, custa R$ 1,76. Já o litro de leite de soja custa em média R$ 2,89. A mesma compra, feita com produtos similares em um mercado convencional sai por R$ 96,14, já numa loja especializada em produtos naturais sairia por aproxi-madamente de R$ 84, 03.

Em outubro foram pelo menos quatro quilos de carne (R$ 14,16), cinco caixi-nhas de leite (14,45), uma lata de salsicha em conserva (R$ 5,47) – tudo de soja – e dois tipos diferentes de remédios naturais e suplementos alimentares num total de R$ 16,59. Também entram nessa lista cereais naturais, açaí congelado, macarrão de sêmola (sem ovo) que juntos custam cerca de R$ 21,67.

A compra de produtos de higiene pessoal é demorada. São pelo menos três mi-nutos lendo cada rótulo de xampu, condicionador, sabonete ou seja lá o que for para assegurar que nenhum dos produtos foi testado em animais. O gasto médico com essas coisas é de R$ 17,86.

PROFISSIONALHoje, Carlos está afastado do trabalho. Ele é pensionista desde novembro de 2007,

quando deixou o cargo de garçom em um drive-in na Avenida Vital Brasil, no Bu-tantã. Ele soube do emprego por um desses jornaizinhos especializados em vagas de trabalho. Foi, fez a entrevista, achou que não ia passar, mas deu certo. Começou na mesma semana. Fazia o turno de nove horas, das 19 horas às quatro da matina, tirava R$ 800 mensais. “Mas sempre rolava um extra e a gente acabava saindo umas 5h ou um pouco depois”. E o dinheiro extra já tinha destino certo, um computador. Mas teve que começar a ajudar financeiramente a mãe, fator que atrasou um pouco o tal sonho de consumo. Hoje, como pensionista recebe de R$ 548. Benefício que pode ser retirado dele a qualquer momento, já que é periciado mensalmente pelos médicos do INSS.

O esquema de trabalho era simples. Os casais chegavam, davam uns “amassos” e caso quisessem alguma coisa acendiam o farol do carro. Carlos chegava com o cardá-pio e anotava e entregava os pedidos. “Já passei por cada apuro!” Ela lembra que já foi acusado de “assistir” casais, de mexer com a mulher de um dos clientes, mas também já teve que recusar propostas que agradariam muitas pessoas no lugar dele. “Já pensei

em me envolver com clientes, já quis muito e também já recusei. Já ouvi desaforos e relevei, mas ir pra casa com um sapo entalado na goela é horrível”.

Antes de conseguir esse emprego, Carlinhos trabalhou como caixa e repositor em um mercado no Campo Limpo. Foi lá que teve contato com as drogas mais pesadas. A primeira experiência alucinógena dele aconteceu aos 15 anos com a mais comum das substâncias – a bebida alcoólica. “Lembro que era a noite de Natal de 2000, tinha brigado com a minha família praticamente toda e fui encontrar uns amigos. Tava tão puto que eles me ofereceram bebida e eu aceitei. Nem lembro o que bebi, mas com todo cara com uma bela ressaca prometi a mim mesmo que nunca faria aquilo de novo”. Em vão, é claro! Os porres se tornaram cada vez mais constantes. As doses de bebidas cada vez maiores e o teor alcoólico cada vez mais alto.

ESPELHOAos 18 anos fumou maconha pela primeira vez. Em menos de um ano a cocaína

apareceu em sua vida. “Foi tudo muito rápido e é assim né? Você deixa de se conten-tar com uma coisa, pula pra outra e outra. Quando vê já está até o pescoço”. Foram crises, crises e mais crises. Até ele perceber que estava chegando ao fim do poço. Carlinhos chegou a percorrer 18,7 quilômetros a pé. Distância entre a casa onde vive, no Campo Limpo, até a região de Osasco, onde moram alguns ex-companheiros de copo. A caminhada durava em média duas horas.

Com o olhar perdido conta que foram duas as fugas de casa. A primeira com 19 anos recém completados. Ele passou cerca de um mês e meio na casa e um amigo, o Caio. “Ah, ele viu que as coisas estavam ruins pra mim e me convidou. Eu não pensei duas vezes”. A mãe do tal amigo era viúva e bebia um pouco, com isso, os vícios ficaram mais próximos.

