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SAMIZDAT 44 agosto 2015 ano VIII ficina www.revistasamizdat.com

Samizdat 44 - Franz Kafka

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Por que Samizdat?, Henry Alfred BugalhoCONTOO Paladino, Joaquim BispoAdeus, i, Leandro LuizEntrevista com um papagaio de pirata, Zulmar LopesMiragem, Maria BrockerhoffFóssil, Cinthia KriemlerGosto de ti como um eufemismo, Rafael PerpétuaTRADUÇÃOUm Artista da Fome, Franz KafkaARTIGOA Farsa de Inês Pereira: a figura feminina num mundo em transição, Tatiana AlvesCavaleiros e romances de cavalaria, Joaquim BispoRomantik und das Ewige Selbst, Wagner PontesCRÔNICACarta a um Jovem Filósofo, Henry Alfred BugalhoPOESIADrama, Eber dos Santos ChavesO fio da história, Ellen Maria Martins de VasconcellosO espantapássaros, Vander VieiraAs Baleias, Marcelo José dos SantosQuatro poemas, Marcus Groza

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SAMIZDAT44agosto2015ano VIIIficinawww.revistasamizdat.comEdio, Capa e DiagramaoHenry Alfred BugalhoEditor de poesiaVolmar Camargo JuniorReviso (sujeita a aceitao)Joaquim BispoAutoresTatiana AlvesJoaquim BispoMaria BrockerhoffHenry Alfred BugalhoEber dos Santos ChavesMarcus GrozaCinthia KriemlerZulmar LopesLeandro LuizRafael PerptuaWagner PontesMarcelo Jos dos SantosEllen Maria Martins de Vascon-cellosVander VieiraTextos de:Franz Kafkawww.revistasamizdat.comISSN 2281-0668SAMIZDAT 44agosto de 2015Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedada a Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royalty free ou sob licena Creative Commons.Os textos publicados so de domnio pblico, com consenso ou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei de Copyright dos EUA (107-112).As ideias expressas so de inteiraresponsabilidade de seus autores. A revista adota o Novo Acordo Ortogrfco. A aceitao da reviso proposta depende da vontade expressa dos colabora-dores da revista.EditorialA imortalidade um jogo perigoso e sem regras.Penso que, no fundo, todos que escrevem almejam, de um modo ou outro, que a sua memria se preserve, que seja dura-doura.Para os gregos antigos, com uma cultura que no se fundava na expectativa de uma vida aps a morte, imortalidade signif-cava ser lembrado, por isto, preponderavam os ideais de valor e glria, dos grandes feitos em vida.Mas a aclamao pela posteridade independe de mrito, injusta e arbitrria. s vezes, eleva artistas menores e olvida grandes gnios. Tudo possvel nesta roda da fortuna.H vrios mestres da escrita que s obtiveram reconhecimen-to ou sucesso aps terem deixado esta terra: Fernando Pessoa, Jane Austen, Henry David Thoreau, Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Stieg Larsson, Herman Melville, para citar alguns.Franz Kafka foi um destes brilhantes autores que obtiveram pouca ou nenhuma repercusso em suas pocas, mas que foram celebrados pelas geraes futuras.Em 2015, comemoramos 100 anos do lanamento de A Metamorfose de Kafka, esta obra que redefniu os rumos da Literatura no sculo XX.Henry Alfred BugalhoSumrioPOR QUE SAMIZDAT?6Henry Alfred BugalhoCONTOO Paladino 8Joaquim BispoAdeus, i13Leandro LuizEntrevista com um papagaio de pirata14Zulmar LopesMiragem16Maria BrockerhoffFssil18Cinthia KriemlerGosto de ti como um eufemismo20Rafael PerptuaTRADUOUm Artista da Fome22Franz KafkaARTIGOA Farsa de Ins Pereira: a fgura feminina num mundo em transio32Tatiana AlvesCavaleiros e romances de cavalaria40Joaquim BispoRomantik und das Ewige Selbst46Wagner PontesCRNICACarta a um Jovem Filsofo48Henry Alfred BugalhoPOESIADrama50Eber dos Santos ChavesO fo da histria51Ellen Maria Martins de VasconcellosO espantapssaros52Vander VieiraAs Baleias53Marcelo Jos dos SantosQuatro poemas54Marcus GrozaSiga-nos no Facebook e Twitter e acompanhe as novidades da Revista SAMIZDAT5A Revista SAMIZDAT conta com a sua participao para manter o alto padro das publicaes.Aceitamos e estimulamos a participao de autores estreantes, pois o nosso objetivo apresentar a maior diversidade possvel de autores, gneros e textos.Instrues para envio de obras1 - Cada escritor poder inscrever, nos respectivos campos, somente 1 (um) texto literrio para publicao, de qualquer gnero - conto, crnica, poesia, microconto -ou um (1) texto terico, como artigo de teoria lite-rria, resenha de livros, ou entrevista, alm de tradues de textos literrios em domnio pblico, sob licena Creative Commons ou com a expressa autorizao do autor. O autor tambm deve enviar uma breve biografa na primeira pgina do arquivo. 2 - O limite mximo para cada texto lite-rrio de mil (1000) palavras, ou 4 pginas em A4, fonte Times ou Arial 12, espaa-mento 1,5. O envio dos textos no implica a aceitao automtica; a seleo depender da quantidade de textos enviados, da qualidade literria e da disponibilidade de espao na revista. A reviso dos textos de responsabi-lidade de seus autores. O texto no precisa ser indito. 3 - Os textos devem ser enviados at o dia 30 de setembro de 2015 atravs do nosso gerenciador de submisses (link abaixo) em um arquivo anexo, em formato .DOC, .DOCX ou .TXT. Por favor, aguarde o perodo de um ms aps receber a resposta antes de enviar um outro texto. http://revistasamizdat.submishmash.com/submit No aceitamos mais textos enviados por e-mail. 4 - Os textos selecionados sero publi-cados na edio 45 da Revista SAMIZDAT no fnal do ms de outubro de 2015, no site www.revistasamizdat.com ou podero apare-cer como postagens no site, caso a edio em .PDF j esteja fechada. 5 - Os textos sero publicados sob licena Creative Commons Atribuio-Uso No-Co-mercial-Vedada a Criao de Obras Deriva-das e o autor no ser remunerado. O envio de textos implica a aceitao por parte do autor destes termos. 6 - os organizadores da SAMIZDAT se reservam o direito de no publicar a revis-ta, caso o nmero de submisses no seja o sufciente para o fechamento da edio. 7 - O no cumprimento dos itens acima poder implicar na desqualifcao da obra enviada. Contamos com a sua participao! Atenciosamente.Henry Alfred BugalhoEditorParticipe da Revista SAMIZDAT 45 outubro de 20156Incluso e ExclusoNas relaes humanas, sempre h uma din-mica de incluso e excluso.O grupo dominante, pela prpria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que no pertena a seu projeto, ou que esteja contra seusprincpios.Em regimes autoritrios, esta excluso muito evidente, sob forma de perseguio, censura, exlio. Qualquer um que se interponha no caminho dos dirigentes afastado e ostraci-zado.As razes disto so muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente perigo-so, pois apresenta alternativas, s vezes, muito melhores do que o estabelecido. Por isto, necessrio suprimir, esconder, banir.A Unio Sovitica no foi muito diferente de demais regimes autocrticos.Origina-se como uma forma de governo humanitria, igualitria, mas logo se converte em uma dita-dura como qualquer outra. a microfsica do poder.Em reao, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que no queriam, ou no conseguiam, fazer parte da mquina administrativa que estipulava como deveria ser a cultura, a informao, a voz do povo , encontraram na autopublicao clandestina um meio de expresso.Datilografando, mimeografando, ou sim-plesmente manuscrevendo, tais autores rus-sos disseminavam suas ideias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e tambm aspassando adiante. Este processo foidesignado "samizdat", que nada mais signifca em russo do que "auto-publicado", em oposio s publicaes ofciais do regime sovitico.Por que Samizdat?Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa distoVladimir BukovskyHenry Alfred [email protected]: exemplo de um samizdat. Cortesia do Gulag Museum em Perm-36.7 www.revistasamizdat.com 7E por que Samizdat?A indstria cultural e o mercado literrio faz parte dela tambm realiza um processo de excluso,baseado no que se julga no ter valor de mercado. Inexplicavelmente, estabele-ceu-se que contos, poemas, autores desconhe-cidos no podem ser comercializados, que no vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maiores do que o lucro.A indstria deseja o produto pronto e com consumidores. No basta qualidade, no basta competncia; se houver quem compre, mesmo o lixo possui prioridades na hora de ser absor-vido pelo mercado.E a autopublicao, como em qualquer regi-me excludente, torna-se a via para produtores culturaisatingirem o pblico.Este um processo solitrio e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. No h grandes aparatos miditicos como TV, revistas, jornais onde ele possa divulgar seu trabalho. O nico aspecto que conta o prazer que a obra causa no leitor.Enquanto que este um trabalho difcil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele dono de sua pala-vra, o responsvel pelo que diz, o culpado por seus erros, quem recebe os louros por seus acertos.E, com a internet, os autores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercusso do que escrevem (quando h) surge emquesto de minutos.A serem obrigados a burlar a indstria cul-tural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato quase pessoal com os leitores, odilogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de contatos que, se no to infuente quanto a dagrande mdia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que l. No h sucesso, no hgrandes tiragens que substituam o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que no esto atrs de grandes autores populares, que no perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.Os autores que compem este projeto no fazem parte de nenhummovimento literrio organizado, no so modernistas, ps- modernistas, vanguardistas ouqualquer outra defnio que vise rotular e defnir a orientao dum grupo. So apenas escritores interessados em trocar experincias e sofstica-rem suas escritas. A qualidade deles no uma orientao de estilo, mas sim a heterogeneida-de.Enfm, Samizdat porque a internet um meio de autopublicao, mas Samizdat porque tambm um modo de contornar um processo de excluso e de atingir oobjetivo fundamental daescrita: ser lido por algum.SAMIZDAT uma revista eletrnica gratuita, escrita, editada e publicada pela novssima gerao de autores lusfonos. Diariamente so includos novos textos de autores consagrados e de jovensescritores amadores, entusiastas e profssionais. Contos, crnicas, poemas, resenhas literrias e muito mais.www.revistasamizdat.com8 SAMIZDAT agosto de 2015Joaquim BispoO PaladinoConto8 SAMIZDAT agosto de 20159 www.revistasamizdat.comO rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caam o veado na foresta de Ga-mywood. Esto acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manh vai avanada e ainda no abateram qualquer pea de caa. Avistam um veado, um enorme doze-hastes, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado: A esta distncia, homem algum lhe consegue acertar!Que prmio me dareis, se o atingir? inquire Guloz, sobranceiro.O rei semicerra os olhos e avalia a distn-cia: Impossvel! O que me pedirdes! declara o rei, categrico.O senescal retesa o arco. Um gavio passa a voar esquerda do grupo. Os coraes dos homens do rei apertam-se. A fecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direo ao animal. Surpreendentemen-te, trespassa o fanco do veado que logo cai morto.Levanta-se um coro de regozijo na comi-tiva. O cavaleiro Potranc est apreensivo. O rei grita: Hurrah! Que bela pea vamos ter hoje para a ceia. Felicitaes, sire! Dizei-me, ento, que prmio quereis por esta proeza. Palavra de rei no volta atrs!Guloz olha em volta e d com os olhos na jovem rainha. Quero a rainha Florence.Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. H muitas mos nos punhos das espadas. A rainha intervm: Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; no os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, j que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafo justo.Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.Potranc diz ao rei: Vs, pela vossa palavra, nada podeis fa-zer, mas eu, que no aceito a perda da minha senhora, irei resgat-la de Guloz.O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que algum o tente demover. Embrenha-se no caminho da foresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fm de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo gua, o qual luta para vencer a fora da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstculo, sos e salvos.Logo frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desem-bainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro fanco. Potranc espadeira esquerda e direita. Num golpe perna, corta o estribo do primeiro, que se desequi-libra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.Potranc no quer combater, s passar. Avana. Mais frente, chega a uma bifurca-o. H sinais de cascos em ambos os ca-minhos. V um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe: Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu. Todos os caminhos vo dar ao Senhor, 10 SAMIZDAT agosto de 2015mas o do evangelho mais direto que o da epstola responde o santo homem. Deixai-vos de enigmas, que isto no um romance de Chrtien de Troyes ripos-ta Potranc de mau humor. Indicai-mo sem demora! vossa direita, sire diz o monge, aps o que murmura entre dentes: Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!.Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, no suportando tal esforo, tom-ba e morre. O cavaleiro prossegue a p.Num troo do caminho onde o matagal mais espesso, Potranc depara com um enor-me javali. O animal, ou porque est a defen-der o territrio ou porque acha agressiva a fgura do cavaleiro a p, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta frente. Potranc, surpreendido, s pode saltar para o lado. A besta volta carga, mas o cavalei-ro, treinado em justas de lana, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabea do varrasco, que este tomba de crnio aberto.Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loia no seu carro puxado por uma mula. Para onde vais, almocreve? indaga o cavaleiro apeado. Para o castelo do rei Justin. Se quiser-des, posso levar-vos responde o carregador, solcito.Potranc no tem outro remdio seno aceitar, apesar da situao pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam noitinha.Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito est cheio de receio, pelo que possa ter acontecido sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de afio. Vm do ponto mais alto da torre. L chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trs dela, vm os gritos da sua senhora. Louco de fria, arremete de espada em riste contra os se-quazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz as-soma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho. Minha senhora, morrerei, se tal for pre-ciso, para vos salvar grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.Guloz, com um gesto, manda parar o combate. Que quereis daqui, cavaleiro? A minha senhora, que vs, malicio-samente, usurpastes responde Potranc enraivecido. Vistes bem que no forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal. Aposta, sim, mas no leal. Um nobre cavaleiro, alm do mais, convidado, no se aproveita assim, dum gesto magnnimo do seu anftrio. Vs no tendes nobreza. J que quereis tanto bem vossa se-nhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com xito trs tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e faz-la beber da sua prpria poo; e encontrar-me a espa-da que deixei cair ao Lago do visco enu-mera Guloz com um sorriso furtivo. No vou cumprir nenhuma dessas estpidas tarefas riposta Potranc. No que me intimidem. O mais certo que no respeitsseis a vossa prpria palavra e cris-seis outros obstculos. Vs sois matreiro e 11 www.revistasamizdat.comcobarde!O cenho de Guloz carrega-se. Est prestes a bradar por reforos, quando chega o rei Justin, atrado pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia: Guloz tem razo porque, dadas as condies e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prmio, mas Potranc, como seu paladino, tem direi-to a procurar contestar essa condio que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situao tambm me constrange e temo que ponha em perigo as boas relaes que tm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?Ambos os contendores assentem. Na ma-nh seguinte, hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fla e s damas da corte, que se aglomeram junto ao palan-que real, alinham-se os antagonistas. Justin d sinal para comearem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribudo e arremete contra o outro, de lana em riste. O pri-meiro golpe faz voar um troo da ponta de cada lana. Os cavaleiros voltam para trs e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanas apontam ao peito do adversrio e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lana no resta mais que um toco, trocam por novas e recomeam o combate.Neste reincio, Potranc engana o rival e atinge-o com a lana em pleno peito. Guloz arrancado da montada e cai desamparado. Potranc no se aproveita da vantagem. Des-monta e prossegue o combate a p. Guloz j se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantm-se silenciosos, mas as damas no conseguem evitar um ou outro grito de emoo. As maiores simpatias vo para o defensor da rainha Florence.De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteo do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abun-dantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, no que Potranc faa meno de atacar o adversrio no cho, mas por se tornar claro de que lado est a razo neste ordlio. A rainha Florence ser confa-da proteo de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, ser expulso do seu reino.Aps uma refeio festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo nobremente ajaezado. Embrenham-se na foresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte cada. A tarde vai soalheira, a foresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradvel a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.De repente, um texugo passa a correr frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrs, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo no tenha segredos para a rainha, desta vez, no con-segue domin-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. No se magoa. O cava-lo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as rvores. No h outro remdio seno subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.Da a pedao, o sol baixa e a foresta comea a escurecer. Passam por um forno 12 SAMIZDAT agosto de 2015de carvo, chegam cabana do carvoeiro, que parece no receber o dono h semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estma-go com mas silvestres e descansam, como podem Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.Na manh seguinte, quando Potranc acor-da, fca amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fos dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda tambm, perce-be o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manh, e renova a enorme ternura que desde sempre sente por este jovem, que se sujeita a tan-tos perigos por sua causa. Os seus olhares fundem-se numa comunho de almas mu-tuamente afeioadas. Nenhum tenta resistir atrao. Os seus lbios encontram-se e os seus corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo h muito sublimado.Nesse momento, o cavalo de Potranc relin-cha e ambos regressam sua realidade. Sei que me amais tanto quanto me respeitais sussurra a rainha, enquanto de-posita um beijo suave na fronte possante de Potranc. Sois o meu mais querido paladi-no. Sim, minha rainha, amo-vos mais do que a tudo na vida, e o meu respeito por vs s tem paralelo na minha lealdade ao nosso rei declara Potranc, comovido. Estarei sempre a vosso lado.A emoo toma conta de ambos. Abra-am-se longamente, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris.Retemperados, prosseguem o regresso ao castelo, onde as pessoas que so tudo nas suas vidas, os esperam inquietas, sem saber que Potranc j resgatou, galhardamente, a rai-nha e a traz de volta s e salva. Cavalgando a caminho do seu lar, levando a sua senhora na garupa, Potranc o cavaleiro mais feliz do mundo.Joaquim BispoPortugus, reformado, ex-tcnico da televiso pblica, licenciado tardio em Histria da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a escrita de fco desde 2007. Integra vrias coletneas resultantes de concursos lite-rrios dos dois lados do Atlntico e publica regularmente na revista Samizdat desde 2008. Contacto: [email protected] www.revistasamizdat.comLeandro LuizAdeus, iContoAps anos de um trabalho muito intenso, i comeou a apresentar alteraes emocio-nais e comportamentais nos textos nos quais aparecia. Nos ltimos dez anos, ele vivia uma dualidade quanto sua individualidade, pois, em algumas situaes, acreditava ser uma vogal. J em outros momentos, acreditava ser um ponto de exclamao.Esse distrbio deu incio a uma srie de problemas aos autores e leitores de todo o mundo, principalmente, na interpretao de importantes contos, crnicas, fbulas, repor-tagens e tantas outras narrativas que eram escritas.Foi encaminhado a um renomado institu-to lingustico e, ao se submeter a alguns exa-mes, o professor de portugus foi categrico no seu diagnstico: i sofria de transtorno de personalidade, uma perturbao irreversvel que piorava a cada dia, para a tristeza de sua famlia de fonemas.Seus ltimos dias literrios foram marca-dos por uma grande dislexia, alm de muitos espaos deixados em branco nas pginas dos livros.Signifcados fcaram incompletos. Frases incompreendidas. Pargrafos sem sentido. i estava realmente muito confuso. No sabia mais qual era a sua classe morfolgica. Nem mesmo o dicionrio conseguiu ser efcien-te no seu tratamento. Alguns poetas at se mobilizaram para ajud-lo, mas no tiveram xito.Para agravar a situao, i entrou em uma profunda depresso. J no tinha mais von-tade de ser vogal. Tampouco um ponto de exclamao. Ele no tinha mais vontade de viver, de escrever ou de falar. i parou de se alimentar e no queria mais saborear o que tanto amava a educao. Infelizmente, i no aguentou. Ele se foi para sempre sem escrever nada. Para a tristeza de todos os vocbulos, partiu sem ao menos dizer uma s palavra.Adeus, i. Adeus. Perdemos uma importan-te letra. A ortografa custa acreditar na sua partida repentina. A grafa chora. As laudas esto inconsolveis. O