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Universidade do Estado do Pará
Centro de Ciências Sociais e Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia
Roberta Isabelle Bonfim Pantoja
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS
POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL
BELÉM – PA
2018
ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA
EDUCAÇÃO SENSÍVEL
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação pela
Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa
Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a
orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.
Belém
2018
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA
Pantoja, Roberta Isabelle Bonfim
Para tirar a poesia do olimpo: Poéticas amazônicas por uma educação sensível
/ orientadora Josebel Akel Fares, 2018
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará,
Belém, 2018.
1. Poesia – Estudo e ensino 2. Ensino fundamental 3. Estética. I. Fares,
Josebel Akel (orient.). II. Título.
CDD. 23º ed.372.64
Regina Coeli A. Ribeiro – CRB-2/739
ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA
EDUCAÇÃO SENSÍVEL
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação pela
Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa
Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a
orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.
Data da aprovação: ____/____/____
Banca Examinadora:
_________________________________________– Orientadora – UEPA
Profa. Dra. Josebel Akel Fares
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________________– Examinadora Interna – UEPA
Profa. Dra. Denise de Souza Simões Rodrigues
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
__________________________________________– Examinador Externo—UFPA
Prof. Dr. José Denis de Oliveira Bezerra
Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará
_______________________________________– Examinadora Convidada –UEPA Prof.
Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos Doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Pará
Belém
2018
À palavra que vive.
A poesia está guardada nas palavras—é tudo que
eu sei.
(Manoel de Barros)
A poesia é o presente.
(Ferreira Gullar)
Poesia pra mim é voar. Flutuar na leitura.
(Hermes, 6º ano)
PARA AGRADECER...
Para iniciar, bato cabeça para os meus Orixás.
À mamãe Oxum, dona de minha coroa, protetora e guia que me ilumina com seu
ouro e guarda com amor em suas águas. Ora yê yê ô, rainha do meu congá!
Ao Pai da justiça, que por sua misericórdia permite que siga o caminho que meu
coração dita. Ouço seu brado meu pai, Kaô Cabelicê, Xangô!
Um colar de beijos e corações à Osmarina, pérola negra que me trouxe ao mundo,
minha fortaleza. Sabe o que deixa o meu coração feliz? O seu coração, mãe!
Uma prece ao meu pai Roberto, que de Aruanda olha por mim.
Todos os jasmins que puder colher para Fábio Lima, que Incansável cuida de mim,
em alimento para o corpo e o pensamento. Meu bem, meu coração se enfeita para te ver,
obrigada por me tocar com teu azul.
Gratidão em cor à minha consciência, Lívia Mendes. Que desde a seleção do
mestrado me incentiva, ajuda, colore meus dias em sua presença vibrante e, que revisou
e se emocionou comigo até a última página desta escritura. Amiga, laço-luz e bella ciao!
Um giro dançante para minha irmã das águas Lívia Faro, que pensou e sonhou
comigo a forma luminosa para embalar meus escritos. Amiga, te entrego minha gratidão
em em rosas brancas. Minha criança interna dança sempre quando te vê.
À casa Toya Jarina e Ogum Beira-Mar, minha família do santo. Pela gratidão de
sentir juntos para vocês eu canto: “Ô gira deixa a gira girar!”
À Muriel, meu sol noturno, pelas noites ao meu lado. E à Lisbela por me ensinar
sobre o tempo.
Gratidão aos irmãos, Pedro e Diego. O primeiro por ser exemplo e o segundo por
ser cuidado.
Aos barrigudos, Paulo e Izabela, pelas vezes que desfizeram minha tensão com
bom humor. Minha gratidão para vocês, górdos é em convite para comer.
À Luciana Martins, meu obrigada embalado em algodão doce, laço e fita pela brisa
leve que traz no sorriso e no abraço.
Estrelas brilhantes para a polarínea Nathália Lobato, por materializar em imagem
o que não coube nas palavras.
À Kátia e Paulo Lima, por todo apoio, carinho e cuidado que dedicaram a mim
fazendo eu me sentir em casa.
Ao amigo Ozzu, gratidão pela companhia espaçosa.
Um abraço quente como café preto, que nunca faltou nas tardes, na tua casa, Bel
Fares. Você fez de meu voo-pesquisa mais seguro ao me mostrar que é possível ser
“puxada por ventos e palavras.” Quem fica ao teu lado sai encharcado de poesia.
Um abraço longo e um salve à Dani Lobato, pela nossa caminhada, por cima das
folhas, unidas pelo poético.
Um poema-abraço à Dia Favacho pela ressonância da voz e às minhas
miçangueiras favoritas: Margareth, Tereza e Patrícia de parceria e close certo!
Abraço a cada navegante do Rio, turma 12 do mestrado, por descontruir a máxima
tradicional do par concorrente e criar a nossa: Mestrado poder ser leve!
Aos profs. Denis Bezerra e Renilda Bastos, agradeço pelas contribuições e por me
inspirarem, desde a graduação, a subverter o que está posto.
Gratidão em flor à Denise Simões, que com sua espada brilhante, me incitou, no
primeiro encontro, ainda na entrevista de seleção, defender o que acredito com a força de
uma guerreira. Professora, “eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.”
Ao CUMA, núcleo de pesquisa, em que construí verdadeiras relações de afeto.
À FAPESPA, pelo suporte financeiro.
Aos meninos da secretaria do PPGED: Joaquim, Jorginho e Carlos sempre
dispostos a ajudar com um abraço ou um café quente.
À professor Atena por deixar-me entrar em sua sala de aula.
Aos intérpretes que trouxeram a poesia pulsante para estas páginas.
E uma braçada de flores a você leitor. Agora, senhor deste texto.
Saravá!
RESUMO
A partir das poéticas amazônicas trabalhadas no espaço-escola, a escritura desta
dissertação analisa como a experiência com a poesia pode contribuir para a educação
sensível. De uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como lócus uma escola da rede
estadual, localizada na região metropolitana de Belém, e, como intérpretes, alunos de uma
turma do 6º ano do Ensino Fundamental e uma turma da quarta totalidade da Educação
de Jovens e Adultos (EJA). O que se quer é mostrar as chaves que servem à poesia desde
os conceitos da crítica literária, a movência e maneira que ela socialmente é transmitida,
bem como questões que envolvem a sua escolarização. Diante dessas questões trazemos
a estética da recepção como metodologia apoiada na categoria experiência a partir dos
estudos de Larrosa (2017), que se mostra pela recepção que os intérpretes tiveram do
texto poético, resultado que se tece tanto em texto escrito quanto em desenho. Como
aporte teórico utilizamos como base, principalmente, os escritos de Paul Zumthor (1993)
e de autores que contribuem com o debate das poéticas, da estética da recepção e da
educação sensível, entre os quais citamos: Antônio (2002), Araújo (2008), Barthes
(2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001), Loureiro (2001) e Paz (2012).
Neste estudo demonstro de como a poesia mexe com os sentidos, vaza para o papel, e o
branco da página põe-se a florescer.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Estética da Recepção. Educação Sensível.
ABSTRACT
Based on the Amazon poetics worked in the space-school, the writing of this dissertation
analyzes how the experience with poetry can contribute to sensitive education. From a
qualitative perspective, the research has as locus a school of the state network, located in
the metropolitan area of Belém, and, as interpreters, students of a sixth grade class of
elementary school and a group of the fourth totality from Education of Young and Adults
(EJA). What is wanted is to show the keys which serve poetry from the concepts of
literary criticism, the movement and manner that it is socially transmitted, as well as
issues that involve its schooling. Considering these issues we bring the reception
aesthetics as a methodology based on the experience category from the studies of Larrosa
(2017), which is shown by the reception that the interpreters had of the poetic text, a result
that is woven both in written text and in drawing. As a theoretical contribution, we mainly
use the writings of Paul Zumthor (1993) and authors who contribute to the debate of
poetics, reception aesthetics and sensitive education, among whom we name: Antônio
(2002), Araújo (2008), Barthes (2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001),
Loureiro (2001) and Paz (2012). In this study I demonstrate how poetry affects the senses,
leaks into the paper, and the white of the page begins to bloom.
KEY WORDS: Poetry. Reception Aesthetics. Sensitive Education.
Lista de Imagens
Imagem 01 — Livro didático I.......................................................................................64
Imagem 02 — Livro didático II.......................................................................................65
Imagem 03 — Livro didático III.....................................................................................66
Imagem 04 — Livro didático IV.....................................................................................67
Imagem 05 — Livro didático V......................................................................................68
Imagem 06 — Livro didático VI....................................................................................69
Imagem 07— Livro didático VII....................................................................................70
Imagem 08 — Poesia amor.............................................................................................81
Imagem 09 — La bamba.................................................................................................82
Imagem 10 — Borboletário.............................................................................................99
Imagem 11 — Mônica e a borboleta...............................................................................100
Imagem 12 — Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura............................................115
Imagem 13 — Lugar lindo de se viver..........................................................................117
Imagem 14 — Poesia é isso...........................................................................................118
Imagem 15 — Lua.........................................................................................................120
Imagem 16— A história do boto cor de rosa.. ..............................................................122
Imagem 17 — Boto cor de rosa 1..................................................................................122
Imagem 18 — Boto cor de rosa 2..................................................................................122
Imagem 19— Boto cor de rosa 3...................................................................................123
Imagem 20 — Boto cor de rosa 4..................................................................................123
Imagem 21 — Boto cor de rosa 5.................................................................................124
Imagem 22 — Boto cor de rosa fim.............................................................................124
Imagem 23 — Som de Chuva.......................................................................................129
Imagem 24 — Chuva de pipoca....................................................................................130
Imagem 25 — O som das cigarras.................................................................................131
Imagem 26— Uma árvore de sons................................................................................131
Imagem 27 — O som da peteca....................................................................................132
Imagem 28 — O som da pia..........................................................................................133
Imagem 29— Quadrinho A Baladeira 1........................................................................136
Imagem 30— Quadrinho A Baladeira 2........................................................................137
Imagem 31— Quadrinho A Baladeira 3........................................................................138
Imagem 32— Pulf........................................................................................................ 141
Imagem 33— Uma flor..................................................................................................142
Imagem 34 — Quadrinho procissão do senhor morto 1................................................144
Imagem 35— Quadrinho procissão do senhor morto 2................................................ 145
Imagem 36— Quadrinho procissão do senhor morto 3.................................................146
Imagem 37— Dois dias depois......................................................................................147
Imagem 38— Fim..........................................................................................................149
Imagem 39— Era um comedor de fogo........................................................................151
Imagem 40 — Lembrança de um espantalho................................................................151
Imagem 41— The end...................................................................................................153
SUMÁRIO
PROCURA DA POESIA ............................................................................................... 14
1 TROUXESTE A CHAVE? ......................................................................................... 24
1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra .................................................................. 31
1.2 O caminho para o Olimpo ..................................................................................... 40
2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética ............................................. 51
2.1 Letras que contam: formação do leitor ................................................................. 56
2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível ..................................................... 75
3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre ................................... 89
3.1 O desenho do verbo ................................................................................................ 112
3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos! .................................................... 155
CHAMA POÉTICA ..................................................................................................... 169
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 172
14
PROCURA DA POESIA
“Certa palavra dorme
na sombra de um livro raro.
Como desencanta-la?
É a senha da vida
A senha do mundo
Vou procura-la.”
(Carlos Drummond)
“A poesia pertence a um pequeno número de atividades totalmente
desinteressadas, improdutivas” (ZUMTHOR, 1997. p. 34). Para quem aceita o desafio de
aproximar-se, de tomá-la como estudo, ela se torna uma aventura de descobrimento, de
revelação, de encontro. Bem como uma ventura, pois ela pode nos levar por caminhos
inesperados. E uma vez tocados pelo verbo, os nossos sentidos são despertos. Para mim,
a ventura se deu quando decidi fazer seleção para o Programa de Pós-Graduação da
Universidade do Estado do Pará, período em que eu ainda estava vivendo meu reencontro
com o poético. Um dos primeiros entraves que tive foi sobre o que pesquisar, visto que
um dos critérios para escolha do objeto de pesquisa é a sua relevância acadêmica e social.
Estava afastada da universidade e não sabia por onde começar.
No entanto, percebi que o objeto de pesquisa estava comigo há muito tempo,
mas não sabia se o que ansiava investigar seria de interesse para a Academia, já que o que
me movia era um tema que parecia estar em outras paragens. Uma certeza eu tinha: só
conseguiria levar uma pesquisa adiante para fazer o que gosto. E, assim, deixei os receios
de lado e decidi arriscar no que acreditava. Ao iniciar a produção, percebi que estava
escrevendo mais que um projeto, o que colocava naquelas linhas era a história de uma
relação.
Era a minha história com a poesia, que trago, literalmente, escrita no corpo: “a
poesia é o presente” (GULLAR, 2010, p.28). Precisei olhar para o que está posto, para a
maneira que verbo adere à vida das pessoas, pois, o tema não nascia apenas deste afeto
prazeroso, surgia principalmente de uma angústia que guardava há muito: por quê a
poesia, com a qual tanto me identifico, é considerada difícil para a maioria das pessoas?
A causa dessa angústia é de tempos distantes e, para falar sobre isso com
segurança, precisei fazer um mergulho mnemônico e, nele, perceber que o encontro com
a poesia foi tardio. Tarde, porque só adulta descobri que passei a vida toda acreditando
15
que poesia era somente o que havia nos poemas dos livros didáticos da escola. E, quando
lembro dessas atividades, percebo que havia poemas, mas e poesia?
O meu primeiro contato com o texto poético foi no verso da letra, ainda nas
séries iniciais do Ensino Básico e, na época, ao invés de ser estimulada a descobrir as
possibilidades daqueles poemas, tinha apenas que desenvolver a competência gramatical
imposta nas tarefas da aula. E a cada encontro, a gramática rompia o sonho e a fruição
que poderia haver com o poético.
Entre tantas situações que me afastaram da poesia, uma deixou sua marca, como
se a deusa Mnemosyne tivesse se encarregado de guardar esse dia. Aconteceu quando tive
o encontro com os modernos. Mesmo com o desconforto com as atividades envolvendo
poesia, Literatura era uma das minhas disciplinas preferidas e, nesse dia, conheci um dos
poemas mais famosos de Drummond. Ao ler que No meio caminho tinha uma pedra
(ANDRADE, 2013, p. 36) a sala de aula ficou pequena para tudo o que esse poema
despertou em mim. Até que a professora perguntou-me o que o poeta queria dizer com a
pedra. Tentei, em vão, falar de minha recepção desses versos, porém tudo que senti ao lê-
los foi inútil para a finalidade que a professora esperava. Frustrada, só sentia toda a poesia
indo embora e, dali em diante, disse para mim mesma que poesia era difícil demais. Já
não sentia segurança para escrever o que sentia ao ler poemas. Parei de ler. Essa memória
marcou e me afastou da poesia por anos.
Com o tempo essa angústia cresceu, virou um nó, pois vi que essa poesia da
escola não era difícil apenas para mim. Trouxeste a chave? (ANDRADE, 2013, p. 12),
perguntava-me Drummond e não via nem mesmo a porta. O poema estava lá, mas a poesia
não. Seguimos separadas. E para colocar um ponto (final?) na relação veio o vestibular.
Teria que saber todas as características das escolas literárias, precisar decorar a biografia
dos autores, lembrar os textos célebres. Havia tantos e tantos poemas. Mas poesia nada.
Eu era uma leitora. Passeava pelos clássicos, gostava de um romance como ninguém. Mas
evitava a todo custo a poesia do verso, não conhecia a prosa poética, bastava ver um texto
em verso que fechava o livro. Fiz de minha experiência negativa minha própria pedra.
Era o momento de escolher uma profissão. Como era uma péssima calculista e
também não me encontrava com as biológicas, sabia que precisava ir para as Ciências
Humanas. Tive um raciocínio prático: quem gosta de ler faz Letras (!), acabei escolhendo
o curso de Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa, por eliminação.
Cheguei à Universidade do Estado do Pará me agarrando às Letras como a ponte
para ter um curso superior. No primeiro ano, encontrei um professor que era a erudição
16
em pessoa em suas concepções literárias universais1, foi a gota d’água. Até a Literatura
passou a estar num lugar distante, passei a ver a minha companheira como uma senhora
fina e cheia de caprichos, e estava cada vez mais longe da poesia.
Mas esse era só o primeiro ano, ainda estava para encontrar outros mestres, três
grandes personagens que viriam mudar minha história. A primeira, uma Eneida com olhos
de cigana. Usava saias compridas, feito sua risada. Fazia uma roda de leitura na sala de
aula e discutia os textos com uma verdade que fazia seus olhos brilharem. As cópias, que
para nós deixava, eram cheias de comentários graciosos. Essa Eneida me ensinou sobre o
valor da Literatura Infantil e me apresentou seus velhos amigos, os clássicos, que agora
sim, pareciam como os Pretos Velhos que tem muito para ensinar e estão perto da gente.
Mas ela passou por mim feito um cometa brilhante, em razão de minha turma imatura que
não soube aproveitar tudo que ela tinha para nós. Eneida que era, nem se despediu e
seguiu para outras turmas. No entanto, com sua saída pude conhecer o segundo
personagem:
“Todas as crianças crescem, menos uma” (BARRIE, 2013, p.11). Ele foi meu
Peter Pan. Um ser absolutamente jovem. Em tudo. Com seu vocabulário peculiar, fez-me
entender que podemos saber muito sem precisar saber tudo, que a Literatura é para todos.
E que os livros são tesouros que devem ser partilhados.
Por fim, o último personagem que mudou completamente minha vida e minha
relação com as letras. Um artista! Era diferente de todos os professores que tivera, sua
disciplina: Literatura Amazônica. Quando falava mexia o corpo todo. Nunca sentava-se,
a sala era um palco. Certa vez, trouxe vários poemas de escritores amazônicos, sugerindo
que começássemos por Paulo Plínio Abreu. “Alguém gostaria de compartilhar sua
leitura?” Receosa, li tateando O comedor de fogo. Ao fim, diferente da professora do
Ensino Básico, não ouvi perguntas sobre o que o poeta queria dizer, muito menos sobre
o que significavam os cães doentes no poema. Ele somente entoou: “Mais alguém?”. E
outras pessoas pediram a voz. A cada leitura, um tom diferente e a cada olhar, um novo
poema. Foi ali que a poesia renasceu para mim.
Ainda na graduação, quando comecei a fazer os estágios de prática docente,
percebi que a relação que tive com a poesia no período escolar não era uma
particularidade minha. O espaço-escola no qual atuei fazia parte da rede pública e, ao
observar os textos trabalhados, não via fruição na leitura dos alunos. Para além desta
1 Concepções Literárias Universais é uma disciplina que faz parte da grade curricular do Curso de
Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Pará.
17
prática, também percebi que o material utilizado não incluía o contexto amazônico. Isto
é, o que acontecera comigo se repetia com muitos leitores. Entendi que o primeiro contato
deles com a poesia contempla, geralmente, apenas o texto escrito. Desta forma, o primeiro
equívoco que temos na escola é confundir poesia com poema — O poema, na maioria das
vezes escrito em versos, é uma composição em linguagem multívoca. Poesia, ainda que
se chame, de forma genérica, ao gênero lírico, está para além dos limites do poema, é o
efeito estético, podendo estar em muitas formas de linguagem —. O segundo é a comum
utilização do texto poético como pretexto para trabalhar conteúdos de Gramática.
Com as experiências de professora e leitora, percebi que a poesia está em um
lugar distante do leitor comum, onde apenas os “eruditos” podem chegar, como se
estivesse na morada dos deuses, o alto Olimpo. E me perguntava: se a poesia nasceu da
tradição oral, se muito antes de estar no texto escrito está na voz, como foi parar ali?
A montanha do Olimpo, cujo topo alcança quase três mil metros de altitude, é
considerada o ponto mais alto da Grécia. Escolhi essa metáfora por entender que,
conforme coloca Kury (1990) sobre a mitologia grega, o monte abriga os principais
deuses de seu panteão e é visto pelos gregos como uma mansão de cristais maciça, bela e
imponente, lugar ideal para a majestade dos imortais. A poesia para grande maioria dos
leitores encontra-se em num lugar distante como o Olimpo.
A inquietação que atravessou minha proposta era a forma como a poesia vem
sendo apresentada na escola aos leitores; a separação que há entre eles; a não-fruição. A
pesquisa, então, nasceu do desejo de tentar contornar essa ruptura e buscar no debate
teórico-conceitual uma compreensão aplicada da temática, uma resposta que possa ser
um alento ao que, para mim, sempre soou como uma injustiça ao leitor: a perda do olhar
poético que ele traz quando criança e que a instituição enquadra e limita.
Para compreender a referida temática, chego à questão-problema da pesquisa:
como a experiência de educar pelo poético pode contribuir para a formação do leitor no
contexto escolar amazônico?
Direcionada pela pergunta, bem como pela situação exposta, chego aos objetivos
da pesquisa, em que apresento como objetivo geral: oferecer condições para que a poesia,
enquanto experiência estética, possa se entrelaçar às vivências do leitor e que este a
perceba para além dos padrões estabelecidos pela escola. Como específicos, proponho:
oferecer aos leitores uma aproximação com a poesia, despertando-os para o universo
amazônico; identificar, a partir da teoria da Estética da Recepção, como a experiência
com o texto poético pode contribuir para a educação sensível.
18
Os estudos de crítica literária apontam para análises mais restritas ao texto
literário, estudar a Estética da Recepção pela fruição do leitor abre espaço para novos
horizontes de expectativas previsto em Jauss (1979). Com a experiência de professora e
de leitora, notei que a pesquisa precisava desenvolver-se no espaço-escola onde,
normalmente, o leitor tem seu primeiro contato com o texto poético. Desta forma, o objeto
de pesquisa concentra-se na recepção da poesia. O corpus de análise do estudo se
constitui, pois, das teorias que fundamentam a Estética da Recepção e aqui incluímos
também como um método.
Assim, comecei a pesquisa e, como um dos primeiros passos, busquei fazer o
estado da arte. O levantamento foi realizado em bancos de dados de universidades
brasileiras, a partir dos descritores relacionados ao tema e, de forma mais minuciosa, no
repositório da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Observei que as pesquisas das
universidades que abordam a poesia no contexto escolar, geralmente, focam na análise
dos Parâmetros Curriculares Nacionais e tem, principalmente, o professor e o currículo
como objeto. Tal abordagem não contempla esta pesquisa, visto que minha perspectiva
para o estudo é a recepção que aluno terá de textos poéticos. Já as dissertações
encontradas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) tem uma
aproximação maior com o estudo, abordam as poéticas amazônicas a partir da educação
sensível e incluem os processos educativos vivenciados no cotidiano do aluno amazônico.
Cito, adiante, algumas pesquisas com as quais senti uma aproximação maior com
meu objeto e foram como portas abertas para o caminho que segui, textos que trazem o
debate da educação pelas poéticas amazônicas, dissertações apresentadas ao PPGED da
UEPA, orientadas pela Profa. Dra. Josebel Fares: O lugar dos saberes amazônicos no
ensino da disciplina literatura, Eliana Pires de Almeida (2012); Imaginário Poético em
Antônio Juraci Siqueira, por uma abordagem literária na educação da Amazônia, Ivone
Caldas Carvalho (2013); As mitopoéticas na obra de Paulo Nunes: ensaio sobre
literatura e educação na Amazônia, Nathália da Costa Cruz (2013); Cartografias poéticas
em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades, Escrituras e Saberes em diálogo,
Danieli dos Santos Pimentel (2013). Era uma vez... A Cobra Grande na voz dos pequenos
intérpretes cametaenses, Kezya Thalita Cordovil Lima (2014); Educação, Memórias e
Saberes Amazônicos: Vozes De Vaqueiros Marajoaras, Délcia Pereira Pombo (2014);
Boto em gente, gente em boto saberes, memória e educação na Amazônia, Zaline do
Carmo dos Santos Wanzeler (2014); Tessituras poéticas: educação, memória e saberes
em narrativas da ilha grande/Belém-Pará, Andréa Lima de Souza Cozzi (2015);
19
Educação Sensível na voz de calados: poesia e memória em regime crepuscular, Dia
Errmína da Paixão Favacho (2017).
Ainda na UEPA encontrei projetos de pesquisa que promoveram atividades de
fruição com a literatura amazônica, entre os quais destaco: O lúdico na literatura infantil
– projeto de extensão (2007/2009), que, através de oficinas, implementou ações que
buscavam refletir os conceitos da infância a partir da história da literatura infantil e de
obras de autores infantis, inclusive os da Amazônia; Leitura e memória – projeto de
extensão (2010), atividade que partiu das ações desenvolvidas pelo CUMA, com início
em 2005, no projeto Arte no Pão, realizado no Asilo do Pão de Santo Antônio, que
promoveu uma integração entre estudantes, professores e idosos do asilo por meio da
leitura.
Também como fonte de material, utilizei projetos de iniciação científica como:
Literatura e recepção das poéticas amazônicas: uma experiência de leitura (PIBIC/
2007); Literatura: recepção, memória e imagens da escola (PIBIC/2008/09); Memória
de Cordel: recepção e ensino (PIBIC/2009/10) Lúcia, Lindanor e Eneida: memória,
recepção e leitura (PIBIC/2010/11); Símbolos culturais na literatura amazônica
(PIBIC/2010/11); Faustino, Barata e Plínio: Educação e recepção da poesia amazônica
(PIBIC/2011/12).
Além das dissertações e projetos encontrados na UEPA, outras pesquisas
realizadas dentro e fora do estado também abordam o tema das poéticas amazônicas
como: Memórias de rios e de lagos na construção romanesca: leitura de narrativas da
Amazônia paraense, Elizabete de Lemos Vidal (2008) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Poéticas Amazônicas: espaços da memória, oralidade e identidade na
prosa de Maria Lúcia Medeiros, Lylian José Félix Da Silva Cabral (2013), da
Universidade Federal de Pernambuco. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e
Moronguetás: ensaios de etnopoesia Amazônica, Harald Sá Peixoto Pinheiro (2013) da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Entre partidas e chegadas: matrizes
poéticas de imigrantes de Paragominas-PA, Aida Suellen Galvão Lima (2014) da
Universidade da Amazônia.
Constituir o estado da arte foi fundamental para que não me deixar cair na
vaidade do ineditismo, pois como foi demonstrado, as pesquisas citadas são apenas um
pequeno recorte de todo arcabouço teórico que há sobre as poéticas amazônicas.
Escolher o lócus de pesquisa foi como voltar para casa, a instituição escolhida
foi onde havia realizado os estágios de prática docente da graduação (entre 2010 e 2011)
20
e onde também trabalhei como voluntária do Programa Mais Educação do Governo
Federal 2(de 2013 a 2015). Durante os anos envolvida nesse projeto pude contar com o
apoio de uma professora, que em muitas ocasiões dividiu ou cedeu espaço para que
realizasse as atividades relacionadas à prática docente.
Então, minha entrada em campo foi possível graças ao espaço que essa docente
cedeu. Importante dizer que durante toda a pesquisa ela esteve comigo em sala de aula,
de forma que as atividades eram feitas nos minutos finais de sua aula e por não poder
conduzir as atividades sozinha em muitas situações a interferência da professora precisou
ser tolhida de forma polida, práticas que não puderam ficar de fora de minha narrativa. E
por essa circunstância, muitos momentos me colocaram diante das situações que critico
nesta pesquisa, e por isso optei por não divulgar o nome da instituição, o nome dos alunos
e nome da professora. Assim, escolhi um nome fictício para a Instituição: Escola Olímpia.
E à professora que me acompanhou chamei de Atena.
Localizada em perímetro urbano, Olímpia conta com uma infraestrutura básica
(vinte salas de aula, laboratórios de informática e ciências, biblioteca, auditório, quadra
de esportes, refeitório e etc.), os alunos são em sua maioria moradores dos arredores e dos
bairros próximos.
Atena abriu as portas de sua sala, assim pude contar com as turmas que ela
disponibilizou. Com carga horária completa, a professora leciona no turno vespertino
tanto para turmas do 6º ao 9º ano, como para as três séries do Ensino Médio, com as
disciplinas: Língua Portuguesa, Literatura e Redação. E no período noturno, para as
turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Por isso, as possibilidades para realizar
a pesquisa eram inúmeras e tornaram a escolha difícil. Que critérios utilizar?
Desta forma, para escolher os intérpretes, mais uma vez a memória foi guia.
Lembrei-me de minha experiência e, assim, optei pelos alunos do 6º ano do turno da
manhã e alunos da quarta totalidade da EJA no turno da noite. A escolha de crianças do
6º ano leva em consideração a fase de transição que elas passam, “na ingenuidade
primeira que devem ser consideradas as imagens fantásticas” (BACHELARD, 1990. p.
60), além do que, tem um olhar mais livre e uma perspectiva que ainda não foi tão
formatada pela escola. Em contrapartida, os intérpretes da quarta totalidade são alunos
2 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo
Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da
agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas
escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos:
acompanhamento pedagógico; Fonte: http://portal.mec.gov.br acesso em 06.03.2018.
21
que, em sua maioria, já passam pelo ensino regular e ao retornar, geralmente, trazem certa
resistência à leitura. Por isso escolher a EJA, além de um contraponto dentro da pesquisa,
é uma forma de proporcionar a aos intérpretes novas experiências com a palavra poética.
Utilizo o termo “intérprete”, por entendê-lo como a expressão que mais se
aproxima ao campo das poéticas, empregado a partir do conceito proposto por Zumthor
(2010, p. 239). Para ele, “é o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o
gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo
que ele diz.” Contexto em que o intérprete possa experimentar essas possibilidades de
recepção do poema.
A escolha de períodos e intérpretes distintos visa que, a partir do caráter artístico
e dialógico do texto poético, a poesia possibilite que eles possam sentir-se leitores na
construção de sentidos para o texto e para as suas vidas, isto é, a educação sensível, que
não busque apenas a transferência de conhecimento, mas o ato de conhecer e educar.
O objeto de estudo é a recepção do texto poético, a princípio considerou-se incluir
a poesia que está em outras linguagens como as artes plásticas, a fotografia, as produções
cinematográficas, mas após as considerações decorrentes da banca de qualificação, bem
como pelo que vivenciei em campo, percebi que a poesia que está no Olimpo é poesia da
letra, que inclui tanto o texto poético em verso como em prosa. A poesia que me refiro
aqui é aquela entendida no sentido estrito de composição verbal, vazada ao gênero
poético, como Literatura.
Os autores escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa são que os compõem
a poesia amazônica, com textos que figuram a identidade a partir de elementos caros à
cultura. Escritores que, para Loureiro (1995), utilizam a função estética como base para
compreensão do imaginário e evocação mitológica desse imaginário, forma em que o
homem/artista amazônico é governado pelos sentidos e como os mitos vêm explicar a
realidade quando é inexplicável, numa miscelânea de real e irreal.
A escolha dos autores foi pela dimensão da memória, em textos que para mim
pudessem figurar em corpo, voz e gesto de uma poesia que tocasse os sentidos dos
leitores, assim recorri às leituras que fizeram parte de minha formação, ainda que tardia,
de leitora de poesia. Como, por exemplo, poetas que conheci na disciplina de Literatura
Amazônica como Paulo Plínio Abreu (2008), Thiago de Mello (2009), livros que me
levaram a lugares inesquecíveis como Aruanda de Eneida (1989) ou Itaira de Lindanor
Celina (1995). A intenção inicial era levar uma amostra significativa de autores
amazônicos. Ao fim do período em campo, ainda que muitos autores tenham ficado de
22
fora, cito aqueles que foram trabalhados: Adalcinda Camarão (1995); Paes Loureiro
(2008), Juraci Siqueira (2012), Paulo Nunes (2010), Dulcinéia Paraense (2011); e da
prosa: Haroldo Maranhão (1992), Maria Lúcia Medeiros (1994). Importante dizer que
para chegarmos ao resultado desse corpus, uma longa seleção foi feita, pois de cada texto,
a média de recepções foi de 15 na EJA e 25 no 6º ano.
‘O amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria.”, diz Zumthor (1993, p.
73), que por sua veia poética foi a voz essencial desse estudo, e sua ressonância é vibrante
até as últimas páginas. A poesia enquanto alimento do vivido e força motriz desse
caminhar compõe esse corpus, também como teoria, pois há percepções que as palavras
que tinha já não serviam para dizer o que precisava, coisas que só cabem no poema, assim
para que essas experiências não de desgastassem ou se fossilizassem recorri à poesia. Para
além disso, todos os textos partilhados com os intérpretes compõem as sessões. No mais,
a estrutura textual deste trabalho se organiza em três sessões.
Na primeira sessão, intitulada Trouxeste a chave? começo por uma breve
apresentação, em que exponho como a poesia é concebida a partir da Teoria Literária por
nomes consagrados pela crítica como T.S. Elliot (1991), Alfredo Bosi (2000), Ezra Pound
(2006), usando como aporte principal Mário Faustino (1976) a partir do livro Poesia-
Experiência. No item A herança de Apolo: A poesia da letra, a partir dos escritos de A
letra e a voz de Zumthor (1993), percorro o caminho que a poesia fez da tradição oral
para a escritura. Ainda nesta sessão, no item O Caminho para o Olimpo, mostro uma
discussão em torno das racionalidades científicas e dos motivos que influenciaram o lugar
que a poesia ocupa nas instituições de ensino e a forma que é recebida pelos leitores.
No segunda sessão, Estética da Recepção: uma experiência Poética, apresento as
teorias que fundamentam a Estética da Recepção e as poéticas amazônicas, fazendo esse
percurso teórico com autores como: Hans Robert Jauss, traduzido por Luiz Costa Lima
(1979), Regina Zilberman (1989), Paes Loureiro (1995), Josebel Fares (2008), Umberto
Eco (2001), Marisa Lajolo (2001), Paul Zumthor (2014), trazendo as primeiras
experiências realizadas no lócus, com alunos de uma turma de Educação de Jovens e
Adultos.
No item Letras que contam: a formação de leitores, analiso sobre essa temática
tão discutida no âmbito da educação, trago autores bem como conto da intempérie que foi
recomeçar com turmas novas, pois por uma situação burocrática não pude continuar com
os primeiros intérpretes. O que se coloca não é propor um debate das deficiências e
23
ausências da formação já conhecidas por todos, mas trazer os estudos que abordam a
resistência contra esse modelo.
O último item da sessão: Caminho de Ítaca: por uma educação sensível, anuncio
a categoria que fundamenta a Estética da Recepção como um método: a experiência. E
como primeiro passo, explico como a categoria, a partir dos escritos de Larrosa (2015),
mostra que pelo poético a educação sensível pode ser um percurso que olhe mais para o
vivido no caminho da educação do que para os seus resultados.
Na próxima sessão Uma página em branco lançada: a recepção livre, mostro
como o leitor se comporta diante da página em branco, sem que se crie sobre ele uma
expectativa de resposta dirigida. Livre para falar de seu sentir, consegue fazer uma
conexão mais íntima com o texto poético. Para me conduzir por esses escritos conto com
Paz (2012) e as iluminuras que O arco e a Lira trouxeram para mim.
Em O desenho do verbo, acompanhada de Bachelard (1986) e Manoel de Barros
(2013) trago as recepções dos intérpretes do 6º ano, a partir de seus desenhos, que foram
a maneira que eles ficaram mais à vontade para expressar como a poesia os tocou.
No último item, O fogo de Prometeu, a reunião das recepções que se mostraram
pelo verso, por intertextos de outros poemas bem como pela escritura de poemas autorais.
Quem me sopra os ouvidos para ler esses versos é aquele que acreditou na Utopia da
palavra, Antônio Severino (2002).
Importante dizer que esta escritura se configurou, em sua estrutura, como um
trabalho ensaístico e suas sessões foram construídas de forma interligadas, mas
independentes, como uma dança circular em que os autores chegam, fazem sua
performance, dão espaço para outros passos, mas continuam no círculo. Ao longo do
texto, também figura tal dança a alternância dos pronomes em primeira pessoa do singular
e do plural, devido aos momentos em que minhas escolhas dividiram protagonismo com
as de minha orientadora.
Para encerrar, entrego ao leitor as páginas que se seguirão, reflexo de minha
procura pela palavra mágica, de uma pesquisa que iniciou de uma angústia, um sonho e
muitas lacunas. Convido os olhos que miram esses escritos a conhecer o voo desta
aventura de descobrimento e sobretudo de encontro com o poético.
24
1 TROUXESTE A CHAVE?
Na Grécia antiga, mítica e heroica, quando a poesia — pelas manhãs de “róseos pés”
dos poemas de Homero — começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela
entranhada na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.
(Paes Loureiro)
Há muito tempo filósofos, poetas, críticos, ensaístas, teóricos, todos tentaram
definir poesia, e seu conceito é uma porta que pode ser aberta por inúmeras chaves. Os
filósofos teorizaram-na como forma de conhecimento, os poetas dedicaram-lhe inúmeros
versos metalinguísticos, a crítica literária tentou racionalizar sua definição e o senso
comum, geralmente, confunde poesia com poema. Por isso, antes de “vir o dia quando
tudo que eu diga seja poesia” (LEMINSKI, 2013, p. 77), necessito recorrer às vozes que,
por minha formação, ainda ecoam no pensamento, pois o entendimento acerca desse
conceito também é alimento para a pesquisa, e fazer um passeio pelas contribuições de
nomes que são fundamentais para a sua compreensão é de grande relevância para este
percurso teórico.
