169
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA PAULO JOSÉ ROSSI August Sander e Homens do século XX: a realidade construída. São Paulo 2009

ROSSI, Paulo José. August Sander e Homens Do Século XX

Embed Size (px)

DESCRIPTION

August Sander e Homens do século XX

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    PAULO JOS ROSSI

    August Sander e Homens do sculo XX: a realidade construda.

    So Paulo 2009

  • 1

    RESUMO

    O fotgrafo alemo August Sander (1876-1964) foi autor de uma das mais apreciadas

    obras fotogrficas do sculo passado, Homens do sculo XX (HHSX), um projeto de

    fotografia documental de grande envergadura, iniciado na dcada de 1920, composto

    basicamente por retratos, por sua vez organizados segundo o critrio de classificao de tipos

    da sociedade elaborado pelo prprio fotgrafo.

    Alguns dos retratos so descritos neste trabalho pormenorizadamente a fim de

    encontrar nas suas propriedades visveis indicaes referentes aos esquemas de percepo que

    Sander empregava em sua viso de mundo. As anlises dessas imagens so confrontadas com

    os critrios de classificao por ele adotados e articuladas a um manancial de informaes

    relacionado ao ambiente fotogrfico da poca, ao contexto scio-poltico da Alemanha e

    biografia do fotgrafo. Este procedimento levou hiptese central da pesquisa: mais do que

    representaes de tipos sociais, como de fato acreditava Sander, HSXX antes um conjunto

    de esteretipos no sentido de seus retratos serem realidades construdas que correspondem a

    um modo de percepo social. Enquanto percepo do real, a maioria dos retratos

    corresponde a esteretipos pr-concebidos socialmente.

    O presente estudo parte do princpio de que Homens do sculo XX a narrao da

    interpretao de Sander sobre aquele perodo histrico da Alemanha. Deste ponto de vista, a

    anlise empreendida no interpreta somente a obra, mas tambm interpreta a interpretao

    circunstanciada daquele que a concebeu. No se trata, portanto, de um estudo sobre os fatos

    narrados, mas sim sobre a forma como Sander os narrou, sua percepo do mundo inscrita na

    interpretao que ele faz do real circunstanciada por diversos fatos sociais.

    Palavras-chave: fotografia; retrato; realidade construda; esteretipo; habitus; August Sander; Homens do sculo XX.

  • 2

    ABSTRACT

    The German photographer August Sander (1876-1964) was the author of one of the

    most appreciated photographic work from last century, Man in the Twentieth Century, a vast

    documental photography project, started in the 1920s, basically composed by portraits,

    organized by the author according to societys kinds of occupations.

    Some of the portraits are described here in detail in order to find in its visible

    proprieties, indications related to the aspects of perception which Sander used in his view of

    the world. The analysis of those images are confronted with the classification criteria adopted

    by him and articulated with several pieces of information related to the photographic

    environment from that time, to the German social political context and to the photographers

    biography. This procedure took us to the researchs central hypothesis: more than

    representations of social types, as Sander believed, Man in the Twentieth Century is a whole

    of stereotypes in the sense that his portraits are constructed realities that correspond to a

    kind of social perception. As for the perception of the real, most of the portraits correspond to

    the stereotypes that are socially understood.

    The current study essentially states that Man in the Twentieth Century is the narration

    of Sanders interpretation about that German historic period. From this point of view, the

    analysis done not only interprets the art work, but also interprets the circumstanced

    interpretation from the one who idealized it. Therefore, it is not a study about the narrated

    facts, but about the way Sander narrated them, his perception of the world enrolled in the

    interpretation that he does about the real, circumstanced by several social facts.

    Key-words: photography; portrait; constructed reality; stereotype; habitus; August Sander;

    People of the 20th Century.

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Oito anos aps ter finalizado meu primeiro curso superior fora do Brasil decidi estudar

    Sociologia e Poltica na Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo. Na verdade eu

    retornava a esta escola depois de l ter cursado um semestre no ano de 1990. Na poca de

    minha primeira passagem pela ESP, perodo em que a ento esquerda encabeada por Lula

    quase havia chegado ao poder mximo, o ambiente da escola refletia a efervescncia poltica

    do pas, no primeiro dia de aula uma greve por parte dos alunos estava sendo preparada pelo

    Centro Acadmico. J no ano de 2000 o ambiente externo e interno era outro, a faculdade se

    reerguia depois de uma grave crise institucional, boa parte do corpo docente era jovem e

    recm chegada, dentre eles meu ento orientador do trabalho de concluso de curso e hoje

    tambm orientador de minha pesquisa de mestrado: ao professor Fernando Antnio Pinheiro

    Filho vai meu primeiro agradecimento, partiu dele o incentivo para que eu tomasse a

    fotografia como objeto de pesquisa sociolgica.

    Outro professor que chegara no ltimo ano de minha graduao, e que tambm me deu

    grande incentivo a continuar a pesquisa sobre o fotgrafo Agust Sander, foi o professor Luz

    Carlos Jackson a quem sou muito grato.

    A banca de qualificao foi determinante na reorientao de minha pesquisa. Sou

    muito grato aos professores Srgio Miceli e Mrcia Tosta, a leitura de ambos foi essencial.

    Meus colegas do mestrado, o surpreendente nvel de reflexo durante os seminrios de

    pesquisa coordenados pelo professor Dr. Braslio Sallum, a quem tambm sou grato, foi mais

    do que motivador. Obrigado.

    O ingresso no programa de mestrado da USP coincidiu com o acontecimento mais

    esperado de minha vida, o nascimento da Catarina, minha linda filha. De l para c tenho

    vivido experincias maravilhosas, porm duras. A chegada da Catarina fez aflorar mais do

    que minha paternidade, eu surpreendentemente descobria o quo instintivo ns seres humanos

    somos, um instinto animal, de protetor da prole, tomava conta de mim enquanto que o lado

    racional procurava equilibrar as coisas.

    A paternidade me fortificava, a presena da Catarina me motivava e minha esposa, a

    linda e amada Andra, segurava a barra, me apoiava, pegava no meu p, no me deixava

    desanimar, discutia o trabalho comigo, me acalmava... ela foi, e continua sendo,

    verdadeiramente minha companheira. Este trabalho para ela!

  • 4

    Quero compartilhar minha alegria com algumas pessoas que foram igualmente

    importantes nessa jornada, e as quais tenho muito a agradecer. Mas por onde comear? Nada

    melhor que pela minha querida famlia, meu pai Waldemar e minha me Clia, incansveis

    batalhadores, crentes em sua militncia social e na capacidade do homem virar o jogo, nunca

    baixaram a guarda, nem como pais nem como cidados. Meus queridos irmos, cunhados,

    sobrinhas, sogro, sogra, e Nina, a bisav, que garantiu a deliciosa vodka caseira durante esse

    tempo todo: alm de pacientes com minha pouca presena durante os ltimos trs anos, foram

    ainda mais compreensivos com nossa mudana para Joo Pessoa, Paraba, no incio de 2009.

    No posso deixar de externar minha gratido aos meus inestimveis amigos Graciela,

    Julio Groppa, Hlade e Fernando, Paulo e Snia, Srgio Alves, Jussara, Ed, Ricardo Ferreira,

    Srgio Ferreia, Joo Klcsar, Jefferson e Mari, Lus e Lvia, e Fernanda Romero, dentre

    muitos outros. Um agradecimento mais do que especial para estas duas ltimas, Lvia e

    Fernanda contriburam diretamente com minha pesquisa, foram minhas interlocutoras nas

    reflexes sobre a fotografia de modo geral. Agradecimento especial tambm para os amigos

    Denise Camargo, Fernando Fogliano e Antnio Saggese, a permanente troca de idias, textos

    e reflexes durante o perodo em que trabalhamos juntos foi significativo para o andamento

    da pesquisa. Tambm minha querida sogra Zenaide quem me fez a gentileza de traduzir

    alguns textos do ingls para o portugus, e revisou o texto que foi para a qualificao.

    Em casos agudos relacionados ao idioma alemo, foi possvel contar com a

    colaborao da professora de lngua alem do departamento de Letras Estrangeiras Modernas

    da Universidade Federal da Paraba, Dra. Wiebke Rben de Alencar Xavier. Muito obrigado.

    E a USP? Esta o espao pblico por excelncia, professores, funcionrios e alunos

    provam isto atuando constantemente em suas dependncias para fins cientficos, de reflexo e

    de luta quando necessrio. o espao da pesquisa cientfica vital para nossa sociedade, e deve

    ser preservado com todas as foras e por todo mundo. Grato USP? No, no sou grato

    USP, pois sou parte dela e estar aberta sociedade sua razo de ser. Sou grato sim a todos

    os que a fazem funcionar, a todos que lutam por ela e que a mantm ativa. A todos que fazem

    dela um ambiente verdadeiramente universitrio, um espao aberto reflexo e ao dilogo

    democrtico entre pensamentos diversos.

  • 5

    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS 06

    LISTA DE SIGLAS 09

    INTRODUO 10

    Captulo I:

    AUGUST SANDER: UMA ANLISE DE TRAJETRIA (1876 1964)

    16

    I.1. O retrato do aprendiz 23

    I.2. O auto-retrato como mecanismo de distino 27

    I.3. Famlia Sander: o auto-retrato da tradio familiar 33

    I.4. Entre a tradio e a vanguarda 38

    I.4.1. O auto-retrato exato e objetivo 39

    I.4.2. De arteso a artista de vanguarda 42

    Captulo II:

    AUGUST SANDER E OS PROGRESSISTAS DE COLNIA

    56

    II.1. Progressistas de Colnia: desmanchar o slido e recriar o novo 57

    II.2. Mural para um fotgrafo: o sentido do trabalho 62

    II.2.1. Da reprodutibilidade 65

    II.2.2. Da objetividade: nitidez, luminosidade e exatido 69

    II.2.3. Do ponto de vista 74

    II.3. HSXX: uma encomenda virtual 75

    II.3.1. O realismo no retrato fotogrfico e na fotografia documental 75

    II.3.2. A encomenda 81

    Captulo III:

    HOMENS DO SCULO XX: UMA REALIDADE CONSTRUDA

    86

    III.1. A obra 86

    III.1.1 Estrutura da obra 88

    III.1.2. Uma leitura da obra 92

    III.2. Homens do sculo XX: uma realidade construda 102

    III.3. A recepo e o sociologismo 106

    CONSIDERAES FINAIS 118

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 124

    FIGURAS 131

    MDIA DIGITAL COM AS IMAGENS 168

  • 6

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 01: August Sander, Jovens Camponeses, Westerwald, 1914 (I/1/3).

    Figura 02: August Sander, Mo de estudante, 1929, da srie Estudos: o ser humano.

    Figura 03: Cndido Portinari, Retrato do pintor Roberto Rodrigues, 1926, leo sobre tela, 180x65 cm.

    Figura 04: Hugo Erfurth, Oto Dix com cigarro, 1926.

    Figura 05: Georg Jung, August Sander, Trier, 1899, carte-de-visite, tiragem de luxo.

