SAHLINS, Marshall. Cultura e História. Apresentação e Introdução 2006

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  • Histria e Cultura

    Apologias a Tucdides

    Marshall Sahlins

    Jorge ZAHAR EditorRio de Janeiro

    Traduo:Maria Lucia de Oliveira

    Consultoria tcnica:Celso Castro

    CPDOC / FGV

  • Preparao de originais: Joyce MonteiroReviso tipogrfica: Eduardo Faria e Elisabeth Spaltemberg

    Projeto grfico e composio: Victoria RabelloCapa: Dupla Design

    Ilustrao da capa: Photodisc

    Ttulo original:Apologies to Thucydides

    (Understanding History as Culture and Vice Versa)

    Traduo autorizada da primeira edio norte-americanapublicada em 2004 por The University of Chicago Press,

    de Chicago, Illinois, EUA

    Copyright 2004, The University of ChicagoAll rights reserved

    Copyright da edio brasileira 2006:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mxico 31 sobreloja

    20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123

    e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Sahlins, Marshall David, 1930-S138h Histria e cultura: apologias a Tucdides / Marshall Sahlins; traduo de

    Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006il.

    (Antropologia social)

    Traduo de: Apologies to Thucydides: (Understanding history as cultureand vice versa)ApndicesInclui bibliografiaISBN 85-7110-899-4

    1. Tucdides. Histria da guerra do Peloponeso. 2. Historiografia. 3. Grcia Histria Guerra do Peloponeso, 431-404 a.C. Historiografia. 4. Fiji His-tria Sculo XIX. I. Ttulo.

    CDD 996.1105-3965 CDU 94(961.1)

  • Sumrio

    Apresentao edio brasileira: Sahlins e Tucdidespor Gilberto Velho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    Termos, ttulos, personalidades e reinos fijianos . . . . . . . . . . . . . . 21

    CAPTULO 1

    A Guerra da Polinsia com apologias a Tucdides . . . . . . 23Comparao entre guerras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26Suponham que fssemos ilhus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Talassocracia e economia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36Carter nacional, ordem cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51Estruturas da histria fijiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Atenas e Esparta como antitipos histricos . . . . . . . . . . . . . . 71A Grcia mito-histrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83Aquele febril desejo de poder pelo poder

    que apenas a morte faz cessar (Hobbes) . . . . . . . . . . . 94Arch: hegemonia sem soberania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102A geopoltica da pleonexia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109A historiografia da natureza humana . . . . . . . . . . . . . . . . 114

    CAPTULO 2

    Cultura e ao na histria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121O beisebol a sociedade representada como um jogo . . . . . 123Digresso: baleias brancas mortas,

    ou da leviatanologia subjetologia . . . . . . . . . . . . . . . . . 133Estruturas de ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148Fazendo histria: os reis divinos das ilhas Fiji . . . . . . . . . . . 152A iconizao de Elin Gonzalez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

  • CAPTULO 3

    A cultura de um assassinato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179Os personagens principais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181Morte em Bau. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188A conspirao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194O filho da irm (vasu) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202

    A cosmologia do parentesco cruzado . . . . . . . . . . . . . . . . 203O filho da irm (vasu): poltica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208Vasu e a poltica matrimonial de Bau . . . . . . . . . . . . . . . 211Vasu e luta fratricida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216

    A pr-histria do assassinato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222Estruturas e contingncias da conjuntura . . . . . . . . . . . 251Coda: estrutura e contingncia na histria . . . . . . . . . . 261

    Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265

    Referncias bibliogrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293

    Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311

    Crditos das ilustraes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313

    ndice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315

    Termos, ttulos, personalidades e reinos fijianos . . . . . . . . . . . . . 331

  • 7 APRESENTAO EDIO BRASILEIRA

    Sahlins e Tucdides

    Gilberto Velho*

    Este livro uma espcie de suma da obra de Marshall Sahlins. Por isso mesmo,apresenta e aprofunda algumas das principais questes da antropologia contem-pornea. A trajetria do autor rica e diversificada, passando por vrias etapas,com revises de perspectiva e sempre introduzindo novas perguntas capazes dedespertar discusses importantes e debates acadmicos. H mais de quarenta anosproduz textos instigantes e densos, com grande repercusso, inclusive no Brasil,onde boa parte de sua obra encontra-se j publicada.**

    Aqui, seu grande interlocutor o historiador grego Tucdides, autor da clebreHistria da Guerra do Peloponeso. O fabuloso estudo comparativo de Sahlins entreaquela guerra clssica e as guerras polinsias uma demonstrao magistral dacompreenso e do uso recprocos dos conceitos de cultura e de histria. Assim, eled continuidade aos trabalhos anteriores, retomando temas como estrutura e evento.A utilizao que faz da noo de cultura, associada pesquisa histrica, exorciza ecombate qualquer tipo de determinismo cultural, ao mesmo tempo que relativizao universalismo de Tucdides e seus herdeiros, rediscutindo de modo sofisticado aproblemtica das particularidades culturais.

