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SALINGER
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SALINGER
DAVID SHIELDS & SHANE SALERNO
Tradução de
Carlos Irineu da Costa
Cássio de Arantes Leite
Denise Bottmann
Donaldson Garschagen
Jorio Dauster
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Copyright da tradução para o português © 2014 by IntrínsecaCopyright © 2013 by The Story Factory
Todos os direitos reservados. Publicado mediante acordo com a editora original, Simon & Schuster, Inc.
TÍTULO ORIGINAL
Salinger
PREPARAÇÃO
Fernanda Machtyngier
REVISÃO
Carolina Rodrigues
DIAGRAMAÇÃO DE MIOLO E ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S558s
Shields, David Salinger / David Shields, Shane Salerno; tradução Carlos Irineu da Costa ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2014. 704 p. : il. ; 23 cm.
Tradução de: Salinger Inclui bibliografi a e índice ISBN 978-85-8057-457-9
1. Salinger, Jerome David, 1919-2010. 2. Escritores americanos - Séc. XX - Biografi a. I. Salerno, Shane. II. Título.
13-07270 CDD: 928.13
CDU: 929:821.111(73)
[2014]Todos os direitos desta edição reservados àEditora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br
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PARA MINHA MÃE
—Shane Salerno
PARA LAURIE E NATALIE
—David Shields
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
PA RT E I
B R A H M A C H A RYA
A P R E N D I Z A G E M
1 VAMOS COMEÇAR A GUERRA DESTE PONTO 21
2 PEQUENA REBELIÃO NA AVENIDA PARK 47
Conversas com Salinger #1 110
3 1,88 METRO DE MÚSCULO E FITA DE MÁQUINA DE ESCREVER NUMA TRINCHEIRA 119
Conversas com Salinger #2 136
4 A FLORESTA INVERTIDA 140
Conversas com Salinger #3 156
5 MORTOS NO INVERNO 158
6 QUEIMANDO AINDA 172
7 VÍTIMA E AGRESSOR 185
8 À ALTURA 205
Conversas com Salinger #4 233
9 A ORIGEM DE ESMÉ 235
Salinger MIOLO FECHAMENTO.indd 7Salinger MIOLO FECHAMENTO.indd 7 12/17/13 6:43 PM12/17/13 6:43 PM
10 SERÁ QUE O GAROTO NESSE LIVRO É LOUCO? 259
11 PODEMOS FUGIR ASSIM MESMO 286
Conversas com Salinger #5 308
12 SIGA AS PISTAS: NOVE ESTÓRIAS 317
Conversas com Salinger #6 329
PA RT E I I
G A R H A S T H YA
D E V E R E S D O L A R
13 A LONGA NOITE ESCURA 333
14 UMA TREMENDA, TREMENDA QUEDA 365
Conversas com Salinger #7 405
Conversas com Salinger #8 406
PA RT E I I I
VA N A P R A S T H YA
A FA S TA M E N T O D A S O C I E D A D E
15 O SEGUNDO SUICÍDIO DE SEYMOUR 409
Conversas com Salinger #9 422
16 QUERIDA SRTA. MAYNARD 423
17 CARO SR. SALINGER 435
Conversas com Salinger #10 459
Conversas com Salinger #11 466
Conversas com Salinger #12 469
18 ASSASSINOS 476
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PA RT E I V
S A N N YA S A
R E N Ú N C I A A O M U N D O
19 UM CIDADÃO COMUM 505
20 A UM MILHÃO DE QUILÔMETROS EM SUA TORRE 557
21 JEROME DAVID SALINGER, UMA CONCLUSÃO 574
22 SEGREDOS 586
FICÇÃO EM ORDEM CRONOLÓGICA DE PUBLICAÇÃO 591
CONTOS PERDIDOS, CONTOS ESPARSOS 595
E CARTAS PUBLICADAS
A FAMÍLIA GLASS 599
NOTAS BIOGRÁFICAS 603
NOTAS 623
BIBLIOGRAFIA 655
AGRADECIMENTOS 691
CRÉDITOS DAS IMAGENS 697
PERMISSÕES 701
Salinger MIOLO FECHAMENTO.indd 9Salinger MIOLO FECHAMENTO.indd 9 12/17/13 6:43 PM12/17/13 6:43 PM
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Eu servi na 4a Divisão durante a guerra. Quase sempre escrevo sobre
gente muito jovem.
J.D. Salinger
Que coisa desprezível e enganadora seria a “religião” se me levasse a re-
negar a arte, o amor.
J.D. Salinger
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INTRODUÇÃO
J.D. Salinger passou dez anos escrevendo O apanhador no campo de centeio e
o resto de sua vida lamentando esse fato.
Antes da publicação do livro, ele era um veterano da Segunda Guerra
Mun dial com transtorno de estresse pós-traumático. Depois da guerra, vivia
em busca constante de uma cura espiritual para sua psique danifi cada. Em
razão do enorme sucesso do romance sobre o “adolescente”, surgiu um mito:
Salinger, como Holden, era sensível demais para ser tocado, bom demais para
este mundo. Passaria o resto da vida tentando, sem sucesso, conciliar essas
versões completamente contraditórias de si mesmo: o mito e a realidade.
O apanhador no campo de centeio já vendeu mais de 65 milhões de exem-
plares e continua a vender mais de meio milhão de exemplares por ano. É um
livro impactante para diversas gerações e continua a ser um marco da adoles-
cência norte-americana. A diminuta obra de Salinger, composta por quatro
livros, possui um peso cultural e uma penetração quase inigualável na literatu-
ra moderna. O jogo da crítica e do público durante os últimos cinquenta anos
tem sido ler o homem por meio de suas obras, porque o homem não queria
falar. O sucesso de Salinger na autocriação de uma personalidade memorá-
vel, sua obsessão pela privacidade e seu baú meticulosamente mantido, com
grande volume de escritos que ele se recusou a publicar, combinaram-se para
formar uma lenda impenetrável.
Salinger era um ser humano extraordinariamente complexo, profundamen-
te contraditório. Não foi, como tantas vezes já disseram, um recluso durante
os últimos 55 anos de sua vida. Viajou bastante, teve muitos relacionamentos
amorosos, bem como amizades que perduraram por toda a vida. Consumia
enormes quantidades de cultura popular e por diversas vezes incorporou mui-
to do que criticava em sua fi cção. Longe de se recolher, dialogava constante-
mente com o mundo, a fi m de reforçar sua própria noção de reclusão. Queria
privacidade, mas o silêncio literário que a reclusão lhe trouxe se tornou tão
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14 S A L I N G E R
intimamente associado a ele quanto O apanhador no campo de centeio. Fala-se
muito do quão difícil deve ter sido para Salinger viver e trabalhar sob a égide
do mito, o que é uma verdade inegável. Vamos mostrar o quanto ele também
investia em perpetuá-la.
Outros livros sobre Salinger tendem a ser classifi cados em uma dentre três
categorias: exegeses acadêmicas; memórias altamente subjetivas; e biografi as
que pecam pelo excesso ou de reverência, ou de ressentimento, que, frustradas
pela falta de acesso ao material básico, preferem perpetuar a narrativa já re-
conhecida. Biografi as anteriores tendem a confi ar nas coleções relativamente
pequenas de ensaios e manuscritos inéditos de Salinger disponíveis na Uni-
versidade Princeton e na Universidade do Texas em Austin. O resultado é a
reciclagem das mesmas informações provindas de fontes muito superfi ciais
e a sucessiva publicação de informações imprecisas. As cartas que citamos
cobrem o período de 1940 a 2008 e foram escritas por Salinger para seus
amigos mais próximos, amantes ao longo de muitas décadas, companheiros de
batalha da Segunda Guerra Mundial, mestres espirituais e outros. A maioria
esmagadora dessas cartas nunca foi vista antes.