que nos resta agora aceitar o destino, que certo e irreversvel para todo e qual-quer conjunto de palavras. A nica certeza que temos que um dia chegaremos ao to temido ponto fnal. Leandro Luiz33 anos, publicitrio, redator e escritor. autor do livro Hora da Escrita Contos, Crnicas e Outras Mentiras de Leandro Luiz, baseado no seu blog.https://www.fickr.com/photos/jmcruz/151189337/sizes/o/14 SAMIZDAT agosto de 2015Zulmar LopesEntrevista com um papagaio de pirataContohttps://www.fickr.com/photos/klamurke/420898605/sizes/l Estamos aqui na Cinelndia com o senhor Jair. Ele conhecido como o maior papagaio de pirata do Rio de Janeiro, aqueles sujeitos que fcam atrs das equipes de reportagens e dos entrevistados com o nico objetivo de aparece-rem na televiso. Bom dia, seu Jair. Bom dia, dona... Cludia Freitas... ... dona Cludia Freitas. Quando o senhor comeou sua carreira de papagaio de pirata? Isso foi h muitos anos. Eu estava indo para o escritrio onde eu trabalhava depois do almoo quando uma pessoa caiu dentro do buraco da obra do metr l na Rua Uruguaia-na. Juntou gente para ver o resgate e quando eu fui assistir o jornal noitinha, vi que eu estava atrs do bombeiro que fez o resgate e estava sendo entrevistado por uma mocinha que agora apresentadora daquele programa de domingo noite e que esqueci o nome. Mal acabou a reportagem, meu telefone no parou de tocar. Era um tal de parente, amigo da roda de chope, colega de trabalho dizendo. P, cara! Te vi na televiso! A, eu tomei gosto pela fama e estou aqui at hoje. O senhor muito conhecido por suas apa-ries. Como o senhor sabe onde as equipes de televiso estaro? Ah, minha flha... feeling... Tem uns luga-15 www.revistasamizdat.comres bsicos onde sempre tem jornalista de TV. Aqui, na Cinelndia, um deles. O Largo da Carioca outro lugar fcil de achar reprter. A Praa Nossa Senhora da Paz em Ipanema tam-bm outro ponto bom. Tenho que fcar aten-to aos horrios tambm. Os jornais de manh e da hora do almoo sempre entram ao vivo.A eu dou uma arriscada por estes lugares e, de cada cinco, seis tentativas, uma eu acerto. O senhor no se incomoda de ser chama-do de papagaio de pirata? Que nada, minha flha. Essa gente invejo-sa. J fquei atrs do ombro de ministro, joga-dor de futebol, cantor de dupla sertaneja e at de um governador de estado. Tudo inveja. E a concorrncia? Pois . Tem uns caras agora que querem competir comigo, mas eu sou mais eu. Se for necessrio, eu dou um chega pra l e me po-siciono melhor. Essa garotada tem que comer muito arroz com feijo para aparecer na tele-viso. Mas tem uns meninos que me respeitam, pedem at umas dicas. Pra estes eu at dou uma mozinha, mas no ensino o meu pulo do gato. E quais so as difculdades que o senhor encontra nesta sua atividade, seu Jair? Os cinegrafstas! So piores que os repr-teres. Tem uns que j chegam dando espor-ro, mandando a gente fcar de longe. Outros desfocam a nossa cara, movem a cmera para deixar a gente fora de cena mas, eu j sou macaco velho e quando percebo o movimento da cmera, dou um passo de leve para a dire-o que o cinegrafsta aponta e fco em cena. Tem uns entrevistados que tambm fcam fulos da vida. Quando acaba a entrevista saem logo para a ignorncia, dizendo que eu atrapalhei o desempenho deles e o diabo a quatro. Mas eu fco na minha, mantenho minha postura. Sou um gentleman. No vou fcar dando cartaz a qualquer um. Afnal de contas, por que o senhor faz isto? Por qu? Para ser famoso, minha flha. Todo mundo quer ser famoso, aparecer na te-leviso. Voc mesma no t a na batalha para fcar famosa? Alis, de que canal voc ? De canal algum. Isto aqui uma reporta-gem para o jornal de faculdade de jornalismo onde eu e o Bruno, que est operando a cme-ra, estudamos. Vai passar s l. Caramba, minha flha! E eu perdendo o meu tempo com voc? Faa-me o favor! Jornal-zinho de faculdade! Era s o que me faltava! T me achando com cara de palhao? Quem no tem o que fazer? Ora essa!Zulmar LopesO autor jornalista. Premiado no 1 concurso literrio Contos do Rio, pro-movido pelo jornal O Globo. Menes honrosas no 7 concurso de Contos Lus Jardim, 11 Concurso Nacional de Contos Josu Guimares e 23 Concurso Na-cional de Contos Cidade de Araatuba, Concurso Nacional de Contos Jos Cndi-do de Carvalho e Prmio Cataratas. Vencedor do XXXIII Concurso Literrio Felippe DOliveira/2010 na categoria conto e do Prmio Escriba 2013. Colaborador da Revista Eletrnica Samizdat. Roteirista do curta de animao Chapeuzinho Adolescente lanado em 2010. Membro Correspondente da Academia Cachoeirense de Letras. Tem contos e crnicas publicados em diversas antologias. Em 2011 lanou o livro de contos O Cheiro da Carne Queimada.16 SAMIZDAT agosto de 2015Maria BrockerhoffMiragemContohttps://www.fickr.com/photos/tom_hall_nz/17004434418/sizes/o/17 www.revistasamizdat.comAs estrelas salpicam o cu. Com um sentimento de inquieta-o e prazer aguardo os passos lpidos, o sorriso largo porta destrancada num timo, o calor de um abrao em rodopio apagaria o hiato infnito do desejo.A mesa preparada com a cerveja escura na medida do seu paladar. As frutas suculentas e o cheiro de semente de papoula no po nos envolveriam num recreio de brincadeiras de roda, de cabra-cega.Ao som do piano, compreenderamos ser a aceitao da aco-lhida a nica via para amenizar a travessiadeste deserto humano.J no ponto, a gua tpida do banho para enxaguar-lhe o chei-ro l de fora, o p das regras ofciais e a nos dissolver a couraa.Agora, o corao pronto para teceros enredos perdidosos silncios truncados.Para remendar os segredose cerzir os desencantos.A noite, a nica espectadora do dilogo dos corpos, da entrega por inteiro, da experincia nova a cada reencontro... depois, o inefvel descanso como o da sombra de uma rvore e o gosto de um gole dgua fresca no cncavo de uma outra moForam-se as estrelas o seu lugar vazio.Maria BrockerhoffNo calendrio chins, o meu smbolo, a serpente, tem a virtude de renascer das cinzas, de trocar de pele e de ter muitas vidas! Tambm representa um espao onde se encontram o bem e o mal, o claro e o escuro, a plenitude e o vazio, o perigo e a bonana.Sob essas ideias romnticas e divertidas existe a certeza de uma profunda perplexidade onde a escrita uma pulso salvadoraBlogs:erinias.netlounge.obviousmag.org/da_janela_das_eumenides/https://www.fickr.com/photos/tom_hall_nz/17004434418/sizes/o/18 SAMIZDAT agosto de 2015Fssilhttps://www.fickr.com/photos/sc-hyre/2857892343/sizes/lContoCinthia Kriemler19 www.revistasamizdat.comUm pouco de nimo e ela poder voltar a fazer planos. Arrumar os cabelos, tirar as sobrancelhas, fazer as unhas dos ps e das mos. Talvez uma maquilagem leve. Talvez o corpo perfumado por cremes e por um fran-cs usado a conta-gotas. Natao, academia, massagem, caminhada, saladas verdes em todos os tons, penetradas por frutas e fores e gros. Ou dana de salo. Ela sempre quis fazer dana de salo. Um pouco de motiva-o e pode ser que consiga at um empre-go novo. Um que receba de braos abertos aquele diploma guardado num tubo. E ela vai ganhar dinheiro para comprar roupas novas, objetos para a casa, presentes para o flho que nunca a visita.Mas pode ser que ela no queira nada disso. E que num momento de honestidade intensa abandone os pode ser, os condicio-nais, os pretritos imperfeitos, e seja o sono-ro imperativo que decide um foda-se. Porque ela no foi feita dessa massa de vontades agitadas. Ela veio descanso. E por isso no v sentido na agonia matutina de levantar pou-co depois do sol nascer para caminhar num parque ou numa rua cheia de transeuntes que se ignoram e em seguida ir esfriar o cor-po suado em uma piscina morna que mais vai deix-la mole do que vai lhe dar vontade de exercitar braadas sincopadas para enrije-cer os braos e dar pernadas vigorosas para endurecer as pernas antes de voltar para casa e comer as saladas verdes invadidas por mangas ou mas ou morangos ou grano-las ou chias ou fores que lhe afrmam ser comestveis.Ela cama at que o cheiro do almo-o de carnes e massas a convide a abrir os olhos para o prato colocado na mesa mvel que mora no quarto. Ritual. Os olhos que descem a tela do celular lendo mensagens e notcias intercaladas s garfadas esto sem-pre sonolentos. No alto da cabea, o cabelo emaranhado forma desenhos engraados. Dentro da cabea, um pensamento a alerta de que a lista de compras do supermercado precisa ser feita. Mas isso implicaria descer as escadas, ir rua, dirigir, dar voltas com-pletas em gndolas cheias de possibilidades, suar, sentir os ps inchando numa fla que sempre est l. No. Ela escolhe a internet, que vende e manda entregar.A janela aberta para a rua o passeio do dia. E basta. O roupo abotoado dispensa vestido, bermuda, suti, sapatos. E serve para chegar janela. O rosto lavado a desistn-cia declarada. Um texto que comunica silen-ciosamente a distncia interposta entre ela e as pessoas e coisas que teimam em lhe exigir atitudes. Como o companheiro, que esperou dela mais do que havia. Quando ele abriu a porta, quase arriscou um gesto lhe pedindo para fcar. Mas o fnal da novela das nove era mais real e urgente que o abandono.Como os fsseis, ela morreu e se de-comps. Como os fsseis, sua carcaa est incrustada em rochas. E as rochas so inaba-lveis.Cinthia KriemlerCarioca e mora em Braslia. Contista, cronista e poeta, escreve para a SAMIZDAT todo dia 16. Au-tora dos livros: Na escurido no existe cor-de-rosa (2015); Sob os escombros (2014); Do todo que me cerca (2012), pela Editora Patu. E Para enfm me deitar na minha alma (2010), projeto aprovado pelo FAC-DF. Na Amazon Brasil, publicou os e-books Atos e omisses e Contaes.20 SAMIZDAT agosto de 2015Rafaela PerptuaContoGosto de ti como um eufemismohttps://www.fickr.com/photos/renneville/2948809965/sizes/o/21 www.revistasamizdat.comTu. Foste tu que me mostraste que eu sou feita de saudades. s a minha metfora em forma de gente, que corre de mim, querendo fugir, corre para mim, querendo fugir. E eu corro para ti, e quase te alcano nessa tua bolha formada pelos teus mais puros sen-timentos, emoes em turbilho, gritos que deixaste de gritar. Para mim impossvel entrar. O mundo no somos s ns os dois. Tens que sair para mim, que eu deixo que me encontres, mesmo sem me procurares. Grita para mim. Grita, que eu irei ouvir to-dos os teus devaneios e irei ser louca contigo! Connosco tudo possvel desde que seja loucura...Eu quero-te tanto e quero tanto no te querer. s, por isso, a minha anttese mais pura e verdadeira. Se te quero desta forma, porque haveria de te querer de outra? S te quero: apenas.Permite-me que te diga que s, em mim, algo que eu sinto que no existiu. No foste real. Nem s. Quem s tu, que me deixou terrivelmente catica? Parece impossvel que seja verdade. Qual paradoxo em constante rodopio... Para mim no s real, e no entan-to, continuas a ser das realidades que mais mexe com o meu corao. Sinto-o estremecer perante qualquer coisa que me faa lembrar de ti. E qualquer coisa? tudo...O tempo vai passando, de forma to lenta, to rpida, to confusa, que j nem te sei. Deixei de te saber. E fui abrindo uma bolha s minha, no permitindo que mais ningum entre. Se achares que sim, o meu corpo que est a mentir. Porque s a ti que ele diz a verdade. S a ti que ele cede, cometendo