Rubens Figueiredo - Passageiro Do Fim Do Dia

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    No ver, no entender e at no sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos uuco aos olhos das pessoas. Um distrado, de certo modo e at meio sem querer. O que tambdava. Motivo de gozao para uns, de afeio para outros, ali estava uma qualidade que, qua

    s trinta anos, ele j podia confundir com o que era aos olhos das pessoas. S que no bastar mais distrado que , ainda era preciso buscar distraes.Pedro abriu com a unha a tampinha da parte de trs do rdio minsculo e trocou a pilha. A mdevolvida, to forte quanto os chiados e mais alta do que os barulhos da rua. Ele tinha enfiad

    nes nos ouvidos. Estava de p, num fim de tarde, colhido numa diagonal rasante por um sol co

    asa que se recusava a ir embora e se negava a refrescar. Um sol quase colado sua testa e tamesta de todos os outros, que se mantinham em ordem numa fila, espera do nibus no ponto finNo havia nada entre o sol e as cabeas de todos ali, a no ser a parte mais alta do poste dencreto e os fios bambos de eletricidade ou de telefone, que l em cima irradiavam para os doios numa simetria de costelas. A sombra da fila, estendida quase ao mximo sobre a calada, ica sombra. A demora do nibus, o bafo de urina e de lixo, a calada feita de buracos e poasfalto ardente com borres azuis de leo, quase a ponto de fumegar Pedro j estava atbituado. No so os mimados, mas sim os adaptados que vo sobreviver.

    Pensando bem, no era tanto uma questo de hbito nem de mimos. Acontece que toda hora havanar na escala evolutiva, subir mais um degrau. mesmo impossvel ficar parado e, qualqe seja a direo em que as pernas comeam a andar, o cho logo toma a forma de uma escada.m do mais, preciso reconhecer: sem mal-estar, sem adversidade, sem um castigo sequer, copode esperar que haja alguma adaptao?Pedro, talvez por causa da msica engasgada nas orelhas, demorou a perceber que um nibus roximava por trs, pela rua, rente calada. Vidros meio soltos nas janelas e placas frouxas dtal trepidavam dentro e fora do nibus. A tampinha que protegia a boca do tanque de combustha sido destravada e, a cada solavanco das rodas, o pequeno quadrado de metal estalava com

    a de encontro lataria. Por um momento, a sombra alta e retangular do nibus cobriu a somba na calada. Mas o nibus, em vez de parar, passou direto, deixou a fila para trs e foi estaciponto seguinte, vinte e cinco metros adiante.Era um nibus de outra linha. O motorista desligou o motor, ergueu o corpo, saltou por cima dp e desceu os trs degraus da porta aos pulos, com toda a fora. Cada pulo fez balanar aroceria inteira. Depois, afobado, o motorista contornou o nibus pela frente. Escondido das

    ssoas que aguardavam em vrias filas na calada, urinou a cu aberto de costas para a rua,rpo virado para a roda, quase encostado ao pneu dianteiro.

    Com a chegada do nibus que no servia para ele, Pedro percebeu como sua fila vibrou de umnta outra, numa corrente de impacincia. Algumas cabeas viraram para trs, em busca do asado. Desconhecidos trocaram resmungos. Corpos mudaram o p de apoio, calcando com raburacos da calada.Mas at a nada do que estava acontecendo chegava a ser novidade. Havia alguns meses que txta-feira, mesma hora, Pedro ia para aquele ponto final, tomava seu lugar na fila. J conheciata vrios passageiros. Sem nenhum esforo e sem a mnima inteno, j sabia at alguma coispeito de alguns j contava com a irritao desse e com a resignao de um outro, por causmora do nibus. s vezes, sem perceber, chegava a brincar mentalmente, testava como as rea

    es eram previsveis. E por esse caminho misturava-se quela gente, unia-se a alguns e, a part

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    es, aproximava-se de todos. Mesmo assim, mesmo prximo, estava bastante claro que no por as pessoas na fila como seres propriamente iguais a ele.A razo, Pedro ignorava. Nem se esforava em procurar uma razo, pois para ele tratava-se dntimento vago demais, quase em forma de segredo. Apesar disso, Pedro era obrigado a reconhe o impulso de partirem todos juntos na mesma direo e o af de pontualidade, ou pelo menonstncia, no bastavam para fabricar um sangue comum. Aquelas pessoas pertenciam, quem sa

    m ramo afastado da famlia. Mais que isso, j deviam constituir uma espcie nova e em evoluuns indivduos resistiram por mais tempo; outros fraquejaram, ficaram para trs.

    De onde estava, isolado por uma barreira que no era capaz de localizar, Pedro comeava axergar em todos ali uma variedade de gente superior. Comeava a pensar que ele mesmo, ou aseu sangue, tinha ficado para trs, em alguma curva errada nas geraes.E pronto: ali estava um bom exemplo do que acontecia tantas vezes com Pedro. Ele sabia dissdevaneio em devaneio, de desvio em desvio, seus pensamentos se precipitavam para longe, s

    sgarravam uns dos outros e no fim, em geral, acabavam se pulverizando sem deixar qualquer tque tinham sido, do que tinham acumulado. s vezes, no entanto, ali mesmo na fila do nibusio daquelas pessoas, suas ideias perdidas voltavam atrs, de todas as direes, convergiam d

    to e Pedro, surpreso e at assustado, dava de cara com a pergunta:Por que eles permitem quue aqui? Por que no me expulsam, como do seu direito?Sabia que, para muitos passageiros, aquele seria o segundo nibus em sua viagem diria de vra casa. Sabia que a mulher com aparncia de uns sessenta anos, mas que devia ter s uns quars, com cintures de gordura nas costas que marcavam profundas pregas na blusa, no tinha ontes incisivos na arcada inferior. E sabia que ela trazia dentro da sacola, sempre abarrotada, ublia encapada em plstico transparente, que ia abrir e ler no seu banco do nibus, durante a vimais ou menos uma hora e meia.Pedro sabia que o rapaz de uns vinte anos, de cabelo raspado, com dois dedos da mo paralis

    ra sempre numa ligeira curva em gancho por causa de algum acidente, ia dormir de cansao noio da viagem. A cabea ia ficar encostada no vidro da janela, ou ia tombar de vez em quandoase tocando em quem estivesse sentado ao seu lado.Pedro sabia at que o homem de uns quarenta anos, com o uniforme de uma firma de consertostrodomsticos e marcado no antebrao por uma cicatriz marrom de queimadura, trazia dobradntro da maleta de ferramentas as pginas da seo de esportes do jornal. No fim do expedientevia pegar aquelas folhas na recepo da firma para ler durante a viagem.O que Pedro na maior parte do tempo no sabia, ou no conseguia lembrar, era que ele mesmo

    ava ali, junto com os outros. Fazia os movimentos corretos, ocupava o espao adequado ao loora, e at se demorava observando e guardando detalhes para ele acidentais, interessantesrm sua ateno tinha mais fora do que qualidade. Enxergava bem, mas olhava como que de

    nge, ou como que atravs de um furo na parede. Sem ser visto, Pedro mesmo no se via. Nonseguia imaginar que aspecto teria as costas, o brao, a nuca aos olhos daquelas pessoaNa sombra da fila sobre a calada, sua silhueta moveu o brao. Pedro mudou o rdio minscu

    gar, na tentativa de captar melhor a estao. Como os outros, estava cansado. No tinha carregxotes de frangos congelados para a caamba de um caminho nem havia esfregado corredoresadas de um prdio de quinze andares de cima at embaixo como alguns outros ali, mas tinha

    ado muito tempo em p no trabalho. O sangue parecia descer com um grande peso pelas perna

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    undo dos ps. Os dedos endurecidos chegavam a latejar, apertados uns contra os outros, dentro do tnis.Algum cantava no rdio, e com fora, dentro do seu ouvido. Em geral as letras das canes nstiam para Pedro. Sua audio displicente, cansada, drenava todo o sentido das palavras. Deplivrava tambm da articulao das slabas. Restavam apenas o timbre, a altura, a cadncia daos instrumentos.Na sequncia das notas musicais, Pedro distinguia ento, por conta prpria, frases de uma outpcie. Marcadas por vrgulas e ponto final, providas de lgica e at de eloquncia, eram frase

    rfeitas que, para elas, as palavras no faziam a menor falta. Pedro, com o gosto de quem ouvenversa inteligente, acompanhava o movimento daquelas frases, feitas s das notas da melodia ompanhamento. A argcia das falas, no caso, se mostrava maior ainda, porque a conversaosseguia e se ramificava em muitos caminhos, sem nunca ter de se referir a coisa alguma.De repente, Pedro viu a mulher que trazia a Bblia sair da fila e caminhar com sua bolsa pesaeo da fila da frente. Talvez estivesse com mais pressa naquela tarde. O problema, raciocindro, pondo-se no lugar da passageira, era que a outra linha no servia para ela. Na verdade, aibus seguia por vrios quilmetros o mesmo trajeto do nibus que ainda no tinha chegado.

    reo oeste: o sol sempre frente, o sol cada vez mais baixo, agarrado s antenas e aos fios sasario pobre e interminvel que se alastrava dos dois lados da pista.Mas, depois de quase uma hora de viagem, aquele nibus fazia uma curva comprida, de centoenta graus, e saa da via expressa bem antes do viaduto que dava acesso ao bairro onde a mul

    orava. O mesmo bairro aonde Pedro queria chegar. No total, uns cinco quilmetros de diferenr que ela pretendia percorrer essa distncia a p, e ainda por cima com aquela bolsa pesada no?Pedro mal havia terminado de pensar no assunto, fazer as contas e imaginar a sensao das pe

    m pouco inchadas da mulher, quando viu duas estudantes de uns doze anos tambm abandonarem

    a. Uma puxou a outra pelo brao, deu at um puxo numa trancinha do cabelo da outra, arregalhos muito brancos, sacudiu a cabea na ponta do pescoo comprido e falou algo que Pedro node ouvir. Vamos embora, vem logo. Deve ter sido isso, pelo formato da boca. Aps umarridinha gil com as pernas finas em movimentos de tesoura, recortadas pelo sol, as duas ocupim da fila, no ponto l na frente.Mais frente ainda, no incio da fila, os passageiros j estavam entrando no nibus. Os assens janelas comearam a ser ocupados um a um. Dava para ver como as cabeas iam surgindo nertura das janelas ou por trs dos vidros. Vrios rostos viraram para trs e olharam na direo

    a de Pedro.A simples demora do nibus, mais longa do que a demora de sempre, talvez pudesse justificarrvosismo, tambm diferente do de sempre, que vibrava agora na sua fila. Dava para sentir at nge, at na cara dos passageiros nas janelas do nibus parado no outro ponto. S que Pedro no para se deixar contagiar por aquela ansiedade. O atraso, por maior que fosse, ainda era s

    m atraso. Fazia parte da rotina e, dentro da rotina, havia sempre lugar para nervosismo, paraitao.Na fila, bem diante dos seus olhos, Pedro olhava para uma nuca de pele grossa, muito vermele vincada de rugas ainda mais fundas no ponto em que a borda do colarinho fazia presso

    ntra a gordura do pescoo. Era um homem de cabelo grisalho e bem curto, que virou a cabea

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    s uma, duas vezes, em dvida, inquieto. Falou alguma palavra para a mulher quase gorda suante e em seguida saram os dois da fila, s pressas. Foram os ltimos a entrar naquele nibus rente. Logo depois o motorista fechou a porta com um chiado de ar comprimido e um estalo e ibus arrancou. Balanou mais forte ao se afastar da beira da rua, onde o asfalto era mais ondur causa do calor do sol, to grande que o piche chegava a amolecer e afundar sob o peso dasdas.Agora, s restava esperar na fila. Alm do rdio, para escutar sobretudo nas horas de espera,dro sempre trazia na mochila um livro para ler na viagem. Possua uma loja bem pequena, em

    ciedade com um amigo advogado, onde vendia livros de segunda mo. Nessa tarde trazia naochila um volume de uma coleo que tinham vendido em bancas de revistas uns quinze anos avolume tratava da vida e das ideias de Charles Darwin.A capa de trs tinha sido arrancada. Sobre passagens do texto havia rabiscos eufricos de algana muito pequena que, num momento de distrao dos pais, conseguira pr as mos no livrodro sabia muito bem que essas colees tinham fama de no valer grande coisa. Mesmo assimcio daquela tarde um fregus havia erguido um pouco o livro com uma das mos e, antes de relugar, tinha comentado que o autor fazia uma introduo at bastante razovel ao assunto.

