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..kea& 1 Antropo l ogia Arquitetura Geograf ii a ' Socio l ogia ISBN 85-0m-01962-9 Roberto Lobato Corrêa REGIAOE pRGANIZACAO i ESPACIAL 1 1 9 788508 019625 1 _ .......... _,\_

Roberto Lobato Corrêa - Regiao e Organização Espacial 01

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O propósito deste estudo é introduzir o estudante de geografia em dois conceitos fundamentais: o de região e o de organização espacial. Eles também são considerados por outras ciências sociais como a sociologia e a economia, mas não têm nestas a relevância adquirida na geografia. Ao longo da história da geografia, têm se situado no centro da discussão sobre o seu objeto, e erigidos na prática como os conceitos de maior importância. Outros conceitos podem ser considerados, a nosso ver, de menor importância, tais como posição geográfica e sítio.

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..kea& de,~ do-~ 1 • Antropologia • Arquitetura • Geografiia ' • Sociologia

ISBN 85-0m-01962-9

Roberto Lobato Corrêa

REGIAOE pRGANIZACAO i ESPACIAL

1 1 9 788508 019625 1

_.........._,\_

Roberto Lobato Corrêa

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Geógrafo da Fundação Instituto Brasi leiro de Geografia e Estatística

REGIÃO E ORGANIZACAO

ESPACIAL 7ª edição 3ª impressão

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Direção Benjamin Abdala Junior

Sarnira Voussef Campedelli Preparação de texto

Rogério Ramos Arte

Coordenação e projeto gráfico (miolo)

Antônio do Amaral Rocha Arte-final

René Etiene Ardanuy Joseval Sousa Fernandes

Capa Ary Normanha

Impressão: Gráfica P a las Athe na

ISBN 85 08 01962 9

2003

Todos os direitos reservados peta Editora Álica Rua Barão de lguape, 110 - CEP 01507-900

Caixa POS1al 2S37 - CEP 01065-970 São Paulo-SP

Tel.: oxx 11 334&3000- Fax: oxx 11 32n-4146 Internet: http://Www.alica.rom.br e-mail: [email protected]

Sumário 1 . lntrodução ______________ 5

2. As correntes do pensamento geográfico_7 O determinismo ambiental 8 O possibilismo 11 o método regional 14 A nova geografia 16 t\ geografia crítica 19

3. Região: um conceito complexo 22

Região natural e determinism o a mbiental 23 Poss ibilismo e região 27 Nova geografia, classes e região 32 Região e geografia crítica 40 R1:gião, ação e controle 47

4 . Organização espacial 51

0 1·• unização esp acial: uma conceituação 54 t >1 gnnização espacial: capital e Estado 60 C >1~11nização espacial: reflexo social 67 e >1 " nnlzação espacial e reprodução 72 1 1111·11L111·n, processo, função e forma 75 l •11 p11~0 o movimentos sociais u rbanos 80

1 Voc.nbu lá rio crítico 85

1 LUbllografia comentada 89

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1 Introdução

p ro pósito deste estudo é introduzir o estudante de ~1•11wufi a e m dois conceitos fundamentais: o de região e o 111 nr onização espacial. Eles também são considerados 1111 1 oulrns c iências sociais como a sociologia e a economia, 1111111 nno tê m nestas a relevância adquirida na geografia.

11 longo da história da geografia, têm se situado no 11111111 dn discussão sobre o seu objeto, e erigidos na prá-1 h 11 1•0 1110 os conceitos de maior importância.

C htl ros conceitos podem ser considerados, a nosso 1, 1le menor importância, tais como posição geográfica

1111111 ,

( ) 11 1:unccitos de região e de organização espacial são I• llh 101 pnrn. se compreender o caráter distinto da geo-

1 1fl11 1111 (\rnbilo das ciências sociais, indicando a via j 1•11111/11 " tlc conhecimento da sociedade, quer dizer, das t '"'-''' 1•11 1 rc nntureza e história. A discussão destes ter­m11111 11111 outro Indo, pressupõe que se tenha uma certa h1h11111111,110 dll evolução do pensamento geográfico desde, I' ln 1111111111, o final do século XIX, quando a geografia

111111111l 11 1•111 11 1 1· de disciplina acadêmica, dotada de um

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processo de mudança de paradigmas que se insere no bojo da história.

O presente estudo compõe-se de três partes. A primeira delas procura situar o leitor em termos de como se pensa a geografia nesse espaço de tempo. Esta parte tem o caráter de introdução às outras duas, procurando colocar em evidência os modelos geográficos básicos, dentro dos quais se discutem os conceitos de região e de organização espacial. Assim, não se trata da a.presentação das correntes de pensamento geográfico de per si, pois elas têm como foco os dois conceitos-chave de que esta­mos tratando. Para este assunto de vital importância na formação do geógrafo e do professor de geografia, suge­rimos que se leia o livro de Antonio Carlos Robert Mo­raes (1981) *. A "Bibliografia comentada" cobre, por ou­tro lado, a história do pensamento geográfico com certa profundidade . .

A segunda parte aborda os diversos conceitos de região, enquanto a terceira apresenta a questão da orga­nização espacial. Constituem o centro deste estudo.

Ao final muitas questões terão sido levantadas e fica­rão sem respostas. Em parte esta é a nossa intenção. E tem como finalidade o aprofundamento das discussões sobre os conceitos de região e organização espacial.

* As referências bibliográficas que não aparecem no pé da página são de obras incluídas na "Bibliografia comentada" ao final deste volume. No texto propriamente dito serão apenas acrescentados os dados faltantes, como capítulo, página etc.

2 As correntes do

pensamento geográfico

No nosso entender, as principais correntes de pensa­mento geográfico ou paradigmas da geografia são os se­guintes: o determinismo ambiental, o possibilismo, o mé­todo regional, a nova geografia e a geografia crítica. Foram formalmente explicitadas a partir do final do século XIX, constituindo uma seqüência histórica de incorporações de práticas teóricas, empíricas e políticas que, não excluindo nenhuma delas, apresenta a cada momento um ou dois pa­drões dominantes. Assim, o determinismo ambiental e, me­nos ainda, o possibilismo não desapareceram totalmente, mas perderam o destaque, sobretudo o determinismo am­biental. Por outro lado, a geografia crítica é o último mode­lo a ser incorporado, passando a coexistir conflitivamente com os outros, principalmente a nova geografia.

Estas tendências estão fundamentadas, de um modo, na consideração da geografia como um saber calcado em uma das três abordagens: o estudo das relações homem/ meio, o de áreas e os locacionais. Adicionalmente, tem sido adotada uma combinação de duas ou três das abor­dagens acima referidas. De outro, as correntes fundamen­tam-se em diferentes métodos de apreensão da realidade.

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Entre eles, destaca-se o positivismo, quer na sua versão clássica, quer na do positivismo lógico. O materialismo histórico e a dialética marxista, que d ão base ao seg­mento mais importante da geografia crítica, são métodos de incorporação recente à geografia.

Subjacente a todos os paradigmas há um denomina­dor comum: a geografia tem suas raízes na busca e no entendimento da diferenciação de lugares, regiões, países e continentes, resultante das relações entre os homens e entre estes e a natureza. Não houvesse diferenciação de âreas, para usar uma expressão consagrada, certamente a geografia não teria surgido. Estamos falando, pois, do cerne da geografia, ainda que o seu significado não tenha sido sempre o mesmo. Os conceitos de região e organiza­ção espacial estão vinculados a esta idéia básica em geo­grafia.

O determinismo ambiental

A geografia emerge como uma disciplina acadêmica a partir de 1870. Até então, e desde a Antigüidade, a geografia compunha um saber totalizante, não desvincula­do da filosofia, das ciências da natureza e da matemática. Com Varenius no século XVII, Kant no XVIII, e Hum­boldt e Ritter já na primeira metade do XIX, a geografia vai gradativamente configurando um conhecimento especí­fico, sem contudo perder de vez a visão globalizante da realidade.

As últimas décadas do século XIX caracterizam-se por dois processos que são extremamente importantes pa­ra a história do homem e da geografia. De um lado, o ca­pitalismo passa a apresentar uma progressiva concentração de capitais, gerando poderosas corporações monopolistas e uma nova expansão territorial. Inaugura-se a sua fase im-

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pcrialista. O outro processo, que se vincula ao primeiro, é o da fragmentação do saber universal e m várias discipli­nas. Assim, criam-se departamentos de geografia nas uni­versidades européias e, mais tarde, nas norte-americanas, conforme aponta, entre outros, Brian Hudson 1 .

Foi o determinismo ambiental o primeiro paradigma a caracterizar a geografia que emerge no final do século XIX, com a passagem do capitalismo concorrencial para uma fase monopolista e imperialista.

Seus defensores afirmam que as condições naturais, especialmente as climáticas, e dentro delas a variação da temperatura ao longo das estações do ano, determinam o comportamento do homem, interferindo na sua capacidade de progredir. Cresceriam aqueles países ou povos que esti­vessem localizados em áreas climáticas mais propícias.

Fundamentando a tese do determinismo ambiental, estavam as teorias naturalistas de Lamarck sobre a here­ditariedade dos caracteres adquiridos e as de Darwin sobre a sobrevivência e a adaptação dos indivíduos mais bem dotados em face do meio natural. Estas teorias foram ado­tadas pelas ciências sociais, que viam nelas a possibilidade d e explicar a sociedade através de mecanismos que ocor­rem na natureza. Foi Herbert Spencer, filósofo inglês do século XIX, o grande defensor das idéias naturalistas nas ciências sociais.

Na geografia, no entanto, as idéias deterministas ti­veram no geógrafo alemão Frederic Ratzel seu grande or­ganizador e divulgador, ainda que ele não tivesse sido o expoente máximo. A formação básica de Ratzel passou pela zoologia, geologia e anatomia comparada; foi aluno de Haeckel, o fundador da ecologia, que o introduziu no darwinismo. No entanto, seu determinismo ambiental foi

1 HuosoN, Brian. The New Geography and the New lmperialism : 1870-1918. Antipode, 9(2) , 1977.

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amenizado pela influência humanista de Ritter. Criou, desta forma, a geografia humana, denominada por ele de an­tropogeografia e marcada pelas idéias oriundas das ciên­cias natu rais.

Nos Estados Unidos e, em menor escala, na Ingla­terra, o determinismo imprimiu-se profundamente no nas­cimento da geografia. O primeiro dos países passava, no final do século passado e início deste, por uma fase de afirmação nacional, em q ue se justificava o progresso a tra­vés das riquezas naturais. Ellen Semple, discípula de Ratzel, discorre sobre as influências das condições geográficas (configuração da costa, padrão dos rios, cadeias de mon­tanhas, climas etc.) na história norte-americana.

A Inglaterra tornara-se, nesse momento, a grande metrópole imperialista. O determinismo ambiental justi­ficava a expansão territorial através da criação de colônias de exploração no continente africano, e de povoamento em regiões temperadas, a serem ocupadas pelo excedente de­mográfico britânico e europeu.

Na realidade, o determinismo ambiental configura uma ideologia, a das classes sociais, países ou povos ven­cedores, que incorporam as pretensas virtudes e efetivam as admitidas potencialidades do meio natural onde vivem. Justificam, assim, o sucesso, o poder, o desenvolvimento, a expansão e o domínio. Não é de estranhar, pois, que na Grécia da A ntigüidade se atribu íssem à s características do clima mediterrâneo o progresso e o poderio de seu povo em face dos asiáticos que viviam em áreas caracteriza­das pela invariabilidade anual das temperaturas. Muito mais tarde, no final do século XIX, seríam outras as carac­terísticas climáticas consideradas como favoráveis ao cres­cimento intra e extraterritorial. Transformava-se assim em natural, portanto fora do controle humano, uma situação que é econômica e social, histórica portanto, denomin ada imperialismo.

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)Estabeleceu-se uma relação causal entre o comporta­mento humano e a natureza, na qual esta aparece como ele­mento de determinação, As expressões fator geográfico e condições geográficas, entendidas como clima, relevo, ve­getação etc., são heranças do discurso ideológico determi­nista. Outra delas, particularmente relevante para nós, é a região natural. Voltaremos a ela em breve.

Ratzel, por sua vez engajado no projeto de expansão alemã, legou-nos o conceito de espaço vital, quer dizer,_ o território que representaria o equilíbrio entre a populaçao ali residente e os recursos disponíveis para as suas neces­sidades, definindo e re1acionando, deste modo, as possi­bilidades ·de progresso e as demandas territoriais. O espaço vital está implicitamente contido na organização espacial, delimitando, no campo do capitalismo, parte da superfície d a terra organizada pelo capital e pelo Estado capitalista, extensão que se tornou necessária à reprodução do mesmo. Em linguagem organicista, espaço vital equivale à expres­são espaço do capital.

O possibilismo

Em reação ao determinismo ambiental surge, na França no final do século XIX, na Alemanha no começo do XX e nos Estados Unidos na década de 20, um outro paradigma da geografia, ~o~sibili.smo. A semelhança do determinismo ambiental, a visão possibilista focaliza as relações entre o homem e o meio natural, mas não o faz considerando a natureza determinante do comportamento humano.

A reação ao determinismo ambiental, mais forte na França, tem como motivação externa a situação de con­fronto entre ela e a Alemanha. O possibilismo, francês em

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sua origem, opõe-se ao determinismo ambiental germâ­nico. E sta oposição fundamenta-se nas diferenças entre os dois países.

Ao contrário da Alemanha, unificada em 18 71, a França já era França há muito tempo. Lá a revolução burguesa tinha se dado de modo mais completo, extir­p ando o s resquícios feudais, ainda existentes na Alemanha. Esta chega tardiamente à corrida ·colonial, enquanto a Fra nça dispunha, então, de um vasto império; os interesses expansionistas ale m ã es voltaram-se, em grande parte, para a própria Europa. Acrescente-se ao quadro a luta de classes, que assumia formas mais acirradas na França, a exemplo da Comuna de Paris.

Neste contexto, a geografia francesa teria de cumprir simultaneamente vários papéis:

a) Desmascarar o expansionismo germânico - criticando o conceito de espaço vital - sem, no entanto, invia­bilizar intelectualmente o colonialismo francês;

b) Abolir qualquer forma de determinação, da natureza ou não, adotando a idéia de que a ação humana é mar­cada pela contingência;

c) Enfatizar a fixidez das obras do homem, criadas atra­vés de um longo processo de transformação da natu­reza; assim os elementos mais estáveis, solidamente im­plantados na paisagem, são ressaltados, não se privile­giando os mais recentes, resultantes de transformações que podem colocar em risco a estabilidade e o equilí­brio, alca nçados anteriormente. Daí a ênfase no estudo dos sítios predominantemente rurais.

N o plano interno à geografia, havia a reação a ela te r s ido definida por uma relação de causa e efeito - a n a tureza determinando a ação humana - e não por um o bje to empiricamente identificável. Pensou-se, então, na

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paisagem como uma criaçã o humana, elaborada ao longo do te mpo, sendo a paisagem natural transformada em cul­tura l ou geográfica.

Na realidade, para V_jQ.al d e_la Blach~ o mestre do possibilismo as relações entre o homem e a natureza eram bastante complexas. A natureza foi considerada como for­necedora de possibilidades para que o homem a modifi­casse: o homem é o principal agente geográfico. Vidal de la Blache redefine o conceito de gêp.ero de vida herdado e.lo d eterminismo, conforme aponta ·Paul Claval (1974): trata-se não mais de uma conseqüência inevitável da na-

tureza, mas de

um acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes, que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponíveis

tal como Moraes (1981) a ele se refere. Os gêneros de v ida p ensados anteriormente exprimiam uma situ_ação de eq uilíbrio entre população e os recursos natura1~. Uma paisagem geográfica enquadraria, na verdade, a area de ocorrência de uma forma de vid~.

A paisagem geográfica tem, ainda, uma extensão territo rial e limites razoavelmente identificáveis. Nestes term o s a região é a expressão espaci_al da ocorrência de uma ~esma paisagem geográfica. O _ objeto da geografia possibilista é, portanto, a região, e a geografia confunde-se, então, com a geografia regional.

E nquanto formas criadas pelo homem sobre a su­perfície da Terra, a paisagem poderia ser considerada si­nônimo de organização espacial? Primeiramente, lem­bre-se de que este conceito não foi cogitado pela geografia vid aliana.

E m segundo lugar, no nosso entender, o conceito de paisagem - campos agrícolas dispostos pelas encostas sua­ves d e um vale, florestas nas íngremes, caminhos entre os

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campos e ao longo do rio onde se localizam os núcleos d e povoamento etc. - aproxima-se do de organização espacial que adotamos neste estudo. No entanto, o conceito de paisagem apresenta uma limitação dada pela ênfase em um aspecto exterior, derivado de sua apreensão via método empírico-indutivo.

Por outro lado, o conceito de paisagen1, que acaba se confundindo com o de região, está associado à visão de unicidade, isto é, de um fenômeno que ocorre uma única vez, sem se repetir.

O conceito de organização espacia l é, para nós, m ais abrangente e rico que o de paisagem.

O método regional

O méto_do regiol!_al consiste no terceiro paradigma da geografia, opondo-se ao determinismo ambiental e ao possibilismo. Nele, a diferenciação de áreas não é vist a a partir das relações entre o homem e a natureza, ii!as sim da integração de fenômenos heterogêneos em uma dada porçã o da superfície da Terra. O método regional focaliza assim o estudo de áreas, erigindo não uma rela­ção causal ou a paisagem regional, mas a sua diferencia­ç ã o de per si como obje to da geografia.

O método regional tem merecido a atenção de geó­grafos desde pelo menos o século XVII, com Varenius. O filósofo Kant e o geógrafo Carl Ritter, respectivamente no final do século XVIII e na primeira metade do XIX, ampliaram as bases dos estudos de área. No final do século passado, Richthofen estabelece o conceito de co­rolog ia (integração ·de fenômenos heterogêneos sobre uma d ada á rea ) , desenvolvido mais tarde por Alfred Hettner.

