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ELOS A IMPORTÂNCIA DE ALOIS RIEGL PARA A CON S TI T UI ÇÃO DA HISTÓRIA DA ARTE COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA E A R VA · LORAÇÃO ESTÉTICA DE ESTILOS- E ÉPOCAS - CON S ID E RA J10 "MENORES", COMO OCORREU AO BARROCO, É INDI SP UTA J1 A. SUA REVALORIZAÇÃO ESTRUTURAL DA FORMA ANT EC IPA •M DÉCADAS AQUELA PREVALECENTE HOJE NESS E CAMP O: A ÊNFASE NA ANÁLISE DA OBRA COMO REPRESENTATIV A 00 CONTEXTO HISTÓRICO-ESTÉTICO E NÃO DE ALGUM CÂNON . OU PADRÃO IDEAL; O RESPEITO POR TODA CONFIGURAÇ ÃO DF: ARTE, NÃO DISTINGUINDO ENTRE "MAJORES" E " MENOR ES", "PRIMITIVAS" OU "PERIFÉRICAS"; A ATENÇÃO DADA AO PAP EL DA RECEPÇÃO, DO OBSERVADOR; SEU I NOVADOR CONCEITO DE KUNSTWOLLEN (O "QUERER (FAZER] " DA ARTE) CONTRAPOS TO AO DE KONNEN (O "SABER FAZER"). ESTE O C ULTO M O D ER NO DOS MONUMENTOS: A SUA ESSÊNC IA E A SUA ORIG EM , QUE A EDITORA PERSPECTIVA PUBLICA EM SUA PRIMEIRA TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS , É UM EXEMPLO SINTÉTICO DA APLICA- ÇÃO DE SEUS CONCEITOS E DE SEU EMPIRISMO SENSÍVEL NA ABORDAGEM PIONEIRA DE COMO LIDAR COM A CONSERVAÇ ÃO DOS MONUMENTOS AO EXPOR TODA A PROBLEMÁTICA DE NOSSA RELAÇÃO COM O QUE A MEMÓRIA E A HISTÓRIA NOS LEGARAM. J.G . E L.H.S. I A ALOIS RIEGL O CULTO MOD ERNO DOS MON UMENTOS UA ESSÊNCIA E A SUA ORIGEM

RIEGL, A (1903) O culto moderno dos monumentos [Ed. Perspectiva - 2014]

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RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rotschild Davidsohn & Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014 [1903].

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  • ELOS

    A IMPORTNCIA DE ALOIS RIEGL PARA A CON S TI T UIO DA HISTRIA DA ARTE COMO DISCIPLINA AUTNOMA E A R VA LORAO ESTTICA DE ESTILOS- E POCAS - CON S ID E RA J10 "MENORES", COMO OCORREU AO BARROCO, INDI SP U T A J1 A. SUA REVALORIZAO ESTRUTURAL DA FORMA ANT EC I P A M DCADAS AQUELA PREVALECENTE HOJE NESS E CAMPO: A NFASE NA ANLISE DA OBRA COMO REPRESENTATIVA 00 CONTEXTO HISTRICO-ESTTICO E NO DE ALGUM CNON . OU PADRO IDEAL; O RESPEITO POR TODA CONFIGURA O DF: ARTE, NO DISTINGUINDO ENTRE "MAJORES" E " MENOR ES", "PRIMITIVAS" OU "PERIFRICAS"; A ATENO DADA AO PAP EL DA RECEPO, DO OBSERVADOR; SEU I NOVADOR CONCEITO D E KUNSTWOLLEN (O "QUERER (FAZER]" DA ARTE) CONTRAPOS TO AO DE KONNEN (O "SABER FAZER"). ESTE O C ULTO M O D ER N O DOS MONUMENTOS: A SUA ESSNC IA E A SUA O R I G EM , QUE A EDITORA PERSPECTIVA PUBLICA EM SUA PRIMEIRA TRADUO PARA O PORTUGUS , UM EXEMPLO SINTTICO DA APLICA-O DE SEUS CONCEITOS E DE SEU EMPIRISMO SENSVEL NA ABORDAGEM PIONEIRA DE COMO LIDAR COM A CONSERVA O DOS MONUMENTOS AO EXPOR TODA A PROBLEMTICA DE NOSSA RELAO COM O QUE A MEMRIA E A HISTRIA NOS LEGARAM.

    J.G . E L.H.S.

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    A

    ALOIS RIEGL

    O CULTO MODERNO DOS MON UMENTOS

    UA ESSNCIA E A SUA ORIGEM

  • Coleo ELOS Dirigida por J. Guinsburg

    Equipe de Realizao- Traduo: Werner Rochschild Davidsohn e Anac Falbel; Preparao: Paulo Alexandre Rocha Teixeira e Iracema A. de Oliveira Revi-so: Adriano C. A. e Sousa Logotipo da coleo: A. Lizrcaga Projeto g rfico: Adriana Garcia Produo: Ricardo W. Neves, Sergio Kon, Elen Durando e Luiz Henrique Soares.

    ALOIS RIEGL

    O CULTO MODERNO DOS M ONUMENTOS

    A SUA ESSNCIA E A SUA ORIGEM

    ~\lt~ :;:a ~ PERSPECTIVA ~,,,~

  • Ttulo do original em alemo D er moderne D wkmallmlius, sein Wesw seine Entstehung

    CIP-Brasil. Catalogao na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Riegl, Alois, 1858-1905 O cu lto moderno dos monumentos : a sua essncia e a sua

    origem I Alois Riegl ; traduo Werner Rothschild Davidsohn, Anat Falbel.- r. ed.- So Paulo: Perspectiva, 2014.

    88 p. ; 18 em. (Elos ; 64)

    Traduo de: Der moderne denkmalkultus ISBN 978-85-273-1 005 -5

    r. Monumentos- Conservao e restaurao- Filosofia. 2. Patrimnio cultural- Proteo- Filosofia. r. Ttulo. n. Srie.

    Direitos reservados em lngua porcuguesa

    EDITORA PERSPECTIVA S.A.

    Av. Brigadeiro Lus Antnio, 302 5 0140r-ooo So Paulo SP Brasil Telefax: (r r) 3885-8388 www.editoraperspecriva.com.br 20 14

    coo: 369.69 cou: 351.853

    SUMRIO

    Os Valores do Monumento- Annateresa Fabris ..... ... ................ 9

    Nota Sobre a Edio Brasileira .... .. ......... ... ..... .... ... ........ ........ 2 3

    O CULTO MODERNO DOS MONUMENTOS

    Prefcio ...... ..... ...... ..... .... .. .. .......... .... ...... .. ... ...... .... .. ....... ...... 29

    OS VALORES DOS MONUMENTOS E SUA EVOLUO HISTRICA . . .. . ... . ..... . . .... . . . ............... . . . .... . .. . . .......................... 3 I

    A RELAO DOS VALORES DE MEMRIA COM O CULTO DOS MONUMENTOS ................... . ........ . ...................... . .... ....... 49

    O Valor de Antiguidade .... .............................. .... ....... 49 O Valor Histrico .......... .......... ................... .. .... .... ..... 55 O Valor Volvel de Memria ou de Comemorao .......... . 63

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  • A RELAO DOS VALORES DE ATUALIDADE COM O CULTO DOS MONUMENTOS . . .. . . .. . . . .. ... ........ . ..... . ........... .. . .. . ... . . . ... ...... 65

    O Valor Utilitrio ou de Uso ...... ....... .. ... ... .. .. ... .. ........ 66 O Valor de Arte ...... ... .......... ....... .... .. ..... .. ...... .. ... .... ... 69

    O valor de novidade .. ... ............... .... .. ..... ... ........... .. 7 o O valor de arte relativo .. ..... ..... .. ... .... .... ..... ......... . 79 OS VALORES DO MONUMENTO

    Quando Alois Riegl foi convidado a redigir O Culto Moderno dos Monumentos: A Sua Essncia e a Sua Origem, em I903, ele era um profissional famoso porque rene em uma nica figura as funes antagnicas atribudas universidade- territrio da retrica e de vises doutrinrias- e ao museu - conhecimento direto das obras de arte- no final do sculo xrx'. Erudito no mtodo filolgico (paleografia e diplomtica), aprendido no Instituto Austraco de Pesquisas Histricas, distingue-se por uma abordagem interdis-ciplinar da histria da arte. Curador do departamento de txteis do Museu Austraco de Artes Decorativas entre I 887 e I 897, o autor dedica um estudo aos tapetes orientais, em I 89 I, e outro histria da ornamentao, em I893 Graas ao segundo, publicado sob o ttulo de Stilfragen (Problemas de Estilo), torna-se professor da Universidade de Viena, onde comea a ministrar cursos sobre um perodo considerado "decadente": o barroco. O interesse por esse perodo negligenciado pela historiografia tem como resul-tado o livro Das holl"ndische Gruppenportr't (0 Retrato do Grupo

    I. Germain Bazin, Histoire de l'histoire de l'art: De Vasari nos jours, Paris: Albin Michel, 1986, p . r58-r59

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  • Holands), 1902; e duas publicaes pstumas, Die Entstehung der Barockkunst in Rom (A Origem da Arte Barroca em Roma), 1908; e a traduo anotada da Vida de G.L. Bernini escrita por Filippo

    .Baldinucci, 1912. O estudo do barroco no o afasta, porm, de seu primeiro interesse pelas "artes menores", s quais dedica um livro fundamental, Arte Indmtrial do Perodo Romano Tardio, 1901 , em que, mais uma vez, refuta a ideia de decadncia, por levar em conta modos especficos de ver e de sentir, em um arco de tempo que vai de Constantino (313) aJustiniano (656).

    Opondo-se abordagem materialista de Gottfried Semper, para quem a arquitetura era um produto mecnico, alicerado em objetivos utilitrios, no material e na tcnica, Riegl afirma que h no indivduo um aspecto passivo, o conhecimento sensorial, e uma faculdade ativa, a vontade. Desta se origina um fenmeno>, que comeara a abordar em Problemas de Estilo e que aplicar em O Culto Moderno dos Monumentos, o Kunstwollen (o "querer da arte" que alguns traduzem como "vontade artstica).

    Embora no tenha definido o conceito em termos tericos, Riegl o usa como anttese da capacidade tcnica na imitao da natureza. Tendo constatado que as formas sofrem mutaes ao longo do tempo, o autor passa a indagar as razes do fenmeno, que faz consistir no processo espiritual criativo. O "querer da arte" no , como escreve Lionello Venturi, "a sntese das intenes arts-ticas de um determinado perodo, e sim a tendncia, o impulso esttico, o germe da arte; um valor dinmico, uma fora real. o princpio do estilo, que deve distinguir-se do carter exte-rior do estilo"3. O Kunstwollen no um princpio monoltico,

    2. Raffaele Mormone, Critica e arti figurative: Dal positivismo alia semiologia, Napoli: Societ Editrice Napoletana, r975, p. ro5.