    Mais tarde, com sua lojinha j sem fregueses, Pedro pegou o livro e, de p, encostado ao balcumas oito pginas. Um torpor soprou morno em seu rosto enquanto lia, e a lassido aumentavda pgina que virava. Mas no foi tanto o elogio do fregus que o atraiu, e menos ainda o assutivera outro exemplar daquele livro para vender anos antes, quando ainda no era dono nem spequena livraria. Quando ainda no tinha nada.Assim que viu a figura do sbio estampada na capa, no instante em que deparou com o emaranlonga barba cor de cinzas sobre o fundo cor de carne, bateu abrupta em sua memria a imagemsmo livro: chutado uma, duas, trs vezes sobre as pedrinhas brancas e sujas da calada, chuta

    m fora e sem querer por pessoas que corriam aos empurres, em atropelo e em fuga pela rua,

    quanto olhavam para os lados e para trs, por cima do ombro, entre gritos e estampidos cada vis prximos e mais violentos que vinham de vrias direes.Pisado e chutado, o livro correu para um lado e para o outro, se rompeu em duas e em trs paolhos de Pedro ficaram presos ao livro e o seguiram, golpe a golpe, aos sustos, cada vez mai

    nge, enquanto ao redor, em plena rua, o tumulto se espalhava. No meio de pernas em correria eavs da fumaa azeda que de repente caiu sobre ele e fez arder os olhos, o nariz e o fundo domago, Pedro teve sua ltima viso do livro. A certa distncia viu as folhas de um dos cadernsoltarem da costura sob a fora do escorrego de um sapato ou de um p descalo. Por ltimo

    nseguiu avistar folhas espalhadas e murchas, irreconhecveis, junto ao meio-fio molhado, na bum bueiro de ferro.Assim, agora, nesse fim de tarde, na fila do nibus, Pedro tinha a sensao de que carregava nchila algo bastante pessoal. Para ser mais exato, ele poderia dizer que carregava sua tbia intjoelho at a articulao do tornozelo a mesma articulao mal e porcamente reconstituda,

    ras depois, na noite daquele mesmo dia do tumulto na rua , reconstituda por suturas externaernas, por pinos e parafusos, enfiados e removidos no vaivm das dvidas do cirurgio. Remnhas, no fim das contas, quase to inteis quanto as costuras e grampos das folhas do livro

    utado pela rua.

    Tambm por isso o sangue descia mais pesado pela perna esquerda. O sangue esquentava e

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    migava na canela enquanto Pedro esperava de p na fila de nibus. Tambm por isso ele maneiramente quando sua fila, enfim, se ps em movimento. Pois nesse intervalo, e sem ele notar,ibus havia chegado e parado na beira da rua.Depois de estacionar e desligar o motor, o motorista desceu a passos pesados pela porta da frcom a camisa desabotoada at o umbigo, foi conversar com o fiscal do ponto. Abanava muito os, de vez em quando empurrava com fora a massa de cabelo crespo para trs. A pele da tes

    curecida e ressecada pelo sol, se esticava sobre a frente larga do crnio. Como se no consegunter uma irritao, chegou a dar dois tapas na guarita de fibra de vidro onde o fiscal se abriga

    onde ele saiu com as mos nos ouvidos e a cabea abaixada.Pedro, com os fones nos ouvidos, no ouviu o som dos tapas, mas pela fora do gesto estava ce deviam ter feito um bocado de barulho. Enquanto isso, depois de ter deixado com o fiscal umha de papel dobrada, a trocadora, quase uma an, comeou a escalar os degraus com um esfordulante dos quadris muito largos, rumo ao seu banco dentro do nibus. Atrs dela, os passageimearam a entrar pela porta da frente.Na calada, junto fila, um homem com um olho coberto por um curativo vendia sacos deendoim, pacotes de biscoito e aparelhos de barbear feitos de plstico. Os produtos, amarrado

    iras e em cachos, ficavam todos presos a um gancho de ferro cromado, do tipo usado parandurar peas de carne em frigorficos. O vendedor, de testa suada, mantinha-o erguido quase acabea com a mo esquerda, pois ali, no meio da calada, no havia onde prender o gancho.quanto trocava palavras afobadas com um ou outro passageiro da fila interessado em comprarcoito, o ambulante arregalava de tal jeito o olho que Pedro, por algum motivo, achou que ounto de que estavam falando no podia ser apenas o biscoito. No podia ser s a conta do troNisso, dentro do seu ouvido uma voz de mulher anunciou no rdio a cotao do dlar, do euroro e do barril de petrleo. Mencionou a taxa de juros do Banco Central e os ndices da bolsa ores de Nova York, de Tquio e de So Paulo, em mincias que chegavam aos centsimos. A

    lher pareceu alegre cada frao era preciosa e tilintava em seus dentes.Mais atento voz do que aos nmeros, Pedro tentou imaginar a idade da locutora, seu rosto, sia mesmo dlares em casa e que aes da bolsa teria comprado e vendido naquele dia, naquede, talvez por meio de um telefonema logo depois de comer a sobremesa do almoo e escovarntes. Horas depois, encerrado o expediente na rdio, ela se deixaria levar no carro silenciosomorado, um homem divorciado e com uma risca grisalha no cabelo. Iriam juntos a um restaura

    ma boate para danar, iriam rir e beber um pouco mais naquela noite de sexta-feira. Ou quem samariam drogas especiais, em drgeas coloridas que um amigo do homem tinha trazido do exter

    No foi uma sucesso de imagens o que Pedro viu em pensamento. Foi um quadro s, que aceogo depois apagou. As drgeas, os tubos de petrleo no fundo do mar, as cifras acesas em filedgitos numa srie de monitores luminosos suspensos. E os dentes do homem e da mulher surg

    dos, lado a lado, de uma s vez e num mesmo plano. Tudo era to automtico que nem havia tese distribuir numa ordem.Pedro subiu no nibus e se demorou diante da trocadora, procura de moedas na carteira parilitar o troco. Quando passou na roleta percebeu que, no rdio, a voz da locutora foi substituo anncio de um seguro de automveis oferecido por um banco. A vinheta sonora comeou co

    ma longa e estridente freada, um som quase musical. Da passou para um estrondo metlico, log

    ompanhado por um estilhaar de vidros. E culminou em trs acordes graves de um teclado

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    trnico que imitava uma orquestra. A sequncia de sons, perfeitamente lgica e previsvel,purrou para dentro da cabea de Pedro uma pergunta: Ser que os pneus deste nibus tambmincham desse jeito numa freada?

    Duas moedas escaparam da sua mo, caram no piso de ao. O baque metlico, mesmo com sentar abafado pelos fones que tinha nos ouvidos, fez vibrar uma sonoridade mais ou menosrecida com o espatifar do para-brisa que tinha acabado de ouvir no anncio do rdio. Por issousa desse som, quando Pedro se abaixou para pegar com a ponta dos dedos as moedas no chou, ao nvel dos olhos, os ps dos passageiros metidos em sapatos e em sandlias passou de

    pente pela sua cabea, e com toda a vivacidade, aquela memria, a antiga sensao, a cena muzes repetida em pensamento: enquanto Pedro olhava, atento, seu livro ser pisado e chutado vzes pela rua, a larga vidraa de uma loja explodiu inteira bem em cima dele. Num jato, caquinvidro se derramaram sobre suas costas.Pedro nem soube como tinha ido parar deitado de bruos no meio da calada. Era uma rua dedestres. Foi ento que veio a viso dos ps das pessoas, de sapatos, de sandlias a viso dxo, ao nvel do cho. Logo depois, bem perto dos seus olhos, veio a figura dos frgeis tornozs cavalos. A imagem dos cascos e das ferraduras que matraqueavam estridentes contra as ped

    calamento e s vezes cuspiam fascas.Deitado de barriga para baixo sobre a calada, num movimento instintivo, ele cobriu a cabeamos, com os braos. Sentiu o toque frio das pedrinhas brancas do calamento direto na bochqueixo, quase nos dentes. Pde ver, entre os dedos da mo, l na frente, a uns trinta metros, co

    m homem nu da cintura para cima e com a cabea meio enrolada numa camiseta cinzenta se abapressa, apanhou na calada um basto de onde saa uma fumaa branca e atirou-o com fora mmenos na direo de Pedro. O basto voou em rodopios, a fumaa branca desenhou anis no pois o homem sem camisa correu para trs pela rua e sumiu, aos saltos, numa agilidade incrvPedro sabia o que tinha de fazer: tinha de se levantar, no podia ficar ali deitado no meio do

    minho. Ento fez um movimento com o tronco. No mesmo instante, sentiu alguns caquinhos de correrem da nuca para dentro da camisa, por trs da gola. Assim como as pedras da calada, odacinhos de vidro pareceram muito frios ao tocar sua pele. Tambm devia haver alguns cacosranhados no seu cabelo crespo, espesso, cheio de anis midos. Por isso ele apalpou a cabe

    m a mo aberta, de leve, tomando cuidado para no se cortar.As lojas tinham baixado as portas de ao nos dois lados da rua e pessoas se encostavam ali, sonde entrar nem para onde fugir. Pedro viu como olhavam para ele duas mulheres com car

    sto, boca de choro. Ainda meio deitado no cho, comeando a se levantar, Pedro olhou para tr

    nsou nos livros que, meia hora antes, tinha posto na calada para vender todos bem arrumacima de um papelo. E imaginou se ainda ia conseguir recuperar alguns deles.Mas agora, dentro do nibus, na hora em que estava pagando sua passagem, Pedro se ergueu do, deu para a trocadora as moedas que pegou no piso de ao, apanhou o troco, meteu a carteirlso e foi sentar-se janela, num banco mais alto que os outros, bem em cima da roda traseira.uperou os livros, naquele dia naquela vez em que houve o tumulto na rua. Mas agora, pelonos, o livro sobre Darwin estava com ele tantos anos depois. Recosturado, reencadernadoase inteiro. S faltava a contracapa.Os quase cinquenta assentos do nibus foram ocupados. Entraram mais dez passageiros que se

    palharam, de p, pelo corredor. O motorista subiu at o seu banco, arregaou a bainha das cal