“Comprávamos bebidas, conversávamos, depois a gente ia dormir, acordava e fazia a mesma coisa no outro e no outro dia”. Por pouco mais de 45 dias a rotina foi essa. Depois de uma semana sem notícias, a mãe de Carlinhos descobriu o paradeiro do filho e pediu para ele voltar. A solicitação não foi atendida de pronto, mas foi aceita dias depois. “Voltei, fiquei em paz um tempo, mas depois tudo começou a ficar ruim de novo. Foi uma questão de meses para eu sair de casa de novo”.

A segunda fuga contou com a ajuda de Renato, outro amigo que ofereceu abri-go a Carlinhos. “Eu não tinha nada, mas queria uma vida boa. Não tinha nada a perder e acabei pegando rabeira em tudo o que os meus amigos tinham. Eles ofereciam e eu aceitava”. E para ajudar com as despesas, Carlinhos fez um cartão da rede Carrefour – comprava comida e ajudava como podia. “Desde a primeira saída de casa eu pensei no cartão. Além da comida, queria dar entrada no meu computador, mas fui barrado pela minha mãe que disse que eu ia me endividar e acabou me impedido”.

As compras, já que na época ele só tinha uma certa repudia e desconfiança com relação aos veganos eram pouco saudáveis. Nugets, carne de primeira, bolachas, io-gurtes, salgadinhos. “Eu só queria comer do melhor e mais caro”. Acabou com uma dívida que suja seu nome até os dias de hoje. Um dia a mãe de Renato notou que o comportamento do filho e do amigo dele estava “esquisito”. Colocou os dois para fora de casa. Mas não adiantou muito. A dupla pulou o muro do imóvel e passou a noite na laje. “Ainda demos sorte que conseguimos puxar uns cobertores pela janela do quarto da irmã dele”, lembra.

De repente tenha sido ali que o jovem de idéias fortes tenha tomado o primeiro grande susto, o susto que resultou na mudança drástica. “Naquele dia eu chorei pra caralho. Me senti um mendigo, sem casa, sem trampo, sem ninguém por mim”. Fo-ram semanas “brincando” com facas e na beira da laje esperando talvez, um encontro com a morte.

“Um dia eu acordei, olhei no espelho e tinha 30 anos. Isso, aos 19. Estava cheio de olheiras, acabado...”. Foi o “start” para toda a mudança. Ficou horas sentado

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no sofá pensando o que e como deveria mudar. Desistiu e optou por assistir tevê e nada mais. “Horas pensando e um comercial me respondeu, acredita?” Bom, mas essa parte da história você já conhece.

DESEJOSHoje as expectativas ainda são pequenas e até mesmo, simples. “Acho que

eu desejaria um mundo inteiramente vegano, se pudesse. Não... não. Isso não seria legal porque as pessoas perderiam o direito de escolha e eu não ia gostar disso. Bom, mas a minha família sim! Queria que todos fossem como eu. As-sim entenderiam e respeitariam minhas opções. Ah, tem outra coisa importante: consciência. Se todo mundo fosse mais consciente um monte de porcaria não estaria acontecendo por aí. E tem também o meu computador, né? Dele eu não desisti mesmo!”.

Mas para alcançar esse último desejo, o mais palpável dentre os três, ele precisa conseguir uma coisa: um emprego. “Eu até queria um emprego, mas algo que me sustentasse e não agredisse minha ideologia. Garçom, por exemplo, eu não posso voltar a ser. Como vou levar um hambúrguer pra alguém? E já que é pra chutar alto, porque não sonhar em ter o meu próprio restaurante ou bar especializado em comida vegana. Isso seria felicidade completa?”

Carlinho pretende ainda fazer uma tatuagem que simboliza toda essa fase de transi-ção. O desenho? Um coração rodeado por espinhos e com gostas de sangue. Original não é, mas o significado é importante pata ele. “Quero mostra o amor e a maldade, que nem tudo são flores. Que por mais que haja beleza, também existe sofrimento”.