    3 Storia del/a critica d'arte, Torino: Einaudi, r970, p . 292-293. Levando em conta uma observao de Pacht, para quem o termo significa o que deter-mina a arte, Bazin (op. cir. , p . r6o), pergunta-se se a traduo mais exata no seria "pulso artstica", pelo fato de no supor um ato consciente da

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    sua manifestao assume contornos diferentes de acordo com o perodo, o povo e o lugar geogrfico. Uma vez que ele se modi-fica com a transformao da espiritualidade, cabe ao historiador analisar suas caractersticas no de maneira geral, mas caso a caso4

    , portanto, um autor maduro o Riegl que se debrua sobre a problemtica dos processos que levam um determinado perodo histrico a atribuir certo tipo de valor ao monumento. No estudo elaborado a pedido da Comisso Central de Arte e de Monumen:. tos Histricos da ustria, o autor guia-se pela noo de evoluo:

    De acordo com os conceiros mais modernos, acrescentaremos a isso a ideia mais ampla de que aqui lo que foi no poder voltar a ser nunca mais e tudo o que foi forma o elo insubsrituvel e irremovvel de uma corrente de evolu-o ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequncia, supe um antece-dente e no poderia ter acontecido da forma como aconteceu se no tivesse sido antecedido por aquele elo anterior.

    na ideia de evoluo que Riegl localiza o valor histrico do monumento, por ele definido como "uma obra criada pela mo do homem e elaborada com o objetivo determinante de man-ter sempre presente na conscincia das geraes futuras algumas aes humanas ou destinos (ou a combinao de ambos)". Elo

    vontade. A hiptese de Bazin encontra respaldo na leitura proposta por Carlo L. Ragghianti, que lembra que o Ktmstwollen no um simples \Vil/e (vontade), conservando a mesma ambiguidade entre vontade e tenso, fina-lismo e fatalismo, presente em Arthur Schopenhauer. Alm disso, o autor reporta o conceito s discusses travadas nos crculos psicolgicos de Viena, afirmando que ele poderia evocar "as pulses do inconsciente impessoal". Cf. Carlo L. Ragghianti, La critica del/a forma, Firenze: Baglioni & Berner e Associati, r986, p. r2r-r22. (N da E.: em vista do acima exposto e por falta de opo em portugus de um termo correlato prximo do latino velle, de onde deriva Wille, optamos por traduzir Kunstwollen por "querer da arte", fazendo uso da forma no infinitivo para denotar a ideia de algo em processo, mutvel, que h a, e o adjetivo gewolt, por "volvel".)

    4 R. Mormone, op. ci r. , p. ros-ro6.

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  • "indispensvel da corrente evolutiva da histria da arte", o monu-mento no possui um valor artstico absoluto, mas apenas um valor relativo. Como o sculo xx tem negado a existncia de um cnone artstico ou de um ideal objetivo, o valor do monumento " medido pelo modo como ele atende s exigncias do querer moderno da arte". Se no existe um valor artstico eterno, isso significa que a avaliao do monumento no repousa na memria e sim em valores presentes, que devero ser levados em conta na definio de uma poltica de preservao.

    Na anlise dos valores atribudos historicamente ao monu-mento, Riegl estabelece uma diferena entre produes inten-cionais e produes no intencionais. As primeiras - prprias da Antiguidade e da Idade Mdia - desempenham uma funo prospectiva, pois lhes cabe lembrar um determinado momento do passado. O significado e a importncia das segundas no provm da sua destinao original, mas das at ribuies feitas pelo sujeito moderno, a partir do Renascimento. Como esclarece Riegl, "em ambos os casos, a obra nos interessa em sua forma original [ .. . } sem mutilaes, ou ainda na forma pela qual tentamos reconsti-tu-la pelo olhar ou pensamento por meio de imagens ou da pala-vra. No primeiro caso, o valor de memria nos outorgado pelo autor; no segundo, ele atribudo por ns".

    Na Itlia do sculo xv, constitui-se uma nova ideia de memria. A apreciao dos monumentos do passado deixa de estar associada s "lembranas patriticas do poderio e da gran-deza do antigo Imprio", tomando como parmetro seu valor artstico e histrico. A noo de monumento amplia-se, abar-cando no s obras completas, mas tambm fragmentos e ins-cries. O faro de esse interesse histrico-artstico limitar-se s obras dos povos da Antiguidade, que os italianos do Renasci-mento consideravam seus ancestrais, no impede de perceber o que era novo nessa atitude:

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    pela primeira vez, os homens reconhecem os pioneiros estgios da sua pr-pria atividade artstica, cultural e poltica em obras e aes das quais esto separados por mais de mil anos. [ . .. ]o passado adquiriu um valor de atuali-dade para a vida moderna e para o trabalho. Graas a isso, o interesse hist-rico dos italianos foi despertado, embora restrito unicamente pr-histria do prprio povo. [ ... ]Seriam necessrios vrios sculos at que adquirisse a configurao moderna que apresenta hoje, principalmente entre os povos germnicos: o interesse de todos, mesmo por fatos e acontecimentos os mais insignificantes de povos separados da nossa prpria nao por inconciliveis diferenas de caractersticas; um interesse pela histria da humanidade, na qual reconhecemos cada indivduo em particular como parte de ns mesmos.

    Atento ao Kunstwollen de cada perodo histrico, Riegl esta-belece uma linha de demarcao entre a concepo de memria do Renascimento e a do sculo xx. Visto desconhecer a evoluo, a avaliao renascentista dos valores da Antiguidade regida por preceitos e normativas, que esto na base do fazer artstico contem-porneo, mantendo-se vlidos at o sculo XVIII. No sculo XIX, quando essas normativas comeam a ser questionadas, amplia-se o leque das possibilidades artsticas e, com ele, o significado do culto dos monumentos. A ascenso da "histria da civilizao", para a qual os menores objetos podem ter um significado, um valor objetivo, faz prosperar o valor histrico do monumento. Esse se transforma, aos poucos, "em um valor evolutivo, indiferente ao individual, visto como objeto", dando origem ao valor de anti-g uidade, apreciado pelo sculo XX.

    Na segunda parte do texto, o autor se debrua sobre a relao dos valores da memria com o culto dos monumentos. So eles divididos em trs categorias: valor de antiguidade, valor histrico e valor volitivo da memria. O valor de antiguidade representa o aspecto no moderno do monumento, visto como um organismo natural que traz em si as marcas do desgaste provocado pelo tempo e pelas foras da natureza. Uma vez que sua apreciao repousa em uma "percepo fsica, que se exterioriza por uma sensao", sem

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  • necessitar de consideraes histricas e artsticas, tal valor pode ser compartilhado pelas massas, demonstrando a ateno que o his-toriador dedicava a um fenmeno social recente, provocado pelo processo de urbanizao. Franoise Choay5 afirma que a recepo do valor de antiguidade pelas massas no era "uma promessa, mas uma realidade" no pensamento do autor. Riegl teria percebido que esse se tornaria "o valor preponderante do monumento histrico no sculo xx", em virtude da imediatez com a qual "se apresenta a todos", da "facilidade com que se oferece apropriao das mas-sas" e da "seduo fcil" exercida por ele.

    A concepo do monumento como um objeto orgnico no se confunde com o culto das runas, cujo incio Riegl faz remon-tar ao sculo xvn:

    Isso vale, em especial, para o culto s runas, que utilizamos anteriormente como exemplo para o valor de antiguidade, que, sem dvida, pode ser rastre-ado at o sculo XVII. O culto moderno s runas, apesar da correspondncia externa, totalmente diferente, na sua tendncia bsica, do culto precedente, o que no exclui uma ligao evolutiva, antes, ao contrrio, a promove.

    Os pintores de runas do sculo XVII, mesmo os mais nacionalistas, entre os quais os holandeses, usavam quase que exclusivamente runas anti -gas, comprovando que um determinado momento histrico escava em jogo. Todo elemento romano representava um smbolo de grandeza e g lria ter-restre. As runas deveriam trazer para a conscincia do espectador o tpico contraste barroco entre a grandeza do passado e a decadncia do presente. [ . .. }o profundo pesar pelo declnio e o desejo de conservar o antigo, [ .. } O sentimento do barroco estranho ao sentimento moderno: os traos de anti-guidade agem sobre o moderno de forma apaziguadora, como testemunhos do curso regular da natureza qual submetida de forma infalvel e segura roda obra humana. As marcas de uma destruio violenta nas runas de um castelo no parecem ser mais propcias para suscitar no espectador moderno uma evocao de antiguidade. Se, apesar disso, as runas ilustram o valor de antiguidade antes mencionado, isso acontece porque, falando por alto, elas

    5 F. Choay, A Alegoria do Patrimnio, trad. Luciano Vieira Machado, So Paulo: Estao Liberdade/Editora da Unesp, 2001, p. 69.

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    o tornam claramente perceptvel, perfeito para satisfazer a sensibilidade do homem moderno.[ ... } A antiguidade se exprime mais pelo efeito ptico da decomposio da superfcie- influncia do tempo, ptina -, do desgaste de ngulos e cantos, que revela, portanto, a inexorvel e implacvel ao de dis-soluo provocada pela natureza

    De acordo com tais pressupostos, Riegl condena as interven-es arbitrrias feitas nos monumentos ao longo do sculo XIX, das quais a restaurao integral de construes medievais6, impul-sionada por um desejo de evaso da sociedade contempornea, um exemplo bem significativo. A ideia orgnica faz com que o autor defenda tambm a manuteno de alteraes sofridas pelo monumento ao longo dos sculos, causadas pelo surgimento de novos gostos artsticos, mesmo que elas tenham "alterado a sua forma original". Se o domnio da natureza enquanto renovao constante da vida deve ser garantido, o mesmo cuidado apli-cado s interpretaes que o monumento foi sofrendo nos sculos, que so partes fundamentais de sua existncia. Ele leva to longe a defesa do monumento como organismo que no teme afirmar a impossibilidade de conservao eterna dos vestgios do passado. A ela contrape a representao eterna do ciclo de criao e desagregao, provocado pela interveno da natureza, que continuaria a ser garantido, mesmo que o lugar dos monumentos hoje existentes venha a ser ocupado por outros.

    Na perspectiva do valor histrico, o monumento testemu-nho de uma poca, de um estgio da evoluo humana que per-tence ao passado. Por ser portador de uma dimenso documental, o monumento deve ser o mais fiel possvel ao aspecto original que

    6. Embora no seja nomeado, o alvo de Riegl o arquiteto francs Eugene--Emmanuel Viollet-le-Duc, defensor da prtica da restaurao integral. Com ela, Viollet-le-Duc pretendia apagar do monumento as marcas da decadn-cia, devolvendo-o a seu estado original. Acaba criando obras fictcias, que encantam os no especialistas pela execuo primorosa.

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  • lhe foi dado no momento da criao. Na qualidade de testemunho do engenho humano, deve ser preservado de maneira preventiva, no tendo nenhum interesse a observao dos vestgios da degra-.dao provocada pelas foras naturais. Intocvel, o monumento original deve manter a prpria autenticidade "para uma futura atividade de restituio histrico-artstica". diferena do valor de antiguidade, o valor histrico confere cerra validade cpia, desde que essa seja um auxiliar para a pesquisa cientfica, e no um "substituto in totum do original para fins de apreciao histrico--esttica" daquele, como no caso do campanrio de So Marcos7 Riegl acredita que, no futuro, as exigncias da pesquisa histrica possam ser satisfeitas pelo uso de "substitutos perfeitos dos ori-ginais", citando entre os instrumentos vlidos as fotografias em cor e as cpias em fac-smile .