    Figura 06: Auto-retrato, August Sander em seu atelier, Linz, 1905.

    Figura 07: Auto-retrato, August Sander, Linz, 1906, carte-de-visite.

    Figura 08: Carto de visita de August Sander.

    Figura 09: Cabealho de papel de carta de August Sander.

    Figura 10: Auto-retrato, Rembrandt, 28 anos, 1634.

    Figura 11: Auto-retrato, Rembrandt, 53 anos, 1659.

    Figura 12: August Sander, Famlia Sander, 1913.

    Figura 13: August Sander, Fotgrafo, 1925 (VI/42/1).

    Figura 14: Erich Sander, Prisioneiro poltico, 1943 (VI/44a/8).

    Figura 15: Erich Sander, Prisioneiro poltico, 1943 (VI/44a/7).

    Figura 16: Alpnonse Bertillon, Retrato antropomtrico, Prefcture de Police de Paris, sd.

    Figura 17: August Sander, Perseguida, aproximadamente 1938 (VI/44/11).

    Figura 18: August Sander, Perseguido, aproximadamente 1938 (VI/44/12).

    Figura 19: August Sander, Bomios, entre 1922-1925 (VI/42/2).

    Figura 20: August Sander, Raoul Hausmann como danarino, 1929 (VI/42/3).

    Figura 21: August Sander, Mulher de um pintor, 1926 (III/16/12).

    Figura 22: Otto Dix, O vendedor de fsforos I, 1920, leo e colagem, 142x166cm.

    Figura 23: George Grosz, Os pilares da sociedade, 1926, leo sobre tela, 200x108cm.

    Figura 24: Franz Wilhelm Seiwet, Mural para um fotgrafo, 1922, leo sobre madeira, 110 x 154,5 cm.

  • 7

    Figura 25: August Sander, O padeiro, 1928 (II/8/19).

    Figura 26: Kthe Kollwitz, Memorial para Karl Liebknecht, 1919, xilogravura.

    Figura 27: Gerd Arntz, Imvel de habitao e Usina, da srie Doze casas de uma poca, 1927, litogravura.

    Figura 28: Gerd Arntz, Posse de carros no mundo, 1930.

    Figura 29: Albert Renger-Patzsch, Chamin vista de baixo, Lubeck, 1928.

    Figura 30: Albert Renger-Patzsch, Interseco de vigas de uma ponte em Duisburg Hochfeldt, 1928.

    Figura 31: August Sander, O homem, 1928, da srie Estudos: o ser humano.

    Figura 32: Helmar Lerski, Mulher faxineira [Putzfrau], 1928-1930.

    Figura 33: Erna Lendvai-Dircksen, Criana germnica, s.d., srie Unsere Deutschen Kinder, 1941.

    Figura 34: Erna Lendvai-Dircksen, Camponesa da regio do Rauhe Alb, antes de 1930, srie Das deutsche Volksgesicht, 1932.

    Figura 35: Franz Wilhelm Seiwert, Burgueses e desempregados, 1922, impresso linleo.

    Figura 36: Franz Wilhelm Seiwert, O mundo do trabalho, 1932, aquarela preparatria para o vitral do Kunstgewerbemuseum Kln, de 40x60 cm.

    Figura 37: August Sander, conjunto dos retratos do Porta-flio arquetipal: O homem ligado a terra, 1910 [I/ST/1]; O filsofo, 1913 [I/ST/2]; O revolucionrio, 1925 [I/ST/3]; O sbio, 1913 [I/ST/4]; A mulher ligada a terra, 1312 [I/ST/5]; A filsofa, 1913 [I/ST/6]; A revolucionria , 1912 [I/ST/7]; A sbia, 1913 [I/ST/8]; Mulher de inteligncia avanada - intelectual, 1914 [I/ST/9]; Casal de camponeses rigor e harmonia , 1912 [I/ST/10]; Casal de camponeses rigor e harmonia, 1912 [I/ST/11]; A famlia e as geraes, 1912 [I/ST/12].

    Figura 38: August Sander, Estivadores, 1929 (II/10/8).

    Figura 39: August Sander, O grande industrial, 1927 (II/9/6).

    Figura 40: August Sander, Vendedor turco de ratoeiras, 1929 (VI/38/1).

    Figura 41: August Sander, Dbil mental, 1924 (VII/45/8).

    Figura 42: August Sander, Matria, 1925 (VII/45/ 15).

    Figura 43: August Sander, Mscara morturia de Erich Sander, 1944 (VII/45/ 16).

    Figura 44: August Sander, Gymnasiast, 1926 (VI/40/4).

    Figura 45: August Sander, Barman, 1928 (VI/41/12).

  • 8

    Figura 46: August Sander, O filsofo, 1913 (I/ST/2).

    Figura 47: August Sander, Feirante, 1930 (II/14/11).

    Figura 48: August Sander, Secretaria da Radio-difusora da Alemanha Ocidental de Colnia, 1931 (III/17/19).

    Figura 49: Otto Dix, Retrato da jornalista Sylvia Von Harden, 1926. leo sobre madeira, 121x89cm.

    Figura 50: August Sander, Vendedor de fsforos, 1927 (IV/27/9).

    Figura 51: Otto Dix, Os pais do artista II, 1924.

    Figura 52: August Sander, Burgueses da pequena cidade de Monschau, 1926 (I/6/6).

    Figura 53: August Sander, Atores de cinema, 1934 (V/30/4).

  • 9

    LISTA DE SIGLAS

    ADZ Antlitz der zeit

    HSXX - Homens do sculo XX

    (I/1/1) Localizao numrica dos grupos, portas-flio e fotografias em HSXX:

    I (nmero seqencial do grupo principal: de I a VII) / 1 (nmero seqencial do porta-flio) / 1 (nmero seqencial da fotografia dentro do porta-flio)

  • 10

    Introduo

    Meu caminho direciona-se no sentido de criar uma nova recepo do mundo. Dessa maneira explico, de uma forma nova, o mundo que para voc desconhecido.

    Dziga Vertov, 1923, cineasta sovitico.

    No perodo entre as duas guerras mundiais a fotografia, especialmente na Alemanha,

    EUA e Frana, alcanava sua maturidade esttica e conceitual. Na Alemanha todo um

    ambiente artstico lhe foi favorvel, o aparecimento de instituies como a Bauhaus, de

    movimentos artsticos como o dadasmo e o surrealismo, ou ainda grandes tendncias como a

    Nova Viso (Das Neue Sehen) e a Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) propiciaram

    inmeras experimentaes fotogrficas, bem como a proliferao de exposies e publicaes

    de livros de fotografia, de de livros e artigos a respeito da fotografia e de tudo o que em torno

    dela vinha se constituindo: uma vasta produo literria se fez nesse contexto teorizando as

    novas prticas e experimentos fotogrficos.

    Nesse contexto est o fotgrafo alemo August Sander, autor de uma das mais

    apreciadas obras fotogrficas do sculo passado, Homens do sculo XX (doravante HSXX),

    um projeto de fotografia documental, modalidade que ganha destaque e fora na dcada de

    1920 especialmente nos pases acima citados. Caracteriza a fotografia documental: 1) costuma

    ser um projeto autoral na maioria das vezes no encomendado; 2) privilegia um recorte

    temtico geralmente relacionado realidade social; 3) trata-se de uma abordagem direta da

    realidade por meio de uma tcnica de reproduo mecnica do real, sem o emprego de

    artifcios (desfoque proposital no ato fotogrfico; retoque das imagens; uso de pigmentos etc.)

    que descaracterizem o principal aspecto natural da fotografia direta, a saber, a reproduo

    precisa de detalhes; 4) o aspecto realista da obra propiciado por estes dois ltimos pontos; e 5)

    seu aspecto estrutural, a saber, uma srie de fotografias editadas e dispostas numa ordem

    seqencial elaborada por seu autor.

    HSXX um projeto de grande envergadura pelo seu tamanho e pelo tempo que levou

    para se concretizar, composta por sete grupos temticos seqenciais O campons; O

    arteso; A mulher; As categorias scio-profissionais; Os artistas; A grande cidade; Os

    ltimos dos homens , cada um contendo certo nmero de porta-flios numerados num total

    de 49 pastas. Dentro de cada porta-flio h uma srie de fotografias igualmente numeradas

    contabilizando ao todo 619 retratos fotogrficos. Estes retratos foram organizados segundo

  • 11

    um critrio de classificao de tipos da sociedade elaborado pelo fotgrafo como se ver no

    terceiro captulo.

    O trabalho de August Sander um ensaio fotogrfico riqussimo sobre a sociedade

    alem de seu perodo, no entanto no um trabalho cientfico stricto senso como propuseram

    muitos de seus leitores. Embora ambos fotografia e cincias sociais produzam

    conhecimento sobre o social, as cincias sociais o produzem de um jeito, e a fotografia de

    outro. A primeira produz conhecimento abstrato amparando-se em referenciais tericos e

    metodolgicos cientficos, e a segunda produz conhecimento por meio da representao visual

    da realidade num misto de intuio, fruio, racionalidade tcnica e esttica, na condio de

    ensaio e no de tratado.

    Se tomada como documento histrico iconogrfico, HSXX pode ser pensada como

    uma rica fonte sobre as transformaes econmico-sociais ocorridas na Alemanha entre sua

    unificao em 1871e as trs primeiras dcadas do sculo passado. Em suas imagens possvel

    observar mudanas de comportamento, alteraes dos cdigos morais, estilos de vida,

    diferenas de classe enfim, uma sociedade em plena mutao que vai do mundo campons

    arcaico oitocentista a uma sociedade pautada pelo capitalismo moderno que se configurava

    naquele pas. O historiador John Berger (2003), como veremos no primeiro captulo, discutiu

    a situao de classes no retrato Jovens camponeses confrontando as vestimentas e os corpos

    dos trs rapazes fotografados.

    Abordada enquanto obra artstica, o objeto passa a ser a obra em si e no simplesmente

    o que ela comunica. Muitos dos retratos de HSXX bem como o projeto em si foram objetos de

    estudo de vrios pesquisadores das cincias sociais e de outros campos das cincias humanas.

    O socilogo Sylvain Maresca (1996), por exemplo, que discutiu a fotografia como um

    espelho das cincias sociais, dedicou parte de seus esforos ao estudo do retrato como fonte

    privilegiada de uma interrogao sobre as ligaes entre as representaes e o real.

    Annateresa Fabris por sua vez discute os retratos produzidos por Sander a partir da idia de

    paradigma indicirio, a autora constri sua anlise considerando a forma dos retratos e os

    critrios de classificao tipolgica adotados pelo fotgrafo como um modelo funcional,

    prximo ao paradigma arquivstico iniciado no sculo XIX.