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    xou as meias para cima, at o meio da batata da perna. Esfregou uma toalhinha em todo o arcolante e depois a jogou embolada num canto, entre o para-brisa e o painel sua frente.Ento, Pedro viu a passageira sentada no primeiro banco se inclinar para o motorista e falaruma coisa por cima do ombro dele. O motorista nem virou a cara para trs. S balanou a cabm gesto resignado nem sim, nem no e abriu um pouco os antebraos, com os cotovelosados s costelas e as mos viradas para cima.No momento em que o nibus partiu, Pedro voltou o rosto para a janela aberta ao seu lado. Qs o nariz para fora, enquanto o nibus dobrava a primeira esquina e a segunda esquina. O mot

    u uma arrancada comprida, o motor lanou um ronco cada vez mais agudo e mais forte, at frem um tranco diante de um sinal fechado. Todos levantaram um pouco a mo e esticaram o brara a frente a fim de segurar-se nos tubos de alumnio aparafusados em cima do encosto dos baUm carro novo, grande, de marca sueca, se aproximou silenciosamente e parou ao lado. Ochorro sentado no banco do carona metia o focinho afoito pela fresta que o motorista umalher, na verdade tinha deixado aberta no alto do vidro da janela. Pedro olhou bem para o

    chorro, acomodado sobre as patas traseiras num assento estofado em couro preto. Pedro tambstava de sentir o vento na cara, tambm seria capaz de acreditar, nessas horas, que a janela, to

    alquer janela, de um nibus, de um carro ou de uma casa, no tinha outra finalidade seno deixnto bater na cara da gente. Tanto assim que, quando o sinal abriu e o nibus recomeou a andadro levantou um pouco mais o nariz e ps a cara s um centmetro para fora para aproveitar onto.Dali, o nibus subiu ligeiro por um viaduto. Naquele momento, quem olhava atravs da janelaha quase a impresso de estar num avio que decolava. Surgiram aos poucos os terraos das cos prdios baixos: caixas dgua, antenas, telheiros precrios, churrasqueiras, roupas pendurra secar em cordinhas esticadas. Um homem descalo, de uns quarenta anos, sem camisa, soltapa num terrao com o olhar concentrado no cu e dava puxes curtos e ritmados na linha, mov

    ntebrao para baixo e para cima, numa diagonal. Ao longe, por trs dele, se abria a ponta de rque e o reflexo azul de uma lagoa.Todos os passageiros sabiam que logo depois viria um tnel comprido, quase todo em curva. ntro o rdio ficava mudo, s chiava, e depois da montanha de rocha, durante vrios quilmetroarelho pegava muito mal o sinal das estaes ficava mais fraco entre aquela serra e a serraguinte, alguns quilmetros frente. Pedro tirou os fones dos ouvidos e desligou o rdio. Quasesmo instante o barulho do motor comeou a ecoar e girar entre as paredes de pedra do tnel.rmou-se um estrondo contnuo que, junto com o vento que entrou pelas janelas, tomou conta do

    ibus inteiro. Parecia que era s o barulho, que era aquele ronco e mais nada o que sugava o nra a frente, atravs do enorme buraco na montanha.Pedro continuou a receber o vento na cara, junto com o barulho dos motores e junto com a poeossa do tnel. Se gostava tanto assim de vento, tinha mesmo de aproveitar ao mximo, porque, rente, dali a pouco, o trnsito ia andar arrastado, ia quase parar. O cachorro, que viajava em snco de couro, talvez tivesse mais sorte. Talvez fosse para algum endereo prximo dali erasmo o mais provvel. E l, com a cabea enfiada entre os balastres da varanda de umartamento no dcimo quinto andar, o cachorro ia poder observar, com seus olhos inteligentes, ande engarrafamento l embaixo.

    Mas para Pedro, a partir de certo ponto da viagem, a janela s ia servir para cozinhar a testa n

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    rasteiro do fim da tarde. E tambm para bafejar nos seus olhos o gs queimado dos motores ento morto, os suspiros curtos da primeira e segunda marchas no trnsito engarrafado.Seria, ento, a hora de retirar o livro da mochila, a hora de acompanhar o famoso cientista ingsua viagem pelas ilhas e pelos pases do sul. Talvez o livro no se referisse ao fato, mas Ped

    bia que um sculo e meio antes Darwin tinha passado por aquela mesma cidade onde ele vivianha percorrido aquele litoral com seu olhar observador. Tinha, sem dvida, escolhido e apanh

    mas borboletas, uns insetos, umas plantas, e tinha levado embora tudo num catlogo bemdenado e espetado dentro de caixas, talvez com tampas de vidro, com nomes e sobrenomes em

    im.No vidro das janelas, contra o fundo escuro do tnel, Pedro viu naquele momento o reflexo dossageiros de p, iluminados pelas luzes internas do nibus. Ombro a ombro, com as mos segus tubos de alumnio no teto e nos bancos, eles tinham feies variadas. Borboletas, j no eramum encontrar na cidade, pensou Pedro. Insetos, sim, havia muitos. Ali mesmo, dentro do nibontecia de circularem umas baratinhas. Darwin talvez gostasse de saber que as ancestrais deumas delas podiam ter chegado de outros pases, em navios quem sabe at no navio do prntista , ou, ao contrrio, podiam ter embarcado sem querer daqui para outras terras. E l co

    ui algumas delas, as mais aptas, as que no desistem, haviam se adaptado ao novo ambiente,viam apurado seu sangue, sua famlia. Tudo sempre para garantir que a melhor parte, a parte nasse para si e para os seus.De repente o nibus saiu pela outra boca do tnel, desceu uma rampa ainda em certa velocidar mais uns setecentos metros, at que o motor engrenado rugiu alto, como se quisesse fazer asdas girarem no sentido contrrio. O nibus foi reduzindo a velocidade aos poucos at que otorista parou no ponto. Do lado de fora, passageiros logo se aglomeraram em volta da porta evida, perguntavam alguma coisa ao motorista.Pedro continuava a ler seu livro. Entendia perfeitamente o que lia era simples, ou tinha sid

    mplificado com habilidade. Mas nem por isso deixava de perceber que o nibus estava paradoia algum tempo e que o rumor das vozes l na frente soava duro, spero. S parou de ler quan

    m homem no penltimo banco, depois de lanar para a frente um palavro, gritou que no podiaar ali a vida toda, que quem tivesse algum problema podia descer e que s depois que chegaseles iam ver como era e como no era, e pronto no tem o que ficar discutindo.Pelo menos foi isso o que Pedro entendeu. O sujeito tinha o cabelo raspado, a cabea grande ando brandiu a mo no ar, a pulseira de metal do relgio, um pouco frouxa, faiscou e sacudiu lta do pulso. Uma mulher sentada ali perto tambm ergueu a voz em sua boca grande, com a ln

    io rosada palpitando l dentro. Disse que tinha pagado a passagem e queria ir at o fim, de umto ou de outro, seno eles tinham de devolver seu dinheiro agora mesmo.Com isso, l na frente, as pessoas pareceram se decidir. Subiram s pressas, amontoaram-se neta, que logo comeou a estalar a cada quarto de volta, enquanto o motorista respondia a umatra pergunta com movimentos vagos das mos e da cabea. Um ou dois passageiros ainda fizeuma piada e riram para ele, que no entanto no riu em resposta. No espelho retrovisor acima

    ra-brisa, Pedro podia ver quase metade da cara do motorista: os olhos rpidos, desconfiados,tavam tomar p da situao, dentro do nibus e fora tambm.Porque l fora, espremidas na calada estreita entre o meio-fio e a grade do estacionamento d

    permercado, dezenas de pessoas esticavam o pescoo na direo da rua, para o lado de onde

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    nham os carros, cada uma delas procura da aproximao do seu nibus, todas preparadas parrer na direo da porta de embarque assim que pudessem calcular em que altura da calada otorista ia encostar e parar. Mas no havia s isso no movimento alarmado daquelas cabeas. s um esforo de ateno e clculo que franzia a pele da testa, que endurecia o olhar.

    O mesmo nervosismo anunciado no ponto final parecia vibrar tambm ali, nas pessoas e at novolta. De uma forma inexplicvel para Pedro, os mesmos nervos pareciam ter se esticado at

    nge e chegado tambm ali, atravs do tnel e das ruas. Os nervos pareciam se ramificar para agrade, atravessar a rea do estacionamento, passar por baixo dos grandes cartazes com os

    arismos que indicavam os preos das promoes e alcanar os corredores do supermercado rredores que Pedro nem podia ver, da sua janela, mas que estavam l dentro, ele sabia: osodutos arrumados aos milhares nas prateleiras compridas e bem iluminadas.Alguns nibus encostavam no ponto e logo partiam, mas, vindo por fora, outros nibus aindatavam com dificuldade encontrar um espao livre para se aproximar da calada, estacionar e

    mbm pegar seus passageiros. A demora do nibus de Pedro em deixar o ponto estava irritandotros motoristas, que comeavam a reclamar. Abriam a porta da frente para protestar. Um delesz de falar, ps o brao para fora da janela e deu murros na lataria. Um outro piscou o farol vr

    zes, fez o motor rugir bem alto, em ponto morto. O cano de descarga estava perto da janela dedro, que recuou a cabea por causa das baforadas de cheiro cido e parou a leitura.Darwin, num de seus passeios por aquela mesma regio, havia observado e registrado como amorvel um combate entre uma vespa e uma aranha. Havia muitas matas desabitadas na cidad

    quela poca. Darwin anotou o fato em seu dirio, poucas linhas depois de ter comentado oradvel efeito visual dos numerosos blocos de rocha nua que se erguem arredondados de dentta ou do mar e alcanam at centenas de metros de altura. Naquela pgina do livro, a crianaxou um risco tremido, talvez uma tentativa de imitar a letra B. Ficou bem claro, para Pedro, n

    ssagem, como at o passeio, at o lazer do cientista supunha seu trabalho ininterrupto: o mund

    ha de se dobrar, tinha de tomar a forma da sua ateno. E quanto mais ateno, mais mundo exra ele: mais mundo pertencia a ele.Uma vespa Pepsis mergulhou no ar na direo de uma aranha Lycosa e alou vootra vez. Foi to rpido que ningum teria certeza do ataque se a aranha no tivesse cambaleadoa fuga e rolado numa pequena depresso de barro encharcado. Peluda, maior do que a vespa, acosaremexeu em vrias direes as oito patas articuladas, at conseguir virar-se outra vez sodmen. Ainda teve foras de se arrastar para baixo de umas plantas rasteiras, onde sem dvidetendia se esconder. APepsisvoltou depressa, sobrevoou o local, surpreendeu-se de no enco

    is a aranha. Darwin descreveu assim: Teve incio uma caada to sistemtica quanto a de ume persegue uma raposa.A vespa voava em crculos rasantes, asas e antenas zuniam. Enfim, descoberta a aranha, a vesdou de evitar o perigo de suas mandbulas e soube manobrar o voo com agilidade para ferroa

    ma vez, duas vezes a parte inferior do trax de sua presa. Em seguida, apalpou com cuidadorpo daLycosapara se certificar de que ela estava imvel e se preparou para transport-la.Pade? pensou Pedro. Vespas comem aranhas? De que modo? Uma vespa sozinha? E o venedo o que soube, ao fim da pgina, ao fim da histria, que Darwin capturou o tirano e a vtimlevou embora, para si, para seu pas. Cento e setenta anos depois, lida num nibus, parecia qu

    essa toda a moral da fbula.