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Contudo, a geografia do final do século passado e início deste vivenciava a disputa entre as correntes deter­minis ta e possibilista, não se valorizando o método re.gio­nal. Apenas a partir dos anos 40, e nos Estados Un1cios sob retudo a tradição de .estudos de área assume expres­!H o. No ~entro da valorização do método regional está o geógrafo norte-americano Hartshorne 2 • Com ele, o no­v o paradigma ganha outra dimensão.

No plano externo, o método r~gion~l evidencia. a necessidade de produzir uma geografia regional, ou se1a, um conhecimento sintético sobre diferentes áreas da su­pcríície da Terra. Preocupação antiga, derivada da ~xpan­Hl'ío mercantilista dos séculos XVI e XVII, aparecia, en­l l'lo , como resultado da demanda das grandes corporações e dos a parelhos de Estado.

No plano interno, registra a procura de uma iden­tidade para a geografia, que se obteria não a partir de um objeto próprio, mas a través de um método exclusivo. R esumindo, diferenciação de áreas passa a se considerar n resultado do método geográfico e, simultaneamente, o nhje to da geografia.

Para Hartshorne, o cerne da geografia é a regional que, como vimos, busca a integração entre fenômen':s he terogêneos em seções do espaço terrestre. Estes feno-111c nos apresentam um significado geográfico, isto é, con­t 1 lhucm para a diferenciação de áreas. Da integração des-lt 11 - estudados sistematicamente pelas outras ciências - , su rge a geografia como uma ciência de síntese.

Em sua proposição, Hartshorne não adota a região t mno o objeto da geografia. Para ele, importante é o mé­todo de identificar as diferenciações de área, que resul-

f li\l\TSllORNE, Richard. The Nature of Geography. ln: Annals 11/ fll l! Associatio n o / American Geographers, 29, 1939.

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taro de uma integração única de fenômenos heterogêneos. Diz ele em seu clássico estudo de 1939:

O objeto da geografia regional é unicamente o caráter va­riável da superfície da Terra - uma unidade que só pode ser dividida arbitrariamente em partes, as quais, em qual­quer nível da divisão, são como as partes temporais da história, únicas em suas características a.

A região, para Hartshorne, não passa de uma área mostrando a sua ll-.ni ç_t_dade, resultado de uma integraçj!o de natureza_ única de fe!_lÔ_!!lenos ]_l~terog~neos.

O conceito de organização espacial também não é cogitado pelo método regional. Para tanto, pressupõe-se pensar a prio~·i na existência de uma lógica em ação, resul­tante da efetivação de regras ou leis de natureza social. Ora, a proposição hartshorniana não admite a existência de outras leis além da unicidade do caráter integrativo dos fenômenos sobre a superfície da Terra.

Deste modo, as contribuições do paradigma do mé­t~do regi~nal !:'ªra os c_onceitos de região e de organiza­çao espacial sao, em s1 mesmas, muito limitadas. Iriam susci.tar, no e~tanto: enorme crítica, na qual aquilo que nos mteressa e considerado de modo privilegiado.

A nova geografia

Após a 2.ª Guerra Mundial, verifica-se uma nova fase de expansão capitalista. Ela se dá no contexto da recuperação econômica da Europa e da "guerra fria" en­v?lvendo maior concentração de capital e progresso' téc­?,1co, . resultando na ampliação das grandes corporações Jª existentes. Esta expansão defronta-se, ainda, com 0

3 HART SHORNE, R ichard. Op. c it. , 643-4.

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desmantelamento dos impérios coloniais, sobretudo a par­llr dos a nos 60.

Não se trata mais de urna expansão marcada pela conqu ist a territorial, como ocorreu no final do século pas­"odo; ela se dá de outra maneira e traz enormes conse­qUCncias, afetando tanto a organização social como as formas espaciais criadas pelo homem.

U ma nova divisão social e territorial do trabalho é posta cm ação, envolvendo introdução e difusão de no­vas culturas, industrialização, urbanização e outras rela­ções esp a ciais. As reg10es elaboradas anteriormente à guerra são desfeitas, ao mesmo tempo que a ação huma­no, sob a égide do grande capital, destrói e constrói no­vos formas espaciais, reproduzindo outras: rodovias, fer­rovias, r epresas, novos espaços urbanos, extensos campos 11srfcolas despovoados e percorridos por modernos trato­res, sh o pping centers etc. Trata-se de uma mudança tanto t\() conteúdo como nos limites regionais, ou seja, no ar-1 nnjo espacial criado pelo homem.

Estas transformações inviabilizariam os paradigmas t rutlicionais da geografia - o determinismo ambiental, n possibilismo e o método regional -, suscitando um 11uvo, c alcado em uma abordagem locacional: o espaço 11ltcra d o resulta de um agregado de decisões locacionais.

A geografia que ~~ em_[Ileado~ da década de _SO, 1 nnh ccida como ~ova geografia, tem um papel ideológico 11 NCr cumprido. -ê__preciso justificar a expansão çapitalista, e t'l\tno tear as transformações q~e_afetaram os gêneros qe vltln e p aisagens -~li_damente _ est~belecidjls,..::-assim_ ÇQJl!O

cl11r esperanças aos "deserdados da terra", acenando c9m li porspcctiva de desenvolvimento a curto e médio Rrazo: 11 u bdcsenvolvimento é encarado como uma etap~-~e­•1 Hllliria, superada em pouco tempo. A teori~ dos póios

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de desenvolvimento é um dos melhores exemplos desta ideologia.

A nova geografia nasce simultaneamente na Suécia, na Inglaterra e nos Estados Unidos, neste último país co­mo uma ferrenha crítica à geografia hartshorniana. Adota uma postura pragmática que se associa à difusão do sistema de planejamento do Estado capitalista, e o positivismo lógi­co como método de apreensão do real, assumindo assim uma pretensa neutralidade científica.

Ao contrário do paradigma possibilista e da geogra­fia hartshorniana, a nova procura leis ou regularidades empíricas sob a forma de padrões espaciais. O emprego de técnicas estatísticas, dotadas de maior ou menor grau de sofisticação - média, desvio-padrão, coeficiente de correlação, análise fatorial, cadeia de Markov etc. - , a utilização da geometria, exemplificada com a teoria dos grafos, o uso de modelos normativos, a adoção de certas analogias com as ciências da natureza e o emprego de princípios da economia burguesa caracterizam o arsenal de regras e princípios adotados por ela. :F- conhecida ta.!Jl­f?~m como geografia teorética ou geografia quantitativa.

~nova geografia considera a região um caso par­ticular de classificação, tal como se procede nas ciências i:iaturais. E toda discussão sobre região no seu âmbito corresponde a uma crítica aos conceitos derivados do determinismo ambiental e do possibilismo. O conceito de organização espacial tem todas as condições para apare­cer na nova geografia. Pois o rápido processo de mudança locacional que se verifica no pós-guerra, afetando o ar­ranjo sobre a superfície da Terra das formas criadas pelo homem, e envolvendo vultosos recursos, suscita a questão da eficiência máxima de cada localização rearranjada. Eficiência máxima, naturalmente, na .ótica do capital.

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Desenvolve-se o conceito de organização espacial e nt e ndido como padrão espacial resultante de decisões Jn,·acionais, privilegiando as formas e os movimentos so­ht l' a superfície da Terra (interação espacial)'·

Surge também na França, onde, a nosso ver, estava latente no pensamento vidaliano. Mas não dentro da nova geografia, tal como era definida nos países anglo­s.1xões e na Suécia, e sim numa geografia econômica e

aplicada, em cujo centro situa-se Pierre George e a polí­tica de aménagement du territoire 5 •

A geografia crítica

O debate interno à geografia prossegue durante as d6cadas de 70 e 80. A nova geografia e os paradigmas tradicionais são submetidos a severa crítica por parte de uma geografia nascida de novas circunstâncias que pas­'ia m a caractedzar o capitalismo. Trata-se da _geografia crítica, cujo vetor mais significativo é aquele calcado no m a terialismo histórico e na dialética marxista.

As origens de uma geografia crítica, que não só con­testasse o pensamento dominante, mas tivesse também a intenção de participar de um processo de transforma­ção da sociedade, situam-se no final do século XIX. Tra­ta-se da ~qgrafia proposta pelos an~rq_uistas ::E:Iisée Re­clus e Piotr Kropot~i_n. Ela não fez escola, submergida pela geografia "oficial", vinculada aos interesses domi­nantes.

' AnLER, R.; ADAMS, J. S. e GoULD, P . Spatial Organization; 1 h c Geographer's View of the World. Englewood Cliffs, Prentice­lrall , 1971.

• LABASSE, Jean. L'organization de l'espace; éléments de géogra­ph ic volontaire. Paris, Hermano, 1966.

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A partir da segunda metade da década de 60, verifi­ca-se nos países de capitalismo avançado o agravamento de tensões sociais, originado por crise de desemprego, habitação, envolvendo ainda questões raciais. Simultanea­mente, em vários países do Terceiro Mundo, surgem mo­vimentos nacionalistas e de libertação. O que se pensava até então em termos de geografia não satisfaz, isto é, não mascara mais a dramática realidade. Os modelos norma­tivos e as teorias de desenvolvimento foram reduzidos ao que efetivamente são: discursos ideológicos, no melhor dos casos empregados por pesquisadores ingênuos e bem intencionados.

Uma geografia crítica começa a se esboçar, congre­gando geógrafos de mentes abertas, que tinham se dedi­cado à nova geografia, como William Bunge e David Harvey, ou que tinham uma posição política de esquerda na geografia herdeira das tradições vidalianas, a exemplo d e Yves Lacoste. Esta visão crítica é aceita sob reservas pelo Estado capitalista, na medida cm que este não pode desempenhar seu papel de controle , apoiado em informa­ções provenientes de seu serviço de propaganda. Vários são os periódicos que focalizam criticamente a geografia: Antipode, Newsletter (Union of Socialist Geographers), Hérodote, Espace Temps e Espace et Luttes. Adicional­mente, em numerosos outros periódicos , há contdbuições de geógrafos críticos.

No caso do Brasil, a geografia crítica nasce no final da década de 70, cujo marco foi o 3.0 Encontro Nacio­nal de Geógrafos, realizado em julho de 1978 em Forta­leza, sob os auspícios da Associação dos Geógrafos Bra­sileiros.

Além das acirradas criticas aos paradigmas que a precederam, as contribuições da geografia crítica, ainda em curso, são numerosas. Dizem respeito à reinterpreta­ção, com base na teoria marxista, de aspectos que tinham

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s ido abordados pela nova geografia. Assim, reexamina-se a questão da jornada de trabalho, da terra urbana, da habitação, dos transportes regionais e da localização in­d us trial. A geografia crítica descobre o Estado e os de­mais agentes da organização espacial: os proprietários fun­d iários, os industriais, os incorporadores imobiliários etc.

A questão das relações entre o homem e a natureza, central no temário do determinismo ambiental e do pos­s ibilismo, é também repensada à luz do marxismo. O tema da r egião, questão clássica na história do pensamento geográfico, é retomado pela geografia crítica. Neste sen­tido, uma tentativa de conceituação de região será feita m a is adiante procurando entendê-la por uma visão dialé­tica.

Entre os avanços realizados pela geografia crítica estão aqueles associados à questão da organização espacial, he rdada basicamente da nova geografia. Trata-se, no caso, d e ir além da descrição de padrões espaciais, procuran­do-se ver as relações dialéticas entre formas espaciais e os p rocessos históricos que modelam os grupos sociais.

Na discussão do conceito de organização espacial, a l'on tribuição dos geógrafos brasileiros tem sido muito im­portante. Assim, por exemplo, considera-se a teoria mar­x is ta do valor como base para se empreender uma aná­li se espacial, conforme o fazem Antonio Carlos Robert M o raes e Wanderley Messias da Costa (1984). Outra con-1 ribuição é a de Milton Santos com o conceito de forma­c;iio sócio-espacial, onde a organização espacial constitui pn rte integrante de uma dada sociedade. Milton Santos ( 19 78) levanta ainda a polêmica questão da organização espacial como instância da sociedade.

A discussão que empreenderemos sobre este conceito estará fundamentalmente baseada na geografia crítica.

3 Região:

um conceito complexo

O termo região não apenas faz parte do linguajar do homem comum, como também é dos mais tradicionais em geografia. Tanto num como noutro caso, o conceito de região está ligado à noção fundamental de diferencia­ção _dg__ área, g_uer dizer_:~aceitação da idéia de que- a superfície da Terra é constituída por áreas diferentes en­tre si.

A utilização do termo entre os geógrafos, no entanto, não se faz de modo harmônico: ele é muito complexo. Queremos dizer que h á diferentes conceituações d e região. Cada uma delas tem um significado próprio e se insere dentro de uma das correntes do pensamento geográfico. Isto quer dizer que, quando falamos em região, implicita­mente, mas de preferênca de modo explícito, estamos nos remetendo a uma das correntes já identificadas anterior­mente.

Dois pontos devem ser abordados nesta introdução e ambos se referem ao nosso posicionamento. Primeiramen­te, achamos que a região deve ser vista como um con­ceito intelectualmente produzido. Partimos da realidade, claro, mas a submetemos à nossa elaboração crítica, na

23

sequencia, procurando ir além da sua apreensão em bases puramente sensoriais. Procuramos captar a gênese, a evo­lução e o significado do objeto, a região.

Em segundo lugar, queremos deixar claro que todos os conceitos de região podem ser utilizados pelos geógra­ros. Afinal todos e les são meios para se conhecer a reali­dade, quer num aspecto espacial específico, quer numa dimensão totalizante: no entanto, é necessário que expli­c itemos o que estamos querendo e tenhamos um quadro territorial adequado aos nossos propósitos.

Nesta parte iremos ver os principais conceitos de re­gião, ou seja, o de região· natural, o de região geográfica de Vidal de la Biache e o de região como classe de área, já tradicionalmente estabelecidos. Tentaremos conceituá-la sob o ângulo do materialismo histórico, onde, acredita­mos, não está solidamente estabelecida. Finalmente, dis­cutiremos a questão da região como um instrumento de nção e controle dentro de uma sociedade de classes.

Região natural e determinismo ambiental

No final do século XIX, e durante as duas primeiras décadas deste, quando a ciência geográfica foi impulsio­nada pela expansão imperialista, sendo o determinismo ambiental uma de suas principais correntes de pensamen­to, um dos conceitos dominantes foi o de região natural, saído diretamente do determinismo ambiental. A região natural é entendida como uma parte da superfície da Terra, din1ensionada segundo escalas territoriais diversifi­cadas, e caracterizadas pela uniformidade resultante da combinação ou integração em área dos elementos da na­tureza: o clima, a vegetação, o relevo, a geologia e outros ad icionais que diferenciariam ainda mais cada uma des-

24

tas p~rtes. Em outras palavras, uma reg1ao natural é um ~sistema Q_nde seus elementos acham-se integrados e sjio interagente.s . -- -

. .E: ~reciso ?eixar claro que a idéia de combinação ou mtegraçao em area_ de elementos diversos é muito impor­tante P.ª~ª o conc~1to de região visto sob o paradigma do determ1msmo ambiental (e para outros também). Um ma­P~. com a <listribuição espacial dos tipos climáticos de Ko~pen, p~r exemplo, não se refere a uma combinação ou mtegraçao abrangendo elementos heterogêneos da na­tureza. T~a~a-s: de uma divisão . apoiada na temperatura e n.i: pre~1p1~~çao, com as quais Kõppen estabeleceu suas reg1oes c11maticas. A região natural é mais complexa.

Ao contrário, a divisão regional proposta por Her­bertson_ 1

_ :_stá ª?º~ada no concei to de região natural. E uma d1v1sao class1ca, que ainda hoje exerce influência no ensino da geografia na escola secundária. Herbertson c~m b_a~e no clima ,e. no relevo, e considerando a vegeta~ çao, d~v1de a superf1c1e da Terra em 6 tipos e 15 subtipos, que n~o a~r~sentam contigüidade espacial, e 57 regiões naturais, d1stmtas dos primeiros por apresentarem esta contigü_idade. Os 6 t ipos são os seguintes: polar, tempe­rada fna, temperada quente, tropical, montanhosa subtro­pical, e terras baixas e úmidas equatoriais.

A Sobre a proposição de Herbertson convém ressaltar tres aspectos. Em primeiro lugar, as regiões naturais pro­postas ~onstituem uma base para estudos sistemáticos, co­mo. se mfere do título de seu artigo. Isto significa, na real!da~e, que o referido autor procurava um quadro terntonal adequado para pensar a geografia segundo a _

- b . con cepçao am 1entalista, isto é, onde se pudesse estudar e

1 HERBERTSON, A. J. The Majo1: Natural Regions: An Essay in

Systematic Geography. Geograp/11cal Journal, march, 1905.

25

1 11111prccnder as relações homem/natureza, admitindo-se qm• 11 as regiões naturais estas seriam mais evidentes, mais Jll' ll'l:pl(vcis: nelas se poderia ver mais claramente o pa­JH 1 dctcrminante da natureza sobre o homem. Neste senti­d11, 11s regiões naturais configuram, de fato, um ponto de 111111 ido, e não de chegada, ou coroamento, no quadro 1 11 ilorial que engloba o conhecimento a respeito das di­v1 1 ~ 11s áreas diferenciadas da superfície da Terra. E nes­h lc rmos que o geógrafo americano Charles Dryer, em l 1> 1 'i, aceita a idéia de que as regiões naturais devam ser 11111 meio para se compreender as relações homem/natu-11• 11, que aparecem diretamente, segundo ele, através da vi il11 econômica, para cada um dos estágios de cultura.