A procura da poesia começa com a linguagem. Gianbattista Vico (2008), em sua
Ciência Nova, conta que a linguagem dos primeiros homens foi expressa por caracteres
poéticos. É o que Nunes (2009) apresenta-nos, quando alude aos primeiros autores do
mundo civil como poetas, pois “enquanto Vico considerou na história da humanidade a
importância de tal linguagem, muitos a desprezaram por não conter os elementos que a
mathesis universalis requeria para torná-la compreensível” (p. 24-26). No entender do
filósofo, essa linguagem poética foi necessária à compreensão dos homens entre si, assim
“a natureza da poesia e do mito não foi simples ornamento nos tempos poéticos, mas
resultado de uma lógica que opera transferindo significados que lhes são familiares ao
que é percebido”(p. 24-26). Desta forma, é importante compreender que a poesia
acompanha o ser humano em sua evolução.
Segundo Ragusa (2013), a poesia, diferente do que temos agora, não era
produzida para a leitura (especialmente a leitura solitária e silenciosa). A autora se refere
a um período que data da Grécia arcaica (c. 800-480 a.C.) em que a poesia denominada
Mélica, termo que figura entre as denominações mais antigas para essa poesia que, a partir
da helenística (c. 323-31 a. C.), sob a influência dos trabalhos na Biblioteca, passou a ser
chamada de ‘lírica’. As composições dessa poesia eram destinadas à performance cantada
25
em coro, ou solo, acompanhadas pela lira em eventos das famílias aristocratas de
governantes ou em cerimônias públicas organizadas pelas cidades para homenagear um
deus. Portanto, a poesia
não era aquilo que o nome “poesia” identifica, mas algo mais próximo
à “canção” [...] inseria-se, assim numa cultura da canção, na qual
funcionava como veículo principal à disseminação de ideias morais,
políticas e sociais (RAGUSA, 2013, p. 12-13).
É possível aproximar os estudos da autora aos de Erza Pound (2006, p. 160),
quando diz que “jamais recuperaremos a arte de escrever poesia para ser cantada”. Aos
de Pignatari (2004, p. 9), quando comenta que “a poesia parece estar mais ao lado da
música e das artes plásticas. [...] é um corpo estranho nas artes da palavra”. Para
finalmente chegar aos de Paul Zumthor (2010, p. 8), quando para ele “o simbolismo
primordial integrado ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da
linguagem, e é aí que se enraíza toda poesia”.
Por todos os autores citados, verifica-se que a poesia, antes de estar na escrita,
esteve na voz. Desta forma, sua referência primeira vem das tradições orais, que a maioria
dos estudiosos relevam: a poesia oral. Ainda em Zumthor (2010, p.9), encontramos a
resposta a esta ocorrência:
em razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa
nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com
uma escrita, donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a
validade do que não o é. Nós, de algum modo, refinamos tanto as
técnicas dessas artes que nossa sensibilidade estética recusa
espontaneamente a aparente imediatez do aparelho vocal. As
especulações críticas dos anos 1960 e 1970 sobre a natureza e
funcionamento do “texto” deixaram de contribuir para clarear por este
lado o horizonte e ainda o embrumaram mais, recuperando, travestida
ao nosso hábito mental, a antiga tendência de sacralizar a letra.
O que o medievalista nos propõe é rever essa sacralização da ideologia letrada,
que tem na escrita seu fundamento maior e que, por praticidade, condiciona à poesia oral
a designação do termo “folclore”. Comumente empregada de forma reducionista, “a
palavra folclore se desdobrou, remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao que
vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, a diversas práticas de
recuperação dos regionalismos” (ZUMTHOR, 2010, p. 19). Outra expressão usualmente
empregada e criticada pelo autor é o adjetivo “popular”, muito utilizado com o termo
26
poesia. Tal emprego acaba por diluir uma corrente de conhecimento, relegando-a à uma
cultura subalterna.
O que esses teóricos discutem diz respeito a uma mudança de perspectiva do
entendimento de poesia. A sacralização das letras (escritas) se interpôs a toda poética
oriunda da oralidade. Como exemplo, temos o poema trágico Fausto, de Goethe que,
mesmo baseado em uma lenda alemã medieval, é recebido como literatura clássica porque
é arte assinada. Zumthor (2010, p. 22) nos permite compreender porque aceitamos a obra
de Goethe como clássico literário, escrito baseado na cultura “popular”. O autor comenta
que
no interior de uma mesma classe de texto (apesar de não definido como
tal), será “folclórico” o que for objeto de tradição oral; “ popular”, de
difusão mecânica. Em outros lugares, “a literatura oral” será tomada
como uma subclasse da “popular”, enquanto que alguns se negarão a
ligar essas categorias ou atribuirão (despreocupados com essa petição
de princípio!) o título de “primitivo” a toda poesia “puramente” oral!
[...] O elemento perturbador em tais discussões decorre do recurso,
implícito ou declarado, que nelas se faz a uma oposição não pertinente
neste caso: a que separa o “literário” do não literário ou o que é
designado com algum outro termo, seja ele sociológico ou estético; e
neste caso, eu percebo o literário vibrante das conotações acumuladas
há dois séculos: referência a uma Instituição, a um sistema de valores
especializados, etnocêntricos e culturalmente imperialistas.
O que se faz compreender das passagens acima é que as artes firmadas no codex
literário chegam até nós com o status de literatura. Com isso, a poesia afastou-se do uso
original da compreensão dos homens entre si. Para Zumthor (2014, p. 49), poética é
o uso linguístico de uma comunidade humana como uma rede de
práticas tendo por finalidade a comunicação e a representação, porém,
estruturadas de tal modo que necessariamente uma entre elas,
metamimática, vise à linguagem como outros visam o mundo.
As definições acerca da poesia são ilimitadas e, para Bachelard (1990, p. 83), ela
“demanda uma adesão menos pesada, mais móvel e mais livre [...]. A poesia, pode-se
ainda dizer, desenvolve seus próprios mitos.” Cavalcanti (2012, p. 25) entende que “a
poesia não está nas coisas, ela é as coisas, ou uma maneira de as coisas se mostrarem em
intimidades que só o poeta, e apenas em certos momentos, a ela tem permissão de aceder”.
Para Ezra Pound (2006, p. 40), “a poesia é a mais condensada forma de expressão verbal”.
27
Como vimos, são muitas as possibilidades. Cada autor, à sua época, tem sua
própria “arte poética”, sua chave. Para delimitar a discussão a que esta sessão se propõe,
recorro a outros nomes que também estiveram à procura da poesia.
Mário Faustino (1976), em Poesia-Experiência, no capítulo intitulado “Poética”,
aborda, entre outras questões, a partir de um diálogo entre poetas, duas perguntas
fundamentais: “Para quê Poesia? e “Quê é poesia?”. Para a primeira questão, em sua
concepção a poesia
serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as
diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso
a poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado
de espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A
poesia, aliás, é incomparável quando registra—com a capacidade
condensadora e mnemônica de que só ela é capaz—certas nuanças de
ponto de vista, de atitude, de sentimento e de pensamento, individuais
como coletivos, nuanças essas que, muitas vezes, são bem mais
expressivas de um povo e de uma época, do que os grandes
acontecimentos (FAUSTINO, 1976, p. 33).
O pensamento do poeta confere à poesia relevância social, o que direciona o
leitor para a segunda questão proposta pelo autor: a definição de poesia. Esta é muitas
vezes utilizada de maneira supérflua, como forma de adjetivar algo belo, com sentenças
como “a noite estava muito poética”, ou “que música poética!”, e que, para o autor, essa
“atitude só serve para desviar, para confundir princípios”. Ele declara não ter interesse
por essa perspectiva de poesia, propondo uma aproximação relacionada ao conceito de
arte poética, apresentando a concepção da obra literária dividida em dois polos: o poético
e o prosaico, que podem ser diferenciados apenas de maneira formal, a partir de aspectos
concretos como o verso, o ritmo e a linguagem mais concentrada. Tal distinção, para o
autor, se faz por uma questão “puramente acadêmica”, mas que, para compor o horizonte
entre esses conceitos, elucida a diferença:
quando um escritor, tirando palavras do estoque de sua memória,
procura adaptá-las ao objeto de sua criação, fazendo tais palavras
circularem em torno de seu objeto, refletindo-o, comentando-o,
contando-lhe a história, analisando-o, personalizando-o, identificando-
o, etc., queira ou não queira, está entrando no prosaico [...] quando esse
mesmo escritor, colocando-se diante do objeto de sua criação, vê
nascerem em sua mente palavras como que inteiramente novas,
insubstituíveis e essencialmente intraduzíveis que não glosam o objeto
e sim o recriam em um plano verbal, batizando-o de um modo
28
inexplicavelmente novo, tirando-o do caos em que parecia encontrar-se
e colocando-o numa ordem nova — então esse escritor, queira ou não
está caindo no poético (FAUSTINO, 1976, p. 62-63).
A exposição acerca das diferenças entre a composição do escritor não tem por
objetivo dar maior ou menor valor à linguagem, ou mesmo dar um tipo de fórmula de
identificação para ela, o que lê-se são argumentos que vão personificando o poético e o
prosaico como dois lados da linguagem que, apesar de distintos, misturam-se em
confluência híbrida. Para o autor, não há exemplo de obra literária puramente poética nem
puramente prosaica.
Trago paralelo ao exposto, Ferreira Gullar (1995), em seu ensaio Uma voz entre a
natureza e a cultura, que também reflete sobre o papel da poesia e do poeta:
O poeta moderno, que desenvolveu a linguagem literária à sua condição
prosaica, realiza a poesia pela transformação da linguagem prosaica em
linguagem poética. Na concepção da nova poesia, o que há de
fundamental e permanente é a linguagem mesma – a língua – que será,
neste momento, poética e, naquele outro, prosaica. Essa alternância se
dá no âmbito mesmo do poema, já que em nenhum poema todos os
elementos da linguagem se transformam em “poesia”. Ou seja, é o
processo de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os
elementos verbais e faz com que neles aflore a intensidade da expressão
poética. O poema é portanto, o lugar onde prosa se transforma em
poesia (GULLAR, 2008, p. 1082).
Retomando Faustino (1976, p. 68-69), sobre o conceito de poesia, para o qual não
é possível responder à questão
sem cair na “literatura”— ou literatice. Um estudo semântico da palavra
“poesia”, em qualquer das línguas ocidentais, muito nos afasta tanto de
sua origem etimológica, como do conceito filosófico que lhe possa
conferir. Porque a tradição, o uso, tem chamado de poesia “a beleza”, a
“harmonia”, o “pensamento profundo”, “a imaginação”, “a linguagem
metrificada”, o “verso”, “o conjunto de poemas”, o “poema, etc.—
coisas que, está claro, não tem lá muito com a poiesis dos gregos ou
com a nomeação, a recriação do objeto em palavras
A (in)conclusão do autor demonstra que mesmo que tentemos achar definições,
para ele, o poético não tem de ser compreendido, e sim percebido. O que não significa,
por sua vez, dizer que a poesia é qualquer coisa, ou mesmo limitá-la à música e à imagem,
poesia “é também pensamento” (FAUSTINO, 1976, p. 50).
O poema dá asas à linguagem, permite que a palavra comum ganhe outras
existências. Ao situar como o poema pode causar provocações, Perrone-Moisés (2000),
29
em Inútil Poesia, nos coloca diante da força do poema, das imagens por ele (re)criadas e
do ato de (re)ver a palavra sem o automatismo do cotidiano. “Como se, pela palavra, fosse
possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma”
(BOSI, 2000, p.136).
O poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das
mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar,
imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a
linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e
de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente
verdadeiro e necessário. [...] A função do poeta moderno é opor-se a
esse comércio aviltante, e propor a utopia de outras linguageiras. Seu
trabalho consiste em “dar um sentido mais puro à palavra da tribo”,
fazer com que elas, em vez funcionar apenas como valores de
representação da realidade, instaurem uma realidade de valor.
(PERRONE-MOISÉS,2000, p.32).
Como o que Pessanha (1985, p. xxix) delineia quando diz:
não há nenhuma necessidade de ter vivido os sofrimentos do poeta para
compreender o reconforto da palavra oferecida pelo poeta — reconforto
da palavra que domina o próprio drama. A sublimação, na poesia,
domina a psicologia terrestremente infeliz. É um fato: a poesia possui
uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja
levada a ilustrar.
Faustino (1976) comenta que o poeta seria aquele capaz de perceber os
fenômenos naturas e sociais de maneira especialmente sintéticos, e também preparado a
exprimir em palavras organicamente conectadas, essa visão totalizadora de um mundo e
de um período. Contudo, não há intento de colocar o poeta em um lugar especial,
diferente, mas exprimir a relevância de como ele deixa impresso na história a marca de
sua época. Pois,
mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de homem
de hoje entre homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um modo que
não é o do senso comum, fortemente ideologizado; mas de outro, que
ficou na memória infinitamente rica da linguagem. O tempo "eterno"
da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de
imagens e recorrências, os dados que lhe fornece o mundo de hoje,
egoísta e abstrato. Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do
passado e da memória o direito à existência (BOSI, 2000, p. 131).
Eco (2001, p. 34), por sua vez, entende que o mundo interior do poeta é formado
e influenciado mais pela tradição estilísticas de seus antecessores do que pelas ocasiões
históricas em que suas ideologias se inspiram. Pelas influências estilísticas, o poeta
30
formaria sua maneira de ver o mundo e sua obra tanto pode ter pouca conexão com seu
momento histórico, quanto expressar uma fase posterior à sua realidade, como poderá
manifestar níveis profundo e incompreensíveis a seus contemporâneos.
Refletindo no que concerne à tarefa do poeta T. S. Eliot (1991, p. 25-37), em De
poesia e poetas, uma de suas passagens mais incisivas nos diz:
como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta
é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e
aperfeiçoá-la. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, também ele
está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está
tornando as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem, e por
conseguinte, ensinando-lhes algo mais sobre si próprias. Mas o poeta
não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também
individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas,
e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos
sentimentos que ainda não haviam experimentado.
A experiência pelo poético pode revelar aquilo que instaurado pelo comum,
passa insípido aos sentidos, a partilha do que pode ser caro ao leitor, e causar, como diria
Barthes (2013), a fruição da escrita. E nesse sentido, a poesia amazônica para o leitor em
formação que precisa aproximar a palavra e o mundo, conhecer a letra que vem do seu
lugar, pode ser uma conexão íntima com sua experiência. Por isso a necessidade da poesia
amazônica para o nosso leitor, pois “há, nas alegorias produzidas pelo imaginário na
cultura amazônica, uma permanente tentativa de compreender o homem, o amor, a vida,
a morte, o trabalho e a natureza” (LOUREIRO, 1995, p.85).
O poeta amazônico extrai da realidade circundante suas motivações artísticas e
compõe de forma ímpar textos em que o mítico, o imaginário, a forte relação com o rio e
a floresta dividem espaço com as formas culturais da mistura advinda de outros lugares.
Esses escritos representam uma identidade local que ultrapassa as fronteiras regionais,
mas, também, externam a poética carregada por uma singularidade. Assim, é revelado o
imaginário que vai além do que é perceptível aos olhos, é transcendente, é “a terceira
margem do rio”.
Loureiro (1995, p.50) também está entre os poetas que buscaram a chave para
compreender a definir a poesia, como essência que revela a beleza escondida no mundo,
em que para ele, “alarga o círculo da imaginação, alimentando o pensamento. Com sua
forma, ação, linguagem e repercussão na cultura, ela torna inclusive, uma época mais
memorável do que outra”.
31
O que tentei demonstrar nestas páginas primeiras é que o conceito de poesia não
terá uma única chave. O que distingue a poesia de épocas diferentes e o que define sua
singularidade está relacionado à cultura e aos costumes de cada época, e de como ela (a
poesia) fica impressa na memória, as influências e mudanças que fazem os sentimentos
humanos serem abordados de formas distintas.
As transições que a poesia viveu e os meios que lhe deram suporte nos leva à
movência da palavra, que nasce no seio da linguagem e da voz, passa para escritura.
Transição que deu à palavra escrita o legado que sobrepôs à poesia que está na letra uma
sina, que explicamos nas linhas que seguem.
1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra
O mito de Apolo revela experiências que se relacionam com a precisão, atributo
próprio da razão. A fantasia apolínea provém da crença na supremacia da simetria, pois é
através da harmonia das formas que se configura a ilusão do belo. Apolo no mundo grego
é aquele que rege a forma à medida que origina a harmonia e a “bela aparência” das
coisas.
A letra escrita sempre foi símbolo de poder. Muito antes da invenção da imprensa
o ato de conhecer a letra, decodificar as palavras, saber o que está grafado permite ao que
lê um lugar de privilégio. Pensando na história que envolve a relação do homem com a
letra escrita, faço um retorno, uma longa volta ao passado para compreender como a
poesia, viva na voz, passou da oralidade à escrita. Quem nos acompanha nesta volta, de
“escritura e nomadismo”, é Paul Zumthor (1993), seguindo principalmente os estudos do
título A letra e a Voz: Literatura Medieval.
“A escritura não se confunde nem com a intenção nem mesmo com a aptidão de
fazer da mensagem um texto. Ela tem seu ritmo próprio de desenvolvimento; a
textualidade tem os seus, assim como as mentalidades escriturais” (ZUMTHOR, 1993, p.
96-97). Para justificar nossa escolha pela poesia que está na letra, é necessário entender
por quais processos a escritura passou e os modos de raciocínio que envolveram sua
evolução.
O medievalista comenta que até cerca do ano 1.000 a escritura esteve restrita aos
mosteiros e cortes régias, e lentamente foi se expandindo para as classes dominantes dos
Estados europeus. Sua estreita relação com a voz foi um dos fatores que favoreceu em
sua difusão a partir desse período, mas somente na virada dos séculos XIV e XV, em que
32
surge na Europa a primeira pintura de cavalete, que expressa a predominância, da visão e
do espaço, próxima de se concretizar. Essa primeira pintura marca um movimento da letra
saindo de seus domínios exclusivos (clero e as cortes) e chegando aqueles que por ela
podiam pagar.
Essas linhas atravessam o campo da poesia: de maneira contrastante
complexa, atuam sobre a intenção e a composição do discurso que a
poesia comanda e (em menor medida, talvez) sobre as modalidades
psíquicas de sua recepção. Assim, o que se encontra profundamente
posto em questão é a relação tríplice estabelecida a partir e a propósito
do texto—entre este seu autor, seu intérprete e aqueles que o recebem.
Conforme os lugares, as épocas, as pessoas implicadas, o texto depende
às vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura, às vezes
(e foi sem dúvida a regra nos séculos XII e XIII) de uma escritura que
funciona em oralidade (ZUMHTHOR, 1993, p. 98).
E a escritura precisava funcionar como oralidade, uma vez que apenas um número
muito pequeno dos homens no período medieval era capaz de ler suas cartas, e esse índice
leva em consideração os profissionais da escritura, quem conseguia estruturar seu
pensamento em palavra escrita era quem tinha poder. A prática de leitura era diferente
para o homem medieval do que é para nós, não contavam com a onipresença da escrita
em seu cotidiano. E apenas no século XIII que ficam legíveis os primeiros indícios de
livros comercializados.
Como uma prática que exige técnica e competência a escritura era uma atividade
que demandava muito tempo, pois, nesse período as diversas fases que a compõe, como
a feitura da tinta, a fabricação da pena e de outros objetos que eram produzidos para sua
realização, eram confeccionados pela mesma pessoa, por isso, a escritura ficou
dependente de seu elitismo.
Para além disso, para o escriba não era suficiente dominar a técnica de grafar as
letras, aquele que desenvolvesse “uma competência textual mais preciosa, fundada no
conhecimento das fórmulas eficazes, das regras discursivas, do manejo das figuras, de
tudo o que constitui, no sentido primeiro o estilo” (ZUMTHOR, 1993, p. 102) era ainda
mais valorizado. Assim, a estilística desde os primeiros trabalhos escritos já era um
elemento que consagrava o escriba, e, há de se considerar que ainda não havia as noções
de coesão e coerência na composição dos manuscritos, muito menos o juízo de
acabamento textual. Além dos escribas havia os copistas, que recebiam, em geral, pela
voz de um leitor o texto a ser reproduzido,
33
o copista “domina” sua matéria: é de fato, seu mestre; e talvez,
conforme a opinião mais comum, o seja de direito, caso se pense na
fluidez da maioria de nossas tradições manuscritas. A reprodução dos
textos autorais latinos testemunha aqui e ali, uma preocupação de
autenticidade; a anotação dos textos de poesia em língua vulgar, quase
nunca. [..] assim, a linguagem que o manuscrito fixa continua a ser,
potencialmente, a da comunicação direta. A escrita, salvo exceções,
constitui-se por contágio corporal a partir da voz: ação do copista é
“tátil” (ZUMTHOR, 1993, p. 103).
Por essa razão, a distinção entre autor, escrevente e intérprete para as pessoas
desse período não tinha relevância, o que por muito tempo fez com que o “autor” fosse o
intérprete na performance de uma poesia que, não precisava dizer sua origem. Nesse
período a leitura envolvia a voz, prática que foi valorizada por muito tempo pela tradição
monástica que considerava como uma ajuda à meditação. Segundo Zumthor (1993, p.
105), do século XII ao XIV, com o aumento da circulação do número de escritos, aumento
das fontes disponíveis e as universidades inserindo bibliotecas abertas aos estudantes foi
se desenvolvendo a leitura silenciosa. E a partir do século XV a leitura silenciosa passou
de uma maneira outra para uma imposição. É quando a relação texto-leitor passa para
uma esfera mais íntima, bem como no meio letrado o termo “escrever” passa a ter o
sentido de “compor”. Também, nesse período, passaram a reunir os escritos de um mesmo
autor e atribui-lhe autoria, isto é, a escritura começa a se organizar em livro.
A debilidade ou a aparente irregularidade do recorte do texto
manifestam de outra maneira essa oralidade natural do uso da escrita.
A página se apresenta de modo massivo, às vezes sem querer isolar
sistematicamente as palavras...um pouco à maneira de numerosas obras
literárias de hoje que, justamente, tentam assim atender uma
necessidade vocal! A escritura medieval dissimula ao olho as
articulações dos discursos (ZUMTHOR, 1993, p. 106).
A escrita acaba por estender-se a duas funções: a transmissão de um texto e sua
conservação, o que nem sempre se dava de forma concomitante. Zumthor (1993) usa
como exemplo os textos que serviram de instrução para intérpretes de jogral, que em sua
feitura não tinham a finalidade de conservação, mas que graças a ela manuscritos
importantes chegaram ao nosso conhecimento.
Para o homem medieval a escritura aparece como uma dessas instituições em que
um grupo social pode, de fato, identificar-se, mas em que não pode, no pleno sentido da
palavra, comunicar-se. A classe cavalheiresca, o baixo clero e a maioria dos nobres, por
exemplo, eram analfabetos. O tipo de saber requerido ou impostos por sua situação social
34
não tinham relação com a prática da leitura. Como a letra ficava limitada aos manuscritos
necessitava da mediação de um intérprete autorizado, ausente essa mediação ela (a
escritura) “resiste, opacifica, obstrui, como uma coisa. Enquanto técnica, não depende da
ordem da poesia; a poesia não tem o que fazer com ela, a não ser deixá-la simular
utilidades” (ZUMTHOR, 1993, p. 110). Pois bem, o que o medievalista se refere é à
poesia oral: a escritura simula uma utilidade porque ela ainda não era necessária, porque
a poesia estava na voz.
O prestígio da letra escrita contribuiu para mantê-la distante da massa dos
iletrados, para eles “a letra traçada é uma coisa—significante da mesma condição que
toda coisa criada—irrefutável mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças
ou pavores mágicos” (ZUMTHOR, 1993, p. 113). Entretanto, para os príncipes do século
XV, era como um signo de poder: mandavam copiar luxuosos manuscritos musicais que
eram tidos como joias.
A passagem do vocal para o escrito não se deu como uma ruptura, mas de maneira
lenta, pois a natureza da escritura medieval não comportava a função mediadora da voz,
a escrita seguia como forma de registro de um discurso anunciado ou da preparação de
textos destinados para leitura pública. A primeira onda de poesias europeias se origina de
grandes mosteiros ou do meio real, em que os poemas eram colocados por escrito para
reunir em torno do rei a comunidade de seus fiéis destacando seu passado heroico.
Primeiro aparecimento, em nosso horizonte, de uma poesia e de relatos
comemorativos aproximadamente formulados na língua viva comum;
testemunhas imperfeitas e indiretas da presença de uma voz.
Cronologicamente, nos territórios galo-românticos e germânicos (de
longe os mais empenhados nesse projeto de aculturação) segue-se um
eclipse, aparentemente de dois ou três séculos. Deslancha então a
segunda onda de escritura poética em língua vulgar—sem ruptura até
nossos dias (ZUMTHOR, 1993, p.122).
Com essa segunda onda há o enfrentamento e a conquista da língua viva da cultura
popular, que agora figura entre os letrados que precisam fazer um esforço de invenção
para racionalizá-la, ter domínio sobre ela. “Nesse empreendimento, seu mais poderoso
instrumento é a escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coerção vocal
que ainda pesa sobre si: o verso. Donde a difusão de uma prosa narrativa” (ZUMTHOR,
1993, p. 123).
A partir dessas mudanças já não é exclusivo às tradições orais a função da
transmissão de conhecimentos dentro do grupo social, essas tradições vão enfraquecendo,
35
e ficando cada vez mais relegadas à margem. “O seu espaço passa a ser ocupado por
‘ciências’ descontínuas, em número crescente, para as quais ou pelas quais o homem cria
uma linguagem, abstrata, empenhando cada vez menos a realidade do corpo”
(ZUMTHOR, 1993. p. 123). Realidade que coloca a escritura num lugar de
inacessibilidade. Longe do corpo, distante da voz, a palavra carrega a legitimidade do
discurso científico e arrasta o peso que ele traz: a forma da língua, suas movências e
permanências e com elas as estruturas gramáticas, regras sintáticas, a rigidez vocabular.
Octavio Paz (2012), em O arco e a lira, expõe que à mediada que a palavra escrita
foi substituindo a voz viva nas relações humanas (quando já intensificava suas diferenças
de hierarquia entre os interlocutores), elas foram modificadas. Para o autor, o livro impõe
ao ouvinte uma lição única sem o direito de perguntar ou questionar. Mas essa ideia leva
em consideração as novas técnicas que, comparadas à forma como a palavra poética era
socializada antes da presença da escritura, criaram um distanciamento entre o homem
comum e a poesia, pois toda palavra supõe a relação do que fala e de quem ouve, e o
universo verbal do poema não contém os vocábulos do dicionário, mas da comunidade.
O que o autor expõe é a diferença que a escritura impôs na relação dos homens
com a palavra poética, que em sua origem era algo para se dizer e ouvir, ao tornar-se algo
que se escreve e se lê, como operação particular, sua leitura vem do que vemos, para o
mexicano, a poesia passa a entrar no corpo pelos olhos e não pelos ouvidos. Contudo, é
importante ressaltar que a escritura não aprisiona o texto, ela lhe confere forma, para o
letrado, ela permite a autonomia de uma recepção livre da mediação de terceiros.
Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja
um corpo—repugna mais que o texto escrito toda percepção que o
diferencie de sua função social e do lugar que ela lhe confere na
comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou
implicitamente; das circunstâncias, enfim, nas quais se faz escutar. O
texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,
intrínseco, devido às polivalências geradas pela formalização poética;
outro, extrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos
entre o momento em que é produzida a mensagem e aquele em que esta
é recebida (ZUMTHOR,1993, p.60).
A comparação não pretende fazer juízo de valor ao texto oral ou escrito, mas sim
diferenciar os efeitos de seus registros. O texto oralizado é uma recepção da recepção,
uma vez que a voz sempre trará para quem ouve a leitura do mediador, essa forma
comporta o elemento sonoro, o sentir e as escolhas de interpretação do mediador, a
maneira que ele elege para colocar no seu corpo o texto e entregá-lo a quem ouve.
36
O texto escrito é recepção íntima, é o olhar o leitor sobre a palavra em que suas
significações vão ser orientadas pela governabilidade do tempo em que ele está inserido.
Por isso, a distinção dos registros que põe em causa poesia oral de um lado, poesia escrita
do outro “implica evidentemente que suas formas respectivas não podem ser idênticas.
Nem mesmo os níveis em que elas se constituem, nem os procedimentos que as produzem
podem ser comparados a priori” (ZUMTHOR, 2010, p. 83).
O medievalista entende que a voz poética é onipresente, integrada nos discursos
comum pela performance, ela reúne um instante ímpar porque se diferencia das vozes
cotidianas, função basilar da poesia. E na escritura não acorre da mesma maneira. A
performance não cabe na escritura. Mas, não pretendemos colocá-las como opostas e sim
em perspectiva: “Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se
escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à
autoridade de uma voz” (ZUMTHOR, 1993, p. 154). Em verdade, o que se coloca são as
formas de movências da poesia, que para ele, é o que o leitor ou ouvinte recebe como tal:
não remetendo a ela apenas o texto que informa, mas percebendo a trama do tempo e do
espaço dos discursos que atravessam a matéria daquele grupo social.
Ao olhar a poesia que está na voz e chegou à letra, por perspectivas particulares,
o autor traça a imagem da mensagem poética “em cascata”, uma mensagem que é marcada
por sinais que revelam a natureza figural da poesia, que localizam a partir de modalidades
variadas, específicas de cada sociedade e de seu tempo histórico em nível discursivo e
enunciativo. Entre esses sinais destacam-se dois: o modo restritivo, textual, que se
relaciona à língua; e a sinalização modal, que opera sobre os meios corporais e físicos da
comunicação: “tudo que se refere às grafias, quando se trata de escritura; à voz quando
se trata de oralidade” (ZUMTHOR, 1993, p. 160).
Os sinais textuais e modais carregam muitas diferenças entre si, o modo textual é
limitado pelas imposições linguísticas, as marcas textuais, ele domina o registro escrito.
Enquanto o modal domina as artes da voz, que pela ação vocal age sobre as maneiras que
o corpo físico expressa o texto poético. Combinados esses modos, temos a obra. Em sua
conclusão, o autor data o surgimento do “romance”: 31160-70 na junção da oralidade e
da escritura. Um processo que é designado pela expressão mettre em roman (colocar em
romance), assim os escritos eram glosados em língua vulgar, colocados por escrito para
3 Em seus estudos, no título A letra e a Voz, o autor grafa o termo aspeado. Escolheu-se manter as aspas,
pois em se tratando de período medieval o termo romance ainda não era uma nomenclatura utilizada.
37
transmiti-los apenas pela leitura. Atingindo os ouvintes, o “romance” recusa a oralidade
das tradições antigas, que se atenuarão a partir do século XV.
Nessas tradições, a presença dos contos era muito comum, não por acaso, os
contos clássicos foram colhidos da oralidade. Assim, o surgimento do romance, com sua
elevada exigência narrativa ou retórica, com a necessidade de longa duração de leituras e
de audição, era destinado ao meio cavalheiresco e nobre. “O “romance” desmarca tudo o
que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga
estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração” (ZUMTHOR,
1993, p. 267).
Fazendo um paralelo aos escritos de Benjamim (1994), no texto O Narrador, em
que conduzido pela trama da ideia das ações da experiência:
o primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa
é do surgimento do romance no início do período moderno. O que
separa o romance da narrativa epopeia no sentido estrito é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna
possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da
poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que
caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras
formas de prosa—contos de fada, lendas e mesmo novelas—é que ele
nem procede da tradição oral nem a alimenta. O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.
O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado,
que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais
importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los
(BENJAMIN, 1994, p.xx).
Apesar de referir-se a períodos distintos (medieval e moderno), os autores se
aproximam quando pensamos na reprodutividade da palavra e na chegada da tecnologia,
que vai afastar o homem desse convívio comunitário em que a voz é suprema. Os dois
autores marcam o início do texto produzido para o homem solitário, que não necessita de
uma comunidade narrativa para ler. O surgimento do romance coloca a voz como um
instrumento subserviente ao texto escrito que ela tem como função fazer conhecer
mediante a leitura em voz alta. A diferença consiste em
quando da performance oral propriamente dita, teatralmente
desenvolvida, os ouvintes percebem imediatamente, e em bloco, o
autor, o recitante, o narrador e o texto, formando esses quatro elementos
um todo indissociável; na leitura em voz alta, no entanto, o ouvinte só
percebem desse modo o recitante e o texto. (ZUMTHOR, 1993, p. 265).
38
A voz perde seu status de palavra viva, fonte insubstituível de informação,
lembrando que estamos falando de uma passagem, o texto que sai da oralidade e vai para
a letra, torna-se cada vez mais matizado pelas cores da prosa, que lhe possibilita abstrair
e refletir sobre si mesmo, e este fim em sim mesmo ele não possuía quando somente no
regime da voz. “O escrito retira suas amarras, se assim posso dizer, aspira ir à deriva,
recusa o presente da voz, complica-se, proclama sua existência fora de nós, fora deste
lugar” (ZUMTHOR, 1993, p. 270).
Mas, ainda com todo esse avanço da escritura, não houve um desaparecimento da
vocalidade, pois em um período em que a leitura era um privilégio, os textos ainda
dependiam de sua recepção por um auditório. Ainda que a presença da escritura
constituísse uma mudança significativa para os paradigmas da época, isso não foi
suficiente para abolir a operação vocal da difusão das obras, muito menos para apagar
completamente dos textos as marcas da oralidade. É por essa razão que o escritor de
língua vulgar, “nesse fim de século XII, transita entre a voz e a escritura, entre um fora e
um dentro: ele entra, instala-se, mas conserva a lembrança mitificada de uma palavra
original, saída de um peito vivo, do sopro de uma garganta singular” (ZUMTHOR, 1993.
p. 273).
O “romance” é entre os gêneros poéticos o único que a tradição vem antes do
século XIII. A sua autotelia reivindica um estatuto que diferencia-se de todas as outras
artes desse período.
A intenção romanesca é menos gozar o mundo, a vida, a linguagem do
que não gozar para, por último, substituí-los por um universo à mercê
do homem. Por isso, só o “romance”, entre as práticas dos séculos XII,
XIII, XIV ainda e, em medida menor, do XV (forçando um pouco, mas
sem muito prejuízo) no quadro, ao mesmo tempo ideal e pragmático,
que designa nosso termo literatura (ZUMTHOR, 1993.p. 276).
Pois bem, os sinais da herança de Apolo ficam ainda mais nítidos quando
pensamos que o “romance” foi o primeiro “gênero” a tirar o texto poético da oralidade e
colocar na forma, caminho que nos leva direto para a literatura. O escritor chama atenção
para a história da palavra literatura, oriunda do latim litteratura que à época de Cícero
significava traçar letras, ou o próprio alfabeto; para os eclesiásticos, o termo se refere à
erudição em geral conferida pelo ensino pagão, tendo assim uma conotação pejorativa.
Quando a tradição medieval elimina essa conotação, utilizando a palavra litterae (séculos
XV- XVI) “os humanistas tendem a restringir a significação, consideram o único
39
conhecimento o dos ‘bons’ escritores da Antiguidade, aqueles mesmos que fundam então
o cânone poético e fornecem modelos para a arte de escrever” (ZUMTHOR, 1993,p. 278).
O princípio do cânone vem de um grupo privilegiado que produz e consome os
escritos que passamos a chamar de literatura, um dos alimentos desse cânone é justamente
esta letra que não está perto de todos e que é fortemente individualizada, feita para os
poucos e solitários leitores. “O texto “literário”, pouco depois de sua primeira difusão,
inscreve-se no arquivo justamente denominado “cultura literária”, a esse título
privilegiado, confirmado, desde sua gênese, aquilo que basicamente é um academicismo”
(ZUMTHOR, 1993, p. 283-284).
Sob a herança de Apolo está uma parte da poesia, quando a letra da voz moveu-
se para a Literatura. Ao aproximar a lente para um período mais próximo, notamos que a
formalização de uma obra começa quando vai para a letra escrita, a escritura fixa o verbo,
lhe confere um formato, uma ordem. Apolo representa a revelação desta forma e desta
ordem. Dentro da cultura literária é o cânone que está posto, o texto que é colocado como
um monumento da linguagem a ser apreciado fora do corpo: a Literatura enquanto
instituição.
Assim, desde os primeiros escritos em que só os profissionais das letras tinham
acesso à escrita, até os dias correntes, essa relação distante com a letra ficou como uma
herança. E, num país em que uma porcentagem considerável da população não é
alfabetizada ou é analfabeta funcional, o legado se perpetua. A herança de Apolo é a
herança da exegese das musas, das artes, mas também é a herança do domínio das elites,
do conhecimento da paidéia da formação do homem grego, em que só o homem, filho da
oligarquia, tinha acesso a essa cultura.
No percurso desta pesquisa, tentamos possibilitar o contato do leitor, em
formação, com a poesia. O projeto inicial pretendia transbordar os limites do texto
impresso para a poesia que está na oralidade, bem como outras manifestações artísticas,
contudo dois fatores nos levaram a tomar um caminho diferente. O primeiro foi o tempo,
com um horário reduzido com os intérpretes, cada texto levava mais de um encontro para
ser apreciado, o segundo, foi a recepção dos intérpretes.