    HSXX foi tomada pela presente pesquisa como objeto de estudo dentro do quadro da

    sociologia da arte. No cabe aqui, entretanto, elaborar uma discusso sobre as possibilidades e

    os limites da sociologia da arte, mas cabe propor trs questes iniciais relacionadas ao

    tratamento sociolgico a respeito de uma determinada obra: 1) como descrever o que se est

  • 12

    vendo em uma obra de arte? 2) Como explicar o que est sendo visto? 3) Como analisar

    sociologicamente um objeto de arte na ausncia, como afirma Nathalie Heinich, de um

    enfoque emprico das obras de arte que no seja redutvel s descries que realizam, desde

    h muito tempo, os crticos, os experts e os historiadores da arte (2002, p.91)?

    A respeito das duas primeiras questes, Michael Baxandall afirma que no

    explicamos um quadro: explicamos observaes sobre um quadro (2006, p.31), sendo que a

    explicao somente possvel por meio de uma descrio verbal complexa da obra estudada.

    Para o autor as descries dos quadros so representaes do que pensamos ter visto neles,

    elas se fazem com palavras e conceitos relacionados com o quadro, e essa relao

    complexa e s vezes problemtica (ibidem, p.32). Por mais que descrio e explicao se

    interpenetrem, diz o autor, a descrio a mediadora da explicao (idem).

    O presente estudo se debruou na complexa tarefa de descrever exaustivamente alguns

    retratos realizados por August Sander, num contexto scio-cultural demarcado, para propor

    uma interpretao plausvel sobre Homens do sculo XX. Mas ficar no plano da interpretao

    da obra no suficiente para um estudo sociolgico, por se tratar de anlise da trajetria de

    August Sander e de seu projeto, trabalhei no sentido de encontrar nas propriedades visveis

    dos retratos indicaes referentes aos esquemas de percepo que o fotgrafo empregava em

    sua viso de mundo. No primeiro captulo procurei reconstruir a experincia social do

    fotgrafo no interior de um dado universo social por meio da anlise das propriedades visveis

    de alguns de seus auto-retratos (tcnica, esttica, poses, trejeitos, cenrio). As anlises de seus

    auto-retratos, articuladas a um manancial de informaes relacionado ao ambiente fotogrfico

    da poca, ao contexto scio-poltico da Alemanha e biografia do fotgrafo, foram pensadas

    como estratgia para se traar trajetria profissional e social de August Sander; o mtodo fez

    emergir alguns aspectos instrumentais necessrios para a compreenso de HSXX.

    Nathalie Heinich fornece a resposta para a terceira pergunta: o sucesso de um estudo

    sociolgico da obra de arte implica o socilogo fugir do sociologismo que consiste em

    considerar o geral, o comum, o coletivo o social como um fundamento, a verdade, o

    determinante ltimo do particular, da singularidade, da individualidade (2002, p.105;

    traduo nossa). fundamental, continua a autora, que o socilogo deixe de privilegiar o

    geral sobre o particular ou o particular sobre o geral, para considerar simetricamente estas

    duas maneiras de ver, consideradas como objetos e no como posturas de investigao.

    Heinich prope tambm a necessidade de descrever os deslocamentos da relao da criao

    entre o individual e o coletivo para que se possa reconstruir a genealogia das representaes.

  • 13

    A presente pesquisa leva em considerao esses deslocamentos, as anlises a respeito

    de HSXX e de August Sander so constantemente confrontadas, bem como com o clima

    scio-cultural alemo daquele perodo ou prximo dele, com o ambiente artstico e com as

    questes a respeito da fotografia que movimentavam o campo fotogrfico em processo de

    constituio. Em nenhum momento se coloca um acima do outro, ao contrrio, o pano de

    fundo deste estudo a perspectiva de que arte e sociedade no so partes distintas, mas partes

    constitutivas uma da outra: a sociedade age sobre a arte e a arte age sobre a sociedade.

    A implicao psicolgica, intuitiva, de fruio dos aspectos conscientes (as

    motivaes) e inconscientes presentes no ato de criao do artista no basta para explicar

    como o mundo social se inscreve na obra e nas motivaes do artista. Este est inserido numa

    sociedade e faz parte de grupos sociais especficos nos quais ocupa determinada posio

    social. Compartilha de uma cultura, de um habitus de nao (ELIAS, 1997) e de um habitus

    de grupo que marcam seu estilo de vida e objetivam sua vida prtica. Assim, a criao

    artstica tambm orientada pelo social: as foras do meio em que vive o artista exercem peso

    sobre sua esttica, sobre a forma, sobre suas escolhas tcnicas, sobre o tema, sobre suas

    motivaes e sobre sua tica. O artista e sua arte, imersos num certo ambiente social, esto

    submetidos a um conjunto de foras externas. Tudo o que o artista faz est alicerado em

    fatores scio-culturais e em prticas de grupo. A arte no plana no espao, diz Roger

    Bastide, vive num certo meio social e est sempre subordinada a um conjunto de foras que

    tendem a mant-la ou modific-la, a propiciar sua difuso ou restring-la a estreitos limites

    (2006, p.300).

    Foi nesta perspectiva que se trabalhou, no segundo captulo, a relao de August

    Sander com os artistas membros do grupo Progressistas de Colnia (Klner Progressiven),

    relao esta que viabilizou a elevao de Sander ao status de artista de vanguarda, bem como

    abriu as portas para sua insero no meio artstico vanguardista. Desta estreita relao Sander

    extrai concepes tericas de ordem esttica e poltica que pesaram na resignificao de seus

    retratos, na estruturao de HSXX, na reformulao de alguns de seus antigos princpios

    estticos, que por sua vez engendram mudanas no mbito tcnico. Para alm desta relao, as

    mudanas empreitadas por Sander respondiam ao ambiente scio-cultural alemo do perodo

    entre-guerras propcio s inovaes da linguagem fotogrfica bastante discutidas e

    experimentadas por inmeros fotgrafos e artistas de dentro e de fora do campo fotogrfico

    alemo e internacional, bem como pela crtica de arte e pela imprensa.

  • 14

    O estudo da obra ao longo da pesquisa procurou privilegiar o entendimento da

    qualidade intencional (BAXANDALL, 2006) da obra. HSXX, assim como toda obra

    artstica, portadora de sua relao com seu autor e suas circunstncias; neste sentido buscou-

    se identificar propsitos voluntrios e involuntrios (do fotgrafo; dos artistas Progressistas

    de Colnia; das presses do meio artstico e scio-cultural) que pesaram na sua configurao.

    Foi dessa forma que se chegou principal hiptese do captulo 2, a saber, HSXX viria

    responder a uma encomenda virtual dos artistas progressistas.

    A identificao desses propsitos foi fundamental na construo do escopo do ltimo

    captulo. Partiu-se do princpio de que HSXX, assim como toda e qualquer fotografia, uma

    realidade construda resultante da forma como seu autor percebe o real, ou do modo como ele

    interpreta a realidade. HSXX a narrao de uma interpretao a de Sander sobre aquele

    perodo histrico da Alemanha. Assim o pesquisador no interpreta somente a obra, mas

    tambm interpreta a interpretao circunstanciada daquele que a concebeu. No se trata,

    portanto, de um estudo sobre os fatos narrados, mas sim sobre a forma como Sander os

    narrou, sua percepo do mundo inscrita na interpretao que ele faz do real circunstanciada

    por diversos fatos sociais.

    As anlises de algumas imagens especficas escolhidas segundo sua relevncia para

    a pesquisa e que pudessem ser, dentro de certos limites, generalizadas para a compreenso da

    obra como um todo foram sendo simultaneamente confrontadas com os critrios de

    classificao adotados pelo fotgrafo e, na medida do possvel, relacionadas com o ambiente

    scio-cultural da poca. Este procedimento levou hiptese central da ltima parte do

    trabalho, e que tambm o cerne desta pesquisa: mais do que representaes de tipos sociais,

    como de fato acreditava Sander, HSXX um conjunto de esteretipos, no sentido de seus

    retratos serem realidades construdas (cenrio; direo dos modelos; modo de fotografar) que

    correspondem a um modo de percepo social; enquanto percepo do real, a maioria de seus

    retratos correspondem a esteretipos concebidos socialmente.

    Sobre o mtodo de anlise das imagens, fazem-se necessrias quatro notas

    explicativas: uma referente posio do observador; outra sobre o modo de leitura das

    fotografias de HSXX; uma ltima sobre a anlise pormenorizada de algumas imagens; e por

    ltimo uma sobre a traduo das legendas para a lngua portuguesa.

    Sobre a posio do observador frente imagem: a fatura das fotografias de Sander,

    assim como a da maioria das fotografias, norteada pelo cdigo perspctico renascentista. Ela

    geralmente feita para ser olhada frontalmente, e uma mudana de ngulo de observao por

  • 15

    parte do observador muda a leitura da imagem excluindo-se os casos de imagens produzidas

    com efeitos visuais que permitam ser vistas a partir de outros pontos de vista. Recentemente,

    em maro de 2007, o curador do MASP (Museu de Arte de So Paulo), Teixeira Coelho,

    enfrentou o descontentamento de alguns artistas ao organizar a mostra Coleo Ita

    Contemporneo Arte no Brasil 1981-2006 em comemorao aos 20 anos da instituio: na

    parte destinada s pinturas, o curador e a cengrafa Bia Lessa dispuseram as obras no cho,

    impossibilitando a observao frontal das obras. O argumento do artista plstico Daniel

    Senise torna clara a incompatibilidade entre a inteno do artista e a de seus expositores: "A

    gente faz a obra, coloca um ponto de fuga na tela na altura dos olhos da pessoa, calcula tudo

    isso. Ela coloca o quadro no cho e da f... tudo, p!" (BERGAMO, 2007). Tendo isso como

    ponto de partida, a leitura dos retratos de August Sander foi feita frontalmente, com a inteno

    de se preservar ao mximo o ponto de vista do fotgrafo no ato da realizao das imagens.

    Assim, com o intuito de propiciar ao leitor a mesma experincia de observao, todas as

    imagens se encontram gravadas numa mdia digital (cd) anexada no fim do trabalho.

    A leitura dos retratos de HSXX foi realizada em duas etapas complementares, a saber:

    1) num primeiro momento, sem levar em conta o ttulo que acompanha cada imagem,

    restringido-se pura aparncia do retratado e estrutura formal da fotografia; e, em seguida,

    2) a partir do ttulo, que no apenas complementa a etapa anterior, como sugere interpretaes

    sobre as condies social, econmica, poltica e at mesmo psicolgica do sujeito.

    Especialmente no primeiro captulo, buscou-se pormenorizar as anlises de algumas

    das fotografias, com o objetivo de compreender os fatos externos na tessitura dos elementos

    internos da prpria imagem: poses, trejeitos, adereos, ambiente, tcnica e estrutura formal.

    Para outras imagens estudadas, foram feitas anlises menos detalhadas, mas com o devido

    cuidado que o estudo exige.

    Por fim, uma dificuldade encontrada no decorrer do estudo foi a traduo das legendas

    para a lngua portuguesa. A publicao de HSXX sobre qual se est trabalhando uma edio

    trilinge: alemo, ingls e francs. Por desconhecer completamente o idioma original, o

    alemo, as tradues para o portugus foram feitas a partir das outras duas lnguas, no entanto

    em alguns casos no havia correspondncia entre os sentidos transcritos nestes dois idiomas.

