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REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2014 28 ano de 2015 começou com uma grande preocu- pação para a saúde das Américas. Segundo a Or- ganização Mundial da Saúde (OMS), o número de casos de chikungunya no continente passou de 111 em janeiro de 2014 para 1,16 mi- lhão no mesmo mês deste ano, com 172 óbitos. No Brasil, registros da do- ença foram feitos em outubro no Ama- pá e, pouco mais de dois meses depois, um boletim do Ministério da Saúde (MS) já apontava a necessidade de aler- ta para a enfermidade: de meados de O Renata Moehlecke IMUNOBIOLÓGICOS novembro até o final de dezembro de 2014, o número de casos no país au- mentou em 65% (os registros subiram de 1.364 para 2.258). No total, cerca de 90 desses casos foram considera- dos importados, ou seja, adquiridos por pessoas que viajaram para países onde também há transmissão da doença. Os demais foram considerados casos au- tóctones ou adquiridos em solo brasi- leiro. De janeiro a fevereiro de 2015, dados do MS indicaram o registro de mais 771 casos suspeitos de serem au- tóctones, sendo 82 destes confirmados no período em questão. Como reação a rápida elevação do número de casos, diversas instituições brasileiras intensificaram os estudos e as campanhas de combate à febre chi- kungunya, que tem transmissão e sin- tomas muito semelhantes aos da dengue. Na Fiocruz, o trabalho árduo contra a doença não tem sido diferente. “A Fundação, como um dos principais órgãos de pesquisa e desenvolvimento do MS, tem trabalhado em diversas frentes para contribuir para o tratamen- to da febre chikungunya no Brasil, que incluem, por exemplo, a melhoria da atenção aos vitimados por meio de hu-

RM 31 - PARTE RODRIGO [HELP] · chikungunya no continente passou de 111 em janeiro de 2014 para 1,16 mi-lhão no mesmo mês deste ano, com 172 óbitos. No Brasil, registros da do-ença

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Page 1: RM 31 - PARTE RODRIGO [HELP] · chikungunya no continente passou de 111 em janeiro de 2014 para 1,16 mi-lhão no mesmo mês deste ano, com 172 óbitos. No Brasil, registros da do-ença

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ano de 2015 começoucom uma grande preocu-pação para a saúde dasAméricas. Segundo a Or-ganização Mundial da

Saúde (OMS), o número de casos dechikungunya no continente passou de111 em janeiro de 2014 para 1,16 mi-lhão no mesmo mês deste ano, com172 óbitos. No Brasil, registros da do-ença foram feitos em outubro no Ama-pá e, pouco mais de dois meses depois,um boletim do Ministério da Saúde(MS) já apontava a necessidade de aler-ta para a enfermidade: de meados de

ORenata Moehlecke

IMUNOBIOLÓGICOS

novembro até o final de dezembro de2014, o número de casos no país au-mentou em 65% (os registros subiramde 1.364 para 2.258). No total, cercade 90 desses casos foram considera-dos importados, ou seja, adquiridos porpessoas que viajaram para países ondetambém há transmissão da doença. Osdemais foram considerados casos au-tóctones ou adquiridos em solo brasi-leiro. De janeiro a fevereiro de 2015,dados do MS indicaram o registro demais 771 casos suspeitos de serem au-tóctones, sendo 82 destes confirmadosno período em questão.

Como reação a rápida elevação donúmero de casos, diversas instituiçõesbrasileiras intensificaram os estudos eas campanhas de combate à febre chi-kungunya, que tem transmissão e sin-tomas muito semelhantes aos dadengue. Na Fiocruz, o trabalho árduocontra a doença não tem sido diferente.“A Fundação, como um dos principaisórgãos de pesquisa e desenvolvimentodo MS, tem trabalhado em diversasfrentes para contribuir para o tratamen-to da febre chikungunya no Brasil, queincluem, por exemplo, a melhoria daatenção aos vitimados por meio de hu-

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manização do atendimento e o enten-dimento da biologia e da epidemiolo-gia da doença em território brasileiro”,apontou o vice-presidente de Pesquisae Laboratórios de Referência da Funda-ção, Rodrigo Stabeli. “Recentemente,a instituição trabalhou na capacitaçãode Lacens [Laboratórios Centrais deSaúde Pública] para a realização deexames e tem investido na confecçãode um diagnóstico rápido de detecçãoda doença, etapa primordial para o tra-tamento diferenciado no que se refereao vírus da dengue”.