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    O motorista, com esforo, girou o volante para a esquerda, at o fim, at parar de rodar. Ps oibus em movimento, afastou-o da calada onde ficava o ponto, depois virou o volante para aeita. Assim conseguiu contornar a ponta de um nibus parado na sua frente com a traseira muiviesada na direo da rua, o que estreitava a passagem e atravancava o trnsito mais ainda. Penela, um motorista deu um ltimo grito para o motorista do nibus de Pedro. Olha que vo tacgo foi o que Pedro conseguiu ouvir, pois nesse instante o motor acelerou mais forte e impeibus para a frente e para fora da confuso do ponto.Os passageiros em p dentro do nibus ocupavam agora toda a extenso do corredor, em duas

    eiras uma de costas para a outra. S duas pessoas sentadas se ofereceram para segurar bolcotes e mochilas dos que no tinham onde sentar. Pedro foi um desses passageiros e um rapazs dezenove anos ps sobre os seus joelhos uma pesada mochila de pano um pouco esfiapado,feitada com uma longa correntinha feita de tampinhas de latas de cerveja ou de refrigeranterelaadas. Sobre essa mochila, uma mulher ps ainda uma bolsa de plstico que continha um

    arelho de telefone usado, envolto num emaranhado de fios sujos, poeirentos. Pedro reabriu seuro por cima de tudo isso, para continuar a ler.Ao contrrio dos outros passageiros e apesar de estar cansado, ele no tinha pressa. No tinh

    ra para chegar. No ia para sua casa se bem que ia para dormir e para ficar l um dia ou doera um hbito. Sem notar, ele se adaptara tambm, e de maneira to fcil que agora Pedro terier um certo esforo para lembrar como aquilo havia comeado. Sexta-feira noite e sbado.

    uitas vezes, ficava at domingo na casa de Rosane ou melhor, na casa do pai de Rosane.Ela s vezes chegava do trabalho depois de Pedro e ento iam os dois juntos ao supermercadoase um quilmetro da casa. Puxavam pela rua um carrinho de compras feito de arame de alumm duas rodas meio bambas que um dia haviam soltado e que Pedro prendera de novo no lugarfiou um prego em cada extremidade do eixo e, com um alicate, dobrou para trs a ponta fina dois pregos.

    Mas s vezes, antes de caminharem juntos para o mercado, Rosane ainda ia assistir a pelo mema ou duas aulas na escola noturna. Pedro se habituara a dormir tarde, na sexta-feira, se habituperar sua vez ao lado de Rosane na longa fila da caixa do supermercado e a pagar as comprasra em que as portas de ao j estavam abaixadas para ningum mais entrar. Agora mesmo, alintado no nibus, tinha a postos no bolso seu carto do banco para ser usado mais tarde.J faz uns seis anos ouviu a voz de algum. Eu nunca mais vou esquecer... Pedro ouviuz de mulher, oculta atrs dos passageiros em p. O motor do nibus roncava, placas e peasuxas chacoalhavam com fora nos trancos das rodas ao passarem nos buracos da pista, e era t

    ande o barulho sua volta que Pedro s conseguia ouvir e entender quando algum falava muito, ou muito perto, ou quando o nibus estava parado. No que falassem muito, nem que ele fiza para ouvir, muito menos para entender. Mesmo assim, mesmo sem querer, ainda ouviu: Dnh, quando sa, estava tudo tranquilo.... E tambm: O celular no pega, j tentei. Vai veraram fogo naquelas antenas de novo.Duas ferroadas, dois golpes certeiros no trax da aranha a grande habilidade da vespa. N

    mesma coisa, nem de longe. No havia a mnima chance de comparao. Mesmo assim, a memo levava isso em conta e bastou somar a palavra trax expresso duas ferroadaspara Pedror de novo naquele dia, na hora em que se levantava da calada ali onde havia cado por cau

    vidraa da vitrine que explodiu nas suas costas.

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    Queria levantar-se depressa e correr para o canto da rua, queria ficar encostado s portas de s lojas, como estavam as outras pessoas. Queria olhar para trs, na nsia de saber o que tinhaontecido com os outros livros, mais de trinta, que ele tinha levado para vender na calada e qurdade nem eram seus. Teria de pagar por todos, cada um deles mas como, com que dinheirde pedir me outra vez? E ela teria como pagar?Mal havia levantado e alguns caquinhos de vidro ainda rolavam dos seus ombros e das suastas , quando o trax de ferro de um cavalo surgiu de surpresa, apareceu do nada, bem na sua. O pelo ruivo, curto, o brilho do suor, o calor e o pelo quase fumegante no peito do animal,

    e esticada pela presso dos msculos por dentro o corao do cavalo quase palpvel. O tareceu de repente a um palmo dos olhos de Pedro e ocupou quase todo seu campo de viso, notante em que ele comeava a se virar para fugir.Ainda teve tempo de entender que, em volta, voavam pedras arrancadas da calada. Aindarcebeu que do alto caam uns arcos de ferro retirados dos canteiros de plantas e reconheceu oeiro ardido de plvora logo depois do estampido de um rojo a uns cinco metros dali. Ainda tmpo de ver que o policial de mscara e capacete, sobre o cavalo, havia erguido o grande escustico transparente no brao dobrado para se proteger das pedradas. Ento veio o impacto con

    mbro de Pedro. Logo depois outro impacto, contra o peito, que atirou Pedro para o alto, para trpois para o cho.A calada, as portas de ao das lojas, os galhos das rvores, as janelas dos prdios, a faixamprida de cu no alto tudo em conjunto girou em torno de Pedro, e girou mais uma vez. A reira se transformou numa bola de vidro que rolou e Pedro estava preso dentro da bola. Por umomento, no soube se estava deitado, sentado ou agachado, perdeu o domnio at do movimenthos, que batiam e rebatiam em tudo. O alerta, a dor propriamente dita, s veio quando o cavalomesmo cavalo, com os dentes mostra e a gengiva roxa, brilhante arremeteu num curto galontra as pessoas revoltadas e, de passagem, pisoteou a parte de baixo da perna de Pedro. A pon

    casco entrou fundo no tornozelo e continuou a descer, a apertar, enquanto o cavalo procuravaoio do cho, da pedra, apenas para tomar impulso e seguir adiante.Vrias pessoas que, a exemplo de Pedro, vieram vender mercadorias na calada tinhamnseguido recolher uma parte de seus pertences, quando a polcia investiu na outra ponta da ruaveram tempo de sair do caminho e agora se encostavam s paredes e s portas das lojas.raadas a trouxas amarradas s pressas ou a sacolas grandes fechadas com zper, misturavamtras pessoas que estavam ali apenas de passagem quando a confuso teve incio. Outros, adianesquina, atiravam pedras contra os guardas e tambm lanavam frascos de vidro cheios de pr

    ferrujados e at pequenas bombas feitas de garrafinhas cheias de gasolina, que j estavameparadas e escondidas espera do confronto. Muitas delas no explodiam.Sem mscara, sem capacete, um guarda segurou Pedro por baixo dos braos e arrastou-o comforo para o canto, para perto das lojas fechadas. A camisa do uniforme do guarda estava suadha uma mancha de fogo no lado. A mo tremia enquanto ele falava pelo rdio. De sua boca vordigotos e pingos de suor saltavam da testa por causa dos movimentos bruscos. Levou um tirse um homem careca, encostado porta de ferro. Ele vai morrer?, quis saber uma mulher mrda, com voz aguda.Deitado no cho, ainda tonto, ainda com o trax do cavalo aceso e vermelho na memria, dian

    s olhos, Pedro tentou enxergar seu p, mas no conseguiu. O ombro parecia estar deslocado, o

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    o mordia o tendo ao menor movimento da cabea ou do tronco. Mesmo assim, Pedro avistouada um fino risco de sangue que avanava muito devagar, se afastava. E decidiu que se trata

    u prprio sangue.Ento era assim, pensou Pedro. Pronto, a estava, era verdade, aconteceu comigo. Era assim pessoas se acidentavam ou eram agredidas e se feriam gravemente no meio da rua. Ficavamiradas na calada, diante dos olhos dos outros, numa cena memorvel, que vai ser contada eontada. Assim, como ele mesmo tinha visto tantas vezes de longe, de passagem, com algum

    diferena, com desconfiana, at. s vezes com certo desprezo: isso, esse erro, no vai acontmigo.De fato, ainda era assim que ele se via, mesmo depois de ter acontecido. Porque, de algum mouela mesma surpresa e at a dor no tornozelo cujas contraes e formigamentos Pedroompanhava com ateno o separavam do que tinha acabado de acontecer. J no era adiferena, j no era o descaso, mas sim sua ateno, concentrada at as mincias, que agora ontinha afastado, separado do resto.Dentro da ambulncia que o levou, preso com firmeza sobre a maca gelada, Pedro conseguiu

    m pouco a cabea e os olhos na direo da janela. Olhou atravs de um espao transparente ao

    cruz vermelha pintada no vidro e pde ver uma fumaa que subia com fora, aos arrancos, emos grossos, num negror de cinzas. Sentiu o cheiro de leo e de plstico queimados. Depois, nuance, num claro repentino e alaranjado que quase ofuscou seus olhos enquanto a sirene da subulncia gemia para abrir caminho, viu uma viatura da Guarda Municipal com grades nas jan

    mpletamente tomada pelas chamas por dentro.Agora, a essa altura da sua viagem, sentado no nibus com o livro aberto na mo, Pedro jmeava a adivinhar do que os passageiros estavam falando a que se referiam aqueles pedaconversa, aquele tom alarmado. Era nada menos do que o bvio e mesmo assim ele s adivinontragosto. Preferia no ouvir, preferia no saber e, para todos os efeitos, nem gostava de pen

    assunto. S de trazer aquilo mente j tinha a impresso de estar cometendo um erro, ou at dar criando um problema ainda maior, ou pelo menos abrindo caminho para aquilo, para algo a

    or. A lgica era simples: em troca de no ver, de no acreditar, de no tomar conhecimento, sessvel abolir aquelas coisas ou impedir que se passassem daquele jeito.Alm de tudo e isso talvez fosse o que mais o incomodava , Pedro tinha a impresso de pessoas, naqueles casos, a exemplo dos noticirios, sempre exageravam. Achava que elasstavam demais de falar, deixavam-se levar por uma euforia perniciosa, instigadas pelo som dpria voz, pela batida forte das palavras. Para Pedro, beirava a maldade o modo como as pess

    o perdiam nenhuma chance de falar daquele jeito e de pr mais fora, mais nfase. Ele tinha apresso de que tudo o que elas dissessem, toda m notcia, precisava ser a maior, tinha de ter mazia, s porque eram elas que falavam, e no os outros. Para elas, pouco importava que o

    oblema e que aquelas histrias se transformassem num prazer e numa necessidade da qual, semrceber, j no conseguiam abrir mo.S que o bairro de Rosane para onde Pedro estava indo dispensava exageros, no disputava amazia de coisa nenhuma. E foi sem nfase e aos poucos que Rosane, certo dia, contou para Pe

    que havia acontecido seis anos antes. Contou com certa vergonha, at com uma secura triste teza e secura que Pedro, por alguma razo, sentiu mais marcadas por causa das linhas magras

    aos e dos ombros meio pontudos da moa.