    A recepo do valor histrico, visto requerer conhecimentos de histria da arte e estar assentada em bases cientficas, no atinge as massas. Seu pblico constitudo pelos membros das classes mais cultas, que so obrigados a admitir que o prazer despertado por um monumento no reside apenas na antiguidade, mas tam-bm na "satisfao" de poder classific-lo dentro dos conceitos estilsticos por eles conhecidos. A associao entre saber histrico e prazer esttico no est presente na recepo do monumento pelas camadas mdias, que elaboram "uma classificao grosseira

    7. O caso do campanrio da baslica de So Marcos, em Veneza, reconstrudo a partir do desenho original depois do desmoronamenro ocorrido em I 90 I, um exemplo paradigmtico para a teoria da restaurao. Sua reconstruo insere-se no mbito da cpia, mas esta acaba desempenhando as funes do ori-ginal em termos urbansticos . De acordo com Cesare Brandi, o que importava, no caso do campanrio, era a restituio de um elemento vertical praa, no a reproduo exata do edifcio desmoronado. Uma vez que o ambiente deve ser reconstitudo a partir de dados espaciais, e no dos elementos for-mais do monumenro desaparecido, a concluso de Brandi no podia deixar de ser severa: o campanrio veneziano no passa de "uma obra remendada no tempo". Cf. C. Brandi, Teoria de! restauro, Torino: Einaudi, I977. p. 46, 8o.

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    dn histria da arte", dividida em trs grandes perodos: medieval, rl'CCnte (Renascimento e Barroco) e moderno.

    O valor volitivo da memria apresenta uma ligao evidente com o presente, uma vez que a construo do monumento visava, desde o incio, a conscincia das geraes futuras. Por almejarem "a imortalidade, o presente eterno, a essncia incessante", os par-tidrios desse valor combatem a degradao trazida pelas foras ela natureza e as "intervenes destrutivas da mo humana". O que cabe nesse caso so aes frequentes de restaurao capazes de mant-lo vivo e de evocar as condies do momento de sua criao. Dotada de um valor de atualidade, a memria volitiva aproxima--se das obras do presente, fazendo com que o monumento no seja considerado intrinsecamente. Ao contrrio, ele visto "como uma estrutura moderna", dotado da "aparncia externa de roda obra humana em estado de formao, ou seja, que d a impresso de integralidade e de no ter sido afetado pelas influncias naturais".

    Com essa observao, Riegl d incio terceira parte de seu estudo, dedicada relao dos valores de atualidade com o culto dos monumentos. Divididos em dois grupos, que se caracterizam pela satisfao de necessidades sensoriais e espirituais, respecti-vamente, tais valores so reportados ao uso e arte. Como o pr-prio nome indica, o primeiro grupo abarca os aspectos funcionais e o uso dirio do monumento para fins pragmticos. No raro que se instaure um conflito com o valor de antiguidade, ao qual o autor d uma soluo utilitria, baseada no reconhecimento da superioridade do "bem-estar fsico das pessoas" em relao s "necessidades ideais" da herana do passado. A supresso do uso do monumento pelos homens no lhe seria benfica:

    Quem gostaria de ver, por exemplo, a cpula de So Pedro em Roma sem o movimento dos visitantes e o acompanhamento do culto? Mesmo entre os adeptos mais radicais do culto de anriguidade, a viso das runas de uma igreja em uma rua movimentada ou os restos de uma residncia incendiada

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  • por um raio{ ... } provocaria mais incmodo do que prazer. Trata-se de obras que estamos acostumados a ver em plena utilizao pelos homens , e a falta desse uso, que nos familiar, incomoda-nos, por apresentar os efeitos de uma destruio violenta, intolervel mesmo para o culto de antiguidade.

    O segundo grupo est alicerado na ide ia de que todo monu-mento possui um valor de arte, desde que seja capaz de responder s exigncias do moderno Kunstwollen . O conceito subdividido pelo autor em duas categorias especficas: valor de novidade, vol-tado para a valorizao da integridade formal do monumento, que deve ostentar a aparncia de uma obra moderna; valor de arte relativo, que diz respeito a uma apreciao puramente esttica do testemunho do passado, baseada na sensibilidade moderna.

    O valor de novidade est em aberto conflito com o valor de antiguidade, pois privilegia a "forma inalterada" e a "policromia pura". o valor preferido pelo pblico com pouca cultura, que

    prefere enxergar nas obras humanas a fora criativa e vencedora do homem, ao invs da fora destruidora e inimiga da natureza. Apenas o novo e ntegro belo, segundo a viso da multido; aquilo que est velho, fragmentado, des-colorido feio. Essa atitude milenar empresta juventude uma superioridade incontestvel sobre o que velho, e ficou to profundamente enraizada que impossvel derrot-la em algumas dcadas.

    O efeito imediato exercido pelo valor de novidade sobre a massa "ultrapassa em muito o efeito reivindicado para o valor de antiguidade" . Ao rever o que tinha afirmado a respeito da relao de um pblico de massa com o valor de antiguidade, Riegl pro-pe uma tarefa pedaggica:

    devem ser conquistadas cada vez mais classes sociais para o culto do valor his-trico, antes que, com a sua ajuda, a grande massa esteja madura para o culro de antiguidade. Ali onde o valor de antiguidade encontra-se com o valor de novidade, em um monumento no qual persiste o valor utilitrio, no apenas

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    por consideraes prticas[ . .. } mas tambm por motivos ideais[ .. } o culto I e antiguidade dever lograr uma soluo de compromisso.

    O valor de arte relativo, ao contrrio, apangio do pblico dotado de uma cultura esttica: as obras do passado no so vistas apenas como testemunhos da capacidade humana de sobrepujar as foras destrutivas da natureza, mas so tambm apreciadas por sua concepo e fatura. Nesse momento, o Kunstwollen desempe-nha um papel decisivo, pois lhe cabe estabelecer um elo entre a sensibilidade moderna e determinados aspectos da obra dopas-sado - composio, cor, forma- apesar da aparncia no moderna do monumento. Essa perspectiva emptica determina as formas de preservao do monumento, que abarcam tanto a manuten-o do estado em que ele se encontra, quanto "uma restauratio in integrum em oposio completa com as exigncias do valor de anti-guidade". Riegl faz meno tambm a uma relao antiptica com o passado, baseada em uma incompatibilidade entre o Kunstwollen moderno e um determinado monumento, que poderia levar sua destruio por causa do seu "no valor de arte". Embora sua refe-rncia seja o barroco, o historiador coloca em pauta uma questo que se tornar central com a arquitetura moderna, inimiga ferre-nha dos estilos historicistas do sculo XIX e das "extravagncias" do art nouveau, os quais sero excludos do rol dos monumentos a serem preservados com consequncias ponderveis nas reas do patrimnio e dos estudos histrico-artsticos.

    O culto moderno dos monumentos no pode ser dissociado das inovaes metodolgicas introduzidas por Riegl na hist-ria da arte. No momento em que esta coloca em xeque um sis-tema de valores secular, o autor transpe essa mesma inquietao para seu campo especfico de atuao. Como escreve Henri Zer-ner, ele "teve a audcia [ .. . } de negar, pelo menos em teoria, qualquer sistema normativo dos valores, de denunciar a noo

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  • de decadncia, de renunciar segregao entre a grande arte e as artes ditas menores"8 . Em filigrana, tais ideias esto presentes em um estudo que poderia ser simplesmente tcnico, mas que transformado pelo historiador em um diagnstico, em propostas de atuao e em uma poltica de preservao, em virtude de uma viso complexa do monumento e de seus modos de recepo pela sociedade ocidental.

    A anlise dos valores associados ao monumento o ponto de partida para a discusso de diferentes modalidades de conserva-o, que abarcam usos diferenciados e variveis, sem prejuzo de sua primordial funo cultural. Se o monumento um documento imprescindvel para o conhecimento de um dado momento hist-rico, isso no significa que ele no possa desempenhar uma funo prtica, capaz de conferir-lhe uma nova atualidade, sem negar seu aspecto de herana do passado. A discusso dos modos de recepo do monumento constitui, sem dvida, o aspecto fundamental da contribuio de Riegl, defensor de uma preservao ativa e socia-lizada, tanto em termos culturais como em termos pragmticos.

    O que resta de seu legado nos dias de hoje? A ideia de que toda interveno em um monumento no pode prescindir de um juzo crtico, j que o restauro caracteriza-se por ser uma ao sociocul-tural, a requerer "uma investigao preliminar sobre a natureza daquilo que se conserva, a fim de detectar, na vasta gama das pree-xistncias, os papis especficos e as vocaes de cada uma delas"9 . Desse modo, Riegl antecipa as propostas do restauro crticow,

    8. Henri Zerner, A Arte, em Jacques Le Goff; Pierre Nora (orgs.), Histria: Novas Abordagens, trad. Henrique Mesquita, Rio de Janeiro: Livraria Fran-cisco Alves, r976, p. r46.

    9 Franco Minissi, Conservazione dei beni storico-artistici e ambienta/i: Restauro e 11msealizzazione, Roma: De Luca, I978, p. 8.

    r o. Claudia dos Reis e Cunha, "Aiois Riegl e o Culto Moderno dos Monumen-tos", disponvel em: , acesso em 23 mar.2orr.

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    formuladas no segundo ps-guerra por profissionais como Roberto Pane, Renato Bonelli e Agnoldomenico Pica, e transformadas em reflexo terica por Cesare Brandi.

    Alm disso, as consideraes do autor chamam a ateno para o trnsi to social (e natural) do monumento e para sua relao com o devir histrico e com as leituras suscitadas ao longo dos sculos. Riegl demonstra, assim, que estas integram legitimamente uma concepo mais ampla de histria da arte, por trazerem a marca de diferentes momentos do gosto e por afirmarem que a herana do passado uma substncia viva, ainda que sulcada de cicatrizes.

    Annateresa Fabris

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  • NOTA DA EDIO BRASILEIRA

    Para melhor compreenso por parte do leitor, uma vez que mui-tas das definies terminolgicas so abertas a questionamentos, relacionamos abaixo alguns dos termos utilizados no texto, na acepo que lhes d Riegl:

    ARTES PLSTICAS (Bildende kunst): todo produto da criao humana, perceptvel, sensvel, ou melhor "que seja tangvel, visvel ou audvel" e que apresente valor de arte.

    CIVILIZAO (Kultur): para Riegl, e muitos outros, h uma dife-rena entre cultura e civilizao, proveniente do Iluminismo; assim se cultura , grosso modo, antropologicamente, o con-junto de atitudes, valores e conhecimento adquirido e com-partilhado por um determinado grupo social, civilizao se agrega a ideia de progresso, de evoluo das relaes e rea-lizaes coletivas e sociais; assim, aqui, Kulturgeschichte a "histria das civilizaes".

    CULTO DOS MONUMENTOS (Denkmafkuft): o termo "culto" empre-gado para expressar, por meio de seu vnculo com o sagrado, a intensidade consciente do interesse pelos monumentos.

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  • EVOLUO (EntwickLung): termo mais adequado a um texto ancorado em conceitos vigentes no sculo XIX, muiro influenciado pelo darwinismo, ao contrrio de "desenvolvimento", termo mais comum no sculo XX e carregado de conotaes economicistas.

    MONUMENTO (DenkmaL): composio de arte ou escrita (docu-mento), "criada pela mo do homem" e que presentifica na conscincia das geraes posteriores um evento ou pessoa.

    No volvel (UngewoLt): elemento que suscita um valor de memria histrico, independentemente de ter valor artstico ou de sua importncia relativa poca de sua composio.

    Volvel (gewoLt): obras j de incio destinadas a rememo-rar um determinado momento histrico ou personagem.