E m segundo lugar, o clima aparece, em Herbertson, 111 Yl' I' e o utros, como o elemento fundamental da na-11111 /li. Não resta dúvida de que a variação espacial dos ti­l"' d e c lima é um dado importante para se compreender a dll1•rc.: nc iação da ocupação humana sobre a superfície da l 1 11 11, porém no ambientalismo o clima passa a ser con-11110111do, como já se viu, fator determinante sobre o ho-

1111 111 e, c m muitos casos de modo explícito, sobre sua Ili 1111 ia. O clima é utilizado como justificativa para o

11li111111lismo em suas diversas formas (colônias de po­" 111 1~· n to e de exploração) e o racismo, duas das múlti­

l'l 1 l l in terligadas facetas do imperialismo. Muito sinto-111 1lko é o fato de Dryer referir-se às regiões econômicas 1 1111111 sendo determinadas pela natureza: justifica-se assim, t 111 11l1irpa instância, a superioridade natural das regiões e ( I• • p11íscs desenvolvidos, que teriam uma natureza mais 1 111111••11. O trecho a seguir, tirado de Herbertson, elucida 11 .tul-i aspectos acima mencionados:

l\l rnvós da compreensão da história da mesma raça em d111111 dl fe rentes regiões, ou de um conju nto de raças na 111uumo re gião. seri a possível chegar a al gum conheci-

\ I'

26

mente do efeito invariável de um tipo de meio sobre seus habitantes 2 .

Em terceiro lugar, convém lembrar que à época em que o conceito de região natural desfrutava de prestígio não se podia mais falar em área da superfície da Terra que, em algum grau, não tivesse sofrido ação humana e alterado o seu meio natural, a primeira natureza. Muito especialmente na Inglaterra do tempo de Herbertson. Isto, contudo, não tira a importância do conceito, principal­mente para os interessados no estudo sistemático dos di­ferentes ecossistemas ou regiões naturais modificadas pelo homem ao longo da história, uma abordagem que não foi considerada pelos geógrafos deterministas quando as estudaram.

Mesmo para um geógrafo francês como Camille Vallaux, de um país onde o determinismo ambiental não fez carreira, as regiões naturais e as humanas conciliam-se qua'?'~º consideradas em termos de grandes regiões da su­perf1c1e da Terra, como aquelas da floresta equatorial, das zonas desérticas, mediterrâneas, temperadas e polares. Nes­tes amplos quadros naturais, caracterizados por uma enor­me estabilidade quando comparados à história do homem o referido autor admite que os efeitos das condições na~ turais sobre o ser humano sejam significativos, traduzidos, em cada uma dessas grandes regiões, por modelos próprios de ação dos que nelas habitam. Daí a coincidência nesta escala territorial, entre regiões naturais e humanas: Esta­mos frente a uma forma amenizada, filtrada, de determi­nismo ambiental, não considerado de modo absoluto. Esta visão é, ainda, marcada pelo possibilismo: abaixo das gran­des regiões definidas pela natureza, vêm as menores carac­terizadas por elementos de ordem humana, marcados pela

2 HERBERTSON, A. J Op. cit., p. 309.

27

111 t11 hilidade e capazes de provocar mudanças no conteúdo , 11 us limites regionais.

() conceito de região natural foi introduzido no Brasil, viu l111luê ncia francesa, por Delgado de Carvalho em 1913. 1 d l' tll ro da ótica acima exposta que Fábio Guimarães 3

f1d1111 t ru a sua utilizaÇão no Brasil, visando uma divisão de 1 11 " l l'f" prá tico e duradouro, que possibilitasse a compara­!.; 111 de dados estatísticos ao longo do tempo. Guimarães, 111 1 l111 ndo a identificação das regiões naturais propostas 11111 l)c !gado de Carv~lho, considera as seguintes grandes r, 11l11cs na turais: norte, nordeste, leste, sul e centro-oeste. 1 .. 111-i unidades regionais maiores foram divididas em 11 plCks, sendo estas, por sua vez, subdivididas em zonas f l11 l11gr:.íficas, caracterizadas por elementos de ordem hu-111111 111.

110 s ibilismo e região

O possibilismo considera de modo diferente a questão ti 1 l l'gião. N ão é a região natural, e sua influência sobre " li11111c 111 , que domina o temário dos geógrafos possibilistas. 1 "'Ili dúvida , urna região humana vista na forma da geo­J' ' 11 1111 regio n a l que se torna seu próprio objeto. A região 1 111i..1dc rac.l a é concebida como sendo, por excelência, a ,, J;·/1111 geogr áfica. Assim, os conceitos de região natural e ri i•li111 geográfica, tal como esta será definida, são distin­'" , 11111 10 no que se refere às suas bases empíricas, como 11111f 1·u s pro pósitos.

l~cngindo ao determinismo ambiental, o possibilismo 1 1111 •.llkra a evolução das relações entre o homem e a

D 1 >lvf,ho n.:g io nal do Brasil. R e vista brasileira d e geografia, 3 1 "1. 1, l '14 1.

\1

28

;:~t~~el~~~'!~:· aª~~ongo_ da história, passam de uma adap­com sua cultura cri: :ç;~ mo.deladora, pela qual o homem amb , · paisagem e um gênero de vida da T~srr~~opnos e peculiares a cada porção da superfíci~

Com diferenças em maior ou aparecem na França no r 1 d émenor grau, estas idéias Vidal de Ia Biache na AI ma ho s cul~ passado com Paul século com Otto S~hl'"t eman a da primeira década deste com Carl S u er, ~ no.s Estados Unidos, em 1925

auer, que se inspirou no d . , autores Em todos os t A s ois mencionados

· res casos trata-se da -ao determinismo ambiental e mesma reaçao ceita de região natural. ao seu correspondente con-

A região geográfica abrange . tensão territorial onde se t 1 uma paisagem e sua ex-

, en re açam de modo h . componentes humanos e natureza . ,. armon1oso de equilíbrio, evidente analo . . A .1~e1a de harmonia, la BJache adota consft . g1a organicista que Vida! de cesso de evolução, de \.::~t~rare;~ltado d~- um longo pro­obras do homem fixaram ç da reg1ao, onde muitas força de permanência _-se, ao mesmo tempo com grande quadro final da a ão ~ mcorporadas sem contradições ao

·- ç umana sobre a natureza. Reg1ao e paisagem ç .

sociados, pode ndo-se igual:~ ~~nceitos ~quival~n_t~s ou as­grafia regional ao estudo d ' . geografia poss1b1hsta, geo­tem apoio lingüístico· em fa pa~sagem. E esta equivalência

· rances pays ( · de pays (pequena região homo ênea) .age pa1sa__?em) vem vra landschaft tem dois t.gd , em alemao a pala-d sen 1 os· paisagem e t -

e um território que se caracte . . ex ensao mais ou menos bom A • nz~ p~r apresentar aspecto paisagem e S ogeneo, em mgles landscape designa

, auer usou o termo · A •

região. como smommo de

A ·-~eg1ao geográfica assim concebida é considerada

uma entidade concreta, palpável, um dado com vida, su-

29

111111tlo porta nto uma evolução e um estágio de equilíbrio. r~. ' 'l' rac iocínio, chegar-se-ia à conclusão de que a região 1111111-1111 desaparecer. Sendo assim, o papel do geógrafo é o 1 l1 1 l'l:Onhecê-la, descrevê-la e explicá-la, isto é, tornar • 11111111 os seus limites, seus elementos constituintes com­l 1l1111dos e ntre si e os processos de sua formação e evolução. N tt• aspecto, a região geográfica dos possibilistas não se ill li 1 t• nc i::iva da região natural.

No processo de reconhecimento, descrição e explica-\. 111 tkssa unidade concreta, o geógrafo evidenciava a indi­

ld1111l id ade da região, sua personalidade, sua singularidade, 1q1H• ln combinação de fenômenos naturais e humanos que

111111 Sl! repetiria.

/\ concretude e individualidade de cada região são rll 11tl 11 reconhecidas pela sua população e as das regiões vi l111t ns; is to se explica pelo fato de cada região possuir 11111 11ome próprio umco, que todos conhecem a partir de 1111111 vivGncia plenamente integrada à região: pays de Caux, 1•111•1 d e la Brie, Agreste, Brejo, Campanha Gaúcha etc.

/\ região geográfica definida por Vidal de la Biache 1•11s di scípulos tem seus limites determinados por diversos

• 11111ponentes: uma fronteira pode ser o clima, outra o solo, 1111 11 11 n inda a vegetação. O que importa é que na região lt11 j11 uma combinação específica da diversidade, uma pai-

' I t 111 que acabe conferindo singularidade àquela região. N1111 NC t rata de um corte mais ou menos arbitrário na d h1 t1 ibuição desigual de um determinado elemento sobre a

11111 1 ffcie da Terra. Os esquemas a seguir, apoiados em \ "''" Locaste (1976), exemplificam a questão dos limites

d u in·dividualidade ·da região. As figuras la a ld indi­' 11111 11 divisão de um mesmo segmento de terra de acordo l11111 quatro elementos. Cada um deles apresenta uma dife-11 m•lnlida de espacial, inerente à sua própria natureza. Da

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Figura 1 REGIÕES GEOGRÁFICAS VIDALIANAS

1a - Regiões pedológicas

1b - Regiões climáticas

e 1111111111111111

•••••• '•11 11,, D

1d - Regiões

111111111

1c - Regiões de vegetação etnoli ngü ísticas

l \

' E \ I

/ '-

F / , ....

1e - Regiões geográficas

G _,,,,...-., / ·-·-

H

AC,/ EG f .

10 Regiões geográficas BÓFH

31

11111 1 posição, formam-se 1 O regioes, cada uma mar-1 n l,1 combinação singular dos 4 elementos conside­

r 1d11 ll'i'iÍ lll , há apenas uma unica regiao ACEG e uma 11111 11 11111111 de no minada ACFG conforme aparece na fi-

' 1111 , , e 1 1·c11H.:cito vidaliano de região recebeu inúmeras crí-

11 f11i tl1 Lacoste e de Claval. O primeiro dos geógrafos ri 1111 1 1., comenta que na escolha dos elemen tos que se

1111h111.1m há uma seletividade que considera apenas os 111111•11 , di..: longa duração, desprezando os elementos de n11tl1 11 1 t•1.·cnlc. Isto s ignifica que, implicitamente, conce-11 1 11 1 CAião como uma entidade acabada, concluída.

oh 111111 -i, a concepção vidaliana impõe um único modo 111 lil 1w11stH a divisão da superfície da Terra, esquecendo

111r1 c•m lalidade espacial de cada elemento (ver figuras I 1 h /d), e o fato de que outros segmentos do espaÇo 1•111h 111 !ll' r mais úteis. A concepção vidaliana de região lt111•lli 11 11ma postura e mpirista, na medida em que ela

't 1 1 e nn10 a lgo dado, auto-evidente. Finalmente, a idéia 1 li 111111111io não é adequada às sociedades estruturadas

Ili e 'h1v11l, por sua vez, lembra o fato de que, por não

h 1 • 1 11111 c ritério sistemático para se identificar regiões, 1l 1!1111dos obtidos indicam a sua diversidade, às vezes

11 t 111111clo uma realidade natural, mas na maioria dos 1 11 1 11111licionada histórica e economicamente. Era difí-

11 1 u111'lll sobre o assunto, especialmente porque não se 1111111 1 11 .1plicação dos procedimentos de utilização geral.

1 11111111 la do, constatou-se que os elementos humanos 1 11 111 11 adquirir maior importância que os naturais

1 l" l •1 • M1 de gerar as regiões geográficas. Atingia-se o 11 l 1 !'"' 1 possibilista, fundado nas relações entre o ho-' 111 1 11 11111urcza e expresso na região geográfica. Na

li

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verdade, estudos regionais focalizados em temas específi cos começaram a surgir na geografia regional francesa.

No Brasil, conforme já se indicou, as zonas fisio gráficas, a despeito do nome, foram fundamentadas n conceito de região geográfica de Vidal de la Biache: su aplicabilidade se deu na medida em que formaram base territoriais agregadas, através das quais foram divulgados os resultados dos recenseamentos de 1950 e 1960. Já as regiões homogêneas, através das quais se divulgaram os resultados dos recenseamentos de 1970 e 1980, consti­tuem uma tentativa de atualização das zonas fisiográ­ficas, adotando-se implicitamente o essencial das idéias vidalianas, apesar dos casos de exceção (áreas metropo­litanas) e do discurso eminentemente indicador do para­digma da nova geografia.

Nova geografia, classes e região

A nova geografia, fundamentada no pos1t1v1smo lógi­co, tem a sua própria versão de região, que se opõe àque­las associadas .aos paradigmas do determinismo ambiental e do possibilismo. A região, neste novo contexto, é definida como um conjunto -de lugares onde as d iferenças internas entre esses lugares são menores que as existentes entre eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares.

As similaridades e diferenças entre lugares são de­finidas através de uma mensuração na qual se utilizam téc­nicas estatísticas descritivas como o desvio-padrão, o coe­ficiente de variação e a análise de agrupamento. Em oufras palavras, é a técnica estatística que permite revelar as regiões de uma dada pcirção da superfície da Terra. Nesse sentido, definir regiões passa a ser um problema de aplicação eficiente de estatística: considerando-se os

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., 11 11 1111 1~ território, propósitos e técnica estatística, duas 11 1 111 1 cgionais deverão apresen~ar os. mesmos r~sulta-111 i11di•pcndentemente de terem s1?0 feitas por dois ~s­

.1111 ul11n•s distintos. A divisão regional assim concebida 1 1 11 ptll' uma objetividade máxima, impli~ando a a~-. 111 1 1 1k· s ubjetividade por parte do pesqmsador. .A fi-

, 111 1 • procura exemplificar uma divisão regional h1poté-, jl 1 11 fl•1·r itó rio foi dividido em três regiõe_s, e em cada 11111 1 cl1 lus as diferenças internas são mmto pequ~12as,

111 111 c1 11 se pensa nelas em comparação às outras reg1oes.

Figura 2

UMA DIVISÃO REGIONAL HIPOTÉTICA

,' 20.2 1 18.4

! -- +---118.B \ 94

: 111 .:>~1 1 ·

~ Limite de região

-- ... - Unidade de observação (por ex., município)

1 .0 ...... . . 20.2 - Valores que descrevem a variabilidade do elemento através do qual se faz a d ivisão regional.

,, 1111 1 cg1ocs são definidas estatisticamente, isto , s_ig-1 q 111 n uo se atribui a elas nenhum~ base empinca 1 1 '-.un os propósitos de cada pesqmsador que_ 1:1º_r-

1111 "~ 1 111 é rios a sere m selecionados para uri:ia d1vis_a_o 111111 1 So n inte nção é definir regiões cli?1áticas, utih-

1111 , 111 1110 iníormaçõcs pertinentes ao chma; no caso 1 1 ' " 1 11· 111 agrícolas, fontes relacionadas seriam u_sad~s.

11 .,11 ,1 11 111 dn região vidaliana, a da nova geografia nao

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é considerada uma entidade concreta, e sim uma criaçã intelectual balizada por propósitos especificados, tal com aponta Grigg 4 •

Na ampla possibilidade de aparecimento dos propó sitos de divisão regional, há dois enfoques que não s excluem mutuamente. O primeiro considera as regiõe simples, ou então complexas. No caso das regiões simples estamos considerando uma divisão regional de acordo co um único critério ou variável, originando regiões segundo por exemplo, o nível de renda da população, da criaçã de bovinos ou de tipos de solos. No segundo caso, leva mos em conta muitos critérios ou variáveis (usualment reduzidas a umas poucas através de uma técnica estatís tica mais sofisticada, a análise fatorial). Um exemplo d divisão regional complexa é a divisão de um país em re giões econômicas, envolvendo, entre outras, variáveis co mo a densidade demográfica, a renda da população, produção agropecuária e industrial e a urbanização.

O segundo enfoque visa as regiões homogêneas, o então funcionais. Trata-se de uma visão dicotomizada que perde aquela característica de integralidade que a re gião natural e a vidaliana passavam. Cada uma dessas dua regiões pode ser focalizada como simples ou complexa Por região homogênea, estamos nos referindo à unidad agregada de áreas, descrita pela invariabilidade (estatisti camente considerada) de características analisadas, está ticas, sem movimento no tempo e no espaço: a densidad de população, a produção agropecuária, os níveis d renda da população, os tipos de clima e as já menciona das regiões naturais. Um pays, tal como Vida! de 1 Biache o define, seria uma região homogênea complexa quando pensada em termos da nova geografia. Para este pa

4 GRIGG, David. Regiões, modelos e classes. Boletim geográfico 234, 1973.

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seria um dos muitos possíveis

1 l'l-\ ioes funcionais, apesar da inadequação do ter­" Ili, 11 11 ddinidas de acordo com o movimento de pessoas, .. J r< 11l1111ns. informações, decisões e idéias sobre a su-1 1 11 11 d11 Terra. Identificam-se, assim, regiões de tráfego , 111!1\ l 11 i11, fluxos telefônicos ou matérias-primas indus-

1 1111grações diárias para o trabalho, influência co-1 d d11s cidades etc.

1 1111 vÇ m frisar que as regiões homogêneas e funcio­" tl li Ir 11dc1n a ser mutuamente excludentes no mundo

'l'lhd i 'll :r, po is dizem respeito a fenômenos que se com-1 111111111 , l' llda um deles, com espacialidade própria.

\ 1'1 rfica-se, como já vimos, que os propósitos dos I' , p1 l"l11t lo rcs, c m termos acadêmicos, ou de vinculação

pllt 1111 no sistema de planejamento, são diretamente pll•11111111111ais às possibilidades de se estabelecerem divisões

l.111 11~ Mais a inda, para qualquer fenômeno que ne-111111m•ntc tenha uma expressão espacial é possível o

1 tl11•l1 1 1111cnto de uma divisão regional: deste modo, dnr conta, no plano descritivo e classificatório, tliferencialidade espacial de que nos fala Yves

N11 nova geografia, o conceito de sistema de regiões 1 I 111ht•lccido muitos anos atrás por geógrafos "tradi-

11111 ti " l'Omo Unstead) está calcado explicitamente nos lil l 111 l l'lll'i da classificação, tal como se adota nas ciências l 1 111l111t'l'll, como a botânica. A analogia com as ciências

11 111 11tl N. 11 ma das marcas do positivismo lógico, aparece 1 quando a nova geografia estabelece o conceito 1 13unge 6 estabelece explicitamente a compara-·

11• I•• 1 Wi lliam. Gerrymandering, Geography and Grouping. 1111 l•l'••/.1111/lhlcal R evi ew , 56 (2), 1966.