Percebemos que a poesia que está na letra, é ainda mais distante destes leitores,
assim optamos por limitar nossas análises à poesia que se materializa na escritura,
utilizando textos em verso e em prosa de autores paraenses. A palavra não deve ser o
bloqueio que separa o leitor da poética, pois é nela que produzimos sentido,
materializamos o mundo, subjetivamos a vida.
40
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que
fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem
coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não
pensamos com pensamentos mais com palavras, não pensamos a partir
de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas
palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou
“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é
sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com palavras
(LARROSA, 2017, p. 16-17).
Privilegiar a letra é uma tentativa de mostrar que nela também vive uma voz,
latente desejo de “verbo in delírio”, deixar o leitor perceber que a palavra está escrita em
seu corpo, que ele é palavra viva. É a materialidade inoxidável, ímpar que, como a própria
poesia, resiste aos tempos.
1.2 O caminho para o Olimpo
“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e o desamparo, acender uma
luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e
do espírito dos homens”.
(Toda poesia, Ferreira Gullar)
Por que a poesia não pode ser vivida enquanto manifestação artística potencial
em sua significação para formação do leitor? Uma possível resposta à questão é o lugar
que essa situação está arraigada: o paradigma positivista, que não aceita os saberes
poéticos, renega a subjetividade. A ciência, o academicismo e, especialmente, o
Positivismo, influenciaram e influenciam o lugar da poesia nas instituições. Seria
interessante falar desse caminho de descoberta desde a racionalidade clássica até a ciência
pós-moderna, mas seria demasiado longo para o que proponho nesta sessão. Assim, na
tentativa de entender o caminho para o Olimpo, me debruçarei em dois momentos: o
ponto de partida da racionalidade clássica, para em seguida ir ao paradigma da ciência
moderna.
É na antiguidade clássica que temos o primeiro registro do afastamento da poesia
com o ser humano:
[...] Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três
pontos afastado da natureza.
– Perfeitamente, respondeu.
41
– Ora, exatamente como ele encontra-se o poeta trágico, por estar, como
imitador, três graus abaixo do rei e da verdade,
o que, aliás, se dá com todos os imitadores.
[...]
– Logo, a arte de imitar está muito longe da verdade, sendo que por isso
mesmo dá a impressão de poder fazer tudo, por
só atingir parte mínima de cada coisa, simples simulacro… (597b,
598c) (PLATÃO apud NUNES, 2011, p. 11).
O diálogo apresentado por Benedito Nunes (2011) é o recorte de quando Platão
expulsa os poetas da República. O filósofo relega o poeta ao ostracismo, não podendo
este fazer parte da vida pública. Para o filósofo, o conhecimento sensível era irrelevante
e somente a partir da razão se poderia chegar ao conhecimento verdadeiro. Ainda nas
palavras do professor:
embora o poeta trágico não imite como o pintor a obra dos outros,
ambos são colocados na mesma categoria do mimetés, que imitaria tanto
a obra do rei, que é a ideia, o eîdos ou a essência, da qual está três graus
distanciado, quanto as coisas do mundo sensível e os objetos fabricados,
dos quais apenas produz o simulacro, ou seja, uma duplicada ou
triplicada imagem que é um correspondente ilusório da modelar
verdade suprassensível ou da verdade suprema (NUNES, 2011, p.11).
O conhecimento poético é empírico e emocional, assim, não poderia estar em
acordo com o conhecimento teórico e contemplativo, o verdadeiro conhecimento. Fares
(2015, p. 4), em Poéticas Orais, um caminho para educação do sensível, confirma: “o
poeta é expulso da República, porque as artes são condenáveis por se regularem pela
mimese, imitação, simulacro, o poeta representa o mundo sensível, cópia do Ideal
imutável. Por outro lado, a palavra dos poetas tinha poder de moldar as almas”.
Assim, quando a poesia é expulsa da República, o lugar que lhe resta é o Olimpo,
como fábula teogônica, como narrativa dos poderes dos deuses. A poesia, como
representação do divino, perde sua significação mais humana, passa a uma função
mistificada, quando na verdade tinha um papel basilar na educação do homem (Paideia)
e era uma arte de formação do ser humano. Por esse distanciamento, a poesia deixou de
ser parte da formação dos homens para ficar no plano do sublime. Vernant, em Mito e
pensamento entre os gregos (1973, p.76), comenta o lugar da poesia antiga:
Este cuidado de formulação exata e enumeração completa confere à
poesia antiga uma retidão quase ritual — mesmo quando ela visa de
42
início o divertimento, como é caso de Homero. [...] A este ordenamento
do mundo religioso está intimamente associado o esforço do poeta para
determinar as “origens”. Em Homero, trata-se apenas de fixar as
genealogias dos homens e dos deuses, de definir a proveniência dos
povos, as famílias reais, de formular a etimologia de certos nomes
próprios e o áition de epítetos culturais. Em Hesíodo, essa pesquisa das
origens toma um sentido propriamente religioso e confere à obra do
poeta o caráter de uma mensagem sagrada.
Os escritos de Vernant (1973) corroboram com a concepção de que a poesia está
em paragens que poucos conseguem alcançar e essa ideia se mantém e ganha força
quando as instituições fizeram da poesia o lugar da erudição. Menezes (1995, p. 145),
quando enreda O poder da palavra com a memória para trazer a deusa Mnemosyne,
aquela que está destinada a sacralização da memória e a função poética, os aedos, os
poetas inspirados pela musa, resgatam pelos seus cantos fatos esquecidos; guardiães da
memória entre o rememorar e o inventar, “é uma espécie de memória viva de seu povo”.
Vernant (197, p. 73-78), também reconhece no poeta o poder da “chave do
tempo”, entregue por Mnemosyne. Com ela o poeta pode estar presente no passado, pode
trazer ao presente este passado que “acontece como uma dimensão além”.
Mnemosyne preside, como se sabe, à função poética. [...]
Possuído pelas Musas, o poeta é o intérprete de Mnemosyne,
como o profeta, inspirado pelo deus, o é de Apolo. [...] O saber
ou a sabedoria, a sophia, que Mnemosyne dispensa aos seus
eleitos é uma “onisciência” de tipo divinatório. [...] Mas, ao
contrário do adivinho que deve quase sempre responder às
preocupações referentes ao futuro, a atividade do poeta orienta-se
quase exclusivamente ao passado.
Historicamente, a maneira que sociedade pode cooptar a poesia é relegá-la aos
estudos canônicos, à Teoria Literária. Na escola, a poesia assume um caráter literário dos
pontos de vistas etnocêntricos. Tal representação marca os leitores, que mantém essa
recepção primeira. Assim, a escola está
entre as instâncias responsáveis pelo endosso do caráter literário de
obras que aspiram ao status de literatura, a escola é fundamental. A
escola é a instituição que há mais tempo e com maior frequência vem
cumprindo o papel de avalista e de fiador do que é literatura. Ela é uma
das maiores responsáveis pela sagração ou pela desqualificação de
obras e de autores. Ela desfruta de grande poder de censura estética—
exercida em nome do bom gosto—sobre a produção literária (LAJOLO,
2001, p. 19).
43
A escola enquanto instituição regula as leituras, dita que textos contém
literariedade e somente esses entram no hall das obras que podem contribuir para uma
formação crítica do leitor. Formação esta que se mede de acordo com as fichas de leitura,
questionários e respostas objetivas acerca de uma suposta interpretação pessoal. Pois
nessas atividades a experiência do leitor é deixada de fora visto que há um limite para a
sua recepção textual.
Comumente, esta censura estética faz com que as poéticas fiquem às margens,
isto é, fora dos muros da escola, uma tradição amparada na educação cartesiana que
condiciona o texto poético à
obra como mensagem pedagógica, com estruturação monocêntrica e
necessária (inclusive na própria férrea constrição interna de metros e
rimas), reflete uma ciência silogística, uma lógica da necessidade, uma
consciência dedutiva pela qual o real pode manifestar-se ao poucos, sem
imprevistos e numa única direção, partindo dos princípios primeiros da
realidade(ECO, 2001, p. 55).
O real precisa ser controlado, por isso o horizonte de expectativas de uma leitura
precisa de muro, que normalmente está escrito em uma resposta em azul contida no livro
didático do professor, e aquilo que ultrapassa o ditado por essas linhas é considerado
errado ou incoerente.
Moisés (2004), ao elaborar uma análise acerca do conceito de poesia, salienta
que seu traço essencial característico está na conexão do sujeito com o mundo exterior.
A educação cartesiana elimina essa relação quando o leitor é obrigado a pensar com uma
“imaginação formal”, que não permite que ele enxergue dentro da escola o seu próprio
mundo, não enxergue a si mesmo. A linguagem poética fica formatada à competência
enciclopédica. Essa formatação do leitor inibi o que para Zumthor (2014, p. 101) é
a “imaginação”, faculdade poética, age segundo duas modalidades. Ela
parte de uma apreensão, intensamente concreta, do real particular, mas
esta apreensão se faz acompanhar (sem que os tempos nisto se
distinguam sempre) de uma colocação das coisas e de uma
recomposição dos elementos percebidos, em virtude de analogias
diversas: da sorte destaca-se, de maneira inesperada, relativamente à
exigência do instante presente, a necessidade verdadeira. Quando essa
“imagem” reveste a linguagem e a anima, esta, pronunciando-se a si
própria, diz, descobre, cria formas, de outro modo inacessíveis, latentes
no que foi um “objeto”. Sem dúvida é assim que as crianças sentem,
pensam e se exprimem, pelo tempo em que permanecem puras.
44
É essa pureza, o pensar liberto, que o paradigma positivista não permite ao leitor.
A poesia na escola segue amarrada ao paradigma dominante, que não aceita que as
experiências da vida comum sejam entrelaçadas ao texto poético. Quando Santos (1997,
p. 54) diz que “todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”, o autor
rompe com a estruturas firmadas pelo modelo vigente, que a todo instante nos convida a
renegar o senso comum pelo conhecimento científico. Para chegarmos a este estágio seria
necessário abandonarmos este modelo, o positivista, e entrarmos na ciência pós-moderna
que, em acordo com a teoria do sociólogo aponta para um novo senso comum estético:
um senso comum reencantado.
Pois bem, a discussão toma um caminho que não pretende desviar do foco,
discutir o modelo atual de paradigma é essencial para entender porque a poesia dentro das
instituições mantém-se distante do leitor. Modelo este que não envolve a arte, deixando
as manifestações artísticas próprias do texto poético no espaço destinados às poucas
“atividades culturais” que o currículo necessita, quando na verdade
a arte, mais que conhecer o mundo, produz complementos do mundo,
formas autônomas que se acrescentam às existentes, exibindo leis
próprias e vida pessoal. Entretanto, toda forma artística pode
perfeitamente ser encarada, se não como substituto do conhecimento
científico, como metáfora epistemológica: isso significa que, em cada
século, o modo pelo qual as formas da arte se estruturaram reflete—à
guisa de similitude, de metaforização, resolução, justamente, do
conceito em figura — o modelo pelo qual a ciência ou, seja como for,
a cultura da época veem a realidade (ECO, 2001, p. 54-55).
De tal modo, Fares (2015, p. 6) considera:
A arte expressa as mudanças sociais de forma poética e, ao fruir uma
obra artística, apreende-se tempos, comportamentos, lugares, éticas,
com prazer e sem obrigação. Essa compreensão da arte como
representação da realidade faz que algumas ciências se apropriem de
objetos estéticos para a leitura das sociedades: a história, a sociologia,
a psicologia, têm nos textos literários, nos patrimônios edificados, nos
conjuntos escultóricos, em telas de época, fontes de pesquisa. Ainda
que, muitas vezes, não percebamos, o cotidiano é constituído de
experiências poéticas.
Os autores demonstram como o texto poético pode suprir as necessidades
inerentes à formação do leitor. Todos os benefícios por eles citados não são levados em
consideração quando, historicamente, nosso primeiro contato com a poesia parte do
estudo das escolas literárias, sempre nos sendo colocado o caminho cronológico da
45
Literatura Brasileira em comparação à Literatura Portuguesa. Nossas referências são
formadas a partir do que vem de fora, e se pensarmos por uma perspectiva geográfica, de
cima, como o monte Olimpo. E se incluirmos na Literatura Nacional, que também dita o
cânone estamos no entrelugar, pois o que está abaixo de nós também regula a nossas
leituras.
A forma como o pensamento eurocêntrico foi estruturado em nossa cultura,
comprometeu todo nosso processo de educação e construção cultural. No caso da poesia,
dentro da escola, a recepção ficou condicionada à dimensão intocável dos escritos
literários e não à essência do ser humano, já que “o espírito científico deve lutar
incessantemente contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas”.
(BACHELARD, 1985, p. x). Ainda somos condicionados por esse pensamento, dando
valor ao que primeiramente está sendo produzido, estudado e criado dentro da
formalidade cientificista. Os saberes culturais estão à margem, quando, na verdade, a
escola deveria reconhecer que
toda relação com o saber, enquanto relação de um sujeito com seu
mundo é a relação com o mundo e com a forma de apropriação do
mundo: toda relação com o saber apresenta uma relação epistêmica,
mas qualquer relação com o saber comporta também uma relação de
identidade: aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às
suas expectativas, às suas referências, à sua concepção de vida, à sua
relação com os outros, à imagem que tem de si e a que quer dar de si
aos outros (CHARLOT, 2000, p. 72).
Ao olhar para que o leitor sabe, os conhecimentos não escolares, muda-se a
forma de olhar para a sociedade e de compreender as relações sociais, as atividades levam
a outras práticas, caminhos que não privilegiam somente a experimentação, abordagens
metodológicas que se afastam da visão positivista e para que o texto poético torne-se ato
poético, “um ato essencial que ultrapassa em um só jorro as imagens associadas à
realidade” (BACHELARD, 1990, p. 80). Uma educação que não busque apenas a
formação do sentido etimológico da palavra: colocar na forma, que olhe por perspectiva
que entenda que
educar é criar cenários, cenas e situações que, entre elas e eles, pessoas,
comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados
da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e
transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao
participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si
mesmo (BRANDÃO, 2002, p. 26).
46
A perspectiva de educar colocada pelo autor abrange a essencialidade da união
entre o espaço educacional e a cultura, “criar cenários” é deixar que as vivências do leitor
que, por sua vez, formam sua identidade, sejam integradas ao ensino por uma educação
individual, que além de respeitar suas origens também permita que estas sejam
compartilhadas, o que possibilita que todos os sujeitos em processo de aprendizado
possam contribuir para a educação cultural coletiva.
Tudo aquilo que vivemos, ouvimos ou lemos fica incorporado de
alguma forma naquilo que mais nos é caro, ou seja na nossa identidade.
Então, sem negar nossa individualidade, podemos dizer que nosso “eu”
é constituído de outros “eu”. Somos culturamente polifônicos, para
lembrar Bakhtin. Sendo assim, nossas escrituras e cada um de nossos
discursos, mesmo com nossas particularidades, contém falas, escritas e
concepções de outros, e isso tem tudo a ver com a vida (BASTOS, 2013,
p. 273-274).
Fares (2008) ao falar da cultura amazônica, também toca nas trajetórias de vidas
pessoais e coletivas, evidencia quanto o espaço faz parte do que o leitor é, assim, a cultura
não pode ser vista de forma coletiva, pois cada indivíduo, ainda que compartilhe um
mesmo lugar com outros, tem sua dinâmica, especificidades e modo de vida, quando
não existe uma cultura, uma identidade amazônica não singular, a
compreensão desse espaço é sempre concebida no plural. As diferentes
manifestações culturais trazem marcas do hibrido e da mestiçagem, e
reconhecem as presenças indígenas, africanas, libanesas, nipônicas,
entre outras tantas. São essas vozes poéticas de múltiplos sotaques e
línguas que fundam a Amazônia, mesmo sem ser necessário comprovar
quais os desenhos mais fortes e os rascunhos mais claros (FARES,
2008, p. 102).
Nesse sentido, a poesia se entrelaça com as vivências do leitor. Ligada a outras
linguagens, pode ajudar a tecer a concepção leitora a partir de uma perspectiva
integralizadora de saberes, em que a sua identidade cultural seja valorizada e dê lugar ao
afloramento da função poética. Mas, é necessário perceber que a identidade amazônica é
múltipla, cada leitor traz a sua própria Amazônia.
Paes Loureiro (1995, p.55) entende que a cultura ribeirinha e urbana, embora
tenham motivações criadoras distintas, estão entrelaçadas numa miscelânea de saberes e
contribuições que formam a identidade do homem amazônico, pois “a cultura está
mergulhada num ambiente onde predomina a relação do homem com a natureza e se
47
apresenta imersa numa atmosfera em que o imaginário privilegia o sentido estético dessa
realidade cultural”
Como moradores do ambiente urbano, é comum ainda olharmos a Amazônia
com exotismo e, por vezes, acabamos reforçando a ideia de que a relação rio/floresta é
algo menor. Seduzidos pelo desejo de ser cosmopolita/universal, muitas vezes,
renegamos nossa identidade cultural diante da cultura eurocêntrica. Como resultado de
uma fusão híbrida e conflituosa de índios, europeus e negros somos uma diversidade
caleidoscópica, é preciso percebê-la e respeitá-la para que o pensamento eurocêntrico não
seja maior que nossa cultura. Loureiro (1995, p. 54) comenta em seus escritos o que ele
chama de síntese judicativa formulada por Benedito Nunes:
Somos como povo, dotados de uma cultura própria, que tem sua
fisionomia distintiva, o seu ethos peculiar, onde componentes de
extração portuguesa se fundem àqueles caracteres primitivos, indígenas
e negros, que os nossos modernistas foram os primeiros a contrastar
com o arcabouço da cultura intelectual, também denominada superior,
cultura fatalmente importada, porque de origem europeia, e que
presidiu, desde os tempos da Colônia, a formação de nossos bacharéis,
juristas, letras e eruditos.
A poesia é um caminho para olhar essa diversidade caleidoscópica, o texto
poético nos traz o sentido estético da realidade cultural, mantém a memória das vozes que
formam nossa identidade. Loureiro (1995) coloca a poesia como reveladora da beleza
escondida no mundo, como alimento do pensamento e como aumento da imaginação pela
sua ação e linguagem, através do texto literário, em que o horizonte amazônico do rio e
da floresta é representado na escrita de seus autores. “O imaginário estetizante a tudo
impregna com sua viscosidade espermática e fecunda, acentuando a passagem do banal
para o poético. Aquela é geradora do novo, do recriado” (LOUREIRO, 1995, p. 62).
Pelo poético podemos olhar a Amazônia, abrir os outros sentidos que ficam
adormecidos quando, por estar imersos nesse imaginário, deixamos de notar o quanto ele
nos constitui. Nossa relação com as águas, por exemplo, é diferente. Josebel Fares, ao
discutir essa relação em Imagens Poéticas das águas Amazônicas, expõe como as águas
são um traço identitário das amazônias.
Rios, praias, lagos e igarapés são espelhos permanentes da paisagem,
onde narcisos disputam com as belezas naturais. Os territórios, então,
espreitam-se ou alargam-se espacialmente, e as águas aprisionadas
pelas terras desenham nas esferas líquidas traçados de diferentes
48
formas. A rede hidrográfica pincela o mapa, com cores ora ocres, ora
claras, das águas dos rios amazônicos (FARES, 2013, p. 20).
Nossa proximidade com os rios é indiscutível; a chuva da tarde, os mitos que
perpassam as águas, a Iara que canta nos rios e igarapés, a Cobra Grande que se esconde
embaixo da cidade e o Boto que seduz as mulheres são alguns dos elementos que
constituem esse imaginário que está em nós. Pela poesia ressignificamos essa relação. É
possível sentir a chuva de diversas formas após a leitura de Banho de Chuva (2010), do
poeta Paulo Nunes? Ou mesmo ver a cidade diferente sob o olhar de Alfredo, de Belém
do Grão Pará (2004), de Dalcídio Jurandir?
Segundo Loureiro (2001, p.371), para compreender-se a Amazônia, a
experiência humana nela acumulada deve-se, portanto, levar em conta seu imaginário
social, pois todo o verdadeiro humanismo deve também fundar-se além das conquistas da
ciência. O caminho pelo poético pode ser a possibilidade para entender esse imaginário
social, quando Barthes (2013) diz que a literatura é realista, é o ponto de vista de quem
vê nela a chave para a memória de um lugar, a chave que abre a porta para o encontro
com outras épocas: “a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles;
ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso” (p. 19)
Então, diante dessas questões, é necessário subverter as regras metodológicas do
modelo educacional vigente, a maneira que a tradição acadêmica apresenta a poesia,
relegada somente à noção de literatura, aos estudos canônicos, à teoria literária. Paul
Zumthor (2014) em Performance, Recepção e Leitura, em relação aos estudos literários
e poesia, esclarece:
Nessa tarefa de desalienação crítica, o que tenho de eliminar logo é o
preconceito literário. A noção de “literatura” é historicamente
demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere
à civilização europeia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje. Eu a
distingo claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte
da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e
fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.
(ZUMTHOR, 2014, p. 16. Grifo do autor)
No tocante à crítica literária aqui aludida é possível traçar uma conexão com o
pensamento de Santos (2002), quando fala do conceito de autor (caráter inacabado da
racionalidade estético-expressiva) que, para ele, subjaz à organização do domínio artístico
e literário da modernidade. Igualmente, quando explora o conceito de artefactualidade
discursiva:
49
Todas as obras de arte têm de ser criadas ou construídas. São produto
de uma intenção específica e de acto construtivo específico. A natureza,
a qualidade, a importância e a adequação dessa intenção e dessa
construção são estabelecidas por meio de um discurso argumentativo
dirigido a um público alvo (as pessoas e as instituições que constituem
o domínio artístico e literário). Como essa argumentação é
potencialmente interminável, os momentos de fixação (o cânone, a
tradição estética, as instituições de consagração e os prêmios) são
sempre precários porque os argumentos que os apoiam não mantém seu
poder retórico por muito tempo. Entendida nesses termos, a
racionalidade estético- expressiva une o que a racionalidade científica
separa (causa e intenção) e legitima a qualidade e a importância (em
verdade) através de uma forma de conhecimento que a ciência moderna
desprezou e tentou fazer esquecer, o conhecimento retórico (SANTOS,
2002, p. 77-8).
As palavras do sociólogo trazem uma verdade cruel: justificam o lugar da arte
na sociedade para o cânone, para a crítica e para as instituições. A poesia, nesse sentido,
enquanto arte, é idealizada, está no terreno da contemplação dos escolados. Deste ponto
de vista, não é concebida como Zumthor diz “arte da linguagem humana independente de
seus modos de concretização”. Assim, é na predominância da racionalidade estético-
expressiva que encontraremos o mais depressa possível o que nos fará avançar com a
poesia para um o lugar comum, descer do Olimpo.
A poesia não pretende explicar a realidade, mas pode dar sentido à vida, o poeta,
enquanto criador, permite que a poesia amplie a espírito humano. Por isso o texto poético
não deve ser utilizado como um instrumento dentro das aulas de Gramática. Quando, na
escola, busca-se essa finalidade, usando o texto poético para aprender as regras da língua
destrói-se a essência da poesia.
Faz-se necessário compreender que a fruição do leitor está para além da leitura
e decodificação da mensagem e dos signos presentes no texto. A fruição pressupõe o
prazer que há no texto poético, que permite que o leitor não seja passivo no ato de ler,
mas o “estudo” da poesia, subvertendo os obstáculos curriculares por uma leitura que
permita ao leitor a fruição do texto poético.
À direita, o prazer é reivindicado contra a intelectualidade, o clericato:
é o velho mito reacionário do coração contra a cabeça, da sensação
contra o raciocínio, da “vida” (quente) contra a “abstração” (fria) [...] À
esquerda, opõe-se o conhecimento, o método, o compromisso, o
combate, à “simples deleitação” (no entanto, e se o próprio
conhecimento fosse por sua vez delicioso?) (BARTHES, 2015, p. 30).
50
A questão que Barthes propõe: “e se o próprio conhecimento fosse por sua vez
delicioso?” É uma possibilidade. A partir do debate epistemológico, ter outra perspectiva,
quando a poesia puder ser vista como arte feita de homem comum para o homem comum,
quando o ambiente acadêmico puder ser o meio que leva, que faz a ponte, entre poesia e
leitor comum. Por uma educação sensível que não busque amparo em teorias ausentes e
distantes da realidade do leitor, para que a poesia desça do Olimpo para o seio dos
homens.
51
2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética
“Ler um poema é imprimir uma viagem ao sabor do sonho”
(Luís Heleno Castilo)
Aos que desconhecem o conceito de Estética da Recepção, a impressão primeira
pode ser de algo complexo e distante, como outra abordagem teórica que se limita apenas
à exegese da linguagem. Equivocam-se. A Estética da Recepção é a teoria em que, pela
primeira vez, o leitor pode ter autonomia. Zilberman (1989, p. 6), em Estética da
Recepção e história da Literatura, define como “uma teoria que reflete sobre o leitor, a
experiência estética, as possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas
repercussões no ensino”, pois, na história da Literatura, o foco mudou muitas vezes e os
estudos em Estética da Recepção olham para leitor como o proprietário do texto, senhor
de seus sentidos.
Essa perspectiva de leitura data de um período recente, a Estética da Recepção
surge na década de 1960 com Hans Robert Jauss, seu fundador, que para superar os limites
que as escolas formalista e marxista deixaram, formula uma teoria que tem como foco o
leitor. A abordagem de Jauss entende que a historicidade da Literatura se encontra quando
a obra literária é experimentada pelo leitor de forma dinâmica.
Abandonando a dicotomia autor-obra, Jauss (1979) inaugura uma nova
perspectiva para os estudos literários, a nova relação em questão era obra-leitor. Por muito
tempo as atenções se voltaram para o autor, com a ideia de “o que o autor quis dizer?”,
para depois a obra ter um lugar de destaque com “o que a obra pretende dizer?”. Época
em que a crítica concentrou-se cada vez mais na relação autor-texto “abandonando o leitor
nas sombras de uma área confinada apenas à história ou à sociologia da comunicação
literária” (LIMA, 1979, p. 10). O pensamento de Jauss confere relevância ao que deveria
ser o núcleo da produção de qualquer obra, o leitor.
Sob este aspecto, a estética da recepção apresenta-se como uma teoria
em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura
imutável, ele passa para o leitor, “o terceiro Estado”, conforme Jauss o
designa, seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já
que é a condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social.
(ZILBERMAN, 1989, p. 10-11)
A corrente de abordagem que Jauss propõe traz uma nova lente para os estudos
literários; a Literatura enquanto sincrônica à sociedade, ao seu momento histórico e
52
social, amplia a realidade. Desta forma, a recepção do leitor diz sobre a sociedade da
época, assim a estética da recepção permite:
de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o
significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir
o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado
diferentemente, por leitores de tempos diversos. (LIMA, 1979, p. 46).
Desse modo, a Estética da Recepção, além convidar o leitor a uma participação
mais ativa em relação à significação da leitura, confere à obra uma importância social.
Entender a recepção do leitor está para além dos limites da obra, contempla o pensamento,
os valores da sociedade de cada época. O leitor é visto em seu papel genuíno, o sujeito a
quem a obra é destinada, a relação passa a ser vista como uma via de mão dupla. O leitor
contribui com o texto trazendo suas experiências outras, a obra assume um caráter de
abertura em que “o significado da obra depende totalmente dos sentidos que o leitor
deposita nela.” (ZILBERMAN, 1989, p. 26). Esse caráter de obra aberta possibilita ao
leitor integrar o texto as suas significâncias, quando:
a poética da obra “aberta” tende, a promover no intérprete “atos de
liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações
inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser
determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos
definitivos de organização fruída; qualquer obra de arte, embora não se
entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva,
mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete
não a reinventar (ECO, 2011, p.41)
Pensando nesses “atos de liberdade consciente”, o método recepcional parte de
que cada leitor traz consigo um repertório de saberes, em outras palavras, “cada fruidor
traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada,
uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais” (ECO, 2001, p. 40).
Considerar todos esses aspectos permite ao intérprete uma leitura mais livre, mais
confortável.
Ao possibilitar que o leitor receba a obra aberta, permite-se conhecer a amplitude
do conceito de poesia. E quando partida do contexto escolar (por um novo olhar), este
leitor também ampliará a forma de perceber seu contexto sociocultural, compreender as
relações sociais e de olhar para si mesmo. Entender a estética da recepção enquanto teoria-
método é notar que o leitor-intérprete é o elemento imprescindível na feitura desta
53
pesquisa. Os caminhos tecidos, os textos escolhidos e a metodologia da pesquisa envolve
sua recepção.
O encontro com os intérpretes é sempre um momento marcante. Em 2016
iniciou-se a pesquisa na escola Olímpia. Em acordo com a professora Atena, a primeira
turma a participar da pesquisa foi a dos alunos da EJA, no turno da noite, que conta com
dois dias na semana para as aulas de Língua Portuguesa. Como a professora já estava
desenvolvendo um projeto de leitura com a turma do 6º ano, solicitou que aguardasse a
turma de 2017 para dar início à pesquisa.
O tempo disponibilizado para o contato com os intérpretes foi o último horário
da primeira aula na semana. Cada horário conta com — apenas — trinta minutos, devido
um acordo informal da escola com os alunos para que as aulas terminem mais cedo.
Assim, o tempo destinado à pesquisa foram os trinta minutos finais de uma aula que inicia
às 19:00h e termina às 20:10h. Levando em consideração que alunos só entram em sala
às 19:20h e a professora ainda precisa “dar o conteúdo”, o tempo para as atividades é
cerca de trinta minutos por semana.
Ao procurar a recepção primeira, aquela que os intérpretes trazem de suas
experiências com os textos de outrora, buscou-se saber em roda de conversa por uma
pergunta simples e direta: “O que é poesia?”.
— Poesia é aquele monte de verso rimado né, professora?
— Poesia é um texto que fala de amor.
— Poesia a gente estuda na aula Português.
— Poesia é fazer rimas com as palavras.4
(Intérpretes, EJA)
As respostas correspondem às expectativas que os estudos teóricos indicavam,
pois no domínio das letras, “as convenções, transmitidas por aparelhos como a escola,
acabam dirigindo o modo como o texto é lido e compreendido. Como as convenções são
aceitas pela comunidade, as interpretações suscitadas por elas são igualmente acatadas e
respeitadas” (ZILBERMAN, 1989, p.28).
Na tentativa de sair dessas convenções, procurei ouvir os intérpretes. Pedi que
falassem. Perguntei que tipos de textos eles gostariam que fossem lidos em sala. Neste
momento, ainda estava tateando o campo, por uma abordagem que tenta conhecer o leitor
e também fazê-lo participar da construção dos textos escolhidos para a pesquisa. Ao que
4 Os textos em itálico indicam sua procedência na voz oral.
54
eles responderam de forma positiva e em acordo com a maioria o primeiro texto atende
ao pedido: “A senhora poderia trazer uma poesia do dia da consciência negra?”.
Desta forma, dentre os autores pré-selecionados, o primeiro autor a ser partilhado
foi Bruno de Menezes (2005) com o poema Batuque.
55
Batuque
— "Nêga qui tu tem?
— Maribondo Sinhá!
— Nêga qui tu tem?
— Maribondo Sinhá!"
Rufa o batuque na cadência alucinante
— do jongo do samba na onda que
banza.
Desnalgamentos bamboleios sapateios
cirandeios,
cabindas cantando lundus das cubatas.
Patichouli cipó-catinga priprioca
Baunilha pau-rosa orisa jasmin.
Gaforinhas riscadas abertas ao meio,
crioulas mulatas gente pixaim...
— "Nêga qui tu tem?
— Maribondo Sinhá!
— Nêga qui tu tem?
— Maribondo Sinhá!"
Sudorancias bunduns mesclam-se
intoxicantes
no fartum dos suarentos corpos lisos
lustrosos.
Ventres empinam-se no arrojo da
umbigada,
as palmas batem o compasso da toada.
— "Eu tava na minha roça
maribondo me mordeu!..."
Ó princesa Izabel! Patrocínio! Nabuco!
Visconde do Rio Branco!
Euzébio de Queiroz!
E o batuque batendo e a cantiga cantando
lembram na noite morna a tragédia da
raça!
Mãe Preta deu sangue branco a muito
"Sinhô moço"...
— "Maribondo no meu corpo!
— Maribondo Sinhá!
Roupas de renda a lua lava no terreiro,
um cheiro forte de resinas mandingueiras
vem da floresta e entra nos corpos em
requebros.
— "Nêga qui tu tem?
— Maribondo Sinhá!
— Maribondo num dêxa
— Nêga trabalhá!..."
E rola e ronda e ginga e tomba e funga e
samba,
a onda que afunda na cadência sensual.
O batuque rebate rufando banzeiros,
as carnes retremem na dança carnal!...
— "Maribondo no meu corpo!
— Maribondo Sinhá!"
— É por cima é por baxo!
— E por todo lugá!"
(MENEZES 2005. p. 10-20)
53
O texto foi entregue impresso e a leitura realizou-se em conjunto, de modo que
cada intérprete pudesse dar o tom ao poema, pois “a maneira pela qual é lido o texto
literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo tempo, como
absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a obra da consciência
do leitor” (ZUMTHOR, 2015, p. 52). A recepção foi compartilhada de forma oral, cada
intérprete comentou de sua recepção: “Parece um RAP.”, “Achei parecido com umas
batalhas de rimas dos RAPS”(Intérpretes, EJA 2016).
Desde o título do poema, já é possível fazer uma relação com as vivências dos
intérpretes, uma vez que o nome “batuque” é conhecido por todos, que foi imediatamente
relacionado ao ritmo música regional, mas principalmente à música que faz parte do
cotidiano dos alunos, em sua maioria moradoras das periferias, o RAP5.
Ao fim do primeiro encontro, os intérpretes sugeriram trazer uma caixa acústica
e reproduzir o que eles chamam de “batida”. Essa sugestão é mais que uma contribuição,
é a forma de trazer as experiências dos intérpretes para somar às atividades propostas pela
pesquisa.
O que produz a concretização de um texto dotado de uma carga poética
são, indissoluvelmente ligadas aos efeitos semânticos, as
transformações do próprio leitor, transformações percebidas em geral
como emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica.
Realizando o não dito do texto lido, o leitor empenha sua própria
palavra às energias vitais que a mantêm (ZUMTHOR, 2014, p.54).
No encontro seguinte, esperava era que eles trouxessem as músicas que
comentaram, mas para minha surpresa, a turma pediu para colocar a “batida” do RAP
para que, em conjunto, fazermos a leitura do poema Batuque ao som da caixa acústica.
Desta forma, conjugada à leitura do poema percebemos como a performance está sempre
ligada ao texto poético, conforme Zumthor (2014, p. 55):
Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí
ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz.
Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica
e as reações que eles provocam em nossos centros nervosos. Essa
5 Originalmente sigla RAP, vem do inglês Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia), é usada no Inglês britânico
desde o século XVI, e especificamente significando "say" ("dizer", ou "falar", "contar o conto") desde o
século XVIII. Fazia parte do Inglês vernáculo afro-americano nos anos de 1960, significando "conversar",
e logo depois disto, no seu uso atual, denota o estilo musical. Fonte:
https://www.dicionarioinformal.com.br/rap/. Acesso em 17.03.2018
54
percepção, ela está lá. Não acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a
ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do
texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela
que, este texto, eu o reconstruo, como meu lugar de um dia. E se
nenhuma percepção me impele, se não se forma em mim o desejo dessa
(re)construção, é porque o texto não é poético; há um obstáculo que
impede o contato das presenças. Esse obstáculo pode residir em mim
ou provir de hábitos culturais (tal como chamamos o gosto) ou de uma
censura.
Confirmando essas palavras, dois intérpretes, em poucas linhas, expressam o que
para eles foi a experiência com o poema:
Sobre a aula passada foi muito legal divertido porque todo mundo se
uniu teve várias brincadeiras, batalha de rima teve poesia. A gente leu
pra caralho kkk (Odin, EJA, 2016)
Na aula passada foi legal, os meninos fizeram batalha de rima, a
professora leu junto com a batida eu gostei muito, a gente troca ideias
super legal. (Dione, EJA, 2016)
O texto poético começa a transformar a recepção dos intérpretes, o conceito de
poesia já começa a ter outra perspectiva que envolve brincadeira e diversão, a “troca de
ideias” sugere que a intérprete sente-se participante na construção dos sentidos do texto.
Zilberman (1989), ao traçar a história da Estética da Recepção, comenta ensaios
dos primeiros autores a discutir o lugar do leitor, entre eles Stanley Fish, que discorre
sobre como a escola enquanto “comunidade interpretativa” — as responsáveis pela
estabilidade das interpretações — que conduz a recepção dos leitores de forma fechada e
limitada, ou seja, condicionando a forma que o texto deve ser lido. No caso do texto
poético, que costuma ser trabalhado de forma puramente curricular por uma perspectiva
teórico e historicista, a recepção fica comprometida ao padrão do texto literário, cuja a
função, no currículo, é questionar a memorização do leitor no que concerne às suas
características formais, o que não permite a fruição leitora.