    QUERER DA ARTE (KunstwoLLen) : tem para Riegl tanto o sentido de um desejo, de uma vontade, portanto consciente , como de uma pulso (ver nota 3 em "Os Valores do Monumento", supra, p. ro, com a nota de edio adjacente), que d ori-gem a afinidades conceituais e formais na arte de uma poca.

    TRAOS DE ANTIGUIDADE (ALterspuren): marcas ou caractersticas devidas ao tempo que assinalam o processo de desfazimento, a deteriorao de uma obra.

    vALOR DE ANTIGUIDADE (ALterswert): interesse ancorado nos valores da memria do indivduo, evocados por uma percepo fsica, que se exterioriza por uma sensao compartilhada por todos os homens sem distino de sua formao intelectual. Todo valor para Riegl dado pelo indivduo e, portanto, subjetivo.

    VALOR DE ARTE (Kunstwert): aquele presente em toda obra que possua uma integralidade em suas propriedades de concep-o, forma e cor e que responda ao "querer da arte" vigente poca de sua composio.

    vALOR DE ARTE ABSOLUTO: seria aquele que seguisse um cnone universalmente considerado como objetivamente vlido, o que para Riegl, e os principais pensadores do sculo XIX, no existe.

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    vALOR DE ARTE RELATIVO: para Riegl o nico que existe se expressa na natureza especfica da obra, em suas propriedades, tal como caracterizadas pelo querer da arte de determinada poca.

    VALOR DE ATUALIDADE OU ATUAL (Gegenwartswerte): O valor em atuao, presentificado.

    VALOR DE MEMRIA OU DE COMEMORAO (Erinnerungswert): tpico de monumentos, e nesse caso revelado pelos traos de antigui-dade, trata-se de um valor que nos transmitido pelo autor ou por ns atribudo e que transcende o valor histrico.

    VALOR DE NOVIDADE (Neuheitswert): valor que toda obra de arte possui apenas por conta da sua "novidade", tambm chamado por Riegl de "elementar".

    VALOR HISTRICO (historischer Wert): trata-se de um valor "objetivo", todo acontecimento do passado constitui um elo insubstitu-vel, irremovvel, de uma corrente evolutiva e os mais repre-sentativos dentre eles so os que dizemos ter "valor histrico".

    VALOR UTILITRIO ou DE uso (Gebrauchswert): o valor que um monumento preserva mantendo-se apto para o uso.

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  • O CULTO MODERNO DOS MONUMENTOS

  • PREFCIO

    As observaes deste ensaio foram realizadas por solicitao da presidncia da Comisso Central de Arte e de Monumentos His-tricos. Trata-se de um projeto de execuo de um plano para reorganizar a conservao pblica dos monumentos na ustria. Nos ltimos tempos, houve uma mudana profunda, segundo o nosso ponto de vista, relativamente s exigncias para o culto dos monumentos o que fez surgir a necessidade geral e urgente dessa reorganizao. A tarefa mais necessria seria a de definir clara-mente a natureza do culto moderno dos monumentos, levando em considerao as mudanas j ocorridas, com a comprovao de sua relao gentica com as fases anteriores de evoluo do culto dos monumentos. As pginas a seguir pretendem dar conta dessa tarefa. Como este ensaio constitui, por si s, um conjunto com-pleto, a presidncia da Comisso Central julgou por bem que dele fosse feita uma verso autnoma acerca do tratamento a ser dispensado aos monumentos na ustria, sem se preocupar com as consequncias prticas que pudessem advir de traz-lo para a opinio pblica.

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  • OS VALORES DOS MONUMENTOS

    E SUA EVOLUO HISTRICA

    Por monumento, no sentido mais antigo e original do termo, entende-se uma obra criada pela mo do homem e elaborada com o objetivo determinante de manter sempre presente na conscin-cia das geraes futuras algumas aes humanas ou destinos (ou a combinao de ambos). Pode tratar-se de um monumento de arte ou de escrita, conforme o acontecimento a ser imortalizado tenha sido levado ao conhecimento do espectador com os meios simples de expresso das artes plsticas ou com auxlio de ins-cries . Geralmente, os dois meios encontram-se associados de forma equitativa.

    A criao e a conservao dos monumentos ditos "volveis", que podemos encontrar e apontar nas pocas mais remotas da cultura humana, no cessou, de forma alguma, em nossos dias . Porm, quando falamos do culto moderno e da conservao dos documentos, no nos referimos aos monumentos "volveis", mas aos monumentos histricos e artsticos, conforme a denominao oficial vigente nos dias modernos, ao menos na ustria. Essa deno-minao, que estava de acordo com as ideias vigentes no perodo abrangido pelos sculos XVI a XIX, poderia atualmente provocar

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  • mal-entendidos, levando em conta a nova concepo da essncia

    do valor da arte, por isso devemos estudar inicialmente o que se

    entende at hoje por "monumentos artsticos e histricos". Conforme a definio geralmente aceita, obra de arte toda

    criao humana tangvel, visvel ou audvel, que apresenta valor

    de arte; sendo monumento histrico toda obra de constituio an-

    loga que possui valor histrico. Os monumentos audveis (da arte musical ou sonora) podem ser excludos desde j das nossas obser-vaes, pois seja qual for o interesse, eles podem ser classificados como monumentos escritos. Nesse sentido, e com referncia unica-

    mente s obras tangveis e visveis das artes plsticas- no sentido

    mais amplo, compreendendo todas as criaes humanas-, pode-

    mos nos questionar: o que valor de arte e o que valor histrico?

    O valor histrico evidentemente o mais abrangente e, por-

    tanto, dever ser tratado em primeiro lugar. Chamamos de hist-

    rico, tudo o que foi e no mais nos dias de hoje. De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentaremos a isso a ideia mais ampla

    de que aquilo que foi no poder voltar a ser nunca mais e tudo o

    que foi forma o elo insubstituvel e irremovvel de uma corrente

    de evoluo ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequncia,

    supe um antecedente e no poderia ter acontecido da forma como

    aconteceu se no tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O

    ponto-chave de todo conceito histrico moderno formado pela

    noo de evoluo. De acordo com os conceitos modernos, toda

    atividade humana e todo destino humano, dos quais nos ficaram

    testemunhos ou conhecimento, pode aspirar, sem exceo, a ter um

    valor histrico, ou seja, todo acontecimento histrico assevera-se como insubstituvel. Porm, como no nos seria possvel considerar

    a massa imensa de acontecimentos, dos quais foram conservados

    testemunhos mediaras ou imediatos e cuja quantidade aumenta ao infinito a cada instante, fomos obrigados a limitar a nossa aten-

    o apenas aos testemunhos que nos parecem representar etapas

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    mais evidentes no processo de evoluo de um determinado ramo

    da atividade humana. O testemunho pode ser um monumento

    escrito, cuja leitura desperta representaes contidas em nossa cons-cincia ou um monumento de arte, cujo contedo percebido de imediato pelos nossos sentidos. Aqui, importante esclarecer que

    todo monumento de arte, sem exceo, caracteriza-se por ser ao

    mesmo tempo um monumento histrico - j que ele representa uma determinada escala na evoluo das artes plsticas -, para o

    qual, a rigor, no pode ser encontrado um substituto absoluta-

    mente equivalente. De forma inversa, todo monumento histrico

    tambm um monumento de arte, pois mesmo um monumento

    escrito banal - como um pedao de papel contendo uma breve

    nota sem importncia - contm ao lado do seu valor histrico

    referente evoluo da fabricao do papel, da escrita, dos mate-

    riais usados para a execuo da escrita etc. toda uma srie de ele-

    mentos de arte: a configurao externa da folha de papel, a forma

    das letras e o tipo da sua composio. claro que esses elementos so insignificantes, e que na maioria dos casos os deixaremos sem

    maior observao, pois possumos outros monumentos que nos

    comunicam o mesmo, de forma mais rica e pormenorizada. Mas

    se o referido papel representasse o nico testemunho artstico que

    tivesse ficado do seu tempo, ele seria considerado, apesar da sua

    pobreza, como um monumento de arte absolutamente indispen-

    svel. Entretanto, a arte, com a qual nos confrontamos por meio

    destas pginas, nos interessa apenas do ponto de vista histrico,

    sendo que o monumento para ns um elo indispensvel da cor-

    rente evolutiva da histria da arte. Na verdade, o "monumento

    de arte" entendido nesse sentido um "monumento histrico-

    -artstico", assim, ele no possui "valor de arte", mas "valor his-

    trico". Resultaria, portanto, que a distino entre monumentos

    "artsticos" e "histricos" no apropriada, pois os primeiros esto

    contidos nos ltimos e se confundem com eles.

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  • Mas ser que apreciamos apenas o valor histrico nos monu-mentos artsticos? Se assim o fosse, todas as obras de arte do pas-sado e todos os perodos de arte deveriam possuir o mesmo valor aos nossos olhos, ganhando apenas pela sua raridade ou antigui-dade um relativo aumento de valor, com um Tiepolo do sculo xvm, por exemplo, sendo mais importante do que os maneiris-tas do sculo XVI. Ao lado do interesse histrico da obra de arte antiga, existe outro elemento, inerente sua especificidade arts-tica e que relativo s suas propriedades de concepo, forma e cor. , portanto, evidente que ao lado do valor histrico que pos-suem, para ns, todas as obras de arte antigas (monumentos) sem exceo, existe um valor de arte intrnseco, que independente da posio que a obra de arte ocupa na cadeia evolutiva histrica. Ter esse valor da arte a mesma objetividade que o histrico, cons-tituindo assim um elemento essencial independente da dimenso histrica do conceito de monumento? Ou, ainda, seria ele uma inveno subjetiva do observador moderno, variando ao bel-prazer do sujeito observador, em cujo caso no teria sentido junto ao con-ceito de monumento como uma obra dotada de valor de memria?

    Para responder a essas questes existem, atualmente, parti-drios com duas opinies diferentes: uma, a mais antiga, ainda no totalmente ultrapassada, e a outra, mais recente, que tende a ultrapass-la. Desde a Renascena - quando, como ser mos-trado mais adiante, o significado do valor histrico foi primeiro reconhecido -at o sculo XIX prevalecia a tese de que existia um cnone artstico rgido, um ideal artstico objetivo e absoluto, que seria a aspirao de todos os artistas e que quase nenhum deles poderia alcanar por completo. Inicialmente, considerou-se que a Antiguidade tinha-se aproximado desse cnone e que cer-tas criaes representavam o prprio ideal. O sculo XIX aboliu definitivamente essa pretenso da Antiguidade, emancipando ao mesmo tempo quase todos os perodos conhecidos da arte com seu

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    significado independente, sem abandonar a crena em um ideal artstico objetivo. Somente no incio do sculo xx, resolveu-se tirar a consequncia necessria das ideias de evoluo histrica, considerando toda a criao artstica do passado, para ns, como irremediavelmente concluda, desprovida, portanto, de qualquer importncia cannica. Contudo, no nos limitamos a apreciar as obras modernas, mas tambm as antigas, colocando-as mesmo acima das modernas. Isso poderia ser explicado - para alm do fator esttico sempre presente no interesse histrico - pelo fato de que determinadas obras antigas correspondem, ainda que par-cialmente, ao querer da arte moderno e justamente o apareci-mento dessas partes correspondentes sobre um fundo discordante que confere obra antiga uma eficcia sobre a nossa sensibilidade. Jamais uma obra de arte moderna, que necessariamente deve pres-cindir desse fundo, ter essa eficcia. De acordo com os conceitos atuais, no existe um valor da arte absoluto, mas apenas um valor relativo, moderno.