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ção entre t ermos regionais e termos classif icat6rios, termos de duas linguagens· diferentes. V eja mos alguns exemplos:

Termos regionais Termos classificatórios

a ) Região uniforme a ) C lasse d e á rea

b) Si stema r egiona l b) Sistem a c lassificatório

cl Região definida com um c ) C lassificaç ão c om uma único aspecto única cat egoria

d) Região definida com as- d) C l assificaç ão com mais pectos múltiplos d e uma c at egoria

e ) Lugar e ) Indivíduo

f) Ele mentos da geografia f) C aracte rísticas dife ren-ciadoras

g) Geografia regional g) Atenção focalizada em clas ses de área

h) Core da região h) Indivíduos moda is e ln-divíduos similares

i) Limite regional i) Intervalo de classe

j) Esc ala j) Número de classes de área

Deste modo, a reg1ao torna-se uma classe' de área constituída por diverso s indivíduos similares entre si. V á­rias classes de área organizam-se em um sistema classifi­catório. Tal sistema pode ser concebido de dois modos: através da divisão lógica e do agrupamento . Vejamos cada um deles.

A divisão lógica é uma classificação caracterizada pela divisão sucessiva do todo (superfície da Terra ou de um país, por exemplo) em partes. Dedutiva, de cima para baixo, pressupõe que o pesquisador já tenha uma visão do todo e queira, analiticamente., chegar a identifi­car, através de critérios selecionados, as partes componen­tes do todo, os indivíduos (lugares). A figura 3 esquema-

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t iza a divisão lógica. O todo, representado pela letr a A, é subdividido em duas classes (regiões), que têm em co­mum o fato de apresentarem a característica A-, e de dife­renciação entre elas as características x e y. A classe (região) Ax subdivide-se em outras duas: Axa e A x b.

Axa

Figura 3

DIVISÃO LÓGICA

A

/~ Ax Ay

/~ Axb Aya Ayb

Co nvém frisar que a divisão lógica tem sido muito p1111co empregada na no va geografia, porque esta funda-1111•11 tou o conhecimento da realidade a partir de uma• t ra­i• h)r·iu ascendente, do indivíduo para o todo, pelo segundo 111 •N modos referidos, o agrupamento. Contudo, um exem­ph 1 c lássico do u so da divisão lógica é o das regiões na-1111111 11 de H erbertson.

O agrup amento ou classificação indutiva caracteri-11 " ' pelo fato de partir-se do indivíduo (lugar, município) 1 pt0grcssiva mente, por agregação, que implica a perda

th d1•to lhcs ou generalizaçã o crescente, chegar-se ao todo. t 1 p1 m•cdl mc nto p or sínteses sucessivas, ao contrário da ll\'I 1\11 lógica, nã o pressupõe conhecimento prévio do

1!11111 . que pode se r o btido indutivamente, agregando-se, f 1111" 11 po uco, o conhecimento sobre a s p artes. A figura 4 t p11 ~1•111 11 um esq uem a d e agrupam ento. Existe m, n o

!11 111pl11, 8 indivíduo s quo cons titue m o agrupa me nto lllllh l11h•1 lor, tk 1.11 o n k cn. Po1111 11 indo cornc tcrísticns co-

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muns, são agrupados em 4 classes de áreas ou agrupamen­to de 2. ª ordem, que por sua vez agrupam-se em 2 classes de 3.ª ordem. No passo seguinte, chega-se ao todo.

Figura 4

AGRUPAMENTO

•--- -- - ---- - -- - - 4.ª ordem } todo

/~ /·~ /'·,-- ------ 3.ª ordem { claJ:es

• • • • ------ -2.!" ordem~ área

./ ""-. •)"' "'. .J' ~ ./' '•- - -1.!" ordem} indivíduo

Os dois modos de se escabelecer um sistema regional ou uma hierarquia de regiões apresentam ainda uma dife­rença fundamental, ressaltada aqui para que se tenha cla­reza das condições de um ou de outro modo a ser adotado. A divisão lógica, na medida em que é um procedimento de trajetória descendente, procura diferenciações entre os lugares, enquanto o agrupamento, ascendente, procura re­gularidades. E diferenciações e regularidades são meios complementares de se conhecer a realidade.

Do processo de divisão regional emerge a questão de se definir tipos, e uma tipologia, ou regiões. Os tipos ca­racterizam-se pelos seus atributos específicos, não impli­cando a existência de contigüidade espacial, tal como Herbertson definiu os quadros naturais: o tipo polar, co­mo se sabe, ocorre tanto no hemisfério sul como no norte. A região, por outro lado, a par de sua espe­cificidade, pede seqüência no espaço, A figura .5 pro­cura esclarecer esta questão. Indica ela 5 tipos dos quais 2 ocorrem, cada um, em 3 áreas distintas e não contíguas espacialmente: ao total há 9 regiões.

Figura 5

TIPOS E REGIÕES.

5 tipos e 9 regiões

X 3

x3

X 1

X 1

X 1

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Como vimos, no processo de divisão regional po­de-se definir uma tipologia, tal como fizeram Herbertson e Koppen, ou se chegar a uma segmentação da superfície da Terra em regiões. No primeiro caso, estamos conside­rando os fenômenos na visão do que se convencionou denominar de geografia sistemática; no outro, da geogra­fi a regional.

Um último aspecto deve ser considerado. Na nova geografia não existe, como na hartshorniana, um método regional, e sim estudos nos quais as regiões formam clas­sificações espacias. Em outras p alavras, identificam-se pa­drões espaciais de fenômenos vistos estaticamente ou em movimento. Neste sentido, a região adquire, junto à sua inexistência como entidade concreta, o sentido de padrão espacial. A geografia regional, por sua vez, não tem o pro­pósito de reconhecer uma síntese, como em Vida! de la Biache, nem de procurar pela singularidade de cada área, como em Hartshorne.

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Os estudos de geografia regional ou de área são realizados dentro de propósitos preestabelecidos. A partir de uma referên cia teórica, como a das localidades centrais ou a do uso agrícola da terra, ou d e um suposto problema, como o do desenvolvimento regional, estuda-se um seg­mento da superfície da Terra. Isto quer dizer que a área é vista como laboratório de estudos sistemáticos, realimen­tando os referenciais teóricos que estes formulam. Assim, na n o va geografia, estudos sistemáticos e de área não se distinguem entre si: mais do que uma complementação, eles são, em última instância, a mesma coisa.

No Brasil, a n o va geografia desenvolveu-se nos Depar­t~mentos de Geo~rafia _de Rio Claro e de Estudos Geográ­f~cos d~ IBGE; a1 surgiram os estudos de tipologia e divi­sao regional dentro da concepção em pauta. Sobre o as­sunto consultem-se os periódicos Boletim de geografia teo­rética e· Geografia, editados em Rio Claro, e a Revista brasi~eira de geografia, editada pelo IBGE, especialmente os numeros referentes à dé cada de 70.

Região e geografia crítica

D entro do questionamento à geografia tradicional e à nova geografia, aparece durante a década de 70 uma geografia crítica, que traz consigo a necessidade de se repe?~ar o conceito de região. Assim, discute-se a postura emp1n sta que caracteriza a s definições vidaliana e da nova geografia. Lacoste, por exemplo, refere-se à concepção vi­daliana de região como sendo um "conceito-obstáculo" que nega outras possibilidades de se dividir a superfíci~ d a ~erra; por outro lado, as classes de área da nova geo­gra fia p odem acaba r constitu indo-se em um exercício aca­dêmico sofisticado.

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Deste posicionamento crítico fazem parte também geógrafos brasileiros. A ssim, entre outros, Aluizio Du~rtc;6

co menta que, a partir do materialismo históric? e da dial<~­tica marxista, diversos pesquisadores introduziram, na de­cada de 70 novos conceitos visando uma definição de região. Assi~, consideram-se o conceito de região e o tema regional sob uma articulação dos modos de pro­dução, como faz Lipietz; através das conexões entre clas­ses sociais e acumulação capitalista, conforme é o caso de V illeneuve; por meio das relações entre o E~tad? e a sociedade local, mostradas por Dulong; ou e?tao, mtr~­

duzindo a dimensão política, conexão de Chico de Oh­veira ao fazer a elegia do Nordeste brasileiro.

Duarte tem suas proposições sobre a região: para ele, é

uma d imensão espacial das especificidades sociais em uma totalidade espaço-social .

capaz de opor

resis tência à homogeneização da sociedade e do esi;iaço pelo capital monopolístico e hegemônico . ..

P ara ele , se não há uma elite regional capaz de opor a nludida resistência, então não existe região.

Regiões são e spaços em q ue existe uma sociedade que realmente dirige e organiza aquele espaço.

Esta conceituação tem , a nosso ver, o defeito d e conside­r ur região uma situação que no capitalismo monopolista de hoje é cada vez mais inexistente. A s regiões tenderiam, 11ssim , a desaparecer. Ou seja, não haveria mais diferen­ciação de áreas. Acreditamos que, adotando-se esta visão,

n Regiona lizaçã o ; cons ide rações m e todo lóg icas. B o letim d e geogra­/111 1eo rética, 1 0 (20) , 1980.

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perder-se-ia ui:n conceito que tem a vantagem de permitir que, ~os localizemos nos diferentes níveis em que a su­perfJc1e da Terra pode ser dividida. E, sobretudo acha­mos que qualquer conceito pode ser repensado. N~ caso, sem que se perca sua aplicabilidade universal.

º._que segue é uma tentativa de inserir o conceito d~ reg1ao dentro de um quadro teórico amplo, que per­mita dar conta da diversidade da superfície da Terra sob a açã.o humana ao longo do tempo. Este quadro consiste na lei do desenvolvimento desigual e combinado proposto por Trotsky.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado ex­pressa particularmente uma das leis da dialética, a da in­terpenetração dos contrários. Refere-se ao fato de ser cada aspecto da realidade constituído de dois processos que s: acham relacionados e interpenetrados, apesar de serem diferentes e opostos. A contradição que daí decorre é característica imanente à realidade e o elemento motor de sua tran~forma.ção: Na lei que nos interessa, os dois pro­cesso~ sa~, pnme1~0 o da desigualdade e, depois, 0 da combmaçao. Permite que se considere as diferenciações resultantes da presença de fenômenos originados em tem­pos históricos diferentes coexistindo no tempo presente ... e no espaço.

~sta lei tem uma dimensão espacial, que se verifica atra~es _do processo de regionalização, ou seja, de diÍe­renc1açao d: áreas. Dois aspectos devem ser considerados, tendo em vista a compreensão das conexões entre a lei em. pauta e o conceito de região que dela surge. O pri­meiro .dele~ se_ refere à gênese e à difusão do processo de reg10nahzaç~o, e o segundo aos mecanismos nos quais o processo realiza-se. Ambos estão interligados.

Em relação ao primeiro aspecto, é conveniente notar que a diferenciação de áreas vincula-se à história do ho-

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mem não se verificando de uma vez e para sempre. Tem uma 'gênese encontrada nas comunidades primitivas indi­ferenciadas, que implicava uma semelhança do espaç? enquanto resultado da ação humana. Estas sociedades ori­ginárias tiveram, ao longo do tempo e do espa.ço, um desenvolvimento diferenciado, isto é, os processos internos de diferenciação e a difusão dos processos de mudança deram-se de modo desigual 7 • Assim, o aparecimento da divisão social do trabalho, da propriedade da terra, dos meios e das técnicas de produção, das classes sociais e suas lutas, tudo isto se deu com enorme distância em termos espaço-temporais, levando a uma diferenciação in­tra e intergrupos. Do mesmo modo, a difusão dos pro~es­sos de mudança fez-se desigualmente, reforçando a dife­renciação de áreas.

As desigualdades que aparecem caracterizam-se pela combinação de aspectos distintos dos diversos momentos da história do homem. Isto resulta no aparecimento de grupos também distintos ocupando específicas I?arcelas da superfície da Terra, e aí imprimindo suas próprias marcas, a paisagem, que nada mais é que uma expressão de seus modos de vida.

Uma vez iniciada a difusão do processo de regiona­lização, de diferenciação de áreas, via contatos comerci­ais, migrações e conquistas, esta assume ritmos distintos, isto é, duração e intensidade que variam. Em determinados momentos e áreas, a regionalização dá-se com maior ra­pidez e profundidade: a diferenciação de áreas é aí mais notável. Simultaneamente, em outras áreas não ocorre este processo ou ele é extremamente lento. Tomemos um exem­plo para esclarecer este ponto: a partir da dé~ada ?e ~O, o Paraná vê-se sob um intenso processo de reg1onaltzaçao, que prossegue nas décadas subseqüentes, originando o apa-

7 RIBEIRO. Darcy. O processo civilizatório. Petrópolis, Vozes. 1979.

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recimento, ~ntre outras regiões, daquelas que se convencio­nou deno~mar de norte velho, norte novo e norte novíssi­mo. N: decada. de 80, esta distinção não tem a mesma e:cpress~o que tmha, pois os mecanismos que geraram a diferenciação regional foram alterados em sua concretude e uma nova ,regionalização põe-se em marcha. Ao mesm~ tempo: ~a deca~a. de 30 e seguintes, a vastíssima área da ~maz??ia ~ra~lle1ra apresentava-se pouco diferenciada: a divers1ficaçao interna começa a se tornar sensível a partir de 1970.'.. quan.do, impulsionada do exterior, verifica-se a penetraçao desigual. do capital e de correntes migratórias. Este processo de diferenciação estende-se pela década de 80 e certamente prosseguirá pelos próximos decênios.

. Em r~l.ação ao segundo aspecto, vinculado aos meca­nismos utilizados pelo processo de regionalização, vale lembrar · que, na medida em que a história do homem aco~tece, marc~d~a !'elo desenvolvimento das forças pro­dutivas, pela dmam1ca da sociedade de classes e de suas lutas, o proc~sso de regionalização torna-se mais complexo. P.or c~mp~ex1dade entendemos o fato de 0 processo de re­g1onal1zaçao retalhar aind:: mais 0 espaço ocupado pelo homem em numerosas reg1oes e, concomitantemente inte-grá-las. '

~ no .modo de produção capitalista que 0 processo de reg1onahzação se ~centu~, marcado pela simultaneidade dos processos de .diferenciação e integração, verificada ~entro ~a progressiva mundialização da economia a par­tir d~ secul? XV. Sob a égide do capital, os mecanismos de. diferenciação de áreas tornam-se mais nítidos quais se1am: ' ·

a) a divisão territorial do trabalho que define 0 que será produzido aqui e ali; '

b) o desenvolvimento dos meios e técnicas de produção e a combinação das relações de produção originadas

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em momentos distintos da história, que definem o como se realizará a produção;

e) a ação do Estado e da ideologia que se espacializa de­sigualmente, garantindo novos modos de vida e a pre­

tensa perpetuação deiles; d) a ampla articulação, através dos progressivamente mais

rápidos e eficientes meios de comunicação, entre as regiões criadas ou transformadas pelo e para o capital.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado tra­duz-se, assim, no processo de regionalização que diferen­cia não só países entre si como, em cada um deles, suas partes componentes, originando regiões desigualmente de­senvolvidas mas articuladas. Sob o capitalismo queremos crer que a noção de com binação deve ser explicitamente referida não apenas à coexistência no mesmo território de diferentes modos de vida, mas também à articulação es-

pacial destes territórios. A região pode ser vista como um resultado da lei

do desenvolvimento desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela associação de relações de produção dis­tintas. Estes dois aspectos vão traduzir-se tanto em uma paisagem como em uma problemática, ambas específicas de cada região, problemática que tem como pano de fundo a natureza específica dos embates que se estabelecem en­tre as elites regionais e o capital externo à região e dos conflitos entre as diferentes classes que compõem a região. Os conflitos oriundos dos embates entre interesses inter­nos, bem como entre interesses internos e externos, podem gerar uma desintegração da região, que se exprimirá na

sua paisagem. Tendo isto em vista, pode-se dizer que a região é

considerada uma entidade concreta, resultado de múltiplas determinações, ou seja, da efetivação dos mecanismos de

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regionalização sobre um quadro territorial já previamente ocupado, caracterizado por uma natureza já transformada, heranças culturais e materiais e determinada estrutura social e seus conflitos. A região assim definida asseme­lha-se em vários aspectos à vidaliana, podendo em muitos casos ser idêntica nos seus limites. Conceitualmente, no entanto, não é a mesma região, pois as diferenças vistas são numerosas. Ela não tem nada da preconizada harmo­nia, não é única no sentido vidaliano ou hartshorniano, mas particular, ou seja. é a especificação de uma totali­dade da qual faz parte através de uma articulação que é ao mesmo tempo funcional e espacial. Ou, em outras pala­vras, é a realização de um processo geral, universal, em um quadro territorial menor, onde se combinam o geral - o modo dominante de produção, o capitalismo, elemen­to uniformizador - e o particular - as determinações já efetivadas, elemento de diferenciação. Neste sentido, con­cordamos com Duarte quando afirma que a região é

uma dimensão espacial das especificidades sociais em uma totalidade espaço-social.

Uma observação considerando o futuro impõe-se: se o processo de regionalização está em marcha, assim como a história do homem, como pensar na existência de re­giões sob o socialismo?

Acreditamos, com base na lei do desenvolvimento desigual e combinado, que, neste caso, o processo de regionalização terá seu curso, refazendo regiões ou áreas. diferenciadas_ Por quê? Os recursos naturais e os social­mente produzidos. como estradas, fábricas e redes urba­nas. estão desigualmente desenvolvidos sobre a superfície da Terra, sendo difícil conceber-se, no modo de pensar influenciado pelas práticas capitalistas, que no socialismo a questão da escassez e da localização seletiva desses re­cursos tenha sido resolvida. Sob ação de que mecanismos?

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Certamente, e nos limites do nosso raciocínio, sob a influ­ência de uma nova divisão do trabalho, motivada por razões técnicas. Não é mais admissível esta região - que poderá ter até outra denominação - exercer um meio de controle sobre o homem que, na história, seguiu um ca­minho que o conduziu a uma sociedade sem classes, sem dominação.