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    Aquele desgosto j um pouco antigo, que s vezes tomava a forma de um torpor, pareceuncentrar-se e esticar-se ao longo dos ossos de Rosane. Enquanto ela falava, Pedro observava nto do pulso fino uma pontinha de osso que se mexia por baixo da pele marrom ao menorvimento dos dedos. Os mesmos movimentos tambm faziam balanar de leve uma medalhinha

    esa a uma pulseira em formato de corrente.Rosane morava no Tirol desde os dois anos de idade, naquela mesma casa. O aspecto da casaha sido melhor na sua infncia como tambm o aspecto das outras casas, das ruas em volta

    do o resto, na lembrana de Rosane. O Tirol era um bairro construdo inicialmente para alojar

    litares. As casas originais, de feies semelhantes, tinham todas o mesmo tamanho e ocupavamntro de lotes idnticos. O traado das ruas era montono, mas s vezes elas desembocavam emaas redondas de cho de terra ou se desfaziam em terrenos livres sem nenhum propsitopecfico. Nessas ilhas, aglomerados de rvores antigas e de copas densas serviam para ventilauco o rigor quadriculado das ruas e dos lotes.J no havia mais nenhum militar quando os pais de Rosane se mudaram para l. Todos foram

    movidos de uma s vez, aps uns dez ou doze anos de ocupao, e os lotes e as casas foramtribudos pelo governo para quem se cadastrasse e satisfizesse os critrios previstos. O pai e

    e de Rosane nunca tinham ouvido falar do Tirol. Moravam a quarenta quilmetros dali,balhavam como caseiros num stio cujo dono s aparecia de dois em dois meses e no lhes pam salrio fixo.

    Nada possuam, viviam beira da penria e, se no plantassem abbora, aipim, bananas eassem galinhas num canto das terras do stio, teriam dificuldade at para comer. Ainda por cimham de esconder a maior parte do que colhiam, porque o dono, quando vinha, se julgava no dilevar o que tivessem produzido. Aqueles legumes, frutas, aquelas galinhas eram, para o dono o e sua famlia, uma espcie de farra adicional diverso regular dos feriados e das folgas nbalho.

    Um dia, quando a me de Rosane estava no ponto do nibus, um guarda lhe disse que estavamdastrando candidatos a um lote no Tirol. O guarda costumava ficar por ali, s vezes conversavuco com ela, e lhe deu o endereo o escritrio de um deputado. Avisou que ela teria de chm cedo porque ia ter muita gente. Eram centenas de lotes. O pai de Rosane desdenhou a novidno acreditava naqueles cadastramentos, havia se inscrito outras vezes. Mas a me, por algumotivo, cismou, gostou do nome Tirol. Enfiou na cabea que ia conseguir o lote. E a partir da sava disso.No local de cadastramento a mulher que a ajudou a preencher a ficha disse que era melhor n

    nome do marido, declarar que era solteira, sozinha, com dois filhos, em vez de um s. Assim tis chance, explicou. A me de Rosane no hesitou e, em todos os muitos recadastramentosguintes, continuou solteira, me de dois filhos. Quando sabia que o tal deputado ia estar em alggar, ela acordava mais cedo e caminhava trs quilmetros para pegar o nibus. s vezes ficavm almoar, espera da inaugurao ou da cerimnia que houvesse, mas sempre dava um jeito regar uma fotocpia da sua ltima ficha de cadastramento para uma secretria do deputado. Nha carimbo, no tinha assinatura, no tinha nome de nenhum rgo pblico impresso na folha. um papel escrito mo. Porm, assim como ela, todos demonstravam acreditar naquele papelRosane ouviu a me contar essa histria muitas vezes, para muita gente. E a me tanto repetia,

    to se alegrava em descrever os detalhes, em narrar com mincias as horas de espera em filas

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    baixo do sol, tanto martelava que ao ir l s levava no bolso o dinheiro contado das passagene de volta e com tanta afeio falava do po com manteiga conseguido certa vez de graa num

    daria e que a sustentou durante onze horas espera de ser atendida tanto repisou e insistiu,o podia haver dvida quanto ao seu desejo de pr a conquista da casa e do lote no centro da vtodos eles. E de fato era assim.Quando o nome da me de Rosane saiu numa lista no jornal o nome de solteira , o maridl para ver o bairro pela primeira vez e ocupou a casa designada para a mulher. Tinham medxar a casa vazia, ainda que fosse s por um dia, porque havia rumores de invases de lotes. N

    cio ele dormiu no cho sujo de entulho e logo depois arranjou uma esteira. Improvisou reparortas, nas janelas, no telhado, capinou o lote inteiro, j coberto pelo mato alto. Vizinhos lhegaram uns trocados para tambm capinar seus lotes e, mais tarde, para limpar ou fazer fossasvas.Assim ele comeou logo a ganhar algum dinheiro ali mesmo. Alm disso, todo dia haviavimento de novos moradores que chegavam e ele teve a ideia de improvisar um salo de barbentrada do seu lote para atender aquela gente. Ps uma cadeira debaixo de uma tenda feita co

    ma cortina de plstico das que se usam em chuveiro e que ele prendeu no muro. Pendurou um

    pelho num barbante, amolava a tesoura velha num caco de cermica e alinhava o cabelo do frem um pente de plstico vermelho, meio desdentado na parte mais grossa. No dia em que a mesane veio afinal conhecer o Tirol e sua casa, a situao j era essa. Poucos dias depois, troux

    ha pequena, algumas galinhas, e nunca mais voltaram para o stio.Agora o cu j comeava a escurecer e o nibus em que Pedro estava sentado e que levava asssoas de volta para suas casas s havia chegado metade da viagem. Pedro via o motorista esvez em quando pelo reflexo do espelho uns olhos muito rpidos, bem acesos, como que pa

    giar os passageiros e no o movimento dos carros em volta. O nervosismo das pessoas snseguia se expressar em frases e exclamaes soltas, no se encadeava numa conversa.

    O rapaz que deu a mochila para Pedro segurar no seu colo tentava sintonizar um radinho, a meita mexia no boto enquanto a esquerda segurava a barra de alumnio presa ao teto. Queria ouma notcia no rdio atravs dos fones de ouvido, mas acabou resmungando que no adiantav

    dio pegava mal, e alm do mais no iam mesmo falar nada do assunto. sempre a mesma coiso falar uns dois, trs dias depois reclamou a dona da sacola onde havia um telefone e um bfios sujos, a sacola que tambm estava no colo de Pedro. E mesmo assim, s se tiver morridoum. Da outra vez foi assim, continuou.Por um segundo, voltou ao ouvido de Pedro a voz da locutora que tinha dado a cotao do d

    euro, os nmeros da bolsa de valores de Nova York e Londres. Mas o nibus parou num sinahado e um nibus de outra linha, que vinha em sentido contrrio, na pista vizinha, tambm parfaixa. Os dois ficaram bem perto um do outro, os motoristas estavam quase ombro a ombro, q

    nela com janela, um voltado para o leste o outro para o oeste. S uma estreita calada de terraama seca os separava. Parece que j no est passando nibus por l, est a maior confuso, dmotorista da outra linha, com a cabea e o cotovelo para fora. Olha aqui, falando srio, acholhor desviar, fazer um contorno.Alguns passageiros na parte da frente ouviram a conversa e logo se agitaram, reclamaram da rceberam que o motorista tinha ficado preocupado, parecia disposto a desviar-se do itinerrio

    mbora eles tambm estivessem preocupados, insistiram que o motorista precisava ir at o fim e

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    o trajeto normal. Alis, era bom at andar mais depressa, porque j estava anoitecendo e, quais escuro e quanto mais tarde pior seria.O sinal abriu e o nibus arrancou de um tranco. Em seu assento, Pedro tentou ler mais uma linbre Darwin, fingiu que acompanhava o sentido da frase at o fim. Mas na verdade sua atenoeve num rabisco trmulo de criana, um risco a lpis em forma de espiral que atravessava coa as linhas impressas. Aconteceu que Pedro tambm comeava a sentir-se alarmado, ali dentnibus. Muitas palavras rodaram de repente no espao estreito da sua cabea.Veio de relance a impresso de que estava sendo levado fora, em linha reta, para um poo

    z mais fundo, para um corredor escuro que desembocava num tumulto, num caos de brutalidadbia que precisava evitar a todo custo aquelas imagens drsticas, sabia que se aquilo tomassepulso no ia parar mais. Tinha certeza absoluta de que no passava de um disparate, de umaqueza e de uma bobagem. Mas, como de outras vezes, sentiu tambm uma atrao, uma seduga, que o induzia no s a se deixar levar, mas at a encaminhar-se ele mesmo exatamente para sensao quase violenta de que pertencia quilo, mais do que a qualquer outra coisa.Foi uma viso rpida e que lhe deu repulsa. Um calor de vergonha correu na sua testa e ele trarechaar bem depressa aquelas ideias. De todo jeito, o fato concreto era que no podia mais

    nibus. Tinha de ir at o final, assim como muitos outros passageiros. Lembrou que Rosanembm devia estar indo para l, para o Tirol, naquele horrio e pelo mesmo caminho, em outroibus.No Tirol, agora e foi Rosane que chamou a ateno de Pedro para isso, um dia , no havis quase nenhuma rvore. O sol atacava direto as ruas poeirentas, onde o capim cinzento sscia a custo nos cantos dos muros e das pedras. Com o tempo, para abrigar as famlias em

    panso, as casas foram aumentadas e desdobradas de tal modo que no havia mais terreno livrase nenhum dos lotes. Vrias construes ocuparam at a calada, s vezes ainda chegavam umuco alm e, assim, o traado de algumas ruas mudou. Elas ficaram mais estreitas, sinuosas.

    Muitas casas foram subdivididas e revendidas, e tambm ampliadas para cima, medida queegava mais gente para morar. Muitas paredes tinham os tijolos mostra. No aglomerado denstrues novas, mal se podia distinguir as formas das casas originais, que no entanto continuacomo que embutidas na alvenaria recente. As antigas tubulaes de esgoto e as fossas de vint

    os antes j no davam vazo, os dejetos s vezes corriam em canaletas descobertas ou ondecontrassem passagem. A gua limpa se arrastava sem presso no ziguezague dos canos e conexginais em que eram comuns os vazamentos, as emendas e os desvios e podia ficar diaseiros sem alcanar as torneiras da casa de Rosane. Assim, para poder contar com uma reserva

    via bombas e caixas dgua extras em muitas casas.Alm de Rosane, agora moravam na casa o pai e uma tia diabtica. A tia tomava plulas para rvos e para dormir, quando o posto mdico lhe dava uma cartela. A me havia morrido algunses de Pedro visitar Rosane pela primeira vez e ele no a conhecera. A casa tinha ficado bemnor porque o pai, depois que a me morreu, dividiu o lote ao meio e vendeu metade da constru

    ra uns parentes. Estes, mais tarde, revenderam a casa para uma famlia de fora, que depois avendeu tambm.Agora uma famlia desconhecida tinha vindo morar ali, formada por av, me e duas adolesceda uma com uma filha pequena. Nenhuma dessas mulheres tinha emprego, s conseguiam traba

    r tempo curto, distribuindo folhetos nos sinais de trnsito nos fins de semana, e muitas vezes