    Consequentemente, a definio do conceito de "valor da arte" deve variar de acordo com a viso adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que res-ponde s exigncias de uma esttica supostamente objetiva, mas jamais formulada at agora de maneira correta. Segundo o con-ceito moderno, o valor da arte de um monumento medido pelo modo como ele atende s exigncias do querer moderno da arte, exigncias essas que no foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o sero, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.

    Para a nossa tarefa, torna-se uma condio muito importante esclarecer completamente essa diferena quanto essncia do valor da arte, pois, para a preservao dos monumentos, esse princpio orientador ter uma influncia decisiva. Se no existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte

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  • de um monumento no mais um valor de memria, mas um valor de atualidade. A preservao dos monumentos deve levar em considerao esse valor presente, pois sendo at certo ponto o valor atual prtico oposto ao valor histrico de memria do pas-sado, necessita de ateno mais urgente, uma vez que ele acaba por eliminar o conceito de "monumento" .

    Reconhecendo que essa concepo da essncia do valor da arte se imps de forma inexorvel nos ltimos tempos como resultado final de toda a imensa atividade de pesquisa de histria da arte do sculo xrx, no se poder falar mais no futuro de "monumentos his-tricos e de arte", mas somente de "monumentos histricos" e ser nesse sentido que esse termo dever ser empregado daqui para frente .

    Os monumentos histricos "volveis" so contrrios aos "no volveis", mas fica claro que todos os monumentos volveis podem ser ao mesmo tempo no volveis, representando apenas uma pequena frao destes. Os autores dessas obras, que hoje em dia so consideradas histricas, pretendiam satisfazer certas necessi-dades prticas ou ideais deles prprios, de seus contemporneos ou de seus herdeiros mais prximos e, em geral, no imaginaram deixar para as geraes dos sculos seguintes os testemunhos da sua vida artstica e cultural, como criadores.

    A denominao de "monumentos", usada para essas obras, deve ser entendida no em sentido objetivo, mas em sentido subjetivo. Seu significado e importncia no provm da sua destinao origi-nal, mas daquilo que ns sujeitos modernos atribumos a eles. Nos dois casos, de monumentos volveis e no volveis, trata-se de valo-res de memria e por isso falamos em "monumentos". Em ambos os casos, a obra nos interessa em sua forma original, aquela na qual saiu das mos do seu criador, sem mutilaes, ou ainda na forma pela qual tentamos reconstitu-la pelo olhar ou pensamento, por meio de imagens ou da palavra. No primeiro caso, o valor de memria nos outorgado pelo autor; no segundo, ele atribudo por ns.

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    Entretanto, o interesse que a ns modernos nos inspirado pelas obras deixadas pelas geraes passadas, no esgotado, de modo algum, pelo "valor histrico". As runas de um castelo, por exemplo, cujas muralhas deterioradas revelam muito pouco da forma, tcnica, disposio dos espaos etc., para satisfazer um inte-resse artstico ou histrico-cultural, e s quais tambm no esto ligadas lembranas em crnicas, no devem o seu valor histrico ao interesse que ns, modernos, demonstramos. Da mesma forma, diante de um antigo campanrio, devemos distinguir entre lem-branas histricas dos mais diversos tipos, mais ou menos localiza-das, que a sua imagem desperta em ns e a representao geral no localizada do tempo que "agiu" sobre o campanrio e que se revela, de forma imediata, nos traos perceptveis da sua antiguidade. A mesma distino observada nos monumentos escritos. Uma folha de pergaminho do sculo xv, com a simples meno de uma tran-sao de compra de um cavalo, desperta em ns, no apenas com os seus elementos de arte iguais runa do campanrio, um duplo valor de memria (um histrico, pelos elementos da forma do papel, dos caracteres etc.; e o outro, agora em questo, devido ao amarelado e ptina do pergaminho, palidez das letras), mas tambm por seu contedo escrito: o valor histrico pelas condies da transao (histria do direito e da economia), pelos nomes (histria poltica, genealogia, de colonizao), e outro valor pela lngua estranha, as locues no habituais, noes e julgamentos que mesmo o indiv-duo, sem possuir formao em histria, identifica como ultrapas-sadas e fazendo parte do passado. O interesse nesses casos fica, sem dvida, arraigado nos valores da memria, ou seja, a obra ser con-siderada, sob esse ponto de vista, como monumento no volvel. Devemos esclarecer que esse valor de memria no relacionado obra no seu estado de criao, mas representao do tempo trans-corrido desde a sua origem e que revela os traos de antiguidade. Se a concepo dos monumentos "histricos" frente aos "volveis"

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  • pode ser classificada como subjetiva, apesar de tratar-se de um objeto slido (da obra original, concluda individualmente), ento, a obra original nesta terceira classe de monumentos, o objeto, se encontra

    . reduzido a um mal necessrio.

    O monumento apresenta-se como no mais do que um subs-trato- evidente e inevitvel- para evocar no observador contem-porneo a representao do ciclo da gnese e do desaparecimento, o surgimento do indivduo para alm da generalidade e a sua disso-luo gradual no universo, premido pela natureza. Desde que essa evocao no pressuponha experincias cientficas, nem exija, para a sua satisfao, quaisquer conhecimentos adquiridos por inter-mdio da formao histrica, mas seja provocada unicamente por uma percepo fsica, que se exterioriza por uma sensao; ela pode ser compartilhada no apenas pelos homens cultos, para os quais a conservao dos monumentos fica necessariamente limitada aos histricos, mas estender-se tambm para as massas, para todos os homens sem distino de formao intelectual. Sob semelhante pretenso universalidade, que possui pontos em comum com os sentimentos religiosos, funda-se o significado profundo desse novo valor de memria do monumento que a seguir ser deno-minado de "valor de antiguidade".

    Resulta dessas indicaes que o culto moderno dos monumen-tos no est restrito preservao dos "monumentos histricos" e exige tambm para os "monumentos antigos" um cuidado reve-rente. Assim, como os "monumentos volveis" esto contidos sem exceo nos "monumentos histricos no volveis", todos os monu-mentos histricos sero encontrados nos monumentos antigos. As trs classes de monumentos distinguem-se pela crescente ampliao da medida pela qual o valor de memria consegue alcanar validade.

    Na classe dos monumentos volveis, encontram-se somente aquelas obras que, pelo desejo dos seus criadores, deveriam lembrar

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    um determinado momento (ou vrios momentos) do passado. Na classe dos monumentos histricos, expande-se o crculo com a incluso das obras que indicam um determinado momento, mas cuja escolha foi resultado da nossa vontade subjetiva. Na classe dos monumentos da antiguidade, contam-se, enfim, todas as obras feitas pela mo do homem, sem levar em considerao o seu signi-ficado original e sua destinao, desde que o seu aspecto externo revele com suficiente evidncia que a obra existe por longo espao de tempo antes da poca presente e que conseguiu "sobreviver". Assim, as trs classes aparecem como trs estgios sucessivos de um processo crescente de generalizao do conceito de monu-mento. Um breve apanhado da histria da preservao e assistncia aos monumentos mostrar de que modo foram sendo desenvolvi-das nessa mesma sequncia.

    Numa poca em que no existia nenhum reconhecimento pelos monumentos no volveis, os monumentos volveis desa-pareciam irremediavelmente destrudos ou arruinados, to logo desapareciam aqueles aos quais eles eram destinados e que tinham algum interesse na sua preservao. Em toda a Antiguidade e na Idade Mdia s se conheceram os monumentos volveis. Uma des-crio mais detalhada das fases de evoluo desse longo perodo estenderia demais este relato. Deve-se mencionar que, no Oriente antigo, os monumentos eram principalmente volveis por indiv-duos, ou famlias, enquanto poca dos gregos e dos romanos apa-receu o monumento patritico, que desde o incio foi colocado sob a proteo de grandes associaes de interesse. Com essa amplia-o do crculo de interesses, estava sendo fornecida a garantia de uma existncia mais longa, mas, por outro lado, menor ateno foi dada aos cuidados anteriores, no que diz respeito escolha do material, antes, de preferncia, imperecvel e indestrutvel. Com relao Antiguidade tardia, uma ocorrncia aparente do valor de antiguidade ser examinada e esclarecida adiante. Mais tarde,

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  • ou seja, na Idade Mdia, comeou a se estabelecer a tendncia de transio gradual para o advento de monumentos no volveis, o que justificvel.

    Na Idade Mdia, uma obra como a Coluna de Trajano deve-ria ser considerada como fora do padro vigente, quando j rura o velho imprio, cuja glria e poder invencvel as geraes poste-riores deveriam ter sempre presente. Ela sofreu diversas mutila-es, sem que algum tivesse cogitado sua restaurao. O fato de que ela tenha se mantido em p, pode dever-se principalmente aos vestgios ainda vivos do patriotismo romano, que no che-gara a desaparecer at ento. Dessa maneira, devemos considerar a Coluna de Trajano, mesmo durante esse perodo histrico e de forma limitada, como um monumento volvel. Entretanto, at o sculo xrv, sempre existiu o perigo de que a coluna pudesse ser sacrificada em nome de alguma necessidade prtica, perigo que, a partir da Renascena at os nossos dias, foi eliminado e prova-velmente permanecer assim no futuro.

    Tal mudana foi provocada pelo fato de que desde o sculo XV houve na Itlia a formao de um novo valor de memria. Teve incio a apreciao dos monumentos da Antiguidade, no mais apenas pelas lembranas patriticas do poderio e da grandeza do antigo Imprio, que o romano da Idade Mdia - em uma fico extravagante - ainda considerava existente ou apenas provisoria-mente interrompido, mas pelo seu "valor de arte e valor hist-rico". Agora, no apenas monumentos como a Coluna de Trajano, porm mesmo fragmentos de uma cornija ou de um capitel esta-vam sendo considerados dignos de ateno, o que prova o inte-resse pela arte antiga. Da mesma forma, at inscries de valor aparentemente insignificante, contanto que fossem antigas, esta-vam sendo reunidas e catalogadas, o que revela o despertar de um interesse propriamente histrico. A verdade que esse novo interesse histrico-artstico limitava-se exclusivamente s obras

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    dos povos da Antiguidade, que os italianos da Renascena consi-deravam como os seus ancestrais, o que explica o dio simultneo que nutriam pelos gticos, considerados brbaros. Assim, uma observao evolucionista da histria substituiu a interpretao precedente da ligao com os monumentos volveis e seu signifi-cado essencialmente patritico (egoisticamente estatal, popular, comunitrio, familiar). Mas no devemos esquecer o que fun-damentalmente novo: pela primeira vez, os homens reconhecem os pioneiros estgios da sua prpria atividade artstica, cultural e poltica em obras e aes das quais esto separados por mais de mil anos. O interesse pelos monumentos volveis, que tendia a desapa-recer com as geraes pertinentes foi, ao menos provisoriamente, perpetuado por um tempo maior por um povo que via os atos de geraes desaparecidas h muito tempo como parte dos seus pr-prios atos, e as obras dos presumveis ancestrais como parte das suas prprias atividades. Nesse sentido, o passado adquiriu um valor de atualidade para a vida moderna e para o trabalho. Graas a isso, o interesse histrico dos italianos foi despertado, embora restrito unicamente pr-histria do prprio povo. Essa limitao, naquela poca, era necessria e o interesse histrico no poderia existir de outro modo exceto na forma semiegosta do interesse patritico-nacionalista. Seriam necessrios vrios sculos at que adquirisse a configurao moderna que apresenta hoje, principal-mente entre os povos germnicos: o interesse de todos, mesmo por fatos e acontecimentos os mais insignificantes de povos separados da nossa prpria nao por inconciliveis diferenas de caracters-ticas; um interesse pela histria da humanidade, na qual reconhe-cemos cada indivduo em particular como parte de ns mesmos.