Região, ação e controle

O conceito de região tem sido largamente empregado para fins de ação e controle. Mais . precisamente, ~o de­correr da prática política e econômica de uma sociedade de classes, que por sua própria natureza implica a exis­tência de formas diversas de controle exercido pela classe dominante, utilizam-se o conceito de diferenciação de área e as subseqüentes divisões regionais, visando ação e con­trole sobre territórios militarmente conquistados ou sob a dependência político-administrativa e econômica de uma classe dominante.

Ao se definir uma região para fins de ação e controle, considera-se, alternativamente: o conceito de região na­tural, tal como foi definido anteriormente; o de região geo­gráfica nos termos propostos, entre outros, por Vida) de la Biache; e uma área vista por um aspecto ao qual se atribui relevância, como uma determinada produção, um suposto problema social, a gravitação em torno de uma cidade dotada de funções regionais, ou pertinente a uma mesma bacia hidrográfica. Pode ainda, na realidade, abran­ger uma combinação das alternativas mencionadas. As­sim, as diferentes conceituações de região estão presentes na prática territorial das classes dominantes. Como os de­mais conceitos geográficos, o conceito de região não está

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desvinculado de uma ação que é a um tempo social e espacial.

~ ação e controle sobre uma determinada área quer garantir, em última análise, a reprodução da sociedade de c lasses, com uma dominante, que se localiza fora ou no interior da _área submetida à divisão regional ou, como se refere ~ literatura, à regionalização. Esta distinção par­te da aceitação explícita ou implícita da diferenciação de área~ ao longo da história. A sua ratificação ou retificação se da a cada momento, conforme os interesses e os con­flitos dominantes de cada época. São eles que, por outro lado, levam as unidades territoriais de ação e controle as regiões, a serem organizadas de modos diferentes: de 'um lado, a partir de um governo de nível hierárquico inferior ao do núcleo de dominação; de outro, de um mais ou menos complexo sistema de planejamento espacializado. Ambos cumprindo o papel de ação e controle. Neste exem­plo, o Estado, surgido dentro do modo de produção domi­nante, é o agente da regionalização.

. _A Antigüidade fornece-nos exemplos da criação de ~eg1~e.s em um contexto de conquista territorial. Tanto o 1mpeno romano como o persa estavam divididos em re­giões ~m ~nidades territoriais de ação e controle. Regio e satrápta sao denominações que designam essas unidades. As satrápias do império persa eram governadas pelos sá­trapas: os "olhos e ouvidos do rei"; a palavra região vem ~o l~t1m regio, que por sua vez deriva do verbo regere, isto e, governar, reinar.

No feudalismo, a regionalização vista como forma de ação e controle, tinha sua expressão' nas marcas, nos du­cados e nos condados, governados, respectivamente, por marqueses, duques e condes.

No capitalismo, as regiões de planejamento são uni­da~es territoriais através das quais um discurso da recupe­raçao e desenvolvimento é aplicado. Trata-se, na verdade,

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do emprego, em um dado território, de uma ideologia que tenta restabelecer o equilíbrio rompido com o processo d e desenvolvimento. Este discurso esquece, ou a ele n.ão interessa ver, que no capitalismo as desigualdades regio­nais constituem mais do que em outros modos de pro­dução, um ele~ento fundamental de organiz~ção social. Em muitos casos, a ação decorrente do plane1amento ~e­gional proporcionou um relativo progr:sso e. m:ia maior integração da região ao modo de prod~çao capitalista, ~uer dizer, a r egião sob inte rvenção plane1adora p~ssa .ª ficar sob maior controle do capital e de seus propnetános.

Um exemplo famoso .encontra-se na bacia do rio Ten­nessee onde atuou o TVA (Tennessee Valley Authority), ~m o;ganismo federal que visava a recuperação daquela área social e economicamente deprimida do território nor­te-americano. Inspirou outros que se apoiaram na con­cepção da bacia hidrográfica como ri:_gião de planejamen­to: o caso da Comissão do Vale do Sao Francisc~ no n?r­deste brasileiro é exemplar. O da Sudene (Supermtenden­cia do Desenvolvimento do Nordeste) é outro exemplo de região de planejamento bastante conhecido .. ~qui, tr~t~-se de um território definido sobretudo por limites pohtico­-administrativos, os quais encerram problemas sociais e eco­nômicos comuns. Já no caso da Amazônia, a ação da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorizaçã? Eco~ô­mica da Amazônia), antecessora da Sudam (Supermt~nd~n­cia do Desenvolvimento da Amazônia), faz-se terntonal­mente em uma região natural.

Contudo, é notório que no sistema de planejamento desenvolveu-se a concepção de existência da cidade, so­bretudo do centro metropolitano, o foco irradiador do de­senvolvimento: ali se concentravam as forças motrizes do progresso - a indústria e as elites, além -dos nece~sários serviços de apoio. Logo após a 1.ª Guerra Mund1~, na Inglaterra, na área de planejamento urbano e regional

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(Town Planni~g AAct),_ sugeriu-se a revisão das províncias c~m base na influencia das grandes cidades: Bristol, Bir­mmgham, Leeds, Manchester etc.

~ conce!'ção em pauta iria ganhar maior expressão a partir da decada de 50, quando o capitalismo entra em nova fase de expansão e as teorias de desenvolvimento re­gional são criadas. :f: o caso dos pólos de desenvolvimento de_ François P_erroux, do crescimento polarizado de John Fnedmann, alem da teoria das localidades centrais de Wal­ter Christaller, que, na verdade, é retomada. Ao mesmo tempo, são revistos ou criados conjuntos de modelos e noções associados: da regra ordem e tamanho de cidades dos ~ent_ros di?amizadores, das cidades de porte médio ~ da d1fusao de inovações.

_ A região de planejamento, isto é, um território de açao e controle, tem seu apogeu nas décadas de 60 e 70 Este é o caso brasileiro: entre 1964 e 1977 /78, sobretudo: nume~osos estudos almejando a definição de regiões de plane1amento foram realizados, seja a nível federal e ma­crorregional, seja a nível estadual.

:f: m~ito significativo que a força aparente que teve este conceito fosse concomitante ao estado de autoritaris­mo que caracterizou a vida brasileira e ao relativamente forte poder_~~ t~cnocracia em detrimento do Congresso. A: pouca efic1~nc1a das regiões de planejamento enquanto via de redençao para as condições de vida da maioria da população ali residente (afinal de contas, elas eram sobretu­do um discurso ideológico que servia para encobrir os inte­resses das classes dominantes regionais e do capital exter­n~) e_ a reto~ª?ª da vida democrática, com maior parti­c1paç~o de vanos segmentos da sociedade, geraram um esvaziamento da sua própria aplicabilidade. A história dirá até_ quando a região de planejamento capitalista será um me10 de se exercer ação e controle sobre a maioria da população.

4 Organização espacial

Na discussão sobre a natureza da geografia, a ques­tão mais central, persistente e polêmica é a de seu objeto. Está presente em Ratzel, V ida! de la Biache, Hartshorne, na nova geografia e na geografia crítica. O objeto é a paisagem, a região, o espaço? Ou será outra coisa? Acre­ditamos que para se responder a esta pergunta há que se discutir antes o que é uma ciência social, pelo menos no que diz respeito ao seu objeto.

A história, a antropologia, a economia, a geografia e a sociologia, entre outras ciências sociais, estudam a sociedade. Esta é muito complexa, multifacetada, sendo constituída por elementos como as classes sociais, as artes, a cidade, o campo, o Estado, os part idos políticos, as reli­giões etc. Os numerosos componentes da sociedade estão articulados, imbricados de tal modo, que se fala de uma totalidade social, cuja com lexida_c:!_e abarca as~tradi­çõ~s _internas e o _movimento de ~sformação. Assim, torna-se difícil a compreensão da sociedade a partir de uma única ciência social concreta, capaz de analisar deta­lhadamente todos os seus elementos, bem como as suas

possíveis articulações.

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Dada a dificuldade de se estudar a totalidade social em sua abrangência, verifica-se uma divisão do saber originando diferentes ramos. E preciso, no entanto, deixa; clar_o_ '!ue não estamos falando de uma compartimentação pos1ttv1sta, onde cada ciência tem seu próprio objeto, achan­do-se separada das outras. No caso, as ramificações têm um objeto comum, a sociedade, analisada à luz de uma mesma teoria, fundamentada no materialismo histórico. O ~j~!º da geografia é a sociedade, e não a paisagem, a reg1ao _o espaço ou ou~ coisa qualquer.

_A _análise da socie.dade, no entanto, é feita a partir d~ dive.ssos ângulos. A história, a antropologia, a econo­~ia, a geografia e ? sociologia estudam-na nesta perspec­tt_va: o mesmo objeto é estudado, ou seja, objetivado, d1fer~ntemente. E esta q_bjetivação que as distingue en­tre s1.

Como a geografia objetiva o estudo da sociedade? Ou seja, qual é a objetivação da geografia que, sem dei­xar de ser uma ciência social , distingue-se da história antropologia, economia e sociologia, todas elas també~ ciências sociais?

. O longo processo de organização e reorganização da sociedade deu-se concomitantemente à transformação da n~tureza primitiva em campos, cidades, estradas de ferro, mmas, voçorocas, parques nacionais, shopping centers etc. Estas obras do homem são as suas marcas apresen­tando um determinado padrão de localização que é pró­prio a cada sociedade. Qrg_anizadas espacialmeQte, cons­_tituem o espaço do homem, a organização espaciaLda sociedade ou, simplesmente, o espaço geográfico. A obje­tivação do estudo da sociedade pela geografia faz-se atra­vés de sua organiZ!!_ção espacial, enquanto as outras ciên­cias sociais concretas estudam-na através de outras obje­tivações.

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Resumindo, o _ objeto da geografia é, portanto,_ a sociedade, e a geografia_ vj~a_ o ~eu estu_d_p pela sua organização ~s acial. Em outras palavras, a geografia representa um modo particular de se estudar a socie­uade.

Mas a organização espacial configura apenas uma objetivação, o modo geográ fico de se ver a totalidade 11ocial? É isto mas, ao mesmo tempo, expressa um fenô­meno da sociedade. Neste sentido, a organização espacial 6 també m um objeto, uma materialidade social.

Como materialidade, a organização espacial é uma dimensão da totalidade ~qcial construídi!_Pe.!2-_ho_!!!_em ª-<? r11ze r a sua própria história. Ela é, no processo de trans­rormação da sociedade, modificada ou congelada e, por 111n1 vez, também modifica e congela. ~~gi~_nlzação espa-1 lnl é a própria sociedade espacializada.

A organização espacial, enquanto objetivação e ma-11•1 lnlidade social, só muito recentemente tem merecido 1111111 a tenção explícita, a nível teórico, por parte dos geó-1" 11 ros. A nossa intenção é resgatar o que é importante 11 1•~le conceito-chave para a geografia e a sociedade. Es-111 111os, evidentemente, longe de esgotar o assunto. Consi­tl11uremos, em termos de organização espacial, os seguin-11 ~ tó pico s: uma proposição conceituai; suas ligações com 11 1·11pilal e o Estado; vista como reflexo social; sua con-1lli.:r10 para o futuro; estrutura, processo, função e forma, 1111 seja , suas categorias de análise e suas relações com os 11111vlmcntos sociais urbanos. E stes temas não são mutua-1111·111 c excludentes. Ao contrário, complementam-se. Orga-11 11111; o espacial e percepção, organização e comportamen-111 1•111rncia l, espaço, sentimento e simbolismo não serão l! l11 11dndo s no presente trabalho.

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Organização espacial: uma conceituação

A partir das necessidades do homem em termos de fome, sede e frio, verifica-se uma ação de intervenção na natureza. De caráter social, envolvendo um trabalho orga­nizado coletivamente, implica uma certa divisão do trabalho e a definição do quê, quanto e como será a produção. E ainda de que jeito reparti-la. Surgem então relações sociais que têm sua essência na produção. É no trabalho social que os homens estabelecem relações entre si e, a partir destas, com a natureza.

A intervenção na natureza foi, em um primeiro mo­mento, marcada pelo extrativismo, passando em seguida por um progressivo processo de transformação, incorpo­rando a natureza ao cotidiano do homem como meios de subsistência e de produção, ou seja, alimentos, tecidos, móveis, cerâmica e ferramentas. Fala-se, assim, da natu­reza primitiva transformada em segunda natureza, para empregar uma expressão de Marx.

Os campos cultivados, os caminhos, os moinhos e as casas, entre outros, são exemplos de segunda natureza. Estes objetos fixos ou formas dispostas espacialmente (for­mas espaciais) estão distribuídos e/ ou organizados sobre a superfície da Terra de acordo com alguma lógica. O conjunto de todas essas formas configura a organização espacial da sociedade. A organização espacial é a segunda natureza, ou seja, a natureza primitiva transformada pelo trabalho social.

É conveniente esclarecer que a expressão organiza­ção espacial possui, a nosso ver, vários sinônimos: estru­tura territorial, configuração espacial, formação espacial, arranjo espacial, espaço geográfico, espaço social, espaço socialmente produzido ou, simplesmente, espaço. Dizer que cada uma delas corresponde a uma específica visão de

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mundo e, ainda, que uma é melhor que a outra consti­tui, a nosso ver, falsas assertivas, de natureza formal e maniqueísta.

Vejamos agora dois pontos fundamentais para que se possa prosseguir. Primeiramente, convém considerar que, se durante o processo de produção não se pensar na sua continuidade, sua própria reprodução, este cessará quando se finalizar a operação iniciada. É necessário que se criem no próprio processo de produção as condições de sua re­produção; sendo assim, o processo de produção é também de reprodução. Um grupo social tem a mesma necessidade; caso contrário, teríamos o absurdo do mesmo durar ape­nas o período de uma geração.

A reprodução dos grupos sociais faz-se através de muitos meios. A transmissão do saber, formalizada ou não, constitui um. Outro, e .dos mais importantes, é a organização espacial. Ao fixar no solo os seus objetos, frutos do trabalho social e vinculados às suas necessida­des, um grupo possibilita que as atividades desempenhadas por estes alcancem um período de tempo mais ou menos longo, repetindo, reproduzindo as mesmas. Nestas condi­c;:õcs, o grupo social se reproduz, porque a reprodução das a tividades ligadas às suas necessidades viabiliza o pró­prio. A organização espacial, ou seja, o conjunto de obje­tos criados pelo homem e dispostos sobre a superfície da T erra, é assim um meio de vida no presente (produção), mas também uma condição para o futuro (reprodução).

E m segundo lugar, a organização espacial é, como já vimos, expressão da produção ~~terial d_Q__!iomem, re-11ultado de seu trabalho soçial. Como tal, refletirá as carac-1 rísticas do grupo que a criou. Em uma sociedade di; classes, a organização espacial refletirá tanto a natureza l l11ssista da produção e do consumo de bens materiais, co-1110 o controle exercido sobre as relações entre as classes

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sociais que · dução. emergiram das relações sociais ligadas à pro-

bre Corag~io i _fornece-nos um conjunto de a orgamzaçao espacial no capitalismo.

reflexões so-

de r~~ur:do C:oraggio, o caráter repetitivo . p uçao, Circulação, consumo, controle

plicam que se tenha:

das operações e decisão im-

a) uma localização fixa no es a d . circulação P ço os meios de produção

' consumo, controle e decisão· ' b) fluxos de força de trabalh , . ' .

local em que cada o ~ e matenas-pnmas para o as áreas de consumo peraçao se. realiza, de bens para as áreas de dire - ' e de realimentação destas para

çao e controle. A~ l~calizações fixas e os fluxos resultam

constitmdas por: cristalizações

c) l?cal~zações pontuais ou em áreas do . nos as operaço- d s meios necessá-

es e produção como fáb · campos; ' ncas, minas e

d) l~calizações pontuais ou lineares dos mei . çao como rodovias dutos f 1 , . os de circula­armazéns; ' ' ios te egraficos, terminais e

e) localizações pontuais ou áreas dos . . sumidos individual ou l . me10s de vida con-

. - co et1vamente, como habita ão· f) locahzaçoes pontuais dos elemen . ç '

trole e deci - . tos do sistema de con­lógica. sao, de natureza fmanceira, política e ideo-

raçõe~pea:~~:m. então padrõ.es locacionais relativos às ope-om1cas e ao sistema de controle e decisão.

--- - --1 CoRAGGIO, José Luís. Considera - . ó . as formas sociais da organiz - ç~es te rico-metodológicas sobre América Latina. P/anejament;ça;

1 odespaço e suas tendências na

, ava or, 7 (J ), 1979.

57

Tais padrões, como se pode notar na linguagem de pontos, linhas e áreas, referem-se à representação da organização espacial através de mapas de escalas médias ou pequenas - por exemplo, 1 :100.000, 1 :500.000, 1 :1.000.000 ou mesmo 1:5.000.000, se pensarmos em termos de Brasil. Os padrões espaciais resultantes dizem respeito:

a) à dispersão ou concentração espacial da indústria;

b) às áreas rurais especializadas;

c) aos centros de transportes; d) aos centros administrativos, universitários, religiosos

etc.; e) às localidades centrais; f) às áreas residenciais intra-urbanas socialmente diferen­

ciadas (isto implica uma mudança para uma escala maior, por exemplo, 1 :50.000 ou 1 :25.000);

g) aos parques nacionais (reconstituição da natureza pri­mitiva) etc.

A o_I~nização espacial é assim constituíd_a pe~­j unto das inúmeras cristalizações criadas pelo trabalho so­cial. A sociedade concreta cria seu espaço geq_gráfico 12..ara nele_ se realizar e reproduzir, para ela própria se repetir. Para isto, cria formas duradouras que se cristalizam sobre a superfície da Terra. Caso contrário, insistimos, a socie-dade se extinguiria.

O quadro a seguir, baseado em Coraggio e em M. Buch-Hanson e B. Nielsen 2 , procura sistematizar a ca­deia de relações entre objetos, atividades, elementos ma­teriais, cristalizações e organizações espaciais específicas, que originam a global, capitalista.