    Tais problemas foram contornados confrontando os sentidos das verses inglesa e francesa

    com a verso oferecida por um dicionrio alemo-portugus.

  • 16

    Captulo I

    August Sander: uma anlise de trajetria (1876-1964)

    [...] o conceito enquanto tal no intuitivo, abstrato, e fundamentalmente analtico, enquanto a imagem seria concreta, figurativa, criadora.

    Stefan George

    De operrio de extrao de minrios a fotgrafo internacionalmente reconhecido, de

    aprendiz de fotgrafo a autodidata cultural e artstico, August Sander construiu ao longo de

    sua vida uma bem sucedida carreira profissional e, um tanto tardiamente, de fotgrafo autoral.

    Como aprendiz, adquiriu conhecimentos essenciais para sua atividade profissional: da

    tcnica fotogrfica direo dos retratados, da tcnica comercial ao fino trato do pblico, da

    venda de uma imagem profissional venda de uma imagem simblica de status social.

    Como autodidata, aprendeu a pintar e estudou sobre a pintura; aprendeu msica e a

    apreciar o gosto burgus. Tornou-se um intelectual da fotografia.

    Ao se estabelecer como fotgrafo profissional, August Sander viveu rpida ascenso

    financeira, e seu casamento lhe possibilitou transitar entre membros de classes econmica e

    intelectualmente mais elevadas. O trnsito social nesses meios se deu concomitantemente

    criao de uma auto-imagem tipificada do burgus de classe mdia com relativo capital

    cultural acumulado. Como excelente fotgrafo retratista que era, essa imagem no poderia ter

    sido mais bem forjada do que atravs de alguns de seus auto-retratos.

    a partir da anlise de algumas dessas fotografias, e de um retrato de Sander realizado

    por seu instrutor Georg Jung, que pretendo refletir neste captulo sobre a trajetria

    profissional e social de August Sander.

    O estudo dessas imagens estrutura formal, tcnica, poses e adereos implica

    estabelecer relaes com fatores externos que pesaram diretamente na vida profissional e

    social de August Sander, afastando-me, na medida do possvel, de fazer uma psicologia do

    autor. Este estudo poder ainda nos levar a identificar alguns elementos relacionados viso

    de mundo de Sander e s escolhas tcnicas e estticas que, de algum modo, balizaram muitos

    dos retratos de seu grande projeto HSXX. A hiptese a de que, da mesma forma como ele

    construiu seus auto-retratos, ou ento, da mesma forma como construiu sua imagem visual

    como profissional e membro de um determinado grupo da sociedade, ele tambm ir

  • 17

    construir, sob os mesmos patamares, a imagem de muitos de seus retratados realizados antes e

    depois da concepo de HSXX.

    Sua forma de perceber o mundo pesou fortemente na construo das imagens dos

    retratados e na forma de representar o mundo sua volta, constitudo por aquilo que mais

    tarde, durante a concepo de HSXX, ele passou a entender como tipos da sociedade.

    Como o indivduo isolado no faz a histria de seu tempo, mas caracteriza a expresso de uma poca e exprime seus sentimentos, possvel apreciar a fisionomia de toda uma gerao e lhe dar uma expresso fotogrfica. Este quadro da poca ser ainda mais compreensvel se ns justapusermos em srie clichs de tipos representando os grupos mais diferentes da sociedade humana. Tomemos por exemplo os partidos de uma assemblia nacional: se comeamos pela direita e justapomos em seguida tipos que vo at a extrema esquerda, temos j um retrato parcial da nao. Cada um dos grupos se subdivide sua maneira em subgrupos, unies e associaes, mas todos [os indivduos] levam em sua fisionomia a expresso de sua poca e o pensamento de seu partido [poltico]; estes [partidos] se expressam tambm dentro de cada um dos indivduos que compem o grupo e caracterizaremos estes homens pelo nome de tipo. Poderemos fazer as mesmas constataes com as unies esportivas, as sociedades musicais, os sindicatos econmicos etc. (SANDER apud LANGE; CONRATH-SCHOLL, 2002, p.21; traduo nossa).

    Podemos interpretar essa noo de tipo em dois planos: um no mbito das idias, e

    outro no plano visual. No campo da abstrao, Sander est expressando aquilo que ele

    entende ser o indivduo em sociedade, o qual tem sua personalidade formada atravs da

    experincia coletiva. O grupo em que o sujeito est imerso pesa sobre sua forma de ser,

    pensar e agir; o sujeito incorpora atributos e disposies do grupo que conformam certo tipo

    social, o qual, por sua vez, caracteriza a expresso de uma poca e a expresso de um

    grupo.

    Ao contrrio do que prope Wright Mills que os indivduos, na agitao de sua

    experincia diria, adquirem freqentemente uma conscincia falsa de suas posies sociais

    (MILLS, 1972, p.11-12) , a experincia de Sander mostra que o homem comum1 capaz de

    perceber e interpretar a realidade de maneira crtica. Nesse sentido, o exerccio mental que ele

    faz ao elaborar um conceito sobre o que vem a ser um tipo social, mesmo no dispondo de

    1 Para Mills, o homem comum parece estar amarrado sua realidade direta, sem conseguir perceber que os sucessos e insucessos de sua vida privada esto diretamente relacionados s possibilidades de todas as outras pessoas de sua sociedade, e que o bem-estar coletivo est relacionado ao curso da histria que se realiza em nvel mundial e a cada gerao. O homem comum no percebe que sua biografia construda no cotidiano, na interao direta com as outras pessoas, e que a biografia de todos condiciona sua sociedade, da mesma forma que a sociedade condiciona seus indivduos. Essa complexa relao entre biografia, histria e sociedade s pode ser compreendida por meio da imaginao sociolgica.

  • 18

    nenhum rigor cientfico, no deixa de produzir um conceito erguido a partir de suas

    experincias de vida, de suas relaes interpessoais, e que lhe serve como ferramenta de

    explicao da realidade. Sua explicao de que todos os indivduos levam, em sua fisionomia,

    a expresso de sua poca e o pensamento de seu partido poltico, e que esses partidos se

    expressam tambm dentro de cada um dos indivduos que compem o grupo, revela um

    homem atento s disposies que os indivduos portam, as quais vo desde aspectos visveis

    facilmente identificveis (roupas, adereos, poses), passando por aspectos no visveis

    (entonao vocal e vocabulrio), at elementos simblicos de difcil identificao (valores e

    sentimento de pertencimento), como o prprio Sander sugere em seu exemplo.

    Entretanto, a dificuldade reside no fato de Sander tentar traduzir tal conceito em

    imagens, em aparncias visuais, sem recorrer ao senso comum, e sem cair em representaes

    estereotipadas dos tipos por ele sugeridos. possvel identificar, num retrato fotogrfico,

    marcas visuais que caracterizam poca, origem tnica, classe, habitus etc., mas isso fica

    restrito quilo que visvel. A imagem fotogrfica apenas aparncia, ela uma

    representao verossmil da realidade: a fotografia no necessariamente a verdade, no a

    realidade concreta, mas se pauta pela representao do real. fotografia, diferentemente da pintura, , desde seu surgimento em 1839, atribudo

    um falso carter de portadora de verdade, graas exatido devido a sua natureza tcnica

    com que reproduz o real, aqui entendido como o que Roland Barthes chamou de referente

    fotogrfico:

    [...] o Referente da Fotografia no o mesmo que o dos outros sistemas de representao. Chamo de referente fotogrfico, no a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual no haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem t-la visto. O discurso [pictrico] combina signos que certamente tm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes so quimeras. Ao contrrio dessas imitaes, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve l (1984, p.114-115).

    Mais adiante, Barthes afirma a Referncia [como] ordem fundadora da Fotografia

    (1984, p.115): a certeza de o objeto fotografado reproduzido com exatido ter existido

    chancela o pretenso carter de portadora da verdade atribudo fotografia. Porm, essa falsa

    idia no considera que toda fotografia uma realidade construda na qual esto implcitos o

    ponto de vista do fotgrafo, suas escolhas tcnicas, o que ele tem em mente e o que ele sente

    no ato de fotografar, seus objetivos no ato da edio das imagens no processo de edio

  • 19

    (seleo e ordenamento) que o fotgrafo atribui sentido s fotografias e ao projeto como um

    todo.

    Desta forma, cada retrato produzido por Sander deve ser pensado como representao

    verossmil do sujeito fotografado o referente , e como realidade construda pelo fotgrafo

    que mobilizou para seus propsitos tanto no ato de fatura dos retratos, quanto no processo

    de escolha das imagens sua prpria percepo da realidade e todo um conjunto de elementos

    visuais que pudessem caracterizar os tipos da sociedade segundo critrios classificatrios

    elaborados pelo prprio Sander.

    Mas entre o conceito abstrato de tipo social e a representao visual que Sander faz

    dele no existe uma relao especular direta. Se, por um lado, Sander mobiliza proposies

    abstratas (expresso de uma poca; expresso de sentimentos) sobre a relao entre indivduo

    e sociedade, no plano da imagem fotogrfica, ele se limita reunio de um grupo de vestgios,

    mobilizados como generalizaes visuais preconcebidas, que, muitas vezes, ou j esto

    inscritos no imaginrio social o qual, por sua vez, resulta de expectativas de

    comportamento, de pr-julgamentos, de hbitos etc. , ou esto em conformidade com o modo

    como o fotgrafo percebe o mundo sua volta.

    Podemos ver isso numa das fotos mais famosas e estudadas de Sander: Jovens

    Camponeses, de 1914 (I/1/3) [figura 01]. um retrato de trs jovens camponeses fotografados

    num pequeno caminho de terra em meio paisagem rural de Westerwald. Em p e de corpo

    inteiro, todos os trs vestem ternos, portam chapus e bengalas. Seus rostos esto virados para

    a objetiva da cmera, enquanto seus corpos esto posicionados lateralmente, da esquerda para

    a direita, quase enfileirados numa linha levemente diagonal seguindo a mesma direo da

    trilha de terra que pareciam estar percorrendo. Tem-se a sensao de estar frente a um

    instantneo2, a uma imagem tomada rapidamente na ocasio de um encontro fortuito entre os

    rapazes e o fotgrafo, como se o percurso houvesse sido repentinamente interrompido para

    atender a um chamado do fotgrafo. A posio das pernas do jovem da esquerda sugere

    movimento: sua bengala est voltada para trs, apoiada no cho, como se ele estivesse

    2 A idia de instantneo na fotografia est relacionada ao registro de momentos da realidade, de flagrantes de coisas ou fatos do dia-a-dia sem recorrer a poses. O instantneo fotogrfico implica certo aspecto de naturalidade da cena, mesmo que tal naturalidade tenha sido simulada, como demonstra, por exemplo, algumas imagens produzidas pelo fotgrafo francs Charles Ngre ao fotografar o asilo imperial de Vincennes em 1859. A idia de instantneo fotogrfico se estabelece em razo 1) do desprendimento da fotografia de estdio por parte de alguns fotgrafos j em meados do sculo XIX, em favor do crescente interesse pelo registro do cotidiano, e 2) do progresso tcnico das cmeras fotogrficas e de seus acessrios, bem como dos materiais fotossensveis, o que aumentou a capacidade de registro rpido das cenas (com a diminuio do tempo de exposio do filme luz graas aos obturadores mecanismo de controle do tempo de exposio do filme luz).