Começamos com três objetivos: saber por que Salinger deixou de publicar;
por que ele desapareceu; e o que ele escreveu nos últimos 45 anos de vida.
Durante nove anos, nos cinco continentes, entrevistamos mais de duzentas
pessoas. Destas, muitas haviam se recusado a dar declarações antes. Todas
colaboraram sem impor condições prévias. Pretendemos proporcionar uma
perspectiva multifacetada sobre Salinger, por meio de relatos diretos de seus
colegas da Segunda Guerra Mundial — agentes da contrainformação com
quem ele manteve laços ao longo de toda a vida —, além de amantes, amigos,
cuidadores, colegas de escola, editores, colegas da revista New Yorker, admi-
radores, desafetos e muitas fi guras proeminentes que discutem sua infl uência
sobre suas vidas, seu trabalho e a cultura em geral.
Ao reproduzir um material nunca antes publicado, que consiste em mais
de uma centena de fotografi as e trechos de jornais, diários, cartas, memórias,
transcrições de tribunais, depoimentos e registros militares tornados públi-
cos recentemente, esperamos proporcionar muitos esclarecimentos factuais e
revelações signifi cativas. Enfatizamos em especial os últimos 55 anos de sua
vida, um período que, até agora, havia permanecido em grande parte obscuro
para biógrafos.
Nesse processo, enfrentamos dois grandes obstáculos: o primeiro foi a cons-
tatação de que algumas pessoas-chave já haviam morrido antes de começarmos
este projeto; em segundo lugar, embora alguns parentes de Salinger tenham
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INTRODUÇÃO 15
cooperado inicialmente, a família acabou decidindo não participar de entrevis-
tas formais. Apesar de não terem falado diretamente conosco, eles haviam se
pronunciado, e, assim, graças a uma cuidadosa investigação de suas declarações
públicas e à obtenção de cartas privadas e documentos inéditos, suas vozes sur-
gem ao longo deste livro. Além disso, muitas pessoas que quiseram permanecer
anônimas nos levaram a informações cruciais e forneceram fotografi as, cartas
e diários mantidos em segredo por uma vida inteira. Meia dúzia de nossos en-
trevistados mais importantes aceitou falar apenas depois da morte de Salinger.
Apresentamos também doze “conversas com Salinger”: encontros reve-
ladores ao longo de mais de meio século entre jornalistas, fotógrafos, inves-
tigadores, fãs, familiares e o homem que nunca deixou de viver como um
agente de contrainformação. Esses episódios estabelecem para o leitor uma
relação cada vez mais íntima com um autor que fora infl exivelmente inaces-
sível durante mais de cinquenta anos.
—
Houve dois momentos determinantes na vida de Salinger: a Segunda Guerra
Mundial e sua imersão na religião vedanta. A guerra destruiu o homem, mas
fez dele um grande artista; a religião lhe deu o conforto de que ele precisava
como homem, mas matou sua arte.
Esta é a história de um soldado e escritor que escapou da morte durante a
Segunda Guerra Mundial, mas nunca logrou essa sobrevivência por completo.
Um “meio judeu” da avenida Park, descobriu no fi nal da guerra o que signifi -
cava ter descendência judaica. Esta é uma investigação sobre o processo pelo
qual um soldado enfraquecido, uma alma ferida, se transformou, por meio de
sua arte, em um ícone do século XX, e, em seguida, por meio de sua religião,
teve a arte destruída.
Salinger nasceu com uma deformidade congênita incômoda que o acom-
panhou por toda a vida. Um estudante que abandonou os estudos, um talento
impulsivo, um almofadinha malandro saído de um romance de F. Scott Fitz-
gerald, ele estava ferrenhamente determinado a se tornar um grande escritor.
Namorou Oona O’Neill, a linda fi lha do maior dramaturgo americano, Eu-
gene O’Neill; publicou contos no Saturday Evening Post e outros periódicos.
Após a guerra, Salinger não permitiu que qualquer dessas histórias fosse re-
publicada. A guerra matou esse autor.
Salinger serviu em cinco campanhas sangrentas do teatro europeu da
Segunda Guerra Mundial, de 1944-1945. Era subofi cial no 12o Regimento
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16 S A L I N G E R
de Infantaria. Na condição de agente de contrainformação, parte de suas
tarefas envolvia interrogar prisioneiros de guerra, trabalhar na guerra invi-
sível — a terra de ninguém entre os Aliados e os alemães —, coletar infor-
mações de civis, feridos, traidores e operadores do mercado negro. Viu em
primeira mão a destruição e a devastação da guerra. Quando o fi m estava
próximo, ele e outros soldados entraram em Kaufering IV, um campo de
concentração auxiliar de Dachau. Logo depois de testemunhar Kaufering,
Salinger deu entrada em um hospital civil em Nuremberg; sua psique fora
vítima da revelação fi nal da guerra.
No decorrer da guerra e durante sua internação no pós-guerra, Salinger
preservava um talismã pessoal a fi m de sobreviver dentro dessa máquina de
cadáveres: os seis primeiros capítulos de um romance sobre Holden Caulfi eld.
Esses capítulos se tornariam O apanhador no campo de centeio, que redefi niu os
Estados Unidos do pós-guerra e pode ser mais bem compreendido como um
romance de guerra disfarçado. Salinger emergiu da guerra incapaz de acredi-
tar nos ideais nobres e heroicos que gostamos de acreditar que nossas insti-
tuições culturais defendem. Em vez de produzir um romance de guerra típico,
como Norman Mailer, James Jones e Joseph Heller, Salinger incorporou o
trauma da guerra ao que, a olho nu, parecia ser um romance de formação. As-
sim, também em Nove estórias, o fantasma presente na máquina de cadáveres
é o trauma do pós-guerra: um suicídio marca o início do livro, é evitado por
pouco no meio e por fi m o encerra.
Profundamente destruído — não somente pela guerra —, ele se tornou
insensível. Entorpecido, ansiava por ver e sentir a unidade de todas as coisas,
mas decidiu ser indiferente à dor de todos, exceto a sua própria, que primeiro
o oprimiu e, em seguida, tomou-o de assalto. Durante seu segundo casamen-
to, distanciava-se constantemente de sua família, passando semanas seguidas
em seu bunker isolado, dizendo para sua esposa, Claire, e para seus fi lhos,
Matthew e Margaret: “Não me perturbem, a menos que a casa esteja em cha-
mas.” Em relação a Margaret, que se atreveu a incorporar os traços rebeldes
que sua fi cção canonizou, ele era distante. Seus personagens Franny, Zooey e
Seymour Glass, apesar ou por causa de suas muitas manias suicidas, tinham
acesso infi nitamente maior a seu coração do que sua família de verdade.
Um homem prestes a se afogar, buscando desesperadamente se agarrar a
botes salva-vidas, numa deriva cada vez mais distante da mácula do cotidiano,
ocupando reinos cada vez mais abstratos, desapareceu no consolo da fi losofi a
vedanta: você não é o seu corpo, você não é a sua mente, renuncie ao nome e
à fama. “Desapego, cara, e só desapego”, escreveu ele em Zooey. “Ausência de
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INTRODUÇÃO 17
desejo. ‘O fi m de todas as ambições, de todos os anseios.’” Seu trabalho segue
precisamente ao longo desse eixo físico-metafísico. A cada livro, ele acabou
por ver sua tarefa como a disseminação da doutrina.