os erros mais puros.Sabes? Sei que pensas que sempre soubeste tudo o que me dizia respeito, mas nem que te abrisse por completo o meu corao, con-seguirias perceber isto que eu sinto, porque nem a mim ele se quer explicar. um ser com vontade, o meu corao. a personi-fcao de tudo aquilo que eu sinto por ti, de tudo aquilo que me fazes sentir. E fazes sentir tanto!Ds-me um conjunto de sensaes que me entorpecem. Deixaste o meu corao parado a bater por ti. Desfzeste as minhas mgoas e moldaste-as tua maneira, tornando-as mais reais. Fizeste-me ser to eu e to des-vairadamente louca por ti, que me trocaste as voltas, deixando-me perdida. E eu, que j era perdida de mim, agora encontro-me perdida de ti...Quero apenas que saibas que gosto de ti como um eufemismo. E haver melhor forma para dizer isto se s assim o consigo dizer? Se nunca tive palavras para o dizer, se nun-ca gostei de algumas palavras para te dizer aquilo que sinto. Sabes que eu no gosto de certas palavras, no sabes? Mas sempre gostei de ti... E no quero que saibas a verdade. Por isso, tapa-me a boca com um beijo dos teus, que para mim como uma culpa inocente, uma desculpa que me condena, reprime, con-trola, sufoca. Enlouquece. Enlouqueces-me.s o meu conjunto de fguras de estilo, loucura a andar pelas ruas, a dormir ao meu lado na cama onde fcamos acordados, por-que impossvel conseguir adormecer quan-do te tenho to prximo de mim, quando te posso passar os dedos pelos lbios, e delinear o sorriso que teu, mas eu te dou. s mais complicado que regras gramaticais. difcil seguir os teus passos, sem nunca saber onde vou parar. Sabes, mostraste-me apenas que s a exceo da regra...Rafaela Perptua23 anos, psicloga, futura mestre em Psicologia da Educao. Sendo uma eterna perseguidora das palavras, conseguiu juntar uma parte delas em 2011 com a publica-o do seu primeiro livro No me peas que te ame, uma edio da Chiado Editora. Se se conseguisse resumir a si e ao mundo, em meia dzia de frases, no seria certa-mente uma apaixonada pela leitura e pela escrita.22 SAMIZDAT agosto de 2015Traduo Franz KafkaTrad.: Henry Alfred BugalhoUm Artista da Fome23 www.revistasamizdat.comNa ltima dcada, o interesse em artistas da fome decaiu consideravelmente. Embora antigamente podia-se ganhar um bom di-nheiro realizando grandes produes deste tipo sob sua prpria gesto, atualmente isto totalmente impossvel. Aqueles eram tempos diferentes. Antigamente, o artista da fome capturava a ateno da cidade inteira. Dia aps dia, enquanto durava o jejum, a partici-pao aumentava. Todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez ao dia. Durante os ltimos dias, havia pessoas com ingressos que se sentavam durante o dia inteiro dian-te da pequena jaula com barras. E havia at horas de exibio noite, com seu impacto aumentado por luz de tocha. Em dias bons, a jaula era arrastada para fora, para o ar livre, ento o artista da fome era posto em exibio particularmente para as crianas. Ainda que para os adultos o artista da fome fosse fre-quentemente uma divertimento, algo em que eles participavam porque era uma moda, as crianas observavam deslumbradas, com as bocas abertas, segurando as mos umas das outras por precauo, enquanto ele se senta-va ali sobre palha espalhada desdenhan-do uma cadeira em collants pretos, com aparncia plida, com suas costelas proemi-nentemente pontiagudas, s vezes aquiescendo educadamente, respondendo perguntas com um sorriso forado, at mesmo esticando seu brao atravs das barras para deixar que as pessoas sentissem quo emaciado ele estava, mas, depois, mergulhando de novo comple-tamente em si, de modo que ele no presta-va ateno a nada, nem mesmo ao que era importante para ele, o soar do relgio, mas meramente olhando para a frente de si com seus olhos quase cerrados e, de vez em quan-do, bebericando de um copinho de gua para umedecer seus lbios.Alm dos cambiantes grupos de especta-dores, havia tambm observadores constantes escolhidos pelo pblico estranhamente eles geralmente eram aougueiros que, sempre em trs por vez, recebiam a tarefa de obser-var o artista da fome dia e noite, para que ele 24 SAMIZDAT agosto de 2015no obtivesse nada de comer de algum modo secreto. Contudo, era mera formalidade, introduzida para tranquilizar as massas, pois aqueles que compreendiam bem o sufciente que durante o perodo de jejum o artista da fome nunca, sob qualquer circunstncia, teria comido a menor das coisas, nem mesmo se fosse obrigado. A honra de sua arte o proi-bia. Naturalmente, nenhum dos espectadores compreendia isto. s vezes, havia grupos no-turnos de observadores que conduziam sua viglia de maneira bastante relaxada, delibe-radamente sentando-se juntos em um canto distante e depositando toda sua ateno nas cartas, claramente com a inteno de dar ao artista da fome um pouco de refresco, que, de acordo com o modo de pensar deles, ele poderia obter de algum suprimento secreto. Nada era mais excruciante para o artista da fome do que tais observadores. Eles o depri-miam. Eles faziam com que seu jejum fcasse terrivelmente difcil. s vezes, ele superava sua fraqueza e cantava durante o tempo que eles estavam observando, at quando pudesse aguentar, para mostrar s pessoas quo injus-tas eram as suspeitas delas em relao a ele. Mas isto pouco ajudava. Pois, ento, eles se indagavam entre si sobre a habilidade de ele conseguir comer mesmo enquanto cantava. Ele preferia os observadores que se sentavam bem perto das barras e, no satisfeitos com a fraca iluminao do ambiente, iluminavam--no com lanternas eltricas que o empresrio lhes disponibilizava. A luz brilhante no o incomodava nem um pouco. Geralmente, ele sequer conseguia dormir, e ele podia sempre cochilar um pouco sob qualquer iluminao e em qualquer hora, mesmo em um audit-rio lotado e ruidoso. Para tais observadores, ele estava bastante preparado para passar com contentamento a noite inteira sem dor-mir. Ele estava pronto para contar piada com eles, para relatar histrias de sua vida nom-dica e, ento, ouvir de volta as histrias deles fazendo de tudo apenas para mant-los acordados, para que ele pudesse continuar exibindo-lhes novamente que ele no tinha nada para comer em sua jaula e que ele jeju-ava como nenhum deles conseguiria. Entre-tanto, ele fcava mais feliz quando a manh raiava e um suntuoso caf-da-manh era tra-zido para eles por sua conta, sobre os quais eles se lanavam com o apetite de homens saudveis aps uma noite de trabalho sem sono. verdade que ainda havia pessoas que queriam enxergar neste caf-da-manh um meio desonesto para infuenciar os observa-dores, mas isto estava indo longe demais, e se elas fossem indagadas se queriam assumir o turno noturno dos observadores por conta prpria, sem o caf-da-manh, elas se escu-savam. Mas, mesmo assim, elas continuavam suspeitosas.Contudo, em geral, fazia parte do jejum que estas dvidas estivesse intrinsecamente associadas a ele. Pois, na verdade, ningum estava em condies de gastar seu tempo observando o artista da fome todos os dias e noites sem interrupo, ento ningum poderia saber, baseado em sua prpria obser-vao, se este era um caso verdadeiramente contnuo e impecvel de jejum. Apenas o artista da fome poderia saber disto e, ao mesmo tempo, era o nico espectador capaz de fcar completamente satisfeito com seu prprio jejum. Mas a razo porque ele nunca estava satisfeito era diferente. Talvez no fosse sequer o jejum que houvesse deixado--o to emaciado para que muitas pessoas, por seu prprio remorso, se mantivessem afastadas de sua apresentao, porque elas no conseguiam suportar olhar para ele. Pois ele era esqueltico por causa de insatisfao consigo prprio, porque somente ele sabia algo que at iniciados no sabiam de quo fcil era jejuar. Isto era a coisa mais fcil do mundo. Ele no se silenciava quanto a isto, mas as pessoas no acreditavam nele. Na melhor das hipteses, elas pensavam que ele estava sendo modesto. A maioria delas, contudo, acreditava que ele estava buscando publicidade ou era um vigarista completo, para quem, seja como for, jejuar era fcil porque ele compreendia como torn-lo fcil, ento ainda tinha coragem de admitir isto 25 www.revistasamizdat.comparcialmente. Ele tinha de aceitar tudo isto. Com o passar dos anos, ele se acostumou a isto. Mas esta insatisfao continuava remo-endo em suas entranhas todo o tempo e ele ainda nunca e isto tinha de ser dito a seu crdito havia deixado a jaula por sua von-tade prpria aps qualquer perodo de jejum. O empresrio havia estabelecido a durao mxima de tempo para o jejum de quaren-ta dias ele nunca permitiria que o jejum ultrapassasse este ponto, nem mesmo em cidades cosmopolitas. E, na verdade, ele tinha uma boa razo. A experincia havia demons-trado que, por aproximadamente quarenta dias, podia-se paulatinamente gerar o interes-se de uma cidade ao aumentar gradualmente a publicidade, mas depois o pblico voltava as costas podia-se demonstrar uma queda signifcativa em popularidade. Em relao a isto, havia, claro, pequenas diferenas entre diferentes cidades e entre diferentes pases, mas, como uma regra, era verdade que qua-renta dias era a durao mxima de tempo. Ento, no quadragsimo dia, a porta da jaula que era coberta com fores era aberta, e uma plateia entusiasmada enchia o anftea-tro, uma banda marcial tocava, dois mdicos entravam na jaula para poderem fazer as medies necessrias do artista da fome, os resultados eram anunciados para o auditrio atravs de um megafone e, fnalmente, duas jovens chegavam, felizes de terem sido sele-cionadas por sorteio, e procuravam ajudar o artista da fome a descer um par de degraus para fora da jaula, onde sobre uma pequena mesa uma refeio hospitalar cuidadosa-mente escolhida era posta. E, neste momento, o artista da fome sempre relutava. claro, ele ainda descansava voluntariamente seus braos ossudos nas prestativas mos esten-didas das senhoritas inclinando-se sobre ele, mas ele no queria se levantar. Por que parar bem agora, aps quarenta dias? Ele poderia ter prosseguido por ainda mais, por uma durao ilimitada de tempo. Por que parar bem agora, quando ele estava em sua melhor forma, sem ter atingido ainda sua melhor forma para jejuar? Por que as pessoas que-riam roubar-lhe a fama de jejuar por mais tempo, no apenas para que ele se tornasse o maior artista da fome de todos os tempos, o que, na verdade, ele provavelmente j devia ser, mas tambm que ele pudesse superar-se a si mesmo de algum modo inimaginvel, para que ele sentisse que no havia limites para a sua capacidade de jejuar. Por que esta multido, que fngia admir-lo tanto, tinha to pouca pacincia com ele? Se ele prosseguisse e jejuasse por mais tempo, por que eles no tolerariam? Ento, ele tambm estava cansado e se sentia bem sentado na palha. Agora ele deveria se levantar ereto e alto e ir comer, algo que, quando ele mera-mente imaginava, fazia com que se sentisse imediatamente nauseado. Com grande dif-culdade, ele reprimia mencionar isto apenas por considerao s mulheres. E ele olhava para cima nos olhos destas mulheres, apa-rentemente to amigveis, mas na realidade to cruis, e balanava sua cabea excessiva-mente pesada sobre seu dbil pescoo. Mas ento aconteceu o que sempre acontecia. O empresrio veio adiante sem