    Entre outras reflexes provocadoras, Sahlins examina o lugar do desempenhoindividual na cultura e na histria, lanando mo, para isso, entre outros aspectos,de um fascinante episdio da histria do beisebol norte-americano. Ainda nessadireo e dando prosseguimento sua anlise de eventos e aes individuais ,narra a histria de um assassinato poltico ocorrido nas ilhas Fiji em meados dosculo XIX, com foco na lgica cultural e suas variaes.

    No desenvolvimento deste livro essencial, Sahlins navega e atravessa diversasreas e fronteiras disciplinares, como a literatura e a filosofia. Para mim, alta-

    * Professor titular de Antropologia Social, decano do Departamento de Antropologia do Museu Nacio-nal, UFRJ, e membro da Academia Brasileira de Cincias.

    ** Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar, 1983; Ilhas de histria, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990; Comopensam os nativos: sobre o Capito Cook, por exemplo, So Paulo, Edusp, 2001; Cultura e razo prtica, Riode Janeiro, Jorge Zahar, 2003 [1979]; Esperando Foucault, ainda, So Paulo, Cosac Naify, 2004.

  • 8 Histria e cultura

    mente valioso o dilogo que estabelece com Sartre a respeito das relaes entreindivduo e sociedade. A frase sartriana, Valry um intelectual pequeno-bur-gus, no h dvida quanto a isso. Mas nem todo intelectual pequeno-burgus Valry, certamente expressa um dos ncleos bsicos da reflexo de Sahlins sobrea insero e o potencial de singularidade e criatividade dos agentes individuais navida social.

    Por tudo isso, este livro tem uma importncia imensa para a antropologiacontempornea e, em geral, para as cincias sociais e humanas. Em Tucdides,Sahlins escolheu um poderoso parceiro para estabelecer um dilogo que atravessasculos com uma viso madura das diferenas tericas e das abordagens do pensa-mento contemporneo. O autor no tem inimigos tericos. Ele se aproxima maisde um que de outro, critica vrios, sem, no entanto, os desqualificar como, porexemplo, seus comentrios sobre Michel Foucault. Demonstra assim que serieda-de e rigor no so sinnimos de truculncia e intolerncia.

  • 9 INTRODUO

    Este um livro sobre o valor de conceitos antropolgicos de cultura para o estudoda histria e vice-versa, pois tambm mostrar a importncia de certos valores dahistria para o estudo da cultura. Cada um de seus trs longos captulos consisteem discusses etnogrficas de determinados problemas sobre a compreenso dahistria apresentados pelo grande texto de Tucdides a respeito da Guerra do Pelo-poneso. Neste sentido, o livro presta homenagem a Tucdides, reconhecendo-ocomo o ancestral de uma historiografia que ainda persiste entre ns. As apolo-gias do subttulo derivam da crtica representada pela antropologia moderna aosvenerveis ensinamentos de Tucdides aos quais seremos para sempre devedores.

    A origem efetiva do livro foi uma conversa que tive h alguns anos, talvez em1987, com James Redfield, colega e amigo do Departamento de Estudos Clssicosda Universidade de Chicago. Ele ficou extremamente interessado quando eu disseque estava trabalhando com uma guerra ocorrida nas ilhas Fiji em meados dosculo XIX, muito parecida com a Guerra do Peloponeso. De 1843 a 1855, os rei-nos de Bau e Rewa o primeiro, uma potncia martima, o segundo, uma potnciaterrestre, cada qual liderando alguns territrios fijianos menores engajaram-senum conflito de seriedade sem precedentes que terminou questionando a domina-o de todo o arquiplago. As semelhanas com o famoso conflito entre Atenas eEsparta eram tantas que bastaram para que eu e Redfield concordssemos emexplor-las num curso conjunto sobre A Guerra do Peloponeso e a Guerra daPolinsia. A comparao provou-se reveladora tanto para a Grcia quanto paraFiji. Fiquei at mesmo inspirado a escrever um longo texto sobre o reinado dualespartano, destacando as diferenas entre ele e as diarquias complementares deFiji, bem como de diversas outras soberanias cindidas. Em vez de um rei sagradoe um rei da guerra, cada um com suas funes e domnios, os reis espartanos eramgeminados e inseparveis, duplos em todos os sentidos, exceto que um era maisvelho que o outro. Para condensar um argumento complexo que passava porCastor e Plux, bem como por outros reis gmeos da mitologia grega, um dosquais era usualmente gerado por um deus , conclu que os soberanos espartanosrepresentavam algo semelhante a uma verso emprica dos dois corpos do rei. Um

  • 10 Histria e cultura

    era relativamente divino, e o outro relativamente humano, mas, quanto ao resto,espelhavam-se mutuamente: aqui estava uma confirmao duradoura da divinda-de da monarquia. Quando mostrei esse artigo para Redfield, ele admitiu que, de-pois de algumas revises, eu devia public-lo sob pseudnimo.