O baú de Salinger, que abrimos no último capítulo, contém revelações
que defi nem caráter e carreira, mas não há um “segredo fi nal”, cuja revelação
explique o homem. Em vez disso, sua vida consistia em uma série de eventos
entrelaçados, da anatomia ao romance, à guerra, passando pela fama e pela
religião, que iremos revelar, seguir e interconectar. Tendo criado um mundo
particular no qual podia controlar tudo, Salinger arrancou da angústia da Se-
gunda Guerra Mundial uma arte imaculada e imortal. E então, quando não
podia mais controlar tudo, quando o acúmulo de todo o sofrimento era maior
do que o que um ser humano de constituição tão delicada quanto ele podia
resistir, entregou-se inteiramente ao vedanta, transformando a última metade
de sua vida em uma dança com fantasmas. Ele não tinha mais nada para dizer
a ninguém.
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PARTE I
BRAHMACHARYAAPRENDIZAGEM
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Desembarque na praia de Utah no Dia D, 6 de junho de 1944.
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1
VAMOS COMEÇAR A GUERRA
DESTE PONTO
PRAIA DE UTAH, NORMANDIA, 6 DE JUNHO DE 1944;
SAINT-LÔ, MORTAIN, CHERBOURG, FRANÇA, JUNHO-AGOSTO DE 1944
Salinger integrava o 12o Regimento de Infantaria, que desembarcou na praia
de Utah no Dia D, em 6 de junho de 1944, com cerca de 3.100 soldados.
Até o fi nal de junho, o regimento perderia cerca de 2.500 homens. Salinger
fi ca cara a cara com a aniquilação em meio ao desembarque maciço e dentro
de sua própria unidade.
J . D . S A L I N G E R : Desembarquei na praia de Utah no Dia D com a 4a Di-
visão.1
M A R G A R E T S A L I N G E R : “Desembarquei no Dia D, sabe”, ele me dizia,
soturno, de soldado para soldado, naquele tom, como se eu entendesse as im-
plicações.2
E D WA R D G . M I L L E R : Dentre tantos dias para alguém ser iniciado no
combate, o de Jerome David Salinger foi o Dia D.
M A R I N H E I R O D E C O N V É S K E N O A K L E Y : Na noite antes dos de-
sembarques do Dia D, o ofi cial superior fez um briefi ng, e nunca vou me
esquecer de suas palavras fi nais: “Não se preocupem se toda a primeira onda
de soldados for morta. Vamos simplesmente passar por cima de seus corpos
com mais e mais homens.” Que pensamento encorajador para aquela noite.3
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22 S A L I N G E R
S H A N E S A L E R N O : Salinger era um privilegiado: tinha 25 anos e era um
garoto rico da avenida Park que pensava que a guerra seria uma aventura
fascinante, romântica. Imaginou-se como protagonista de um romance de
Jack London e desejava que o serviço militar explodisse a bolha em que
foi criado. Salinger escreveu: “Minha mente está cheia de gravatas pretas,
e, por mais que eu as jogue fora tão rápido quanto consigo encontrá-las, ha -
verá sempre algumas sobrando.” Ele fi cava pensando se lhe faltava a dor
necessária para se tornar um escritor. Queria que a guerra o tornasse mais
duro, mais profundo como pessoa e escritor. O ano seguinte iria mudá-lo
para sempre.
D AV I D S H I E L D S : Salinger disse a Whit Burnett, seu professor de redação
na Universidade de Columbia e editor da revista Story, que no Dia D estava
carregando seis capítulos de O apanhador no campo de centeio, que precisava ter
aquelas páginas consigo, não apenas como um amuleto para ajudá-lo a sobre-
viver, mas também como uma razão para sobreviver.
W E R N E R K L E E M A N : Naquela época, Jerry era só um bom garoto. Era
meio calado. Notei que ele era fora do padrão, diferente. Ele não fechava as
alças do capacete. Fazia o que queria.4
A L E X K E R S H AW : O número de série de Salinger era 32325200, o mesmo
que ele deu, muitos anos depois, a seu personagem fi ccional Babe Gladwaller
em “Last Day of the Last Furlough”.
S H A N E S A L E R N O : John Keenan serviu com Salinger no Corpo de Con-
trainformação [CCI]. Salinger, Keenan, Jack Altaras e Paul Fitzgerald estive-
ram juntos durante a guerra. Autodenominavam-se “Os Quatro Mosquetei-
ros” e continuaram amigos pelo resto da vida. Altaras e Fitzgerald não haviam
sido reconhecidos antes.
J O H N K E E N A N : Acho que por volta das três da manhã os mergulhadores
[as Unidades de Demolição de Combate Naval] partiram. Nenhum de nós
conseguia dormir, então sabíamos o que estava acontecendo. Havia um monte
de conversa fi ada e muita falsa bravura também. Não me parece que alguém de
fato achasse que aquilo seria a grande aventura de nossas vidas. Graças a Deus
todos eles voltaram. Em torno das cinco, os soldados da infantaria partiram.
Eles foram a primeira leva.5
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VA M O S C O M E Ç A R A G U E R R A D E S T E P O N T O 23
E B E R H A R D A L S E N : Salinger foi designado para o 12o Regimento de In-
fantaria. Achei que ele tivesse desembarcado com o regimento às dez e meia
da manhã, quase quatro horas depois da Hora H. Mas o History of the Counter
Intelligence Corps, o documento ofi cial do Exército dos Estados Unidos, afi rma
que o “4o Destacamento do CCI desembarcou com a 4a Divisão de Infantaria
quando invadiram a praia de Utah às 6h45”. Isso signifi ca que o destacamen-
to do CCI de Salinger desembarcou naquela hora com o 8o Regimento, que
liderou o desembarque da 4a Divisão.
D AV I D S H I E L D S : Uma testemunha ocular, Werner Kleeman, que estava
servindo como intérprete para o 12o de Infantaria e era amigo de Salinger,
informou que ele desembarcou na segunda leva de assalto no Dia D.
A L E X K E R S H AW : No Dia D, Salinger estava numa das lanchas de desem-
barque, rumando para a praia de Utah, amontoado com seus amigos e compa-
nheiros, alguns dos quais estariam mortos pouco depois.
W E R N E R K L E E M A N : Projéteis voavam sobre nossas cabeças. As armas
de menor calibre continuavam atirando. Os projéteis da artilharia continua-
vam passando.6
“Os Quatro Mosqueteiros”, da esquerda para a direita: J.D. Salinger, Jack Altaras,
John Keenan, Paul Fitzgerald.
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24 S A L I N G E R
E D WA R D G . M I L L E R : A maioria daqueles caras tinha dezenove, vinte, 21
anos. Salinger tinha 25 anos, um velho.
PA U L F I T Z G E R A L D (trecho de um poema inédito): Glamour e bravata
não faziam parte daquilo. A praia estava um pouco à frente de nós. Flutuando
na maré, vi minha primeira vítima.