2 BucH-HANSON, M . e N1ELSEN, B. Marxist Geography and. the Concept of Territorial Structure. Antipode, 9 (2), 1977.

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ORGANIZAÇÃO ESPACIAL GLOBAL

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A organização espacial global resulta da superposição de diferentes organizações espaciais específicas, como o quadro procura mostrar. Para cada uma delas existe pelo menos uma proposição teórica, via de regra acrítica, que procura dar conta da espacialização de um dos aspectos da totalidade social. Assim, entre outras, foram elaboradas teorias: a da localização industrial, a do uso agrícola, a do uso urbano, a das localidades centrais ou a da evolução da rede de transportes. Mas esta é uma outra história, além dos propósitos deste trabalho.

As relações entre as organizações espaciais específicas e a globalidade destas podem ser vistas a partir de uma metáfora sugerida por Ruy Moreira, apud Milton Santos (1982).

Imagine um ginásio esportivo polivalente. A quadra está organizada para ali realizarem-se jogos de vôlei, bas­quete e futebol de salão. Para cada esporte (atividade), a quadra (superfície da Terra) tem um zoneamento especí­fico (regiões), áreas limitadas por linhas onde há certas restrições ou penalidades. Para cada jogo, há regras (leis, códigos morais) e um juiz (aparelho repressor). Cada joga­dor (agente realizador de uma atividade) tem uma posição dentro da quadra (localização da atividade) e há caminhos a serem percorridos pelo jogador e a bola (fluxos, mate­riais ou não). Em outras palavras, para cada esporte existe uma organização espacial específica.

Na quadra polivalente, no entanto, cada modalidade é praticada de uma vez, não sendo possível a sua prática simultânea. A organização espacial global, ao contrário, consiste na simultaneidade das específicas. Como se na quadra polivalente estivessem sendo praticados ao mesmo tempo os três mencionados esportes. Para que esta globa­lidade da organização espacial se verifique torna-se neces-11ário um certo nível de compatibilidade entre os agentes mo deladores da organização espacial. Isto acontece quer

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através da ação coordenadora e repressora do Estado via planejamento territorial, quer através da aliança de interes­ses das grandes corporações capitalistas, que são capazes de organizar o espaço, ao menos parcialmente, segundo seus interesses. Quando estes se concretizam, induzem ou­tros agentes a utilizarem as suas mesmas formas espaciais.

Assim, exemplificando, um corredor de exportação aberto ou melhorado em função dos poderosos interesses vinculados à soja , como ocorre no sul do Brasil, também é utilizado para outros fins e por outros agentes. Uma ou­tra forma espacial, a cidade, criada para cumprir deter­minadas atividades, pode também servir a outras. Há, na realidade, no processo de ajuste entre agentes e atividades, o aparecimento de um mecanismo de natureza econômica que é denominado de economias de aglomeração: várias atividades juntas beneficiam-se mutuamente umas das ou­tras pela escala que criam, ao se utilizarem das mesmas formas espaciais. Neste sentido, podemos afirmar que as economias de aglomeração, na medida em que viabilizam o sucesso das atividades, são economias locacionais para a reprodução. Os fenômenos de concentração espacial que decorrem deste mecanismo têm a vantagem de minimizar a complexidade da organização· espacial global. Não fos­sem as economias de aglomeração, a dispersão, e não a concordância locacional, caracterizaria sobremodo a orga­nização espacial, pois em princípio cada atividade tem suas próprias regras locacionais, a sua organização espacial es­pecífica.

Organização espacial: capital e Estado

A organização espacial é o resultado do trabalho hu­mano acumulado ao longo do tempo. No capitalismo, este trabalho realiza-se sob o comando do capital, quer dizer,

61

dos diferentes proprietários dos diversos tipos de ~ap~tal. Também é realizado através da ação do Estado cap1tahsta. Isto quer dizer que o capital e seu Estado são os agentes da organização do espaço. Daí falar-se em espaço do ca-

pital. A ação do capital não se verifica de modo uniforme,

quer em termos temporais ou espaciais. Há uma ~iferen­ciação espaço-temporal nos investimentos de capital. A seqüência de idéias a seguir relaciona-se a esta distinção:

a) A própria dinâmica contraditória da acumulação capi­talista que, em função dos conflitos entre capital e tr~­balho e da concorrência dos capitalistas, gerou, a partir das últimas décadas do século XIX, um processo de centralização e concentração do mesmo envolvendo ini­cialmente as empresas industriais e depois os bancos, surgindo daí o capital fnanceiro, conforme mostra L~­nin 3 . Este processo origina-se a partir de um determi­nado momento, sendo, portanto, de natureza histórica.

b) A centralização e a concentração do capital têm uma expressão espacial que é a sua internacionalização, o que Lenin denominou imperialismo. Este não se dá, contudo, por igual: a superfície da Terra apresenta uma natureza primitiva e uma segunda natureza que ofere­cem atrativos diferenciados para o capital, que procura os lugares onde a sua remuneração é maior. E note-se que o valor de um lugar para o capital pode mudar com o tempo.

c) O Estado capitalista tem progressivamente investido mais e mais, contribuindo para a organização do espa­ço. Este crescente papel do Estado na organização espacial está ligado às necessidades de socialização

3 LENIN, V. I. U. Imperialismo ; fase superior do capitalismo. São Paulo, Global, 1979.

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dos custos necessários à acumulação do grande capi­tal. A este não compensa mais investir em ferrovias, sistemas de energia, habitação popular etc., ou seja, em atividades pouco remuneradoras. Por outro lado, o investimento fei to pelo Estado nestes setores pouco rentáveis barateia o s custos dos investimentos do capital nos lucrativos. O Estado, em muitos casos, tor­na-se empresário, diversificando seus investimentos. Esta função que passa a desempenhar interessa ao grande capital, inserindo-se na dinâmica de acumulação capita­lista, apesar do discurso de alguns economistas bur­gueses, segundo o qual, desta maneira, o Estado desvir­tua o seu papel. Como se este fosse uma instituição neutra, a-histórica, acima das classes sociais e dos inte­resses dominantes.

d) Ao lado do grande capital, existe ainda aquele que não se ampliou, não se diversificou, nem foi absorvido pelo primeiro. Está presente em todos os setores, e mui­tas vezes vive à sua sombra, sob a sua dependência, efetivada por subcontratos ou fornecendo matérias-pri­mas e bens intermediários, ou ainda viabilizando o grande capital, no papel de distribuidor varejista. Inse­re-se, portanto, no processo de acumulação capitalista. Aí encaixa-se também o denominado setor informal.

O grande capital, o Estado e o pequeno capital, cada um destes agentes da organização espacial possui uma es­tratégia de ação que lhe é aparentemente específica, e que inclui uma dimensão espacial.

A grande corporação capitalista pode, primeiramente, tomar decisões de investimento em um ou outro setor e/ ou lugar a partir de estudos de viabilidade técnica que o pequeno capitalista não está capacitado a fazer. Por outro lado, a grande corporação possui uma escala interna de operações de ordem tal que prescinde da presença de ou-

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. - 1 . anais que a afetam são tras atividades. As restnç?cs o_ca~t . - de uma série de

'nimas Podem criar ou induzir a cnaçao . d d m1 . , . escala ou investir no po er e vantagens na sua propna t s prefeitos deputados,

- · t ao Estado· quan o ' . pressao 1un o . . ,.. · t- nos países capitaltstas, senadores e mtmstros nao es ao, ais cor o-direta ou indiretamente vinculados a uma ou m p

rações? . . Sendo assim, a grande corporaçã_o p~dc implantar u~

f b ·1 d porte cons1deravel em uma pe estabelecimento ª n e _ t localizado em quena cidade, fechando Ol~ nao ~m ou r~nclave em loca­área metropolitana. Pode amda ~rtar um_ ra estrutura fi ­lidades despovoadas ou despr?v1das dbe tnf - de tudo ~stá