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    avam latinhas pelas ruas para revender. J de noite, sentadas no cho ao ar livre ou na soleirarta, amassavam centenas de latas com grande barulho. Colocavam a latinha de p sobre um petbua e batiam com um sarrafo grosso, duas, trs vezes, com um estalo cortante, at achatar beO barulho de cada golpe parecia atravessar a cabea de Pedro. Vizinhos to prximos, paredm parede, as duas famlias no se davam. E Rosane ia explicando tudo isso aos poucos para Pando os dois ficavam sozinhos, juntos no sof, diante da televiso, com o volume muito baixorque o pai e a tia j dormiam atrs da parede fina.Na poca em que os lotes foram entregues e os moradores vieram instalar-se, o Tirol s tinha

    de acesso. De um lado, o bairro era bloqueado pelas linhas do trem, cercadas por muros altors, era isolado por uma vasta rea de mata de brejo com mais de cinquenta quilmetros quadamada Pantanal. Cercado por muros e arames antigos, vigiado por militares em guaritas dencreto e ao, todo o terreno do Pantanal pertencia ao exrcito. Tinha sido usado de formatemtica durante dcadas para treinamento de guerra, mas agora, com a populao vizinha mamerosa, havia o risco de acidentes e os militares s realizavam treinamentos leves e muitopordicos.Portanto no incio o nico acesso para o Tirol era atravs da Vrzea um bairro maior, mai

    puloso, mais antigo. Pobre tambm, mas ainda assim com certos recursos que o bairro novo nha. Ou seja, tinha um posto de gasolina, trs farmcias, duas padarias e trs escolas. O nibusnto final ali. No havia outro jeito: para entrar e sair do Tirol era preciso cruzar a Vrzea quanta a ponta.A imagem daquela gente que de uma hora para outra comeou a percorrer as ruas com suas

    oblias e seus pertences gente que parecia vir s pressas e em fuga, e todos ao mesmo tempresena fora de pessoas que eles no chamaram, no conheciam, no queriam ali acabomando nos moradores da Vrzea a ideia de que aquela gente vinha para prejudicar, vinha parsvalorizar a vizinhana de algum jeito, para degradar o bairro todo. Ou, quem sabe, at coisa

    Meses seguidos, dia aps dia, eles viam passar aquelas pessoas diante da porta de suas casasempurrando carrinhos de mo, em bicicletas, em caminhonetes fretadas ou mesmo em autom

    hos. Sabiam que aquilo ia se repetir no dia seguinte e depois, e que ia at aumentar com o temtendiam tambm que elas tinham ganhado lotes e casas de graa do governo, que simplesmentinaram um papel e pegaram uma terra, uma casa com canos, fios e tudo o mais instalado. To se acumulou com rapidez, sob a presso dos rancores mais diversos, e se concentrou numatao, numa hostilidade cerrada, ferida, numa sanha de todo dia e que a todo custo tinha de

    ocurar um jeito de se expressar. Primeiro foram os olhares de lado, de cara fechada. Depois a

    ovocaes a distncia, as janelas partidas com pedradas, no escuro. E logo comearam, aqui epancadarias, as brigas por qualquer motivo.Um canal no meio de uma rua de duas pistas, em tudo igual a vrias outras ruas e a vrios outrnais, se transformou na fronteira entre o Tirol e a Vrzea. Assim ficou estabelecido, de uma hora outra. Ningum sabia dizer quem foi que decidiu, nem como, por fora de que lei. Mas todogo passaram a acreditar que aquela faixa de terra tinha um efeito muito grave sobre quem moraquerda ou direita do canal.Mesmo com tudo isso na cabea e com as pginas do livro bem seguras entre os dedos das mr causa do vento que entrava pela janela aberta do nibus e s vezes empurrava as folhas de p

    dro conseguiu se concentrar na leitura outra vez, ainda que s por algumas linhas. O motivo fo

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    me em letra maiscula, o nome de um lugar conhecido e at familiar, que de repente surgiu insquele pargrafo e que soou quase como um estalo em sua testa. Era um lugar prximo, situado arenta quilmetros de onde o nibus estava agora. Darwin em pessoa tinha passado por l, dizor do livro e tinha caminhado bastante. Hospedou-se em uma fazenda enorme.Darwin contou em suas memrias que, certo dia, saiu para passear pela fazenda uma hora antol nascer. Admirado com a paisagem, pisava de leve a fim de no perturbar o silncio geral

    mpre com o olhar atento aos insetos, s plantas, at aos liquens mais rarefeitos. Ento, de surpviu ao longe, trazido pelo vento, o hino que os escravos entoavam em coro todas as manhs an

    comear a trabalhar.O contracanto se desdobrava em duas vozes, ia e voltava numa escala pentatnica, enquanto lndo uma faixa rosada se dilatava no cu, rente ao cho. O canto soou agradvel demais, Darwigou que os escravos eram muito felizes em fazendas como aquela. Afinal, podiam trabalhar pasbado e no domingo e, naquele clima abenoado, dois dias de trabalho por semana pareciam

    vem cientista ingls mais do que suficientes para sustentar um homem e sua famlia.Ao virar a pgina, porm, Pedro acompanhou a consternao do viajante ao relatar um episdesenciado na mesma fazenda: coisas que s acontecem num pas onde reina a escravido, su

    rwin. O proprietrio das terras, por causa de umas dvidas cobradas na justia, resolveu sepaescravos homens de suas esposas e filhos para vend-los em praa pblica. Na ltima hora n, mas apenas por razes econmicas. Darwin, com espanto e tambm com certa curiosidade,

    rantia que nem de longe passou pela cabea do fazendeiro que seria uma crueldade separarmlias unidas havia muitos anos. Alis, por seu carter bondoso e humano, tratava-se justamen

    m homem superior a muitos outros, na opinio do viajante.Pedro lembrou-se do lugar a que o livro se referia, o lugar onde ficava a tal fazenda silenciose os escravos cantavam de manh. Era agora uma aglomerao de casas pobres que se derramsde a metade de uns morros ridos e quase sem vegetao at as margens de uma estrada de tr

    enso. Carros, caminhes e nibus passavam em alta velocidade sobre o asfalto, em duas mosas pistas separadas por um canteiro de capim seco, enquanto algumas construes precrias sontoavam at quase a beira do acostamento casebres s vezes espetados no alto de pequenrrancos de argila.Pedro lembrou que, nas vezes em que passou por ali e observou a paisagem ao longe, atravs

    nela do nibus em que viajava, teve a impresso de que tudo estava adormecido, encoberto popor dentro e fora das casas. As antenas de tev e os fios bambos nos postes pareciam tambsativados, sem carga. O aspecto, no conjunto, era de um cenrio oco, sem nada por trs.

    Mas no podia ser verdade e, j que no via ningum por ali, Pedro escolhia uma casa e nelaava o olhar. Tentava imaginar como eram os moradores e em que trabalhavam. Porm o nibuanava em velocidade, a estrada traava uma curva comprida e a casa escolhida por ele ficavra trs aos poucos. Por fim sumia, antes que Pedro conseguisse formar qualquer ideia.Fechou o livro agora, ps a mo bem em cima da cara de Darwin e virou a sua cara para a jannibus, a fim de aproveitar o vento seco, brusco, que subiu de uma curta arrancada do nibusrta porque o motorista logo seria obrigado a frear num novo engarrafamento que viria logoante. Sobrancelhas franzidas, olhos meio fechados contra as batidas do ar, Pedro viu uma

    otocicleta passar zunindo rente ao nibus, bem embaixo da sua janela, rompendo o incio do

    garrafamento. Logo depois, outra motocicleta, com um motor de timbre mais grave, um zumbid

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    is rouco e mais estalado. A vespa e a aranha o tirano e a vtima PepsiseLycosa.Pedro olhou para a capa do livro: um achado muito pessoal, no havia dvida, um objeto ligapor um lao bem particular. Mesmo assim, Pedro o deixara na bancada de sua livraria, mistu

    s outros livros para ser vendido. Foi uma distrao, talvez, e se um cliente no tivesse pegadoro e feito o comentrio... O nibus sacudiu quando as rodas passaram por um buraco mais fun

    dos pularam nos bancos mais uma vez e se agarraram aos tubos de alumnio. A velha dor em fotesoura que abre e fecha por dentro do tornozelo atacou de novo e fez Pedro mexer um pouco rna esquerda para um lado e para o outro, a fim de ajeitar melhor o p sobre o cho, na tentati

    contrar alvio.Aquela vez em que o cavalo o pisoteou foi sua ltima tentativa de vender livros na calada.nham dito a ele que era fcil, muita gente estava entrando nos negcios por esse caminho seram e repetiram, os negcios, o dinheiro, e ele mesmo viu na televiso a entrevista de um

    cilogo que falou sobre o esprito empreendedor represado naqueles vendedores de calada.recia fcil, parecia certo, at bonito ou ento Pedro no prestou ateno s ressalvas.De um jeito ou de outro, j no hospital, depois de aguardar as seis horas em jejum exigidas pedico que ia fazer a cirurgia, e depois de mais trs horas simplesmente espera de uma vaga n

    ntro cirrgico a todo momento tomado de assalto por casos de emergncia: acidentados donsito, baleados, esfaqueados , ali mesmo no hospital, a questo para Pedro ficou resolvida,ma vez por todas. Quando viraram seu corpo de lado, quase nu, sobre a gelada mesa de cirurgiara o enfermeiro aplicar a injeo de anestsico na raiz da sua espinha, Pedro j tivera tempo dbra para pensar e decidir: teria de inventar um outro jeito de ganhar dinheiro.Aquela no foi uma boa ideia bem que sua me tinha avisado. Mas ele j no sabia o que te andava envergonhado de viver custa da me, com quem morava num apartamento de doisartos, com sessenta metros quadrados, num prdio antigo, sem elevador, sem garagem, e onde rdade muito poucos moradores tinham carro. Era um apartamento prprio que a me herdara d

    rido, um funcionrio da justia que ao morrer por causa da diabete tambm lhe deixara umanso. Por coisas desse tipo por seu filho no ser, por exemplo, um criminoso ou um dependdrogas que brigava aos berros com a me quase todo dia, como acontecia num apartamentoinho ela se julgava uma pessoa de sorte.Na verdade a me de Pedro era de ndole alegre, acordava e saa da cama quase de um pulo tmanhs, ainda bem cedo. Meio gorda e barriguda, ela muitas vezes se movia tambm quase aotos, gostava de cozinhar para o filho, tinha prazer de cuidar da sua roupa, de arrumar seu quarvia trabalhado fora de casa por um breve tempo. Mas o salrio era muito baixo, o marido no

    entivava, o filho nasceu e ela deixou o emprego. Esperava que o filho fosse advogado, esperae ganhasse mais dinheiro do que o pai havia conseguido. Mas no chegou a manifestar muitacepo quando Pedro abandonou a faculdade gratuita depois de ficar matriculado quase seis aEle bem que tentava estudar e acompanhar as aulas, bem que pensava em fazer os trabalhosdidos pelos professores para conseguir as notas necessrias. No geral, gostava do ambiente, degas, da lanchonete, do bar que ficava em frente faculdade, do outro lado da rua. Gostava atis ou trs professores mais bem-humorados. S que Pedro se distraa com as datas, com os prm o horrio das provas, se distraa com os conceitos e as teorias do direito e, no mximo,nseguia guardar um punhado de palavras-chave e algumas frases feitas e se admirava quando v

    e, usadas por ele, no faziam sentido e no produziam efeito nenhum. Os semestres chegavam

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    m de repente, sem aviso, e ele at se espantava ao ver que no avanava no curso, que tinha deetir as mesmas matrias, uma, duas, trs vezes. Em certas horas, sentia-se um burro, achava qegas e os professores o viam como um incapaz e isso o deixava ainda mais atrapalhado.Na biblioteca de paredes altas e mofadas do prdio quase centenrio da faculdade, Pedro tenos livros e os captulos pedidos pelos professores. Mas sua ateno morria sem flego noontoado de palavras estranhas, alheias. Adormecia nas marteladas sem ritmo de frases cada vis distantes. Os ttulos e subttulos comearam a soar estridentes, hostis, como uns latidos. Se

    hos se desviavam espontaneamente para as imensas rvores de mais de cem anos no parque em

    nte, emolduradas pelas janelas muito altas. Ele se demorava ali toa num torpor, observandohagem densa, a profuso dos galhos, a leve transformao das cores e das sombras medida qbaixava.