J O H N K E E N A N : Os encouraçados estavam disparando contra a costa, mi-
rando nas casamatas [estruturas fortifi cadas de concreto, de onde os soldados
alemães atiravam com metralhadoras].7
S T E P H E N E . A M B R O S E : As ondas estavam sacudindo as lanchas, apro-
ximando-as das amuradas e batendo bem na cara dos soldados, deixando mui-
tos dos homens tão enjoados que desejavam apenas sair dali.8
S O L D A D O R A S O R A L P H D E L L A - V O L P E : Os barcos iam e vinham
como insetos disputando uma posição. Eu tinha comido muito no café da ma-
nhã, muito mesmo, achando que iria ajudar, mas deixei tudo pelo caminho.9
S T E P H E N E . A M B R O S E : O mesmo aconteceu com muitos outros. O
marinheiro Marvin Perrett, um rapaz de dezoito anos da guarda costeira de
Nova Orleans, era o timoneiro de uma lancha Higgins construída em Nova
Orleans. Os trinta membros do 12o Regimento da 4a Divisão que ele trans-
portava para terra fi rme viraram o rosto em direção a ele a fi m de evitar os
jatos de água. Ele via que estavam todos preocupados e com medo. Bem na
frente dele havia um capelão. Perrett estava concentrado em manter seu lugar
na linha de avanço. O capelão botou seu café da manhã para fora, o vento
soprou e o rosto de Perrett, como o de todos os outros no barco, fi cou coberto
do que havia sobrado dos ovos, café e pedaços de bacon.10
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : A praia de Utah tinha uma incli-
nação ascendente, longa e suave. Atacamos Utah na maré baixa, quando os
obstáculos contra as lanchas estavam expostos, e assim surpreendemos os
alemães. No entanto, isso gerou cem metros adicionais de exposição para
nossos soldados, além de outros cem metros de água. Nossas tropas da 4a Di-
visão de Infantaria foram desembarcadas entre um e dois metros de água e
tiveram de vencer os duzentos metros até a amurada da praia. A amurada
media entre um e 2,5 metros de altura, e por trás havia dunas de areia que
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VA M O S C O M E Ç A R A G U E R R A D E S T E P O N T O 25
chegavam a três metros.11 As fortifi cações construídas ao longo da praia po-
diam varrer aquilo tudo com armas leves, metralhadoras e artilharia.
Na minha opinião, a única dúvida que Salinger tinha — a única dúvida
que qualquer um de nós tinha — era: “Vou conseguir? Vou chegar até a praia?”
Eu estava nervoso, porque não era um bom nadador. O salva-vidas que eles
forneceram era uma única tira que fi cava presa em volta da cintura, e tínhamos
um equipamento pesado nas costas. Se o cara não fosse cuidadoso, se caísse na
água e infl asse aquilo, talvez virasse de cabeça para baixo e se afogasse.
S O L D A D O R A S O A L B E R T S O H L : “Preparem-se!”, o timoneiro gritou
em meio ao ruído do motor. Conduziu habilmente nossa lancha em direção
à praia, no meio de todo o tráfego no mar. Explosões esporádicas da arti-
lharia de terra avançavam pela beira da água como se fossem botas de sete
léguas invisíveis. Meu coração batia mais rápido, mas ainda não podia ver
ninguém em terra que se parecesse com nosso inimigo. A cerca de cinquenta
metros da praia, nosso piloto reverteu os motores. Enquanto a embarcação
parava, ele abriu abruptamente a rampa da frente. Armas atiravam de longe.
Aviões passavam acima. Fragmentos irregulares de fumaça preta de con-
tratorpedeiros em movimento percorriam o cenário caótico. “Este é o fi m
da linha!”, gritou o timoneiro por cima do barulho. “Caiam fora, tenho que
voltar e pegar mais passageiros.” 12
C O R O N E L G E R D E N F. J O H N S O N : Os homens sentiram seus mús-
culos se retesarem quando sussurraram que a costa estava logo adiante. En-
quanto corriam em direção à praia, o capitão gritou pedindo mais cobertores.
Aquilo signifi cava que havia feridos na praia, o que deixou todo mundo ate-
morizado. O problema imediato de cada um daqueles homens estava bem
nítido. Todo mundo sabia que, se quisesse chegar ao fi nal daquele dia vivo,
precisava primeiro sobreviver ao desembarque na praia. Nada mais importava.
Se chegassem até lá, teriam de dar um jeito de sobreviver ao que parecia uma
eternidade — atravessar a água desde a rampa do veículo até a praia, andando
sobrecarregados por equipamentos pesados —, uma eternidade na qual se
sentiriam nus, expostos ao fogo assassino de alguém lá na praia.13
G E N E R A L M AT T H E W R I D G WA Y : Pela primeira vez vi a mais solitária
e mais sinistra de todas as paisagens: um campo de batalha. E conheci a es-
tranha euforia que toma conta de um homem quando ele sabe que em algum
lugar adiante, longe, há olhos hostis olhando para ele, e que, a qualquer mo-
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mento, uma bala que ele talvez nunca ouça, disparada por um inimigo que ele
não pode ver, poderá acertá-lo.14
C A P I TÃO G E O R G E M A Y B E R R Y : Nunca na minha vida eu tinha tido
tanta vontade de correr, mas eu só podia me arrastar para a frente. A beira da
costa fi cava a cerca de cem metros, e levei dois minutos para chegar à água
rasa. Aqueles dois minutos foram extremamente longos. Mesmo na praia eu
não podia correr, porque meu uniforme estava encharcado e pesado, e minhas
pernas estavam dormentes e retesadas.
A artilharia pesada começou a explodir na praia, assim como morteiros
esporádicos vindos de uma curta distância terra adentro. Um soldado à minha
frente foi destroçado por um golpe direto. No instante em que aquilo aconte-
ceu, alguma coisa pequena bateu na minha barriga: era o polegar do homem.15
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : Eu via equipamentos, coletes salva-
-vidas, madeira de um barco que atingiu uma mina, tudo isso fl utuando na
água. Ouvi uma forte explosão a duzentos metros de distância; a Bateria B,
da artilharia, atingiu uma mina e sua embarcação explodiu, foi uma tremenda
explosão. Havia quatro peças de artilharia e sessenta homens naquela embar-
cação. Todos nós assistimos horrorizados enquanto corpos e metal voavam
pelo ar: 39 dos sessenta homens morreram.
—
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : Movíamo-nos rapidamente. Tínha-
mos todos o mesmo objetivo: sair e chegar à amurada o mais rápido possível.
Estávamos totalmente expostos ao fogo inimigo. Lembro-me de um cara que
desembarcou na primeira leva lutando para se manter emerso depois que saiu
da embarcação. Um grandalhão agarrou o sujeito pelas calças, levantou-o e
disse: “Ei, baixinho, é melhor você chegar logo à praia.” Antes que o baixinho
pudesse agradecer o cara, seu salvador levou um tiro na cabeça.
A artilharia disparava sobre nós e atiradores de elite acertavam meus ami-
gos. Na verdade, o primeiro homem morto sob o meu comando levou uma
bala entre os olhos. Eu podia ouvir metralhadoras mais abaixo na praia, onde
um batalhão atacava uma fortifi cação inimiga.
J O H N M c M A N U S : Havia uma foto de um soldado americano morto por
um atirador de elite em Utah, pouco antes de ele chegar à amurada. Seu corpo
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parecia intacto, morto por um único tiro na cabeça. Foi uma das imagens que
fi caram da invasão da praia de Utah.
W E R N E R K L E E M A N : Quando chegamos à praia, vimos centenas de ban-
deirinhas com um aviso: “Achtung, Minen!” (Atenção, minas!) Mas as minas
eram falsas. Vimos que alguns soldados já haviam sido mortos e estavam jo-
gados em uma vala antes da amurada.16
J O S E P H B A L K O S K I : Toda a primeira leva da 4a Divisão, composta por
mais de seiscentos soldados de infantaria em vinte embarcações, havia che-
gado em terra consideravelmente ao sul de seu ponto de destino pretendido.
[O general-brigadeiro Th eodore Roosevelt Jr.] foi um dos primeiros soldados
a perceber o erro. Sua ordem — “Vamos começar a guerra deste ponto!” — se
tornaria o momento decisivo da invasão à praia de Utah.17
E D WA R D G . M I L L E R : Os marcos que Salinger tinha treinado para de-
tectar, a fi m de se orientar quando chegasse em terra, não estavam lá. A única
coisa boa foi o fato de as defesas alemãs serem um pouco mais fracas do que
seriam caso Salinger e sua unidade desembarcassem mais ao norte, na penín-
Soldados dos Estados Unidos atrás de uma amurada na praia de Utah.