Para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes
único, de poeticidade (literariedade). Com efeito, pode-se dizer que um
discurso se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura
que praticada por tal indivíduo. Mais do que falar, em termos
universais, da “recepção do texto poético”, remeterá, concretamente, a
“um texto percebido (e recebido) como poético (literário) (ZUMTHOR,
2014, p. 28).
55
Ao permitir que o texto poético encontre os intérpretes para além da formatação
curricular, o que temos é uma recepção que envolve prazer entre o objeto estético e o
fruidor, “porque a experiência estética não é regulada por conceitos, ela se torna mais apta
tanto a abrigar prenoções, quanto a permitir a visualização ou realização de experiências
novas” (LIMA, 1979, p. 21).
No primeiro dia de aula sobre essa música não consegui entender pois
não consegui me concentrar, mas já na segunda aula já foi muito legal,
consegui entender a música de uma forma bem legal. Nossa como é
bom a gente inovar de vez em quando! Gostei muito da ideia da
professora, pois ela trouxe uma novidade pra gente, agora acredito que
todos os alunos estão gostando. Só falta alguns deixarem a vergonha e
entrar de vez nessa música que é muito legal (Adônis, EJA 2016).
O texto poético torna-se esteticamente acessível na medida em que pode ser lido
e percebido segundo várias perspectivas, abrir o texto poético é deixar passível de
inúmeras interpretações diferentes, sem que isso interfira em sua singularidade.
Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada
fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original.[...]uma obra
dotada de certa “abertura”; o leitor do texto sabe que cada frase, cada
figura se abre para uma multiformidade de significados que ele deverá
descobrir; inclusive, conforme seu estado de ânimo, ele escolherá a
chave de leitura que julgar exemplar, e usará a obra na significação
desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa de como
possivelmente ela se lhe apresentara numa leitura anterior) (ECO, 2001,
p. 40-43).
Mas, como propor a “abertura” do poema se o texto poético comumente é tido
como o lugar das palavras de sentido vago e significado impreciso?
A abertura está na recepção primeira, quando o intérprete, ao ouvir os primeiros
versos de Batuque, imediatamente relaciona-o ao RAP. Minha atitude, enquanto
pesquisadora, é saber respeitar essa recepção e possibilitar que ele mostre os caminhos
que o permitiram fazer esta relação. Ao apresentar o poema, importa não impor uma
recepção, a priori, pois,
um sentido único se imponha de chôfre: o espaço em branco em torno
da palavra, o jogo tipográfico, a composição espacial do texto poético,
contribuem para envolver o termo num halo de indefinição, para
impregná-lo de mil sugestões diversas” (ECO, 2001, p. 46)
56
A fruição da intérprete sobre o poema, foi descrita de forma pontual:
achei legal, achei igual um rap, uma aula diferente bem interessante. Eu
gostei e queria que tivéssemos mais vezes atividades assim (Nice, EJA
2016)
O fruidor deve interpretar o poema livremente. Isso porque segundo Eco (2001,
p. 46),
Com essa poética da sugestão, a obra se coloca intencionalmente aberta
à livre reação do fruidor. A obra que “sugere” realiza-se de cada vez
carregando-se das contribuições emotivas e imaginativas do intérprete.
Se em cada leitura poética temos um mundo pessoal que tenta adaptar-
se fielmente ao mundo do texto, nas obras poéticas deliberadamente
baseadas na sugestão, o texto se propõe estimular justamente o mundo
pessoal do intérprete, para que este extraia de sua interioridade uma
resposta profunda, elaborada por misteriosas consonâncias.
Quando o leitor faz do ato de leitura um encontro com a sua história, com o seu
conhecimento, o texto se concretiza em confluência com ele. Se o texto poético em
conjunto com o fruidor puder ser a manifestação do que ele vive, este texto não se
encerrará. É essa faculdade do poético que liga a obra ao leitor, que liga a poesia à cultura,
na realidade amazônica em que o “batuque alucinante” chega ao mundo físico como um
conjunto infinito de construção de sentidos, que estão para além do texto e que fazem o
intérprete fruir, é a poesia que desce de céus, que sai do Olimpo “e ginga e tomba e funga
e samba.”
2.1 Letras que contam: formação do leitor
Apagou o cigarro na areia e esgueirou-se pelo quintal para se
juntar às mulheres. Espreitei de longe. A tia tinha estendido no chão os
papéis que havia recebido do meu pai. Assim que o viu assomar, Rosi
perguntou-lhe:
— Explique como é que se faz?
— Faz quê?
— Como é que uma pessoa consegue ler? Eu queria tanto
saber...
— Isso demora a aprender, Rosi.
— Eu vi como você faz. Você passa o dedo pelas linhas e vai
mexendo os lábios. Já fiz o mesmo e não escuto nada. Explique-me qual
é o segredo. Eu aprendo rápido.
O pai revirou os olhos e passeou as mãos sobre as folhas que
jaziam na poeira.
57
— Para ler esses papéis, Rosi, você precisa ficar parada.
Completamente parada, os olhos, o corpo, a alma. Fica assim um
tempo, como um caçador na emboscada.
Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso
daquilo que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela.
E iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas
dentro das letras estão as vozes. Cada página é uma caixa infinita de
vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido. E foi assim que
falou Kaitini Nsambe.
Rosi ajoelhou-se perante os papéis e permaneceu muito parada,
à espera que as letras lhe falassem (COUTO, 2015, p. 229).
Quando foi que deixamos nossos alunos ouvir as vozes dentro das letras?
Quando permitimos que percebessem a caixa infinita de vozes?
Refletir sobre a formação do leitor é crucial para nos fazer entender como a
recepção do texto poético está diretamente ligada com a ausência da leitura literária na
formação escolar. O que temos é uma cadeia que começa no desencontro do leitor com o
texto literário e que se dá, geralmente de forma obrigatória, passando pelo discurso
pedagógico da necessidade dos conteúdos até o texto poético pretexto para a
normatização da língua.
Em outras palavras, a prática de leitura segue um roteiro em que o leitor precisa
comprovar que leu o texto por meio de uma ficha de leitura ou exercício de interpretação,
além de não haver uma interação da experiência individual de cada aluno com o texto.
Tal prática ficou denominada por muitos teóricos como escolarização da leitura literária.
Distanciando-se de qualquer crítica a essa forma de ensino, faz-se importante pensar no
que Magda Soares (1999) no texto A escolarização da Literatura Infantil e Juvenil
comenta:
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos,
saberes, artes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à
constituição de “saberes escolares”, que se corporificam e se
formalizam em currículos, matérias e disciplinas, programas,
metodologias, tudo isso exigido pela invenção, responsável pela criação
da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem (p.
20).
Não estamos livres da escolarização da literatura e, se a escola é o lugar em que o
aluno terá contato com a palavra poética é necessário pensar maneiras para que a
escolarização não seja um ato violento com a poesia e com o leitor. O caminho que
buscamos é reconhecer o papel da escola, bem como a escolarização, pois, negá-la é negar
58
também a escola. A crítica que a autora faz é à escolarização da literatura de forma
inadequada, “que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de
uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o
literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o” (SOARES, 1999, p. 22).
A escolarização, muitas vezes, consente um caráter normativo ao texto literário,
aspecto que formaliza, no sentido etimológico da palavra, o pensamento do leitor, uma
vez que a leitura de qualquer texto sempre é precedida de uma avalição, pois,
sempre a leitura feita terá que ser demonstrada, comprovada, porque a
situação é escolar, e é da essência da escola avaliar (o simples fato de
se estar sempre discutindo que é preciso não avaliar explicitamente, de
se criarem estratégias as mais engenhosas para verificar se a leitura foi
feira, e bem feita, evidencia como a leitura é escolarizada) (SOARES,
1999, p.24)
Assim a prática de leitura torna-se apenas uma ferramenta para o ensino da língua,
método conhecido e criticado por todos nós, como no trecho que se seguirá do romance
A elegância do ouriço (2008), de Muriel Barbery. Nele, a autora espelha uma situação
muito comum:
Portanto, hoje de manhã, quando, além da chatice habitual de uma aula
de literatura sem literatura e de uma aula de língua sem inteligência da
língua, tive a sensação de ser uma coisa qualquer, não consegui me
segurar. A sr. Maigre explicava um ponto sobre o adjetivo qualificativo,
com a desculpa de que ele estava sempre ausente das nossas relações,
“quando vocês já deviam ser capazes de empregá-lo desde a segunda
série”. “Não é possível que hajam alunos tão incompetentes em
gramática”, acrescentou olhando especialmente para Achille Grand-
Fernet. Não gosto de Achille, mas, ali, concordei com ele quando fez a
pergunta. Acho que esta se impunha. Além do mais, que uma professora
de língua conjugue o verbo haver com o sentindo de “existir” na terceira
pessoa do plural, isso me choca. “Mas para que serve a gramática”, ele
perguntou. “Você deveria saber”, respondeu a senhora-eu-sou-paga-
para-ensinar-lhes. “Bem, não”, respondeu Achille com sinceridade,
pelo menos dessa vez, “ninguém nunca se deu ao trabalho de nos
explicar isso.” A sra. Maigre deu um longo suspiro, do tipo “será que
ainda tenho que aguentar certas perguntas estúpidas?” e respondeu:
“Serve para falar bem e escrever bem”.
Aí então, achei que ia ter um ataque cardíaco. Nunca ouvi nada tão
inepto. E com isso não quero dizer que é errado, quero dizer que é
realmente inepto. Dizer a adolescentes que já sabem falar e escrever que
a gramática serve para isso é como dizer a alguém que é preciso ler uma
história dos banheiros através dos tempos para fazer xixi e cocô. É sem
sentido! Se ela tivesse nos mostrado, com exemplos, que precisamos
conhecer um certo número de coisas sobre a língua para bem utilizá-la,
59
então, por que não? Seria um início de conversa (BARBERY, 2008. p.
166-167).
A justificativa empregada pela professora no trecho acima é frequente, uma vez
que se torna confortável jogar sobre o leitor a responsabilidade da ignorância da língua.
A autora traz uma reflexão ainda mais complexa quando a narradora pensa o estudo da
língua como questão estética:
Mas acho que a gramática é uma via de acesso à beleza. Quando a gente
fala, lê ou escreve, sente se fez ou leu uma frase bonita. Somos capazes
de reconhecer uma bela construção ou um belo estilo. Mas, quando
sabemos gramática, temos acesso a outra dimensão da beleza da língua.
Saber gramática é descasca-la, olhar como ela é feita, vê-la toda nua, de
certa forma. E aí é que é maravilhoso. Porque pensamos: “Como isto é
bem-feito, como é bem elaborado!”, “Como é sólido, engenhoso, rico,
sutil” Eu, só de saber que há várias naturezas de palavras e que devemos
conhecê-las para concluir sobre seu uso e suas possíveis
compatibilidades, isso já me transporta (BARBERY, 2008. p.168).
A compreensão da língua enquanto objeto estético passa por uma prática de
leitura que precisa ser embalada pelo gosto de ler, lembrando Roland Barthes (2015) em
O prazer do texto, que teoriza sobre o texto de prazer e o texto de fruição, colocando o
primeiro como “aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não
rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (p. 15). Nesse sentido, o
texto contempla o prazer estético suscitado pela personagem e que provoca reações
agradáveis. Já o texto de fruição vai além, é a escrita que também causa espanto e dor no
leitor é
aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até
um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas
do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas
lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem
(BARTHES, 2015, p. 20-21).
A respeito da fruição, lembro o conto Era uma vez, de Maria Lúcia Medeiros
(1994), que descreve uma personagem em plena fruição leitora:
Às vezes, é claro, a irmã mais velha encontrava a menina debulhando-
se em lágrimas, grossas lágrimas, o livro aberto, o personagem
esperando a emoção passar, e a irmã esperando que ela fechasse o livro
tão incomodativo. Mas um segundo só, e quem a espiasse veria e
ouviria as gargalhadas ruidosas, sonoras, o livro ao lado, o personagem
esperando passar aquele ataque de riso, e a pessoa que espiava,
60
esperando que Deus olhasse pela cabecinha daquela menina devoradora
de livros (MEDEIROS, 1994, p.37).
Amparada nessa ideia de fruição, é necessário refletir sobre a mediação que a
escola faz entre a leitura e o leitor, uma vez que, pela equivocada escolarização, a fruição
estética é usurpada dele. A atitude da professora em classe é espelho da prática de ensino
como um todo, o que ela fala sobre a gramática também funciona para a forma como a
leitura é incorporada (colocada no corpo) ao leitor: algo que você deve fazer por motivos
de falar e escrever bem. Esse discurso fundamenta a prática do ensino de ligar ao texto
atividades que visam o conteúdo pelo conteúdo, assim o leitor precisa seguir uma cartilha
de comportamento, ter de cada texto apenas a recepção que o currículo permite,
porque o discurso didático esvazia o texto literário de seu potencial,
congelando-o em definições e classificações, ou usando-o com outros
objetivos tais como transmitir conhecimentos, ensinar regras morais,
refletir sobre drogas ou aborto na adolescência e, principalmente,
ensinar regras gramaticais (WALTY, 1999. p.51).
O que a citação nos remete é a leitura institucionalizada, ou seja, as obras
escolhidas, selecionadas e fragmentadas que são apresentadas aos leitores, para Soares
(1999) este é outro aspecto que a escolarização inadequada as literatura contém: a seleção
limitada de autores e obras que não utiliza critérios apropriados para suas escolhas:
colocam-se textos clássicos de autores consagrados de forma fragmentada, textos de
representatividade insuficiente, além dos textos de autoria dos próprios autores do livro
didático, comumente utilizados de forma instrutiva e prática.
“Ao ser transferido do livro de literatura infantil para o livro escolar, o texto
literário deixa de ser um texto para emocionar, para divertir, para dar prazer, torna-se um
texto para ser estudado” (SOARES, 1999, p.43). A escolarização literária que autora
defende é aquela em que o leitor não precise decifrar mecanicamente o texto nas
atividades de interpretação feito um caça palavras, que ele possa mergulhar em suas
significâncias, navegar em suas possibilidades, voar com o deslimite da palavra e deixar
que as ações necessárias ao estudo daquilo que é textual venham com a formação do
leitor. Dessa forma, o discurso didático não se sobrepõe ao literário, o conteúdo não toma
frente o poético.
Estudiosos que teorizam sobre o papel da escola na formação do leitor, como os
já citados, ilustram que as lacunas deixadas pela didatização da literatura são resultados
de um controle para evitar que se formem leitores críticos, alimenta-se a ideia de que ser
61
leitor é uma questão hábito, como se o prazer pela leitura fosse algo inato ao ser humano.
Mas, como uma criança, jovem ou adulto pode gostar de algo que não conhece? É sabido
que o hábito da leitura é um privilégio, por isso, aos invés de condenarmos a escola é
importante lembrar que
Não há por que temer as regras ou rituais, condenando-os a priori. Antes
importa conhece-los. Não há porque temer a escola e o uso que faz da
literatura, mesmo porque a própria literatura não é inocente. Por outro
lado, muitas vezes a escola é o único lugar em que a criança tem acesso
ao livro e ao texto literário. Numa sociedade empobrecida, a escola não
pode prescindir de seu papel de divulgação dos bens simbólicos que
circulam fora dela, mas para poucos. A literatura deve circular na
escola, pois urge formar um leitor sensível e crítico, que perceba o
sentido do ritual, faça parte dele sem se submeter cegamente (WALTY,
1999. p. 54).
Neste ponto devemos lembrar de nossa própria formação, somos filhos desse
sistema cartesiano, o que não nos impede de olhar para nossa formação e pensar uma
nova educação que nos conduza por outras perspectivas. Para Antônio (2002), a forma
mecanicista por que caminha a experiência com a palavra faz com que o leitor perca a
dimensão expressiva que contém os significados não acostumados da potência poética; a
linguagem enquanto expressão sensível e criadora que o leitor têm, antes de ser formatado
pelo conteúdo. Alberto Manguel (1997), em Uma história da leitura, comenta sobre os
limites que são socialmente impostos ao leitor:
Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as
convenções de nossa sociedade em relação à alfabetização—
canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder—,
como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa
capacidade de ler é posta em uso (p. 85).
Refletir sobre os métodos que nos formaram leitores é recordar os procedimentos,
as estratégias didático-pedagógicas para que todo o conteúdo pudesse ser finalizado.
Neste ponto, chamo atenção para a leitura direcionada pelas fichas de leitura com
questões que incentivam o aluno a “tirar” do texto as respostas com questões
interpretativas que não permitem que o leitor explore sua capacidade imaginativa, quando
na leitura do texto não se busca o texto, mas a resposta da pergunta que o texto trará.
Essas práticas acabam por fazer com que o leitor acostume-se a não ler. Ítalo Calvino
(1999) em Se um viajante em uma noite de inverno, ao colocar o leitor como personagem,
tece uma crítica por um diálogo provocador:
— E ela critica os livros que você lê?
62
— Eu? Eu não leio livros! — diz Inério.
— O que você lê, então?
— Nada. Acostumei-me tão bem a não ler que não leio sequer o que me
aparece diante dos olhos por acaso. Não é fácil: ensinam-nos a ler dede
criança, e pela vida afora a gente permanece escravo de toda escrita que
nos jogam diante dos olhos. Talvez eu também tenha feito certo esforço
nos primeiros tempos para apender a não ler, mas agora isso é natural
para mim. O segredo é não evitar as palavras escritas. Pelo contrário: é
preciso observá-las intensamente, até que desapareçam (CALVINO,
1999, p. 55).
Ao que parece, a didatização da leitura acaba fazendo que os leitores olhem as
palavras até que elas desapareçam, passem insípidas aos sentidos. Mas como olhar para
o texto? Como ensinar o que o leitor precisa aprender pela leitura sem esse método que
já formou tantas pessoas? A visão que Jorge Larrosa (2015) apresenta em Pedagogia
Profana nos parece uma alternativa. O autor entende leitura em sala de aula como uma
lição:
Uma lição é uma leitura e, ao mesmo tempo, uma convocação à leitura,
uma chamada à leitura. Uma lição é a leitura e o comentário público de
um texto cuja função é o abrir o texto a uma leitura comum. Por isso, o
começo da lição é o abrir o livro, num abrir que é, ao mesmo tempo,
um convocar. E o que se pede aos que abrir-se o livro, são chamados à
leitura senão a disposição de entrar no que foi aberto. O texto, já aberto,
recebe àqueles que ele convoca, oferece hospitalidade. Os leitores,
agora dispostos à leitura, acolhem o livro na medida em que esperam e
ficam atentos. Hospitalidade do livro e disponibilidade dos leitores.
Mútua entrega: condição de um duplo devir (LARROSA, 2015, p. 139).
Um primeiro estranhamento que podemos ter na proposição do autor é o
descondiconamento do termo “lição”, pois esse nos refere quase que de imediato à
expressão “lição de casa”, que por sua vez, nos sugere aos métodos e práticas por nós
aqui questionados. Larrosa (2015) ao que parece não gosta de “palavra acostumada”
(BARROS, 2013, p. 322), o mesmo autor diz que na lição a leitura aventura-se no ensinar
e no aprender e que essa relação envolve algo particular ao leitor, mas também envolve a
relação com o outro. E dentro dessas relações está o ensinar e o aprender; o professor
como aquele que dá o texto a ler, que escolhe uma lição como quem escolhe um presente.
Por isso, as escolhas de cada texto não deveriam falar algo para o leitor, mas falar
com o leitor. Estabelecendo uma relação com a palavra em que o leitor possa alcançar o
sentido comum do texto, o que está próximo da experiência e recepção comum, mas que
principalmente, que ele possa chegar ao que lhe é particular na leitura. O importante é no
63
encontro com a palavra “não se busque o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou
seja, o que o texto leva a pensar” (LARROSA, 2015. p. 142).
No retorno de minha pesquisa in locu, uma grande dificuldade que tive: perdi a
turma que estava trabalhando no ano anterior. Como eram alunos da quarta totalidade da
EJA, passaram para o primeiro e ano e por isso eu não poderia mais acompanhar a turma.
O espaço que contava era o cedido pela professora Atena e, se ela não tinha mais aulas
com aqueles alunos, eu não poderia continuar as atividades com eles. O trabalho foi
interrompido pelas atividades curriculares, avaliações e recuperação, fazendo com que eu
só fosse autorizada a voltar no início no ano letivo de 2017, sem saber que com isso
perderia a turma com a qual já construíra uma relação, os alunos que transformaram
Batuque em RAP. Uma ruptura marcada pela frustração, pelo afeto e pela necessidade de
voltar aos primeiros passos de aproximação com outros alunos. Porém, uma semente
havia sido plantada, naquele momento não sabia, mas ainda veria dessa primeira turma
uma flor.
E assim retornei para uma turma nova, novamente na quarta totalidade da EJA,
outra vez a professora Atena explicou suas condições: ela não sairia de sala, o que tinha
eram os minutos finais de sua aula, foi-me colocado um acordo tácito, em que também
deveria ajudar no conteúdo do livro, como se fosse uma estagiária durante as atividades
que ela desenvolvesse, em nenhum momento me foi imposto, mas foi como uma gentileza
para quem estava me cedendo espaço. Pois bem, a primeira unidade do livro trabalhava
justamente com o gênero: poema.
Nessa unidade, os textos traziam uma proposta de trabalho interdisciplinar com:
poemas, pinturas entre outras obras. O primeiro texto era uma imagem de uma tela Segue
Seco (2010) de Gérson Guerreiro; havia também outra tela reproduzida: Os retirantes
(1982) de Gontran Guanaes Netto; além de outros poemas como é possível conferir nas
imagens a seguir, mas o texto principal que conduzia toda unidade era o poema Morte e
vida Severina de João Cabral de Melo Neto.
64
Imagem 01: Libro didático I
65
Imagem 02: Livro Didático II
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Imagem 03: Livro didático III
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Imagem 04: Livro didático IV
68
Imagem 05: Livro didático V
69
Imagem 06: Livro didático VI
70
Imagem 07: Livro didático VII
71
De saída, os alunos já mostraram dificuldade com o poema, percebi que o fato
dele não corresponder à realidade sócio cultural dos alunos, especialmente no que tange
ao espaço geográfico que é desconhecido por eles. Os intérpretes não conseguiam
identificar-se com o solo seco, os retirantes famintos de fome e de sede. Outra
preocupação deles era com relação às questões que estavam após o poema para serem
interpretadas, um hábito comum, pois,
ao discutir a desestruturação a que é submetida a narrativa nos livros
didáticos; cabe aqui apontar o tratamento que neles é dado à poesia,
quase sempre descaracterizada: ou se insiste apenas em seus aspectos
formais—conceito de estrofe, verso rima, ou o que é mais frequente, se
usa o poema para fins ortográficos ou gramaticais (SOARES, 1999,
p.26)
A necessidade de conduzir o conteúdo do livro foi bastante frustrante, visto que,
ele reproduzia mais uma vez a escolarização inadequada que comentamos, como por
exemplo as respostas formatadas que vem como sugestão no livro do professor onde se
lê direcionamentos como: “Espera-se que os alunos percebam que...”; “Sugestão de
resposta:”; ou seja, o poema de João Cabral não compõe o livro de forma que o leitor
possa apropriar-se do texto, tanto o texto completo quanto as telas que foram selecionadas
e descontextualizadas do repertório cultural dos leitores. Este processo faz com que o
material seja direcionado e transformado em um suporte para que os alunos entendam o
gênero poema.
Ao acompanhar a feitura das atividades do livro, percebi a dificuldade da turma,
uma vez que os alunos seguiam tentando “interpretar” o poema, visto que Atena informou
as páginas do livro e as atividades que seriam realizadas, avisando que posteriormente
seria realizada a correção das questões. Nesse ponto, observei que os alunos iam direto
para as questões, sem antes ler o texto. Então, não consegui mais acompanhar aquela aula
sem interferir, propondo à Atena realizar a leitura do poema por entender que:
o professor, quando dá a lição, começa a ler. E seu ler é um falar
escutando. O professor lê escutando o texto como algo em comum,
comunicando e compartilhando. E lê também escutando a si mesmo e
aos outros. O professor lê escutando o texto, escutando-se a si mesmo
enquanto lê, e escutando o silêncio daqueles com os quais se encontra
lendo. A qualidade de sua leitura dependerá da qualidade dessas três
escutas. Porque o professor empresta sua voz ao texto, e essa voz que
ele empresta é também sua própria voz, e essa voz, agora
definitivamente dupla, ressoa como uma voz comum nos silêncios que
72
devolvem ao mesmo tempo comunica, multiplica e transformada.
(LARROSA, 2015, p. 141).
Emprestar a voz foi uma forma de aproximá-los da palavra e, por isso, li mais de
uma vez. E li de novo para que eles pudessem acompanhar, depois pedi que lêssemos em
grupo, ao que eles timidamente acompanharam a leitura. Após uma pausa, perguntei o
que lhes chamara a atenção na leitura, recebendo como resposta comentários sobre a
musicalidade do poema, suas rimas, o nome do personagem e alguns versos que gostaram.
A mudança de comportamento em relação ao poema foi notável, trazer o poema
pela voz possibilitou aos alunos fazer uma conexão com o texto, onde puderam ver que
“existe uma coisa que está ali, uma coisa feita de escrita, um objeto sólido, material, que
não pode ser mudado; e por meio dele nos defrontamos com algo que faz parte do mundo
imaterial, invisível, porque é apenas concebível, imaginável” (CALVINO, 1999, p. 78).
Ou seja, eles perceberam que por mais que eles nunca tivessem tido contato com aridez e
seca presentes nos versos de Morte e vida Severina, eles podiam imaginar. Não pretendi
influenciar na recepção do poema, mas retomando minha experiência leitora compreendo
o quanto a presença da voz pode ser um convite à leitura, pois
a defesa pela retomada de uma atitude oral cotidiana na didática da sala
de aula hoje, a nosso ver, contempla diversos desejos. O primeiro, e
decisivo, é a necessidade de reinterpretação de uma forma de
transmissão de conhecimento que o passado histórico nos
proporcionou. Dizer um texto em voz alta, de certo modo, é a
recuperação da técnica que os aedos, jograis e menestréis nos legaram.
Pergunta-se, quem não gosta de ouvir histórias? (FARES; NUNES,
1999, p.113).
O dizer do texto foi um convite para que eles mesmos também o lessem. De alguns
mais tímidos quase não ouvíamos a voz, que transparecia a insegurança de juntar as letras
e formar palavras, de uni-las em um período, demonstrando a hesitação na pronúncia de
cada verso: “Senhor dessas ses-ma-ri-as? É assim que se fala, professora?”6 (Apolo, EJA
2017). Tudo isso reunido num esforço muito bonito de quem ainda talvez não tivesse
ouvido a sua própria voz.
A leitura seguiu até que cada um, ao seu tempo, pudesse ler, fazendo as pausas
que precisava, encontrando uma palavra pela primeira vez. “O que é sina, professora?”
(Bia, EJA, 2017), ou mesmo vencendo a sua vergonha: “Professora, eu não sei não. Vou
ler tudo doido, tem problema?” (Afrodite, EJA, 2017). A cada leitura, foram percebendo
6 Os textos em itálico indicam sua procedência na voz oral.
73
que nós não estávamos lendo para responder as perguntas, líamos o texto para ler, pois
antes de pedir que o aluno fale sobre o texto ou tenha uma recepção sobre ele, é necessário
saber se ele consegue ler, como nos coloca Manguel (1997):
Ler em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de carregar na mente
bibliotecas íntimas de palavras lembradas são aptidões espantosas que
adquirimos por meios incertos. Todavia, antes que essas aptidões
possam ser adquiridas, o leitor precisa aprender a capacidade básica de
reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu
comunicar-se: em outras palavras, o leitor precisa aprender a ler. (p.85)
O aprender a ler que o autor se refere está vinculado ao que o leitor traz consigo,
visto que cada leitor não é algo esvaziado pronto para ser preenchido pelos textos que
encontra na escola. O ato de leitura é uma troca entre o que está sendo lido e o que o está
sendo suscitado pelo texto, que contém muitas lacunas a serem preenchidas pelo leitor. O
texto é “um mecanismo preguiçoso e à, medida que passa da função didática para a função
estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa [...]. Todo texto quer que
alguém o ajude a funcionar” (ECO, 2012, p. 37).
A presença da voz foi a presença do poema, porque ler não é apenas verbalizar as
palavras diante dos olhos, quando lê-se para os alunos o próprio poema começa a falar
aos ouvintes. Mas apesar de minhas tentativas de deixá-los mais livres para a recepção do
poema, Atena lembrava das questões que precisavam ser respondidas. Na sequência das
atividades havia uma sessão intitulada “Para estudar o gênero”, que trazia um poema de
Mário Quintana: “poeminha do contra”. Novamente realizamos a leitura em conjunto e
individualmente, depois conversamos sobre o poema. Para evitar que os intérpretes se
prendessem às questões, sugeri que falassem um pouco sobre o poema ao que um deles
comentou: “Professora, eu entendi que ‘Eles passarão’, quer dizer que eles podem ir na
frente e ‘Eu passarinho’, quer dizer que eu vou devagarzinho porque eu não tô com
pressa.” (Páris, EJA, 2015).
Na resposta do intérprete a simplicidade da recepção livre, em que ele diz de
maneira jocosa e sem receio o que os versos lhe passam e aqui encontramos
a poesia fecunda continuamente a capacidade de criação, a capacidade
imaginativa, assim como é por ela fecundada. A confabulação poética
e a atividade imaginativa conjugam-se permanentemente. A
imaginação poética abre caminhos novos campos simbólicos que
constituem a consciência cultural (ANTÔNIO, 2002, p. 75).
74
A capacidade imaginativa do intérprete gerou riso e concordância dos colegas,
mas Atena, seguindo a sugestão de resposta do livro do professor, pediu que ele lesse
outra vez para melhor compreender. Tentei explicar que a recepção do aluno era outra
possibilidade e o que se esperava era que o leitor alcançasse a contradição, o que ele fez
foi buscar os “deslimites da palavra” (BARROS, 2013, p. 281).
Por essa experiência podemos notar o tratamento que é dado ao texto poético, à
sua desestruturação e à sua descaracterização, visto que o poema de Quintana estava na
unidade como um exemplo e não tinha conexão com o Morte e Vida Severina.
Ressalto que não pretendo com essas considerações fazer uma análise do livro
didático nem julgar a maneira que professora Atena conduz sua disciplina, e sim trazer
para este texto um exemplo de escolarização da leitura. Ao observar a distorção que a
poesia sofre ao ser transferida para o livro didático, insisto na questão colocada ainda no
início da sessão: a escolarização da leitura. Retomo Magda Soares (1999) ao tratar dos
objetivos da leitura de textos nos livros didáticos quando comenta que os exercícios não
conduzem o leitor para o que seria importante no texto literário como a percepção da
literariedade, a estética e o espaço de recriação que o texto evoca no leitor.
Assim, nesses primeiros encontros com os intérpretes, percebi que o desencontro
com a poesia é ainda maior da palavra poética que vem pela letra. Diante do texto escrito
eles ficavam cegos para as palavras, não conseguiam deixar que elas lhe contassem
histórias, muito menos perceber a caixa de vozes infinitas. Assim, devido pouco tempo
disposto para a feitura desta pesquisa, concluímos que trazer a letra pela letra seria a
escolha mais acertada para propor uma nova recepção poética, deixando a presença da
voz na leitura dos textos em verso e prosa. Ou seja, quando nestes escritos nos remetermos
à oralidade não significa a ausência da palavra escrita, mas à leitura dela.
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2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível
ÍTACA
Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões, nem Ciclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.
Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas, se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades –
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar sua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
(Poemas, Konstantinos Kaváfis, por Haroldo de Campos)
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A educação escolar é uma jornada para Ítaca. E nela, há muitos Ulisses, ansiosos
por chegar a seu destino final: a formação acadêmica. A história de qualquer herói
pressupõe desafios e na educação formal eles começam cedo: antes mesmo de uma
criança completar o desenvolvimento dos processos que envolvem a fala, ela já deu início
ao convívio com outras crianças num espaço que é destinado à aprendizagem. A educação
escolar é uma jornada que se estende por muitos anos de nossa vida, e se aí incluirmos a
educação profissionalizante, esse tempo se dilata ainda mais.
A maneira que se tem olhado para o caminho da educação é sempre pensando no
seu resultado. Ao fim de cada ano letivo, o objetivo é passar para o outro levando em
consideração o conteúdo que foi ensinado, a maneira que esse conhecimento chega ao
aluno não tem sido muito privilegiada. A educação que está posta é a jornada que tem
como foco apenas a chegada a Ítaca.
Como seria essa jornada se a chegada à Ítaca fosse consequência de tudo que foi
aprendido durante o caminho? Se nessa formação coubesse mais de sentir e menos e
saber?
Uma formação que olhe menos para os resultados e mais para a jornada é o que a
educação sensível busca. Educar para transformar o que sabemos e reconhecer as formas
de sensibilidade, olhar para o outro respeitando o que ele é e sabe. Outrar-se. Educar por
uma experiência sensível.
A maneira que se entenderá o sensível neste texto caminha pelo poético, uma vez
que a pesquisa propôs despertar a sensibilidade dos alunos pela palavra poética. Não se
pretende com isso ensinar como eles devem ver, ouvir ou apreciar o poético e, sim, a
intenção de permitir que eles descubram as leituras que são capazes de fazer. Resistir à
racionalidade funcionalista que se pauta por regras não sensíveis, mas tão só imediatistas
e pragmáticas.
Dessa forma, aliada às teorias que fundamentam a Estética da Recepção,
elegemos como sustentação para este caminho teórico, de pensar essa educação, aquele
apontado por Larrosa (2017), que propõe a educação a partir do par experiência/sentido.
O autor provoca pensarmos a palavra experiência em outro sentido, no qual “é preciso
reivindicar a experiência, dar-lhe certa dignidade, certa legitimidade. Porque a
experiência foi menosprezada tanto pela racionalidade moderna, tanto na filosofia quanto
na ciência” (LARROSA, 2017, p. 38).
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Pensar a educação a partir da experiência pode ressignificar sua natureza, repensar
suas práticas, entender suas demandas e impedir que o texto poético seja vulnerável aos
velhos usos que anulam a sua dimensão estética.
Larrosa (2017) destaca a importância de diferenciar a experiência da informação,
uma vez que a primeira é o que vivemos, o que nos acontece e nos toca, o que deixa em
nosso corpo uma história. A informação é ter conhecimento sobre uma coisa. Para o autor,
a experiência é quase o oposto da informação, uma vez que bem informados deixamos de
experimentar muitas coisas. O discurso contemporâneo incentiva o acúmulo de
informação, deixando a experiência cada vez mais extraordinária.
Benjamin (1994, p.197) já havia comentado esse aspecto: “é como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade
de intercambiar experiências”. Nossa sociedade reflete a pobreza de experiências no
mundo abundante de informação. A ideia de que uma pessoa, para ser bem sucedida,
precisa ser bem informada se fundamenta na concepção de que o conhecimento se adquire
com informação, como se aprender fosse adquirir e acumular informações. “As ações da
experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor
desapareça de tudo.” (Idem, p. 197).
Nessa lógica que esmaece a experiência, Larrosa (2017) critica o par
informação/opinião porque, como a informação, a opinião se converteu em imperativo, o
indivíduo moderno precisa ter uma opinião própria, um julgamento preparado, ainda que
este limite-se a concordar ou discordar de algo. Tudo isso regado a uma grande
velocidade: a informação de hoje vem por um estímulo instantâneo, que é rapidamente
substituído por outro, também fugaz. Afetado por vivências instantâneas o sujeito da
informação não realiza uma conexão duradoura ou significativa.
Para as instituições educacionais, a informação e esse senso crítico devem chegar
cada vez mais cedo, embaladas pelo discurso da competitividade. É comum crianças nas
séries inicias já estarem sendo preparadas para o arcabouço de informação, no qual a
aprendizagem ganhou o peso da preparação para o mercado competitivo.
Será necessário que se coloque um olhar menos opaco para que se perceba como
a experiência, como abordagem teórica é o caminho que melhor se harmoniza à viagem
para Ítaca. Ressignificar essa palavra que tem força é entender que
a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, para escutar,
78
pensar mais devagar, olhar mais devagar, demorar-se nos detalhes,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e delicadeza. Abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo (LAROSSA, 2017, p. 25).
Pela experiência se faz o caminho do sensível, que permite que suas cores matizem
os sujeitos que por ele passam, que afete as significâncias e marque por sua simplicidade
e pela nitidez de suas marcas. Esse território, espaço do acontecer precisa ser percorrido
como um flâneur, no sentido de Benjamin (2015), para entregar-se verdadeiramente à
experiência e encontrar na relação entre conhecimento e vida humana seu próprio ser.
Para o entendimento de Larrosa (2017), o saber da experiência é diferente, é o que
se adquire na maneira como uma pessoa responde ao que lhe acontece no decorrer de sua
vida e o modo como dá sentido ao que lhe aconteceu. Um saber que ligado à existência
não tem fim, um saber individual, pois as pessoas ainda que enfrentem um mesmo
acontecimento vivem experiências diferentes.
Do ponto de vista da ciência moderna, a experiência foi convertida como um
método da objetividade, a partir da ideia de uma ciência experimental, convertendo a
experiência em experimento. “Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se
a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a
lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade” (LAROSSA,
2017, p. 34).