SAUDADEHá quatro anos ele não coloca nada de origem animal na boca, nem mesmo usa

sapatos ou cintos de couro, não freqüenta cinemas, não bebe um tal suco de morango mesmo sendo de soja porque o corante avermelhando provém de um inseto, a cocho-nilha – também conhecido como carmim... Seja comida, seja remédio, nada é inge-rido por ele. Remorso? “Nada. Só de saber que minha alimentação é saudável e que para isso não estou prejudicando nenhum animal já me dou por satisfeito”. E aquela saudade? Não bate uma vontade de comer isso ou aquilo? Nem tudo a gente pode substituir, certo? “Errado. Já existe chocolate sem lactose, bolos sem ovos e com leite de soja. O mercado vegano está crescendo!”. Então não há nada. Nnehuma coisinha por mínima que seja? “Ah, tem uma coisa sim...” O que, o que? “YAKULT”. Silêncio mutuo e uma troca de olhares, quase tão tímida quanto aquela que selou o primeiro encontro. Quem diria, vencido pelos lactobacilos Casey Shirota!

STRAIGHT-EDGEO movimento surgiu em 1980 quando a banda Tenn Idles fez dois shows na Ca-

lifórnia e ganharam a “fortuna” de R$ 45 dólares pelas apresentações. Como a venda de bebidas alcoólica para menores de idade era proibida, o proprietário de um dos estabelecimentos mandou que toda pessoa com menos de 18 anos fossem marcadas com um “X” de tinta preta na mão – isso impediria a venda aos não-autorizados. A idéia foi recebida com ironia pelo grupo musical, mas eles acabaram levando a idéia para os bares de Washington e com o tempo pessoas interessadas em mostrar que não estavam nem aí para a bebida começaram a fazer a marca por conta própria. Daí em diante, o símbolo passou a representar a abstinência e ganhou o nome de Straight-edge, na tradução literal, esquadro – isso porque o traço retilíneo do objeto são enca-rados como firmes, ou caretas, como queira. Como o berço do movimento foram os festivais de bandas independentes (leia aqui discriminadas) até hoje os straights são relacionados a músicas marginais como o Punk e o Hard Core.

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Quadrinhos

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Ponto de VistaFOTOS: Vinícius Stradioto

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O personagem ou Capítulo Um ou Acaba aquiAcaba aqui e agora, nesse momento, a procura por um personagem ide-

al. Aquele, homem ou mulher, que seja, que vai me dar motivo para escrever, escrever à exaustão, dias e dias à frente da máquina, como fez Kafka ou Clarice Lispector, e fizeram tantos outros que fugiram da massa sem cor pelo barulho quente e ensandecido das teclas.

Acaba, também, qualquer interesse por um olhar especial ou procura por um com-portamento fora do comum; que morra a menina que agora escreve cartas e nunca vai entregar nas mãos de quem deveria receber, que vá para o inferno o rapaz apaixonado pela garçonete mais feia de todos os bares da cidade, que sofra mutilações das mais cruéis a tia de formas arredondadas e rosto cheio que se molha toda ao passar a mão nas pernas do sobrinho, de pouco mais de dez anos.

Aqui é só ele, é ele e bem poderia ser ela, mas é ele, já que somos o que somos, ele é o que é, e quem sou eu para escolher qualquer coisa do que ele foi ou já é. Quisesse eu insistir, achar que autor é para essas coisas de mudar o que está aí, colocaria uma peruca loira em cima de seu cabelo já rareado, um batom em seus lábios finos, uma saia no lugar da velha calça social já manchada e um salto alto para substituir os sapatos surrados, nem tão velhos quanto parecem. A visão final só traria risadas, mas se ele não ri agora, não é por que é bom ou ruim, não ri porque não ri, e não faz rir porque não faz rir, e pronto.

Tem lá seus trinta e poucos anos, e isso porque o encontrei agora. Se não me falha a matemática, permita-me uma conta rápida, se eu o encontrasse há dez anos, seria um homem de cabelo bem mais cheio, camisetas coloridas no lugar da camisa de manga longa com risca de giz, anéis e brincos que tratou de tirar faz pouco, e óculos de aro grosso que perdeu e, sem paciência, não foi atrás de outro. Seria mais magro, não que hoje seja gordo, só conserva uma barriga que lhe apertar contra o cinto bege, e é daqueles que nem sempre combina cinto com a calça.

Não tem pai nem tem mãe, e não porque o conheci tarde, nunca teve pai nem mãe, e passou bem longe de conhecê-los. Fico sabendo agora que um acidente de carro levou os dois de uma só vez, e só por olhá-lo daqui, ele sentado em uma cadeira velha, em frente à tevê, bem em frente à tevê, dá para ver que ele não estava no carro.