A mais recente conquista da Funda-

ção contra a febre chikungunya foi reali-zada no Instituto Carlos Chagas (ICC/Fio-cruz Paraná) e vai impulsionar de formasignificativa o desenvolvimento de kitsde diagnóstico para a doença. Em fe-vereiro, pesquisadores da unidade iso-laram o arbovírus causador a febrechikungunya em amostras de pacien-tes com infecção autóctone no Brasil. Omaterial de análise foi obtido por meiode um convênio com a Secretaria Mu-nicipal de Saúde de Feira de Santana,na Bahia, estado fortemente afetadopela doença (Amapá, Mato Grosso doSul, Goiás e Distrito Federal também

apresentam casos confirmados).“Recebemos as amostras de pa-

cientes em fase aguda da doença e,em apenas dez dias, já tínhamos ovírus isolado, utilizando anticorposmonoclonais [um tipo de proteína queajuda no combate da doença pelo or-ganismo] produzidos por nossa equi-pe”, explicou a virologista ClaudiaNunes Duarte dos Santos, chefe doLaboratório de Virologia Molecular daFiocruz Paraná. “Com o isolamentodo vírus em células humanas, alémde não precisarmos mais utilizar ani-mais para a detecção, essas partícu-las contribuirão para os avanços noskits diagnósticos, incluindo o testerápido que está sendo desenvolvidopelo ICC em parceria com Bio-Man-guinhos [Instituto de Tecnologia emImunobiológicos da Fiocruz]”.

Em conjunto, as duas unidades daFundação estão trabalhando no desen-volvimento de dois tipos de testes paradetectar a chikungunya. O primeiro é umteste rápido de 15 minutos, similar aode gravidez, no qual uma pequena quan-tidade de sangue será suficiente paramostrar o resultado em uma fita indica-tiva. O segundo é um teste Elisa (siglaem inglês para Ensaio de Imunoabsor-ção Enzimática), exame que permite adetecção de anticorpos no sangue, tec-nologia de baixo custo que Bio-Mangui-nhos tem usado no diagnóstico de outrasdoenças e que permite a análise de cen-tenas de amostras simultaneamente.“Em geral, a doença é apontada por umdiagnóstico clínico epidemiológico base-ado em informações sobre a região ondeo vírus está circulando e na apresenta-ção de sintomas de febre e dores articu-lares. Nesse sentido, o diagnóstico rápidoe a notificação de casos de chikungunyaé fundamental para que possamos teruma vigilância epidemiológica eficaz epara que consigamos diferenciar a do-ença da dengue, que apresenta osmesmos sintomas no início da infec-ção”, destacou Claudia. “Essa diferen-ciação pelo rápido diagnóstico deverácontribuir para nortear medidas de tra-tamento e eventualmente melhorar oprognóstico destes pacientes”.

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Fiocruzcomo serviçode referência

Referência regional para dengue efebre amarela, o Laboratório de Flavi-vírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) foi designado pelo Ministérioda Saúde, em junho de 2014, para fa-zer também o diagnóstico laboratorialde casos suspeitos de febre chikun-gunya no Rio de Janeiro e Espírito San-to. “O laboratório vem se preparandopara o diagnóstico do vírus desde 2012,quando tivemos o primeiro caso impor-tado no Rio de Janeiro, antes mesmodo início dos casos autóctones no Bra-sil. Desde então, foram implantadosprotocolos de diagnóstico moleculares(PCR e PCR em tempo real) e protoco-los para sorologia”, esclareceu a che-fe do laboratório do IOC, Rita Nogueira.

O interesse dos pesquisadores doLaboratório de Flavivírus do IOC pelovírus chikungunya teve início em 2010,após a confirmação de um caso impor-tado. Devido à similaridade em rela-ção aos sintomas da dengue e derelatos na literatura médica sobre acoinfecção envolvendo dengue e chi-kungunya, o caso serviu como alertapara a equipe, que passou a acompa-nhar a disseminação da doença emoutros países e buscou apoio de insti-tuições internacionais para implantaros métodos de diagnóstico.

As técnicas moleculares para detec-tar o acido nucleico (RNA) do vírus emamostras de pacientes de casos suspei-tos foram implantadas no laboratório em2012. Atualmente os pesquisadores con-tam também com método sorológicoin house para avaliação dos níveis deanticorpos IgM e IgG. “Esse tipo de pre-ocupação precisa vir antes da epide-mia. Sempre tivemos o compromissode nos antecipar para conseguir reali-zar o diagnóstico das infecções quepossam vir a acontecer no país noâmbito da abrangência do laboratório”,ressaltou a pesquisadora.

Até o momento, os pedidos deanálises de casos suspeitos de municí-

pios do Estado Rio de Janeiro têm re-sultado negativo, exceto os casos doEstado da Bahia, que apresenta surtosda doença em vários municípios. “Emrelação aos estados do Rio de Janeiroe do Espírito Santo, o risco deve-se àpresença do vetor e pelo fato de queambos os estados apresentarem voca-ção turística, tendo um risco real deintrodução do vírus”, apontou Rita.

Assim como o IOC é referência nodiagnóstico laboratorial, o Instituto Na-cional de Infectologia (INI/Fiocruz) é noatendimento de pacientes no Rio deJaneiro. “Temos atendido casos suspei-tos e eventualmente confirmados todasas semanas, sempre importados, umavez que até o momento não há registrode transmissão no Rio”, explicou o in-fectologista da unidade, José Cerbino.Segundo ele, os profissionais do INI tam-bém têm investido em ações para omelhor atendimento e diagnóstico depacientes. “Durante a epidemia de2014, a convite da Opas [OrganizaçãoPan-Americana da Saúde] e do Minis-tério da Saúde, estive na Martinica,onde acompanhamos o serviço de refe-rência local para tratamento de chikun-gunya, naquele momento com 900casos semanais”, comentou Cerbino.“Em nossa unidade, o fluxo de atendi-mento e diagnóstico para casos suspei-tos já foi estabelecido. Além disso,temos colaborado com o MS na cons-trução dos manuais nacionais de trata-mento e vigilância de chikungunya”.