dizer uma palavra a msica tornava a fala imposs-vel ergueu seus braos sobre o artista da fome, como se convidasse o cu para olhar para seu trabalho aqui na palha, seu desa-fortunado mrtir (algo que o artista da fome certamente era, mas em um sentido comple-tamente diferente), agarrou o artista da fome ao redor de sua fna cintura, desejando no processo que seu cuidado exagerado fzesse as pessoas acreditarem que ele tinha de lidar com algo frgil, e o entregou no sem se-cretamente chacoalh-lo um pouco, de modo que as pernas e o torso do artista da fome balanaram incontrolavelmente para a frente e para trs s mulheres, que, naquele nterim, haviam empalidecido como mortas. At este momento, o artista da fome havia suportado tudo. Sua cabea jazia sobre seu peito era como se ela houvesse inexplica-velmente rolado e parado somente ali seu corpo curvado para trs, suas pernas, em um impulso de autopreservao, estavam pressio-nadas juntas no joelho, mas se arrastavam no 26 SAMIZDAT agosto de 2015cho, como se elas no estivessem realmen-te no cho, mas buscassem pelo cho real, e todo o peso de seu corpo, evidentemente muito pouco, repousava contra uma das mulheres, que suplicava ofegante por ajuda, pois ela no havia imaginado que seu posto de honra seria como isto, ento ela esticou seu pescoo o mximo possvel, para manter o seu rosto afastado do menor contato com o artista da fome, mas, ento, ela no conseguia fazer isto e sua companheira mais afortuna-da no vinha em seu auxlio, mas tremia e permanecia contente em segurar diante dela a mo do artista da fome, aquela pequena coleo de articulaes, ela desatou a chorar, para o deleitoso riso do auditrio, e teve de ser libertada por um atendente que estava de prontido h algum tempo. Ento veio a refeio. O empresrio ps um pouco de co-mida na boca do artista da fome, agora tonto como se estivesse desmaiando, e mantinha uma animada conversa destinada a desviar a ateno da condio do artista da fome. Ento um brinde foi proposto ao pblico, que foi supostamente sussurrado para o empresrio pelo artista da fome, a orquestra confrmou tudo com uma grande fanfarra, as pessoas se dispersaram, e ningum tinha o direito de estar insatisfeito com o evento, ningum excetuando o artista da fome ele era sempre o nico.Ele vivia assim, tirando pequenos inter-valos regulares, por muitos anos, aparente-mente sob os holofotes, honrado pelo mundo, mas a despeito disto tudo, seu humor era geralmente sombrio, e continuava se tor-nando mais sombrio todo o tempo, porque ningum compreendia como ele levava isto a srio. Mas como ele encontraria consolo? O que havia restado para ele desejar? E se um homem bondoso que sentisse pena dele qui-sesse explicar-lhe que esta tristeza provavel-mente derivava de seu jejum, ento poderia ocorrer, especialmente neste estgio avanado do jejum, que o artista da fome respondia com uma exploso de fria e comeava a chacoalhar a jaula como um animal, ate-morizando todo mundo. Mas o empres-rio tinha um modo para punir momentos como este, algo que ele fcava feliz de usar. Ele pediria desculpa ao pblico reunido, em nome do artista da fome, reconhecendo que a irritabilidade havia sido provocada apenas pelo jejum dele, que pessoas bem alimenta-das no compreendiam prontamente e que eram capazes de escusar o comportamento do artista da fome. A partir da, ele passaria a falar sobre a afrmao igualmente difcil de entender de que o artista da fome podia continuar jejuando por muito mais tempo do que ele estava fazendo. Ele elogiaria o nobre esforo, a boa vontade e a grande autoab-negao inquestionavelmente contida nesta afrmao, mas ento ele tentaria contradizer isto ao oferecer fotografas, que tambm es-tavam venda, pois nas imagens era poss-vel ver o artista da fome no quadragsimo dia de seu jejum, na cama, quase morto de exausto. Embora o artista da fome estives-se muito familiarizado com esta perverso da verdade, ela abalava seus nervos todas as vezes e era demais para ele. O que era um resultado do fm prematuro do jejum, as pessoas agora propunham como sendo sua causa! Era impossvel lutar contra esta falta de compreenso, contra este mundo de incompreenso. De boa-f, ele ainda sempre ouvia avidamente o empresrio nas barras de sua jaula, mas todas as vezes, assim que os fotgrafos partiam, ele se afastava das barras e, com um suspiro, afundava-se de novo na palha, e um pblico seguro voltava de novo e o via.Quando aqueles que haviam testemunha-do tais cenas pensavam de volta nelas alguns anos depois, frequentemente eles mesmos eram incapazes de compreender. Pois, neste nterim, a mudana mencionada acima ocor-reu. Isto aconteceu quase imediatamente. Tal-vez houvesse razes mais profundas para isto, mas quem se importava em descobrir quais eram? De qualquer modo, um dia o papari-cado artista da fome se viu abandonado pela multido de ansiosos por prazer, que prefe-27 www.revistasamizdat.comria fuir para outras atraes. O empresrio percorreu metade da Europa mais uma vez com ele para ver se conseguia redescobrir o velho interesse aqui e l. Tudo isto era ftil. Era como se um acordo secreto contra apre-sentaes de jejum houvesse sido realmente desenvolvido em algum lugar. Naturalmente, a verdade que isto no poderia ter ocorri-do to rapidamente, e as pessoas mais tarde lembravam algumas coisas que, nos dias de sucesso embriagante, elas no haviam presta-do ateno o sufciente, algumas indicaes inadequadamente suprimidas, mas agora era tarde demais para fazer algo para cont-las. claro, certamente a popularidade do jejum retornaria outra vez um dia, mas para aque-les vivos agora no havia consolo. O que o artista da fome faria agora? O homem cujo milhares de pessoas haviam ovacionado no conseguia se apresentar em cabines em pe-quenas feiras, e o artista da fome no apenas era velho demais para assumir uma profsso diferente, mas era fanaticamente devotado ao jejum mais do que a qualquer coisa. Ento, ele disse adeus ao empresrio, um incompa-rvel companheiro em sua vida na estrada, e deixou-se contratar por um grande circo. Para poupar seus prprios sentimentos sens-veis, ele nem mesmo olhou os termos de seu contrato.Um grande circo com sua enorme quan-tidade de homens, animais e acrobatas, que constantemente eram dispensados e substi-tudos, pode usar qualquer um em qualquer momento, mesmo um artista da fome, desde que, claro, suas exigncias fossem modes-tas. Alm disto, neste caso em particular, no apenas o prprio artista da fome estava envolvido, mas tambm seu antigo e famoso nome. Na verdade, dada as caractersticas naturezas de sua arte, que no diminua com a idade avanada, ningum poderia nunca afrmar que um artista desgastado, que no mais estivesse no pice de suas habilidades, desejava escapar para uma quieta posio no circo. Pelo contrrio, o artista da fome declarava que ele podia jejuar to bem quan-to nos velhos tempos uma afrmao que era inteiramente fvel. Na verdade, ele at afrmava que, se as pessoas o deixassem fazer o que ele quisesse e isto lhe foi prometido sem reservas , ele realmente agora fasci-naria legitimamente o mundo pela primeira vez, uma afrmao que, no entanto, dado o humor da poca, algo que o artista da fome facilmente ignorou, apenas trouxe sorrisos para os especialistas.Essencialmente, contudo, o artista da fome tambm no havia esquecido do modo como as coisas realmente eram, e ele assu-mia como autoevidente que as pessoas no o poriam com sua jaula como uma atrao principal no meio da arena, mas o moveriam para fora em algum outro ponto prontamen-te acessvel perto das barracas dos animais. Enormes cartazes pintados com cores vivas cercavam a jaula e anunciavam o que havia ali para ser visto. Durante os intervalos na apresentao principal, quando o pblico geral empurrava-se em direo coleo de animais para v-los, as pessoas mal podiam evitar de passar perto do artista da fome e parar ali por um instante. Elas talvez tives-sem fcado com ele por mais tempo se aque-les empurrando atrs na passagem estreita, que no compreendiam esta pausa no cami-nho para as barracas dos animais que eles queriam ver, no houvessem tornado impos-svel uma pacfca observao mais prolonga-da. Esta era tambm a razo porque o artista da fome comeava a tremer antes destas horas de visitao, as quais ele naturalmente costumava ansiar como o principal prop-sito de sua vida. Nos primeiros dias, ele mal conseguia esperar pelas pausas nas apre-sentaes. Ele aguardava com alegria pela multido brotando ao redor dele, at que ele se convenceu rapidamente demais e mes-mo o teimoso, quase deliberado, autoengodo no conseguia resistir contra a experincia que, julgando pela inteno delas, a maio-ria destas pessoas estava, uma e outra vez sem exceo, apenas visitando a coleo de animais. E esta viso de uma certa distncia 28 SAMIZDAT agosto de 2015ainda permaneceu seu momento mais lindo. Pois quando elas vinham diretamente para ele, imediatamente ele recebeu uma saraiva-da de gritos e xingamentos de dois grupos que aumentavam constantemente, daqueles que queriam aproveitar seu tempo para dar uma olhada no artista da fome, no com en-tendimento, mas como um capricho ou por mero desafo para ele, estes eram os mais dolorosos e um segundo grupo de pessoas cuja nica exigncia era seguir diretamente para as barracas dos animais. Uma vez que as grandes multides passavam, os retardat-rios chegavam, e embora no houvesse mais nada evitando tais pessoas de fcarem por ali quanto elas quisessem, elas apressavam--se com largas passadas, quase sem uma espiadela, para chegar a tempo nos animais. E era um golpe de sorte rarssimo quando o pai de uma famlia vinha com suas crianas, apontando seu dedo para o artista da fome, dando explicaes detalhadas sobre o que estava acontecendo ali, e falava de anos pas-sados, quando ele havia estado presente em apresentaes semelhantes, mas incompara-velmente mais magnfcas, ento as crianas, como elas haviam sido inadequadamente preparadas na escola e na vida, sempre fca-vam ao redor ainda que sem compreender. O que era o jejum para eles? Entretanto, o bri-lho no olhar de seus olhos inquiridores reve-lava algo dos novos e mais graciosos tempos que chegavam. Talvez, o artista da fome dizia para si mesmo s vezes, tudo fosse um pouco melhor se este local no fcasse to perto das barracas dos animais. Assim, seria fcil para as pessoas fazerem sua escolha, sem contar o fato de que ele fcava muito incomodado e constantemente deprimido por causa do fedor das barracas, da comoo dos animais noite, dos pedaos de carne crua carrega-dos passando por ele para as feras carnvoras e os rugidos na hora da alimentao. Mas ele no ousou abordar a administrao sobre isto. De qualquer modo, ele devia agradecer aos animais pelas multides de visitantes, en-tre os quais, de vez em quando, havia algum destinado para ele. E quem sabia onde eles o esconderiam se ele desejasse record-los de sua existncia e, com isto, o fato de que, es-tritamente falando, ele era o nico obstculo a caminho da coleo de animais.Um pequeno obstculo, de qualquer modo, um obstculo constantemente menor. As pessoas se acostumaram a pensar que era estranho naqueles tempos que elas quisessem prestar ateno ao artista da fome, e com esta conscincia habitual o julgamento sobre ele era pronunciado. Ele poderia jejuar to bem quanto podia e ele o fez mas nada poderia salv-lo mais. As pessoas passavam direto por ele. Tente explicar a arte do jejum a algum! Se algum no senti-la, ento no poder compreend-la. Os cartazes bonitos se tornaram sujos e ilegveis. As pessoas os rasgaram e ningum pensou em substitu--los. Uma pequena mesa com o nmero de dias que o jejum havia durado, que a prin-cpio havia sido renovado cuidadosamente todos os dias, permaneceu inalterada por um longo tempo, pois aps as primeiras semanas a equipe se cansou at mesmo desta pequena tarefa. E assim o artista da fome continuou jejuando e jejuando, assim como ele havia sonhado antigamente, e ele no tinha difcul-dade alguma para atingir aquilo que havia previsto ento, mas ningum estava contando os dias ningum, nem mesmo o prprio artista da fome sabia quo grande era sua conquista neste ponto, e seu corao fcou pesado. E, quando ocasionalmente uma pes-soa caminhando passava por ali troando do antigo nmero e falando de um embuste, isto era em um sentido a mentira mais estpida que a indiferena e a malcia inata poderiam inventar, pois o artista da fome no estava sendo enganador ele estava trabalhando honestamente mas o mundo o estava tra-paceando como recompensa.Muitos dias passaram outra vez, e este tambm chegou ao fm. Finalmente, a jaula despertou a ateno de um supervisor, e ele perguntou ao atendente por que eles haviam deixado esta jaula perfeitamente til parada ali sem uso com palha apodrecendo dentro. 