Era muito novo, percebe-se. Foi criado por uma tia, sei, e saiu de casa ainda novo. No começo, a nova moradia era bancada pela única parente na cidade, e é por isso que fez questão de sair assim que arranjou seu primeiro emprego.

Do apartamento até que luxuoso – a tia vivia da herança, a morte de seu marido é que lhe sustentava até hoje-, foi parar em um quarto e sala no centro de São Paulo, que se não era o sonho de consumo estampado em revistas de decoração, era dele, ele pagava, e é lá que eu o encontrei, sentado em uma cadeira velha, em frente à tevê, bem em frente à tevê. O cômodo não era sujo e nem chamava atenção pela limpeza, e se não era de todo vazio, não chamava atenção pelo excesso de móveis ou por qual-quer vaso luxuoso, um tapete felpudo, que fosse.

Era ele em frente à tevê, em cima da cadeira velha, e ainda não sei se a camisa com risca de giz e calça social, e a meia social, de aparência barata, era por força do trabalho ou de hábito. Se não tinha muita coisa à vista, o que tinha ficava tudo no lugar, caso dos sapatos colocados onde sempre ficam, ao pé da cama, a carteira e as chaves de casa e do carro, em cima da mesa. Apesar de relaxado, os pés não ficavam sobre a mesa, e é com surpresa que percebo que ele é organizado, e deve ser bem quieto, ainda não se tem certeza, não há ninguém por perto e ele não se encontra tão perturbado ou louco o bastante para prosear sozinho.

Das paixões, se é que as teve, nada sobrou, pelo menos no quarto e sala, que é o que dá para ver, pelo menos por enquanto. Nenhum retrato em cima da mesa, nem uma flor murcha que mal cabe no lixo da cozinha, nem uma mancha de sangue nas mãos ou nas paredes, pois se ainda não é uma história, se sabe que ela não começa com um crime passional. Não há pedaços de vidro pelo chão, o telefone não toca, não há ninguém que queira lhe falar, quisesse, era só ligar, não precisaria mais do que esticar os braços e puxar o telefone do gancho. Se há alguma carta escondida na gaveta, há um armário no quarto com espaço suficiente para muitas delas, não sei, ele ainda não o abriu.

Até agora, veja bem, ele mal se mexeu. De vez em quando, faz cara feia e procura o controle-remoto, não demora a achar, já que troca de canal uma, duas, três vezes, quantas forem necessárias, e volta com o controle-remoto no mesmo lugar, bem do

lado das chaves, em cima da mesa. Já se sabe, já foi dito, ele é bem organizado. Mas com pouco ou nenhum ca-belo, camisa com risca de giz, controle-remoto do lado das chaves, quarto e cozinha, e armário espaçoso, e ho-mem quieto, ou porque não há ninguém do lado ou porque é quieto mesmo, não dá história.

E quem disse que é preciso, afinal de contas? Quantas são as pessoas que passam pela vida sem uma bela cena triste para terminar uma fase qualquer, uma dessas brigas de render páginas e mais páginas, amores ou perfeitos ou imperfeitos, ou amores perfeitos até que alguma coisa acontece, é isso, é por aí, sempre que há uma história, algo acontece, e se nada acontecer além de cadeira e tevê, paro por aqui. Já disse que autor não força nada, ou levanta ele para brigar com o vizinho, o levanta ele para abrir a geladeira e lá há uma coleção de cabeças, ou levanta ele, pelo menos para atender a porta.

Sorte ou acaso, sorte da história, agora há chances de se ter alguma para contar, porque ele se levantou. Esperou baterem na porta, e a impressão que dá é que ele já espera quem está por vir. E quem é do outro lado, ainda não sei. Se é um eterno rival, que conheceu no colégio, ainda não sei. Se é um desses para falar de religião, vai receber, pelo pouco que eu o conheço, uma bela fechada de porta na cara. E se for uma mulher, e se o carro dela quebrou logo ali à frente, e se estiver chovendo e o carro dela acaba de quebrar, e se for dessas formosas, de lábios carnudos, teria eu vivido o suficiente para levar um conto sensual?

É o entregador de pizza.

CONTO: Gabriel Santi

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