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sula de Cherbourg, mas ainda assim as balas eram as mesmas. As explosões, a
artilharia, a areia, a ressaca das ondas, a confusão, a chuva, a fumaça, o enjoo.
Salinger fez seu batismo de fogo de uma forma para a qual nem ele nem,
para ser preciso, ninguém mais no exército estava preparado. Aquele dia do
desembarque, para Salinger, deve ter sido de puro terror. A urgência de chegar
à praia, montar o equipamento, proteger-se, os soldados ao seu redor. Fogo.
Fumaça. Gritos. Não havia treinamento que pudesse prepará-lo para aquilo. A
experiência foi brutal, repentina e chocante. Foi gravada a fogo em sua alma.
D AV I D S H I E L D S : A única história de Salinger que evoca diretamente a
guerra, “Th e Magic Foxhole”, foi escrita pouco depois do Dia D e é claramente
baseada nessa experiência. Nunca foi publicada. Cínica mesmo em relação à
ideia de guerra, a história relata a fadiga de batalha sofrida por dois soldados.
Um deles, Garrity, conta a história em um monólogo corrido. Na cena de aber-
tura, um capelão que tentava encontrar os óculos debaixo de cadáveres na praia
da Normandia é morto. Deus não apenas fi cou cego, mas está morto. Salinger
passaria o resto da vida tentando encontrar outra visão, um substituto para Deus.
Avançando na praia de Utah, Dia D.
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J . D . S A L I N G E R (“Th e Magic Foxhole”, conto inédito):
Chegamos vinte minutos antes da Hora H do Dia D. Não havia nada
na praia, só os garotos mortos das Companhias “A” e “B”, além de al-
guns cadáveres de jovens marinheiros e um capelão que rastejava de um
lado para o outro procurando seus óculos na areia. Ele era a única coisa
que se movia, 88 obuses estouravam em volta dele, e lá estava o cara
engatinhando à procura dos óculos. Foi atingido. (...) É isso que eu vi
na praia quando cheguei.
E B E R H A R D A L S E N : Muitas das passagens de “Th e Magic Foxhole” são
autobiográfi cas e descrevem exatamente o que Salinger testemunhou. Um re-
lato semelhante vem do soldado raso Ray A. Mann, que desembarcou na praia
de Utah com o 8o Regimento.
S O L D A D O R A S O R A Y A . M A N N : Nossa equipe correu para fora da em-
barcação e se dirigiu à praia em pequenos grupos (...) [Do nada,] cerca de 4,5
a seis metros antes da praia, projéteis começaram a cair. Os primeiros caíram
em cima de um grupo à minha frente. Até aquele momento, tinha sido quase
Soldado ferido na praia de Utah.
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como as manobras anteriores, na Flórida, ou mesmo em Slapton Sands. Mas,
quando vi nossos homens feridos e agonizando de dor, quando os ouvi gritar,
soube que era para valer. Uma segunda salva de balas caiu perto do meu grupo
e, aparentemente, atingiu nosso subofi cial. Nunca mais o vi. O ofi cial de logís-
tica da companhia também foi atingido (...) Finalmente cheguei à amurada
e à casamata alemã, então fi z uma pausa para me orientar. Mesmo no curto
período entre meu desembarque e nossa chegada à amurada, fi quei chocado
com o número de homens que desembarcavam e o número de feridos que vi
espalhados ao longo da praia. Vi um capelão vagando, orando pelos mortos.19
A L E X K E R S H AW : Apenas o combate pode ensinar o que o medo faz com
o corpo e a mente humana. Salinger só queria permanecer vivo.
J O H N M c M A N U S : Os veteranos do Dia D que entrevistei disseram que
primeiro estavam pensando: “Mal posso esperar para atirar em alguém”; um
segundo mais tarde, era: “Não quero atirar em ninguém.”
—
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : Nossa artilharia fazia um som sibi-
lante ao sair. Uma das coisas que Salinger aprendeu bem rápido foi distinguir o
que estava chegando [artilharia alemã] e o que estava saindo [artilharia ameri-
cana]. A nossa tinha o tal som sibilante. Se algo estivesse chegando, ele fi caria
tenso e procuraria abrigo. Aprende-se muito rapidamente a diferença de sons,
especialmente a .88 alemã, a melhor peça de artilharia na guerra, que dispa-
rava como um rifl e. Não havia muito tempo entre os momentos em que você
ouvia o disparo e que a bala chegava. Ouvia-se o estrondo e ela já estava lá, em
cima de você. Foi uma grande arma para os alemães. Eles também tiveram o
que chamávamos de Screaming Meemies, foguetes de morteiro que subiam bem
alto antes de descer. Você podia ouvi-los guinchar, o que era de gelar os ossos.
Não tinham um projétil de artilharia, por isso não giravam no ar, o que tornava
o barulho um pouco diferente, mais lúgubre do que a artilharia normal. Perdi
oito homens no segundo dia por conta das Screaming Meemies.
A L E X K E R S H AW : Salinger sabia que os estilhaços o matariam: de uma
metralhadora, peças de artilharia. E a melhor maneira de permanecer vivo era
fi car rente ao solo, de preferência com a cabeça abaixo do nível do chão; se não
fosse possível, pelo menos o mais próximo possível do solo o tempo todo.
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J O H N C L A R K : Eu já havia visto muitas coisas terríveis: pedaços de corpos
deitados na praia, gente despedaçada. Acho que o que mais me incomodou
foi ver um tanque com uma pá subir uma estrada empurrando os corpos para
uma vala, de forma que não fossem atropelados pelos tanques e caminhões
que avançavam.20
E D WA R D G . M I L L E R : Uma vez em terra, o primeiro objetivo de Salinger
e o resto de seu regimento era organizar e proteger a cabeça de praia. Alguns
dos piores combates não estavam nas praias. Essa parte terminou nas primei-
ras horas, mas o verdadeiro trabalho, aquele inferno esgotante do combate de
infantaria, isso começou depois que liberaram a praia.
A L E X K E R S H AW : A praia de Utah não foi a mais sangrenta do Dia D.
Houve mais de duzentas baixas sofridas pela 4a Divisão de Infantaria em
Utah. Salinger conhecia esses homens e havia treinado com eles. A questão
quanto a Utah e ao Dia D não são as baixas sofridas no Dia D em si, mas
Um soldado ferido recebendo os primeiros socorros em Les Dunes de Madeleine.
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aquelas sofridas nos dias seguintes. Como Utah não foi a praia com maior
número de baixas, certamente havia uma falsa sensação de segurança entre a
4a Divisão, entre Salinger e seus companheiros, quanto ao que viria.
—
C O R O N E L G E R D E N F. J O H N S O N : Depois que saímos da cabeça de
praia, o III Exército dos Estados Unidos (...) enviou seis divisões correndo
em direção à Bretanha, a fi m de cercar os alemães e abrir uma rota para
Paris. Essas divisões precisavam passar por um estreito corredor a leste de
Avranches, formado quando os alemães inundaram uma área do tamanho
de Rhode Island.21
S T E P H E N E . A M B R O S E : O coronel Russell “Red” Reeder era coman-
dante do 12o de Infantaria (...) Reeder levou seus homens para o topo da
duna por meio de um buraco na amurada, onde viu [Th eodore] Roosevelt,
Soldados na praia de Utah após o ataque inicial.
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que gritou: “Red, as estradas que levam ao interior estão todas bloqueadas.