    Deve ser assinalado que, na mesma poca em que foram des-cobertos o "valor da arte e o valor histrico" dos monumentos antigos, foram decretadas as primeiras leis de proteo aos monu-mentos ( muito importante o decreto de Paulo III, de 28 de

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  • novembro de 1534). Como o direito tradicional nunca reconheceu a proteo aos monumentos no volveis, sentiu-se de imediato a obrigao de promulgar uma legislao especial de proteo para s valores recm-descobertos.

    Pode-se afirmar com justeza que a partir da Renascena ita-liana- com o despertar consciente da apreciao dos monumentos antigos, e com a aplicao de medidas para a sua proteo- ini-ciou-se a verdadeira preservao dos monumentos, no sentido moderno da palavra.

    No entanto, preciso esclarecer que a concepo do valor de memria dos italianos da Renascena, no coincide, de modo algum, com a nossa deste incio do sculo xx. De um lado, como j foi dito, havia a nova ligao gentica da preservao dos monu-mentos no volveis quela anterior, dos volveis, em virtude da limitao patritica da valorizao da arte apenas dos presumidos ancestrais e somente da Antiguidade. Por outro lado, ainda no existia o valor de antiguidade; apenas ideias pouco claras res-peito. Assim, mesmo o valor histrico que os italianos associavam aos monumentos antigos, no estava distante daquele que foi ple-namente reconhecido no final do sculo XIX. No perodo renascen-tista, iniciou-se a distino entre valor de arte e valor histrico, ou seja, entre monumentos de arte e monumentos histricos que, como demonstrado anteriormente, foi vlida at o sculo XIX, tendo ocorrido apenas em nossa poca a sua superao. Naquela poca, eram apreciadas as forma antigas como tais , enquanto a arte que as havia criado era a nica, verdadeira, objetiva, vlida universalmente pela eternidade, em face da qual, qualquer outra arte (com exceo da arte italiana de ento) era considerada em parte como estgio i~perfeito ou, em parte, como desfigurao brbara. Esse ponto de vista rigoroso normativo, autoritrio e antigo-medieval, mas no histrico no sentido moderno, pois no reconhece a evoluo. A valorizao da Antiguidade por parte dos

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    italianos da Renascena tambm tinha o seu lado histrico, na medida em que eles eram considerados os antecessores da Renas-cena italiana. Em geral, no se arriscava pensar em um estgio preliminar da evoluo histrica, embora tenha ocorrido afirmar--se, por exemplo, de Michelangelo, que algumas de suas obras teriam ultrapassado a Antiguidade, o que demonstra, claramente, que mesmo os monumentos ~ntigos no possuam valor eterno, mas apenas valor relativo, podendo exigir assim o seu correspon-dente valor histrico. Mas a ideia de que os italianos da Renas-cena, depois de ultrapassado um perodo de invases brbaras, tivessem reencontrado a sua identidade e tivessem simplesmente prosseguido com a arte antiga que lhes era inata, no deixa de ser ela mesma uma ideia histrica, pois a ideia de evoluo j se encontra includa, na medida em que - por sua nacionalidade, atribui-se aos italianos da Renascena uma fora obrigatria por natureza -, os comprometia como herdeiros culturais dos povos antigos da mesma origem. "

    Era absolutamente vlida do ponto de vista da Renascena italiana, a diferenciao dos monumentos no volveis em monu-mentos de arte e monumentos histricos, que do ponto de vista moderno teve de ser rejeitada. Pode-se mesmo dizer que o valor de arte inicialmente era o valor determinante, e o valor histrico, que j havia sido de fato real e nico, passou a segundo plano. O processo de evoluo do culto dos monumentos nos sculos seguin-tes, inclusive no sculo XVIII, pode ser definido como tendo a par-ticipao crescente de outros povos, principalmente germnicos e semigermnicos. A perfeio objetiva da Antiguidade no foi diretamente contestada, mas frente ao sentido dado pelos italia-nos da Renascena, foi ficando cada vez mais limitada pela cres-cente valorizao de outros tipos de arte. Apesar disso, no foram estabelecidas leis de proteo aos monumentos. De um lado, os monumentos antigos foram perdendo o seu significado cannico,

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  • embora os papas da Renascena achassem que era seu dever pro-

    teg-los; de outro, os tipos de arte no antigos no tinham sufi-

    ciente autoridade para fundamentar uma demanda de proteo.

    O sculo XIX, com toda razo denominado "o sculo da

    histria" pois, muito mais do que antes e mesmo depois - por

    aquilo que hoje podemos observar- , encontrou prazer no desco-brimento e na observao carinhosa do fato real e nico, ou seja, do ato humano no seu estado de pureza original. O estabeleci-

    mento muito preciso de um fato histrico foi sua pretenso mais

    desejada. As chamadas cincias auxiliares no foram mais consi-deradas disciplinas anexas, pois parecia que a atividade essencial

    da pesquisa histrica se esgotava nelas. Os textos menos vistosos

    eram lidos com prazer, sendo verificada a sua autenticidade. O pos-

    tulado da importncia da histria da humanidade, dos povos, dos

    Estados e da Igreja, que at ento tinha determinado o valor hist-rico, embora no assumidamente, foi sendo suprimido de maneira

    progressiva. No entanto, levantou-se poderosamente a histria da

    civilizao, para a qual os menores e, simplesmente, os menores

    objetos, podem ter um significado que se encontra na convico histrica de que para a evoluo e por vontade da evoluo, o ele-

    mento mais insignificante adquire um valor objetivo em relao ao seu material, seu desenvolvimento de trabalho, sua destinao.

    Com a inevitvel e constante reduo desse valor objetivo do monumento, a evoluo em que so gerados todos os valores ganha

    progressivamente importncia frente aos diversos monumentos.

    O valor histrico, aderido de forma indissolvel ao individual,

    transformou-se pouco a pouco em um valor evolutivo, indife-

    rente ao individual, visto como objeto. Esse valor evolutivo o valor de antiguidade, que conhecemos h pouco e que pode ser

    definido como o produto lgico do valor histrico que o precedeu

    quatro sculos atrs. Sem o valor histrico, o valor de antiguidade

    no teria nascido. Se o sculo XIX foi o sculo do valor histrico,

    44

    o sculo XX parece ser o do valor de antiguidade. Por enquanto,

    encontramo-nos ainda no estgio da transio, que naturalmente

    tambm deve ser um estgio de luta.

    O conjunto todo do processo relatado, que a partir do valor volitivo do monumento, passando pelo valor histrico, chega

    ao valor de antiguidade, observado de uma perspectiva gene-

    ralizante, apenas um fenmeno parcial daquilo que marca os

    tempos modernos, a emancipao do indivduo. Desde o fim do

    sculo XVIII, essa emancipao apresentou um forte avano e, salvo

    engano, a partir do fim do sculo XIX, pelo menos para uma parte

    dos povos de civilizao europeia, substituiu aos poucos os funda-

    mentos clssicos da cultura por outros, bem diferentes. A mudana

    caracteriza-se pela tendncia cada vez maior de entender toda

    experincia fsica e psquica, no mais na sua essncia objetiva, como em geral se dava nos perodos precedentes da civilizao,

    mas em sua aparncia subjetiva, ou seja, por meio dos efeitos sen-sorial-perceptvel ou intelectual conscientes que ela exerce sobre

    o sujeito. Tal tendncia expressa claramente pela transformao do valor de memria, de tal forma que o valor histrico que, por

    assim dizer, situa-se objetivamente frente ao sujeito observador, ganha em interesse, ao passo que o valor de antiguidade , em

    princpio, totalmente abstrado do fenmeno especfico localizado.

    apreciado somente o efeito subjetivo de cada monumento, sem levar em considerao as propriedades objetivas ou, dito mais cla-ramente, levando em considerao apenas aquelas propriedades

    que indicam o desfazer-se do monumento na universalidade (tra-os de antiguidade) em lugar daquelas que revelam a sua indivi-dualidade objetiva, original e consumada.

    No sculo XIX, no apenas se apreciou ao mximo o valor

    histrico, mas a ele tambm se introduziu uma proteo legal.

    A crena em um cnone objetivo de arte, que desde a Renas-cena comeara a vacilar, pois a Antiguidade no mais se mostrava

    45

  • apropriada para exercer esse papel de forma contnua, foi trans-ferida para rodos os perodos de arte, o que explica o desenvolvi-mento sem precedentes da pesquisa da histria da arte.

    Conforme a concepo do sculo XIX, em roda forma de arte deveria haver uma parcela do cnone eterno da arte. A manuten-o eterna dos testemunhos deveria servir nossa satisfao est-tica, e as obras, considerando os numerosos valores do presente, deveriam ser cercadas pelos muros protetores da lei. Leis e decre-tos do sculo XIX foram inteiramente adaptados ideia de que nos monumentos no volveis- ao lado do valor de arte presumi-damente objetivo- apenas existiria o valor histrico e, em razo disso, a legislao mostrou-se insuficien~e no momento em que surgiu o valor de antiguidade.

    No decorrer deste breve texto sobre a evoluo do culto aos monumentos, devem ser examinados alguns faros que, primeira vista, podem parecer inconciliveis . Se na Antiguidade j encontra-mos exemplos autnticos de piedosa conservao de obras de arte antigas, no devemos, de forma alguma, ver a sintomas de um culto de monumentos no volveis, mas apenas do culto de representaes vivas, especialmente representaes religiosas, no possuindo valor de memria (monumentos), e sim um valor de atualidade bem real.

    A piedade no era referente obra humana, mas divindade, que havia tomado uma residncia provisria na sua forma efmera. Pela pretenso ao imperecvel, por causa do seu valor de atuali-dade, se cada esttua antiga de um deus fosse desprovida da marca distintiva desse tipo de monumento- a marca da perpetuao de um determinado momento-, poderia ser considerada como monu-mento volvel, seja de um ato ou de um acontecimento particular.

    No incio do Imprio Romano, por outro lado, encontra-mos o culto das obras de arte antigas, da arte pela arte. talvez a mais desconcertante das numerosas analogias que esse perodo apresenta confrontado com os nossos dias. Plnio e Petrnio, em

    46

    especial, nos legaram numerosos testemunhos sobre o amor de seu tempo pelas antiguidades. Um exemplo comum, concomi-tante s duas pocas, a preferncia por obras de arte antigas em detrimento das modernas.

    Conhecemos ainda pouco sobre as circunstncias nas quais se originou e se formou a arte no incio do Imprio Romano, para podermos examinar esse surpreendente fenmeno com clareza sufi-ciente. No obstante, chama a nossa ateno, pelos relatos que esto ao nosso alcance, que os amantes das artes estivessem vidos por adquirir obras de escultores e pintores famosos dos sculos v e IV a.C. No pode ser coincidncia que os colecionadores, segundo as fontes que possumos, no fossem tanto colecionadores de arte e si!D colecionadores de raridades. Parecia tratar-se de um esporte de uma classe muito rica, querendo criar novos valores, rivalizando entre si pelas posses, e o declnio da religio grega e de seu pan-teo de divindades deve ter contribudo para isso.