Assim, se o experimento pode ser refeito muitas vezes para confirmar uma
hipótese comum às tentativas, a experiência sempre se dará como uma primeira vez, “a
experiência não é um caminho até um objeto previsto, até uma meta que se conhece de
antemão, mas uma abertura para o desconhecido” (LAROSSA, 2017, p 34). A experiência
é uma viagem para compreender o caminho das Ítacas.
Do ponto de vista do autor, é necessário mais que reivindicar a experiência, é
preciso dar-lhe legitimidade. Uma vez que, as racionalidades científicas clássica e
moderna a deixaram à margem. Na primeira, foi considerada como modo de
conhecimento inferior, já que o saber racionalizado precisa de purismo, produzido por
ideias claras. Na segunda, a experiência foi objetivada, homogeneizada, controlada e
calculada, como já dito, transformada em experimento.
A experiência é sempre de alguém, subjetiva, é sempre daqui e de agora,
contextual, finita, provisória, sensível, mortal, de carne e osso, como a
própria vida. A experiência tem algo da opacidade, da obscuridade e da
79
confusão da vida, algo da desordem e da indecisão da via. Por isso, na
ciência também menospreza a experiência, por isso a linguagem da
ciência tampouco pode ser a linguagem da experiência (LAROSSA,
2017, p. 40).
Por seu caráter genuinamente particular, a experiência permite o caminhar pela
via do sensível, é necessário lembrar o quanto nos afastamos de nossas sensibilidades, e
que não podemos romper com o que está posto, sem reconhecer a estrutura que também
nos formou, ainda nos forma, mas que pode ser questionada. Entendemos experiência
como categoria que fundamenta esta pesquisa,
uma categoria vazia, livre, como uma espécie de oco, ou intervalo,
como uma espécie de interrupção, ou de quebra, ou de surpresa, como
uma espécie de ponto cego, como isso que nos acontece quando não
sabemos o que nos acontece e sobretudo como isso que, embora nos
empenhemos, não podemos fazer com que nos aconteça, porque não
depende de nós, nem do nosso saber, nem do nosso poder, nem de nossa
vontade (LAROSSA, 2017, p. 12).
Como é possível pensar uma categoria assim? Num primeiro olhar pode ser que
transpareça algo sem planejamento, mas não é. A elaboração conta com o delineamento
prévio, mas esse segue a movência do campo. Olhar o vivido do intérprete, cobrir e
descobrir o que ele traz por dentro: sua experiência. Por isso, a primeira recepção sobre
poesia que busco é a que ele traz consigo, por uma folha em branco e uma pergunta antiga
que remota os primeiros pensadores acerca do tema: o que é poesia?
A ideia é perceber quais experiências eles traziam dessa palavra, pois o verbo
tremula no presente e uma única palavra pode colher no jardim de memórias que tipo de
contato eles tiveram com a “poesia”. Paz (2012, p. 48) diz que a poesia “vive nas camadas
mais profundas do ser, enquanto as ideologias e tudo o que denominamos ideias e
opiniões são os estratos mais superficiais da consciência.
No primeiro momento, a despretensão da pergunta, a folha em branco, os deixava
inseguros, então a liberdade de dizer o que acham causa um certo impacto com perguntas
como: “Mas é mesmo pra eu dizer o que eu sei? Porque eu não sei isso.” (Ícaro, EJA
2017), “É pra dizer a minha opinião? O que eu acho direto sem o livro? (Cibele, EJA.
2017). Os alunos não estavam habituados a uma escritura livre, sem um direcionamento,
sem uma resposta esperada, ou então sem um texto para que eles “retirem a resposta”.
Não estavam acostumados a narrar sua experiência. Mas, ainda assim eles escreveram, e
dessa primeira recepção colhi respostas honestas, pequenas percepções:
80
Poesia pra mim é arte, é ternura. Poesia traz sentimentos regados de
alegria ou tristeza, sentimentos diversos entrelaçados com dor, com
rancor, uma ternura infinita que traz mar de sentimentos. (Íris, EJA,
2017. Grifo meu)
Poesia e um sentimento de expressar uma coisa que você sentir pela
outra um gesto de carinho e amor um jeito de você dizer o que você
sente por outra pessoa. (Aristeu, EJA 2017. Grifo meu)
O que é poesia pra mim?Eu acho que são formas de escrever
coisas bonitas, românticas, são formas bonitas de se pensar. (Odin,
EJA, 2017. Grifo meu)
Os três intérpretes associam poesia com forma de sentimentos, beleza e expressão.
O primeiro cita a arte, e elege palavras que não são usuais como: ternura, regar,
entrelaçado e rancor. Uma possibilidade é de que apenas a presença da palavra poesia
tenha colhido em sua memória esses dizeres. Para a segunda, a poesia está principalmente
no sentir e o último fala em formas bonitas de pensamento. Se poesia é “a forma de fazer
nascimentos” (BARROS, 2016), para ele, ela começa no pensamento.
Durante esta partilha, após alguns alunos comentarem suas respostas, um
intérprete expressou que preferia dividir sua opinião apenas comigo, em escrito uma
resposta muito particular:
Poesia pra mim é Titanic. Foi como filme que acabou.
Eles que duvidaram. Tavam bem se divertindo. Que quando naufragou,
o navio que foi história real, muitas pessoas morreram, no que
duvidaram que nem Deus afunda esse navio, mas acabou morrendo
quase todo mundo. Sobreviveu, só a metade!!! Na minha opinião (Baco,
EJA 2017).
É possível notar que o intérprete associa a poesia com arte, em sua perspectiva a
poesia está no filme. É necessário lembrar o contexto do longa: Titanic (1997)7, dentro
da história do cinema, à época, foi um dos poucos blockbusters8 de expressão mundial
que se diferenciou dos clichês, apresentando às massas uma película de arte em linguagem
popular e com um desfecho incomum e trágico. Assim, concluo que, para o intérprete,
este foi o filme que tirou a sétima arte do Olimpo.
O intérprete, provavelmente como o público em geral, foi surpreendido ao final.
Tal lembrança demonstra o quanto essa memória foi marcante e que ele interpreta a poesia
como um sentimento ao remeter a uma fala icônica do longa, quando é dito que “nem
7 Titanic é um filme épico de romance e drama norte-americano de 1997, escrito, dirigido, co-produzido e
co-editado por James Cameron. É uma história de ficção do naufrágio real do RMS Titanic. 8 Obra cinematográfica de grande alcance popular e alto sucesso financeiro.
81
Deus pode afundar esse navio”. O intérprete vê o poético na memória e no sentimento
recordado. O receio de dar a resposta errada acompanha tanto sua voz, quanto sua escrita,
sempre marcado por “na minha opinião”.
A recepção da poesia, para eles, percorre a interlocução com o que lhes é
significante. Neste primeiro momento ainda não há a presença de um texto poético pré-
definido. Por essa primeira impressão foi possível estabelecer uma conexão com eles,
saber de suas experiências. Um momento crucial para os próximos encontros por
entendermos que:
a imaginação poética não é invenção, mas descobrimento da presença.
Descobrir a imagem do mundo naquilo que emerge como fragmento e
dispersão, perceber o outro no um, será devolver à linguagem sua
virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia: busca dos outros,
descobrimento da “outridade” (PAZ, 2013, p. 267).
A recepção é algo que pode ser surpreendente e, quando vem de uma criança, os
escritos chegam de forma imprevisível, já que ela consegue colocar o delírio no verbo.
Com os intérpretes do 6º ano, não houve resistência para responder o que é poesia. Alguns
também a relacionaram com a expressão de sentimentos ou com a composição verbal
elaborada: : “É uma forma de expressar as emoções” (Orfeu, 6º ano. 2017). “Eu acho
poesia palavras bonitas”(Marcus, 6º ano. 2017). “Poesia é conjunto de palavras” (Nereu,
6º ano. 2017).
Um deles comentou que gosta de “ver poesia na internet” e, em sua recepção,
colocou:
Imagem 08: Poesia amor
82
Para eles, falar sobre poesia é falar do que lhes toca, a pergunta se desdobrou em
experiência com a palavra poética. Outra resposta imprevisível foi da poesia que chega
pela canção, ao ser questionado sobre a recepção que segue o intérprete, justificou: “Pra
mim nessa música tem poesia. Ela me dá vontade de ser feliz”:
Imagen 09: La bamba
La bamba
Para bailar la bamba
Para bailar la bamaba
Se necesita uma poca de gracia
Uma poca de gracia y uma otra cosita
Y arriba, y arriba, y arriba, arriba
Por ti seré, por ti seré, por ti seré.
Yo no soy marinheiro, y no so marinero
Soy capitam, soy capitam, soy capitam.
Bamba, la bamba. 3x
(Jax, 6º ano, 2017. Grifo meu)
Os alunos do 6º ano não tiveram dificuldade para desapegar daquilo que se pode
dizer e aquilo que se pode pensar, determinado pela cartilha, pela resposta esperada. A
recepção que traz a música latina é uma demonstração que, no entender do intérprete,
poesia é o que o deixa feliz. Ao comparar a sua resposta com a letra original da música é
possível perceber que não são iguais, ele não copiou a letra e sim, escreveu de memória,
usando como mnemotécnica o ato de cantar, e recriando a letra no verso “uma poca de
gracia y uma outra cosita”. Outro aspecto é a estética do texto, como podemos ver na
reprodução da imagem, ele desenha as linhas e escreve a música em versos.
83
Importante notar, também, neste caso, o que toca a oralidade. Essa canção não é
contemporânea ao intérprete, ‘La Bamba” é da década de 50, provavelmente ele nunca
viu essa letra, por isso ele a transcreveu do jeito que sabe, escrevendo as palavras da
maneira como entende, o que ouviu. Para além disso, justificar sua escolha por aquilo que
lhe causa “vontade de ser feliz”, nos cabe como exemplo para explicar como entendemos
essa categoria na pesquisa:
fazer soar a palavra experiência perto da palavra vida, ou melhor, de um
modo mais preciso, perto da palavra existência. A experiência seria o
modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem
outro ser, outra essência, além de sua própria existência corporal, finita,
encadernada, no tempo e no espaço, com os outros. E a experiência,
como a vida, não pode ser conceitualizada porque sempre escapa a
qualquer determinação, porque é, nela mesma, um excesso, um
transbordamento, porque é nela mesma possibilidade, criação,
invenção, acontecimento (LARROSA, 2017. p. 43).
Transbordamento, criação e invenção. Tudo isso cabe na recepção que vê na
poesia uma vontade, a experiência aqui se coloca como uma alternativa, como um meio
de acolhida ao que o intérprete já conhece. Porque a sua formação enquanto leitor de
poesia não começa como uma tábua vazia, mas sob a perspectiva de algo que lhe é
singular e que somente ele pode descortinar. Assim, está posto em evidência outro par:
experiência/formação, em que:
a experiência é o que me acontece e o que, ao me acontecer, me forma
ou me transforma, me constitui, me faz como sou, marca minha maneira
de ser, configura minha pessoa e minha personalidade. Por isso, o
sujeito da formação não é o sujeito da educação ou da aprendizagem e
sim o sujeito da experiência: a experiência é que é a forma, a que nos
faz como somos, a que transforma o que somos e o que converte em
outra coisa (LAROSSA, 2017. p.48).
Esse par projeta que os intérpretes permitam-se viver na escola a sua experiência
de mundo e, a partir dela, perceber os sentidos e elaborar outros com os outros:
professores, amigos e todos que o envolvem. A escola como um espaço à parte, como
instituição ligada apenas à linguagem técnica, contempla somente aqueles que conseguem
se enquadrar a seu tempo de formação. A educação sensível procura abrir um espaço
diferente, ainda que uma pequena fresta
para e experiência de ser professor ou de ser aluno, para a experiência
de habitar um espaço escolar, um espaço pedagógico, se seria possível
dar a ele certo sentido de que a experiência da escola é uma experiência
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na qual não vivemos nossa vida, na qual o que vivemos não tem a ver
conosco, é estranho a nós, se da escola, tanto se somos professores
quanto se somos alunos, voltamos exaustos e mudos, sem dizer, e a
escola faz parte desse dispositivos que destroem experiência ou o que
a única coisa que fazem é nos desembaraçar da experiência.
(LAROSSA, 2017, p.56).
A experiência com a poesia é um grande exemplo de como a didatização do texto
poético pode marcar um intérprete, um vestígio de recusa que fica no leitor, seu corpo se
fecha e as vozes que moram nas palavras não conseguem chegar até eles. A recepção de
alguns alunos da EJA demonstra esse ressentimento:
O que é poesia não sei. Ainda não tive muito contado.
(Cecília, EJA, 2017.)
Poesia? O que é? Nunca ouvir falar.
Não sei se tive contato.
(Lua, EJA, 2017)
O que é poesia eu não sei.
Nunca tive contato com a poesia.
(Selene, EJA, 2017)
O que eu acho sobre poesia é um pouco complicado porque tem
palavras que não sei entender. (Atlas, EJA, 2017. Grifos nossos)
O advérbio “nunca” carrega nessas falas o eco das palavras ocas, que nem versam
e nem prosam para esses intérpretes, da poesia que passa por eles e não faz morada, ou
ainda da poesia que tem nas suas palavras aquilo que não se entende. O discurso nessa
frase é do leitor que culpa a si mesmo por não entender o que lê, para ele, o complicado
descolore os encantos do verbo. Essa dificuldade ao acesso à linguagem poética é comum,
entendida por Paz (2012):
no que diz respeito à obscuridade das obras, deve ser dito que, no início,
todo poema oferece dificuldades. A criação poética sempre enfrenta a
resistência do inerte do horizontal [...]Tiradas de suas funções habituais
e reunidas numa ordem que não é a da conversa nem a do discurso, as
palavras oferecem uma resistência irritante. (p. 51)
A dificuldade do intérprete em entender a poesia reside no que o autor diz: quando
as palavras são tiradas de suas funções habituais para reunir-se em ordem incomum, no
entanto, o leitor que encontra a poesia subserviente à gramatica, o texto poético como
atividade de caça às classes de palavras, ela perde a cor, muda a relação do texto com
85
leitor que passa de uma relação horizontal para uma medida na vertical, o leitor sente-se
menor que o texto: “palavras que não sei entender”.
A palavra poética não deveria ser um gatilho de baixa estima ao leitor, aquilo o
faz sentir-se incapaz, e aqui não se trata da diferença entre o saber ler e o entender o que
leu, mas em como o verbo adere ao vivido do leitor, como a herança de Apolo se coloca
ao que guarda da poesia a memória daquilo que não lhe é de direito.
Comparado a esse, um paradoxo que preciso enunciar: a recepção que vê na poesia
a palavra perfeita, o trabalho do artífice:
Poesia pra mim são frases com união de palavras unidas com
perfeição, com detalhes que emocionam. As melhores poesias são as
que falam de amor, que entram fundo na alma. (Ártemis, EJA,
2017.Grifo meu)
É necessário não separar essas recepções: as palavras unidas com perfeição não
seriam palavras complicadas? E aqui elas tocam o fundo da alma, por isso a experiência
é sempre no singular. Ela nos singulariza.
Há um olhar, uma recepção (é necessário que guardemos este intérprete, muito se
falará de sua percepção nestes escritos) que une o que não se entende e o que é belo:
“Poesia é um conjunto de palavras meio sem nada a ver, às vezes bonitas” (Heleno, EJA,
2017). Na voz que acha a poesia “nada a ver” está, para lembrar Nunes (2017), o traço-
oco do poema, oco porque pelo leitor deve ser preenchido, o poeta dá a casca, mas o sumo
quem coloca é ele e, se acha complicado, se não entende, a palavra segue esvaziada.
Mas ainda que não saiba disso, este intérprete alcança o sentido da poesia, porque
a poesia não tem uma função lógica, estabelecida, enquadrada. Quando a poesia “não tem
nada a ver” não houve um intercâmbio de experiências, mas sim experiência, porque a
recepção também passa por aquilo que não gostamos, que não faz sentido ao que trazemos
conosco. E se para ele a poesia ser “às vezes bonita”, entende-se que em algum instante
a poesia lhe encontra. A dificuldade de encontrar essa beleza reside em nosso pouco
acesso à palavra desacostumada, é pelo texto poético que a linguagem recupera sua
originalidade, porque o uso cotidiano lhe impõe uma limitação aos sentidos,
a reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e
plásticos tanto quanto os de significado. A palavra finalmente em
liberdade, mostra todas as suas vísceras, todos os seus sentidos e
alusões, como um fruto amadurecido ou como os fogos de artifício no
momento em que explodem no céu (PAZ, 2012, p. 30).
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A palavra poética é feita para o mundo, sua presença está suspensa pela ordem do
discurso pedagógico, ordem que ensina a como entender o poético por formatos que,
muitas vezes, não podemos nos reconhecer. “As vozes cotidianas dispersam as palavras
no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz poética os reúne num instante único”
(ZUMTHOR, 1993, p. 139).
No instante mora a experiência e se, de um lado, a poesia nutre num mesmo
intérprete uma dualidade de recepção, do outro, ela também pode mostrar-se presença
una:
Bom na minha opinião são frases muito bonitas, românticas e fica legal
e bonito em qualquer coisa que a gente escreva ou fale, eu gosto mas
só escrevo quando estou inspirada, mais gosto de ouvir, fica legal
até em gracinhas, quando brigo com o meu noivo, ele vem com poesia
fazendo graça mas fica legal porque no final sempre rima.
Eu esqueci algumas poesias que ele faz, mais deixo tudo guardado na
mente e no coração. (Afrodite, EJA, 2017. Grifo meu)
Certamente é preciso levar em conta algumas categorias fundantes nesta fala.
Novamente a percepção estética, a escritura que vem da inspiração, a presença da voz, a
memória e, principalmente o trabalho em performance com a palavra rimada que
transforma um sentimento. Pois bem, o fator estético, na percepção da intérprete, a poesia
enquanto “frases bonitas”, tem a capacidade de transformar as coisas e deixá-las belas, é
possível aproximar essa percepção ao que Paz (2012, p. 58) entende sobre o poema:
O poema possui o mesmo caráter complexo e indivisível da linguagem
e da sua célula: a frase. Todo poema é uma totalidade fechada em si
mesma: é uma frase ou um conjunto de frases que formam um todo. Tal
como o resto dos homens, o poeta não se expressa em vocábulos soltos,
mas em unidades compactas e inseparáveis. A célula do poema, seu
núcleo mais simples, é a frase poética. Mas, ao contrário do que
acontece com a prosa, a unidade da frase, o que a constitui como tal e a
faz linguagem, não é o sentido ou direção significativa, mas o ritmo.
Ao eleger a unidade da frase como representação da poesia, a intérprete está
priorizando o ritmo e nele ainda acrescento o desejo da voz: “eu gosto de ouvir, fica legal
até em gracinhas”. Ela aprecia a performance do noivo, para ela, há poesia em “suas
gracinhas” na maneira como eles se comunicam, quando
ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja
um corpo—repugna mais que ao texto escrito toda percepção que o
diferencie de sua função social e o do lugar que ela lhe confere na
comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou
87
implicitamente; das circunstâncias, enfim nas quais se faz escutar
(ZUMTHOR, 1993, p. 160)
A performance do noivo, a rima que vem pela voz e as gracinhas são o texto
oralizado que pelo versejo consegue desfazer a briga. E ela além de apreciar essa poesia
também escreve, quando inspirada. A inspiração é um mote que retoma Platão, do poeta
inspirado pelas musas, para lembrar Mário de Andrade (1986): “a inspiração é fugaz e
violenta. Qualquer empecilho a perturba e emudece” (p.16).
Por fim, a última frase da intérprete que a primeira impressão pode parecer um
paradoxo: “esqueci algumas poesias que ele faz, mais deixo tudo guardado na mente e
no coração”, mas essa aparente oposição de esquecer e guardar se dissipa se retomarmos
o par memória/esquecimento proposto por Vernant (1973), que não são opostos e sim
complementares, uma vez que, a partir do esquecimento a memória cria. A intérprete
esquece as rimas, as palavras exatas da performance, mas o sentimento, a sensação que
aquelas gracinhas deixam nela ficam guardados na “mente e no coração”, a poesia está
nessa experiência singular. Sensível e íntima, uma recepção que alcança “tudo que nos
afasta da causa e da recompensa, tudo que nega a história íntima e o próprio desejo, tudo
que desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro encontra-se no instante poético.”
(BACHELARD, 1986, p.187).
Com efeito, a pergunta que embalou as primeiras impressões desses intérpretes
foi fundamental para esse corpus, e antes de seguirmos para a recepção dos textos
escolhidos, faz-se importante contar como olhar para a experiência deles e deixá-los livres
para escolher estar presente, ou não, em cada texto é algo que marcou definitivamente os
caminhos dessa pesquisa. Pois, em cada recepção está presente o singular de cada
intérprete, são eles no que leram, no que dizem e no que escrevem. E, no entanto, esses
dizeres incorporaram o que o texto poético acrescentou a cada um.
A intenção foi sair daquilo que Larrosa (2017, p.105). entende como experiência
do educativo dentro de uma jaula, aquela que é “medida, enquadrada, ou enjaulada pelas
operações de categorização, destematização, de ordenação, que constituem as lógicas de
nossos saberes e de nossas práticas”. No texto poético, a jaula é a sua escolarização
inadequada.
Assim como a experiência é singular, a maneira que eles elegem para expressá-la
também é, por essa razão, a terceira e última sessão que compõe esta pesquisa, agrupam
as recepções por todos os elementos constitutivos e pertinentes em que se mostram suas
88
semelhanças, esta apresentação permite penetrar melhor nos sentidos por eles
desenhados.
Tal escolha acaba por excluir algo muito caro à escritura de uma pesquisa que tem
como estudo principal a matéria colhido em campo: a organização cronológica dos textos
e das recepções. Ademais, apresentá-los em uma ordem, como uma linha reta, exata com
um final, seria como caminhar para Ítaca olhando apenas para a chegada. Não. O que se
fez nesse curso foi aproveitar a viagem. Cada trilha que me levou para um passeio por
algo que não esperava, passagens escondidas, entradas surpresa.
Ademais, não somos nós que tratamos de resistir ao enquadramento? Assim, a
última sessão traz aquilo que apenas a poesia pode mostrar, não se trata somente de
compreensão ou respostas sobre o texto poético, mas sim, de como o texto poético pode
mexer os sentidos, a maneira como a potência da palavra pode ser transformadora.
A recepção pela experiência com o poético traz para o intérprete o ato de ler,
escrever e pensar como ações que não podem ser realizadas separadamente, a recepção
poética não impõe regras de pensamento: “lê-se escrevendo, com um lápis na mão.
Escreve-se lendo [...] E entre ler e escrever, às vezes, acontece algo, acontece algo
conosco. Talvez isso que chamamos de “pensar” seja a experiência desse “entre”.
(LAROSSA, 2017, p. 139)
É no “entre” que pousa o nosso olhar, a poesia não está subserviente a um saber
tampouco é pretexto para um conteúdo. A poesia que chega aos intérpretes é uma
experiência, um viver algo que transcende o tempo presente, misturado ao vivido chega
às memórias que eles guardam, assim como ultrapassa as paredes da sala, chegando aos
espaços que só eles conhecem e que em sua expressão coloca no texto um eu. Nossa
prática não busca negar as formas consagradas pela escola, mas sim colocar em
perspectivas outras possibilidades, partir de outros critérios que incluam formas mais
livres, o caminhar para as Ítacas não prioriza resultados e sim experiências. Foi dado aos
intérpretes a poesia-presente e foram eles que decidiram o que fazer com ela.
89
3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre
A perda da auréola
Olá! O senhor por aqui, meu caro? O senhor nestes maus lugares! O
senhor bebedor de quintessências e comedor de ambrosia! Na verdade,
tenho razão para me surpreender!”‘Meu caro, você conhece meu
terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo, quando atravessava a
avenida, muito apressado, saltando pelas poças de lama, no meio desse
caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo
tempo, minha auréola, em um brusco movimento, escorregou de minha
cabeça e caiu na lama do macadame. Não tive coragem de apanhá-la.
Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me
arriscar a quebrar uns ossos. E depois, disse para mim mesmo, há
males que vêm para o bem. Posso, agora. passear incógnito, cometer
ações reprováveis e abandonar-me à crapulagem como um simples
mortal, E eis-me aqui, igual a você, como você vê.”
“O senhor deveria, ao menos, colocar um anúncio dessa auréola ou
reclamá-la na delegacia caso alguém a achasse.”
“Não! Não quero! Sinto-me bem assim. Você, só você me reconheceu.
Além disso a dignidade me entedia. E penso com alegria que algum
mau poeta a apanhara e a meterá na cabeça descaradamente. Fazer
alguém feliz, que alegria! e sobretudo uma pessoa feliz que me fará rir.
Pense em X ou em Z. Hein? Como será engraçado.
(Pequenos Poemas em prosa, Baudelaire, 1980)
Um dispositivo clássico das atividades escolares envolvendo poesia é um texto
seguido de perguntas em um espaço delimitado para as respostas. Por isso, afim de
permitir-lhes uma experiência diferente, em nossos encontros, tanto para turma da EJA
quanto para o 6º ano, para cada intérprete foi entregue uma folha em branco. E nessa folha
ele era convidado a expressar a sua recepção do texto daquele dia.
À primeira vista um desconforto regado a muitos e muitos “Eu ainda não entendi
o que é pra fazer, professora.” Orientei que podiam, naquele espaço da página em branco,
dizer como se sentiam em relação ao texto, desenhar, escrever uma lembrança. Mas a
liberdade traz um receio. Acostumados a ter uma resposta pré-estabelecida e habituados
a ter um número de linhas a preencher, eles ficaram perdidos. Alguns até munidos de uma
régua colocaram as linhas no papel “professora, fiz umas linhas aqui. Tá bom esse tanto?
A resposta que a senhora quer é de quantas linhas?”
90
E foi assim a primeira experiência com um texto levado por mim, o poema Os
Estatutos do Homem do amazonense Thiago de Mello. Mas, voltemos um pouco. Antes
de mais nada o primeiro movimento foi trazer o texto pela voz, realizei a leitura do poema
e naquele silêncio ouvia a minha voz e sentia sobre mim aqueles olhos. Trazer o texto
também pela voz foi por entendermos que
é no ato de percepção de um texto, mais claramente do que em seu
modo de constituição, que se manifestam as oposições definidoras da
vocalidade. É certo (às vezes consideravelmente) que na economia
interna e na gramática de um texto não importa que ele tenha ou não
sido composto por escrito. No entanto, o fato de ele ser recebido pela
leitura individual direta ou pela audição e espetáculo modifica
profundamente seu efeito sobre o receptor e, portanto sobre sua
significância. (ZUMTHOR, 1993, p. 23-24)
Modificar a significância do texto é o que leva a trazer o texto primeiramente na
voz, porque mesmo com o texto em mãos, os intérpretes só o leem quando iniciamos a
leitura, e como nas primeiras recepções uma amostra significante expressou
distanciamento com o texto poético, a intenção foi realizar este encontro com letra
mediada pela voz. Eis o poema:
91
Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I. Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II. Fica decretado que todos os dias da
semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de
[domingo.
Artigo III. Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o
dia
[inteiro,
abertas para o verde onde cresce a
esperança.
Artigo IV. Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do
céu.
Parágrafo único: O homem, confiará no homem
como um menino confia em
outro
[menino.
Artigo V. Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI. Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo
[gosto de aurora.
Artigo VII. Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da
[claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII. Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX. Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X. Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI. Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII. Decreta-se que nada será obrigado nem
[proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII. Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma
[espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra
liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e
transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile,
abril de 1964
(MELLO, 2009, p. 165-168)
92
A ideia prévia de uma atividade lógica e disciplinar é algo tão incorporado aos
alunos que mesmo após algumas leituras e comentários sobre o formato do poema, eles
ainda seguiam sem saber muito bem o que escrever. A página em branco, a liberdade de
dizer como se recebe o texto ainda os melindrava, mas aos poucos foram descobrindo
possibilidades: “Professora, gostei desse artigo aqui, posso dizer qual eu não gostei
também?” (Odin, EJA, 2017) E a partir de uma resposta positiva, todos entenderam que
deviam dizer o que gostaram e o que não gostaram.
O parágrafo final diz que a liberdade é proibida mas o hoje em dia
liberdade quase a gente não tem porque tá muito violento.
(Hades, EJA, 2017)
O artigo que mais me chamou atenção foi o I porque lá fala verdades, e
hoje em dia vivemos um mundo de mentiras falta de respeito com as
pessoas, muitos assassinatos, brigas ninguém mais se respeita. As
pessoas deveriam reagir como no texto. Todos unidos para lutar contra
tudo o que está acontecendo, com esses políticos que estão fazendo de
tudo para tirar o pouco que as pessoas ganham hoje. (Nereida, EJA
2017.)
Gostei do texto, um texto falando bastante do que o mundo precisa. Eu
gostei bastante do parágrafo único que fala sobre a confiança, que as
pessoas não tem mais ao próximo a confiança e também o artigo XIII
que fala sobre o dinheiro, hoje em dia o dinheiro está comprando as
pessoas e isso não deveria acontecer, infelizmente é a realidade do
mundo que vivemos. (Odin, EJA 2017)
Eles gostaram do poema, porque viram na utopia dele os seus próprios desejos e,
uma vez livres das regras que estabelecem a resposta certa, escreveram seus receios, entre
tantos escritos escolhemos os três acima por se encontrarem no que trata da liberdade e
da confiança. A liberdade do primeiro é ver-se livre da violência, a segunda fala dessa
violência e vê no poema espelho para uma sociedade que está inerte a suas mazelas, o
terceiro reconhece a realidade e lamenta. Cada uma a sua maneira encontram a sua
necessidade, quando “a experiência do poema—sua recriação por meio da leitura ou da
recitação—também contém uma desconcertante pluralidade e heterogeneidade. Quase
sempre a leitura se apresenta como revelação de algo alheio à poesia propriamente dita”
(PAZ, 2012, p. 32)
Para o mesmo texto com as crianças do 6º ano também iniciamos com voz e a
recepção delas encontrou um olhar mais leve, claro. A criança parece carregar contida no
substantivo que lhe nomeia o verbo criação, em algumas situações as suas recepções
93
precisaram vir acompanhadas de uma explicação, porque o que, para elas, é tão obvio
para mim precisava de um pequeno complemento, assim mostra-se sempre em itálico os
comentários que pela voz acompanharam o texto.
Entre as recepções entregues, três nos chamara atenção pela maneira que leram a
palavra “liberdade”:
Eu gostei também do artigo final:” fica proibido o uso da palavra
liberdade a qual será suprimida no dicionários.” Porque usa a liberdade,
é como se livrar da sua mãe, da sua família, ir embora para outra cidade
(Reno, 6º ano, 2017).
7 eu gosto dele porque ele tem a liberdade.
1 porque eu só andava de mão dada (Pereu, 6ºano 2017).
O que chama atenção é a maneira que o primeiro intérprete entende a liberdade de
forma prática, para ele a liberdade é estar longe da família. O segundo, escolhe também
o verso que fala de um hábito que ele traz: andar de mãos dadas, e quando perguntado
com quem, respondeu: “Com a minha mãe, professora”. Dentro de sua resposta cabe a
certeza de que a frase está completa, que não precisa de nenhum complemento. E nesse
momento a professora Atena pediu que ele “completasse a resposta”. Nesta e em outras
situações semelhantes, orientei-lhes não modificar seu texto e um desconforto pairava na
sala, pois os alunos ficavam confusos sobre o que fazer: obedecer Atena ou ouvir a mim.
A opção foi respeitar a resposta, fazendo com que pela voz ele comentasse alguma
lacuna que ficasse para mim, porque a criança se diz com simplicidade e nela há
completude. Nessas recepções ambos trouxeram o poema para a referência que lhes é
mais próxima: a família, o sentido do poema para sua própria experiência. Já o interprete
abaixo, utilizou palavras do poema para expressar os motivos que que agradam:
Eu gostei do artigo final. Eu gostei porque: fala sobre liberdade algo
vivo e transparente. (Hermes, 6ºano, 2017)
Analisamos essa escolha por duas perspectivas: primeira leva em consideração
que o aluno está acostumado a tirar do texto a resposta, como uma caça palavras, assim o
intérprete escolhe dentro do poema o verso que justifique sua resposta. A segunda
considera a que o leitor tenha se apropriado dos versos. Não podemos olhar apenas para
os que escolheu, mas também para todos que excluiu de sua recepção, por isso ao
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reescrever o verso “a liberdade será algo vivo e transparente”, eliminando apenas o verbo,
o intérprete mostra a sua recepção.
As próximas três recepções se aproximam por perceberem o verso “muito mais
belo que a estrela da manhã”.
Eu gostei do (artigo) nº XII, porque eu lembrei muito da minha mãe na
parte estrela. (Santos, 6ºano, 2017)
Do artigo XI, porque é muito lindo e essa estrela da manhã é a minha
mãe. (Micenas, 6ºano, 2017)
A primeira relaciona a estrela da manhã à figura de sua mãe e para a segunda a
estrela é a mãe. Importante lembrar como o simbólico está presente, a estrela da manhã,
encontra-se na figura de Vênus a criadora, neste caso relacionada à figura criadora para
eles: a mãe. Outra intérprete também viu nessas palavras algo especial, mas para o ela, a
referência é a estética:
Eu gostei do verso XI porque ele fala sobre a estrela da manhã e essa
palavra pra mim é bonita. Eu gostei do VI porque fala de personagem
bíblico. Não gostei da VIII porque a gente aprende a amar! (Métis, 6º
ano, 2017)
Para além da apreciação estética de perceber a beleza na palavra, a fruição da
leitura mostra discordância com o poema dos versos: “Fica decretado que a maior dor/
sempre foi e será sempre/ não poder dar-se amor a quem se ama”, e aqui não cabe dizer,
como a professora Atena disse para a leitora, que ela não entendeu o poema. A sua
afinidade com o artigo que comenta o personagem bíblico sugere o que foi confirmado
por ela depois: uma formação religiosa que elucida a maneira que ela recebe o verso que
fala de amor e o seu entender de aprender a forma de amar.
Ainda sobre este texto, encontramos a fruição que trazem as cores da infância:
Eu gostei do 12 porque eu brinco todo dia.
Eu gostei do 1 porque a verdade é tudo.
(Reno, 6ºano, 2017)
Eu gostei do artigo 12 por que eu brinco todo dia e toda tarde eu
caminho todas as tardes.
Eu não gostei do primeiro porque eu não entendi.
Eu gostei do nove porque antes de eu vim pra escola eu tomo café com
pão (Ceos, 6ºano, 2017.)
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Para esses meninos, os versos trazem o instante do brincar, o olhar da criança
quando vê-se participante do verso em sua brincadeira diária, o primeiro, quando vê na
verdade a totalidade mostra de sua formação. A fruição de Victor é honesta: “eu não
entendi”, como gostar do que não se entende?
Voltando à fruição dele, na sua afirmativa: “Eu gostei do nove porque antes de eu
vim pra escola eu tomo café com pão”, que se refere ao verso: “Fica permitido que o pão
de cada dia/ tenha no homem o sinal de seu suor”. Fica evidente que ele não percebe a
metáfora, e nem precisa, pois ele encontra nestes versos a sua própria experiência e por
isso gosta dele. Pois, se “o poema é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões
poéticas, por sua vez, vivem no mesmo nível da fala e são o resultado do vaivém das
palavras na boca dos homens” (PAZ, 2012, p.43). O leitor não encontra a metáfora e
entende o pão em seu nível de fala usual mas, aí está a poesia, onde ele encontra algo que
tem sentido em seu universo.
As últimas recepções que selecionamos do poema de Thiago de Mello são as que
olharam para o poema como um todo e sentiram a palavra tecida em sua permanência
poética:
Eu gostei porque eu achei o artigo bonito e profundo, fala num futuro
em que queremos chegar. Eu gostei porque fala que nenhum dia será
triste e cinzento todo mundo será feliz.
(Posídon, 6º ano, 2017)
Eu gostei do texto porque ele me inspira e ensina. (Orfeu, 6º ano, 2017)
Olhar por cima, por baixo e em todas as direções para além do que nos está posto,
o que eles fazem ao perceber a totalidade do poema é “trazer à plena luz a tomada de
consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas” (BACHELARD, 1988,
p.1). Quando cita beleza e profundidade do poema, o aluno coloca em perspectiva um
futuro desejado e não pensa de forma individual, e sim coletiva, podemos dizer que esse
tipo de sentir demonstra como “o poema se alimenta da linguagem viva de uma
comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, ou seja, se suas tendências mais
secretas e poderosas” (BACHELARD, 1988, p. 48). Ao dizer que o poema inspira e
ensina, o leitor atinge a dimensão maior da poesia aquela que mexe nos sentidos e deixa
algo no leitor, toca suas expectativas e faz uma mediação com suas experiências.
Após esse encontro da poesia que se apresenta em versos, levamos para os
intérpretes um texto poético pela prosa:
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LIÇÃO DE BORBOLETA
Sabe? borboleta é urna flor que sai voando. Não a persiga nem tente capturá-la,
que seu vôo é tonto e breve, ela logo se cansa e volta ao caule de onde saiu, repõe-se no
seu lugar e deixa ficar-se no que é, no seu estado de flor. Talvez suponha você que a
borboleta apenas pousou no galho; não, borboleta não é mais. Pode tocá-la, pode, de leve
naturalmente, como todo o mundo deve tocar as flores. Não se mexe, vê? Não é mais
borboleta: é flor de novo.