    Seguro mesa de cirurgia (com uma fora que lhe pareceu exagerada) por dois enfermeirosrpulentos na certa acostumados a lidar com bbados ou malucos de todo tipo, que chegavamdentados ou agredidos , Pedro viu de repente o rosto muito jovem e muito fresco de uma mbruar-se a um palmo do seu nariz. Envolto na mscara e na touca brancas, s a faixa dos olhoava descoberta, na verdade. Atravs da mscara cirrgica, a boca lhe disse num sopro, num h

    igo, numa voz que ele gostaria de ouvir a vida toda, para sempre: Tudo bem, senhor Pedro?ora, conte at dez, bem devagar. Ele contou, com a f mais pura, com a macia confiana de para o seu bem e sem o menor receio do que aconteceria quando chegasse ao nmero dez. M

    anar o seis, sob o violento claro de uma colmeia de luzes pendurada no teto, Pedro nocontrou mais voz nem nmeros e perdeu de todo a conscincia.Gostaria de ter podido contar at dez, quando o cavalo o atropelou. Gostaria de ter contado pnos at seis, quando o casco ferrado esmagou seu tornozelo na calada.O negcio com livros usados tinha sido sugesto do Jlio, um amigo um colega de faculda

    uito estudioso. Ele e Pedro entraram no curso no mesmo ano e, quando Pedro abandonou as aul

    uma vez por todas, Jlio j estava formado e trabalhava numa firma de advocacia bastantespera, onde havia estagiado graas indicao de um parente.Durante o curso, Jlio fazia o possvel para incentivar o amigo, pressionava para estudarem jes das provas, socorria Pedro com autnticas aulas particulares, tentava at dar cola para elerante as provas, ou pelo menos tentava ensin-lo a colar direito. No fundo, e de um modo atpreendente para quem visse de fora, Jlio considerava Pedro mais inteligente do que ele e

    egava a se irritar com o desinteresse do colega pelas formalidades mais triviais do curso.Jlio tinha uma cara grande, risonha, redonda, uma expresso amistosa em que no se percebi

    ase nenhum ngulo de osso. O tronco encorpado, largo, recheava com fartura os ternos que elessou a vestir todos os dias, com muita naturalidade, assim que se formou e comeou a trabalhama de advocacia. Foi nessa mesma firma, poucos anos depois, que Pedro conheceu Rosane. Epeira, fazia faxina, mas tambm atendia telefones, ficava na recepo e, quando pediam, fazia uns servios no computador, pois tinha frequentado um curso gratuito e sabia mexer nos princ

    ogramas.Pedro no tinha ternos. Por economia, s vestia roupas compradas na calada, em feirinhas dem camels. Eram sinais que Rosane logo identificava e entendia prontamente. Havia aprendidsde criana essa linguagem. Na verdade, quase tudo, tanto os objetos quanto as pessoas, se

    duzia nos termos desse idioma quem comprava o que e por quanto e Rosane nem tentav

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    aginar como seria possvel viver fora dele. Por outro lado, notou que Jlio e Pedro se tratavamo iguais e at mais do que iguais. Isso no era comum, sobretudo em pessoas que primeta traziam marcas to diferentes e mesmo opostas. Assim, logo de sada ela ficou curiosa.Quando entrava no escritrio do Jlio para servir o caf, Rosane se demorava um pouco maisestava ateno no que os dois conversavam. Pedro, ao contrrio de Jlio, falava pouco e baixmpensao olhava olhava muito , olhava sem parar. Olhava uma vez e olhava de novo.sane tinha a impresso de que ele estava fazendo uma lista na cabea, tentava arrumar numa ocoisas que via, mas no ficava satisfeito. Pedro queria alguma coisa, sem saber o que era.

    ocurava, sem saber o que estava procurando. Era diferente e Rosane no se lembrava de ter vma pessoa assim. Foi ficando curiosa, queria saber o que era aquilo. Pedro, numa reao fora dmum, no se intimidou com a curiosidade dela, e os dois comearam a sair juntos depois dopediente.Ele logo a levou para um hotel muito barato, num sobrado velho, onde puderam ficar sozinhosarto durante uma hora. Os degraus da estreita escada de madeira, onde s subia uma pessoa deda vez ela na frente, ele atrs , estavam gastos, abaulados no meio, e com borres de gorparedes do quarto tinham manchas de bolor e o ventilador no teto trepidava meio frouxo ao r

    lo jeito de Pedro, por seus olhares ao redor e por suas perguntas ao recepcionista, no trreo,sane percebeu que ele nunca tinha estado l. Portanto, raciocinou ela, algum havia sugerido ogar, e no podia ser o Jlio ele usaria outro tipo de hotel, mais caro.Tempos depois, Rosane soube que o hotel era comentado pelos estudantes, ainda no tempo emdro cursava a faculdade. Ele continuava agora a morar com a me, como na poca da faculdadsua pressa, naquela emergncia, foi o nico lugar que veio sua lembrana. Nunca passava pnem sabia se o prdio ainda existia, chegou a temer que o tivessem demolido. No fim, achou uma sorte especial, e tambm um bom sinal para eles, o hotel ainda estar funcionando.

    Naquela altura, j fazia meses que ele no ficava com uma mulher nenhum contato fsico. P

    e, ele no sabia. J estava virando um problema a mais, como se no bastassem os outros. Quasane apareceu, segura de si e vontade, Pedro nem percebeu que era a mulher mais pobre comem havia sado. S mais tarde, com surpresa, e j com uma certa preocupao, ele se deu contdeu conta de que aquilo a deixava mais vulnervel, mais frgil, a despeito de toda sua seguransembarao.Entre os detalhes de Rosane que ele comeou examinar naquela ocasio, por algum motivo Peconcentrou no cheiro. Era uma mistura de aromas que ele no conhecia. Um cheiro meio apagave, mas constante, e que fazia certa presso sobre ele. No vinha de uma loo, de um xampu

    dro cismou: parecia vir de alguma outra coisa quem sabe vinha da infncia, pensou ele, dogar onde Rosane tinha crescido. Pedro inventava explicaes e de repente se concentrou na bos dentes, l no fundo, nos dentes de trs. E a partir dos dentes Pedro deteve a ateno nos ossompridos de Rosane e em como ela era toda magra.Na situao em que estava, a carncia de Pedro tomou o aspecto de um entusiasmo. Rosane, pa vez, no viu perigo quer dizer, ele no podia ser um tarado, um ladro ou um espancador lheres. Alm disso, ela no se julgava to indefesa ao contrrio. A partir da foi levada poeresse de muitas faces.Rosane gostava de sexo, gostava daquele calor, daquela entrega. Desde bem nova, no via nis

    nhuma complicao. Ao contrrio, era antes uma diverso e no se misturava com nenhum tipo

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    ncia as carncias para ela eram bem mais definidas e concretas. No entanto logo de sadae de notar que nunca havia transado com um homem que tivesse cursado uma faculdade, e umuldade pblica, um homem que tivesse um amigo advogado e um advogado, ao que parecia

    minho de ganhar muito dinheiro, a exemplo do patro. Nunca havia transado com um homem quorasse num bairro como aquele onde Pedro morava, um bairro, alis, aonde ela nunca tinha idoinda por cima num apartamento prprio, embora fosse da me.Depois do hotel, no ponto, espera do nibus para voltar para casa, Rosane contou meio rinde, por causa dele, tinha perdido a aula de ingls daquele fim de tarde. Havia conseguido uma

    setenta e cinco por cento num curso de frias com a ajuda do Jlio, de umas cartas escritas po, e estava pagando com bastante esforo os vinte e cinco por cento restantes. E com o mesmo

    foro estudava para tirar as notas mnimas exigidas para uma bolsista. Ainda atenta aos nibusaproximavam pela rua para no perder o seu , ela abriu a bolsa e mostrou a fotocpia dro do curso de ingls, com as folhas presas numa espiral e encapadas de azul.Pedro disse que ia tentar arranjar algum material didtico para ela entre os livros de segunda sua livraria. Contou que tambm sabia um pouco de ingls: na adolescncia, tinha feito os cin

    os de um curso particular pago pela me. Lembrou e at disse para Rosane que a me tambm

    via conseguido uma bolsa mas no sabia de quantos por cento.S por um instante, com surpresa, sentiu-se ligeiramente culpado diante de Rosane. Talvez pober tanto ingls quanto devia, depois de ter aula durante cinco anos. Talvez por no saber deantos por cento era o desconto e haver nisso um certo descaso pelos esforos da me. E assimhou tambm que sua culpa era em relao me, de quem por um momento, naquela situao, mbrou meio constrangido.Sentado junto janela do nibus, com a bolsa da mulher e a mochila do rapaz no colo, ambasomodadas embaixo do livro sobre Darwin, Pedro via l fora as pequenas luzes vermelhas queastavam em filas desalinhadas at perder de vista. Os carros e os nibus tolhidos num

    garrafamento j haviam acendido as lanternas traseiras, apesar de ainda no ser noiteopriamente. Ele observava como as lmpadas, num ritmo entorpecedor, brilhavam mais fortesis vermelhas por um momento, numa espcie de sincronia toda vez que os motoristas punham freio o que agora acontecia a todo momento, numa sequncia que comeava ao longe,

    osseguia at chegar aonde Pedro estava e passava para os veculos que vinham atrs.Alguns passageiros que tinham dormido desde o incio da viagem j estavam acordados coaz de bon no banco na frente de Pedro. O rapaz no conseguia conter um ou outro bocejo,

    quanto conversava com a mulher ao seu lado de uns quarenta e cinco anos e com uma verru

    ande e peluda logo abaixo da orelha. Contava que, anos antes, os invasores tinham erguido umrricada bem na entrada da sua rua, com pneus em chamas, lates de lixo e um carro virado. Nardade, era um beco, um corredor que se estendia por uns vinte metros entre duas fileiras de poanelinhas as casas apoiadas umas nas outras. Assim, naquela hora, ningum podia entrar ner da rua.Ao voltar da escola j no incio da noite, o rapaz chegou at uns trinta metros da sua rua, viuuela fumaceira preta que se esticava para o alto, viu as contores do fogo, avermelhado no marelo nas beiradas, olhou bem para as chamas, que se abriam e se fechavam no ar, enquanto seondas de calor baterem forte na sua cara, mesmo quela distncia. Depois de ficar alguns min

    hando e olhando, sem saber o que fazer, ouviu uns tiros avulsos por trs da barricada e das ch