  • 20

    empurrando o corpo para frente. Seu chapu torto e seu cabelo aparentemente desarrumado,

    alm do cigarro pendurado entre os lbios, mostram uma pretensa falta de preocupao com o

    arranjo da pose, e de cuidado com a aparncia do modelo.

    Por outro lado, ao menos trs aspectos evidenciam a no instantaneidade dessa

    fotografia; um de natureza tcnica e, portanto, no perceptvel aos olhos de um leigo, e outros

    dois relacionados pose: 1) Sander empregava cmeras de grande formato, volumosas no

    tamanho e no peso, que necessitavam do uso de um trip para suport-las. A utilizao de

    negativos ortocromticos3 sob luz natural associados a outras questes tcnicas, como

    luminosidade das objetivas e escolha de profundidade de campo, impunha tempos de

    exposio do filme luz relativamente grandes, exigindo que o modelo ficasse imvel por

    bastante tempo (de 2 a 8 segundos4); 2) a pose totalmente ereta do rapaz da direita, com seus

    ps firmemente fincados no cho, seu brao direito reto e duro voltado para frente, segurando

    sua bengala com a mo com demasiada rigidez para quem segura uma bengala , em

    rigoroso paralelismo com as pernas, quebra a naturalidade da pose; 3) a pose da mo esquerda

    do jovem do centro contrasta com a pseudo falta de cuidado com a pose do rapaz da esquerda.

    Voltarei a este ltimo ponto.

    importante salientar que August Sander nunca escondeu que dirigia seus modelos;

    ao contrrio, direo e pose so elementos constitutivos de seus retratos. O que pretendo com

    essas observaes, porm, ressaltar a importncia de se ter em mente que a fotografia

    aparncia, uma construo plstica do mundo objetivo, uma representao verossmil e,

    portanto, no exatamente5 verdadeira da realidade. A imagem dos Jovens camponeses sugere

    3 Todo e qualquer tipo de filme e papel fotogrfico recoberto por uma emulso sensvel s cores da luz (fotossensvel). Porm, nem toda emulso sensvel a todas as cores do espectro luminoso, a no ser as emulses pancromticas. Das cores que compem o espectro de luz, as emulses ortocromticas no so sensveis ao vermelho e, devido a essa caracterstica tcnica, resultam em imagens mais contrastadas. Geralmente, so pouco sensveis luz, o que demanda longos tempos de exposio. Para os interessados em aprofundar-se na explicao desse ponto extremamente tcnico, sugiro a leitura do livro O negativo, de Ansel Adams (2001). 4 Os tempos de exposio empregados por Sander em seus retratos variavam entre 2 a 8 segundos (LANGE; CONRATH-SCHOLL, 2002, p.24), o que, para um leigo, pode parecer um tempo insignificante, mas para quem conhece um pouco da tcnica fotogrfica esse tempo bastante longo para a realizao de um retrato: um mnimo movimento do modelo ou mesmo da cmera provoca borres nas imagens, coisa possvel de ser notada em alguns retratos de Sander. 5 Com representao verossmil no exatamente verdadeira da realidade pretendo dizer que a imagem fotogrfica captada diretamente por meio de uma cmera fotogrfica portadora de certa verdade, pois, de fato, nela constam evidncias da realidade: para que um objeto esteja na imagem fotogrfica, necessrio que ele tenha existido. Mas, como props Boris Kossoy, a aparncia a base da chamada evidncia fotogrfica, porque se durante a gravao da imagem, houve uma conexo com o fato real, no instante seguinte [...] o que se tem o assunto representado; o fato efmero, sua memria, contudo, permanece pela fotografia. [...] Nosso acesso ao dado real, quando atravs da imagem fotogrfica, ser sempre um acesso segunda realidade, aquela do documento, a da representao elaborada. Trata-se do acesso ao mundo da aparncia (2007, p.42).

  • 21

    movimento, quando se sabe que os rapazes estavam parados e posando. O problema da

    verossimilhana se estende tipologia proposta por Sander: ele os enquadra dentro de um

    modelo que navega entre a imagem estereotipada que se faz do campons e o anti-esteretipo

    deste que provm de seu modo de perceber o mundo.

    John Berger, em seu texto O traje e a fotografia (2003), analisa trs imagens de

    Sander, inclusive o que se est discutindo aqui. Berger diz que uma fotografia esttica

    mostra, talvez mais nitidamente do que na vida real, a razo fundamental pela qual, longe de

    disfarar a classe social dos que os vestem, os trajes a sublinham e enfatizam (p.38). Berger

    aponta a discrepncia existente entre o traje que aqueles rapazes vestem e seus corpos. O

    terno, originalmente, foi concebido

    como traje profissional da classe dominante no ltimo tero do sculo XIX. Quase annimo, como um uniforme, foi o primeiro traje da classe dominante a idealizar o poder puramente sedentrio. O poder do administrador e da mesa de reunies. Essencialmente, o terno foi feito para os gestos de falar e calcular abstratamente (2003, p.41).

    Para o autor, a discrepncia est no fato de que os trajes portados pelos trs jovens

    deformam seus corpos, pois estes tm cravada em sua estrutura uma srie de atributos (largura

    de ombros, mos largas etc.) tpicos do trabalho da vida rural, mas, sobretudo, porque seus

    fsicos foram moldados pelo ritmo prprio de suas atividades dirias relativas ao trabalho no

    campo.

    A roupa desses rapazes no a do trabalho que eles exercem, mas a roupa utilizada

    por eles em ocasies solenes que cobram certa elegncia exigida pelo meio social que

    freqentam. Certamente, essa no a mesma elegncia exigida pelos crculos sociais para os

    quais os ternos originalmente foram feitos; a elegncia camponesa percebida como

    deselegncia pelo imaginrio urbano burgus, o que conforma certa imagem estereotipada do

    jeito de ser campons, ou do tipo campons, como prefere considerar Sander. A pretensa falta

    de preocupao com a aparncia e com o arranjo da pose do jovem da esquerda denota a

    imagem estereotipada da deselegncia fsica do jovem que vive no campo; mesmo vestindo

    roupa de domingo, ele no consegue disfarar sua origem e a rudimentariedade cravada em

    seus gestos e postura corporal. Sua roupa, um tanto amarrotada, est desajustada em seu

    corpo, e as pernas de sua cala so maiores que suas prprias pernas. O modo como segura a

    bengala desprovido da mnima elegncia burguesa que o rapaz do centro aparenta possuir;

    seu chapu torto parece estar saindo de sua cabea, dando espao para que um tufo de cabelo

  • 22

    evidencie certa despreocupao de sua parte com a vaidade, e certa ingenuidade em relao ao

    jogo da aparncia, haja vista que August Sander no perde, em momento algum, o controle

    sobre a cena. Isso se comprova nas figuras dos outros dois rapazes: ambos esto eretos e com

    as cabeas alinhadas ao tronco, aparentando mais altivez alm de certa desconfiana em

    seus olhares, o que nos remete ao jogo da representao estabelecido entre personagens e

    fotgrafo. Os chapus bem vestidos deixam aparecer apenas parte de seus cabelos

    aparentemente bem cortados. Suas roupas, ainda que fora de sintonia com seus corpos

    (sapatos um tanto surrados, calas sobrando nas pernas, costume relativamente desalinhado na

    costa do rapaz do meio), parecem se adequar mais a seus fsicos que ao fsico do outro jovem.

    Uma leitura da estrutura formal dessa fotografia sugere um desejo velado de Sander

    em estabelecer tal contraponto. A ateno diferenciada que ele presta s feies dos rostos,

    por exemplo, est evidenciada pela radical transio tonal do escuro da montanha para a alta

    luz do cu, onde as cabeas, posicionadas acima da linha do horizonte, ganham destaque. Um

    tringulo retngulo imaginrio, existente a partir da diagonal da bengala do rapaz de trs e a

    linha reta das costas do rapaz do meio, favorece a identificao de vestgios das distintas

    relaes entre corpos e roupas, ou ainda, como sugere Berger, a total inadequao daqueles

    corpos com aquelas roupas. De uma maneira ou de outra, os elementos visuais que

    configuram as condies dessas pessoas tambm configuram um imaginrio estereotipado da

    figura do campons.

    H, porm, um detalhe presente na figura do rapaz do meio que revela em Sander a

    existncia de certas referncias de pose tpicas do homem urbano burgus, as quais

    configuram no apenas o anti-esteretipo do campons, como forjam, em certa medida, o

    esteretipo do burgus na imagem do homem do campo. A mo esquerda do rapaz do centro

    o exemplo mais contundente disso. Seu aspecto rudimentar e duro contrasta com a forma

    elegante com que ela est posicionada, sugerindo certa leveza do gesto, o que, por sua vez,

    est em descompasso com a rigidez dos dedos. Tal detalhe segue uma frmula de

    representao do homem burgus frmula que se repete de maneira variada em outros

    retratos realizados por August Sander, ora em mos delicadamente segurando um cigarro,

    como se v em Mo de estudante, 1929 [figura 02], da srie Estudos: o ser humano, ora na

    conjuno das duas mos, como acontece no retrato Editor, 1933 [IV/27/15] que Sander

    transfere para a figura desse jovem, concebendo assim uma imagem incompatvel com a

    realidade: uma imagem verossmil do retratado, mas que est longe de ser verdadeira.

  • 23

    A partir desse detalhe que parece ser, mas no , um pormenor , possvel sugerir

    uma hiptese a ser averiguada num estudo posterior: o detalhe da mo segue uma frmula de

    representao do homem burgus que extrapola Sander, a fotografia e mesmo a fronteira

    geogrfica. Um bom exemplo disso O retrato do pintor Roberto Rodrigues, 1926 [figura

    03], no qual seu autor, Cndido Portinari, pinta a mo esquerda do modelo segurando

    charmosamente um charuto, numa pose bastante semelhante se no fosse o charuto da

    mo do jovem campons de Sander. A semelhana na forma de representao do modelo nas

    duas imagens pode ser notada tambm na maneira como ambos seguram as respectivas

    bengalas, com a diferena de que o campons desprovido da delicadeza e do charme

    gravados na pose do jovem sedutor com aparncia de um Drcula/Svengali, conforme

    sugere Srgio Miceli (1996, p.42). Um exemplo proveniente da fotografia o retrato Otto Dix

    com cigarro, 1926 [figura 04], do fotgrafo alemo, contemporneo de Sander, Hugo Erfurth6

    (1874-1948). Vale notar que o ano de realizao deste retrato e o da pintura de Portinari o

    mesmo, o que indica um padro que parecia estar em voga nas artes visuais.