29 www.revistasamizdat.comNingum sabia, at que um homem, com a ajuda da mesa com o nmero nela, lembrou--se do artista da fome. Eles empurraram a palha ao redor com varas e encontraram o artista da fome ali. Voc ainda est jejuando? perguntou o supervisor. Quando voc vai fnalmente parar?Perdoe-me por tudo sussurrou o artista da fome. Apenas o supervisor, que estava apertando a orelha contra a jaula, o compreendeu. Certamente disse o supervisor, ba-tendo com seu dedo na testa para indicar equipe o estado em que estava o artista da fome ns perdoamos voc. Sempre quis que voc admirasse o meu jejum disse o artista da fome. Mas ns admiramos disse o supervi-sor amavelmente. Mas voc no devia admirar disse o artista da fome. Muito bem, ento disse o supervisor mas por que no deveramos admirar? Porque eu tenho de jejuar. Eu no posso fazer nada mais disse o artista da fome. Olhe para si disse o supervisor por que voc no consegue fazer mais nada? Porque disse o artista da fome, erguendo sua cabea um pouco e, com os lbios crispados como que para um beijo, fa-lou direto para o ouvido do supervisor para que ele no perdesse nada porque eu no consegui encontrar uma comida que tivesse um bom sabor para mim. Se houvesse en-contrado isto, acredite em mim, eu no teria feito um espetculo de mim mesmo e teria comido com todo o contentamento de meu corao, assim como voc e qualquer outro.Aquelas foram suas ltimas palavras, mas em seus fraquejantes olhos havia a ainda fr-me, mesmo que no mais orgulhosa, convic-o de que ele continuava a jejuar. Tudo bem, limpem isto agora disse o supervisor. E eles enterraram o artista da fome junto com a palha. Mas em sua jaula eles puseram uma jovem pantera. Mesmo para uma pessoa com a mente mais banal era evidentemente agradvel ver este animal selvagem rondando por sua jaula, que havia sido triste por tanto tempo. Ele carecia de nada. Sem ter de pensar muito sobre isto, os guardas trouxeram a comida que o animal desfrutava. Ele nunca pareceu sentir falta de sua liberdade. Este nobre corpo, equipado com todo o necessrio, quase ao ponto de ex-plodir, parecia at carregar consigo a liberda-de ao redor. Isto parecia estar localizado em outro lugar ou em suas presas, e sua alegria de viver brotava com tamanha forte paixo de sua garganta que no era fcil para os espectadores continuarem observando. Mas eles se controlavam, continuavam se empur-rando ao redor da jaula e no tinham vonta-de alguma de se mover.30 SAMIZDAT agosto de 201531 www.revistasamizdat.comA histria pessoal de Franz Kafka (18831924) repleta de altos e baixos, mal-enten-didos, frustrao e uma inquietante aura de incompletude.Poucos autores cannicos nos legaram tantas obras clssicas inacabadas quanto Kafka.Este rapaz judeu de Praga, falante de ale-mo, que dividia seu tempo entre o trabalho burocrtico em um escritrio de seguros, de dia, e ao ofcio literrio nas madrugadas, tornou-se um dos pilares da Literatura do sculo XX.Ao contrrio de William Faulkner, outra importante infuncia literria do perodo, com escrita e tons realistas, Kafka foi um dos primeiros escritores contemporneos a mergulhar no absurdo e no fantstico, abrin-do as comportas que permitiriam o surgi-mento do realismo mgico latino-americano, obras como as de Camus, Calvino e Eco, dentre muitos outros que encontrariam em Kafka o ideal do autor atormentando, para quem a perfeio a meta ltima, porm inatingvel, de toda arte.Sua notria solicitao, antes de morrer, de que seu melhor amigo Max Brod des-trusse todos os seus manuscritos um dos grandes mistrios dos bastidores literrios; se ele realmente desejava ser esquecido, ou se era um derradeiro gesto de modstia, com a certeza que seu pedido no seria respeitado.Os temas de Kafka, que dariam origem ao termo kafkiano, como o absurdo, a opres-so patriarcal, a burocracia, o abandono e o fracasso so, de certo modo, um espelho da biografa do autor, como retratado no livro O Outro Processo de Elias Canetti, que ana-lisa os dirios do autor.Em A Metamoforse, certamente a obra--prima kafkiana e uma de suas poucas obras publicadas em vida, acompanhamos as desventuras de Gregor Samsa, que desperta tornado um bicho repugnante. A impressio-nante e asfxiante descrio de seus movi-mentos, de suas ansiedades, de sua luta para talvez retomar normalmente a sua vida e seu trabalho, a despeito de sua transformao, faz desta novela um dos mais relevantes produ-tos fccionais do sculo XX. Poucos autores mergulharam to profundamente na essncia de seu tempo em to poucas pginas.Publicada em 1915, quando a Primeira Guerra Mundial recm havia sido defagrada na Europa, parecia, de um modo proftico e at bastante sombrio, antever todo o horror que as dcadas seguintes reservavam. O ser humano como uma criatura repugnante e, justamente por isto, descartvel e sem pro-psito, aprisionada em quatro paredes que poderiam ser interpretada das mais diversas formas - e a tambm reside parte da gran-diosidade de Kafka, com suas obras abertas e enigmticas, capazes de estimular interpre-taes completamente distintas, a partir de pontos de vistas e bases tericas at mesmo contraditrias. Kafka pode ser lido atravs da Psicologia, da Filosofa, da Histria do Pensa-mento, da Sociologia...O fato que Kafka continua mais moder-no do que nunca, como se o vazio essencial de seus personagens e obras o tornassem atemporal e universal.Kafka representa o esvaziamento dos sentidos, a aniquilao da identidade, o quo baixo podemos decair, sem esperana alguma de redeno. Entretanto, ao mesmo tempo, tambm apresenta a luta incessante e inglria para resistir.32 SAMIZDAT agosto de 2015ArtigoTatiana AlvesA Farsa de Ins Pereira:a fgura feminina num mundo em transio32 SAMIZDAT agosto de 201533 www.revistasamizdat.comA Farsa de Ins Pereira, um dos mais co-nhecidos autos de Gil Vicente, teatrlogo do Humanismo portugus, conta a histria de uma moa que recusa os papis preestabele-cidos e questiona o destino imposto mu-lher na sociedade quinhentista. Com a ironia caracterstica das farsas medievais, o referido auto apresenta um desfecho surpreendente, sugerindo as transformaes que ocorriam poca. As personagens femininas do texto so marcantes no por acaso, uma delas, alm de ser a protagonista, d ttulo pea e apresentam diferenas fundamentais entre si, sendo expressivo o fato de cada uma refetir um aspecto da sociedade de ento. Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaamento de falas, provr-bios e negaes.Acreditando que a atitude da protagonista expressa, inclusive, a partir de seu discur-so simboliza os valores de um mundo em transio, propiciando uma refexo acerca das mentalidades medieval e pr-renascentis-ta, nosso estudo prope uma anlise do auto em questo, luz dessa transio, em seus aspectos histrico, social e lingustico, no olhar desse escritor situado entre dois mun-dos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher e sua representao.Originalmente concebido como o desen-volvimento dramtico do provrbio mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube, a Farsa de Ins Pereira, publicada em 1523, constitui-se no primei-ro provrbio glosado em teatro. Trata-se de uma stira com inteno moralizadora, apre-sentando traos de uma comdia de carter e de costumes com tipos bem defnidos. Alm de explorar a dicotomia ser/parecer, o texto refete acerca do momento histri-co, na medida em que mostra a decadncia da nobreza um cavaleiro sem posses e a ascenso de um povo pr-burgus, na fgura do parvo Pero Marques.Segundo classifcao proposta por Fide-lino de Figueiredo (apud FONSECA, 1990, p. 28), o auto estrutura-se a partir de sete qua-dros que se sucedem, organizados da seguin-te forma: apresentao da vida de Ins, ainda solteira, com a me; conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento; apresentao de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desiluses do casamento; a viuvez de Ins Pereira e a vida de casada com Pero Marques.A apresentao de Ins, j no incio do texto, marcada por uma atitude de revolta, por parte da protagonista, diante das tediosas tarefas impostas mulher na poca. S, em casa, cantarola e amaldioa a prpria condi-o: Ins: Renego deste lavrare do primeiro que o usou!Ao diabo que o eu dou,que to mau daturar! Jesu! Que enfadamento,e que raiva, e que tormento,que cegueira, e que canseira!Eu hei de buscar maneiradalgum outro aviamento.(VICENTE, 1984, pp. 303304) A fala da moa marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe odioso, sensaes acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refetindo o tdio presente em sua vida. Seu discurso repleto de expresses que sugerem uma crti-ca falta de perspectivas para a mulher da poca. Seu desencanto diz respeito, principal-mente, estagnao que vitimava as moas de ento.Isabel Allegro de Magalhes, em seu estu-do O Tempo das Mulheres, destaca o tempo esttico das mulheres da Idade Mdia, um tempo de fcar, em contraste com o tempo masculino, um tempo de partir, este marca-do por aventuras e por um espao aberto e 33 www.revistasamizdat.com34 SAMIZDAT agosto de 2015externo. J s mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que justamente nesse aspecto que reside a queixa de Ins, que lamenta o marasmo de sua vida: Ins: J tenho a vida cansadaDe jazer sempre dum cabo.(...)Esta mais que morta.So eu coruja ou corujo,Ou so algum caramujoQue no sai seno porta?