Olhe para isso! Uma procissão de jipes e ninguém anda.” Para Reeder,
“Roosevelt parecia cansado. A bengala em que estava apoiado tornava a
impressão ainda mais forte”. Reeder tomou sua decisão: “Vamos atravessar
a área alagada”, gritou.22
C O R O N E L R U S S E L L R E E D E R : Os alemães tinham inundado as planí-
cies e pastos circundantes represando córregos. Criaram um lago com mais de
um quilômetro de largura. Tivemos de atravessá-lo. Soubemos por espiões e
franceses leais que os alemães, antes de fazer o lago, haviam escavado sulcos,
de forma que, em alguns lugares, a água tivesse três metros de profundidade,
em vez de estar na altura do peito. Quando estávamos na Inglaterra, nosso
general nos dissera que poderíamos ter de atravessá-lo. Equipou-nos com co-
letes salva-vidas infl áveis, e juntamos os homens que não sabiam nadar com
os que sabiam. Acenei com o braço, e três mil soldados de infantaria sobre-
carregados entraram no lago artifi cial (...) Quando vi, perto de mim, pessoas
que não sabiam nadar lutando para seguir em frente, agarradas às suas armas
e equipamentos, eu sabia que venceríamos a guerra.23
D AV I D S H I E L D S : Os homens do coronel Reeder lutaram para atraves-
sar os campos inundados. Mais tarde, Reeder recordou aquele momento:
“Pouco antes de deixarmos a Inglaterra, o comandante da divisão me disse:
‘Espiões nos informaram que os alemães sabem como colocar material in-
fl amável nas áreas alagadas. Diga aos homens o que fazer se isso acontecer.’”
Em uma carta de 1958 a Cornelius Ryan, Reeder comentou: “Ainda estou
procurando uma resposta.”
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : Havia apenas quatro vias — nós
as chamávamos de estradas ou saídas — que percorriam as áreas inunda-
das em direção a Sainte-Mère-Église. Salinger teria que atravessar a praia,
ultrapassando o paredão e a duna de areia, em direção às saídas. Lá, ele
iria começar sua luta em direção ao interior. As 82a e 101a Divisões Aero-
transportadas foram responsáveis por assegurar que fôssemos capazes de
atravessar as pontes. A 101a desceria no interior, atacaria e controlaria as
entradas internas. A 82a protegeria todo o desembarque do outro lado de
Sainte-Mère-Église.
Naquele momento, a minha esperança, a esperança de Salinger, a espe-
rança de todos, era de que, em vez de sermos baleados ou mortos na praia, a
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Divisão Aerotransportada fosse capaz de controlar essas saídas para que não
fôssemos pegos em terreno descoberto. Se fôssemos atacados nas estradas ou
na área inundada, seria um massacre.
Seguimos dezesseis quilômetros adentro no primeiro dia, não paramos até
a meia-noite. Tínhamos de atravessar a área alagada, e, quando chegamos a
uma estrada seca, havia alguns vilarejos onde nos deram um pouco de vinho.
A L E X K E R S H AW : Salinger provavelmente pensou que o desembarque no
Dia D seria o mais difícil, mas nos dias seguintes, quando adentramos uma sé-
rie de campos e sebes, ele deve ter descoberto que tudo o que havia aprendido
no treinamento básico não servia. Cada campo custaria vinte, trinta rapazes.
Uma área de cem metros às vezes custa um pelotão inteiro. Eles tiveram de
avançar dia após dia. Às vezes, uma companhia inteira, duzentos homens,
passaria um dia tomando um campo de cem metros.
C O R O N E L G E R D E N F. J O H N S O N : Na escolha de suas posições defen-
sivas, os alemães sabiamente se aproveitaram de uma área que logo se tornou
As terríveis sebes.
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famosa como a terra das sebes. As sebes da Normandia, segundo a lenda local,
foram plantadas pelos romanos para proteger seus pequenos campos contra
as tribos locais semicivilizadas. Sebes são montes de terra com pedras e raízes
retorcidas embutidas, amalgamadas durante séculos em paredes íngremes e
resistentes. Cercam pequenos campos irregulares, denominados “bocages” pe-
los camponeses normandos. As amuradas de terra e pedra em si têm de um
a dois metros de altura, muitas vezes em fi leiras duplas, com um fosso entre
elas (...) As sebes formavam excelentes fortifi cações. Um pequeno número de
alemães escondidos atrás dos arbustos com algumas metralhadoras poderia
retardar um regimento de infantaria. A folhagem de verão os ocultava. Alguns
tanques, posicionados estrategicamente nos cantos dos campos abaixo dos
galhos, deram excelente poder de fogo para a infantaria inimiga.24
C LY D E S T O D G H I L L : Corpos jaziam em um campo e havia gritos de so-
corro. Alguns homens atingidos se moviam um pouco e outros permaneciam
parados. Os que se moviam se tornavam alvos para atiradores. Alguns homens
se abrigaram atrás de vacas mortas, mas ninguém ousava se levantar para ati-
rar. Ninguém mais corria em direção à sebe alemã. O ataque frontal tinha
sido inútil desde o início, é claro. Nossas fi leiras estavam consideravelmente
reduzidas, e um alemão foi morto. Foi tudo o que conseguimos.25
C O R O N E L G E R D E N F. J O H N S O N : Encontramos homens da 82a Di-
visão Aerotransportada ensanguentados, mas fi rmes. Eles nos disseram que
os nazistas haviam cortado as gargantas dos paraquedistas que pendiam im-
potentes das mortalhas de seus paraquedas, presos em árvores. Falaram de
assassinatos deliberados no chão, antes que os homens pudessem se soltar dos
paraquedas. Nossos homens ouviam aquilo com uma raiva crescente, mistu-
rada à admiração por esses camaradas da 82a que prepararam o caminho para
nós. O medo e a dúvida se fundiam em ódio unânime.26
S U B O F I C I A L D AV I D R O D E R I C K : Feliz aniversário para mim, 22 anos
hoje. Como seria bom estar em casa em vez de aqui, na costa da França.27
B I L L G A RV I N : Durante os dias que se seguiram, as realidades da guerra
nos endureceram. [Os alemães] tinham a vantagem de estar ocultos, ter sele-
cionado suas posições e as rotas de retirada. Nós, os atacantes, não tínhamos
escolha senão avançar em meio às suas miras se quiséssemos ganhar terreno.
Começamos com perdas muito fortes para os atiradores de elite, a artilharia
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constante e o forte choque provocado pelos Nebelwerfers, as Screaming Mee-
mies disparadas em salvas com aquele som terrível. Quando esses foguetes
explodiam perto, a concussão era tão forte que, com as presilhas dos capacetes
afi xadas, o pescoço podia ser quebrado com facilidade.28
D E B O R A H D A S H M O O R E : Salinger tinha de prosseguir naquela luta
nas sebes, um combate muito difícil. Após alguns passos já havia visto um
monte de caras cair. Homens com os quais ele se preocupava estavam feri-
dos, mortos.
A L E X K E R S H AW : Salinger teria vivenciado a luta nas sebes da pior for-
ma. Um batalhão levava um dia inteiro para avançar cem metros em uma
frente de trezentos metros. Havia artilheiros alemães entrincheirados a cada
dezena de metros. Qualquer avanço gerava um fogo certeiro. Os alemães ti-
raram uma grande vantagem desse terreno. Os campos foram incrivelmente
bem minados por eles. Havia uma, chamada de Mina “S”, também conheci-
da como “Bouncing Betty”, que deixava todos os soldados, incluindo Salinger,
com muito medo. Quando um soldado detonava uma [Bouncing Betty], uma
pequena carga disparava uma lata. A Bouncing Betty continha 360 esferas e era
cronometrada para explodir assim que chegasse à altura dos órgãos genitais.
O efeito era devastador.
S O L D A D O R A S O A L B E R T S O H L : Foi nas sebes, num trecho de grama
alta ao lado de um caminho de vacas, que nos deparamos com nossa primeira
vítima. Um soldado norte-americano morto estava caído de lado. Seu capacete
estava torto, e ele ainda segurava seu rifl e M-1. A crosta de sangue seco espessa
e endurecida formava uma máscara vermelho-escuro onde antes se via seu rosto.