    Talvez tivesse sido mais sbio fazer o mesmo com este livro. Pois ele tambmse distingue por seus temerrios avanos sobre o territrio disciplinar dos estudosclssicos. A julgar pelos comentrios de Max Weber (tal como foram transmitidospor Paul Veyne) sobre a legitimidade de comparar os atenienses a (os assim cha-mados) brbaros como os fijianos, o exerccio pode ser to ofensivo s sensibilida-des dos eruditos clssicos quanto obviamente ingnuo: A idia de um tipo deigualdade poltico-social na histria que quisesse afinal! afinal! dar a povosbantu e indianos, at agora desprezados de maneira revoltante, um lugar pelomenos to meritrio quanto o dos atenienses simplesmente ingnua (Veyne,1984:52).1

    Contudo, mais que defender aqui os interesses do relativismo cultural, defen-do a relevncia cultural. Se o passado um pas estrangeiro*, ele tambm outracultura. Autre temps, autre moeurs. E, se outra cultura, descobri-la requer, ento,alguma antropologia o que sempre significa alguma comparao cultural. E maisainda quando se trata dos atenienses como Tucdides os descreveu. No texto quese segue, cito a pertinente pergunta de Simon Hornblower: Ter Tucdides algu-ma vez imaginado um tempo em que seres humanos civilizados no falariam oque chamamos de grego clssico? O problema no simplesmente o fato deTucdides ter passado ao largo da cultura cuja histria escrevia, tomando-a comoum dado: trata-se, em vez disso, de sua presuno de que a cultura no importava.Para ele, a cultura no tinha interesse quando comparada a uma natureza humanasubjacente, qual costumes e leis no podem resistir e que, de qualquer modo,garante que, em condies similares, as pessoas sempre agiro de formas bastanteparecidas. Sero movidas pelos mesmos desejos de poder e ganho, as mesmasesperanas de obt-los e os mesmos receios de perd-los. Como disseram os ate-nienses ao desafortunado povo de Melos, que estavam prestes a destruir: Dosdeuses acreditamos, e dos homens sabemos que, por uma necessria lei da nature-za, onde quer que possam, eles mandam (Tuc. 5.105.2). Pode-se concluir queTucdides ainda est muito presente entre ns, no apenas porque suscitou impor-tantes questes sobre sociedade e histria, como tambm porque lidou com elasda mesma forma que ns: recorrendo racionalidade prtica universal dos sereshumanos, nascida de seu inato auto-interesse.

    * The past is a foreign country; they do things differently there, epgrafe do romance The Go-between, deLesley Poles Hartley (1895-1972). The Past is a Foreign Country tambm o ttulo de um conhecido livrodo historiador David Lowenthal (Cambridge University Press, 1985). (N.T.)

  • Introduo 11

    No coincidncia que o interesse por Tucdides tenha se reavivado na EuropaOcidental durante o sculo XVII, por conseguinte, com o desenvolvimento do capi-talismo moderno e por escritores como Thomas Hobbes. (Plutarco, Xenofonte eTito Lvio parecem ter sido mais populares na Itlia renascentista, ao lado de Platoe Aristteles, mas Tucdides foi celebrado por Hobbes, Hume e muitos outrosdesde ento.) Mesmo sem considerar as passagens particulares de Tucdides cujosecos encontram-se na concepo hobbesiana do estado de natureza, como pode-ramos deixar de reconhecer a presena em ns mesmos daquele esprito agonsticoe criativo dos gregos, como diz Vernant (1968:10), no apenas nos conflitos entrecidades, mas em todas as relaes humanas e at na prpria natureza? E hoje,no incio de um novo milnio, Tucdides parece mais relevante que nunca. Numaera marcada pelo triunfo global da ideologia neoliberal, para no mencionar adespudorada fala do imperialismo norte-americano, confortador saber que nossacobia uma inevitvel inclinao humana. Nada de que nos envergonharmos.Apesar de ter constitudo o pecado original, a autogratificao, em suas diversasverses cientficas modernas da sociobiologia e da psicologia evolucionista economia da escolha racional e ao realismo nas relaes internacionais umafalha realmente afortunada. Da a atual popularidade de Tucdides. Embora opersistente foco de Tucdides no auto-interesse possa ser ofensivo para alguns, suanoo de que o auto-interesse d origem ao esforo, e de que o esforo gera op-es, faz de sua histria da Guerra do Peloponeso, escrita h 2.400 anos, um cor-retivo para o extremo fatalismo bsico do marxismo e da cristandade medieval(Kaplan, 2002:45-6).