    O desaparecimento rpido e sem deixar vestgios de todo esse fenmeno, que no ultrapassa o sculo III, d provas de no se tra-tar de um movimento profundo do esprito antigo. Isso tambm explica que o Estado no tenha protegido essas raridades por meio de leis e decretos. Nenhum historiador poder negar que o fen-meno ficou relegado evoluo geral das artes plsticas no incio do imprio. Poder-se- pensar em uma nova e poderosa recepo ptica das coisas e em sua restituio s artes plsticas, o que no deixa de ser uma caracterstica da poca moderna. Talvez a estima dos romanos dos sculos I e n d.C. pelas antiguidades aparea como um antecedente anacrnico do valor de memria moderno. De qualquer modo, nenhuma evoluo posterior conseguiu vin-gar, pois no tempo das grandes migraes tudo era confundido mil vezes com piedade, como a arte pag e o culto das divindades.

    Da mesma forma, um estudo particular deveria ter como resul-tado que o valor de antiguidade comeou a anunciar-se bem antes

    47

  • do incio do sculo XX, em vrias manifestaes vagas e limitadas,

    quando se tornou uma fora cultural decisiva. Mas preciso tomar

    o cuidado de no levar em considerao fenmenos que possuam

    apenas semelhana externa com o culto do valor de antiguidade.

    Isso vale, em especial, para o culto s runas, que utilizamos ante-

    riormente como exemplo para o valor de antiguidade, que, sem

    dvida, pode ser rastreado at o sculo XVII. O culto moderno s

    runas, apesar da correspondncia externa, totalmente diferente,

    na sua tendncia bsica, do culto precedente, o que no exclui uma

    ligao evolutiva, antes, ao contrrio, a promove.

    Os pintores de runas do sculo XVII, mesmo os mais nacio-

    nalistas, entre os quais os holandeses, usavam quase que exclusiva-

    mente runas antigas, comprovando que um determinado momento

    histrico estava em jogo. Todo elemento romano representava um smbolo de grandeza e glria terrestre. As runas deveriam trazer

    para a conscincia do espectador o tpico contraste barroco entre a

    grandeza do passado e a decadncia do presente. Ao mesmo tempo,

    o profundo pesar pelo declnio e o desejo de conservar o antigo, so uma espcie de voluptuosa agitao na dor que constitui o valor

    esttico do pthos barroco, acalmado ocasionalmente pela inocncia

    de um idlio pastoral. O sentimento do barroco estranho ao sen-

    timento moderno: os traos de antiguidade agem sobre o moderno

    de forma apaziguadora, como testemunhos do curso regular da

    natureza qual submetida de forma infalvel e segura toda obra

    humana. As marcas de uma destruio violenta nas runas de um

    castelo no parecem ser mais propcias para suscitar no espectador

    moderno uma evocao de antiguidade. Se, apesar disso, as runas

    ilustram o valor de antiguidade antes mencionado, isso acontece

    porque, falando por alto, elas o tornam claramente perceptvel, per-

    feito para satisfazer a sensibilidade do homem moderno.

    48

    A RELAO DOS VALORES DE MEMRIA

    COM O CULTO DOS MONUMENTOS

    Distinguimos, nos monumentos, trs diferentes valores de mem-

    ria e devemos, a seguir, examinar quais as exigncias que resultam

    da natureza de cada um desses valores para o culto dos monu-

    mentos. Em seguida, sero observados os demais valores que um

    monumento pode oferecer ao homem moderno. No seu conjunto, os valores da atualidade podem ser confrontados com os valores

    de passado ou de memria.

    Na discusso dos valores de memria, o ponto de sada so

    os valores de antiguidade, no apenas por serem os mais recen-

    tes, mas tambm por seu promissor porvir e porque abrangem o

    maior nmero de monumentos.

    O Valor de Antiguidade

    A antiguidade de um monumento apresenta-se, a um primeiro

    olhar, pelo seu aspecto inatual. Tal aspecto no devido tanto ao

    estilo fora de moda, que bem poderia ser imitado e o seu conheci-

    mento e avaliao seriam ento limitados quase que exclusivamente

    ao crculo restrito dos historiadores de arte qualificados, ao passo que

    49

  • o valor de antiguidade tem a pretenso de influenciar grandes mas-

    sas. Em contraposio com o tempo presente, a antiguidade revela-

    -se como algo incompleto, qual falta coerncia, por certa tendncia

    dissoluo da forma e da co"r, que constituem caractersticas cla-

    ramente opostas s do objeto moderno, ou seja, criaes recentes. Toda atividade humana que d forma a algo no outra coisa

    que a reunio de uma quantidade de elementos informais ou dis-

    persos na natureza, em um todo limitado pela cor e pela forma.

    Nessa atividade, o homem age igual natureza: os dois produ-

    zem indivduos delimitados. Essa caracterstica de integralidade

    exigida ainda hoje como pr-requisito para toda obra moderna. A histria da arte nos ensina que o desenvolvimento humano

    do querer da arte cada vez mais voltado para uma integrao de

    cada obra de arte ao seu ambiente, e nisso o nosso tempo apre-

    senta-se por natureza como o mais progressista. Contudo, a des-

    peito dos nossos cottages caprichosos*, apesar de quadros como La

    figlia di lorio, de Michetti, em qu o enquadramento corta a cabea de uma personagem em p, no centro do quadro, a formao de

    um todo atravs do contorno permanece ainda hoje como o pos-tulado inevitvel de toda a criao de arte. Nessa integralidade

    existe um momento esttico, um valor elementar de arte, de que

    trataremos a seguir, sob a denominao "valor de novidade" ao tra-

    tarmos dos valores da atualidade. A falta de unidade de obras

    modernas nos desagradar, e por isso que no construmos ru-

    nas, a no ser para falsific-las, e uma casa recm-construda, com

    o revestimento desmoronando ou oxidando, perturba o observa-

    dor, que exige de uma casa nova uma perfeio no acabamento da

    forma e da policromia. Naquilo que foi criado novo, os sinais de

    runa no agem de forma expressiva, mas de forma irritante.

    * Aqui, no sentido de extravagante, assim como o enquadramento da obra de Francesco Paolo Michetti (N. da E.).

    50

    To logo o objeto individual, elaborado pelo homem ou pela natureza, esteja enformado, comea a atividade destruidora da pr-pria natureza, isto , as suas foras mecnicas e qumicas tendem

    a desagregar novamente o indivduo em seus elementos, a fundi-

    -lo novamente na natureza amorfa. pelos traos desse processo que reconhecemos que um monumento no se originou em um

    tempo recente, mas em um tempo mais ou menos passado e na

    percepo desses traos que seu valor de antiguidade repousa. O

    exemplo mais drstico, como j foi dito, oferecido pelas runas de um castelo com a progressiva e lenta desagregao de partes

    palpveis. A antiguidade se exprime mais pelo efeito ptico da

    decomposio da superfcie - influncia do tempo, ptina - , do

    desgaste de ngulos e cantos, que revela, portanto, a inexorvel e

    implacvel ao de dissoluo provocada pela natureza. O princpio esttico fundamental do nosso tempo, sobre o

    qual repousa o valor de antiguidade, pode ser formulado como

    segue: da mo do homem, exigimos a produo de obras integrais,

    como smbolos da gnese necessria, ao passo que da natureza exi-gimos a dissoluo da integralidade, igualmente como smbolo,

    necessrio e de lei, do decurso desagregador*. Em uma obra recente feita pela mo do homem, os fenmenos do

    decurso desagregador (decaimento prematuro) nos incomodam tanto quanto em uma obra antiga os fenmenos de gnese recente (restau-raes que do na vista). Trata-se, principalmente, do ciclo necessrio da gnese e do definhar, cuja percepo transparente agrada ao homem moderno do incio do sculo XX. Toda obra passa a ser entendida

    como um organismo natural, cuja evoluo ningum deve contrariar. O organismo deve desenvolver-se livremente, cabendo ao homem

    proteg-lo da morte prematura. Dessa forma, o homem moderno v

    No original, Vergehens, denotando a "ao de passar" em todas as suas acep-es, mas no havendo em portugus termo equivalente, em toda a sua abrangncia, optamos pela soluo acima (N. da E.).

    51

  • no monumento uma parte da sua prpria existncia, ele acha ino-

    portuna toda interveno neste, sentindo-o como uma interveno

    no seu prprio organismo. O reinado da ao da natureza, mesmo

    no seu lado destruidor e dissolvente, que deve ser entendido como

    renovao constante da vida, tem de ser protegido pelos mesmos

    direitos que o reinado do trabalho criativo do homem' . O que deve ser rigorosamente evitado a transgresso arbi-

    trria dessa lei: a interveno da gnese no decurso desagregador,

    inibindo a atividade da natureza pela mo do homem, que parece

    um sacrilgio to impiedoso como, reciprocamente, a destruio

    prematura de obras humanas pelas foras da natureza. Se, do ponto de vista do valor de antiguidade, o efeito esttico

    do monumento so os sinais da degradao, da dissoluo da obra

    humana, pelas foras mecnicas e qumicas da natureza, resulta disso

    que, para o culto do valor de antiguidade, a conservao do monu-

    mento em estado inalterado seria contrrio ao seu interesse. Como a

    degradao regular e inexorvel, a satisfao esttica do espectador

    moderno de monumentos antigos no exige a paralizao da conser-vao, mas o constante movimento de alterao das foras naturais,

    desde que estas atuem com regularidade e no de forma destrutiva,

    com a violncia sbita de uma destruio pelas mos do homem. Do ponto de vista do culto de antiguidade, um fator deve

    ser absolutamente evitado: a interveno arbitrria do homem na

    existncia do monumento. Ele no pode sofrer acrscimos nem

    redues, nem restituies daquilo que as foras naturais degra-

    daram com o tempo e sequer a supresso do que, lhe tendo sido

    acrescentado, tenha alterado a forma original.

    r. Outros fatos caractersticos da vida cultural contempornea, em especial dos povos germnicos, tm a mesma origem do valor de antiguidade: so os esfor-

    os de proteo aos animais, ou seja, o senso paisagstico, que levou proteo no apenas de algumas plantas, mas de florestas inteiras e at exigncia legal para a proteo de "monumentos naturais", o que inclui materiais inorgnicos

    no ciclo dos indivduos que necessitam de proteo.

    52

    A impresso da degradao natural no deve ser perturbada

    pela interferncia de nova e arbitrria gnese. O culto da anti-

    guidade no apenas condena toda destruio violenta pela mo

    do homem como tambm a interveno criminosa nas foras de

    dissoluo da natureza, pelo que ele age de um lado no sentido da

    conservao do monumento e, de outro, querendo dominar as leis

    naturais, ele contraria diretamente a conservao do monumento.

    No podem existir dvidas de que a atividade das foras natu-

    rais leva destruio total do monumento. Na medida em que se

    degradam, as runas tornam-se cada vez mais pitorescas quanto

    mais partes so sujeitas dissoluo; o seu valor de antiguidade, provocado pelas partes cada vez menos numerosas, com a cres-

    cente degradao fica cada vez menos extenso, sendo que as partes

    remanescentes atuam de forma mais insistente sobre o espectador.