Suas calças estavam arriadas. Certamente ele estava no processo de se aliviar
quando um estilhaço trouxe um fi nal profano para seu último ato em vida.29
C A B O A LT O N P E A R S O N : Enquanto estávamos em nossa posição atrás
das sebes, eu podia ouvir os estrondos de bombardeiros. Veio um esqua-
drão por vez, cada um soltando bombas onde o anterior havia parado, e
assim por diante. O chão tremia (...) tanto que você fi cava sem fôlego se
estivesse deitado.30
PA U L F U S S E L L : Durante o bombardeio, alguns soldados alemães, literal-
mente enlouquecidos, estouraram o cérebro em vez de permanecer no meio
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do barulho, do fogo, da fumaça, dos gritos, da terra tremendo, dos corpos
e partes de corpos que voavam. Tendo recebido ordens superiores para “se
manter em posição”, o general Fritz Bayerlein [comandante da Divisão Lehr
de Panzer] respondeu: “Meus granadeiros e os batedores, meus artilheiros
antitanque, todos estão em posição. Nenhum deles deixou suas posições, ne-
nhum. Eles ainda estão deitados nas trincheiras porque estão mortos. Mortos.
Você entendeu?” Um pouco mais tarde, relatou: “Depois de uma hora, não tive
mais comunicação com ninguém, nem mesmo por rádio. Ao meio-dia nada
era visível senão poeira e fumaça. Minha linha de frente parecia o solo da lua
e pelo menos 70% das minhas tropas estavam fora de ação, mortas, feridas,
enlouquecidas ou em choque.”31
T E N E N T E E L L I O T J O H N S O N : Estávamos rodeados pelas sebes. Have-
ria sempre um canto que seria cortado para que o gado pudesse passar e be-
ber. Em um desses cantos, havia um atirador de elite. Estava atirando em nós.
Toda vez que eu colocasse minha cabeça para fora da trincheira, eu levaria
um tiro. Chamei dois amigos muito queridos pelo rádio. Nós nos espalha-
mos, cada um com uma granada. Em um determinado momento, armamos
nossas granadas e fi zemos o que tínhamos de fazer. Evito usar expressões
como “matar um homem”, quero me afastar disso.32
Tropas americanas lutando nas sebes.
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C A P I TÃO J O H N S I M : Enquanto éramos atacados com morteiros, um sol-
dado alemão tinha descido da cerca em nossa direção, carregando um rifl e. Eu
disse baixinho ao meu auxiliar: “Harris, você vê aquele soldado descendo? Atire
nele.” Ele atirou. Muito mais tarde, pensei: “Como pude dar tal ordem?” 33
—
E D WA R D G . M I L L E R : A ida até Cherbourg — aquilo pelo que o 12o Re-
gimento de Infantaria passou e que Salinger viu — pode ser resumida pelos
números de vítimas. O 12o de Infantaria desembarcou no Dia D com pelo
menos 3.100 soldados. Até o fi nal de junho, havia perdido mais de dois mil.
O exército não tinha previsto perdas como essa na infantaria. Tínhamos per-
das enormes.
J O H N M c M A N U S : O 12o de Infantaria, espremido entre o 8o à esquerda e
o 22o à direita, fazia um progresso igualmente lento. O objetivo do regimento
era o terreno elevado a nordeste de Montebourg, mas primeiro era necessário
capturar Edmondeville.
Para chegar perto de Edmondeville, o 12o teve de lutar o tempo todo em
meio àquelas bermas de mais ou menos dois metros de altura, cercadas de
raízes de árvores. Era uma luta com pequenas unidades, violenta e próxima.
Havia um grupo de norte-americanos de um lado da sebe e um grupo de
alemães do outro: apenas um deles estaria vivo para contar a história no dia
seguinte. As metralhadoras alemãs em trincheiras estavam massacrando os
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americanos. A luta em torno de Edmondeville foi um dos combates mais
duros da campanha na Normandia. O posto de comando do coronel Reeder
quase foi tomado várias vezes, o que indica que as linhas dianteiras e traseiras
alemãs e norte-americanas estavam todas misturadas: reinava um caos mortal.
D AV I D S H I E L D S : Três dias depois do Dia D, o regimento de Salinger
fi cou preso entre uma fortifi cação inimiga na aldeia de Edmondeville e as
armas da fortaleza de Azeville. Naquele ponto, os alemães os bombardearam
dos dois lados. Salinger não podia sair do lugar, seu regimento estava imobi-
lizado antes de Edmondeville. Sob implacável ataque de metralhadoras e
morteiros, desesperados para recuar, os soldados se viram obrigados a tentar
tomar as defesas alemãs, apesar das péssimas condições. Foram mortos a
cada investida. Após rastejar para recolher os mortos e feridos, atacariam
a posição mais uma vez, apenas para avançar alguns metros, a um custo
tremendo. Por mais de dois dias e noites, a companhia de Salinger atacou
repetidamente, até que os alemães se retiraram em silêncio. Essa é uma das
batalhas que Salinger detalha em “Th e Magic Foxhole”.
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J . D . S A L I N G E R (“Th e Magic Foxhole”):
A Força Aérea fi nalmente tomou vergonha na cara e chegou com uns
bombardeiros de mergulho para nos dar uma mãozinha, mas a gente
tava, quer dizer, nossa Companhia tava imobilizada num lado do pân-
tano fazia quase dois dias. Dos 208 que chegaram lá, só saíram uns 35.
O pântano foi um tremendo fazedor de viúvas.
Tinha só alguns milhares de metros de extensão, mas a frente mes-
mo era muito estreita — mais ou menos quinhentos metros de largura.
Água nos dois fl ancos — rios com capim nas margens. Por isso, como
tínhamos que atravessar naquela porra daquele lugar, o abacaxi fi cou
com a Companhia “C”, porque nós éramos os picas grossas do batalhão
e porque o fi lho da puta do comandante pediu: ele estava cavando a
patente de capitão.
No outro lado do pântano, os chucrutes tinham duas companhias
do cacete, praticamente com o efetivo completo, e quatro morteiros
de doze centímetros — pelo menos podíamos contar quatro. Aqueles
morteiros fi zeram gato e sapato da gente.34
S H A N E S A L E R N O : A fi m de tomar um vilarejo cuja população normal
totalizava menos de cem, o 12o Regimento perdeu trezentos homens. Em
desvantagem de dois para um, os alemães fi nalmente saíram com uma ban-
deira branca de rendição.
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T E N E N T E J O E M O S E S : Depois de muita discussão, o tenente Everett de-
cidiu avançar com alguns homens, para fazer (...) prisioneiros. Todos os prisio-
neiros à vista moviam-se em nossa direção com os braços levantados. Enquanto
estávamos nos aproximando para receber esses homens, um grupo de alemães
que manejava uma metralhadora, a qual não tínhamos visto, mas era parte da
unidade, abriu fogo quando o tenente e os guardas estavam a vinte metros de
seus inimigos. O tenente Everett foi alvejado na cabeça, descendo da bochecha
direita até o peito. Um outro homem também foi morto, e dois fi caram feridos.35
J O H N M c M A N U S : Os norte-americanos que testemunharam a falsa ren-
dição se tornaram algo que chamo “sedentos de sangue”. O 12o de Salinger
determinou que nenhum alemão, mesmo que tentasse se render, iria sobrevi-
ver. Eles mataram todos. Caçaram e mataram todos os alemães que puderam
encontrar. Sinceramente não sabemos o que aconteceu a partir de uma pers-
pectiva alemã, porque eles foram eliminados.