    Isso posto, a tipologia visual proposta por Sander ser entendida aqui dentro dessa

    chave de explicao. Da mesma forma, seus auto-retratos sero tomados como construo de

    um tipo, na medida em que ele mobilizou nessas imagens um conjunto de feies

    caractersticas obtidas junto aos crculos sociais que ele passou a freqentar, e que

    correspondiam ao modo como ele gostaria de ser socialmente percebido. Tal conjunto de

    feies no foge regra da caricatura que normalmente se faz do tipo burgus no qual ele se

    quer fazer perceber.

    I.1. O retrato do aprendiz

    Um homem elegantemente vestido est sentado folheando um livro apoiado em suas

    pernas. O local decorado com uma tela pintada ao fundo, onde figurava um vaso antigo e

    rebuscado portando flores e apoiado sobre uma coluna sextavada, tambm rebuscada, sugere

    6 Assim como August Sander, Hugo Erfurth exerceu a tradicional profisso de fotgrafo especializado em retratos. Bastante prestigiado, foi por muitos anos presidente da Sociedade dos fotgrafos alemes do qual foi membro fundador em 1919. Sua clientela contou com uma grande poro de membros do mundo poltico e cultural . Foi tambm adepto do artesanato artstico, sobre o qual falaremos mais adiante, tendo incorporado ao trabalho comercial tcnicas de impresso fotogrfica tpicas da era pictorialista com o intuito de aumentar a clientela. Aps aproximadamente vinte anos de carreira profissional, diferena de seus homlogos, Erfutth passa a eliminar o uso de acessrios e fundos construdos para registrar seus modelos, explorando bastante caractersticas que pudessem identificar o sujeito com sua psicologia. Muitos de seus modelos foram pintores vanguardistas como Otto Dix, Max Beckmann, Paul Klee, Oskar Kokoschka dentre outros.

  • 24

    um ambiente teatralizado no menos requintado do que a cadeira sobre a qual o rapaz est

    sentado. O enquadramento apertado, ajustado na altura dos joelhos direita da imagem, a

    uns poucos centmetros acima da cabea, ao encosto da cadeira no lado esquerdo; a parte

    escura de baixo ocupa menos de um tero da cena, onde aparecem pedao da tapearia, parte

    das elegantes pernas da cadeira e ainda uma discreta planta localizada na penumbra atrs do

    modelo. O rapaz est posicionado numa tnue linha diagonal em relao cmera, que, por

    sua vez, est posta num ngulo um pouco acima da altura do homem e sutilmente inclinada

    para baixo. A iluminao suave ameniza o contraste entre a roupa escura e a alvura do livro.

    A luz principal, vinda da direita, separa o personagem do fundo artificial, contorna seus traos

    delicados, e destaca seu alinhado terno. Apesar da teatralizao da pose, a cena dura, o

    corpo esttico. A cabea erguida e ereta contrasta com o movimento sugerido pela mo, que

    segura algumas folhas do livro. O olhar em linha reta do rapaz no se dirige nem cmera,

    nem ao livro; no contemplativo e sequer sugere algum estado de esprito. um olhar que

    busca concentrao para que a imagem no fique borrada devido ao longo tempo de

    exposio, e, ao mesmo tempo, para que a fisionomia no parea artificial demais.

    Esse retrato [figura 05], de 1899, do jovem aprendiz de fotgrafo August Sander,

    ento com 23 anos de idade, e foi realizado por seu chefe e mestre Georg Jung. Trata-se de

    uma tiragem de luxo de um carte-de-visite7.

    Mais do que um formato de fotografia montada em papel carto, e mais do que uma

    simples febre comercial, o carte-de-visite implicou a rpida popularizao do retrato dentro e

    fora da Europa, disseminando um ideal-tipo de burguesia inspirado nos padres de civilizao

    europia para o mundo todo. Do ponto de vista fotogrfico, esse modelo civilizatrio se

    reproduzia na repetio de padres tcnicos (iluminao suave e bem equilibrada; retoques

    das imperfeies do indivduo ou da cena; etc.), estticos (cenrios artificiais que variavam

    muito pouco; ngulo de viso geralmente no mesmo plano do personagem; ausncia de

    grandes contrastes de luz e sombra; modelo bastante prximo ao fundo; relativa profundidade

    7 Um dos primeiros e mais importantes usos da fotografia foi a produo de retratos estimulada pela crescente demanda da classe mdia, que proporcionou um extraordinrio aumento do nmero de estdios fotogrficos voltados para sua produo. O auge dessa febre se deu em meados do sculo XIX com a criao do carte-de-visite photographique pelo francs Eugne Disdrie, um fenmeno comercial de grande envergadura que se espalhou pelo mundo todo muito rapidamente. O carte-de-visite consistia em fotografias montadas em papel carto no tamanho de aproximadamente 10x7,5cm, e permitia a multiplicao da imagem a partir de uma nica matriz: era possvel obter at oito retratos diferentes de uma mesma pessoa num nico negativo.

  • 25

    de campo8, que permitisse estabelecer relao entre modelo e ambiente teatralizado) e de

    representao do indivduo (gestos e poses que transmitiam sobriedade do comportamento;

    encenao de poses idealizadas do homem culto, do homem religioso, do homem de negcio

    etc.; vestimentas formais; adereos que identificassem o sujeito com o estilo de vida da classe

    qual pertence ou desejaria pertencer; ambiente artificial que geralmente simulava ambientes

    sociais de uma casa como uma sala de estar, um jardim, ou mesmo uma biblioteca).

    Andr Adolphe Eugne Disdri (1819-1889), criador do carte-de-visite, criticado por

    banalizar a prtica do retrato, infligindo a essa modalidade e ao mercado uma feio quase

    industrial no que diz respeito organizao do espao de produo das imagens e diviso de

    tarefas9, e por uniformizar os retratados, escreve, em 1862, L art de la photographie.

    No se trata, em efeito, de fazer um retrato, de reproduzir com uma preciso matemtica, as propores e as formas do indivduo; preciso ainda, e sobretudo, tom-los e represent-los justificando e embelezando as intenes da natureza manifestadas sobre este indivduo, com as modificaes ou os desenvolvimentos essenciais portados pelos hbitos, as idias e a vida social (DISDRIE apud DUCROS; FRIZOT, 1987, p.38, traduo e grifos nossos).

    Se invertermos a lgica do argumento de Disdri, veremos que ele reconhece a

    uniformizao tcnica e esttica dos retratos: alm de sua preocupao com o modo como o

    sujeito ser representado, preciso ainda reproduzir com uma preciso matemtica as

    propores e as formas do indivduo. E mais, a tentativa de Disdri de descaracterizar a

    padronizao dos retratos sucumbe quando ele afirma a necessidade de representar o sujeito

    com as modificaes ou os desenvolvimentos essenciais portados pelos hbitos, as idias e a

    vida social: o autor est apostando apenas na caracterizao visual dos modelos segundo

    certas disposies perceptveis.

    O problema est no fato de que parte significativa da clientela dos estdios de

    fotografia, geralmente localizados nos centros urbanos, era principalmente composta por

    8 Profundidade de campo um termo tcnico da fotografia que diz respeito rea da cena na qual os objetos aparecem ntidos. Resultado da relao entre abertura de diafragma (f), distncia entre o objeto focalizado e o plano do filme (localizado no interior da cmera), e tipo de objetiva (grande angular, teleobjetiva, objetiva normal), a profundidade de campo determina o que estar ntido na imagem para alm do objeto focalizado: ela ser maior ou menor dependendo do grau de nitidez dos objetos localizados frente e aps o objeto focalizado. 9 O atelier fotogrfico de Disdri contava com um lugar para atendimento, outro para fazer os retratos, outro para reproduzi-los e enquadr-los, outro reservado para a venda. Disdrie ficou milionrio da noite para o dia. Sua empreitada atraiu um enorme contingente de novos fotgrafos na disputa pelo mercado.

  • 26

    membros da classe mdia e das classes mais abastadas. Essa burguesia, por sua vez, tinha

    inscrito em seus fsicos e em seus estilos de vida certas disposies passveis de serem

    representadas numa imagem prprias dos padres de comportamento tpicos do habitus

    (ELIAS, 1997) da civilizao industrializada generalizada pela Frana e pela Inglaterra.

    Assim, a padronizao visual da forma e do contedo deixa pouca margem de

    manobra para a diferenciao de representao dos retratados. Mas, mais do que isso, Disdri

    padroniza forma e contedo sem, entretanto, considerar o peso da primeira sobre o ltimo. A

    forma determinante, o contedo ajustado a ela, e isso ultrapassa o campo visual: o carte-

    de-visite foi mais do que uma frmula bem sucedida; ele foi a forma de veiculao visual de

    um padro de civilizao.

    Nesse sentido, o carte-de-visite de August Sander feito por Georg Jung no foge

    regra. Nascido em 1876 no seio de uma famlia operria na cidade de Herdorf10, quarto filho

    de um total de oito irmos, Sander freqentou a escola pblica evanglica durante oito anos, e

    mais tarde trabalhou como operrio na extrao de minrios nas minas de sua cidade. Seu pai

    mantinha, paralelamente profisso de carpinteiro nas minas, uma pequena propriedade de

    explorao familiar, de onde extraa parte dos alimentos consumidos em casa. Inversamente

    sua origem social e econmica, o retrato em questo mostra o jovem Sander iniciando-se na

    vida burguesa.

    Sua insero em tal modo de vida era condio sine qua non para que ele se tornasse

    fotgrafo profissional, especialmente um retratista, profisso cujo sucesso dependia de sua

    aceitao pela clientela burguesa. Adquirir o habitus burgus, e principalmente mostrar-se

    como tal, foi o que de mais importante Sander assimilou na sua condio de aprendiz de

    fotgrafo no estdio de Georg Jung11.