    Porm, esse processo tem o seu limite, pois quando seu progresso

    total no resta mais substrato para intensificar esse efeito. Um

    monte disforme de pedras no suficiente para dar ao especta-

    dor o valor de antiguidade; deve haver pelo menos algum trao

    da forma original, da obra humana da gnese passada, pois uma

    pilha de pedras no representa nada alm de fragmentos mortos,

    disformes, sem nenhum vestgio de uma criao viva. Vemos, assim, o culto de antiguidade trabalhar a favor de sua

    prpria destruio'. Os seus adeptos no protestaro contra essa

    ideia. A atividade desagregadora das foras naturais, inicialmente,

    muito lenta, de tal forma, que mesmo monumentos milenares

    ainda persistiro, por bom tempo, ao menos durante o tempo em

    2. Naturalmente, nada mais longe do culto de antiguidade do que a vontade de

    acelerar essa destruio. A ruina no o objetivo final, como pode parecer, sempre prefervel, por exemplo, um castelo medieval bem conservado. Embora os efeitos de memria do ltimo sejam menos intensivos do que os da runa, os traos de antiguidade oferecidos compensam qualquer falta, mostrando de fato

    uma obra humana que, ainda que em menor estado de degradao, tem nas suas partes degradadas as mais importantes.

    53

  • que perdurar o seu culto. Por outro lado, h tambm o progresso

    contnuo e sem interrupo: aquilo que hoje moderno e se apre-senta na sua integralidade individual, seguindo as leis da criao,

    pouco a pouco se torna um monumento, preenchendo a lacuna

    que ser aberta de forma infalvel por outros monumentos sobre

    os quais agiram as foras naturais. Do ponto de vista do culto de

    antiguidade, no se pode zelar pela conservao eterna dos monu-

    mentos em seu estado original, mas sim pela representao eterna

    do ciclo de criao e desagregao, que fica assegurado, mesmo

    que, emc lugar dos monumentos, hoje existentes, outros entrem. O valor de antiguidade, como j foi mencionado anteriormente,

    tem, sobre todos os outros valores ideais da obra de arte, a vanta-

    gem de poder ser partilhado por todos e ter validade para todos,

    sem exceo. Ele se afirma no apenas acima da diferena das con-

    fessionais, mas tambm alm da distino entre homens cultos e

    incultos, entre entendidos e no entendidos em arte. Na verdade,

    os critrios pelos quais se reconhece o valor de antiguidade so to

    simples, que eles so reconhecidos mesmo por pessoas cujo inte-lecto est totalmente ocupado pelo bem-estar fsico e pela produ-

    o de bens materiais. Mesmo o mais limitado dos camponeses,

    saber diferenciar um campanrio antigo de um campanrio novo.

    Essa vantagem do valor de antiguidade se acentua na confron-

    tao com o valor histrico, que repousa sobre uma base cientfica,

    podendo ser entendido apenas por intermdio de uma Feflexo

    racional, ao passo que o valor de antiguidade se oferece imedia-

    tamente percepo sensorial (ptica) do espectador, apelando diretamente sua sensibilidade. verdade que a raiz do valor de antiguidade, do valor histrico, cientfica, mas o valor de anti-

    guidade almeja significar a aquisio final da cincia por todos. O que inventou, a razo oferece sensibilidade de todos, quase

    analogamente, talvez, ao que ocorreu ao cristianismo na sada da

    Antiguidade, observado historicamente, luz da razo e no luz

    54

    da revelao divina (inviolvel). Aquilo que a filosofia grega havia elaborado para as classes pensantes da Antiguidade, ele tornou

    compreensvel para a redeno das massas, que jamais podem ser convencidas e ganhas pelos argumentos racionais, mas somente

    atravs de apelos sensibilidade e s suas necessidades. Essa reivindicao pelo universal o que compele os segui-

    dores do valor de antiguidade a se mostrarem intolerantes e con-

    quistadores. Conforme a sua convico, no existe uma salvao

    esttica fora dos valores de antiguidade. Percebido, instintiva-

    mente, h muito tempo por milhares, mas propagado, de forma

    aberta, no comeo apenas por um pequeno e combativo grupo

    de artistas e leigos, o valor de antiguidade a cada dia ganha mais

    adeptos. Isso no se deve apenas a uma propaganda audaciosa e

    comovente, mas convico dos participantes de que esse con-

    ceito dominar o futuro. Uma conservao moderna dos monu-

    mentos dever, por isso, considerar em primeira linha o valor de

    antiguidade, sem negligenciar, no obstante, os outros valores de

    um monumento, tanto os valores de memria como os de atua-

    lidade, em face dos quais, ela deve ponderar a importncia rela-

    tiva do valor de antiguidade e quando esse ltimo parecer mais

    insignificante, privilegiar os primeiros.

    O Valor Histrico

    O valor histrico de um monumento resulta, para ns, do fato de

    ele representar um estgio evolutivo individual de um domnio

    qualquer da atividade humana. Com base nesse ponto de vista,

    no nos interessam no monumento os traos das influncias de

    degradao da natureza, mas a sua criao original como obra

    humana. O valor histrico tanto maior, quanto mais o monu-

    mento tenha conservado a sua integralidade e quanto mais inalte-

    rado estiver aps a sua criao, sendo perturbadoras e inoportunas

    55

  • as degradaes e alteraes parciais. Isso vale tanto do ponto de vista histrico-artstico como do ponto de vista histrico-cultu-ral, e ainda mais do ponto de vista cronolgico. Como o Partenon

    . ficou conservado apenas como runa, deplorado pelo historiador, posto que o considere como monumento de determinado estgio de evoluo da construo dos templos gregos, da tcnica de can-taria ou das formas de culto. O dever do historiador o de preen-cher, por todos os meios ao seu alcance, as lacunas provocadas por influncia da natureza na criao original. Desse ponto de vista, os sinais da degradao, fator mais importante do valor de anti-guidade, devem ser apagados por todos os meios. Isso, porm, no pode ser feito no prprio monumento, mas em uma cpia ou somente por meio do pensamento e da linguagem. O valor his-trico, portanto, observa o monumento original como intocvel, mas por uma razo outra que no a do culto de antiguidade. Para ele, no se trata de conservar os traos da idade, as alteraes pro-vocadas por influncia da natureza, que lhe so no mnimo indife-rentes ou mesmo incmodas, trata-se muito mais de conservar um documento, o mais autntico possvel, para uma futura atividade de restituio histrico-artstica. Sabe-se que todas as conjectu-ras e restituies humanas esto sujeitas a erros subjetivos e, por isso, o documento deve ser conservado o mais intacto possvel, como nico objeto dado como certo, a fim de controlar futuras tentativas de restituio, podendo eventualmente substitu-las por outras, melhores e mais bem fundamentadas.

    A diferena fundamental entre essa concepo e aquela do culto de antiguidade logra definir-se com maior clareza quando se trata de saber qual o tratamento mais oportuno a ser dado a um monu-mento. As degradaes feiras pelas foras da natureza so irreversveis e, do ponto de vista do valor histrico, no devem ser eliminadas; entretanto, degradaes posteriores, a contar de hoje, da forma como so toleradas e at postuladas pelo valor de antiguidade, do ponto de

    56

    vista do valor histrico, so no apenas inteis, mas devem ser cate-goricamente evitadas, pois qualquer degradao posterior torna mais difcil a reconstituio cientfica da obra humana original.

    O culto do valor histrico deve zelar pela manuteno dos monumentos no seu estado atual, levando exigncia de uma interveno que detenha o curso da evoluo natural, no limite dos poderes humanos. Vemos, assim, uma divergncia em um ponto essencial do cuidado dos monumentos, entre os interesses do valor de antiguidade e os do valor histrico, embora ambos sejam valores da memria. Como pode ser solucionado esse con-flito? E, se no houver soluo, qual dos dois valores deve ser ofe-recido em sacrifcio ao outro?

    Se nos lembrarmos de que o culto do valor de antiguidade no representa outra coisa seno o produto amadurecido do culto do valor histrico, que perdura h sculos, haver a tendncia de declarar este ltimo como uma fase ultrapassada. Para o trata-mento prtico dos monumentos resultaria, como concluso, de que onde houvesse um conflito entre os dois valores de memria, o valor histrico, o mais antiquado dos dois, deveria ser relegado a segundo plano. Mas ser que a validade do culto histrico est totalmente ultrapassada? A sua misso como antecessor do culto de antiguidade j foi concluda?

    Para responder primeira questo, os partidrios mais radi-cais do valor de antiguidade, que ainda hoje pertencem s classes mais cultas, devem admitir que o prazer que sentem na presena de um monumento no decorre unicamente da sua antiguidade, e sim, em grande parte, da satisfao de poder classificar conscien-temente o monumento dentro do conceito de estilo existente, em antigo, gtico, barroco etc.

    O saber histrico ainda ser para eles uma fonte esttica, com e ao lado do sentimento do valor de antiguidade. Essa satisfa-o certamente no imediata (ou seja, artstica), mas cientfica,

    57

  • pois pressupe um conhecimento da histria da arte; no entanto, demonstra de forma irrefutvel que em nossa avaliao do culto de antiguidade ainda no estamos suficientemente livres do elemento

    . histrico anterior para nos abstermos plenamente do seu conheci-mento, isto , do interesse pelo valor histrico. Se passarmos dos homens mais cultos classe dos homens de cultura mediana que, afinal, constituem a grande massa dos interessados nos valores cul-turais, encontraremos junto a eles, em princpio, uma classificao geral dos monumentos em medievais (os antigos so muito raros na Europa Central para serem classificados e reconhecidos como classe especial), modernos (Renascena e Barroco) e contemporneos, que leva a uma classificao grosseira da histria da arte, demons-trando, mais uma vez, que o valor de antiguidade no to puro como pretendiam os pioneiros do seu desenvolvimento moderno e que no pode ser separado do valor histrico. Isso se expressa tam-bm quando julgamos mais verdadeiras as runas de um castelo medieval, e mais correspondentes aos nossos desejos, do que aque-las de um palcio barroco, que ainda nos parece muito recente para ser avaliado. Postulamos, portanto, certa relao entre o estado de degradao do monumento e a sua antiguidade, o que, por sua vez, exige alguma dose de conhecimento histrico-artstico.

    Resulta de tudo isso que o valor de memria, que hoje uma das mais importantes foras culturais, ainda no alcanou na sua verso como valor de antiguidade uma maturidade tal para que possamos prescindir totalmente da sua verso histrica. O valor histrico estabelecido sobre bases cientficas no consegue jamais atingir as massas tal como as teses da filosofia. Porm, semelhante ao que j foi indicado anteriormente sobre o papel anlogo da filo-sofia na Antiguidade, vemos de h quatro sculos para c o inte-resse histrico trabalhando, de forma ininterrupta e crescente, para explicar o significado redentor do conceito de evoluo, embora mesmo no valor de antiguidade ainda no tenha sido encontrada

    58

    a frmula final e definitiva. Isso justifica a sede contnua por cul-tura, que hoje se encontra sob o signo do conceito histrico de evoluo, embora no faltem vozes que pretendam que a formao histrica no o objetivo da cultura, nem o meio mais confivel para atingir esse objetivo.

    Temos hoje, portanto, todos os motivos para satisfazer as exi-gncias das pesquisas histricas e no trat-las simplesmente como quantit negligeable*, ou seja, de justificar dentro do possvel as necessidades por valores histricos ali onde eles conflitam com as exigncias dos valores antigos. Nesse caso, haveria o perigo de prejudicar os interesses maiores do culto de antiguidade, se o valor histrico ligado evoluo e formao do prprio valor de anti-guidade for abandonado antes da hora.

    Felizmente, as ocasies em que se externa um conflito entre valor de antiguidade e o valor histrico na prtica de conservao dos monumentos so menos frequentes do que poderia parecer primeira vista. Os dois