    Teria sido interessante confrontar diretamente os espartanos e no os ate-nienses com o mesmo corretivo. A crer nas descries do carter habitual dosespartanos feitas por Tucdides, ou eles eram deficientes em avareza humana e nodesejo de poder, ou ento teramos de supor que aquilo que tem interesse e valorpara um povo construdo culturalmente, e no naturalmente e que o que querque exista de (supostamente) inerente na natureza humana pode ser sublimadode vrias maneiras para que faa sentido. Dadas as diferenas entre os austeros econservadores espartanos e os empreendedores atenienses, o interesse da Histriade Tucdides pode residir na demonstrao da relatividade cultural da razo prti-ca, e no em sua validade universal. Bem pode ser que a noo de uma naturezahumana competitiva, auto-interessada, como a mola mestra da histria seja elaprpria uma autoconscincia cultural particular, uma ideologia particularmentegrega e em especfico ateniense qual Tucdides deu voz ativa. Nesse caso, noentanto, ao advogar alguma antropologia da Histria de Tucdides, no estou di-zendo que podemos simplesmente levar em conta o celebrado ponto de vista donativo pelo menos, no daquele celebrado nativo.

  • 12 Histria e cultura

    Como no caso da prpria etnografia, uma antropologia da histria exige quese esteja fora da cultura em questo para poder conhec-la melhor. Existe umcerto paradoxo na idia de que Herdoto, que nunca perdeu sua identidade en-quanto descrevia os costumes e mitos dos persas ou dos egpcios, deva ser vistomais como antroplogo que Tucdides, cuja Histria da Guerra do Peloponeso foi es-crita do ponto de vista de um participante nativo (um general ateniense expulsodo exrcito). A implicao disso que precisamos de outra cultura para conheceroutra cultura. De qualquer modo, claro que no existe um ponto de vista nativonico, apenas inmeras posies do sujeito diferentes, cada uma com sua visointeressada de um fenmeno que , em si mesmo, intersubjetivo e maior quequalquer uma delas. Esta uma razo para se ter um observador externo beminformado. Alm disso, para recordar a observao de Ruth Benedict de que altima coisa que um peixe inteligente teria a probabilidade de nomear seria a guana qual vive, quanto podem os participantes conhecer da cultura por meio da qualconhecem? Estou assumindo a posio bastante hertica de que a autoridadeetnogrfica (cf. Clifford, 1983) censurada de maneira prematura tem de ser trazidade volta da Sibria epistemolgica para a qual foi banida. Certamente importanteapreender o(s) ponto(s) de vista do nativo (ou dos nativos). Mas, para isso, preciso ter o que Mikhail Bakhtin louvava como a compreenso criativa do olharexterno antropologicamente bem informado. necessrio o que Bakhtin chamouexotopia, um ponto de observao externo cultura.

    Como foi observado e comprovado por Tzvetan Todorov (1984:107-12), a noode exotopia referia-se, de incio, relao independente do leitor do texto literriocom seu autor. Mantendo a integridade interpretativa, o leitor ou a leitora criativa-mente aperfeioam os significados e as intenes autorais. A experincia do texto enriquecida pela experincia do leitor. Numa certa altura, no entanto, Bakhtinmuda o registro do dilogo. Move-se para alm da relao entre sujeito e sujeito,passando para o nvel de compreenso intercultural. Est em questo agora aexternalidade do etngrafo e, desse modo, a cultura em observao passa a servista a partir da experincia de outras culturas incluindo em especial a do pr-prio observador. Uma dada forma de vida torna-se compreensvel por sua posiorelativa no arranjo geral de outros esquemas culturais. Bakhtin, como salientaTodorov, oferece uma base melhor para a integridade da antropologia do que a queseus praticantes apresentaram. Aqui est a passagem de ouro de Bakhtin reprodu-zida na ntegra, comeando com sua crtica a uma etnografia feita do ponto devista dos nativos:

    Existe uma imagem duradoura que parcial, e portanto falsa, segundo a qual, para melhorentender uma cultura estrangeira, preciso viver nela e, esquecendo a sua prpria, olhar o

  • Introduo 13

    mundo com os olhos da outra. Como j disse, esta uma imagem parcial. certo que entrarem alguma medida numa cultura estranha a ns e olhar o mundo com os seus olhos umpasso necessrio no processo de compreend-la; mas se a compreenso se exaurisse nessemomento teria sido no mais que uma nica duplicao, sem agregar nada de novo ouenriquecedor. A compreenso criativa no renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, suacultura; no esquece nada. A principal questo da compreenso a exotopia de quem faz acompreenso no tempo, espao e cultura em relao quilo que quer entender criativa-mente. Mesmo o prprio aspecto externo de uma pessoa no verdadeiramente acessvelpara ela, que no tem como o interpretar no todo; espelhos e fotografias provam-se inteis;o verdadeiro aspecto externo de uma pessoa s pode ser visto e compreendido pelas outrasgraas exotopia espacial de que estas dispem e ao fato de que so outras.