    10 A economia de Herdorf, localizada na regio de Siegerland, sudoeste da Alemanha, dependia da extrao de minrios. Sua aparncia, segundo Susanne Lange (1999), lembrava mais um burgo industrial do que uma comunidade rural. Carregava uma forte marca da migrao de pessoas vindas de outras regies da Alemanha e tambm de outros pases atradas pelas possibilidades de trabalho temporrio nas minas e usinas da regio. O quadro vivido em Herdorf um reflexo do que se passava no resto do pas. O crescimento populacional de 41 milhes de habitantes em 1871, a 49 milhes em 1890, e a 67 milhes em 1914 e o forte impulso industrial promoveram um rpido processo de urbanizao na Alemanha: em 1910, 2/3 da populao vivia nas cidades, enquanto que em 1841 esse nmero era de 1/3 (ALMEIDA, 1987, p.9). 11 August Sander inicia sua carreira como aprendiz no atelier fotogrfico de Georg Jung no mesmo perodo em que fazia o servio militar na cidade de Trier (1897-1899). Tratava-se de um estdio tradicional que gozava de prestgio devido competncia profissional e ao trato dado a sua grande clientela (WIEGAND, 2002). Sander aprende com Jung a tcnica fotogrfica em profundidade, estratgias de venda, a recepcionar e tratar adequadamente o pblico, a posicionar e dirigir seus modelos frente cmera, a montar e modular a iluminao de forma equilibrada, evitando grandes contrastes de sombra e luz, a organizar o estdio, e, ainda, a processar todo o material fotogrfico: revelar as chapas de negativo, copiar as imagens, retocar as cpias e outros tipos de acabamentos, at emoldurar as imagens. Ou seja, Sander adquiriu ali toda a base necessria para se tornar um

  • 27

    Assim como a nova classe mdia formada a partir da unificao do pas, a qual se

    beneficiava do acentuado processo de industrializao, cientificizao e urbanizao apesar

    do ambiente hostil aos padres da civilizao europia por parte dos mandarins alemes

    (RINGER, 2000), especialmente os mais conservadores, que os recusavam em razo do

    pragmatismo que afastaria os alemes dos valores culturais, de uma conscincia geral e de

    uma alma alem , Sander tambm assimilava feies do ideal-tipo da burguesia fruto da

    civilizao industrial. A profisso de fotgrafo era um possvel caminho para a ascenso

    econmica e social, uma vez que o aprendizado da tcnica era exercido na condio de

    aprendiz nos estdios e, em grau bastante elevado, no mbito do autodidatismo, pois a

    fotografia naquele perodo estava fora das escolas de arte. Foi por meio da fotografia que

    Sander passou da condio de operrio pobre condio de burgus da nova classe mdia

    alem.

    I.2. O auto-retrato como mecanismo de distino

    Aps o perodo de aprendizagem no estdio de Jung, Sander parte para uma viagem de

    trs anos, trabalhando como assistente em estdios fotogrficos nas cidades de Magdeburg,

    Halle, Leipzig, Berlim e Dresde. Ainda em Dresde, Sander freqenta aulas como ouvinte nos

    cursos da Academia Real de Belas Artes e da Academia de Artes Decorativas. Poucos anos

    mais tarde, Sander passaria a se apresentar como fotgrafo e pintor, a ponto de imprimir no

    verso de seus cartes-de-visite a frase Atelier de arte para fotografia e pintura modernas

    [figura 08]. Em todos os estdios que viria a ter, Sander expunha quadros feitos por ele, uma

    cpia de um auto-retrato de Rembrandt, entre outros tipos de obras de arte e de antiguidades.

    A meu ver, a pintura exerceu fora determinante em vrios aspectos do

    desenvolvimento de sua fotografia e de sua vida social. Seu interesse pela arte mostra sua

    adeso cultura burguesa. Sander fez questo de marcar o gosto pela pintura e o hbito de

    pintar com um auto-retrato realizado em 1905, no qual ele aparece pintando12 em seu estdio

    repleto de objetos de arte e de antiguidades [figura 06].

    Outros auto-retratos evidenciam sua adeso ao habitus burgus. Em um deles [figura

    07], realizado em 1906, Sander aparece fotografado em p, meio de lado, a partir dos joelhos,

    fotgrafo profissional nos moldes tradicionais dessa profisso, especialmente no que diz respeito realizao de retratos, que representavam a maior demanda de trabalho. 12 O quadro de uma paisagem que ele se mostra pintando nesta fotografia foi exposto na parede de seu estdio em Linz (WIEGAND, 2002).

  • 28

    e com as mos colocadas nos bolsos da cala. Ele se apresenta elegantemente vestido com

    detalhes que evidenciam seu requinte: uma bela gravata, correntes no bolso do colete e um

    belo chapu. A cena sugere um ambiente quase meia luz: a iluminao suave de baixa

    intensidade vinda do alto de seu lado esquerdo atenua as reas mais claras, sem, entretanto,

    gerar perdas significativas de informaes nas reas de baixas luzes, reduzindo, assim, o

    contraste da cena, amenizando as passagens de tons, e gerando um dgrad em toda a

    imagem. A ambientao minuciosamente elaborada denota uma preocupao de Sander em

    explorar novos terrenos no mbito da esttica e da representao do sujeito, diferentes

    daqueles empregados nos antigos cartes-de-visite.

    No plano da aparncia, o modo de representao de classe est mais sofisticado,

    graas sua ascenso econmica, que lhe permite adquirir indumentria mais refinada

    portanto, mais custosa , e que o mostra como portador do bom gosto burgus. O cenrio

    tambm muda: ele faz uso de um fundo neutro e o espao despojado de qualquer tipo de

    ornamento e acessrio.

    Do ponto de vista esttico, as mudanas tambm so muito significativas: o modo

    como a luz est sendo trabalhada difere da luz padronizada do carte-de-visite; a sombra que

    escurece o lado direito de August Sander empurra o olhar para a regio mais iluminada, onde

    se pode notar com clareza os detalhes da indumentria, a fora do olhar, o trato com a

    aparncia; a ligeira inclinao da cmera muda a forma de percepo da imagem do

    indivduo, sugerindo uma leitura de sua psicologia. A forma do prprio carte-de-visite

    tambm est sendo alterada, no sentido de abrir mo de um carter mais descritivo em favor

    de uma leitura mais interpretativa do sujeito; j no que diz respeito veiculao de um ideal-

    tipo burgus, parece no haver mudana.

    A mais importante novidade neste modo de representao a tentativa de estampar

    nos retratos aspectos biogrfico e psicolgico do sujeito. De fato, nesta imagem Sander

    modula a luz e explora a pose e a feio de seu rosto visando marcar certo pertencimento de

    classe e um clima de sobriedade do ambiente e do sujeito.

    Nesta fase Sander comea a esboar algumas mudanas que mais tarde se tornariam

    estaria na base de seu futuro projeto. Em 1906, cinco anos aps o incio de sua carreira como

    fotgrafo profissional, Sander realiza uma exposio com cem retratos copiados por meio de

    processos fotoqumicos sofisticados (goma bicromatada, leo-bromuro, uso de pigmentos) no

    Linzer Landhaus-Pavillon. Essa exposio atraiu a ateno dos crticos de arte do jornal

  • 29

    Linzer Tagespost, ressaltando a fotografia de August Sander no seio do processo de renovao

    pelo qual passava a fotografia na primeira dcada do sculo XX:

    A renovao artstica que se exprime na pintura ocorre igualmente na obra fotogrfica, e a penetrao de uma parte do pblico [nessa renovao] se afasta do esteretipo. A exposio [...] proposta pelo Senhor Sander, fotgrafo, prova disto. [...] A autenticidade das atitudes, a absteno de pose, a pertinncia dos grupos, a justa percepo da pessoa e a qualidade excelente de execuo so os traos que sobressaem dessas imagens. A rigidez da foto de estdio desapareceu, a insignificncia do retoque no tem mais espao, no mais o lado liso dos retratos que importa, mas a expressividade da fotografia (apud LANGE; HEITING, 1999, p.171, traduo nossa).

    Embora tenha aprendido tcnicas aperfeioadas de retoques e de tiragens sofisticadas

    de cpias para embelezar os retratos de sua clientela, Sander comea a esboar uma

    preocupao maior em extrair da aparncia de seus modelos caractersticas de suas biografias.

    As marcas da vida estampadas no rosto das pessoas passam a ser valorizadas e tratadas por ele

    com dignidade, como ele prprio sugeria em um de seus anncios:

    Peo a vocs que quando olharem meus trabalhos tenham em conta o fato de que, contrariamente quilo que se faz em geral, eu me esforo em conservar no rosto os traos caractersticos que as disposies naturais, a vida e o tempo lhe imprimem, isto resulta em retratos precisos, expressivos e caractersticos que esto em perfeito acordo com o ser profundo da pessoa fotografada (apud LANGE; HEITING, 1999, p.171, traduo nossa).

    Parece, assim, que j no ano de 1906 Sander passou a abrir mo de retoques nos rostos

    dos fotografados com o fim de esconder as marcas do tempo, como era costume se fazer no

    retrato comercial. Talvez isso tenha sido um primeiro indcio de distino de Sander em

    relao aos demais fotgrafos ao marcar um estilo prprio em suas fotografias, fato este

    ressaltado pelos crticos de arte do jornal Linzer Tagespost.

    No tenho como averiguar se houve ou no qualquer tipo de retoque na imagem por

    no ter como acessar a fotografia original, uma vez que esta pesquisa est sendo realizada a

    partir da bibliografia disponvel. No obstante, para algum desavisado sobre sua histria de

    vida, essa fotografia no representa sua real trajetria; ao contrrio, sua imagem aparenta

    apenas sua realidade atual, e nem mesmo seus traos fisionmicos (ausncia de rugas, bigode

    e barba bem aparados) remetem origem operria nas minas de Herdorf. Por outro lado, o

    cenrio meia luz, o olhar srio e o rosto levemente posicionado para cima e para a direita do

    eixo da objetiva, imprimem em sua fisionomia um aspecto de sobriedade; a cmera,

  • 30

    ligeiramente inclinada de baixo para cima, aparenta segurana de si mesmo como figura

    socialmente bem estabelecida e como profissional, pois se trata de um carte-de-visite, com

    finalidade de divulgao, que tem estampado na parte inferior a representao de uma

    medalha adquirida em 1903.

    Alis, as premiaes funcionavam como importantes meios de diferenciao comercial

    no mercado alemo de retrato fotogrfico. Conforme sugere Thomas Wiegand (2002), Sander

    era apenas mais um fotgrafo competente entre outros muitos, o que provavelmente tornava

    difcil reconhecer uma fotografia sua ao lado de outras imagens feitas por terceiros. Nesse

    sentido, ele no escapava da uniformizao do retrato, mesmo explorando o lado artstico do

    qual falaremos mais adiante , j que no havia um estilo prprio demarcado em suas imagens

    que o distinguisse dos demais.

    O reconhecimento era algo almejado por todos os fotgrafos, e a forma de alcan-lo

    se dava especialmente por meio da participao em exposies e concursos

    nacionais e internacionais, [que] ofereciam a possibilidade de obter sucesso ultrapassando o quadro regional: desta maneira, podia-se testar seu prprio valor e fazer valer suas pretenses. Em caso de recompensa, o ingresso no patamar superior [dos fotgrafos] era facilitado [...] (WIEGAND, 2002, p.57, traduo nossa).

    Dito de outro modo, a premiao, ou qualquer meno honrosa em um desses eventos,

    seria um elemento de distino transformado em propaganda em favor prprio; essa distino

    se dava pelos mritos alcanados, e no pelo estilo fotogrfico individual, o qual, por sua vez,

    parece despontar em 1906, como vimos h pouco.