Acontece é que sempre torna a evadir-se, sem nenhuma coordenação motora, no
vacilante trajeto dos bêbados, descaindo, levantando-se, contundindo-se nos muros. Flor
não sabe voar como os pássaros sabem. Por isso são desajeitadas as borboletas, o voo em
ziguezague, os zigues às vezes mais compridos do que os zagues e às vezes os zagues
mais compridos do que os zigues. Se não, não tinha graça. Borboleta voando, reta, certa,
como os pássaros. Para mim não teria a menor beleza. A beleza está no aprendizado
impossível: de chegarem a voar como os passarinhos. Veja: eu teria até medo se as
crianças também, ao invés de aprenderem a andar, saíssem andando firmemente como as
pessoas grandes quando não são muito velhinhas ou não tomam vinhos. O menino
levantando-se do berço e sem vacilar andando em linha firme na direção do banheiro para
fazer seu pipi. Não, o bom é o cair, é o levantar, é o aprender por si mesmo. Olha, olha
aquela borboleta azul, a flor movendo-se no ar que começa a encher-se de sol. Será uma
begônia, uma petúnia, um crisântemo? Se você prestar atenção, verá que em suas asas,
ou em suas pétalas, ainda persiste o orvalho de ainda há pouco.
(MARANHÃO, 1978, p. 35-6)
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Os intérpretes sentiram-se muito à vontade com esse texto a maioria deles
comparou a metamorfose da borboleta às dificuldades da vida. Poderíamos dizer que,
pelo seu uso em demasia, trata-se de uma metáfora gasta? Talvez. Mas insisto em dizer
que a experiência poética é singular:
Bom eu me identifico muito com a borboleta pelo fato dela ser sensível,
e por que ela só quer ser livre pra voar, ela se cansa e quer repousa,
assim sou eu desajeitada, confusa alegre e triste ao mesmo tempo, mas
sempre a procura da liberdade do prazer de viver intensamente...
Como as Borboletas tenho meus dias e horas de beleza, vontade de ficar
sozinha em meu casulo.
Assim sou eu como as borboletas (Ártemis, EJA, 2017.),
Essa borboleta parece eu do uma rápida volta ali no canto e volto, e
quando fico bêbado também ando torto e não gosto que me toque e claro
se eu ver uma árvore eu deito perto dela se eu acordo porre e liso pois
os ladrões me roubarão ninguém fica totalmente sozinho por muito
tempo sempre tem um zé mané para mexer com a borboleta e a gente
enfim é isso (Heleno, EJA, 2017).
Nas duas recepções há uma identificação com a borboleta, quando o leitor
completa o sentido do texto pela sua própria vida, recupera na palavra algo que para eles
dá significância à maneira como se sentem. Para Ártemis, o seu momento de cuidar de si
mesma é como o instante que a borboleta está em seu casulo, e aqui chamo atenção para
o fato de que no texto o autor não faz uma referência direta ao momento de metamorfose
da borboleta. Essa informação é completada pela intérprete, é algo que ela sabe. Já Heleno
traz a imagem pintada pelo autor da borboleta em voo para o seu próprio vagar e, como a
borboleta, para ao ver uma árvore. O que o texto suscita em ambos a imagem, “o leitor se
inclina e se precipita. E ao cair—ou ao ascender, ao penetrar nos aposentos da imagem e
entregar-se ao fluir do poema—se desprende de si mesmo para entregar-se em “outro si
mesmo” (PAZ, 2012, p. 175).
Ainda no que tocou o trabalho com esse texto, há uma recepção que revelou como
pela escritura os intérpretes podem dizer-se mais. Há situações que só saem de nosso
corpo escrevendo, dores, angústias e receios que a voz não é capaz de revelar, mas que a
letra é capaz de expurgar. Dentre os textos produzidos pelos intérpretes da EJA, muitos
vinham acompanhados da interrogativa: “Mas a senhora vai ler pra alguém?” ou então
do pedido: “Mas é só pra senhora ler, professora!”. Percebi que naqueles escritos havia
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para além da recepção do texto poético, segredos, desejos, bem como relatos de suas
vidas. Como na recepção que segue:
Eu saio de manhã para trabalhar, como a borboleta sai pra voar em
zigues zagues, eu trabalho das 8h da manhã até meio dia eu paro para o
almoço e depois volto e fico até 17:30 no meu trabalho todo dia sinto o
cheiro de óleo diesel e fico tonto as vezes, mas é muito bom trabalhar
sentir o teu dinheiro livre, de um trabalho honesto.
E eu não sou mais o antigo Ícaro. que pegava os bens das pessoas, hoje
eu sou um novo Ícaro. livre alegre e sorridente como a vida que eu levo
voando como uma borboleta (Ícaro, EJA, 2017).
“Cada leitor procura alguma coisa no poema. E não é nada estranho que a
encontre: já a tinha dentro de si” (PAZ, 2012, p.32). Somente após ler a recepção de Ícaro
percebi o quanto o seu pedido e a sua preocupação em manter sua escrita longe de olhos
curiosos, inclusive da professora Atena, era pertinente. A recepção se constitui em um
relato íntimo de um rapaz que aponta a dureza suas condições de trabalho, que para ele,
são apaziguadas por trazer-lhe um ganho de vida honesto, sua fruição encontra na leveza
da borboleta sua própria metamorfose.
Com as crianças do 6º ano, “Lição de Borboleta” selecionei três maneiras de
receber o texto: uma criação de história, uma definição e uma cantiga, em que lemos
respectivamente:
Era uma vez, um belo casulo de borboleta tão lindo que eu observava
todo dia de manhã, só que um dia, o casulo não estava mais lá porque
uma linda borboleta nasceu. Ela era roxa e rosa, tão linda que até me
impressionava quando ela voava (Hera, 6º ano, 2017).
A marca “era uma vez” acompanha grande parte das histórias que as crianças
conhecem, a narradora traz para sua história a palavra que acompanha o nome borboleta
quase como um par: casulo. Em poucas linhas a intérprete consegue estruturar uma
pequena narrativa com princípio, nó e desenlace. A recepção que aparece a partir de um
conceito e se completa pelo desenho:
Borboleta é um inseto que faz as crianças e adolescentes se alegrarem,
ela é uma lesma que vira borboleta tem várias cores. Tipo amarela, azul,
e marrom e quando ela pousa numa flor amarela ela fica invisível. FIM
(Páris, 6º ano, 2017.)
A experiência que Páris recordou com o texto foi sua visita a um borboletário, a
escolha de pintar uma borboleta em amarelo especifica a espécie que ele viu, bem como
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remete às cores das flores que fazem parte da paisagem que ele vive, que no desenho
explica-se por si mesmo:
Imagem 10: Borboletário
Há a recepção desenhou-se no exato momento em que concluímos a leitura do
texto, Aquiles começou a cantarolar uma cantiga, “Borboletinha/ tá na cozinha/ fazendo
chocolate para a madrinha/ Peti peti/ perna de pau...” Nesse momento já comecei a
tecer as relações que envolvem a tradição oral, a movência e na forma que esta cantiga,
que também tinha feito parte de minha vivencia infantil, chegar até aquele aluno, que após
sua performance perguntou: “Professora, eu posso escrever essa música na minha folha?
É que lá em casa eu escuto todo dia no DVD da Galinha Pintadinha, por causa da minha
irmãzinha”. E na sua folha encontrei a recepção em desenho do texto:
100
Imagem 11: Mônica e borboleta
Borboletinha tá na
cozinha Peti Peti,
Perna de Pau
olho de vidro nariz
de Pica Pau
Pau Pau Pau
Pau Pau.
(Aquiles, 6º ano, 2017)
Na fala do intérprete encontro uma cantiga popular tradicional que na atualidade
se move por um suporte digital. É possível relacionar a maneira que o leitor trouxe a
lembrança da canção à ideia que Bergson (2006) teoriza sobre os graus de duração da
memória. Como Aquiles escuta com uma certa frequência a cantiga, o que se fixa do texto
em sua recepção é a figura da borboleta, porém os outros elementos presentes no texto
aparecem em seu desenho: a borboleta em voo e em pouso e as flores, a relação se dá
porque o intérprete não desenha a mensagem da cantiga, ela é a sua referência mais
próxima em relação ao elemento principal: a borboleta.
Outro elemento importante trazido no desenho é a personagem Mônica, dos
quadrinhos de Maurício de Souza, figura que o intérprete reproduz também pela memória
101
recente, visto que ele não fez uma cópia de nenhuma imagem que tivesse às mãos, mas a
partir da sua lembrança de como é o desenho. Com a polifonia presente em sua recepção,
o leitor exige que “ativemos a participação da imaginação criante” (BACHELARD,
1988), que vejamos Mônica embalada pela cantiga tocando a borboleta em voo.
A memória sempre foi fio condutor das recepções de muitos textos, mas houve
um texto em que os intérpretes antes mesmo de terminarmos a leitura já faziam
comentários, lembravam suas histórias de infância, falavam das tradições. O encontro foi
na véspera de São João e Banho de Cheiro de Eneida (1989) trouxe muitos e muitos arrais
para nossa leitura em roda.
102
Banho de cheiro
De Santo Antônio não sou íntima, tampouco de São Pedro. Remexendo
lembranças, acendendo o passado, não os encontro impressos ou esboçados em nenhuma
fase de minha vida.
De Santo Antônio sempre ouvi falar maravilhas em matéria de amor: fêz
casamentos que pareciam irrealizáveis, uniu lares desfeitos, alimentou sonhos,
esperanças, desejos, ambições sentimentais. Emprego os verbos no passado, se bem que
saiba que o santo português—que é tenente-corporal do Exército brasileiro—continua,
hoje como ontem, em sua bela faina de proteger amôres, e mais do que protege-los,
resolvê-los satisfatoriamente. A Santo Antônio nunca solicitei favores; nunca sei pedir
nada para mim mesma a ninguém, nem mesmo a meus melhores amigos. Consegui, nos
momentos precisos, resolver sozinha meus romances. Hoje dele nada mais espero, desejo
ou quero.
De São Pedro quase nada sei, a não ser que guarda as chaves do céu, lugar que
com certeza jamais conhecerei.
Mas com São João o caso muda inteiramente de figura; São João é personagem
de minha infância; de São João sou velha e dedicada amiga.
Aprendi a amá-la muito cedo. Creio mesmo que êle deve ter sido um dos primeiros
amôres de minha vida, e ora contarei por que São João e eu somos tão íntimos: em minha
terra, na longínqua e amada cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, há uma prática
extremamente bela e perfumada, que se chama banho de cheiro ou banho de felicidade.
Quereis aprender a fazê-lo? A receita é simples, e transmitindo-a, cumpro um dever, pois
de coração vos desejo, a todos, muitas felicidades.
Tomai de uma lata de banha bem limpa. Dentro dela, com bastante água jogai
folhas, raízes, madeiras cheirosas da Amazônia que, raladas, esmagadas—verdes pela
juventude ou amareladas pela velhice—darão, depois de fervidas, um líquido esverdeado,
com estranho perfume de mata virgem.
Perdoai se os nomes dessas ervas parecem selvagens aos vossos ouvidos
habituados aos caros, raros e belos perfumes franceses, cujos rótulos lembram romances
e poemas. Nossos aromas, primitivos, agrestes, são frutos da floresta e, com eles,
naturalmente nossos avós índios também se perfumavam; se não recendiam aquêle odor.
É porque—sabeis—os índios têm cheiro de terra.
Eis as platas necessárias ao banho da felicidade: catinga de mulata, manjerona,
bergamota, pataqueira, priprioca, cipó catinga, arruda, cipoíra, baunilha (só uma fava) e
corrente. Deixai ferver e ferver muito. Depois—ah depois...—deixai esfriar e está pronto
o vosso banho de São João, que deve ser tomado à meia-noite de 23 de junho para abrir
as portas de todas as venturas. São João ajudará.
Manhã cedo, no meu atempo de menina—perdoai se gosto tanto de ressuscitar
meu passado—nas vésperas de São João, a cidade amanhecia festiva, com a correria de
homens carregando à cabeça tabuleiros cheios das ervas da felicidade. Seus pregões
embalavam as mangueiras que arborizavam as praças e a ruas da Belém de meu tempo.
—Cheiro cheiroso ! ( a pronúncia local: chêro chêroso.)
103
Eram muitos, muitos; janelas e portas se abriam em todas as casas. Quem deixava
de comprar seu banho para aquela noite? Nos fogões e nas fogueiras—as mesmas que
iriam iluminar a noite do santo, —a grande lata fervendo. São João ia chegar encontrando
nossos corpos perfumados, prontos nossos corações para a felicidade. No cabelo das
curibocas, jasmins e maços de patchuli recendiam.
Na casa de meu pai, meninos brincávamos com balões, soltávamos estrelinhas em
pontas de varas para não queimarmos as roupas, lançávamos para o ar as pistolas. Naquele
tempo não havia, como hoje, bombas e morteiros trágicos, violentos, barulhentos, que
tornam nesta cidade chamada Distrito Federal—e tão minha amada—o mês de junho um
mês de guerras. No meu tempo de menina em conjunto chamávamos foguetinhos.
Os foguetinhos: as estrelinhas saindo daquele bastonete, tão bonitas, tão claras
enquanto gritávamos: “Minhas estrêlas são as mais bonitas! Tenho mais estrelas do que
tu!” cada bola de cor que nascia de uma pistola era um grito de alegria. Naquele momento
não compreendíamos porque havia pistolas se negando a soltar bolas de côr; não sabíamos
ainda da existência de pessoas e foguetinhos que jamais realizam seus destinos.
Alto, muito alto, subia a língua vermelha das fogueiras. Tínhamos o direito de,
naquela noite—rara noite—dormir mais tarde, porque no dia de São João nascera meu
pai e , à meia-noite, mesmo que ela estivesse coberta de cristais, no quintal corria, em
cuias pretas, o munguzá.
Armavam-se ou aproveitavam-se as fogueiras que haviam servido para ferver o
banho da felicidade. Saltávamos gritando: “São João disse, São Pedro confirmou que
havemos de ser compadres que Jesus Cristo mandou.” Podíamos ser compadres e
comadres, primos, noivos, tudo que escolhêssemos em parentesco, porque o dom das
fogueiras juninas é criar a ampliar novas famílias, formar laços até então inexistentes.
Somos muito amigos, por tudo isso, São João e eu. Nunca houve na minha infância
o raiar de um 24 de junho sem que minha família tivesse sido aumentada: à sombra da
fogueira onde corria o munguzá muitas vezes madrinha fui; meus primos se tornaram
multidão.
-— Irmã, não. De irmã não pulo com ninguém. Irmã só mesmo de meus irmãos!
(Tolices de menina, perdoai. Só depois aprendi, com orgulho e alegria, a grande
quantidade de irmãos que tenho espalhados pelo mundo.)
Havia muito mais, e isto dizendo, estou a vê-la agora mesmo sentada num trecho
do Mercado, sobre um banquinho, tão cheirosa na sua roupa cerzida, muito limpa. O
cabelo em coque, e dentro dele um ramo de jasmins bogaris. Ah, os jasmins bogaris de
minha terra, tão escandalosamente perfumados que, se muito usados, podem até provocar
vertigens; foi o que me contou, aconselhando cuidado, a preta Marcolina.
Mas quero falar é da outra, a do banquinho, e seus pés um mundo de plantas,
raízes, favas, ervas de vários fetios, cheiros, formas. Chamava-se Sabá e foi uma das
pessoas mais estimadas de minha mocidade. Contava-me estórias maravilhosas do mundo
vegetal, estórias que depois dela não mais encontrei em nenhum livro, em nenhum pedaço
de vida.
Sabá era, como já disse, uma cabocla paraense que vendia banhos de felicidade
no mercado de Belém. Eu perguntava, segurando uma batata:
—Que isto? Para que serve?
104
—Isso é batata de vai-volta. Se você tiver um namorado, se êle lhe deixar, tome
um banho com essa batata que êle volta correndo.
Narrava casos excepcionais: sua prima um dia fora largada pelo marido. Coitada,
cheia de filhos. Sabá preparara um banho com a batata de vai-volta. Terminaram assim:
—Foi dito e feito. Estão aí felizes muito juntos.
Sabia com dignidade e eficiência a ação de todas aquelas plantas. Mulher precisa
agarrar marido, namorado ou outro qualquer amor que começa a ser infiel? É só tomar
banho com carrapato.
—Esfrega-se no corpo dizendo três vezes seguidas: carrapato, assim como tu te
prendes nas árvores faz com que fulano se agarre em mim.
— E agarra mesmo?
Sim, eu gostava de acreditar. E Sabá afirmava com tanta convicção a eficiência da
trepadeira, ilustrando-a com novelas vividas. Muitas plantas para vários efeitos: para se
arranjar namorado, para se ter sempre dinheiro, para que a inveja e o mau-olhado não
perturbem nossa vida.
—E isto para que serve?
—É cachorrinho, meu bem; é a melhor coisa do mundo para amansar gente de
mau gênio.
Sabá vendendo banhos miraculosos no ando com ervas os amôres, fortalecendo
com plantas lares quase arruinados. Sabá amansando, colaborando, construindo. Homens
com tabuleiros gritando “Chêro chêroso”, balões subindo aos céus sem construírem
perigo, fogueiras crepidando, banho de cheiro fervendo, castanhas pulando quentes do
meio do fogo, munguzá em cuias, famílias crescendo, as festas caipiras, os ramos de
jasmins e os Boi-Bumbá vindo para a porta entrar: Quantas bandeirinhas de papel de côr!
Que mundo de lanternas japonesas!.
São João e eu somos velhos amigos; distanciados agora porque moradora de
grande cidade, no meu bairro, São João é uma guerra. Longa, interminável guerra que
começa antes do dia nascer e entra pela noite sem modificações. Não há poesia no São
João carioca, mas foi justamente o barulho ensurdecedor das “ cabeças-de-negro” e dos
“busca-pés” ( não serão bombas atômicas?) que me levaram a evocar São João de minha
infância.
Não posso assegurar que o mesmo quadro do passado se reproduza hoje na cidade
onde nasci. Ela mudou muito; é agora uma triste e envelhecida cidade, arrasada pela
miséria e os maus governos.
A primeira vez que voltei a Belém, depois de quinze anos de ausência, procurei
Sabá. Morrera havia muito—disseram—e infelizmente não deixara receita de nenhuma
erva que dê à gente de minha terra um pouco de dinheiro.
O banho de cheiro ainda existe até hoje e é cultivado por muitas gente (inclusive
por mim, mesmo à distância); pode ser comprado já pronto no mercado ou em casas que
se dedicam aos perfumes da Amazônia. Não resolve nenhum problema, nem sequer traz
esperança, mas continua perfumando os corpos, neles deixando o cheiro de mata virgem.
Presumo qual a pergunta que nasce neste momento em vossos corações. E assim
respondo:
105
—Sim, continuo como no passado, tomando o meu banho de cheiro, não mais à
meia-noite, mas sempre nas vésperas de São João. Se sou feliz? Plenamente. Nunca
acreditei que o banho de cheiro desse felicidade, mas asseguro que possuo construída com
minhas mãos, minhas ações, minha cabeça. Minhas mãos e minha cabeça, é verdade,
encharcadas de banho de cheiro.
São João abandonou minha cidade e sua gente. Por quê?
(MORAES, 1989, p. 68- 77)
106
No primeiro momento quando viram o tamanho do texto ouvi muitos comentários
como “Má su peste, tudo isso!”, ou “Égua, fessora, a senhora vai castigar a gente hoje
é?” (Intérpretes, EJA, 2017). Não dei atenção para as reclamações, comecei a leitura e
antes mesmo de virar a primeira página já estavam todos envolvidos. As lembranças
embalaram nosso encontro com intensidade, todos queriam falar, sem exceção, e todos
escreveram e até desenharam fogueiras e bandeirinhas. Em meu recorte trago três vozes:
A minha relação com o são João é desde infância quando já dançava na
escola, e minha mãe antes já dançava em quadrilhas de disputa, e o
sonho dela era me ver dançar, e esse ano finalmente eu iria realizar o
sonho dela, e meu, de sair em quadrilha de disputa. Porém não deu certo
pois fiquei doente com depressão, e tive que sair da quadrilha em
março. Eu adoro São João, amo as comidas e as canções e como todos
sabem adoro dançar rsrs. Mas se deus quiser ano que vem eu saio, e vou
arrasar no palco da Funbel (Dionísio, EJA, 2017).
Um dos meus meses favoritos e época de São João não só pelas danças
juninas, mas também pelas comidas, a minha favorita e a canjica. Me
recordo das festas juninas que os moradores organizavam, das
bandeirinhas nas ruas e dos fogueiros. Minha mãe fazia questão que
todos os anos no mês de junho eu e minhas irmãs saíssemos com
vestidos de quadrilha e meu pai comprava os melhores estalinhos e
foguetinhos. Esse dia era um dos melhores da minha vida, por que não
somente brincava e comia os melhores e mais gostosas comidas, mas
também estava na companhia da minha família (Pandora, EJA, 2017).
Bom, meu nome é Anis tive bastantes experiências. Quando criança
lembro que dançava quadrilha no colégio que estudei, era colégio de
freiras e como era colégio só para meninas nós tínhamos que nos vestir
de meninos esse foi meu primeiro ano. No segundo ano me vestir de
menina. Ah! Me lembro que quando tinha dança na minha rua e sempre
vinha aquele boi eu morria de medo eu sempre saia correndo do boi.
Porém, não faço mais parte dessas coisas, pois sou evangélica e não
participo mais. Dessas festa e comemorações (Anis, EJA, 2017).
A fim de encerrar esta sessão, concluímos pela amostra da recepção dos poemas
do livro Banho de chuva de Paulo Nunes (2010), utilizados com as turmas da EJA, três
poemas que falam de três personagens da cidade de Belém: Pupunheiro, Garrafeiro e
Guarda-noturno. A escolha levou em consideração a ligação desses personagens com o
cotidiano do leitor amazônico, a partir do horizonte de expectativas que a Estética da
Recepção propõe, trazer pela poesia de Nunes (2010) o cotidiano recriado para
experiência dos alunos da EJA.
107
Pupunheiro
O sol fala roto de rendilhado
E o pupunheiro
—de tabuleiro na mão—
vende pupunha fresquinha
por menos de um tostão:
—pupunhê cozidêêê!
Vermelha verde ou amarela
o pupunheiro
casca descasca casca
e impressiona de prosa
a venta da acessa freguesa:
—Freguesa, freguesa,
beleza se põe na mesa!
Um lote por um real
Bom, barato e sem sal...
(na dúvida da freguesa
o venderim enfeita o pavão)
—Pupunhê cozidê,
um maço por um tostão!
Nos cantos da minha cidade
meses de abril, maio e junho
haja fome
haja perfume
para comer tanta pupunha.
Faça chuva, faça sol
Nas ruelas becos e praças
Ouvidos deitam falação:
—Pupunhê cozidê,
O lote por um tostão”
(NUNES, 2010, p. 26-7)
Garrafeiro
Seu Antônio empurra
um carro e vende sonho.
—Quer vender garrafa,
madame?
O rosto de seu Antônio
Forma estradas de ruga e
mágoa.
Todo magrinho
Seu Antônio
assovia feito passarinho.
—Quer vender garrafa,
doutor?
Seu Antônio conta histórias
De bruxas e fadas e o
Molecada escuta boquiaberta.
Certa vez, seu Antônio,
ao comprar uma garrafa,
descobriu um gênio dentro
dela.
Seu Antônio fez três
pedidos...
E quando demos por nós
O velhinho tinha virado anjo.
(NUNES, 2010, p.23)
O guarda-noturno
O guarda-noturno,
olhando a lua,
guarda nos ombros a solidão
da rua.
O guarda, franzino,
com seu bonezinho,
enfeita o olhar do menino.
Calçado em sua bota preta
O guarda faz par com o vira-
lata Chapuleta.
O apito do guarda-noturno
avisa pra gente
que o sono assina e assanha
o sonho.
As casa batem pestana,
as janelas bocejam
e o guarda-noturno espeta o
silencio:
pri piiii
pri piiii
Quem disse que anjo
não anda na Terra?
Quem duvida, perde a vida
come cascão de...
Bem, quem duvidar é só
passar
À noite na rua Ladeira,
que um homem magrinho, de
imensas
botas pretas
caminha guardando
sombras nas gavetas...
O Guarda-noturno
Guarda o quê?
As flores do sono
virando buquê
(NUNES, 2010, p. 18-19)
108
Logo em sua primeira leitura, o poema causou um muxoxo pelo verso “Pupunhê
cozidê” que todos os alunos disseram “Nunca ouvi pupunheiro gritando isso, professora”
e pediram para que durante a leitura trocássemos verso por “Olha a pupunhaaaa”. O
pedido nos remete aos escritos de Paz (2012) quando fala da recriação de um poema:
O poeta sempre consagra uma experiência histórica, que pode ser
pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas, ao falar-nos
de todos de todos esses fatos, sentimentos, experiências pessoas, o poeta
nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante
de nós e em nós. Ele nos fala do próprio poema, do ato de criar e
nomear. E mais: também nos leva a repetir, recriar seu poema, nomear
aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, nos revela o que somos (p. 197).
Ao propor essa troca de versos pelo o que conhecem eles recriam o poema, trazem
para a sua experiência, fato que também se mostrou em uma recepção:
Olha a punpunha!!!
Kkkkkk......
Punpunha é bom...
Com café, com doce de leite, com feijão.
Farofa de punpunha quem não gosta de punpunha não sabe o que tá
perdendo ou seja de outro mundo... rs rs rs... (Jocasta, EJA, 2017)
Um intérprete relembrou a sua vivência como vendedor de rua:
Passei um ano vendendo caranguejo na rua no sábado e no domingo de
manhã eu sei como é a venda nas ruas eu vivi essa experiência as
pessoas vendo um jovem na rua se sacrificando no sol trabalhando não
roubando as pessoas me elogiando é muito bom trabalha.
De certeza esse pupunheiro teve oportunidade igual eu na vida de estuda
para se sacrifica na rua. Se a gente trabalha de dia e estuda de noite
cresce na vida porquê? Eu não me contentava vender na rua eu procurei
uma melhora hoje em dia eu tenho uma profissão graças a DEUS.
Amém (Ícaro, EJA, 2017).
A intérprete da recepção abaixo, num primeiro momento, mostrou resistência em
escrever sobre o poema, justificando não saber o que escrever. Expliquei se não tivesse
nada para escrever ou dizer sobre o poema naquele momento, poderia fazer depois ou não
fazer, ao que ela explicou: “Ter, eu tenho, professora. O meu pai trabalha com pupunha
Mas a senhora vai ler pra turma?”. Mais uma vez, no pedido de segredo, havia matéria
de vida que se revela no mundo real absorvido pela poesia:
109
Vida de quem planta pé de pupunha cuida até crescer e ter o fruto.
Meu pai planta, colhe e vende eu acompanhava toda a rotina dele de
cuidar, pegar os pés das pupunheiras e um trabalho cansativo mais é um
trabalho bom pra quem gosta pois é muito trabalho valido a pena porque
vendemos também (Dafne, EJA, 2017).
Para encerrar as recepções desse poema, aquelas que buscaram na memória
familiar:
Pupunheiro, me lembra cafezinho da tarde, com bastante pupunha e
lembro que eu e minha irmã ficávamos na janela de casa as 15:30
esperando o pupunheiro passar pra chamar a nossa mãe pra comprar,
dois copos de pupunha um copo pra mim e outro pra minha irmã e era
bem legal, agente sentava ao redor da mesa e ficava conversando
tomando café com pupunha. (Pandora, 441, 2017)
E numa tarde bonita com os pássaros a cantar e o arco-íris a brilhar e a
família a festejar a mãe perguntava:
-Quem vai querer pupunha com café?
E todos já estavam na mesa antes dela colocar as pupunhas brilhando.
E todos os dias quando o pupunheiro passava gritando:
--Olha a pupunha tem de 1 tem de 2 e tem de 3.
Eu sabia que ia me reunir com aminha família amada. E saborear esse
sabor do meu Pará. (Vênus, EJA, 2017)
Os escritos das duas intérpretes caminham pelo terreno do devaneio, em ambas o
tom saudoso, para lembrar Drummond em que “as coisas findas muito mais que lindas,
ficarão”. Conforme Paz (1992, p.198):
o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser
completada e vivida por um novo leitor. A novidade dos grandes poetas
da Antiguidade consiste na sua capacidade de ser outros sem deixar de
ser eles mesmos. Assim, aquilo que o poeta fala se transforma, para o
leitor, naquilo que está implícito em todo o dizer poético e que é o
núcleo da palavra poética: a revelação da nossa e sua condição consigo
mesma. [...] A experiência poética—original ou derivada da leitura—
não nos ensina nem nos diz nada sobre a liberdade: é a própria liberdade
se expandindo para tocar em algo e assim realizar por um instante, o
homem.
Tal incompletude do poema mostrou-se genuína nas recepções de Garrafeiro:
110
Brincava na rua e bem lá na esquina já avistava, seu garrafeiro, corria
depressa e perguntava pro papai
-Pai, pai o senhor tem garrafa, lá vem o tio do doce..
--Pega as garrafas e traz pra suas irmãs também
Chega meus olhos brilhavam de tanta alegria.
E todos os dias eram assim cercado de ansiedade, a espera de um
senhorzinho. Que não somente trazia o algodão doce mas também o seu
sorriso e generosidade. Dava pra ver em seus olhos a felicidade que
tinha em fazer as crianças felizes.
Com certeza o seu Antônio da minha infância era meu anjo (Vênus,
EJA, 2017).
Lembro muito bem desse homem e bom compartilhar essa emoção
correndo na rua vendo o garrafeiro passa dando sorvete em troca de
garrafa ou algodão doce. Vamos ser sinceros eu adorava quando esse
homem passava procurando garrafa rápido todo mundo, magrinho seu
Antônio assoviava feito passarinho (Ícaro, EJA, 2017. Grifo meu).
A recepção busca no passado a memória desse personagem. Em ambas as
respostas vemos o nome Antônio, que já não é garrafeiro somente do poema, é o
garrafeiro de sorriso gentil de Vênus e o que emociona Ícaro correndo na sua rua. Se
observamos bem o intérprete reescreve o verso ‘assovia feito passarinho” no passado:
assoviava. Marca que fala de algo que ele viu em suas lembranças suscitadas pelo poema.
Essas intervenções dos intérpretes são possíveis porque
O poema é criação original e única, mas também é leitura e recitação:
participação. O Poeta o cria; o povo, ao recitá-lo, recria, Poeta e leitor
são dois momentos de uma mesma realidade. Alternando-se de uma
forma que não é incorreto chamar de cíclica, sua rotação engendra a
faísca: a poesia (PAZ, 2012, p.46).
Já na recepção que segue a intérprete ainda encontra esse personagem no presente:
Na rua da minha casa tem um senhor que troca garrafa por sorvete, e se
der uma retornável ele dá 3 sorvetes, ele parece uma pessoa muito triste
Eu até entendo ele. Quem gosta de ficar no sol das 13:00 hrs da tarde.
Uma vez eu dei um prato de comida pra ele pois percebi que ele estava
com fome, ele me agradeceu com 5 sorvetes (Artémis, EJA, 2017).
Com o poema o guarda-noturno, os comentários não tiveram o tom nostálgico das
recepções anteriores, visto que no contexto dos intérpretes o guarda noturno é uma figura
comum, o caráter construtivo da recepção do poema mostra como cada um volta-se para
si mesmo, para o personagem de sua experiência. Após a leitura do poema muitos
comentaram que o guarda noturno era como um som, inclusive um intérprete brincou
111
dizendo: “Professora, tem guarda noturno na minha rua, mas ele é tipo o Lombardi9
porque eu nunca vi só escuto o apito dele” (Jair, EJA, 2017). Essa brincadeira causou
riso e muitos comentários na turma como: “Maisolha essa nova!”; “Sá piada pôco
velha” (Intérpretes, EJA, 2017). Para além dos muitos comentários e histórias que os
intérpretes fizeram sobre esse personagem da cidade em suas recepções lemos:
O guarda-noturno da minha rua é um cara de pau rsrs..
Ele só aparece nos dias de pagamento, nos dias 3,4,5,6,7,8. depois disso
ele some deixando os seus clientes sem proteção sem a vigília. Nos dias
que ele aparece, ele passa a maior parte do tempo dormindo e quando
amanhece ele vai embora como se nada tivesse acontecido. Tipo eu
acho que se ele tá ali pra vigiar o certo e ele passar a noite toda vigiando.
Mas enfim, essa é minha história. (Ártemis, EJA, 2017)
O guarda noturno não é somente o homem que protege a nossa rua e
sim aquele que protege o nosso sono, nossa casa. A lembrança dele é o
apito as 00:00 hs em ponto Que quando criança, a minha mãe sempre
me falava ‘Olha está escutando o guarda, ele tá avisando que tá na hora
de dormir.’ Criança olhava pela janela e sabia que podia dormir em paz,
por que tinha aquele homem todo de preto na esquina da minha casa
com a sua cadeira e seu apito. O guarda é o herói dos moradores. Saber
que tem um homem na esquina, velando pelo sono e da minha família
é um sentimento de gratidão (Vênus, EJA, 2017).
Duas visões diferentes: a primeira intérprete escreve o que já tinha comentado
oralmente, para ela o guarda noturno presta um serviço, assim o tom de melancolia do
poema não lhe alcança, diferente de Vênus que traz um certo compadecimento do
personagem, por sua recepção atravessam dois tempos: o passado de sua lembrança de
criança e o presente em que ela diz ter um guarda noturno.
Guarda noturno via as casas na madrugada vira a noite fazendo favor
para os donos da casa faz companhia para a cachorrada da rua e para
lua lá vem ele na sua bike pri pri pri
Chegou o sol lá vai ele sossegado para sua casa (Eros, EJA, 2017).
Já para esse leitor o guarda faz um favor, observamos que em sua escrita há muitos
elementos do poema: os cães, a lua e a onomatopeia. Mas o intérprete acrescenta a sua
experiência pela presença da bicicleta, singularidade contemporânea.
9 Luís Lombardi Neto foi um locutor brasileiro de rádio e televisão, famoso por anunciar produtos
e quadros em um programa da televisão brasileira. Sua imagem era praticamente desconhecida
do grande público até o fim dos anos 2000.
112
Por fim, os escritos da intérprete que traz a experiência por um viés mais próximo
ao personagem do poema:
Achei muito legal o texto, pois o meu pai é guarda-noturno e esse texto
acaba nos mostrando como o guarda-noturno se sente. E uma
profissão bem perigosa, pois quem vai querer ficar na rua, quando
poderia estar dormindo na sua casa dormindo, gostei mesmo do texto
pois eu convivo com esse tipo de profissão. E peço que Deus guarde
todos os guarda- noturno que protegem nossos sonos! (Pandora, EJA,
2017. Grifo meu)
A intérprete encontra no poema significados que evoluem para a maneira que
entende que seu pai, como guarda noturno, se sente. As palavras tocam sua relação
afetiva, confirmadas pela maneira assertiva em como afirma seu apreço pelo poema.
Como vimos nesse percurso, em cada recepção uma construção passível de
variação, livre das respostas engessadas a cada texto:
o leitor repete a experiência descrita nos capítulos anteriores. Essa
repetição não é idêntica, claro. E, justamente por idêntica, é válida [...]
E se o leitor penetra de fato em seu ambiente elétrico, produz-se uma
recriação. Como toda re-criação, o poema do leitor não é uma réplica
exata do poema escrito pelo poeta. Mas, se não é idêntico em relação a
isto ou aquilo, ele o é quanto ao ato de criação: o leitor recria o instante
e cria a si mesmo. (PAZ, 2012.p.198)
A recriação do leitor por sua experiência que enche a página em branco de
palavras que vem ao seu pensar livremente. É oportuno ressaltar que esse movimento se
faz pelas bibliografias não oficias, pelas leituras às margens, porque estão fora da escola,
mas que os encontra no caminho pelas amazônias poéticas, e neste andar optamos a
experiência pela encruzilhada em que se encontra o perto, a presença, a poesia pulsando,
pulsante. Movidos e (re)unidos pela mesma poesia sem aura.
3.1 O desenho do verbo
No descomeço era o verbo
Só depois veio delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: “Eu escuto a cor dos passarinhos.”
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
Delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos—
113
O verbo tem que pegar delírio.