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    epois outros tiros, estampidos mais graves, mais afobados. Teve de pegar outro nibus e passite na casa de um tio, noutro bairro, longe dali. Sem saber onde andariam a av e o irmo, ele nseguiu dormir direito naquela noite.Pedro ouviu tudo isso enquanto o nibus andava e freava, em arrancadas curtas, bruscas. O frevezes guinchava por baixo do cho. Todos se sacudiam para a frente e para trs. O motor cortpensamentos com roncos irritados. Um nibus passou lentamente em sentido contrrio. Atravs janelas, os rostos tanto de quem estava sentado como dos que viajavam em p olharam para ssageiros do nibus de Pedro. Havia neles uma curiosidade, uma ateno excessiva. Pareciam

    ocurar alguma coisa e, atravs dos vidros, devassavam a aflio das pessoas e, ao mesmo temspejavam dentro delas sua prpria aflio.Uma garota at apontou de leve com o dedo, chamando a ateno de algum a seu lado. Pedroegou a ter a impresso de que alguns passageiros do outro nibus estavam beira de falar pars, beira de lanar um grito atravs das janelas, quem sabe um aviso, uma advertncia, antes dois nibus se afastassem. Mas hesitavam desistiam. O certo era que havia uma seriedadeomum nas suas feies, inclusive na cara de um adolescente de pescoo magro, cabelo

    scolorido ou pintado de cor de ferrugem , com um borro de vitiligo na testa, e que obse

    olhos de Pedro com mais demora, com certa insistncia incmoda. At que a ltima janela, afssou e o nibus foi embora.Pouco frente, retido em mais um engarrafamento, o nibus de Pedro ficou lado a lado com uibus da mesma empresa, que fazia o mesmo trajeto do nibus de Pedro, mas vinha em sentidontrrio ou seja, de volta para o centro da cidade. O motorista apoiou o cotovelo na beiradaabea meio grisalha na janela. Abanou o brao esquerdo todo do lado de fora, sacudiu no ar a

    ande e mole, onde reluzia um anel grosso, cor de prata, e transmitiu um aviso para o motorista ibus de Pedro: a empresa deu ordem para nenhum motorista ir at o fim. No queriam ter maisibus incendiados foi o que disseram. A ordem era desviar e ir deixando os passageiros ao

    ngo da linha do trem. Mas nem mesmo junto da linha do trem o motorista podia passar: tinha dguir por uma via paralela, a uns quinhentos metros da linha do trem, onde por enquanto pareciais seguro, alertou o outro. E foi embora.J no era boato, agora era oficial. Soaram palavres entre os passageiros, a mulher que deixcola plstica com fios e um telefone no colo de Pedro chegou a fazer cara de choro, sua boca sntraiu por um momento, a pele tremeu em volta dos lbios. Mas ela se conteve, fechou os olhopirou fundo. Nisso, l na frente, alguns passageiros quase se debruaram sobre o motorista, sealtaram. Outros gritaram para ele de longe um mais descontrolado at ameaou depredar o

    ibus ali mesmo de uma vez, se ele no seguisse o trajeto normal. Podia no ter muita lgica, ncunstncias afinal, queriam fugir ou no? , mas mesmo assim, com ou sem lgica, para eseu atordoamento, serem deixados para trs parecia m-f, parecia uma ofensa e uma traio,smo o pior de tudo.O motorista ficou vermelho, inflou um pouco o pescoo, remexeu-se no seu banco para um ladra o outro, mas se controlou. E Pedro viu pelo espelho retrovisor interno como seus olhos qualhavam de tanta ateno embaixo das sobrancelhas muito franzidas e quase juntas, quase trepa

    ma na outra, no ponto exato onde comea o nariz. Ao mesmo tempo, Pedro notou que algunsssageiros pegaram os celulares e tentaram fazer contato, em busca de alguma soluo, de algu

    minho. Pediram a ajuda de um parente ou amigo, e logo uns quatro deles disseram que iam des

  • 7/25/2019 Rubens Figueiredo - Passageiro Do Fim Do Dia

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    certa iam dormir fora de casa naquela noite.Era noite de sexta-feira e j fazia mais de seis meses que Pedro se acostumara a dormir naque

    gar, naquela casa, naquela cama, no Tirol nas sextas-feiras. Mesmo assim no conhecia muim o Tirol, e menos ainda seus arredores. A tal rua a quinhentos metros da linha do trem era umstrio para ele. Na situao, qualquer coisa desconhecida tinha o efeito de aumentar a ameaaoduzir a imagem de um risco ainda maior e ainda por cima noite. Calculou que Rosane tambm tivesse de saltar do seu nibus l, na mesma rua que ele. Mas como encontr-la? Rosaneha um celular, mas Pedro no: depois de perder trs aparelhos, havia desistido.

    Numa daquelas noites de sexta-feira ou de sbado, sentados diante da televiso, Rosane explira Pedro: s depois de alguns anos construram um viaduto e uma passarela de pedestres por cs linhas do trem e a, afinal, o Tirol ganhou outra via de acesso, independente da Vrzea. No is necessrio cruzar a Vrzea inteira para chegar ao Tirol nem para sair de l. S que, duranteueles anos, tinha se formado uma rivalidade to forte entre os moradores dos dois bairros queuo do viaduto, exigida desde tanto tempo, s veio piorar a situao. Um luxo, um privilgiois. Na verdade, a partir de um ponto, tudo o que se fazia, tudo o que se dizia e at o que apena

    nsava, por mais refletido e bem intencionado que fosse, parecia apenas piorar mais ainda a

    uao.Pedro havia comprado o sof em que ele e Rosane estavam sentados, havia comprado tambmcho onde os dois dormiam o colcho anterior tinha um buraco num dos lados, uma das mava quebrada. Eram presentes de Pedro, pagos prestao, e o pai de Rosane gostava, agradpequena loja de livros de segunda mo gerava uma receita minguada para Pedro, mas no davejuzo e ele tinha poucas despesas, morando na casa da me. Ento, no sof, enquanto lixava ahas sem esmalte mas rosadas, por causa da carne e do sangue que se enxergavam de leveavs das unhas , e enquanto podava as cutculas minsculas com uma tesourinha cromada,

    bricada na China, Rosane foi explicando aos poucos para ele.

    O Tirol, quando ela era pequena, tinha a vida de um bairro normal. As pessoas saam de casanh para trabalhar em construes, em residncias de bairros ricos, em condomnios, em lojaricas. Como seu pai, que havia trabalhado na construo de viadutos, de hotis famosos e

    mo ela mesma que, mais tarde, chegou a trabalhar numa fbrica de refresco, embalado e vendicopinhos de plstico.

    O Tirol ainda foi assim por uns poucos anos aquilo que ela chamava (como outros tambmamavam) de um bairro normal. As pessoas, nas lembranas de Rosane, pareciam menos pobree agora. Contra o fundo da sua memria de criana e de adolescente, aquela transformao, j

    nsumada e sem volta, se apresentava como um processo rpido demais, fcil demais, para quese possvel ter acontecido de fato assim sem resistncia, sem alternativa. E isso ela nonseguia explicar: era preciso engolir e pronto essa era a ideia que estava no ar era o prRosane olhava para Pedro e olhava para a televiso como quem ainda no acredita, como qu

    er tirar uma dvida que no se desfaz, no se abre.As brigas de soco e de pedradas se transformaram em tiroteios, os revlveres deram lugar a fepois a granadas. Os homens que vendiam um tipo de droga passaram a vender dois tipos e ds. Foi instalado, e depois ampliado, um posto da polcia militar mais ou menos na divisa entreis bairros, com viaturas grandes na porta. Os para-choques amassados, a pintura descascada,

    haduras atravessadas no vidro do para--brisa no incio, s de ver j dava medo em Rosan

  • 7/25/2019 Rubens Figueiredo - Passageiro Do Fim Do Dia

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    timamente, aparecia s vezes um veculo blindado, com orifcios retangulares por onde apontanos de fuzis.O posto de polcia era um prdio em forma de cubo, sempre em silncio, com celas gradeadandos, antenas grandes no telhado, janelas barradas por um vidro fosco na frente, em geral escuquase escuras, onde noite, a intervalos, se via passar um vulto, uma sombra corpulenta ou mbraos compridos, uma silhueta que se detinha um momento antes de avanar e sumir num dos

    ntos de sombra.Rosane, ao contar, achava que cada vez menos gente saa de casa para trabalhar ou para ir

    ola, cada vez mais gente ficava em casa ou na rua, toa. Os nomes Tirol e Vrzea comearamarecer nos jornais, na televiso, nos noticirios de crime. Os grupos armados nos dois bairrosreceram crescer e se hostilizavam. Juravam vinganas seguidas. Sem notar, as crianas comeprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e se alimentavamquela rivalidade. Cresciam para a raiva: aquilo lhes dava um peso, enchia seu horizonte quasezio nada seno aquilo fazia delas algum mais presente.Rosane queria explicar para Pedro, queria mostrar um sentido, mas esbarrava em expressesgas, nervosas, e tudo o que parecia estar ao seu alcance era criar uma lista sem ordem. Ele me

    distraa nas cenas avulsas que ela contava e a ateno de Pedro se perdia sem fixar quase nenquncia. Mais que tudo, notava e guardava na lembrana o tom desanimado, o desgosto narganta, na voz quase sempre alegre de Rosane o pescoo comprido em que Pedro distinguiam marcados contra a pele, os anis de cartilagem da traqueia.Na tev frente deles, o anncio de um banco mostrou um casal risonho, de roupas bem passam cartes de plstico coloridos na ponta dos dedos: os dois cartes se tocavam e, com uma faateada que saltava, parecia que os cartes se beijavam no ar. De repente, uma mangueiraguichava em leque por cima de um gramado. Um carro encostava diante da casa recm-pintadaaria espelhava o azul do cu. Uma porta do carro abria, uma criana saltava para fora e corria

    bre a grama. A tela inteira era tomada pela cabea e pelo tronco de uma jovem no impulso de uma piscina, enquanto a pele bronzeada gotejava. Os quinze segundos do anncio se arrastava

    o queriam passar. Tentavam congelar-se, ficar em suspenso, encher a sala e a casa, enquanto PRosane, sem perceber, aguardavam mudos, atentos promessa de um sinal, de uma autorizaora que tambm eles se integrassem quela viso.Mas logo depois dispararam na tela os passos de um homem de terno elegante com uma enormtola prateada na mo. Ele corria com mpeto pelo meio de uma rua larga, no meio dos carros,ssavam bem perto e buzinavam. O homem dava tiros para trs, sobre os ombros, sem parar de

    rrer e quase sem fazer pontaria: voltava a arma sobre o ombro e puxava o gatilho. Entre um tirtro, gritava dois nomes prprios ingleses, que mesmo gritados soaram baixinho na sala nome amigas e conhecidas de Rosane escolhiam para dar aos filhos. Mas os tiros romperam a barvolume baixo do televisor, vibraram mais fortes, e Rosane ento, como se acordasse, como s

    uilo despertasse alguma lgica em sua memria, explicou a Pedro que, agora, j no tinhanidade e nem muito contato com a maioria dos antigos colegas de infncia.Alguns tinham ido embora, alguns estavam presos, alguns tinham morrido quantos? Ela noonta. Mas, entre os que continuavam a morar no Tirol, uma parte dos seus antigos colegas havotado um tipo de vida que mal permitia que Rosane conversasse com eles. O mundo deles par

    erente, retrado, e reduzia-se com tenacidade ao espao fsico do Tirol, do cotidiano do Tirol

  • 7/25/2019 Rubens Figueiredo - Passageiro Do Fim Do Dia

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    mximo, dos seus arredores.Fora dali sentiam-se reconhecidos, ameaados, temidos fora dali s viam rancor e no havupas, linguajar nem maneiras com que pudessem se disfarar. Quase que s saam quandoecisavam ir a algum hospital ou providenciar algum documento. Ir ao centro da cidade, a quasarenta quilmetros dali, como fazia Rosane, e ainda por cima todos os dias, era uma coisa queumas de suas colegas de infncia achavam estranho e at ruim. Para algumas, era mesmopensvel. Torciam a cara s de imaginar. Havia quem nunca tivesse ido ao centro. Algumas deas amigas que nunca tinham ido a nenhum bairro a mais de dez quilmetros de distncia, Rosan

    plicou.Depois de frequentar a escola durante alguns anos, algumas delas mal sabiam ler, trocavam leravam no meio. Encaravam as palavras e as conta