    No reino da cultura, a exotopia a mais poderosa ferramenta para a compreenso. apenas aos olhos de uma outra cultura que a cultura estranha revela-se mais completa eprofundamente (mas nunca exaustivamente, porque viro outras culturas que a vero e en-tendero ainda mais). (Bakhtin apud Todorov, 1984:109-10)

    preciso outra cultura para conhecer outra cultura. Ofereo agora uma pe-quena demonstrao etnogrfica (ou etno-histrica) que tambm tem a vantagemde mostrar que o dilogo recproco, j que se refere aos comentrios reveladoresde um alto dirigente das ilhas tonganesas no incio do sculo XIX sobre isso que oseuropeus chamam de dinheiro. O exemplo tem certo interesse adicional no pre-sente contexto, pois boa parte deste livro est igualmente preocupada com o co-mentrio elaborado pela cultura fijiana sobre as prticas dos ancestrais europeus,incluindo as propenses pecunirias dos antigos atenienses. (A viagem de canoaentre Tonga e Fiji levava poucos dias.) Neste caso, Finau, o chefe tongans, res-ponde a uma descrio do dinheiro feita por William Mariner, um jovem inglsque estava h vrios meses nas ilhas, secundado por outro tongans que sabiaalgumas coisas sobre os hbitos dos Papalagi (homens brancos) por ouvir con-tar. A conversa deve ter sido inteiramente na lngua tonganesa.2 Mas o que ouviraat ento no satisfazia Finau. Ele ainda pensava que no tinha sentido as pes-soas darem um valor ao dinheiro quando no poderiam ou no iriam dar a ele umemprego til (fsico) (Martin, 1827, 1:213). A histria continua com o relato deuma fala:

    Se, disse ele, dinheiro fosse feito de ferro e pudesse ser convertido em facas, machados ecinzis, haveria algum sentido em dar um valor a ele; mas, do jeito que , no vejo nenhum.Se um homem, acrescentou, tem mais inhame do que quer, que troque por carne de porcoou gnatoo (tecido de casca de rvore). claro que o dinheiro muito mais acessvel e conve-niente, mas, ento, como no se deteriora quando guardado, as pessoas vo acumul-lo, emvez de partilhar com os outros, como um chefe tem de fazer, e vo tornar-se egostas; aopasso que, se a principal propriedade de um homem fossem provises, como efetivamentedeve ser, sendo o mais til e o mais necessrio, ele no as poderia armazenar, pois estraga-riam, e seria obrigado a troc-las por alguma coisa til ou partilh-las com seus vizinhos,

  • 14 Histria e cultura

    chefes inferiores e dependentes em troca de nada. E concluiu dizendo, Agora entendo muitobem o que torna os Papalagis to egostas esse dinheiro. (Martin, 1827, 1:213-14)

    A descoberta da economia de Finau bem parecida com a mais famosadelas, a de Aristteles: Certamente um absurdo que se deva contar como rique-za algo que um homem pode possuir em abundncia e ainda assim morrer defome (Pol., 1257b; cf. Polanyi, 1957). E na perspicaz exposio dos hbitos eco-nmicos europeus feita pelo chefe aprende-se tambm um bocado sobre os pr-prios costumes tonganeses. (O pronome reflexivo se nesta ltima frase no incidental: as relaes epistemolgicas agora so, no mnimo, tridicas, envolven-do tambm o antroplogo.) Finau d voz ao sistema tongans de produo parauso e economia poltica de um poder de chefia baseado na redistribuio dariqueza, em lugar da acumulao lucrativa (como capital produtivo). Como nolamento de Aristteles diante de uma economia ateniense que vai chegando aofim, Finau fala de uma vida material inserida numa ordem social especfica, e,assim, de um sistema de produo com objetivos qualitativos e finitos. A quanti-dade de propriedade familiar suficiente para uma vida boa no ilimitada, escre-veu Aristteles, nem da mesma natureza descrita por Slon no verso Nenhumlimite riqueza pode ser encontrado no homem (Pol., 1256a).

    Permitam-me antecipar alguns resultados de comparaes similares aqui ar-riscadas finalmente! finalmente! entre a Guerra do Peloponeso tal como descri-ta por Tucdides e a Guerra da Polinsia ocorrida no sculo XIX entre os reinosfijianos de Bau e Rewa.