(O livro das Ignorãças, Manoel de Barros)
A Literatura é uma das melhores maneiras de entendermos algumas mudanças no
curso de nossa vida. Há pesquisadores que no curso da pesquisa abandonam
completamente as leituras que não sejam de seu campo teórico; como leitora, esse nunca
foi um caminho para mim, e assim muitas Leituras Literárias vieram fazer parte deste
corpus, porque a Literatura não pode esperar a pesquisa acabar, e assim como a poesia
ela é alimento desta escritura. Por isso, para começar essa sessão trago o trecho de uma
dessas leituras, nele há as considerações de pai sobre um desenho de sua filha, aqui muito
pertinente para as recepções que teremos a seguir:
Cuido do cozimento dos ovos quentes enquanto Lison desenha em
silêncio, a mão fechada sobre a ponta do lápis. Finalmente o desenho,
ela vem me mostrar, e eu exclamo oh, que desenho bonito, sem tirar os
olhos do ponteiro de segundos do meu relógio. É um homem gritando
dentro da cabeça dele, explica a artista. Isso mesmo: da cabeça de um
homem preocupado sai outra cabeça gritando em dois balões e alguns
traços que dizem tudo. Os desenhos das crianças são como os ovos
quentes, obras-primas únicas mas ao mesmo tempo tão numerosas,
neste mundo, que nem o olho nem as papilas gustativas lhes prestam
devida atenção. Se os isolamos, porém esse ovo dominical ou esse
homem que grita dentro da sua cabeça, se nos concentramos
integralmente no sabor do ovo e no sentido do desenho, tanto um quanto
o outro acabarão por se impor como maravilhas fundadoras. Se todas
desaparecessem e sobrasse apenas uma galinha, as nações lutariam pela
posse do último ovo, pois não existe nada melhor do que um ovo quente
e, se restasse apenas um desenho de criança, leríamos tudo neste único
desenho!
Lison está naquela idade em que toda criança usa o corpo inteiro para
desenhar. É o braço todo o que desenha: ombro, cotovelo e punho. Toda
a superfície da página é requisitada. O homem gritando dentro da
cabeça dele se espalha por uma folha dupla arrancada de um caderno.
A cabeça que grita e que sai da cabeça preocupada (preocupada ou
cética?) ocupa todo o espaço disponível. Um desenho em expansão.
Daqui a um ano, a aprendizagem da escrita vai se impor a essa
amplitude toda. A linha ditará a sua lei. Ombro e cotovelo colados ao
tronco, punho imóvel, o gesto se reduzirá à oscilação do polegar e do
indicador exigida pelos minuciosos contornos das letras. Os desenhos
de Lison serão vítimas dessa submissão à qual devo a minha caligrafia
tão absolutamente legível. Depois de aprender a escrever, Lison passará
a desenhar coisas menores que flutuarão na página, desenhos atrofiados
como eram antigamente os pés das princesas chinesas. (PENANC,
2017, p.146-147)
114
Cada leitor encontra um modo que se sente mais à vontade de expressar sua
recepção e, no decorrer desta pesquisa, alguns deles encontraram no desenho a sua melhor
maneira de dizer aquilo que não coube no texto escrito. Essa situação se deu de forma
quase exclusiva com os alunos do 6º ano, em pouquíssimo tempo a cada chegada em sala
de aula era recebida com a pergunta: “Professora, a gente vai poder desenhar hoje?”
(Valdo, 6º ano, 2017). E assim, para além de escrever, eles encontraram principalmente
em seus desenhos a liberdade de preencher a página em branco.
A criança ainda traz uma ligação muito forte com o universo colorido dos
desenhos, traz a experiência que envolve as primeiras aproximações com os lápis, com a
folha em branco que outrora ela podia preencher com as figuras que moram em sua
imaginação. Carrega a memória recente de tudo o que o corpo aprendeu na primeira
infância. A maioria ainda traz de casa aquele estojo com motivos infantis que guarda
desde o lápis de cor até a primeira caneta esferográfica, que elas vão estrear nesta série.
Quem de nós professores nunca ouviu a pergunta “É para escrever de caneta ou e lápis,
professora?”.Pois se como no delírio do verso manolês a criança muda a função do verbo,
nas recepções que seguirão a criança desenha o verbo.
“No francês antigo, o verbo escrire significa tanto “desenhar” ou “pintar” quanto
traçar letras: a escritura é uma figuração” (ZUMTHOR, 1993, p. 125). Nossa intenção
foi dar-lhes o direito de escolher outra maneira de expressar seu sentir sobre os textos
partilhados, permitir que escritura, enquanto figuração, fosse restituída ao seu convívio
em sala de aula, para que a linha do papel não dite sua lei sobre a imaginação destes
intérpretes.
Mas como ler esses desenhos? Quem nos auxilia neste olhar é Bachelard (1988),
a partir de seus “Devaneios voltados para a infância”, da obra “A poética do devaneio”.
O filósofo fala sobre a imagem da infância, as imagens que uma criança pode fazer são
manifestações da infância permanente. A percepção de que os intérpretes do 6º ano
estavam mais à vontade com o desenho ocorreu já no primeiro encontro quando, ao
responderem “O que é poesia?”, alguns expressaram seu entendimento sobre poesia
através desenhos:
115
Imagem 12: Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura10
Um autorretrato encharcado de poesia. É preciso ressaltar que a criança só precisa
de um lugar para mostrar sua infância que está nela.
Nos lábios de crianças, loucos, sábios, cretinos, apaixonados ou
solitários brotam imagens, jogos de palavras, expressões surgidas do
nada. Por um instante, brilham ou relampejam. Depois se apagam.
Feitas de matéria inflamável as palavras ardem no instante em que são
tocadas pela imaginação e pela fantasia. Mas são incapazes de guardar
seu fogo. A fala é a substância ou alimento do poema, mas não é o
poema. (PAZ, 2012, p.43)
O desenho contém a pureza da resposta inesperada, a palavra aumenta dentro de
sua significância “poesia é voar”, dentro dela cabe um menino suspenso, criador de seu
universo, cabem as “ingnorãças” de quem também viu voo na poesia: “poesia é voar fora
da asa” (BARROS, 2016, p.19). “É flutuar na Leitura”, a palavra foi tocada pela
imaginação e pela fantasia que explica o que eu não posso entender e por isso pergunto:
“E o que são eles quadrados no corpo do menino?”, que a criança com aquele olhar de
quem responde o óbvio: “É pra mostrar como é por dentro, professora” (Hermes, 6ºano,
2017). Mas, naquele momento, ainda ao primeiro encontro, eu não tinha as lentes que
10 (Hermes, 6º ano, 2017)
116
fazem olhar por dentro. Foi nos escritos de Zumthor (1993) que encontrei a chave para
essa resposta:
A “mensagem poética” é, assim, sempre uma linguagem em cascata: o
sinal marca um deslocamento, atrai o olhar sobre um deslizar que se
desenha entre espelhos, que o prolongam ao infinito, na penumbra. Esse
deslizar é a ficção; ou ainda mais, a ficção é um estado de linguagem,
esse modo flutuante da existência (ZUMTHOR. 1993, p. 159).
No detalhe do desenho, na resposta da criança que deseja mostrar o avesso está a
cascata de sua recepção poética. E, para além do desenho centrado ao redor do menino
flu-tu-an-te, elementos que constituem sua experiência: à direita aquela árvore, de maçãs
ou laranjas, que todos nós aprendemos a desenhar em algum momento, mesmo que em
nossa vivência não tivéssemos pelas ruas macieiras ou laranjeiras. Mas nos livros e
matérias, produzidos em outras regiões do país com as suas características que
consumimos e nos formaram, essa árvore estava lá. Apesar disso, à esquerda há a marca
do nosso lugar: um açaizeiro. O universo amazônico também se faz presente.
Também sobre tal universo, há recepção que se encontra na poesia “Um lugar
lindo de viver” (Páris, 6º ano, 2017).
Imagem 13: Poesia é um lugar lindo de se viver.11
11 (Páris, 6ºano, 2017)
117
Nesta recepção a poesia como “lugar lindo de se viver” há o rio e a floresta que se
confundem em unidade, o sol que vê-se inteiro entre nuvens e o detalhe que dá ao desenho
a subjetividade coletiva, incorporada no homem amazônico: a cobra. E numa observação
atenta do desenho nota-se que
nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu [...]
a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande, maior que o mundo
oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um
grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio
de grandeza (BACHELARD, 1988, p. 96).
“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças” (BARROS,
2016. p. 16). No próximo desenho, a recepção sobre o que é poesia é algo que não pode
ser nomeado:
Imagem 14: Poesia é isso aqui pra mim12
O desenho diz mais pelo intérprete, pela maneira que organiza sua escrita, a forma
que une as palavras, para ele, é mais prazeroso expressar sua recepção pelo desenho. Paz
(2013) comenta essa tendência:
As crianças não têm consciência das palavras; têm consciência, e muito
viva, das frases: elas pensam, falam e escrevem blocos significativos e
têm dificuldade para entender que uma frase é feita de palavras. Todos
aqueles que não sabem escrever bem apresentam a mesma tendência.
12 (Adônis. 6º ano, 2017)
118
Quando escrevem, separam ou juntam os vocábulos ao acaso: não
sabem com muita certeza onde eles acabam e onde começam ( p.57).
Mas, apesar de não ter essa certeza, e de não seguir a gramática padrão, a frase
que ele cria não interfere no entendimento de sua recepção, constitui parte do desenho
quando a linha traçada pelas palavras acompanha como um traço em art nouveau as linhas
de seu desenho. E nessa única linha escrita de uma frase que quer demonstrar algo que
para ele ainda não tem nome. Um horizonte? Uma enseada? Um pôr do sol no vale? Com
a sua frase a única certeza que o intérprete nos permite é de que precisamos
voltar para onde os nomes não fazem falta, para o silêncio, reino das
evidências. Ou para o lugar onde nomes e coisas se fundem e são o
mesmo: a poesia, reino onde nomear é ser. A imagem diz o indizível:
as penas leves são pedras pesadas. É preciso voltar à linguagem para
ver como a imagem pode dizer o que a linguagem, por natureza, parece
incapaz (PAZ, 2012, p. 112)
O desenho que explica o significado de poesia e não foi empobrecido por uma
palavra, como explica Barros (2016, p. 20) no poema XIX da didática da invenção:
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
Imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
Rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais uma imagem de uma cobra de vidro que
Fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Dessas primeiras expressões em desenho ainda há aquele que vê na poesia uma
palavra como uma meta ou um sonho: “Professora, fiz esse desenho porque a poesia é
tipo o que quero ser” (Édipo, 6º ano, 2017). A recepção não se esgota na mensagem que
explica o desenho, ela ressoa para outra coisa, para além do que é dito: como o leitor
deseja ser.
Neste momento, mais uma vez a dificuldade que envolveu todo meu caminho em
campo, foi a presença da professora titular da disciplina, que apesar de fazê-lo com boa
vontade e na melhor das intenções sempre tentava interferir nas recepções com instruções
como: “Mas tu ainda não terminaste de pintar o desenho. Tem que ser mais colorido.
Escreve no desenho isso: que queres ser astronauta”. A professora não entendia que o
119
desenho estava completo, que pintar apenas uma parte do desenho, escolhendo as cores
verde e azul, é uma escolha estética que a criança tem.
No desenho que segue há um astronauta que sinaliza tocar a lua.
Um excesso de infância é um germe de poema. Zombaríamos de um pai
que por amor ao filho fosse “ apanhar a lua”. Mas o poeta não recusa
diante desse gesto cósmico. Ele sabe, em sua ardente memória, que esse
é um gesto de infância. A criança sabe que a lua, esse grande pássaro
louro, tem seu ninho nalguma parte da floresta (BACHELARD, 1988.
p.95).
Imagem 15: Lua13
13 (Édipo, 6º ano, 2017)
120
Foram esses desenhos que me fizeram intuir que, com os intérpretes do 6º ano, a
recepção se mostraria mais livre pelo desenho e por entender que a poesia “transforma a
pedra, a cor, a palavra e o som em imagens”. E essa segunda característica, ser imagens
e o estranho poder que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de
imagens, fazem de todas as obras de arte poemas. (PAZ 2013, p. 30-31), assim
colocaremos o que se encontrará destes pequenos leitores: a recepção desenhada, tradução
da fruição.
Os primeiros poemas que levei para o 6º ano foram: Boto, de Juraci Siqueira do
livro Paca tau; cuita não! e Boto de Paulo Nunes do livro Gitos, meus minicontos
amazônicos. Apesar de saber o quanto a ilustração dessas obras faz parte dos poemas,
pela impossibilidade de ter um título para cada intérprete, precisei levar os textos
digitados, e afim de diminuir essa lacuna, ambos os livros circularam pela turma durante
toda a aula.
Partilhar poemas de mesmo tema, mas com uma estética muito diferente entre si,
permitiu que os intérpretes percebessem em poesia a mesma palavra que conta uma
história em muitos versos rimados, pode condensar-se em poucas linhas. E assim a partir
da sua recepção e da sua experiência eles foram convidados a utilizar os materiais
disponíveis (papel A4, papel cartão colorido, cola, tesoura, lápis de cor, giz de cera...),
para em grupo fazer a sua própria versão da história que receberam pelos poemas, mito
que todos eles, sem exceção, afirmaram conhecer. Abaixo os poemas e suas recepções
em desenho.
121
Boto
Sonso, maroto,
maledicente,
lá vem o boto
virado em gente.
Em noite clara,
à luz do luar,
o sem-vergonha
vem namorar.
De um jacaré
tinga ou coroa,
fez, o malandro
sua canoa.
Num terno branco
sempre vestido,
vem todo prosa,
todo metido...
Pra conquistar
Rabo de saia,
Usa chapéu
Feito arraia.
Pra que ninguém
o reconheça
o tal chapéu
cobre o buraco
de sua cabeça.
O seu sapato
é um acari
que ele roubou
de um cacuri.
Criatividade
é o que lhe sobra:
seu cinturão
fez de uma cobra.
Pra completar
o seu gracejo,
fez um relógio
de caranguejo.
Em toda festa
marca presença
sem nem ao menos
pedir licença.
Mundia as moças
com seu olhar
depois as tira
pra dançar.
Não satisfeito,
O malfeitor,
Induz a jovem
a fazer amor.
Depois se manda
sem dizer nada
deixando a moça
desconsolada.
Meses mais tarde,
Num tapari,
Nasce outro filho
Do tuccuxi.
Como é ladino
esse garoto!
esse menino
filho de boto.
(SIQUEIRA, 2012, p. 16-23)
I
Boto
Boliu com a moça!
Tchibuumm...
Um chapéu branco
boiava no trapiche
pega!
(NUNES, 2014.p.9)
122
Imagem 16: A história do Boto cor de rosa
Imagem 17: Boto cor de rosa 1
Imagem 18: Boro cor de rosa 2
123
Imagem 19: Boro cor de rosa 3
Imagem 20: Boro cor de rosa 4
124
Imagem 21: Boro cor de rosa 5
Imagem 22: Boro cor de rosa fim
125
Esse resultado de recepção que aqui se apresenta é uma representação daquilo que
me foi entregue em mãos: um pequeno caderno verde. As crianças utilizaram o papel
cartão e nele colaram os desenhos que ilustram a maneira que, em grupo, montaram a
narrativa e escolheram que momento dela cada um desenhou.
Dito isto, como podemos olhar para esse desenho? De que forma a memória
individual, a experiência singular da forma que cada um recebe os poemas e adere ao mito
que já conhecem, entrelaça-se com o imaginário deles enquanto grupo? Assim, pela
maneira que eles constituíram a sequência dos desenhos, percebemos o imaginário
estetizante, proposto por Loureiro (1995, p.65),
que a tudo impregna com sua viscosidade espermática e fecunda,
acentuando a passagem do banal para o poético. Aquela é geradora do
novo, do recriado. Valoriza a dimensão auto-expressiva da aparência e
sua ambiguidade significativa, nas quais o interesse passa a se
concentrar.
“Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a
manifestar-se como uma construção aberta e linear” (PAZ, 2013, p.75). A poesia que está
na prosa veio primeiramente pelo formato de conto, estando dentre os trabalhados:
Sounds de Maria Lúcia Medeiros foi o que considerei de uma recepção particular desde
a sua partilha na voz. Eis o texto:
126
SOUNDS
Ouvido colado ao tronco da árvore, ele buscava o som. Mas o som, qual som, de
quem o som? Da árvore, ora.
A seiva entrando, subindo pelo tronco devia provocar ruídos, barulhinhos... Ele
queria ouvir, podia.
Volteando o dedo na taça de cristal, não vinha o som? E então, por que não ouvir
a seiva feito rio descendo e subindo, correndo para as folhas, para as flores, para os frutos?
Não colavam ao chão, os índios, habitantes primitivos do Brasil, ouvidos atentos
e ouviam o peito da terra? Por que então só ele não podia ouvir assim, o que quisesse ou
inventasse, ou decidisse?
Cachorro não cheirava comida? Ele não podia ouvir o que ninguém ouvia ou
precisava, sei lá...
Ele precisava. Por isso ficava horas perdidas ouvindo o inaudível, mas que para
ele era audível, uma questão de ouvir.
Gostava de ouvir o vento, quando deixava uma fresta na janela do quarto, ouvia e
dormia. E o coração da mãe, do pai, não ouvia? Ouvia e dormia, quantas noites?
Levado ao circo certa noite, aborreceu-se. Era barulho demais, amontoados,
produzidos. Desses ele não gostava porque esses todo mundo ouvia, era barulho feito para
todo mundo.
A água escorrendo, a torneira aberta, era bem melhor, mais gostoso.
— Desperdiçando água, menino!
E ele viajava pelo mundo, menino ouvinte.
Até o dia em que ganhou um toca-discos. Mas quando terminava a música a agulha
corria fazendo um barulhinho que ninguém queria ouvir, esse ele queria e gostava mais.
— Estragando agulha, menino!
Som de flauta era bonito, assim limpinho, som de tecla de piano, assim sem ser
tocado, também. Levantar a tampa do piano com cuidado e bater na tecla, uma nota só
para vê-la fugir dali, ressoar na sala, isso ele gostava.
— Olha o piano, menino!
Olha o piano, menino!
Rasgar o papel em dois, em quatro, em seis, rasgar um monte de papel e ouvir o
barulhinho.
Os outros ficavam irritados, ele gostava.
Rasgava jornal velho, papelão, mãos avermelhadas, fazendo muita força. Rasgar
revista, livro de páginas secas...
—Não rasga o livro da escola, menino!
Ah, mundo esse, sem gente de ouvidos atentos, especiais, gente sem ouvido que
podia viver sem som...!
Ah, mundo de silêncios acumulados, desperdiçados, não recolhidos!
—Está pensando o quê, menino?
Atrás das portas, debaixo das camas, era bom, ouvia melhor. O som dos passos da
mãe indo e vindo. As chaves do pai, assim sem precisar vê-lo, chegando...
— Onde se meteu esse menino?
E ele retornava emburrado para um tempo que passava longe dos ouvidos das
pessoas. Não jantava, ia logo pra cama de castigo. E então era até melhor porque dali
ouvia os sons da casa inteira, olhos fechados, como quem está escondido, só ouvindo.
Às vezes tirava o radinho de pilha de debaixo do travesseiro e ouvia:
— “Caros ouvintes, ouçam agora...”
127
Achava engraçado. Era um chamado, um grande chamado para que todos
ouvissem o que podiam ouvir.
Imaginava diferente:
— “Caros não-ouvintes, façam uma forcinha e procurem não ouvir o que acabam
de ouvir...”
Assim podia ser que as pessoas fossem despertadas e, pela curiosidade, ouvissem
sons mais especiais.
Imaginava-se dono de uma imensa torre. Bateria o sino bem forte, chamaria a
cidade inteira.
E quando todos estivessem de cara voltada para cima...
“Quem mora mais longe?”
O que mais longe morasse, aquele portanto que possuísse ouvido mais atento,
quase especial, subiria à torre e, quem sabe, ele arranjaria um parceiro com igual cuidado,
ouvinte como ele?
Imaginava coisas, pensava outras, o menino que só queria ouvir sons mais
escondidos, roçar de asas de passarinho, ronronar de gatos, cigarras no quintal,
anoitecendo...
Chegar perto de uma estrela, voar pro céu estrelado, que som ele ouviria?
Mergulhar no mar profundo, que som ele traria?
O tec da peteca, o toc do formão, o tuc do coração, sons, sons...
Uma vez sonhou. O lugar era enorme, amontoado de nuvens e velhos de barbas
brancas, longas, roupas brancas. Ninguém falava. Mas ele sabia que estavam ali para
ouvi-lo. Porque era o maior ouvinte do mundo e havia sido convidado por isso para
ensinar como ter ouvido atento e falar do prazer de ouvir o que ninguém ouvia, só uns
poucos.
Era como se fosse uma sociedade de bons ouvintes, de ouvidos apurados. Falava,
sentado num imenso trono, colchão de nuvens, silêncio precioso.
Ensinava sem livros, sem quadro negro, sem giz no quadro.
— Menino, olha a hora da escola!
(MEDEIROS. 1994. p. 31-35)
128
A leitura de Sounds provocou sensações nas crianças. Nossos encontros eram
marcados também pela mudança na organização da sala, nos sentávamos em círculo,
como uma grande mandala. E nesse sentido, Atena mostrou-se aberta a essa modificação.
Minha percepção de que isso acontecia somente em nossos encontros só ocorreu quando,
ao chegar na porta da sala uma manhã, um dos alunos correu até mim com um sorriso e
disse: “A gente já pode desarrumar as cadeiras, professora?”. Esse verbo coloriu o meu
olhar, para aquele aluno em nossas aulas desarrumávamos a ordem comum da sala e essa
fagulha foi como um presságio para a recepção que viria neste dia.
O primeiro momento deles com o texto foi para uma leitura silenciosa, que a
maioria não fez, e mais uma vez fazer uma leitura em voz alta para eles funcionou como
um chamado: a cada parágrafo eles iam ficando mais calados, a curiosidade sobre
personagem do conto foi maior que os burburinhos que antes os distraíam. Naquele
instante a minha contribuição sensorial era a minha própria voz. A escolha da leitura para
as crianças é por reconhecer que
O intérprete (mesmo que simples leitor público) é uma presença. É, em
face de um auditório concreto, o “elocutor concreto” de que falam os
pragmatistas de hoje; é o “autor empírico” de um texto cujo autor
implícito, no instante presente, pouco importa, visto que a letra desse
texto não é mais letra apenas, é um jogo indivíduo particular,
incomparável (ZUMTHOR, 1993, p. 71).
E eles também foram convidados a ler, apenas os que quisessem, os que sentissem
vontade. E essa liberdade de escolher fez com que poucos manifestassem interesse em ler
para turma, mas também fez que os mais tímidos pedissem algo íntimo para mim, um
sinal de confiança: “Professora, eu posso ler só pra senhora?” (Édipo, 6ºano, 2017). E
recebi essas leituras em voz baixa, entre palavras vacilantes e frases entrecortadas.
Nos comentários sobre o conto, as crianças falaram muito sobre os sons que
gostavam de ouvir, os que não gostavam e todos os seus porquês:
129
Imagem 23: Som de chuva
Gosto do som de quando o vento sopra quando chove e gosto também
do som da chuva da tarde (Heitor, 6º ano, 2017).
Os sons do vento e da chuva colorem os desenhos de Heitor, que ao falar da chuva
da tarde marca seu pertencimento. “Chuva da tarde” é expressão local, e em seu pintar,
pequenos riscos que pretendem ser gotas alcançam o chão do papel, tocando quase todo
desenho, com a exceção do pequeno menino autor de si mesmo que se protege por um
guarda-chuva cor de chuva. É preciso olhar para esse som que encontra uma lembrança
coletiva, quem não conhece o som da chuva paraense? Que não avisa, apenas cai, grande
e forte. O desenho do intérprete é um convite e uma lembrança de que:
todos a fazer e reconhecer a permanência, na alma humana, de um
núcleo de infância, uma infância imóvel mas sempre viva, fora da
história, oculta para os outros, disfarçada me memória quando a
cantamos, mas que só tem um ser real em seus instantes de
iluminação—ou seja nos instantes de sua existência poética.
(BACHELARD, 1988, p. 94)
130
Imagem 24: Chuva de pipoca
Logo quando li o texto lembrei rapidamente, dos barulhinhos que
fazem no teto de casa, logo quando todos dormem portanto só eu ouço.
Por um lado o barulho incomoda muito por me impedir de dormir, mais
por várias noites que o barulho não aparece, e consigo dormir. Mais
quando ele aparece é bem ruim de conseguir dormir.
Eu gosto dos barulhinhos de chuva que fazem no teto de casa, por que
parece barulho de pipoca estourando. Minha irmã sempre diz que não
posso ouvir barulho de nada que já penso em comida kkk (Métis, 6º
ano, 2017, Grifo meu)
Na imaginação da criança há um barulho no teto que somente Métis pode ouvir,
um barulho que às vezes vem outras não, A subjetividade desse som foi suscitada pelo
texto, já que o personagem fala de sons que apenas ele presta atenção, assim a intérprete
se coloca nessa mesma perspectiva. E em seu desenho, o som da chuva ultrapassa a
imagem comum para assemelhar-se ao som de que inclui um desejo de sabor, a
imaginação da intérprete ultrapassa o som real da chuva e chega no som do devaneio
provocado por ela.
131
Imagem 25: O som das cigarras.
O som das cigarras é o som que eu acho estranho, mas presto muita
atenção, pois ele vem ao amanhecer, algumas pessoas ouvem mas não
apreciam o som, eu acho estranho porém legal e bom de ouvir
(Agamenon, 6º ano, 2017).
O estranhamento não impede o leitor dar atenção ao som das cigarras e, em seu
escrito, ele chama atenção para os que ouvem mas não apreciam o som dessa pequena
percepção cotidiana: “escutemos o violino das cigarras. Vento cantando” (LOUREIRO.
2017, p. 55) entre as árvores de seu desenho.
Imagem 26: uma árvore de sons
132
Eu uso qualquer som na minha casa. No terceiro andar da minha casa
dá pra ouvir as pessoas subindo mas, quando a minha mãe, meu pai,
meus irmãos, estão lá no 3º andar da casa eles não escutam eu subindo
porque eu vou para lá na ponta do pé e eles não escutam e eu tenho o
meu sexto sentido que eu vou explicar por porcentagem %. Na audição
eu tenho 55%, no olfato tenho 15%, na visão tenho 15%, no tato tenho
10% e no paladar 5%. Mas mesmo assim minha mente é uma árvore de
sons que brota toda hora. (Hera, 6º ano, 2017)
Em sua recepção, Hera convida o leitor para “exercícios de ser criança”, como
podemos perceber esses escritos matéria de poesia? Somente pela voz do poeta:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes
da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
De poesia que o bom senso?
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com
As crianças. (BARROS, 2013, p.453)
Imagem 27: O som da peteca.
133
Desenhador: M.
O som da peteca é: tec, tec, tec
Eu não gosto do som da peteca porque é um som que dói no ouvido é
um som enjoativo então eu não gosto desse barulho da peteca (Páris, 6º
ano, 2017).
O desenhador dessa recepção não deixa dúvidas: som de peteca é barulho que
dói, é barulho enjoado. Em seu desenho ele coloca uma espécie de lente de aumento
fazendo com que a peteca pareça muito maior, em perspectiva com o sol ela torna-se
imensa como o incomodo que para ele causa. As duas esferas lembram dois cometas se
chocando. O desenhador faz que leitor abra os seus sentidos para a imaginação da matéria,
para som do choque. A sua percepção das petecas ultrapassa o real, como revela
Bachelard (1986, p.16)
A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar
imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que
ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de
sobre-humanidade.
Na última recepção de Soudns, temos:
Imagem 28: O som da pia.14
14 (Aquiles, 6º ano, 2017)
134
Do decorrer dos encontros os intérpretes foram aprimorando seus desenhos, neste
vemos claramente a estética dos quadrinhos. Nos dois primeiros quadros, ele expõe o
som que não gosta. Nos dois últimos quadros, o comentário do intérprete pela voz “Quem
não gosta de Rock-rol e vídeo game, professora?” (Aquiles, 6ºano, 2017).
Entre os textos em prosa, Lindanor Celina (1995) foi uma escolha certeira. O
universo ficcional de Menina que vem de Itaira, a infância de Irene falou de forma
especial para os alunos, e pensando nisso considerei importante levar por dois suportes:
o texto pelos quadrinhos “Menina que vem de Itaiara: adaptações em quadrinhos do
romance de Lindanor Celina/ organizado por Volney Nazareno. Belém: Fundação
Cultural do Estado do Pará. 2017” e o texto do livro, com o objetivo de possibilitar mais
de uma leitura para as crianças.
135
Era de tardezinha. De baladeira em punho, em frente a casa, atirávamos pedras nos frutos
da mangueira de seu Zé, que se debruçava sobre a rua. Uma pedra bateu-lhe no ombro. Virou-se:
“Menina não brinque de bodoque, isso é pra moleque”. E prosseguiu, muito digno, no seu
caminho, no rumo da lagoa, ia tomar o seu banho de todas as seis horas, no igarapé das Ora-Veja.
Reposta minha foi catar outra pedra do chão e enviar-lhe, certinha, no traseiro. Ele não perdeu a
calma, voltou-se novamente e falou apenas, sem mesmo erguer a voz, só sacudindo um pouco a
cabeça: “vou contar à sua mãe”. Eu gritei: “Vai” (e disse o resto). Nicanor estacou, ainda mais
branco, batendo as pestanas tesas, até que o olho de gata apareceu, enorme, esgazeado no espanto:
“Espera...tu sabes esse nome?!” Eu, nem nada, continuei escolhendo pedras e mandando-as bem
alto, nas mangas amarelinhas.
Não demorou, voz de mamãe: “Dona Irene, largue essas pedras, e já pra dentro!”
Estranhei o tom, mas não muito, ela falava sempre rosado, nem me lembrei de Nicanor. Mal fui
entrando, estalou-me um bofetão bem na boca: “Vai, vai chamar nome feio, demônio!” Um gosto
de sangue, que dor nos dentes da frente, e o lábio partido, pulando de repente, como que caba
ferrou. Levou-me pro quarto, sentou-se na cama, eu de pé diante dela. Tremia de raiva: “Não
minta, quem lhe ensinou aquele nome, quem foi?” Eu chorava, não sabia, não lembrava de quem
o ouvira. Mamãe, a voz entrecortada, sem fôlego de tanta ira: “Foi bem o ordinário do Xonda, é
só o que ele aprende”. Contendo a fúria, noutro tom: “Me diga, você sabe o que é essa palavra?”
Claro que eu desconfiava, mas neguei, neguei, com o choro, com a cabeça, veemente. Ela falou:
“Olha aqui, isso é coisa muito feia, ouviu, é imoralidade, não deve andar nem em boca de
carroceiro, que dirá de menina. Me jure que você não repete mais isso, que prefere perder a língua
a chamar esse nome”. Prometi, jurei, soluçando, o beiço por acolá, intocável.
Nunca mais, que me lembre, chamei nome. Embora ouvisse muitos, a infância inteira.
Passei o resto da noite odiando Nicanor, rogando-lhe pragas, desejando-lhe a morte.
Imagina o dia amanhecendo, João agoniado vindo bater na porta: “Padrin Geraldo madrinha
Adélia, uma desgraça, Nicanor morreu esta noite, de repente”. Via João chorando, o desespero de
dona Zefinha, me dava uma pena deles. Não, morte não servia, tinha que ser um coisa ruim que
atingisse a ele, a ele só. Levei bem três dias sem ir lá. Distraía-me, vontade tinha, o hábito fazia-
me quase atravessar a rua, sentia o beiço pulado, dolorido, voltava, Mas quando sarou, ficou
normal, a raiva, também essa, desinchara.
(CELINA, 1995, p.26-27)
136
Imagem 29: Quadrinho Menina que vem Itaiara 1
137
Imagem 30: Quadrinho Menina que vem Itaiara 2
138
Imagem 31: Quadrinho Menina que vem Itaiara 3
139
No primeiro momento vendo os quadrinhos alguns perguntaram: “É pra gente
pintar esse desenho, professora?, ao que expliquei que também poderiam pintar, mas que
poderiam criar as suas próprias versões daquele trecho com suas experiências. Curioso
que como no texto a personagem apanha da mãe, a maioria das histórias girou em torno
de uma experiência assim:
A Sandália Bumerang
Um dia eu tava brincando de bola dentro de casa e então eu quebrei 2
copos da mamãe e então eu ouvi ela gritando “MENINO!!” eu só vi a
sandália, e eu saí correndo mas não adiantou. Eu só ouvi um barulho, e
antes que eu visse a sandália já tava na minha costa, mas eu levantei e
saí correndo de novo, e eu me desviava de tudo, então eu me tranquei
no banheiro eu fiquei lá por 2 horas. Quando eu saí a mamãe estava
escondida só me esperando e levei outra sandalhada... Fim. (Adônis, 6º
ano, 2017)
Essa recepção não veio acompanhada de desenho, pois o aluno não estava presente
no segundo encontro. O texto dele tem humor, e provavelmente um pouco de exagero,
mas a intenção de criar uma história com um tom cômico fala de sua maneira leve de
receber o texto de Lindanor. Júnior constrói uma narrativa curta e bem cadenciada.
Menina que vem de Itaira foi escrita em uma época em que a infância era outra e, ao
contar sua experiência a partir do lido, o intérprete demonstra como possibilidade de a
obra se atualizar como “resultado da leitura é o sintoma de que está viva; porém, como as
leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária à sua fixação numa
essência sempre igual e alheia ao tempo (ZILBERMAN. 1989 p.33).
140
Imagem 32: Pulf
Uma vez eu estava brincando lá na vila que eu moro, um minuto depois
passou uma senhorita e eu chutei a bola e acertou nela, ela falou presta
atenção eu falei vai pra casa do ca... Minha mãe me deu uma bofetada
na boca e uma sandalhada no bumbum e me botou de castigo por uma
semana (Páris, 6º ano, 2017).
141
Imagem 33: Uma flor
Era uma vez tava brincando na rua de lá de casa. E a minha mãe gritou:
“Filho, entra pra dentro de casa, já! Tá escurecendo”. E eu respondi: “Já
vai”. Quando eu entrei ela disse: “Toma teu banho e te arruma pra você
vim jantar” e eu tomei meu banho e me arrumei. Quando eu puxei o
prato pra comer e sem querer eu derrubei todos os pratos e quebraram
e a minha mãe entrou dentro do quarto e ela voltou com um cinto. E eu
apanhei e fiquei 1 ano de castigo sem jogar vídeo game. Depois disso
tudo voltou ao normal... (Aquiles, 6º ano, 2017).
142
Nas duas recepções, a leitura do trecho de Celina (1995) apresenta-se por texto e
desenho, onde os intérpretes apropriam-se da estética dos quadrinhos para contar suas
experiências. A poesia em livre pensamento transforma-se em desenho que guarda as
significâncias de algo só por eles experimentado e, ainda que as situações sejam
parecidas, a estética que envolve seus trações e cores, suas percepções de espaço e tempo
recriam seu universo por elementos particulares: no primeiro desenho a cor também é
uma expressão da criação, especialmente no autorretrato em que o vermelho da bofetada
foi feito por um batom emprestado de uma colega. Já o segundo desenho, em preto e
branco, o intérprete utiliza a própria caneta para dar os contornos e preenchimentos nas
figuras, traços que reforçam o dinamismo quadro a quadro.
Ainda trabalhamos com outro trecho do romance de Celina, que nos quadrinhos
ganhou o título de Procissão do Senhor Morto:
143
Morávamos em Buritizal quando meu pai, num dos seus arrancos da mocidade, se
mudou para Itaiara. Mamãe nunca lhe perdoou essa presepada que considerou funesta em
nossa vida. Falava constante daquela viagem em noite de breu, deixando assim tão brusco,
o nosso bom Buritizal para um incerto lugar.
Não me dei conta da mudança.
Quando abri os olhos para o mundo, me vi naquela casa de porta e janela, na rua
das Pedras. A mais remota lembrança, minha, foi mesmo daquele dia de procissão.
Procissão do Senhor Morto. Eu teria, deixa ver, meus quatro anos, não mais. Papai vivia
de andanças na estrada de ferro, negociando com peixe seco e camarão. Mamãe nunca
saía de casa. Boa católica, nesses tempos, morria de vontade de ir à missa, uma novena,
uma procissão. Éramos novatos na cidade, ela não conhecia ninguém a quem me confiar.
Mas naquela sexta-feira santa, as matracas estralando pelas ruas, chamando
insistentemente ao enterro de Jesus, todo mundo passando para a igreja, minha mãe não
resistiu e resolveu levar-me. Pôs-me o melhor e mais recente vestidinho, laço de fita no
cabelo, meias de seda, cordão de ouro, saí de casa muito bem encadernada.
Mal entro na igreja, dei com aquele homem ensanguentado no caixão coberto de
flores, à luz das velas, as moscas esvoaçando por cima do véu, e saltei para o colo de
mamãe num alarido que ela, coitadinha, nem chegou a fazer o pelo-sinal.
Confusa, humilhada ante os “também, trazer criança em igreja com tanto povo”,
“onde já se viu carregar menino pequeno num mundéu de gente desse”—abalou dali, às
carreiras, renunciando de vez à procissão de vergonha, logo de aflição, temor de que
tivesse alguma coisa. Contava que meu pavor foi tal que me pus branquinha e tremi e
gritei desadorada, durante a volta. Ao chegar em casa, um custo para me aclamarem. A
grados, água com açúcar, chá de carmelitana. De noite, olha o febrão, e pelas tantas,
acordei aos berros, assombrado com o Senhor Morto. Pensei que era defunto mesmo.