    Sander soube tirar proveito disso. A partir de 1903, com 27 anos de idade, ele ganha

    notoriedade fora do seu quadro de clientes; seus trabalhos so expostos em exposies

    nacionais e internacionais, arrebatando vrios prmios, dentre eles, o diploma de honra, a cruz

    de honra e a medalha de ouro na Exposio Internacional de Artes Decorativas do Grand

    Palais des Champs-Elyses, em Paris, no ano de 1904. Tais conquistas apareciam no

    cabealho de seus papis de carta, cartes de visita e anncios de jornais [figuras 08 e 09],

    com a finalidade de atestar sua competncia e distino em relao aos demais.

    importante salientar que essas alteraes no modo de fotografar de Sander no

    representam de fato nenhuma revoluo encabeada por ele. O sentido delas deve ser

    entendido no mbito da concorrncia comercial entre os fotgrafos retratistas que visavam

    lograr formas de distino de seus trabalhos. Alm disso, outras experincias anteriores de

  • 31

    Sander j exploravam novas formas de representao do indivduo, com especial destaque

    para o clebre fotgrafo francs Flix Nadar Sander conhecia sua obra , que dizia fazer um

    retrato psicolgico, buscando identificar o indivduo pelo seu esprito. Ele retratava

    personalidades da pintura, da msica, da literatura etc. combinando os efeitos da luz com a

    fisionomia e com a personalidade do modelo. O auto-retrato de Sander se assemelha bastante

    ao tratamento visual dos retratos feitos por Nadar.

    O tratamento esttico dado ao auto-retrato em questo parece estar relacionado

    tambm a certas referncias da arte pictrica, mais precisamente de Rembrandt relembrando

    que Sander possua uma cpia de um auto-retrato deste pintor em seu estdio , como se pode

    notar em alguns de seus auto-retratos [figuras 10 e 11]: ambiente meia-luz, fundo neutro,

    passagem em dgrad do claro para o escuro, e a inteno de marcar certa psicologia em sua

    feio. Em seu auto-retrato, Sander parece ter assumido qualidades visuais impressas nos

    auto-retratos de Rembrandt, e, talvez, a vontade de explorar a personalidade do modelo, como

    fizeram Rembrandt, Goya, David e Rafael.

    O significativo disso a transferncia esttica e da vontade de representao da

    personalidade da pintura para a fotografia. Sander conhecia bem os dois meios, como tambm

    conhecia a fotografia pictorialista13 da qual ele e seus concorrentes fotgrafos se

    apropriou de experimentos tcnicos e estticos, visando diferenciar-se da produo dos

    demais.

    Aps o perodo de aprendizado com Georg Jung, a carreira profissional de Sander

    comeou a se firmar por volta de 1901, na cidade de Linz, onde viveu por quase dez anos.

    Sander foi trabalhar como primeiro operador no atelier fotogrfico Greif, do qual se tornaria

    scio e, mais tarde, nico dono: Atelier Fotogrfico de Primeira Ordem August Sander. Seu

    estdio foi comercialmente bem sucedido em razo da ampliao de oferta de possibilidades

    de retratos: ele passa a fotografar tambm nas casas de seus clientes, e oferece retratos com

    13 O advento do pictorialismo se deu em meados do sculo XIX, tendo como principais agentes fotgrafos e artistas fotgrafos franceses e ingleses, engajados ou no em sociedades fotogrficas. Inspirados na pintura, os pictorialistas procuravam firmar a fotografia como uma forma de arte; recusavam o papel social atribudo a ela de instrumento meramente cientfico, e condenavam sua banalizao comercial desencadeada pela febre do retrato. Ao mesmo tempo, propunha-se que a fotografia deveria ser uma maneira de o artista expressar suas impresses sobre a realidade, apropriando-se de tcnicas e princpios estticos provenientes da pintura. Entre os pictorialistas, havia uma dicotomia entre os termos fotografia pictorialista e fotografia naturalista, sendo o primeiro relativo aos fotgrafos que defendiam qualquer manipulao fotogrfica, aproximando-a ao mximo da pintura, e os naturalistas aqueles que defendiam a imagem direta e sem manipulao. Tal dicotomia nunca foi clara, e o uso desses termos depende da ptica do pesquisador: h aqueles que fazem essa separao, e outros que no a consideram. Em certos casos, o naturalismo tomado apenas como uma dissidncia interna do pictorialismo, pois tanto pictorialistas quanto naturalistas tratavam a fotografia como uma arte pictrica.

  • 32

    tratamento especial, realizando cpias de luxo a partir de processos de impresso

    fotoqumicos que rendiam um aspecto mais artstico (como menor gama tonal, menor nitidez

    da imagem, uso de papis diferenciados para a cpia fotogrfica etc.), acabamento e

    apresentao mais luxuosa dos retratos.

    Isso corresponde a uma tendncia proveniente da fotografia pictorialista. Os

    experimentos tcnicos e estticos pictorialistas atraam os fotgrafos retratistas do incio do

    sculo XX na Alemanha. Era uma forma de ampliar a clientela e de oferecer trabalhos mais

    caros e sofisticados a um pblico tambm mais sofisticado. Entretanto, o trabalho corriqueiro,

    inclusive os retratos mais correntes, continuava a ser a base econmica daqueles fotgrafos,

    uma vez que, como prope Willi Warstat, no incio do sculo XX, as condies econmicas

    para o desenvolvimento de um artesanato artstico independente em fotografia no estavam

    suficientemente reunidas (apud WIEGAND, 2002, p. 55, traduo e grifos nossos).

    A expresso artesanato artstico sugere que entre os fotgrafos alemes daquela poca

    no havia uma inteno em se fazer uma arte fotogrfica, mas sim um artesanato fotogrfico

    diferenciado do retrato corriqueiro. A arte dos retratos para os pictorialistas do sculo XIX

    implicava o abandono da preciso e da nitidez das imagens, que acentuavam o carter de

    veracidade, para explorar a subjetividade alcanada por meio de tcnicas de impresso

    fotogrfica artesanais, as quais, por sua vez, possibilitavam certa similaridade com os efeitos

    alcanados pelos grandes mestres da pintura. A motivao destes era tornar a fotografia uma

    arte. No caso alemo do incio do sculo XX, tais efeitos artsticos nos retratos eram

    percebidos como valor agregado, no sentido comercial do termo, o que refora, portanto, o

    carter de artesanato de seus trabalhos comerciais.

    O auto-retrato de Sander no se enquadra na categoria de artesanato artstico, mas, por

    outro lado, suas inovaes seguem a mesma motivao: por mais subjetividade que ele possa

    sugerir em relao ao retratado, e apesar de suas mudanas tcnicas e estticas, ele representa

    uma tentativa de diferenciao comercial. Em sntese, esse auto-retrato de Sander pode ser

    entendido como forma de ele se distinguir social e comercialmente.

  • 33

    I.3. Famlia Sander: o auto-retrato da tradio familiar

    Escrever sobre a msica como despejar fontes de gua no oceano do mundo, porque o tom que primeiro faz a msica. A msica qualquer coisa de inata e recusa todo conhecimento; ela quer viver e ser vivida.

    August Sander

    Como vimos, August Sander adotou a pintura como prtica paralela atividade

    profissional de fotgrafo; ela no apenas lhe serviu profissionalmente como referncia

    pictrica na construo dos retratos, como foi fundamental na construo de sua auto-

    imagem: Sander soube mobilizar seu interesse pela arte como forma de mostrar sua adeso

    cultura burguesa14. Mas, para alm da pintura, o gosto pela msica tambm foi mobilizado em

    imagem para mostrar sua adeso cultura erudita. Embora tenha sido explorada em menor

    escala que a pintura, e mesmo sem ter sido usada comercialmente, como acontecia com boa

    parte de seus auto-retratos, a prtica musical foi tema de alguns auto-retratos de sua famlia,

    dentre os quais destaco Famlia Sander, de 1913 [figura 12], realizado em seu estdio, na sala

    14 Amparando no estudo sobre a scio-gnese da sociedade alem de Norbert Elias (1997), vou tentar rapidamente esboar um perfil da classe burguesa a qual August Sander estava se inserindo ao longo de seu desenvolvimento profissional. Tratava-se de uma burguesia que conjugava nela mesma dois tipos burgueses, a saber, um proveniente da aristocracia decadente que ainda guardava certos cdigos de conduta da tradio aristocrata, especialmente a militar, baseada na honra e nas boas maneiras entre os iguais, estes entendido como apenas os membros da nobreza e da aristocracia; outro proveniente das elites das antigas classes mdias que at o final do sculo XIX tinham seu poder restrito apenas ao mbito do poder econmico nos centros urbanos (empresrios, grandes comerciantes, banqueiros), e que a partir de ento passaram a ocupar cargos importantes na mquina estatal, inclusive cargos de direo, sem, entretanto abandonar seu status, perspectivas e cdigos de conduta que se configuravam em forma de uma moralidade humanista considerada vlida para todas as pessoas independente de classe ou origem. Embora os grupos fossem bastante distintos, as mudanas estruturais na sociedade, decorrentes do acelerado processo de industrializao, urbanizao e outros aspectos concernentes modernizao do pas no incio do sculo XX, e que abatiam a Europa como um todo, gerava tambm transformaes dos cdigos de conduta. Norbert Elias diz que a srie de movimentos de emancipao que o sculo presenciava alterava os equilbrios de poder entre grupos estabelecidos e grupos marginais das mais diversas espcies (1997, p.36). Tais movimentos emancipatrios levaram a uma inverso de valor na correlao de foras entre a aristocracia e a classe mdia dotada de grande mobilidade ascendente, estes ltimos ficavam cada vez mais fortes, especialmente na era da Repblica de Weimar, enquanto os outros perdiam poder: nesta fase, apesar da aristocracia manter os cargos nas mais altas patentes militares e diplomticas, por outro lado seu peso dependia de conseguir se aliar a grupos de classe mdia. Mesmos os cargos mantidos pela aristocracia na era de Weimar deixariam de existir com a ascenso nazista. Esta classe mdia ascendente no poder tornou-se cada vez mais multifacetada na medida em que o processo civilizatrio se acelerava, e na medida em que membros das classes menos privilegiadas, especialmente os provenientes do operariado, tambm ascendiam, em menor grau, a certos nveis de poder do Estado e, em menor medida, do poder econmico. Esse resultado, segundo Elias, foi significativo tanto para a continuidade quanto para a transformao do cdigo de comportamento: apesar do gradiente entre formalidade e informalidade ir se reduzindo no decorrer do desenvolvimento social alemo, regras de conduta tradicionais das elites da antiga classe mdia e certos valores da aristocracia ainda permaneciam vivos, e em alguns casos, props Norbert Elias, como determinados grupos de empresrios, chegavam a combinar regras de conduta humanistas com os valores tradicionais aristocrticos. Sander, proveniente de famlia operria, vai compor esta nova classe mdia aderindo s regras de conduta dessa burguesia.

  • 34

    destinada realizao dos retratos. A relevncia dessa imagem est: 1) na representao que

    Sander faz de sua famlia, uma vez que tem como pano de fundo a coeso familiar e sua

    consolidao como integrante da classe mdia social e comercialmente bem sucedido; 2) na

    representao de um ambiente familiar erudito, onde o lazer e a harmonia so intermediados

    por sesses musicais protagonizadas por August Sander tocando seu alade15; 3) e