    Um dos resultados refere-se ao carter peculiar dos imprios de Atenas e Bau,tanto como formaes polticas quanto em seus modos de dominao. Alm dassemelhanas como potncias martimas, Atenas e Bau exerciam uma hegemoniaimperial sem uma verdadeira soberania. Os povos submetidos eram economica-mente tributrios e subservientes do ponto de vista poltico, mas permaneciamampla ou totalmente independentes em termos administrativos. Atenas e Bau in-terferiam nas vidas de outros povos para criar regimes subordinados iguais aosseus ou, pelo menos, submissos a eles. Mas, ao contrrio de imprios conquista-dores como o romano ou os regimes coloniais europeus de tempos modernos embora se assemelhando, em aspectos significativos, ao atual imperium norte-ame-ricano , controlavam outras unidades polticas sem govern-las. De que maneirasfaziam isso, ento, se estavam ausentes as instituies de governo direto?

    Bau e Atenas dificilmente eram as nicas potncias hegemnicas a governarpor intimidao, mas eram atpicas ao recorrerem a uma poltica de demonstra-o, e no de administrao. Eram imprios de signos: de exibies positivas degrandeza e cultura e de exemplos draconianos de violncia e terror excessivos

  • Introduo 15

    em ambos os casos, pois essas demonstraes de fora destinavam-se a levar ou-tros povos submisso, com graus variados de aquiescncia da parte dos subordi-nados. Se, nas pginas de Tucdides, de um lado Atenas aparece como a escola daHlade, de outro ela a cidade tirana. Se seus monumentos, seu teatro e seusfestivais eram, em grande medida, mais grandiosos que os das cidades rivais, prin-cipalmente da austera Esparta, sua crueldade tambm era mais que proporcional aqualquer resistncia que a ela se fizesse dado que pretendia atender ao objetivoadicional de aterrorizar os outros. Puna-os como merecem, Clon exorta osatenienses em resposta a uma rebelio em Mitilene, e ensine a seus outros alia-dos que a punio para a rebelio a morte. Confrontado com um desafio a suaautoridade semelhante a este, o grande senhor da guerra de Bau, Ratu Cakobau,disse a um visitante europeu que, se no matasse e comesse o chefe rebelde, todaa Fiji riria dele. Nesses imprios, a demonstrao de superioridade tornou-se umaobsesso, algo como um objetivo em si mesmo que tambm os conduziu ao fim.

    Fiji mostra o caminho para outro ponto de interesse historiogrfico: uma cr-tica da excessiva dependncia do que pode ser chamado de histria-tradio custa da histria-dialtica. Os sistemticos contrastes de natureza cultural entreBau e Rewa chamam a ateno para o processo de oposio complementar o queGregory Bateson chamou de cismognese complementar como um modo deproduo histrico. Os dois reinos so antitipos estruturais, transformaes deum no outro. De fato, as grandes genealogias aristocrticas de Fiji mostram adinastia governante de Bau como derivada do filho da irm, e usurpadora da anti-ga linhagem real que inclui os reis de Rewa; isso ilustra literalmente o aspecto deque suas diferenas tm parentesco umas com as outras. Aqui est uma diferen-ciao por competio do tipo recentemente reconhecido como poltica de identi-dade cultural, resultando que as principais instituies e valores de cada socieda-de aparecem como formas invertidas da outra.

    E no eram igualmente interdependentes as bem conhecidas oposies entre acosmopolita Atenas e a xenofbica Esparta? No perodo clssico, muitas das not-veis diferenas culturais entre Atenas e Esparta eram formaes ento relativa-mente recentes, desenvolvidas ao longo de cerca de um sculo de intensa rivalida-de. Assim, contrariando a tendncia de descobrir as razes da existncia atual deum povo em seu passado peculiar, nico, eu argumento que til considerar essassociedades em competio como contraposies uma outra, como um sistemaformado por suas diferenas. A discusso terica recente tem atribudo ao surgi-mento do nacionalismo a culpa de tratar as sociedades isoladamente, como sefossem entidades limitadas e fechadas. Mas as ideologias nacionalistas no foramas primeiras a conferir s sociedades uma herana cultural peculiar e, assim, aperceb-las como historicamente sui generis. Se tanto antroplogos quanto histo-