(Ibidem, p. 304) A Farsa de Ins Pereira apresenta a condi-o da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo tempo, mostra uma pro-tagonista que se revolta, renitente, contra o destino que lhe oferecido. Ins representa a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudana. Seu posicionamento ideolgico, de recusa dos valores vigentes, verifca-se, linguisticamente, por meio de um discurso repleto de exclamaes marcando o seu temperamento intempestivo , e por indagaes, como que a interrogar a prpria condio: Ins: Coitada, assi hei destarencerrada nesta casacomo panela sem asa,que sempre est num lugar?E assi ho de ser logradosdous dias amargurados,que eu possa durar viva?E assim hei destar cativaEm poder de desfados?(Ibidem, p. 304) O lamento de Ins esbarra na oposio da me, mulher humilde e simples, cuja fala refete o conformismo diante da sociedade de ento. Alm de censurar os desejos da flha, defende as regras e os valores da poca, ao aconselhar Ins a ter bom senso: Me: Toda tu ests aquela...Choram-te os flhos por po?(...)Como queres tu casarcom fama de preguiosa?(...)No te apresses tu, Ins:Maior o ano que o ms.Quando te no precatares,viro maridos a pares,e flhos de trs em trs.(Ibidem, pp. 305306) O discurso da Me, impregnado de luga-res-comuns e provrbios populares, marca a reproduo de valores da poca. Sua fala, que atua como contraponto de Ins, marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de frases feitas, demonstra, no plano discur-sivo, sua identifcao com o pensamento de ento. Enquanto Ins simboliza a renovao, as demais personagens femininas represen-tam a perpetuao de um pensamento ainda marcado pelo rano medieval. A me ainda aconselha a moa a no se preocupar, argu-mentando que logo surgiro vrios preten-dentes e um flho atrs do outro, reprodu-zindo um olhar cristalizado em relao ao papel da mulher. Conformista, pensa que o destino natural da flha o casamento e a maternidade, chegando mesmo a instru-la a agir de modo a causar boa impresso no pretendente: Me: Se este escudeiro h-de vir35 www.revistasamizdat.come homem de discriohs-te de pr em feio,e falar pouco e no rir.E mais, Ins, no muito olhar,e muito cho o menear,porque te julguem por muda,porque a moa sesuda ua perla pera amar.(Ibidem, pp. 323324) A Me parece sugerir moa que repre-sente um papel para agradar ao rapaz, suge-rindo a hipocrisia vigente. Expressivos so os conselhos dados flha, demonstrando que os atributos femininos desejveis ento eram aqueles ligados passividade e submisso: falar pouco, no rir, no encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente condizente com a misoginia reinante na poca.O conservadorismo da Me visto tam-bm por ocasio da chegada de Lianor Vaz, que afrma ter sido violentada por um cl-rigo. Dignas de destaque so as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfgios para se justifcar por no ter resistido ao ataque estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso e outra desfando todas as possibilidades, e demonstrando desconfana, uma vez que Lianor no apresentava as mar-cas de lacerao decorrentes do autofagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas co-mungam dos cdigos vigentes, fato que pode ser percebido tambm nos conselhos dados por Lianor a Ins: Lianor: No queirais ser to senhora!Casa, flha, que te preste,no percas a ocasio.Queres casar a prazerNo tempo dagora, Ins?Antes casa em que te ps,que no tempo descolher.Sempre eu ouvi dizer:ou seja sapo ou sapinho,ou marido ou maridinho,tenha o que houver mister.Este o certo caminho.(Ibidem, p. 312-313) Em uma sociedade em que a nica forma de sobrevivncia feminina estava no matri-mnio, a alcoviteira aconselha a moa a se casar, mesmo que isso a incomode e que o futuro marido no lhe agrade, numa repro-duo dos valores da poca. Na repetio de ditados, v-se um discurso que se limita a reiterar os costumes e pensamentos de ento, sem question-los: Me: Mata o cavalo de selae b o asno que me leva.Lianor: Filha, no Cho do Coucequem no puder andar, choute.E mais quero eu quem me adoreque quem faa com que chore.(Ibidem, p. 313) Signifcativa uma das imagens evocadas pela Me: mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a derrube, numa retoma-da do mote e num prenncio do desfecho do auto. Ins frme em suas convices: quer um homem culto, ainda que no seja rico, e que a faa feliz. Movida por essa iluso, despreza o primeiro pretendente, o rude Pero Marques, flho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. A linguagem do simplrio personagem revela sua timidez e ignorncia, alm de marcar a sua ingenui-dade, aspecto fundamental para o desfecho da pea. No processo de caracterizao por meio da linguagem, os traos mais fagrantes 36 SAMIZDAT agosto de 2015e negativos de Pero Marques so evidencia-dos, gerando o repdio por parte de Ins. Seu discurso denuncia a sua inocncia quase pueril, ora exagerando na formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar: Senhora amiga Ins Pereira,Pro Marquez, vosso amigo,que ora estou na nossa aldea,mesmo na vossa merceame encomendo. E mais digo,digo que benza-nos Deus, que vos fez de to bom jeito;bom prazer e bom proveitoveja vossa me de vs.e de mi tambm assi,ainda que eu vos vi,estoutro dia de folgar,e no quisestes bailar,nem cantar presente mi...(Ibidem, p. 311) Ins repudia o pretendente em virtude de sua rusticidade, chegando mesmo a depreci--lo, criticando-lhe a simplicidade. Sua condi-o fnanceira no fator que a atraia, e ela rejeita o pedido de casamento. Tal recusa, nesse momento, importante, pois marcar a mudana de perspectivas da protagonista no decorrer da histria. Curiosamente, a inge-nuidade de Pero Marques, que ser vista ao fnal como algo extremamente conveniente, agora motivo de escrnio por parte de Ins, que o ridiculariza por no se ter aproveitado do fato de estarem a ss:Ins: Pessoa conheo euque levara outro caminho...Casai l com um vilozinho,mais covarde que um judeu!Se fora outro homem agora,e me topara a tal hora,estando assi s escuras,falara-me mil douras,ainda que mais no fora...(Ibidem, p. 318) E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a fgura do escudei-ro Brs da Mata, calculista e mentiroso, que fnge viver de forma abastada apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, atra-vs das crticas que fazem entre si, desnu-dam a verdade sobre o Escudeiro, bem como sobre o Moo que o acompanha, fazendo-nos conhecedores de suas mentiras e difculdades fnanceiras. Impressiona Ins de imediato, pois seu discurso galante habilmente utili-zado para conquist-la. Curiosamente, tanto a m impresso deixada por Pero Marques quanto o deslumbramento inspirado por Brs da Mata so decorrentes de seus discursos. Com um tom sentimentalista que remonta aos cantares de amor, o Escudeiro encanta a moa: Escudeiro: Antes que mais diga agora,Deus vos salve, fresca rosa,e vos d por minha esposa,por mulher e por senhora;Que bem vejoNesse ar, nesse despejo,Mui graciosa donzela,que vs sois, minha alma, aquelaque eu busco e que desejo. Obrou bem a Naturezaem vos dar tal condioque amais a discrio37 www.revistasamizdat.commuito mais que a riqueza.(...)Sei bem lere muito bem escrever,e bom jugador de bola,e quanto a tanger viola,logo me ouvireis tanger.(Ibidem, pp. 325326) Entretanto, logo aps se casar com o escu-deiro, Ins rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um dspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a amea-la fsicamente em caso de desobe-dincia. A recluso de Ins fca ainda mais patente, pois ele a informa de que a manter trancada, sob permanente vigilncia: Escudeiro: esposa, no faleis,Que casar cativeiro.(...)Vs cantais, Ins Pereira?Em vodas mandveis vs?Juro ao corpo de DeusQue esta seja a derradeira!Se vos eu vejo cantarEu vos farei assoviar.(...)Vs no haveis de falarcom homem nem mulher que seja;nem somente ir igrejano vos quero eu leixarJ vos preguei as janelas,porque vos no ponhais nelas;estareis aqui encerrada,nesta casa to fechada,como freira dOudivelas.(...)Vs no haveis de mandarEm casa somente um plo.Se eu disser: isto novelo Havei-lo de confrmarE mais quando eu vierDe fora, haveis de tremer;E cousa que vs digaisNo vos h-de valer maisQue aquilo que eu quiser.(Ibidem, pp. 332335) Arrependida de sua precipitao, Ins afr-ma que, se lhe fosse dada outra chance, no incorreria no mesmo equvoco. Signifcativa-mente, ela principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldioava o lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui a discrio, qualidade que a fez des-posar impulsivamente um homem que agora a faz infeliz. A protagonista modifca-se ao longo do auto, passando por um processo de amadurecimento e de aprendizagem: Ins: Renego da discrio,comendo ao demo o aviso,que sempre cuidei que nissoestava a boa condio;cuidei que fossem cavaleirosfdalgos e escudeiros,no cheos de desvarios,e em suas casas macios,e na guerra lastimeiros. Juro em todo meu sentidoque, se solteira me vejo,assi como eu desejo,que eu saiba escolher marido,38 SAMIZDAT agosto de 2015 boa f, sem mau engano,pacfco todo o ano,e que ande a meu mandar...Havia-me eu de vingardeste mal e deste dano!(Ibidem, p.337) A trama sofre uma reviravolta, pois Ins informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento possibilita que ela ponha em prtica sua nova viso de mundo, bem diferente da ingenuidade de antes. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a corte-j-la, e dessa vez a moa aceita seu pedido: Ins: Andar! Pero Marques seja!Quero tomar por esposoquem se tenha por ditosode cada vez que me veja.Por usar de siso mero,asno que me leve quero,e no cavalo folo;antes lebre que leo,antes lavrador que Nero.(Ibidem, p.340) Aps ter sofrido nas mos do escudeiro, Ins chega a uma concluso que resgata o mote proposto a Gil Vicente e prepara o desfecho da histria: mais vale asno que a carregue do que cavalo que a derrube. Numa sociedade em transio, os valores aos pou-cos se modifcam: mais vale o campons simplrio e ignorante o asno do que o representante de uma aristocracia decadente o cavalo , que, simbolicamente, a derruba. Dessa vez, a moa quem ditar as regras, com as quais Pero Marques prontamente concorda. Em dado momento, Ins reencon-tra um ermito a quem desprezara no passa-do, e o texto sugere que ela o tomar como amante. A referncia ao asno que a carrega assume aqui uma dimenso literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio, e ela pede que o marido a leve s costas. A passagem, presente no fnal do auto, mostra-nos ainda Pero Marques fazendo-lhe todas as vontades. Ins, numa dose de ironia, comea a cantaro-lar, e o marido a acompanha no refro Pois assi se fazem as cousas, num indcio de que Ins dar as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refro, numa frase que sintetiza a sua incondicional aquiescncia aos desejos da mulher: Ins: Pois eu hei s de cantare vs me respondereis,Cada vez que eu acabar:Pois assi se fazem as cousas. Canta Ins Pereira: Ins: Marido cuco me levades,e mais duas lousas.Pero: Pois assi se fazem as cousas. Ins: Bem sabedes vs, marido,quanto vos amo;sempre fostes percebidopera gamo.Carregado ides, nossamo,Com duas lousas. Pero: Pois assi se fazem as cousasIns: Bem sabedes vs, marido,quanto vos quero;sempre fostes percebidopera cervo.Agora vos tomou o demoCom duas lousas.39 www.revistasamizdat.comTatiana AlvesTransgride em poemas, comete delitos literrios em contos, crnicas e ensaios e viaja em livros infantis. Rabisca na Revista Samizdat e no site Escritoras Suicidas, j tendo rascunhado nos sites Anjos de Prata, Cronpios e Germina Literatura. Possui dezessete livros publicados. Doutora em Letras e leciona Lngua Portuguesa e Lite-ratura no CEFET/RJ.Pero: Pois assi se fazem as cousas.