(CELINA, 1995. p.9 -10)
144
Imagem 34: quadrinho procissão do senhor morto 1
145
Imagem 35: quadrinho procissão do senhor morto 2
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Imagem 36: quadrinho procissão do senhor morto 3
A recepção dos intérpretes novamente por uma pequena narrativa e sua
representação em desenho:
147
Imagem 37: Dois dias depois
Sexta-feira santa é o dia que Jesus Cristo Morreu
Minha mãe disse: Filho todos tem que respeitar esse dia. O filho falou:
Porque mãe? Meu filho é o dia que Jesus cristo morreu.
Dois dias depois: “Mãe, eu tive um sonho.” Meu filho como foi esse
sonho? “Eu sonhei com Jesus Cristo morto em um caixão cheio de
flores em cima e ao redor luz de velas. Eu pensei que era vida real, mais
era penas um sonho. Mãe: É a vida é assim meu filho. FIM. (Páris 6º
ano, 2017),
148
Imagem 38 : Fim
Era uma vez: Eu fui com os meus pais pra uma cidade pequena.Era uma
cidade pequena com muitos habitantes, e lá tinha muitas igrejas
católicas. Minha mãe mandou eu me arrumar mais certas igrejas tem
seu modo de ser, me vesti então eu me arrumei com uma calça e uma
camisa social porque as igrejas são lugar santo e dedicado a todas as
pessoas religiosas que nela habitam. (Aquiles, 6º ano, 2017)
A maneira que os intérpretes criam as suas narrativas, a partir do texto, nos remete
às premissas de Jauss retomadas por Zilberman (1989, p.34) quando indica que:
Examinando a experiência literária do leitor, Jauss adverte que, para
descrevê-la, não é necessário recorrer à psicologia. Sua análise volta-se
à recepção e o efeito de uma obra no sistema objetivo de expectativas
que, para cada obra, no momento histórico de seu aparecimento, decorre
da compreensão prévia do gênero, da forma da temática de obras
anteriormente conhecidas e da oposição entre linguagem poética e
linguagem prática.
149
Dessa forma, vê-se que ambos contam experiências relacionadas com à
religiosidade, colocam elementos da narrativa como a chegada em um lugar novo, ou a
visão de um Cristo morto, como no texto que lhes foi apresentado, ou seja situações que
condizem com o horizonte de expectativas, a recepção representa o envolvimento dos
intérpretes e a maneira como eles sentiram o texto.
Durante o caminho em campo há um autor que criei grande expectativa em
partilhar com os alunos, talvez por ter sido o poema que mudou a minha percepção de
poesia e da maneira como ela chega ao nosso corpo, e assim como o toque final os últimos
textos trabalhados com o 6º ano foram do poeta Paulo Plínio Abreu:
150
O comedor de fogo
Veio do comedor de fogo e de seus milagres a esperança
impossível.
Do comedor de fogo e de seus milagres à porta de sua tenda
Onde dormiam os cães numa nuvem de moscas.
Veio do comedor de fogo a esperança dos mundos
impossíveis.
Veio dessa lembrança hoje apagada pelo tempo o sombrio desejo de evasão.
Veio do comedor de fogo a visão da vida aberta como um
grande circo
E o convite irreal para a distância onde se esconde a morte.
Até o amor se perdeu nessa lembrança de um estranho
comedor de fogo
E toda a infância confundiu-se com os milagres desse
saltimbanco
E de seus cães doentes à porta de sua tenda.
(ABREU, 2008, p. 42)
Lembranças de um espantalho
Lembro-me que era um espantalho
e que balançava no ar
no caruncho da tarde o seu frágil corpo de pano
tanto mais terrível quanto mais humano
pois algo havia de humano
no ar da tarde ou no espantalho
que me lembro ter visto.
Era só um espantalho
agitado no ar pelo vento da tarde.
A chuva caía-lhe na cabeça grotesca.
Um verme subia no seu corpo
para roer-lhe a madeira.
E eu quis pousar no seu ombro
o meu cansaço de ave.
Mas algo havia no seu ser
que me aterrou.
(ABREU, 2008, p.53)
151
Desses poemas veremos a seguir o olhar de dois intérpretes. O primeiro organiza
sua recepção dos dois poemas e apresenta dois desenhos em tirinhas:
Imagem 39: Era um comedor de fogo.
Era um comedor de fogo que eu vi no sinal. Eu achei o comedor de fogo
legal. Mas eu já ouvi falar que no circo as pessoas que trabalham lá
dentro, batem nos cães. E eu imagino os cães cheios de moscas, como
diz no texto, doente, isso é muito triste, mas o comedor de fogo é legal
(Adônis 6º ano, 2017)
Imagem 40: Lembrança de um espantalho.
Um dia, eu vi um espantalho balançando no ar ele me dava medo. Na
casa da minha vó tinha um espantalho, lá na fazenda, eu brincava com
152
ele, era legal. Parecia que ele estava vivo, e era também um pouco
assustador mas o espantalho era legal. (Adônis, 6º ano, 2017)
A melancolia comprida que atravessa os versos de Abreu (2008) ao olhar do leitor
transita entra uma experiência vivida, o comedor de fogo dos sinais da cidade, e um
devaneio poético no qual ele imagina os cães cheios de mosca e doentes e se entristece.
Em seu desenho o cão chora, seja pela imagem poética, seja pela informação de maus
tratos que ele rememora a partir dela. Bachelard (1989) explica esse devaneio poético:
O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é
o devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo; para mundos
belos. Dá ao eu um não-eu que é bem do eu: o não-eu meu. É esse não-
eu meu que encanta o eu do sonhador e que os poetas sabem fazer-nos
partilhar. Para o meu sonhador, é esse não-eu meu que permite viver a
minha confiança de estar no mundo. Em face ao mundo real, pode-se
descobrir em si mesmo o ser da inquietação. Somos então jogados no
mundo, entregue às inumanidades do mundo, à negatividade do mundo,
o mundo então é o nada humano. As exigências de nossa Junção do real
abrigam-nos a adaptar-nos à realidade, e constituirmo-nos como
realidade, a fabricar obras que são realidades. Mas o devaneio, em sua
própria essência, não nos liberta da função do real? Se o considerámos
em sua simplicidade, veremos que ele é testemunho de uma função
irreal, função útil, que protege o psiquismo humano, à margem de
todas as brutalidades de um não-eu hostil, de um não-eu estranho. (p.
13)
Para o próximo intérprete, em sua recepção, esse devaneio é chamando de ilusão:
153
Imagem 41: The-end
“Era uma vez”
Eu fui de ônibus pra casa da minha avó! De repente eu fiquei assustado
com um espantalho de uma fazenda de arroz era de tarde nos fomos e a
volta foi de madrugada de repente eu tive uma ilusão pulei rapidamente
pro colo da minha mãe depois eu vi que era uma folha de palmeira.
(Aquiles, 6º ano, 2017)
A criação de Aquiles é marcada pelo título de seu texto “Era uma vez”, em que
ele se utiliza de elementos comuns aos contos de fadas como o deslocamento do
154
personagem, um elemento que à luz do dia é curioso, mas que à noite torna-se assustador,
a mãe enquanto figura de proteção e, por fim, a revelação do elemento de perigo como
algo inofensivo: a palmeira.
Além de todas as recepções mostradas nessa sessão há muitas que pela
necessidade de um limite nas análises, não puderam compor o corpus, assim os desenhos
escolhidos representam um movimento diferente nessa pesquisa, um caminho que de
desvelou surpreendente mostrando os contornos da verbo que vibra na infância, infância
que “é o sempre da humanidade quando nos restituímos do que verdadeiramente somos,
isto é, palavra errante, linguagem fundante de todos os verbos, inclusive dos que ainda
não existem (PESSANHA, 2014. p. 213).
As crianças estavam com os sentidos abertos para receber a poesia, do primeiro
ao último texto suas experiências embalaram seus escritos e a recepção delas me obrigava
abrir também os meus sentidos, olhar o verbo, sentir sua vibração, perceber os sons que
as palavras guardavam, os significados muitas vezes trazidos na voz e o entendimento de
que
um pequeno acontecimento na vida de uma criança não é um evento de
seu mundo, portanto, um acontecimento do mundo. Em sua unicidade
uma tal lembrança é um cosmodrama natural. Quando uma lembrança
pode, desse modo, montar um cosmodrama, não se sabe bem se é um
ponto de história ou o ponto de partida de uma lenda (BACHELARD,
199, 0p. 55)
Em todo esse convívio guardei muito mais que o desenho do verbo, que pretendia
ser o fechamento desse texto, mas a palavra, “ai palavras! que estranha potência vossa”,
guarda surpresas e o texto em sua governabilidade se mostrou ainda mais, na sessão que
segue, pelo fogo de Prometeu.
155
3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos!
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico
levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em
topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não.
O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino,
nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias [...]
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola
do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa,
papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a
autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era
coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o
rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se
acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se
passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias
dessas que a vida do homem se queda em ponto morto? [...]
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico,
sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O
menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este
pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a
meio.
(O fio das miçangas, Mia Couto)
Conta o mito grego que Prometeu criou o primeiro homem usando o barro e foi
grande benfeitor da raça humana. Segundo Kury (1990) o nome desse titã traz em seu
significado “aquele que pensa antes”. Prometeu enfrentou o deus supremo do monte
Olimpo, Zeus, roubando o fogo para entregá-lo à humanidade e por essa desobediência
foi duramente castigado por Zeus, sendo acorrentado a um rochedo onde uma águia vinha
devorar-lhe o fígado que por sua imortalidade se reconstituía, fazendo com que sofresse
uma punição eterna.
No decorrer de minha viagem para Ítaca, alguns intérpretes mostraram em sua
recepção duas formas diferentes, que considerei como um ponto fora da curva. Primeiro
a intertextualidade, a partir de uma fruição que traz para a recepção dos textos
trabalhados, poemas de outros autores. Responder um poema com outro poema nos
156
coloca como na dimensão de uma dança, como se o texto que chega pare eles fosse um
convite à correspondência poética.
A segunda forma que se apresentou de maneira singular foi quando eles
perceberam a estética do texto poético e mais do que comentar sobre seu sentir,
representaram sua fruição em versos. A experiência com a palavra poética passou pelo
corpo deles a ponto de lançarem à página em branco os seus próprios versos. Tais atitudes
nos mostram como:
a poesia é uma experiência holística. Junta o que o pensamento
mecanicista separa. A poesia religa sujeito e objeto, diferentes e
inseparáveis, na práxis e na poiesis do conhecimento. Religa a
dimensão intelectual e a dimensão sensível. Educa afetivamente,
porque leva a viver os afetos, compartilhados pela humanidade inteira.
Educa a sensibilidade, no sentido de educar a percepção e no sentido de
educar os sentimentos. Educa também a racionalidade, que se abre ao
diálogo com outras vozes que interpretam e expressam o humano
cósmico. (ANTÔNIO, 2002. p. 16)
A experiência com a poesia entrega ao leitor o fogo, o desejo da escritura assim
como
Prometeu, a mais alta figura que a imaginação ocidental criou. Nem
mago, nem filósofo, nem sábio: herói, ladrão do fogo, filantropo. A
rebelião prometeica encarna a rebelião da espécie. Na solidão do herói
encadeado pulsa, implícita, a volta ao mundo dos homens (PAZ, 2013,
p. 62).
O intérprete expressou do texto lição de borboleta criando um poema:
Pequeno poema: (autoral)
Eu queria ser como as borboletas que em todas as flores podem pousar,
e em todos os bosques podem estar eu queria ser como a agua, que em
todos os rios vai navegar, e de alguma goteira vai pingar e durante as
chuvas alguém molhar, eu queria morar nas nuvens, pra que de lá do
alto as pessoas eu possa contemplar e de lá mesmo irei sonhar e talvez
um dia enfim acordar!( Dionísio, EJA, 2017).
Nesse pequeno poema autoral, para além da clara marcação do infinitivo para
construir sonoridade, o intérprete vê na borboleta a liberdade simples de estar em todos
os lugares. Em seu escrito, o sonho e o devaneio tocam “a página, que não é outra coisa
senão representação do espaço real onde a palavra se desdobra, torna-se uma extensão
157
animada, em perpétua comunicação com o ritmo do poema” (PAZ, 2012. p.287). A
expressão pelo poético não precisa ser explicada, mas neste caso, é válido incluir o
comentário que acompanhou esses escritos: “Professora, eu escrevi um poema porque eu
queria morar nele, porque como eu assim (falou apontando para o corpo todo) as pessoas
iam me aceitar”.
Importante dizer que ao fazer esse gesto na entrega do poema, ele demonstrou sua
orientação sexual para a homossexualidade, abrindo o poema para uma nova leitura: a de
um jovem que se sente oprimido e que demonstrou ser isolado ou não aceito pelos
colegas. A expressão “queria morar nele” é comum nas redes sociais quando se refere a
algo agradável e utilizar-se dela aponta para a aproximação do intérprete nessas mídias,
e ao universo virtual, que costumam mostrar apenas o lado positivo da realidade das
pessoas. Então, a recepção dele permite perceber que
a imaginação precisa de espaços livres para se mover. Espaços livres
para dançar. Não saturados pelos estereótipos. Para que o novo possa
se desenvolver. A prática da poesia, a convivência com poesia pode
participar dessa criação de espaços de liberdade, que representam a
respiração da atividade imaginativa, assim como pode participar da
resistência do real à manipulação interminável das imagens. De um
lado, participa pela ruptura dos modelos impostos. De outro, pelo
desenvolvimento do novo. Poesia. Imaginação. Liberdade. A atividade
da imaginação é uma experiência de liberdade. É preciso pensar o
possível –e até o impossível- para se fundar o aqui que tem se revelado,
muitas vezes sem perspectivas, sem esperanças (ANTÔNIO, 2002. p.
78).
Quando por Lição de Borboleta o aluno encontra na palavra o devaneio de um
desejo: “queria ser” e nele, algo que inspira esperança quando “tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia.” (BARROS, 2013. p. 136), a
chama de Prometeu está acesa.
Nos textos das poetas Adalcinda Carmarão (1995) e Dulcinéia Paraense (2011) as
recepções figuram pelas duas formas apontadas: dois intérpretes responderam por outros
poemas, recolhidos na internet e outro criou seu próprio poema. No encontro dessa
partilha, os poemas das autoras foram levados em conjunto para que os leitores
percebessem dois olhares sobre a nossa cidade. Importa ainda observar que, ao receberem
os poemas impressos, alguns alunos liam o texto em voz baixa, essa atitude encaixa ao
que Zumthor (1993, p.160) cometa sobre o texto oralizado:
158
Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja
um corpo—repugna mais que ao texto escrito toda percepção que o
diferencie de sua função social e o do lugar que ela lhe confere na
comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou
implicitamente; das circunstâncias, enfim nas quais se faz escutar. O
texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,
intrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos entre o
momento em que é produzido a mensagem e aquele em que esta é
recebida.
159
Paisagem típica
À memória de meu grande
Amigo
Georgenor Franco
Fim de tarde. Belém fecha as pálpebras mansas
E finge que adormece, em traje de noviça.
Rezam sinos de Deus. Abençoando crianças
Desce a lua pra ouvir da noite branca missa.
O caboclo delira. A morena enfeitiça
cheirosa dos jasmins que prendem suas tranças.
Se a cidade convida, o luar tem preguiça
E prefere sonhar com as suas nuanças.
Da outra banda, por trás da triste ilha das Onças,
têm-se a impressão que o sol afundou-se lascivo
e as nuvens, sem pudor, foram ficando sonsas.
E entre as velas azuis e brancas, do desprezo
dos barcos, onde as violas buscam lenitivo,
a alma de Belém chora no Ver-o-peso!
Belém, 1983
(CAMARÂO, 1995, p. 308)
Belém, Belém...
Ai, Belém,
ai, Belém
de papoulas vermelhas
que ardem na saudade, como brasa!
Tua cidade velha, colonial,
com seus requintes já tão desprezados,
é uma fotografia desbotada, encardida
pelo tempo de uso da memória.
Ai, Belém,
Ai, Belém!
Lembro teu Ver-o-Peso
formigando de gente;
lambuzado de sol,
cheirando a frutas tropicais, a ervas e raízes;
gritando cor
na “natureza morta” dos paneiros de plantas e de
flores;
cortando o ar com as lâminas de prata dos peixes
escamoso
que saltam das mãos rudes dos barqueiros;
balançando nas águas as canoas de velas
recolhidas,
de onde, nas noites mornas, sonolentas,
as modinhas revoam como pássaros cegos,
sem destino ou pousada,
no canto sereneiro dos donos dos amores e
saudades.
Ai, Belém,
ai, Belém!
Em teu Porto-do-Sal,
de embarcadouro projetado sobre as águas,
os ocasos se tingem
com a violência de cores jamais vistas
em qualquer outro céu de outras paragens.
Ai, Belém,
Ai, Belém!
De lugares filtrados através das folhagens,
lançando nas cortinas das janelas
a festiva emoção das sombras bailarinas!
Sempre que os sons de bronze dos teus sinos
despertam o ardor do sol, nas manhãs
domingueiras,
vejo flutuar, no palco dos meus sonhos,
a saudade da infância.
E, na febre octã sem causa e pena,
te recordo aclarado, feliz, passarinheira,
e a lembrança me queima o pensamento.
(PARAENSE, 2011p.134-135)
160
Essa mudança de comportamento é um pequeno resultado da maneira que os
encontros foram se constituindo pela presença da voz. Como recepção desses textos
nasceram poemas exaltando Belém, os quais percebi terem sido copiados da internet
durante a aula.
Lá vem Belém,
moreninha brasileira,
com perfume de mangueira,
vestidinha de folhagem.
E vem que vem,
ligeirinha, bem faceira,
como chuva passageira
refrescando a paisagem.
Lá vem Belém,
com suas lendas, seus encantos,
seus feitiços, seus quebrantos,
seus casos de assombração.
E vem que vem,
com seu cheirinho de mato,
com botos, cobra Norato,
com rezas, defumação.
Lá vem Belém,
recendente, feiticeira,
no seu traje de roceira,
na noite de São João.
E vem que vem,
com seus banhos de panela,
alecrim, jasmim, canela,
hortelã, manjericão.
(Lilith, EJA, 2017)
Lilith colocou o poema de Sylvia Helena Tocantins: “Belém dos meus Encantos”,
que foi musicado pelo compositor paraense Edyr Proença. Apresentar a recepção de
poema por outro poema mostra que a sua leitura dança com outros textos.
Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o
engloba e no bojo do qual ele gravita com outros textos e outros
espaços-tempos; movimento perpétuo feito de colisões, de
interferências, de transformações, de trocas e de rupturas (ZUMTHOR.
1993, p. 150).
Já a recepção a seguir é um recorte de um poema maior:
161
Belém te conheço desde menino
Belém da baia do Guajará e de Belas praças
De bairros populosos e de gente hospedeira
Dos monumentos históricos da cidade velha
Da feira do Ver-o-peso
Do círio de Nazaré
Das mangueiras frutíferas
Do açaí e do tacacá
És a linda Belém
De Requintado sabor marajoara
De Riqueza Cultural
Do Bar do Parque e do teatro da paz
Do Forte do Castelo
De maturidade influente
És bonita e formosa
Belém terra da gente.
(Odin, EJA, 2017)
A recepção de Odin são recortes de um poema postado em um blog, abaixo o
poema original com os versos escolhidos pelo intérprete marcados em negrito:
Belém do Pará e da Amazônia
És a bela cidade das mangueiras
Terra de imortal destino
Te conheço desde menino
Belém da baia do Guajará e de belas praças
Grande metrópole e porta de entrada da Amazônia
De bairros populosos e gente hospitaleira
Plantada no relevo guajarino
De paraenses da gema
De tradição bem brasileira
És a linda Belém
Que Francisco Caldeira fundou
Dos monumentos históricos na Cidade Velha
Dos encantos dos poetas
Dos galanteios dos compositores
Belém de vários amores
Da feira do Ver-o-Peso
De belenenses e parauaras
Do Círio de Nazaré
Das mangueiras frutíferas
Do açaí e do tacacá
Povo de muita fé
Belém da guerra da Cabanagem
Dos versos de Waldemar
Belém que eu te quero bem
Do Coqueiro ao Guamá
162
Belém da chuva da tarde
Das tribos de índios guerreiros
Da Santa Mãezinha de Deus
Aplaudida por um mar de gente
Nas ruas a devoção
Cantos, preces e louvores
Do Telégrafo à Cremação
Do clássico Remo e Paysandu
Aos domingos no Mangueirão
Belém do Caboclo Plácido
Belém de Nilson e Fafá
Do cheiro forte do patchouli
Do Jurunas ao Entroncamento
De Outeiro a Icoaraci
Da estação ferroviária
De onde partia o trem
Rasgando as matas e montanhas
Buscando progresso e esperança
Na viagem até Bragança
De Tito Franco e Magalhães Barata
Das noites de serenata
És a Belém do Grão-Pará
Minha querida Belém
Capital imponente
De requintado sabor Marajoara
De riqueza cultural
Do Bar do Parque e do Teatro da Paz
Do Forte do Castelo
De naturalidade influente
És bonita e formosa
Belém terra da gente. 15
Ainda que pareça mera cópia, é importante que se diga que a recepção está tanto
nos versos que ele escolhe, quanto naqueles que exclui. Pois, provavelmente elege os
versos com quais tem mais identificação, a começar pelo primeiro: “te conheço desde
menino”. O suporte do qual ele retira o poema, um blog na internet, fala como a sua
geração pode ter acesso à poesia que está na letra.
Os poemas contagiam. Suas vozes despertam ressonâncias. Evocam
linguagens e energias latentes. Levam a criar. Mas os poemas não
nascem apenas de leitura de livros. Esse é um dos modos do nascimento
da poesia. A poesia sopra onde quer (ANTÔNIO, 2002. p. 94).
Mas houve o intérprete que criou um poema:
Meu texto, minha vida!
Minha cidade é minha vida,
E minha vida é nessa cidade
15 (fonte: http://paulovasconcellospv.blogspot.com.br/2014/01/minha-poesia-para-belem-do-para.html)
163
cidade muito Bonita!, Bonita é
essa cidade.
Na minha cidade eu falo, “tu, eu falo égua”
E até mesmo falo “pai, D’Égua”.
Na minha cidade eu tomo açaí,
dentro de uma cuia, na minha cidade
tem o mercado e tem também,
o famoso ver-o-peso, “lugar Bonito”
e cheio de Beleza, e lá tem de
tudo!
Minha cidade é dividida!
entre as chuvas e o calor!
tem dia que chove!!!
e tem dia que faz calor.
Belém é minha cidade,
é cidade Bonita, Belém é
minha cidade e essa cidade
é minha vida!
(Dionísio, EJA, 2017).
A recepção do leitor marca o seu sentimento de pertencimento, a sua experiência
foi tocada pelos textos lidos abrindo as possibilidades da palavra que só se anima em
contato com o leitor, os poemas foram uma mediação para que o intérprete por sua
recepção criasse suas próprias imagens da cidade.
Também poemas Pupunheiro e Garrafeiro de Nunes (2010), já comentados em
outras sessões, inspiraram recepções em versos:
Plantado, no meu terreiro
Com seus espinhos, e
Lindos cachos com frutos
Vermelhos, da água na boca só de sentir o cheiro.
(Juno, EJA, 2017).
No fim da, tarde ele vem
Cheio de sonhos doces
Para crianças do bairro
Inteiro. E só vi o assovio
Para as crianças suas garrafas trocar
pelo um sonhar para sua
boca adocicar.
(Juno, EJA, 2017)
164
No primeiro poema, a intérprete nos desperta para os sentidos que ela traz na
memória, construindo em poucos versos, graças às imagens que se produzem, algo
pitoresco em que ela não descreve os cachos de pupunhas, e sim, os coloca em nossa
frente. No mais há métrica, e ainda que tenha alguma inspiração em alguma referência
por nós ignorada, a construção remete a algo popular. No segundo poema, assim como
nos versos de Garrafeiro, reconstrói uma experiência coletiva da passagem desse
personagem das ruas por uma emoção poética que descreve uma lembrança doce.
Pelas recepções mostradas até aqui, nota-se que o texto poético, quando partilhado
sem uma finalidade prática, permite que a fruição não seja limitada por uma ordem
fechada. Dessa maneira,
temos escrito que poesia é corte, emergência do radicalmente novo—o
frescor das coisas recém-criadas—e, ao mesmo tempo, é um trabalho
de descoberta e de revelações, e de invenção e de arquitetura, um
trabalho criador que amplia os horizontes significativos das palavras,
expandindo os limites da expressão possível da linguagem. Como
prática de símbolos intensamente significativos—dança de sons de
imagens, de sentidos—a poesia luta contra a miséria sensorial, contra a
neutralização da sensibilidade e do imaginário, contra o
amesquinhamento da razão. Esta tem sido nossa fala: a poesia—
enquanto poesia—educa os sentidos, educa os sentimentos, educa a
imaginação, educa a racionalidade. (ANTONIO, 2002. p.95)
Em nossos últimos encontros, pelo poema de Loureiro (2008), uma recepção de
um intérprete que se mostrava bastante resistente às leituras, chamou minha atenção por
assumir um tom de desabafo, antes da recepção o poema que a motivou:
165
Pensando bem
Pensando bem, era simples ser feliz.
Bastava o amanhecer.
Uma pelada de rua bastava.
Bastava a mesa reunindo irmãos e amigos
em torno ao paladar do peixe assado
e a cuia de açaí.
Bastava ver meu pai iluminado
bem perto,
pelo candeeiro,
o rosto de minha mãe
com mais um filho acabado de nascer.
Um banho de rio bastava.
Batava um copo de garapa com pastéis de camarão.
O riso que em mim cravava o ferrão de um desejo
bastava.
Bastava ter a infância,
aprender a cantar com os sabiás,
Deitar na grama para olhar o céu e ouvir estrelas,
Escutar as histórias de botos e boiúnas,
Espreitar os acasos em uma esquina,
pular fogueiras de junho entre os Bumbás
e só no Pássaro Junino ver amor-e-morte.
Pensando bem
tudo era ser e não apenas estar.
feito fruta nascendo na semente.
a felicidade parecia contida dentro de cada um de nós.
Mas como poderia, minha alma inquieta,
acostumar-se
a essa vida de felicidade repetida?
(LOUREIRO, 2008, p.159)
166
A recepção deste poema foi uma grata surpresa, pois trata-se dos escritos de um
intérprete que nos primeiros encontros disse: “Poesia é um conjunto de palavras meio sem
nada haver, às vezes bonitas”. Ele, que nos primeiros encontros mostrou-se indiferente,
aos poucos foi deixando-se envolver pelas leituras e devagar colocando sua recepção em
linhas. E nesta, verso após verso a poesia vem como um relâmpago:
BASTAVA o nosso salário mínimo ser leal ao trabalhador
BASTAVA as pessoas pensar no outro como a si mesmo
BASTAVA o povo não ser burro
BASTAVA prender o Temer? Lula?
BASTAVA polícia ser polícia
BASTAVA tanta religião se só existe um “DEUS”?
BASTAVA amanhecer e anoitecer?
BASTAVA eu vim de Caxias para Belém?
BASTAVA para a guerra na Síria para parar a dor do homem?
BASTAVA um marido ser fiel a sua esposa?
BASTAVA o filho ser obediente a um pai?
BASTAVA ter amor próprio?
BASTAVA jogar Baleia Azul para se matar?
BASTAVA construir mais escolas?
BASTAVA ser padre para ser exemplo?
BASTAVA ir a igreja para ser um Deus?
BASTAVA usar droga?
BASTAVA o bastardo ser o excluído da família?
BASTAVA o inglês para o português?
BASTAVA o Fernando Collor para sua Dilma?
BASTAVA discutir por causa de time?
BASTAVA o seu Neymar para a sua Marquezine?
BASTAVA o demônio para seu anjo?
BASTAVA o suicídio para sua vida?
BASTAVA o seu orgulho para a sua sabedoria?
BASTAVA a sua mega-sena para dar uma virada?
BASTAVA ser branco ou preto para ser negro?
BASTAVA ser feliz para não ser triste?
BASTAVA trabalhar a madrugada para o almoço e a tarde pela janta?
BASTAVA a sociedade ser sociedade?
BASTAVA eu escrever isso?
(Heleno, EJA, 2017)
Bastava.
Ao fim de minhas atividades com os alunos, como despedida um presente: o
reencontro com os alunos da turma da EJA que trabalhei no ano anterior, aqueles que
uniram ao poema do Brunos de Menezes a batida do rap. Nesta noite, numa pequena
apresentação no auditório da escola, eles realizaram uma performance com um rap de
autoria própria:
167
É o Rap do Mufarrej
É o Rap do Mufarrej
O aluno estuda e se diverte
É o Rap do Mufarrej
É o Rap do Mufarrej
O aluno estuda e se diverte
Mc1
No Mufarrej o rap acontece
Se prepare para o teste
Se não estudou
não precisa fazer prece
Meu no mome é Ruan
Sou o Mc das mina
Se elas derem mole
Caiu monto em cima
Tô na linha de estudo
Trabalho todo dia
Atrás de qualquer um
Pra ser alguém na vida
Não vou desistir
Eu vou continuar
Quem sabe um dia
Eu possa me formar
Mc 2
E aí rapa
Tu tá esperto
Eu sou Marcelo Henrique
Vou te dar o papo certo
No dialeto do som
Das altas central
Aqui é Mufarrej
Fazendo rap de qualidade
Vontade eu tenho
Estudando e aprendendo
Com o meu desempenho
Até pareço um gênio
Com o talento que tenho
Eu vou mostrar pra ti
Que o Mufarrej
É uma fábrica de Mc
Desistir eu não vou
Eu vou até o fim
No futuro, Senhor
eu quero o melhor pra mim
Aí meu irmão
Se tu não te ligou
O sonho do meu coração
É se formar doutor.
É o Rap do Mufarrej
É o Rap do Mufarrej
O aluno estuda e se diverte
Mc3
É o Rap do Mufarrej
É o Rap do Mufarrej
O sistema quando ouve se
enlouquece
Se enlouquece se aborrece
Mas não se desespere
Aqui é mufarrej
Não tem papo de nerd
São alunas e alunos
pulando seus segundos
Lendo e aprendendo
Em mandando nos assuntos
Com o raciocínio
Querendo te dizer
É duro ver o menino
sem ter o que comer
Aí SEDUC
me responda por favor
cadê nosso dinheiro?
Onde foi que tu guardou?
(roubou!)
Não sei
Mas dá um jeito
aproveita essa verba
E conserta o nosso banheiro
E eu também quero lanche
Escola de qualidade
Tô cansado de comer
Lanche fora da validade
Tô cansado desse sistema
opressor
Desvaloriza o professor
Vem causando muita dor
São heróis
Que trabalham por amor
Se existe profissão foi o
mestre que ensinou
Rá
Na história antiga
Forma erudita
Na filosofia
Mente primitiva
Na educação física
As mina apertadinha
Na quimíca
com sua tabelinha
Eu também sei na prática
O estudo da gramática
Mais complicado que a sua
matemática
que ensina a tática da fórmula
de Bhaskara
Estudo ciências humanas,
naturais e exatas
Na arte a minha parte é rimar
Rá
Na geografia
Qual é o meu lugar?
Na física eu sei que tudo que
sobe vai cair
No inglês apendi o verbo to
be
Na biologia o ensino das
células
Na sociologia com todas
nossas mazelas
Tchau!
Abraço!
Adeus e não se esquece
Aqui não tem moleque
Só vim dá bronca pra aqui no
Mufarrej
(Mc1, Mc2, Mc3, EJA 2017.)
168
No rap, denúncia, desabafo, grito de alunos que pelo som e sentido dizem o que
não cabe no que está instituído e rompem com as normas.
O reaparecimento da palavra falada não implica uma volta ao passado:
o espaço é outro, mais vasto e, sobretudo, em dispersão. A um espaço
em movimento corresponde uma palavra em rotação; a um espaço
plural, uma nova frase que seja como um delta verbal, como um mundo
que explode em pleno céu. Palavra à intempérie, pelos espaços
exteriores e interiores: nebulosa contida em uma pulsação, pestanejar
de um sol (PAZ, 2012 p.286).
O reencontro com esses intérpretes do ano anterior foi uma notícia, as atividades
com eles foram poucas, mas uma semente foi plantada e essa performance foi a flor que
nasceu: a de que eles podiam levar o rap para dentro da escola. E assim o fizeram. Não
pude acompanhar a movência de como saíram da sala para outros espaços, mas eles
estavam lá.
No mais, todos os versos contidos nessa sessão são a face do leitor que se lança a
uma estética nova, da presença da poesia da letra que pelos sentidos pode ser recebida
para torna-se novamente letra, verso, canto. Dos textos poéticos eles pegaram a chama e
criaram seu próprio fogo, e nas letras que figuram seus versos um esforço singular. E para
mim um alento à minha angústia: a poesia é deles por direito e por justiça.
169
CHAMA POÉTICA
Bachelard (1986) contou-me que para o pesquisador as últimas páginas são as
mais difíceis, porque elas trazem as respostas, a pesquisa está terminada não há como
recomeçar. É preciso recordar o vivido em poucas páginas e traçar o longo percurso que
fizemos. Assim, o que faço aqui é convergir as discussões e as experiências desta
pesquisa, que procurou trazer a poesia para os sentidos (e pelo sentir) dos intérpretes que
aqui se mostram.
Comecei perguntando sobre a chave da poesia, autoquestionamento de partida
para descobrir em conversa com tantos autores que não há uma chave mestra, “cada
criação poética é uma unidade autossuficiente. A parte é o todo” (PAZ, 2012, p. 23). E o
que determina a maneira que a poesia vai ser entendida é a forma que a palavra poética
chega ao seu leitor. Descortinei a herança e Apolo, voltando às primeiras palavras
grafadas e os primeiros leitores para mostrar como o acesso à escritura e seu entendimento
sempre foi uma questão de poder. Também apresentei o caminho para o Olimpo,
problematizando a racionalidade científica em que somos formados e o pensamento
científico que não comporta o poético. Essas questões foram fundamentais para entender
no terreno movediço que é o estudo da poesia, o que se move e o que permanece.
Adiante, precisei levar a Estética da Recepção como uma experiência poética,
ouvir o que as letras contam para os intérpretes e falar sobre a formação de leitores,
quando vi de perto os mecanismos de escolarização da palavra poética e precisei subverte-
los para seguir o caminho de Ítaca que julgo mais sensível. E nesta sessão antes de seguir
com os textos poéticos escolhidos para o trabalho na sala, a partir da pergunta “O que é
poesia?”, pude analisar quais experiências os intérpretes traziam, as marcas deixadas pela
escolarização e a singularidade da vivência de cada leitor. Sempre apoiada na Estética da
Recepção em que encontrei mais que uma teoria, descobri um método que, pela
experiência, constituiu a maneira de partilhar os textos poéticos e colher a sua recepção.
Na terceira e última sessão, pude ver o leitor receber a página em branco e fazer
dela seu meio de dizer-se em memórias, segredos, desejos, num movimento encruzilhante
das recepções da EJA e do 6º ano, que trouxe a poesia pulsante e sem aura. Também vivi
170
um encontro diário com a infância, quando pelas recepções dos intérpretes do 6º ano,
assisti o verbo pegar delírio em cores. E vibrei com o fogo de Prometeu crescendo a cada
encontro.
Há de se dizer que diante da atual situação política, este estudo é uma forma de
resistência, quando
O que fazer da poesia?
Qual poesia possível
numa época impossível de poesia?
A poesia é necessária.
Eu sei completamente o quanto é necessária,
Pois o poema que faço é que me faz poeta
E ao me fazer poeta, ele se faz.
Quando o poema está pronto
e me olha das palavras,
eu me sinto existir nesse poema
e o poema me diz: eu sou porque tu és...
A cada minuto que passa cavalgando o tempo,
Sinto que a poesia é necessária.
Seja na forma etérea do poema
Ou seja em seu avesso, o antipoema.
Antipoema é mergulhar a mão em lodo e lama
Para no fundo colher
uma última flor de Lácio oculta e bela.
Antipoema.
Poesia avessa, contra, suja por seu tema
mas, ainda assim, poesia de cada dia.
notícia de jornal,
menor abandonada em suas estrofes,
adolescência em cárcere privado nas metáforas,
menina de rua nos versos descarnados,
sílabas de crack,
poluição de métricas no ar,
ozônio perfumado por fonemas,
camadas de ternura sobre a lama,
rimas sem ar.
Antipoema.
Sinto que a poesia é necessária.
Poesia que nem sempre o mundo faz brotar
na palma da mão do poeta.
Mas ainda que se negue se firmando,
ainda na forma de antipoema,
171
a poesia é necessária.
A poesia é necessária.
A poesia é necessária.
(LOUREIRO.,2017, p. 186)
Tirar a poesia do Olimpo é uma necessidade. Dever de todos nós que temos acesso
à palavra. A linguagem poética é uma porta estreita e como bem disse a professora
Renilda Bastos em suas considerações na qualificação, essa pesquisa presta conta com a
própria autora. Porque, sim, precisei procurar pela poesia para alargar essa porta para mim
e para os que passam comigo. E nessa passagem me dar conta de que a poesia também
está na partilha, no entregar a chama ao outro, aos que estão no caminho. E assim, a cada
leitor tocado, a chama dividida aumenta e sobrepuja as (nossas) pedras no meio do
caminho.
172
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CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
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