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    riadores modernos esto igualmente inclinados a narrativas auto-suficientes deculturas independentes, eles tm encontrado em quase toda parte muitos mode-los do mesmo tipo nas histrias que as pessoas contam de sua adeso a tradiesancestrais de antiga memria. Ao associar as prticas culturais existentes a outrasmais antigas, a lgica dessa histria-tradio uma simples lgica de sucessodiacrnica. Assim como Aristteles encontra precedentes da constituio esparta-na em Creta, esse modo de histria compreendido pelas semelhanas entre opresente e o passado. A esse respeito, histrias-tradio so freqentemente his-trias de tempos imemoriais. Por uma famosa inveno da tradio, os esparta-nos reivindicavam a imemorial antigidade de sua incomparvel constituio, quelhes teria sido legada, virtualmente de uma s vez, por Licurgo, o heri da cultura.Ainda assim, deixando de lado essas tradies de origem antiga e a autodetermi-nao, a evidncia acumulada mostra que muitas das diferenas marcantes entreEsparta e Atenas na poca da Guerra do Peloponeso haviam surgido durante osculo anterior, ou at mesmo nos ltimos cinqenta anos, e umas em relao soutras. Assim, cada povo provava que era, ao mesmo tempo, igual ao outro emelhor que ele; o mesmo que o outro e diferente dele. Deve-se prestar ateno atais processos relativamente sincrnicos de oposio complementar. Histria-dia-ltica: o passado mais que apenas um outro pas.

    A parte intermediria deste livro responde a outro problema apresentado pelotexto de Tucdides, mas a etnografia usada para abord-lo mais aventureira aindaque as comparaes entre gregos antigos e fijianos clssicos. Aqui eu junto umfamoso incidente na histria do beisebol americano, a estrutura de revoluescientficas (no estilo Thomas Kuhn), Napoleo Bonaparte e o menino nufragocubano Elin Gonzalez, entre outros exemplos improvveis, numa tentativa deresponder a uma questo crtica sobre a natureza da ao histrica: ela individualou coletiva? Por que Tucdides relata a Guerra do Peloponeso s vezes em termosde pessoas que fazem a diferena, como Pricles ou Alcibades, e s vezes comoao de entidades coletivas, como os espartanos ou os atenienses? Se a criao deuma marinha formidvel por Temstocles foi o que ps Atenas a caminho da ex-panso imperial, ainda assim (e conseqentemente) foi o crescente poder dosatenienses e o medo que isso inspirava aos espartanos que constituiu a causamais verdadeira da guerra entre eles. Por certo Tucdides no o nico historia-dor a mudar de registro sem motivo aparente, passando de indivduos que fazemhistria narrativas de comandante, como W.R. Connor as chama para relatosnos quais povos inteiros ou estados aparecem como os sujeitos histricos ativos.Quanto a isso, existe uma tendncia comum mais ou menos folclrica, um hbitocultural, de s vezes se falar de George Bush ou Bill Clinton como fonte deste oudaquele problema, e s vezes da economia estar indo falncia ou da inseguran-

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    a da Amrica diante de uma ameaa terrorista. Existe alguma sabedoria nessaalternncia, ou apenas confuso?

    Acredito que seja sabedoria, seguindo uma astuta observao de J.H. Hextersobre a retrica da histria do beisebol americano. Tudo depende do tipo de mu-dana histrica em questo, quer se trate de uma tendncia de desenvolvimento,quer de um evento revolucionrio do tipo que muda a ordem das coisas. Note-seque, quando Thomas Kuhn falava sobre mudanas de paradigma cientfico, elelhes deu nomes prprios, como a revoluo newtoniana ou a revoluoeinsteiniana. Mas, quando falava sobre o curso normal do avano cientfico den-tro do mesmo paradigma, o sujeito ativo era a profisso, os fsicos em geral oumesmo a prpria cincia. Questes sobre o indivduo e a sociedade, aparente-mente dadas como mortas desde o sculo XIX, voltam assim agenda historiogr-fica. Eu tento lidar com elas: primeiro em termos abstratos, com uma discussoterica bastante ambiciosa sobre subjetividade e determinismo cultural, e de-pois com uma tentativa antropolgica de integrar as principais oposies em ques-to especificando as condies estruturais envolvidas no ganho de poder de certosindivduos como agentes histricos significativos. Alguns, como Napoleo ou osreis sagrados das ilhas Fiji, so sistematicamente autorizados a fazer histria pelasposies de comando que ocupam numa ordem estrutural concebida para realizarsuas vontades; outros, como Elin Gonzalez e seus parentes, so investidos degrandeza em virtude da posio que ocupam numa situao determinada, numaestrutura da conjuntura na qual aquilo que fazem parece decisivo ou profticopara a sociedade como um todo. Assim, escrevo sobre ao sistmica e conjuntural,ou a produo cultural de celebridades provveis e improvveis.