d além da fábrica, um nucleo ur ano on -

~~~ ~~u controle: as hab~taçõcs, os sedrevij~~o d~~~~e~aç;:, , d l' ·a etc Sao os casos . .

e sau e, a po ici · , . B lo Mineira em M1-criada pela Companhia Siderurg1ca _e"'~~ C . : ou de . c . ' pelo "projeto ara1as nas Gerais, de ara1as, . d as no Pará Nestas cida-Monte Dourado, pelo J_an~ras u. de uma f~rça de traba­des, a grande corporaçao ispora lho cativa e sob controle.

El de ainda dispersar a fabricação das partes com-onent:sp~e ~m pr~duto final cm vários p~íses, _ de _modo

p . . . , ·s problemas de nac10na1tzaçao. A a m101m1zar possivci de trabalho em grande corp~ração espalha ~a~~i~ ~~~;e caso, a intenção cidades prox1mas ao parque < • E t d , d ' ficu\tar possíveis conflitos trabalhistas . Induz o s a o e 1 , · a bem como os a instalar toda a infra-estrutura tecmc ' .

. tos habitacionais necessá rios, criando, respect1va-con1un ·d · · m ente, distritos industriais e áreas res1 enc1a1s.

. oduto agrícola e a mo-Ao introduzirem um novo pr

d . ,. tccnolóoica em uma área rural, as grandes cor-

ernizaçao "' . lterar sua _ direta ou indiretamente, a poraçoes podem, - diária mudança nas estrutura agrária: concentraçao fun ' [o;·ça d e trabalho

- 1 prodl1ç·,\o com uma nova relaçoes e e

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constituída por bóias-frias, emigração do excedente demo­gráfico etc. Aceleram, ainda, o processo de exaustão dos solos e, em relação às c idades da área, alteram as suas funções, pela diminuição da população de sua área de influência e pelo novo modelo de demanda rural.

As grandes corporações criam, desse modo, não ape­nas uma organização espacial própria, como inserem-se em uma prévia, alterando-a parcial ou totalmente, de acordo com seus interesses. Fala-se, assim. repita-se, do espaço do capital.

Vejamos alguns exemplos concretos. Um deles é dado pela corporação multinacional Bunge y Bom. No Brasil, atua nos setores de ó leos vegetais, farinha de trigo, rações, adubos, produtos químicos, tecidos, cimento, seguros etc., através de empresas como Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S.A.), Samrig (S.A. Moinho R io Grandense), Moinho Fluminense S.A. Indústrias Gerais, S.A. Moinho Santista Indústrias Gerais, Quimbras il (Quí­mica Industrial Brasi leira S.A.), Serrana S.A. de Minera­ção, Tintas Coral S.A., Fábrica de Tecidos Tatuapé S.A., Santista Indústria Têxtil do Nordeste S.A., Cimbage (Ci­mento, Mineração Bagé S.A.) e Vera Cruz Seguradora S.A., entre outras, em um total de aproximadamente 20 empresas, a lgumas das quais, como a Sanbra, possuindo numerosos estabelecimentos filiai s. A corporação emprega milhares de pessoas e manipula anualmente outras tantas toneladas de matérias-primas e produtos acabados.

Atuando em todo o território nacional, a Bunge y Bom atribui a cada uma de suas áreas ou pontos um papel diferenciado, segundo suas possibilidades e os interesses da corporação. A divisão territorial do trabalho é assim influenciada por e la, que tem, por sua vez, a sua própria organização espacial: escritórios nacionais, regionais e lo­cais, usinas de beneficiamento, depósitos, minas e fábricas.

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É 0 caso, também, da Companhia de Cigarros S~u~a Cruz, do grupo British American Tob~cco, que ?ossm fa­bricas em Porto Alegre, São Paulo, Rto de Janeiro, Uber­lândia, Salvador, Recife e Belém. Cada u~a controla um certo número de depósitos atacadistas localizados em cen­tros de expressão regional. Dos numerosos ce.ntros ata.ca­distas faz-se a distribuição de cigarros pelas cidades, ~tias e povoados da região de influência do cent~o atacadista. Assim, cobrindo todo o território nacional, ex1s_te_ um_a r~de urbana da Souza Cruz. Como ela também part~c1pa md1~e­tamcnte na produção de fumo no sul do Brasil, acaba in­terferindo na organização das áreas produtoras daquele

produto. Considere-se agora o grupo Bradesco, que, possui

mais de 1.500 agências bancárias em tod~ o pais. Tem também a sua própria rede urbana, que e, na. verdade. uma rede de drenagem, de acumulação de capital a ser investido desigualmente pelo território nacional, como, por exemplo, em dezenas de milhares de hectares de terra na

Amazônia. Ao lado da grande corporação ou mesmo da. em­

presa moderna, de menor ou maior p~rte, atua ainda, particularmen te nos países subdesenvolv1dos, um en~r.me conjunto de atividades, muitas vezes de ~atureza fam1!tar, que não se utilizam do crédito nem . movimenta~ ~ecu~sos vultosos. Em vários casos, empregam como matena-pnma produtos usados e não cumprem ou n~o têm nenhuma for­malidade, quer administrativa, quer vmculada. ao m:rca?o (atividades informais). Santos 4 as denomina c1rcu1to inferior da economia, em oposição às formais, pertencen­tes ao superior, ou seja, o circuito moderno.

4 SANTOS, M ilton. o espaço dividido. Rio de Janeiro, Francisco

Alves. 1978.

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Estas atividades do circuito inferior não são indepen­dentes das outras, mas um meio através do qual o processo de acumulação capitalista pode incluir um setor que não é atrativo para a grande empresa. Além do mais, garante determinado nível de subsistência para uma população aparentemente marginalizada que não teria emprego fixo nas atividades modernas. Os biscateiros, os ambulantes, as diversas oficinas de reparação semiclandestinas e as peque­nas unidades de produção de sucedâneos de produtos co­nhecidos são formas do circuito inferior.

Santos argumenta que, em áreas rurais pobres, a es­fera de influência dos pequenos centros urbanos é consti­tuída sobretudo pela atuação das atividades do circuito inferior: o poder aquisitivo desta população não permite o consumo de produtos do circuito superior. As feiras do nordeste, forma de mercado periódico, são exemplos tí­picos das atividades informais.

Por ter a sua ação vinculada sobretudo às necessi­dades de acumulação do capital e à conseqüente reprodu­ção social, o Estado age espacialmente de modo desigual, à semelhança da grande corporação. Beneficia certas fra­ções do capital: faz-se presente através de empreiteiras, algumas delas transformadas em grandes empresas. A abertura de estradas, o seu asfaltamento, a cobrança e a transferência espacialmente desigual de impostos, as leis de uso do solo geradoras do zoneamento urbano são, entre outros exemplos, o modo de o Estado capitalista interferir. A par desta performance, o Estado possui uma organi­zação espacial de seus aparelhos repressivo e ideológico: as comarcas, a organização espacial do aparato militar e policial, os distritos educacionais e suas jurisdições e a localização periférica das universidades federais fazem parte dela. Por outro lado, os monumentos aos vencedo­res das lutas sociais, ao lado do esquecimento total dos

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vencidos, constituem marcas da ação do Estado na orga­nização espacial.

Temos, portanto, dentro dela, uma dimensão econô­mica extremamente complexa, uma jurídico-política e uma ideológica. Estas três dimensões entrecruzam-se e comple­tam-se. Isto porque a organização espacial é um reflexo e uma condição da sociedade.

Organização espacial: reflexo social

Produto da ação humana ao longo do tempo, a orga­nização espacial é um reflexo social, "conseqüência do trabalho e da divisão do trabalho", conforme aponta Le­febvre 5 • i:: o resultado do trabalho social que transforma diferencialmente a natureza primitiva, criando formas es­paciais diversas sobre a superfície da Terra.

Como o trabalho social e a sua divisão dão-se em um determinado tipo de sociedade com certo nível de desenvolvimento das forças produtivas e um modo domi­nante de suas relações, a organização espacial resultante refletirá estas características básicas da sociedade. Refle­tirá o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção. E como estas últimas vão traduzir-se em classes sociais e seus conflitos, a organização espacial as espelhará.

Assim, a existência de estabelecimentos industriais, constituídos de edifícios onde se produz, depósitos, pá­tios de carga e descarga e áreas para futuras expansões, configura uma organização espacial em escala micro que só aparece a partir do capitalismo. Do rnesmp modo que um conjunto dos mesmos, uns ao lado dos outros, separa-

5 LEFEBVRE, Henri. Espacio Y. Politica. Barcelona, Peninsuln, 1976.

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dos por vias de tráfego pesado e ruas de uso exclusivo das fábricas que ali se situam, tendo ainda nas proximi­dades bairros operários. Considerando-se outra escala ter­ritori al, o mesmo se pode dizer de um conjunto de cidades industriais próximas umas das outras, como ocorre na área de Campinas, no Estado de São Paulo, ou no vale do Ruhr, na Alemanha.

Scmelhantemente, a organização espacial de uma propriedade rural no meio-oeste americano do início do século XX difere daquela dos dias de hoje. Um certo grau de autarcia e um menor nível tecnológico implicavam a ex istência de mais variedade nos cultivas e na criação de animais, bem como em usos d istintos das suas edificações.

José Lins do Rego, ao romancear a história da orga­nização sócio-espacial da zona da mata paraibana nos romances Menino de engenho, Bangüê, Fogo morto e Usi­na, entre outros, mostra muito bem como se deram as mu­danças de organização espacial a partir das relações de pro­dução - do escravo ao "morador de condição" e ao assa­lariado - e do desenvolvimento tecnológico - do engenho bangüê à pequena e à grande usina. A cada momento, refle­tia os dois aspectos. O bangüê, a casa-grande, a senzala, os "partidos" de cana, os cultivas de subsistência e a pró­pria dimensão espacial do estabelecimento produtor de açú­car refletem um estágio da or,ganização da sociedade local. Os amplos canaviais, a imponente usina com sua alta cha­miné, as linhas férreas cortando o canavial, a ausência de cultivas de subsistência e a presença de antigos bangüês, agora de fogo morto, caracterizam outro estágio.

Fosse José Lins do Rego vivo, certamente prosse­guiria o "ciclo da cana" reportando-se, entre outros aspec­tos, à ocupação canavieira nos tabuleiros, áreas de solos arenosos porém planos, que somente após a década de 60, à cu~ta de enorme investimento tecnológico compen­sado pelos altos preços do açúcar no mercado internacio-

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na!, foram incorporados à organização espacial canavieira. Reportar-se-ia ainda às dificuldades, devido aos tratores e à maquinaria pesada, de se utilizar as a té então r icas e valorizadas várzeas constituídas de solos argilosos - o massapê -, solos pesados que se tranformam em impie­dosos lamaçais durante a época das chuvas, o " inverno".

Buch-Hanson e Nielsen apresentam, por outro lado, três modelos que descrevem sucintamente a organização de três sociedades. A figura 6a refere-se à sociedade feudal posterior ao século X, quando se verifica um renascimento do fenômeno urbano. Trata-se de uma organização espa­cial constituída de células fechadas, pouco articuladas en­tre si. Cada uma delas apresenta condições de satisfazer à quase totalidade das necessidades de vida da grande maioria da população. No centro localiza-se um burgo, que tem em torno de si um território com aldeias rurais. A economia aldeã era praticamente autárcica, de subsis­tência, com um mínimo de excedentes, comercializados no burgo com a produção dos artesãos. As ligações entre os burgos, por sua vez, eram extremamente limitadas: não há trocas entre centros semelhantes. Esse padrão celular de­ve-se ao pequeno desenvolvimento das forças produtivas e à pequena divisão social e territorial do trabalho, tor­nando os horizontes espaciais extremamente reduzidos.

A figura 6b, por sua vez, refere-se à organização es­pacial da sociedade colonial. Surgida a partir do século XV com a expansão mercantilista européia, caracteriza-se, entre outros aspectos, pela primazia de uma cidade por­tuária, ponto de escoamento de produtos valorizados na Europa e nos Estados Unidos e de importação de produ­tos industrializados e sua redistribuição para a hinterlândia. J::, também, o centro de controle político e militar da colônia. A rede de cidades e as vías de circulação assumem um padrão dendrítico, à semelhança de um sistema flu­vial, em cuja extremidade encontra-se a cidade portuária.

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Figura 6

TIPOS DE ORGANIZAÇÃO ESPACIAL

(a)Fe,da~

1 1 1

>f (b) Colonial

(e) Capitalis ta avançado

71

Vários países da Asia, Africa e América Latina apresen­tam uma organização espacial semelhante a essa descrita pelo modelo.

F inalmente, a figura 6c reporta-se à sociedade capita­lista avançada. Como se pode ver, sua organização espa­cial é mais complexa. Complexidade que se refere aos nu­merosos centros urbanos e suas hinterlândias e à densa rede que os articula entre si. Esta organização espacial re­flete a intrincada divisão social e territorial do trabalho e a conseqüente natureza complementar das atividades de cada lugar. Ao contrário da sociedade colonial, a capita­lista avançada está organizada para si mesma, dotada de um poderoso mercado que implica sólidas relações in­ternas e externas.

Deste modo, como dizem Buch-Hanson e Nielsen, cada sociedade tem a sua própria geografia, a sua própria organização espacial.

Mas o seu caráter de reflexo social não diz respeito apenas ao presente. A organização espacial acumula for­mas herdadas do passado. Elas tiveram uma gênese vin­culada a outros propósitos e permaneceram no presente, porque puderam ser adaptadas às necessidades atuais, que não mudaram substancialmente ao longo do tempo. As formas espaciais herdadas do passado e presentes na or­ganização atual apresentam uma funcionalidade efetiva em termos econômicos ou um valor simbólico que justifica a sua permanência.

A estas Milton Santos (1978) denomina rugosidades, um termo da geomorfologia que designa as marcas do passado fixadas no espaço. Sua presença acaba condicio­nando o nosso cotidiano. Ao se projetar este raciocínio no tempo, pode-se afirmar que o presente condiciona o futu­ro, ou seja, as formas espaciais presentes têm um impor­tante papel no futuro da sociedade.

--72

Organização espacial e reprodução

A organização espacial não é somente um reflexo da sociedade. Como vimos, ao ser um reflexo, passa a ser simultaneamente uma condição para o futuro da sociedade, isto é, a reprodução social. Este papel assume enorme im­portância devido à crescente acumulação de formas espa­ciais que o capitalismo contemporâneo cria, exemplificada com a progressiva urbanização da humanidade. Na ver­dade, segundo Lefebvre, é o papel mais importante da organização espacial:

a total idade do espaço se converte no lugar da reprodução das relações de produção,

relações estas que estão no centro da sociedade estrutu­rada em classes sociais . .

Já vimos anteriormente por que a organização espa­cial é condição de reprodução. Vejamos agora a questão mais detalhadamente, através de alguns exemplos.

A concentração de atividades localizadas em um ponto do território, maximizando a acumulação de capital para as mesmas, condiciona a continuidade deste processo: os complexos industriais e as áreas metropolitanas são exem­plos típicos. O mesmo se pode dizer, mudando a escala, das ruas caracterizadas por um único tipo de atividade -comércio de móveis, confecções ou peças e acessórios de veículos. As vantagens advindas da aglomeração induzem à reprodução do padrão espacial preexistente.

Os efeitos da ampliação do capital das empresas loca­lizadas no centro da cidade, somados às deseconomias de aglomeração, quer dizer, o congestionamento do tráfego, a ausência de áreas para expansão ou o alto preço da terra, traduzem-se na recriação de novas concentrações de ativi­dades cm áreas distantes do centro da cidade e dotadas de

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algumas vantagens locacionais como uma pos1çao geográ­fica favorável. Reproduzem-se então concentrações simi­lares às do centro da cidade, através dos subcentros co­merciais, como Copacabana, Tijuca e Madureira, na ci­dade do Rio de Janeiro.

Existe, de um lado, um processo de reprodução sim­ples do espaço e, de outro, ampliada. No primeiro caso, um local de concentração de atividades, como o centro da cidade, expande-se vertical ou horizontalmente. Isto se dá pelo aparecimento de novas empresas que são agrega­das ao espaço já constituído. No segundo caso, uma nova organização espacial é criada ou alterada pelo aparecimen­to de subcentros comerciais, cuja forma mais moderna é o shopping center, tais como Barra Shopping, Rio Sul, Ibirapuera, Eldorado, BH Shopping, lguatemi etc. O shopping center é, na verdade, o resultado da fusão de capitais vinculados primordialmente ao setor financeiro, imobiliário e comercial.

Esta reprodução ampliada do espaço é uma expres­são espacializada do processo de reprodução ampliada do capital, que se verifica simultaneamente à sua centraliza­ção e concentração: os subcentros comerciais cresceram ·a partir da instalação de filiais de empresas tradicionalIJ:len­te localizadas no centro da cidade, como as lojas de eletro­domésticos, e a expensas das pequenas empresas comer­ciais dos bairros; nos shopping centers, só se arrenda o espaço de uma loja para uma empresa que já possua uma cadeia delas. Assim, reprodução ampliada do capital significa, no plano das empresas, uma centralização, mas no plano espacial representa uma descentralização recria­dora.

O papel da organização espada! como condição para a reprodução social é mais evidente quando se consideram as diferentes classes sociais e suas frações em um meio

1 1

1

74

urbano. B, em grande parte, através da segregação resi­dencial que estas se reproduzem.

A origem da segregação residencial remonta ao pró­prio aparecimento das classes sociais e da cidade, as quais se verificaram ao mesmo tempo, sendo anteriores à emer­gência do capitalismo. A cidade asteca de Tenochtitlán e a cidade kmer de Angkor Thom, no atual território cambo­jano, apresentavam uma organização espacial caracterizada pela presença da elite junto ao ce11tro cerimonial e da população pobre na periferia.

E no capitalismo, contudo, que a segregação residen­cial torna-se mais complexa, à medida que se amplia o processo de estruturação das classes sociais e seu fra­cionamento. Novos modelos espaciais de segregação apa­recem impulsionados pelos diferentes agentes da organiza­ção espacial urbana: proprietários fundiários, incorporado­res imobiliários, industriais, articulados em maior ou me­nor grau aos bancos, e o Estado.

São criadas, assim, periferias de autooonstrução, fave­las em áreas alagadiças ou de morros, cortiços, bairros dos diferentes segmentos da classe média e as habitações sun­tuosas e seletivas dos capitalistas e executivos do capital: os condomínios exclusivos, cercados e sob vigilância de uma polícia particular, são a expressão acabada de uma elite que se impõe.

Como a segregação residencial viabiliza a reprodução das classes sociais e suas frações? Pelo fato de as diversas áreas residenciais, diferenciadas entre si, mas razoavelmen­te homogêneas quando consideradas internamente, confi­gurarem meios distintos para a interação social, da qual os indivíduos derivam seus valores, expectativas, hábitos de consumo e estado de consciência. A partir do bairro en­xerga-se a cidade e o mundo. Um bairro e seu sistema de valores estável possibilita maior reprodução do grup.o so-

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cial que ali vive. Afinal de contas, espera-se que nas loca­lidades onde hoje residem os capitalistas esteja sendo for­jada a próxima geração dos mesmos. Do mesmo modo, de um bairro de empregados do comércio, de bancos e escri­tórios, espera-se que saiam os futuros empregados destes setores. Para isto, contribui a localização diferenciada dos serviços de uso coletivo: melhores escolas, hospitais, poli­ciamento, infra-estrutura básica, parques e jardins locali­zam-se nas áreas residenciais mais nobres, minimizando os custos de reprodução de seus já privilegiados habitantes.

E o que falar da periferia das grandes cidades bra­sileiras, habitada por uma enorme e crescente força de trabalho não-qualificada, que tem parte de seu tempo co­tidiano desperdiçado com horas de viagens entre locais de residência e de trabalho? A respeito da reprodução dos moradores da periferia, Chico Buarque de Holanda tem enorme sensibilidade quando em " Pedro pedreiro" escreve:

Pedro pedreiro, penseiro Esperando o trem

E a mulher de Pedro esperando um filho Pra esperar também

Assim, a organização espacial do presente impacta sobre o futuro, adquirindo aquilo que Milton Santos deno­mina de inércia dinâmica.

Estrutura, processo, função e forma

Segundo Milton Santos (1985), para se compreender a organização espacial e sua evolução - quer dizer, a

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evolução da totalidade social espacializada -, torna-se ne­cessário que se interprete a relação dialética entre estru­tura, processo, função e forma. Estas são as categorias ana­líticas que permitem a compreensão da totalidade social em sua espacialização,

como os homens organizam sua sociedade no espaço, .e como a concepção e o uso que o homem faz do espaço sofrem mudanças.

(MILTON SANTOS, 1985, p. 53.)

Segundo Santos, forma é o aspecto visível, exterior, de um objeto, referindo-se ainda ao arranjo deles, que pas­sam a constituir um padrão espacial. Uma casa, um bair­ro, uma cidade e uma rede urbana são formas, formas espaciais de diferentes escalas. J:: conveniente deixar claro que não se pode considerar a forma de per si. Se assim o fizéssemos, cairíamos em uma análise da forma pela for­ma, atribuindo a ela uma autonomia que não tem. Esta­ríamos, ainda, deslocando a forma para o âmbito da geo­metria, a linguagem da forma, caindo em um espacialismo estéril para a compreensão da organização espacial.

Por outro lado, se considerássemos que a partir da forma seria possível apreender a realidade em sua essência, incorreríamos em um grave erro. Tratar-se-ia da apreen­são de um aspecto da realidade, a sua aparência, incapaz de permitir vê-la em sua concretização, porque sua essên­cia aparece nos processos e funções que emanam da estru­tura, como se verá. Seria uma pseudoconcretização, con­forme Kosik s.

Por sua vez, a noção de função implica uma tare­fa, atividade ou papel a ser desempenhado pelo objeto criado. Assim, este tem um aspecto exterior, visível - a

6 Kos1K, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, .1969.

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forma - e desempenha uma atividade - a função. Habi­tar, viver o cotidiano, a vida em suas variadas facetas -trabalho, compras, lazer -, visitar parentes e consumir em outras cidades são algumas das funções associadas, res­pectivamente, à casa, ao bairro, à cidade e à rede urbana.

A relação entre forma e função é, em princípio, di­reta: uma determinada forma é criada para desempenhar uma ou várias funções. E não existe função sem a sua forma correspondente. Daí não se poder dissociar forma e função no estudo da organização espac!al. ~o~tudo_, .ape­nas a consideração da forma e da funçao nao e suficiente para compreendê-la: estaríamos retirando da rea~i~ade so­cial a sua natureza histórica, isto é, as caractensticas so­ciais e econômicas e suas transformações. Cairíamos em uma análise espacial de cunho funcionalista.

Segundo Santos, o termo estrutura, relativo ao modo como os objetos estão organizados, refere-se não a um padrão espacial, mas à maneira como estão inter-relaci,_?­nados entre si. Diferentemente da forma, a estrutura nao constitui algo que tenha uma exterioridade imedi~t?. Ela é invisível, estando subjacente à forma, uma espec1e de matriz onde a forma é gerada. Estrutura é a natureza social e econômica de uma sociedade em um dado mo­mento do tempo.

Por sua vez, processo é definido como uma ação que se realiza continuamente, visando um resultado qualquer, implicando tempo e mudança. Os processos acontecem dentro de uma dada estrutura social e econômica e resul­tam das contradições internas da mesma. Com isto, esta­mos dizendo que processo é uma estrutura em seu movi­mento de transformação.

Se considerarmos, portanto, apenas as categorias de estrutura e processo, estaremos fazendo uma análise a-es­pacial, não-geográfica, absolutamente incapaz de captar

,....