(Ibidem, pp.346347) A ingenuidade de Pero impede-o de per-ceber o comportamento de Ins. Ela, irnica, mostra que o far de bobo, num discurso em que o chama primeiramente de gamo, smbo-lo do homem trado, e em seguida de cervo, numa explorao ldica do lxico, que refor-a a ideia do gamo, e remete, por semelhana fnica, subservincia do servo. Ambos traio e submisso marcaro o casamento de ambos. Observe-se que a mudana de postura de Ins refete os valores do mun-do em que est inserida: do encantamento e da fantasia em relao fgura corts do cavaleiro imagem que signifcativamente desmorona no decorrer da farsa , a protago-nista percebe as vantagens de aceitar a che-gada do simplrio porm bem situado Pero Marques, numa troca que sugere as inmeras mudanas a que a sociedade assistia. O mote da farsa antes quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube constitui a sntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o texto metaforiza a transio da sociedade medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos escrever a his-tria de uma sociedade ainda guiada por um pensamento religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos to mais valiosa quan-do assinada pelo homem. BIBLIOGRAFIA FONSECA, Maria Amlia Ortiz da. Gil Vi-cente Farsa de Ins Pereira. Lisboa: Europa--Amrica, 1990.MAGALHES, Isabel Allegro de. O tempo das Mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987.SARAIVA, Antnio Jos. Gil Vicente e o fm do teatro medieval. Lisboa: Livraria Ber-trand, s/d.VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introduo e estudo crtico por Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.40 SAMIZDAT agosto de 2015ArtigoPesquisa: Joaquim BispoCavaleiros e romances de cavalaria40 SAMIZDAT agosto de 201541 www.revistasamizdat.comUm dos gneros literrios profanos mais emblemticos da Idade Mdia a novela ou o romance de cavalaria, derivados dos poe-mas picos e das canes de gesta francesas e inglesas. So narrativas literrias em cap-tulos que contam os grandes feitos de um heri, entremeados de atribuladas histrias de amor.So geralmente agrupadas pela sua tem-tica especfca: o Ciclo Clssico, com narra-tivas baseadas na histria e lendas clssicas, incluindo as faanhas de Alexandre, o Gran-de, e dos heris da Guerra de Troia; o Ciclo Carolngio ou Francs, com romances que tm por heris Carlos Magno e seus cava-leiros; e o Ciclo Breto ou Arturiano, tratan-do assuntos de origem celta, especialmente centrados na mtica corte do Rei Artur e de seus clebres cavaleiros da Tvola Redonda. Embora o primeiro tenha por referncia o mundo antigo, alvo permanente de nostalgia, todos refetem o mundo medieval atravs da cultura cavaleiresca, nos seus aspetos dos cdigos da Cavalaria e do amor corts.A importncia da Cavalaria surgira por necessidade de dar resposta desorganiza-o social da Europa, nos ltimos sculos do primeiro milnio, assolada por incurses de vikings, magiares e sarracenos, instituindo--se como classe, a dos bellatores os que guerreiam para manter a paz , para que os oratores possam orar e os laboratores trabalhar.A cultura cavaleiresca evoluiu desde esses primeiros tempos, em que predominavam as virtudes militares absolutas de bravura guerreira e lealdade, de domnio do cavalo e destreza nas armas, para posturas infuencia-das pela Igreja, em que essas virtudes esto ao servio de causas nobres, como a defesa dos mais fracos e indefesos.O cavaleiro medieval sempre foi um peri-to na arte da guerra, treinado em combates com armaduras, cavalos, lanas, espadas e escudos pesados. Iniciando-se desde muito jovem ao servio de um cavaleiro, progride para escudeiro pelos 14 anos, exercitando-se nas artes do manejo de armas e do combate, e prepara-se para a investidura nas armas pelos 21. (Ver a educao do cavaleiro.)41 www.revistasamizdat.com42 SAMIZDAT agosto de 2015A educao do cavaleiroO cavaleiro aprendiz, antes de ser inves-tido, serve pelas armas, quase sempre como escudeiro, um senhor do seu parentesco, de preferncia um tio materno, de posio supe-rior sua. Polindo-lhe as armas, tratando-lhe os cavalos, assistindo-o nos combates, servindo--o mesa e na caa, ele familiariza-se com o essencial da vida cavaleiresca. Pode assim treinar para combate nos exerccios de quin-taine, em que se procura atingir com a lana um manequim ou um escudo, e de behourds, justas de treinamento mais prximas do com-bate real. Quanto aos cavaleiros, aperfeioam a sua tcnica em torneios, que surgem a partir de meados do sculo XI e se multiplicam no sculo seguinte, apesar das repetidas proibi-es da Igreja [conclio de Clermont, 1130]. At ao fm do sculo XII esses torneios no se diferenciam das guerras verdadeiras, de que so rplica codifcada. Como na guerra feudal, dois campos se opem, em combates coletivos feitos de ataques compactos e de emboscadas destinadas a isolar do grupo alguns indivduos, se possvel bem nascidos ou de prestgio, a fm de captur-los para obter resgate ou desmont--los para se apossar do seu cavalo. O objetivo, nos torneios como na guerra, consiste mais em acumular o saque e ampliar a glria do que em matar o adversrio, mesmo que tais acidentes no sejam raros, to completa a semelhana entre torneios e combates guerreiros. tam-bm a oportunidade para os cavaleiros pobres de atrair a ateno de algum patrono rico e entrar para a sua equipa, ao seu servio. O prestgio da faanha cavaleiresca tambm pode ganhar os favores de uma rica viva e, graas ao casamento, assegurar a promoo social do heri. Pelo menos este o sonho dos cavaleiros pobres.Utilitrios, mas prestigiosos desde a origem, os torneios tornam-se mais faustosos e menos perigosos com o decorrer do tempo, com o surgimento das armaduras e das armas para diverso [sem ponta de ferro] que, sem anular totalmente os riscos, distanciam, contudo, os torneios da verdadeira guerra. A proeza torna--se mais individual, mais teatral e os grandes torneios famejantes dos sculos XIV e XV tomam rumos sumpturios: a nobreza procura afrmar-se neles, tranquilizar-se e distrair-se, ante a crescente ameaa econmica e social burguesa. Jean Flori42 SAMIZDAT agosto de 201543 www.revistasamizdat.comQuando no esto em campanha, os ca-valeiros residem nas cortes de reis, duques e outros grandes senhores. O seu ambiente o castelo, solar campestre fortifcado, cons-truo apressada em madeira do sculo X assegurando uma proteo contra o invasor, fortaleza mais slida dos sculos XI e XII controlando estradas e vales e proporcionan-do, por detrs das suas muralhas de pedra, uma certa autonomia aos seus detentores. Nobres e cavaleiros comungam dos mesmos ritos, de uma moral, de um gnero de vida idntico. A castelania a clula bsica da feudalidade; a possesso de um castelo fonte de poder. O nobre alimenta-se do trabalho de outros homens. A caa, mas antes do mais a guerra viosa e jovial preenchem a sua atividade essencial: o combate um remdio contra o tdio, um man de lucro graas s pilhagens e aos resgates. A guerra, enquanto excesso e libertao do instinto conservador, uma rplica da festa em ambas se esban-jam bens, em ambas permitido suspender normas morais.Esta postura apenas atenuada pela in-funcia da Igreja que, a partir do sculo XI, promove o ideal do combatente de Deus, o miles Christi, ideal que enquadra os mem-bros das Ordens Militares. Este ideal refe-re: Valentia; Defesa de amos, fracos, Nao, Igreja; F em Deus; Humildade; Procura da Justia; Generosidade; Temperana; Lealdade; Nobreza de carter. O conceito de cavaleiro andante deriva da circunstncia dos cava-leiros regressados das cruzadas, idealistas solitrios e desenraizados, militantes destas virtudes.Na segurana e amenidade da corte, vo crescendo as sofsticaes da cortesania cultivo da poesia, da msica, de jogos e pra-zeres refnados e de elegncia no trato social, que junto do elemento feminino se traduz em cortejamento, encarado como manobras de conquista de outro tipo de fortaleza a dama , s vezes como ritual de treinamento, s vezes por genuno enamoramento. o amor que educa a virtude da cortesia e s aceite no amar quem corts. Pelo cultivo da literatura trovadoresca e corts verda-deira ideologia de classe , exalta-se o fausto, a generosidade e a arte de amar que, atravs do servio da dama, deve conduzir o homem nobre aos pncaros da virtude e do bem.A teoria do amor corts pressupe uma conceo platnica e mstica do amor: Os enamorados so sempre de condio aristocrtica. A amada sempre distante, admirvel e uma sntese de perfeies fsicas e morais.44 SAMIZDAT agosto de 2015 O estado amoroso uma espcie de estado de graa que enobrece quem o pratica (por insero do amor no sistema de senti-mentos do imaginrio religioso cristo). Total submisso do enamorado sua dama (por insero do amor no sistema de relaes sociais sob o feudalismo). O enamorado pode chegar a aproximar--se da sua inatingvel senhora, aps uma progresso de estados que vo desde o supli-cante ao amante. Como se trata, frequente-mente, de um amor adltero, o poeta oculta o objeto do seu amor, substituindo o nome da amada por um pseudnimo potico. A esposa do suserano, congregando na perfei-o a dupla condio de inacessibilidade e ascendncia social, aparece com frequncia nos romances de cavalaria como a dama que suscita a paixo no completamente subli-mada de cavaleiros impetuosos e dedicados.Caractersticas gerais essenciais dos ro-mances de cavalaria: Fices de primeiro grau: Os factos so mais importantes do que os personagens, que so muitas vezes arquetpicos e planos. So constantemente movidos pela ao, sem que esta os transforme e sem que importe a sua psicologia. Estrutura aberta: Aventuras intermin-veis, infnitas continuaes possveis; neces-sidade de hiprbole ou exagero, e ampli-fcao para superao das faanhas dos ancestrais. Os heris no morrem, h sempre caminho aberto para nova aventura. Total falta de verosimilhana geogrfca e plausibi-lidade lgica. Livros longussimos, de aventu-ras entrelaadas. Busca de honra, valor, aventura atravs de diferentes provas: uma estrutura epi-sdica onde o heri passa por vrias provas para merecer a sua senhora, desencantar um palcio, ou conseguir alguma honra reserva-45 www.revistasamizdat.comda para o melhor cavalheiro do seu tempo. Quase sempre a motivao principal do cavaleiro a fama e o amor. Idealizao do amor do cavaleiro pela sua dama: Amor corts, servio da dama, idolatria masoquista; sexo fora do casamento com flhos ilegtimos, em que se acaba sem-pre por casar. Violncia glorifcada: Valor pessoal ganho pelos feitos de armas; combate indi-vidual para conseguir a fama; o valor mais elevado implica moralidade superior; tor-neios, provas, duelos, batalhas com monstros e gigantes. Como contraponto, o masoquis-mo amoroso. Nascimento extraordinrio do heri: Filho ilegtimo de pais nobres desconheci-dos, muitas vezes reis; tem de fazer-se heri, ganhar fama e merecer o seu nome; muitas vezes tem espada mgica ou outros poderes sobre-humanos, e goza da ajuda de algum mago ou feiticeiro amigo. Ideal cristo de uma Guerra Santa contra os Infis: Cruz