    Jean-Paul Sartre uma presena terica importante que entra e sai de cenaalgumas vezes durante a ltima metade do livro, principalmente com sua noo deque as sociedades tm de sobreviver historicamente s idiossincrasias dos indiv-duos nos quais se personificam. Aprofundando a percepo de Sartre, o longocaptulo final, A cultura de um assassinato, prossegue examinado as muitas ve-zes discutidas questes de ordem e evento, estrutura e contingncia. Tambmretorna a Fiji e a algo como Shakespeare no mato*: um conto dramtico de intri-ga poltica e fratricdio real na casa governante do reino de Bau cujo relato merece-ria mais os talentos do bardo que os meus. A longa histria de contendas em tornodo governo de Bau entre os filhos e herdeiros de um idoso rei da guerra, RatuTa#noa, culminou, em 1845, na morte de um dos irmos inimigos, Ratu Raivalita, a

    * Aluso ao ensaio Shakespeare in the Bush, de Laura Bohannan, em que a autora relata sua experin-cia de ler Hamlet com o povo tiv da Nigria. Na ntegra em http://www.fieldworking.com/library/bohannan.html. (N.T.)

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    mando do outro, Ratu Cakobau. Este ltimo nome, ainda importante e evocativonas ilhas Fiji, ajuda a deixar claro que o fato foi um momento decisivo na histriafijiana. A morte de Ratu Raivalita abriu caminho para a subida de Ratu Cakobauao governo do reino de Bau; e, sob sua gide, a ilha alcanou uma supremaciasobre toda a Fiji que continuou ao longo do perodo colonial britnico e estendeu-se por boa parte do sculo XX. Mas no preciso muita especulao contra-hist-rica para argumentar que as questes teriam tido resultados diferentes, muitodiferentes, se o compl do prprio Ratu Raivalita para matar Ratu Cakobau notivesse sido desmascarado e desfeito, tornando-se ele, em vez de algoz, na vtima.Pois entre outras coisas estava em jogo o destino da grande Guerra da Polinsiaento em progresso entre Bau e Rewa.

    Se a conspirao de Ratu Raivalita, que inclua o rei de Rewa, tivesse conse-guido eliminar Ratu Cakobau, a guerra teria terminado ali, naquele momento,sem conseqncias srias para nenhuma das partes. O resultado mais provvelteria sido um retorno ao status quo ante. No entanto, como realmente ocorreu, amorte de Ratu Raivalita deixou Rewa vulnervel a um ataque devastador que in-cluiu o rei entre os que tombaram e criou as condies para mais dez anos debatalhas sangrentas. Para compreender como esses diferentes resultados estavamem jogo na inimizade entre os irmos, ser preciso investigar os privilgios fijianosconferidos ao vasu, o sobrinho uterino sagrado. Por enquanto, basta dizer queRatu Raivalita, cuja me era irm do rei de Rewa, era assim um sobrinho sagrado,um elemento de Rewa dentro de Bau; enquanto Ratu Cakobau era um vasu nativo(filho da irm) de Bau, porque sua me vinha da antiga realeza bauense, e issofazia dele um chefe do mais alto status local e recebedor de lealdades indivisas.Em virtude dessas relaes de parentesco, o grande conflito coletivo entre Bau eRewa foi transferido para a rivalidade interpessoal dos irmos, e a animosidade doconflito entre eles foi exacerbada na luta pela dominao das ilhas Fiji, que era oque estava em questo no plano coletivo. As foras sociais maiores iriam revelar-se agora e resolver-se nas ambies e discrdias pessoais dos jovens chefes bauenses.Mas, ento, estando assim personificado o destino dos estados, a estrutura sub-mete-se contingncia.

    Pois nada na conjuntura mais ampla a organizao e a situao de Bau e Rewa especificava que Ratu Cakobau sobrevivesse a Ratu Raivalita, e no o contrrio. Osistema pode ter intensificado as lutas entre os dois at serem tomados por umdio assassino, mas no poderia definir quem mataria quem. Certamente no nes-se perodo, quando rivais podiam ser facilmente atingidos por um tiro de pistola oumosquete. Relatos contemporneos da morte de Ratu Raivalita indicam que qual-quer dos dois chefes poderia perfeitamente ter sido morto se as armas ou a deter-minao de certos circunstantes no tivessem falhado. Assim, estrutura e contin-

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    gncia so mutuamente determinantes, sem serem redutveis uma outra. As rela-es entre os dois reinos constituam as condies dos eventos que, por sua vez,fatalmente afetaram seus respectivos destinos histricos. Apenas porque qualquerdos resultados teria sido estruturalmente coerente o fim da guerra, se Ratu Raivalitativesse tido sucesso, ou sua brutal continuao por Ratu Cakobau que a hist-ria, em retrospecto, parece totalmente ordenada pelo esquema cultural. Mas coe-rncia cultural e continuidade cultural no significam que os resultados histricossejam prescritos pela cultura. O dilogo entre coletivo e individual, estrutura eevento, categoria e prtica indica que a continuidade da ordem cultural um esta-do alterado produzido por contingncias da ao humana. O que se est afirmandono que a cultura determina a histria, mas apenas que a organiza.