C A P I TÃO F R A N K P. B U R K : [Eles] fi zeram o inimigo pagar caro por sua
traição.36
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S H A N E S A L E R N O : Edmondeville fi cou gravada nas memórias de Salin-
ger e de seus companheiros do exército.
PA U L A L E X A N D E R : Em 12 de junho, menos de uma semana após o Dia
D, Salinger revelou seu sentimento geral sobre o que estava fazendo, quando
escreveu a [Whit] Burnett um sucinto cartão-postal no qual mencionou a
condução do trabalho de interrogatório. A maioria dos cidadãos, segundo ele,
fi cava nervosa com os bombardeios, mas feliz porque as tropas dos Aliados
tinham chegado para derrotar os alemães.
C O R O N E L G E R D E N F. J O H N S O N : No início do oitavo dia, estava cla-
ro que o inimigo, apesar dos contra-ataques violentos e repetidos, tinha sido
incapaz de nos fazer recuar um metro que fosse. A cabeça de praia estava
bastante segura naquele momento. Tropas e suprimentos estavam sendo de-
sembarcados em toda a praia de Utah e se espalhavam sobre o território dura-
mente conquistado pelo qual [o 12o de Infantaria] lutou com tanta coragem.
Isso enfatizou a necessidade de empurrar ainda mais o ataque para garantir o
crucial porto de Cherbourg no menor tempo possível.37
Paul Fitzgerald e J.D. Salinger com seus amados cães.
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A L E X K E R S H AW : Salinger testemunhou lutas de rua brutais na península
Cotentin enquanto o 12o seguia em direção a Cherbourg. O fracasso alemão
de separar as forças norte-americanas em Mortain foi um ponto decisivo nes-
sa batalha na Frente Ocidental. Em 23 de agosto, a 12a Equipe de Combate
Regimental iniciou a marcha de 265 quilômetros em direção a Paris.
S H A N E S A L E R N O : Tem havido muita desinformação sobre o que J.D. Sa-
linger realmente fez na guerra. Essas histórias imprecisas foram repetidas por
décadas em vários livros e artigos. O mais recente é Salinger: uma vida (2010),
de Kenneth Slawenski, com dezenas de erros sobre o registro de guerra de Sa-
linger. Slawenski afi rma que “uma vez no campo de batalha, ele [Salinger] foi
forçado a se tornar um líder de homens, responsável por esquadrões e pelotões”.
Para começar, das forças armadas norte-americanas apenas a Força Aérea pos-
sui esquadrões. Além disso, os membros do Corpo de Contrainformação não
lideraram homens; não eram soldados de combate. John Keenan, amigo próxi-
mo de Salinger que atuou com ele no CCI, explica suas funções reais.
J O H N K E E N A N : Nosso trabalho era apoiar as tropas de ataque, atuando
em postos de comando alemães, postos de comunicação, além de terminais
Um soldado americano olhando para um soldado alemão morto em Cherbourg.
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de comunicações, centrais telefônicas e de telégrafo. Também tínhamos
listas de pessoas apontadas como colaboradores dos alemães. Devíamos
nos apossar dos registros, interrogar. Muitas tarefas foram abortadas por-
que os alvos haviam sido eliminados. Por exemplo, a central telefônica de
Sainte-Mère-Église [tinha sido destruída]. Conseguimos alguns prisio-
neiros, mas não tínhamos tempo para interrogá-los, precisamos enviá-los
de volta para a Inglaterra.38
A L E X K E R S H AW : Como membro da contrainformação, Salinger tinha
muita liberdade. De certa forma, era uma guerra mais intelectual, mais explo-
ratória. Por exemplo, por estar na contrainformação, ele não teria de respon-
der a um ofi cial com sua patente. Poderia até mesmo mandar um major ou
um coronel fazer alguma coisa, apesar de ser um subofi cial. Ele tinha muita
liberdade para se mover atrás e perto das linhas inimigas, a fi m de entender
a cultura, as pessoas, o que a guerra fez com a população local, como tornou
tensas as relações entre soldados e moradores, como tinha corrompido, conta-
minado e estragado essas grandes culturas, tradições e povos europeus.
Ele teria entendido como era ser um civil e ser bombardeado, como era ser
um colaborador, ser uma jovem atraente do sexo feminino cuja única opor-
tunidade para receber pão e alimentar sua família era tendo relações com um
soldado alemão.
Ele teria entendido aquele nível de complexidade, não apenas na batalha,
porém, mais importante, nas relações submetidas à tensão e ao contato com
a batalha, e como a guerra envenena tudo. O veneno se espalha a partir do
campo de batalha e envenena tudo. Salinger teria tido uma imagem muito
completa do que a Segunda Guerra Mundial fez com as pessoas comuns.
J O H N M c M A N U S : A luta da 4a Divisão em Cherbourg se dava de prédio
em prédio, um quarteirão por vez. Eles avançaram por dentro dos prédios,
sempre que possível, porque estar na rua era muito perigoso. As construções
são muito valiosas nesse ambiente. Porém, quando os alemães eram encontra-
dos, o combate era muito próximo, assim como nas sebes. As lutas com armas
automáticas seriam tão próximas — metralhadoras Browning e Th ompson
— que a munição iria, literalmente, atravessar uma pessoa. Tiros na cabeça
arrancariam pedaços do crânio. A 4a e duas outras divisões lutavam para abrir
caminho pela cidade a fi m de chegar às defesas do porto alemão. Os Aliados
precisavam controlar o porto para garantir a chegada do abastecimento para
sua expansão pela Europa.
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PA U L F U S S E L L : O objetivo daquela operação era destruir a parte do exér-
cito alemão que continha o avanço dos Aliados. Esse avanço tinha de prosse-
guir, não importando quais fossem os custos humanos.39
Relatórios matinais da companhia.
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D AV I D S H I E L D S : As inúmeras perdas de ofi ciais americanos conforme o
12o saía das praias, abrindo caminho em direção a Cherbourg, obrigou cada
unidade a improvisar usando o pessoal disponível. O papel de Salinger pode
ter mudado de subofi cial de informação para ofi cial de combate, para ofi cial
de infantaria ou uma combinação de todos esses durante as operações de re-
conhecimento. Ele se calou sobre o assunto, mas há outros relatos que nos
dão uma boa ideia da situação mortal, impermanente, em que ele e o 12o se
encontravam.
C LY D E S T O D G H I L L : Após o bombardeio e avanço em Saint-Lô, nos-
so batalhão, talvez todo o 12o Regimento de Infantaria, recebeu a tarefa de
limpar alguns bolsões de combatentes alemães deixados para trás durante o
avanço rápido. Caminhávamos de um lugar para outro, muitas vezes cobrindo
o mesmo terreno duas ou mais vezes. Às vezes havia alemães à espera, e um
tiroteio se seguia (...) Foi uma tarefa árdua, que nos dava pouco tempo para
descanso ou sono e nos deixou em um estado de cansaço bem acima da mera
exaustão.40
L E I L A H A D L E Y L U C E : No começo, Jerry se sentiu muito patriótico, sen-
tiu que estavam fazendo o bem no mundo. Lembro que ele disse que era ex-
traordinário sentir que era parte de algo bom. Mas, quando ele viu as pessoas
feridas ou mortas, quando viu a morte e pessoas mutiladas, fi cou terrivelmente
angustiado. A partir daí ele não queria ter mais nenhum tipo de relação com
a guerra.
D E B O R A H D A S H M O O R E : Não há muito tempo para recuperar quem
você era antes da batalha. Você já foi alterado de uma forma que não consegue
imaginar.
E D WA R D G . M I L L E R : Foi um longo caminho desde um apartamento na
avenida Park até a Normandia e a guerra.
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