O infectologista também abordou asdificuldades da identificação da doença.“A fase aguda da febre de chikungunyapode ser bastante semelhante ao qua-dro clínico de dengue, o que pode difi-cultar a identificação da introdução destanova doença no Estado, principalmenteem momentos de grande incidência dedengue”, esclareceu. “Neste momentoem que ainda não há transmissão inten-sa da doença, também existe a necessi-dade de confirmação laboratorial detodos os casos, o que seria a principaldificuldade para o diagnóstico. O desa-fio no tratamento é a abordagem dasformas crônicas, que podem respondermal aos medicamentos disponíveis im-plicando em grande morbidade para ospacientes que desenvolvem estas formas

da doença. O desenvolvimento da for-ma crônica da doença pode afetar asarticulações do paciente até mesmo poranos, causando um grande impacto eco-nômico para a sociedade”.

Epidemiologiada doença

No primeiro semestre de 2014, umestudo de pesquisadores do IOC/Fiocruzrevelou que mosquitos de dez países dasAméricas são altamente capazes detransmitir a febre chikungunya. A pes-quisa, publicada no Journal of Virology,indica que em cidades populosas comoo Rio de Janeiro, onde há grande infes-tação de mosquitos Aedes aegypti eAedes albopctus, vetores da doença, orisco de disseminação é muito alto. “Erade se admirar que os casos de chikun-gunya já estivessem ocorrendo com maisfrequência pelo mundo desde 2004 eque a doença ainda não tivesse chega-do ao Brasil”, comentou o pesquisadore coordenador do estudo, Ricardo Lou-renço, do Laboratório de Transmissoresde Hematozoários do IOC.

O vírus chikungunya foi isolado pelaprimeira vez na Tanzânia, em 1952.Por três décadas ele causou surtos es-porádicos em países africanos e asiáti-cos. A partir de 1980, o número decasos tornou-se relativamente baixo.Esse cenário começou a mudar em2004, quando uma epidemia iniciadana África se espalhou por ilhas do Oce-ano Índico, afetando cerca de 500 milpacientes em dois anos. Em 2006, osurto chegou à Índia, onde 1,39 mi-lhão de pessoas foram infectadas. Umano depois, a transmissão da doençafoi identificada na Europa, com 197casos registrados em um vilarejo nacosta da Itália. De acordo com Louren-ço, a preocupação no continente ame-ricano cresceu depois que casosimportados foram detectados no Brasile em outros países das Américas nofinal da década passada

Segundo o pesquisador, o risco deum rápido alastramento da doença noBrasil deve ser considerado devido à di-nâmica dos mosquitos vetores. “Na

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transmissão da dengue pelo Ae. ae-gypti, quando o mosquito pica umapessoa com a doença, só se torna ca-paz de transmitir a doença de 10 a14 dias depois, sendo que apenas10% ou menos desses mosquitos vi-vem mais que 10 dias”, explicou Lou-renço. “No caso da febre chikungunya,o mosquito passa a transmitir a do-ença mais rapidamente, de 3 a 4 diasdepois. Se consideramos esse perío-do mais curto de transmissão e o fatode não só o Ae aegypti pode ser ve-tor, mas também o Ae. albupctus,bastante comum em áreas peri-urba-nas do país, a probabilidade de ter-mos uma epidemia da doença setorna bem maior”.

Não existe vacina, nem remédioespecífico contra o chikungunya. Otratamento da doença consiste em hi-dratação e uso de medicamentospara aliviar os sintomas semelhantesaos da dengue, incluindo, ainda, for-tes dores nas articulações que podemperdurar por vários dias ou meses.Segundo a Organização Mundial daSaúde, complicações graves são ra-ras, mas em pessoas idosas, a infec-ção pode contribuir para a morte. Deacordo com o especialista do IOC, ocontrole da doença depende da pre-venção a partir do combate aos ve-tores. “Além da dengue, que é umrisco constante no Brasil, há agora umnovo motivo para as autoridades e apopulação reforçarem as ações con-tra os mosquitos vetores, que são osmesmos”, afirmou.

Em fevereiro de 2015, o já tradi-cional evento anual de combate amosquito promovido em todo o Bra-sil pelo Ministério da Saúde passou ase chamar Dia D Contra a Dengue ea Febre Chikungunya. As medidas decombate à transmissão são as mes-mas para os dois vetores, como man-ter tapados espaços e recipientes quepossam acumular água parada e ser-vir como criadouros para os mosqui-tos. “No que se refere ao Ae.albupctus, essas mesmas medidasdevem se estender do quintal de casapara a área extradomiciliar, para áreasarborizadas próximas às residências”,destacou Lourenço.