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a ~rganização espacial de uma dada sociedade em um dado momento do tempo ou suas mudanças no mesmo. Consi­derando apenas a estrutura e •a forma, desprezando o papel do processo e da função, deixaríamos de lado a mediação (processo e função) entre o que é subjacente (a estrutura social e econômica) e o exteriorizado (a forma espacial). Perde-se a história, os elementos dinâmicos de transfor­mação, que põem a estrutura em marcha, culminando na mudança ou permanência das formas espaciais. Reafirman­do, diríamos com Santos:

Forma, função, estrutura e processo são quatro termos d isjuntivos associados, a empregar segundo um contexto do mundo de todo dia. Tomados individualmente, repre­sentam apenas realidades parciais, l imitadas, do mundo. Cons iderados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma b'ase teórica e metodológi ca a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em tota­l idade.

(MILTON SANTOS, 1985, p. 52.)

A partir da estrutura social e econômica, podemos considerar as inter-relações entre estrutura, processo, fun­ção e forma. Uma dada estrutura social e econômica pos­sui seus processos intrínsecos que demandam funções a serem cristalizadas em formas espaciais. Cessadas as ra­zões que deram origem a e las, podem desaparecer, dando origem a outras. A famosa expressão destruição criadora refere-se à intensidade desta substituição no capitalismo. Contudo, na sociedade capitalista, a força de permanên­cia das formas espaciais tem sido crescente.

O fato de muitas das formas construídas transforma­rem-se em capitais fixos, apresentando ainda determinado nível de remuneração do capital investido, ou então um certo valor para a sociedade, explica a força de inércia que possuem. Ademais, muitas destas formas são dotadas

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de certa flexibilidade que permite uma adaptação às exi­gências das novas funções criadas em momentos posterio­res à sua criação. Assim, o moderno, a função, e o antigo, a forma, podem estar juntos, ao lado de funções e formas contemporâneas, tornando complexa a organização espa-cial.

Vejamos um exemplo . .E. comum encontrarem-se áreas caracterizadas por residências deterioradas, os cortiços, pró­ximas · ao centro das grandes cidades capitalistas. São resi­dências do século XVIII, XIX ou do início deste, que foram habitadas no passado por famílias de alto status. A partir de um determinado momento, abandonaram a proximidade do centro e foram habitar novas resid~ncias construídas em bairros mais distantes do centro da cidade.

As antigas residências foram parcialmente substituí­das por altos edifícios, transformadas em escritórios ou lojas, ou ainda em cortiços habitados por famílias de baixa renda: cada residência abriga várias famílias, cada uma ocupando uma única peça e tendo em comum o banheiro e a cozinha. A velha forma espacial ganha, com seu novo conteúdo, funções diferenciadas: fornecer residência barata para parte da classe trabalhadora, via de regra constituída de imigrantes, que tem seu mercado de trabalho junto ao centro, e permitir a extração de uma renda para uma par­cela dos proprietários dos imóveis deteriorados. Estas fun­ções, por sua vez, resultam de um processo que está no centro da estrutura sócio-econômica capitalista, o de acumulação de capital que, no caso em tela, implica a criação de novos bairros, a extração de uma renda fun­diária e o barateamento do custo da força de trabalho e de sua reprodução, através de residências precárias e bara­tas próximas ao local de trabalho.

Na análise da organização espacial, deve-se ter o cuidado ·de não se iludir pela semelhança das formas es­paci<>is. Formas semelhantes podem ser oriundas de pro-

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cessos distintos, e realizarem funções diferentes. Isto sig­nifica que, ao se transpor, por analogia, o conhecimento adquirido sobre uma forma para outra, corre-se o risco de se cometer uma inferência errada. Não resta dúvida de que podemos deduzir, com alguma precisão, as formas que podem emergir de um determinado processo e sua função correspondente. No entanto, o inverso não é verdadeiro. Formas semelhantes oriundas de processos difer·entes po­dem ser .criadas em duas estruturas sociais e econômicas distintas, visando, por exemplo, escamotear a realidade. A flexibilidade das formas quanto ao seu uso assim o per­mite. Mas admitimos que esta questão não está de todo resolvida.

A partir da compreensão das relações entre estrutura, processo, função e forma, as categorias analítioas que dão conta da totalidade social em sua espacialização, podem-se, sem receio de cair no empirismo, iniciar o estudo da organização espacial de uma sociedade em um dado mo­mento de sua história pelas suas formas.

Espaço e movimentos sociais urbanos

A cidade tem-se constituído, ao longo da história, no principal local das lutas sociais. As barricadas de Paris e as greves por toda parte são exemplos destas lutas sociais que se verificam no espaço urbano capitalista, onde estão as fábricas, os proprietários dos meios de produção, os operários, os diferentes setores de classe média e os grupos marginalizados. Elas são a expressão dos conflitos entre capital e trabalho.

A consciência da existência de uma organização espa­cial urbana desigual, caracterizada por uma complexa ài­visão técnica e social do espaço, associada a uma enorme diferença nas condições de vida dos diversos grupos so-

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ciais da cidade, tem gerado, a partir da década de 60, um novo modo de manifestação das lutas sociais. São os deno­minados movimentos sociais urbanos.

A diferenciação na organização espacial da grande cidade latino-americana é notável. Em relação às áreas residenciais, há bairros aprazíveis e faraônicos, habitados por uma população de alto nível de renda - proprietá­rios dos meios de produção e assalariados regulares e bem­-remunerados -, que a par das belas e luxuosas residên­cias, d ispõem de uma boa infra-estrutura e serviços ade­quados: água, esgoto, luz, calçamento, praças, parques, clubes, policiamento, comércio de luxo, os melhores con­sultórios e clínicas médicas, e excelentes escolas. Estes bairros localizam-se, normalmente, nos setores de ameni­dades da cidade, em áreas de alto preço da terra.

Em oposição a estes bairros, há outros habitados por uma população de baixo nível de renda, constituída por operários não-qualificados, humildes empregados do setor terciário, subempregados e desempregados, que vi­vem em favelas dispersas pelo espaço urbano, em conjun­tos habitacionais construídos pelo Estado, ou em precá­rias casas autoconstruídas pela própria população em suas horas de repouso e lazer - caracterizando, portanto, um sobretrabalho. Tanto os conjuntos habitacionais como as casas autoconstruídas localizam-se na periferia do espaço urbano, em áreas precariamente dotadas de infra-estrutura e serviços, e de baixo preço da terra. A lém destas áreas dispersas ou distantes do centro da cidade, os cortiços exis­tentes nas proximidades do centro abrigam uma determi­nada parcela da população de baixo nível de renda.

Entre uma área e outra, localizam-se os bairros das diferentes frações da classe média. Caracterizam-se por apresentarem aspectos que ora os aproximam dos bairros populares, ora dos ricos.

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A diferenciação do espaço urbano em termos resi­denciais tem, como já se viu, o papel de viabilizar a re­produção das diferentes classes e suas frações. Ela é per­cebida no trajeto para o trabalho, nos locais de residência e de trabalho, nas viagens de compra, visitas e lazer, e nas informações provenientes da enorme profusão dos meios de comunicação. A consciência das diferenciações sócio-espaciais faz com que cada um destes espaços resi­denciais seja também de reivindicações, específicas ao gru­po social que ali reside. Reivindicações que dizem respeito às condições de reprodução de cada grupo social.

As exigências assumem uma expressão espacial atra­vés dos movimentos sociais urbanos que se manifestam, não nos locais de trabalho, com as greves, mas nos bair­ros, nos locais de reprodução das classes sociais e suas frações. As reivindicações dizem respeito ao direito a uma habitação decente, ao acesso aos vários equipamentos de consumo coletivo como água e esgoto, ao direito de per­manecer no local da residência e não ser transferido com­pulsoriamente, ou seja, reivindicações pelo "direito à ci­dade". As associações de moradores são os agentes atra­vés dos quais a mobilização reivindicatória é processada.

Os movimentos sociais urbanos têm como origem as contradições específicas da problemática urbana, que são, de um lado, aquelas entre as necessidades coletivas de equi­pamentos como habitação, transporte, saúde e cultura, e, aindçi pensando em espaço, as contradições. aparecem não apenas no suporte da habitação, mas também na locali­zação relativa face ao mercado de trabalho, e, de outro lado, a lógica capitalista, que torna pouco rentável a pro­dução destes equipamentos pelo capital privado. A contra­dição entre o modo individual de apropriação das condi­ções de vida e o coletivo. de gestão é, por sua vez, difi­cultada pela natureza privada e pulverizada dos ·agentes

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econômicos, cujos interesses não se referem a todo o con­junto do espaço urbano.

No contexto das contradições acima referidas, o Es­tado encarrega-se de prover os equipamentos de consumo coletivo para todo o espaço urbano. No entanto, como o Estado é também o elemento de legitimação da classe do­minante, sua atuação enquanto provedor tende, por um lado, a reforçar as áreas residenciais nobres, e por outro, a viabilizar o sucesso de novas implantações produtivas do grande capital, através, por exemplo, da criação de distritos industriais. Isto significa que a sua atuação não se realiza de modo uniforme no espaço urbano, atuação que se traduziria nos investimentos em água e esgoto, na criação de uma completa infra-estrutura para implantações industriais, na produção de novos espaços urbanizáveis, na abertura de vias de grande densidade de tráfego, na insta­lação de áreas de lazer, na renovação urbana, na cons­trução de conjuntos habitacionais, mas também na expul­são de moradores e permissividade na proliferação de loteamentos populares sem infra-estrutura.

Aos olhos da população de baixo nível de renda, o Estado representa uma instituição que não cumpr.e seus deveres, não atende às crescentes necessidades coletivas de certas áreas da cidade, visto até como um adversário que procura romper modos de vida enraizados em certos locais. Os movimentos sociais u rbanos têm como alvo o Estado e não os proprietários dos meios de produção.

Acreditamos com Lojkine 7 que os movimentos so­ciais urbanos possam assumir um papel significativo nas transformações da sociedade e de sua organização espacial, quando duas questões, ambas associadas ao espaço geográ­fico, forem esclarecidas e resolvidas. Primeiramente, quan-

7 LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1981.

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do for desmoronada a barreira ideológica que isola o mundo da produção do da reprodução. Quando ficar cla­ro que as questões que emergem nos locais de trabalho e nos de residência são, no fundo, uma única questão, des­dobrada em termos espaciais pelo .capitalismo e sua orgá­nização. Afinal de contas o efeito das horas de trabalho não-remunerado, centro da mais-valia e da acumulação de capital, é sentido mesmo nos locais de residência, esque­cidos .dos investimentos em equip,amentos de consumo co­letivo por um Estado a serviço de interesses que não são os dos habitantes das periferiias de autoconstrução, dos distantes e precários conjuntos habitacionais, das favelas e dos cortiços.

Em segundo lugar, quando os movimentos soc1a1s urbanos ultrapassarem a escala local, do bairro e da cida­de, e se inserirem em uma escala nacional, que abranja as questões da fábrica e do bairro. Ou seja, quando ficar clara a idéia de unidade da totalidade sócio-espacial. Caso contrário, os movimentos sociais urbanos, expressão da espacialização da organização social, estarão destinados a se esvaziarem, na medida em que as reivindicações feitas forem atendidas no todo ou em parte. Não é com "remen­dos" (água, calçamento, posto de saúde etc.) na organiza­ção espacial que se resolverá a questão das desigualdades sociais. :e. preciso que a organização social mude para que, em seus aspectos mais essenciais, a organização espacial possa também mudar. Mudar a partir da prática daquele que assumirá o papel de agente de seu próprio destino e modelador de seu espaço: o homem novo, de uma socie­dade sem classes sociais.

5 Vocabulário crítico

Complexo industrial: trata-se de um conjunto de indústrias espacialmente concentradas e interligadas por fluxos de matérias-primas e bens intermediários (peças e compo­nentes que serão incorporados a um produto final). Em muitos casos, a ligação entre as indústrias dá-se também pela co-participação acionária das empresas industriais. Em um complexo industrial, exemplo de economias de aglomeração, há indústrias de bens de capital, como a metalurgia e a química pesada, de consumo durável, co­mo os eletrodomésticos, e não-durável, como os tecidos sintéticos. A área metropolitana de São Paulo e o vale do Ruhr são exemplos de complexos industriais.

Difusão de inovações: trata-se do espraiamento de idéias ou artefatos novos. Em geografia, fala-se da difusão espa­cial de inovações, ou seja, consideram-se os caminhos percorridos e a rapidez do percurso, conduzidos por agentes inovadores. O conceito de modernização está associado à idéia de difusão de inovações. O conceito em pauta aparece em Ratzel, é largamente adotado pe­los geógrafos culturais e, mais tarde, pela nova geo-

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grafia. A teoria da difusão espacial de inovações consi­dera a difusão por contágio, à semelhança de uma man­cha de óleo espalhando-se, a difusão hierárquica, através da rede de cidades, e a difusão espacialmente salteada, que passa por cima de áreas que não são afetadas pela inovação.

Hinterlândia: significa área subordinada economicamente a um centro urbano. Emprega-se a palavra referindo-se a áreas de influência de uma cidade como Belo Hori­zonte, Montes Claros ou Januária, e também no sentido de um amplo território colonial sob o domínio de uma metrópole ultramarina.

Ideologia: a acepção adotada é a de ocultação da realida­de ou falsa consciência, e não a comum, de um con­junto de idéias políticas, econômicas ou sociais: para isto deve-se empregar a palavra ideário. Um ideá­rio, contudo, pode ser visto como sendo uma ideo­logia-. A noção de ideologia adotada é proveniente de Marx e Engels e tem como pano de fundo a existência de classes sociais antagônicas e a dominação de uma classe sobre as demais: a sustentação da classe domi­nante faz-se pela ideologia, através dos aparelhos ideo­lógicos de Estado (escola, família etc.), e pela repres­são, através dos aparelhos repressivos de Estado (polí­cia, leis etc.). Ver sobre o assunto o livro de Marilena Chauí, O que é ideologia.

Localidade central: expressão criada em 1933 pelo geó­grafo alemão Walter Christaller para designar um lugar de venda de produtos industrializados e de prestação de serviços educacionais, de saúde, bancários etc. Uma cidade comercial servindo a uma zona rural e a cidades menores (ver Hinterlândia) é uma localidade central. A teoria das localidades centrais aborda a organização

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espacial desses lugares, organização que inclui a hierar­quia entre eles.

Paradigma: entendido como visão de mundo adotada e compartilhada por uma determinada comunidade cien­tífica. Tem sentido mais amplo que teoria porque repre­senta um conjunto de crenças e valores. Ou seja, as len­tes através das quais uma comunidade científica enxerga o mundo real e, explícita ou implicitamente, antevê o futuro. Thomas S. Kuhn dá esta acepção ao termo, em seu livro The Structure of Scienlific Revolution. Mais tarde, ele próprio redenominou-o de matriz disciplinária.

Posição geográfica: refere-se à localização relativa de uma forma espacial criada pelo homem, fábrica, mina ou cidade, face ao acesso aos recursos naturais e/ou ao mercado consumidor. Uma posição geográfica favorá­vel é aquela que tem efeitos positivos, segundo o que se espera do desempenho das funções que a forma espacial realiza: para cada forma espacial - hospital, usina siderúrgica ou cidade comercial - há uma posi­ção geográfica favorável. É conveniente notar que o valor atribuído a uma posição geográfica de determi­nada forma espacial pode ser alterado a partir de mu­danças tecnológicas ou nas relações d e produção. Um conceito complementar ao de posição geográfica é o de sítio, que se refere à local ização absoluta de uma for­ma geográfica: em um terraço fluvial, em terrenos co­luviais etc. A posição geográfica implica, geralmente, considerar uma forma espacial à luz de uma pequena escala (J :500.000, por exemplo), enquanto o sítio em uma grande (1 :2 .000, por exemplo).

R egra da ordem e tamanho de cidades: modelo desen­volvido por G. K. Zipf onde se considera que existe uma relação entre o tamanho de uma cidade e a sua

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posição ou ordem no âmbito das cidades de um país. Para Zipf, a maior cidade teria tamanho 1, a segunda 1/2, a terceira 1/ 3, a quarta 1/ 4 e a cidade n o tama­nho 1/n. Este padrão indicaria um estado de equilíbrio no processo de desenvolvimento social e espacial, não sendo a maior cidade várias vezes maior que a segunda do país, caso este que originaria uma cidade primaz.

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6 Bibliografia comentada

CHRISTOFOLETTI, Antonio, org. Perspectivas · da geografia. São Paulo, DIFEL, 1982. Coletânea de artigos relativos às várias correntes do pensamento geográfico, incluindo a geografia humanís­tica e a visão idealista em geografia, correntes recentes, posteriores à nova geografia, e que n este trabalho não foram consideradas. Inclui um artigo clássico de Paul Vidal de la Biache sobre a natureza da geografia.

CLAVAL, Paul. Evolución de la geografia humana. Barce­lona, Oikos-Tau, 1-974. Esse livro trata da história do pensamento geográfico desde o aparecimento do determinismo ambiental até à nova geografia, constituindo-se em obra de refe­rência básica.

HARTSHORNE, Richard. Propósitos e natureza da geografia. (Trad. Thomaz Newlands Neto). São Paulo, HUCITEC, 1978. Trata-se da segunda grande obra de Hartshorne, cons­tituindo-se em uma réplica aos críticos de sua grande obra The Nature of Geography de 1939. Neste l ivro,

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Hartshorne ratifica a defesa da geografia e do método regional, do caráter único dos lugares, e da impossibi­iidade de elaboração de leis em geografia.

HARVEY, David. Explanation in Geography. London, Ed­ward Arnold, 1969.

E o mais importante livro sobre a nova geografia, fornecendo suas bases filosóficas e metodológicas. E de fundamental importância para quem quiser aprofundar­-se na. questão da transposição do positivismo lógico e da teoria dos sistemas para a geografia.

JAMES, Preston E. All Possible Worlds; a History of Geo­graphic ldeas. New York, The Odyssey Press, 1972.

Uma das mais abrangentes obras, ainda que descritiva, sobre a história do pensamento geográfico, sendo fonte de consulta obrigatória a ·respeito de períodos, autores e "escolas nacionais" de geografia. Estende-se da An­tigüidade Clássica ao início da década de 70. Inclui vastíssima bibliografia e um útil índice comentado de geógrafos de todo o mundo.

LACOSTE, Yves. A geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976.

Este livro tece uma crítica à geografia dos professores e ao caráter ideológico, de um modo geral, da geografia. Trata-se de uma das mais profundas críticas à escola vidaliana de geografia, pondo em questão, entre outros aspectos, o conceito de região.

MEGALE, Januário Francisco, org. Max. Sorre. São Paulo, Atica, 1984. (Col. Grandes Cientistas Sociais, 46.)

Coletânea de artigos e capítulos de livros do geógrafo francês Maximilien Sarre. Faz parte da Coleção Grandes Cientistas Sociais que incluirá, entre outras, aquelas re­lativas a Humboldt, Ritter, Ratzel, Vidal de la Biache l

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e Sauer. E indispensável a sua leitura, pois trata-se de uma ida às fontes , de se ler o que os grandes nomes da geografia escreveram.

MoRAES, Antonio Carlos Robert. Geografia - pequena história crítica. São Paulo, HUCITEC, 1981.

Trabalho de natureza crítica sobre a história do pensa­mento geográfico; estende-se de Humboldt e Ritter à geografia crítica. Extremamente útil para aqueles que queiram situar a geografia histórica e geograficamente.

-- & COSTA, Wanderlcy Messias da. Geografia crítica; a valorização do espaço. São Paulo, HUCITEC, 1984.

Este livro é extremamente importante porque procura repensar o "temário geográfico à luz do materialismo histórico e dialético". A questão do espaço, vista a par­tir da teoria do valor, é o tema central do livro: os autores apresentam e discutem os conceitos de valor no e do espaço,.

MOREIRA, Ruy. O que é geografia. São Paulo, Brasiliense, 1981.

Pequeno e rico trabalho sobre a geografia vista de um ângulo crítico. Contém uma história da geografia, dis­cutindo ainda a questão do espaço.

--, org. Geografia, teoria e crítica; o saber posto em questão. Petrópolis, Vozes, 1982.

Coletânea de artigos de geógrafos brasileiros abordan­do a geografia a partir de uma visão crítica. O livro está dividido em duas partes, a primeira fazendo a crítica teórica, e a segunda a releitura da sociedade. Contém o artigo de Ruy Moreira "A geografia serve para des­vendar máscaras sociais", contribuição básica para se pensar a organização espacial.

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--. O movimento operário e a questão cidade-campo no Brasil; estudo sobre sociedade e espaço. Petrópolis, Vozes, 1985.

Estudo sobre as relações entre a organização espacial e a sociedade brasileii:a. O primeiro capítulo é parti­cularmente relevante para uma iniciação crítica sobre o

· conceito de organização espacial.

QUAINI, Massimo. Marxismo e geografia. Trad. Liliana La­ganá Fernandes. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. Este livro aborda as relações entre o marxismo e a geografia, sendo uma fonte de reflexão centrada no eixo natureza-história. ·

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova; da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo, HUCITEC, 1978. .

Trata-se de obra fundamental para a "renovação crí­tica" da geografia. A primeira parte aborda criticamen­te a história da geografia, e a segunda discute a ques­tão do espaço, que para o autor constitui uma instância da sociedade. A terceira parte é uma proposta de geo­grafia crítica.

--. Espaço e sociedade. Pe~rÓpolis,. Vozes, 1979. Conjunto de ensaios em que o autor aborda as relações entre espaço e sociedade, privilegiando, de certo modo, os países subdesenvolvidos. Contém, entre outros, o ar­tigo "Sociedade e espaço: a formação social como teo­ria e como método", de fundamental importância para se compreender a natureza da organização espacial.

--, org. Novos rumos da geografia brasileira. São Paulo, HUCITEC, 1982.

Coletânea de artigos de geógrafos brasileiros tratando criticamente questões geográficas, tanto no plano teórico

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como considerando o espaço brasileiro. Contém, entre outros, os artigos de Manuel Correia de Andrade, "O pensamento geográfico e a realidade brasileira", e o de Ruy Moreira, "Repensando a geografia", outro artigo importante para a compreensão da organização espacial.

--. Espaço e método. São Paulo, Nobel, 1985. Conjunto de ensaios escritos em sua quase totalidade na déc.ada de 80, abordando a natureza e o conceito de espaço. Os elementos do espaço, suas categorias de aná­lise, a dimensão temporal e os sistemas espaciais no Terceiro Mundo, e as relações entre espaço e capital, são alguns dos temas abordados.

SooRÉ, Nelson Werneck. Introdução à geografia; .. geografia e ideologia. Petrópolis, Vozes, 1976. ~~ Estudo crítico sobre a história da geografia desde a Antigüidade até a geopolítica dos anos 30.