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Os folhetins clássicos pela primeira vez reunidos em livro! Sangue em Pastópolis & Pato ao Molho Pardo Por Salomão Gladstone

Sangue em Pastópolis e Pato ao Molho Pardo - Salomão Gladstone

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Sangue em Pastópolis e Pato ao Molho Pardo -- Os dois clássicos folhetins eletrônicos de Salomão Gladstone! Aventura, crime, romance, cobiça, intrigas, golpes, corrupção, misticismo e sangue, muito sangue!

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Os folhetins clássicos pela primeira vez reunidos em livro!

Sangue em Pastópolis &

Pato ao Molho Pardo

Por Salomão Gladstone

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Sangue em Pastópolis e Pato ao Molho Pardo Copyright 2004 by Salomão Gladstone. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou sistema, sem o prévio consentimento do autor (ver abaixo). *Versão 1.1 – 12 de abril de 2004* Esta é uma obra independente distribuída em regime de postcardware modificado. É previamente consentida (e encorajada) pelo autor a redistribuição deste arquivo, desde que a título gratuito e que seu conteúdo não sofra alterações de nenhuma espécie. Qualquer processo diferente será uma violação do direito autoral.

O postcardware normal é bem conhecido no mundo dos programas grátis: o usuário mostra sua satisfação com o produto enviando um cartão postal ao criador do software. Neste caso, o regime é um pouco diferente. Gostou do livro? Então evie um cartão postal à sua editora favorita dizendo por que Sangue em Pastópolis e Pato ao Molho Pardo merece ser publicado. Aproveite e indique aos editores como e onde eles podem encontrar este livro para avaliação.

Nem eu preciso relacionar centenas de editoras neste espaço, nem você precisa consultar a lista telefônica: pegue um de seus bons livros e anote o endereço para correspondência da editora, que está estampado logo nas primeiras páginas. Envie um cartão da sua cidade, sua região, seu país (quanto mais distante, melhor) para mostrar até onde chegou a popularidade desta obra.

Este livro eletrônico não tem etiqueta de preço. Mas se você acha que a obra vale mais que um cartão e um selo, cabe a você prestigiar o autor!

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Introdução Quanto tempo, hein? Para que tenham idéia, a

maior parte de Sangue em Pastópolis foi editada alternadamente no QEdit e no Word 5.0. Os dois editores de texto rodavam em DOS. Ninguém mais lembra do QEdit, do Word 5.0 ou do próprio DOS. Ainda bem.

Este livro é o resultado de uma experiência pioneira em folhetins distribuídos eletronicamente. Em 1995, pouco antes da Internet comercial brasileira e num tempo em que supermercados ainda não costumavam vender computadores, os capítulos de Sangue em Pastópolis já eram distribuídos por todo o país entre micros ligados por linhas telefônicas: eram as heróicas redes de BBSs (bulletin board systems). E os leitores compartilhavam suas opiniões pelo mesmo caminho. Desta forma, o folhetim, pai das radionovelas, avô das telenovelas, se transformou em algo bem mais próximo de uma experiência interativa do que se poderia pensar.

A idéia original de Sangue começou a crescer em minha mente ainda nos primeiros dias de 1994. Na época, eu já acessava BBS a sério (leia-se: com um modem digno do nome) há quase um ano: juntava cada centavinho para manter meu equipamento de informática minimamente atualizado, freqüentava encontros de usuários e participava de todas as discussões que apareciam no monitor monocromático. Destaque para as conferências não-sérias: eram assembléias nacionais de piadistas, espaços naturais para uma consulta pública que confirmou tudo que eu imaginava. Descrevi o projeto em poucas palavras e emendei com uma série de questões de múltipla escolha: as respostas diriam o que os leitores-usuários, naturalmente inclinados a receber de bom grado um texto satírico, esperavam de um folhetim sobre a saga dos patos.

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Nenhuma surpresa: queriam sexo, sacanagem e devassidão em alta escala. Fiz o oposto do que esperavam. Foi um sucesso.

Novos capítulos eram lançados sempre que o tempo permitia, o que explica em parte os tamanhos irregulares dos capítulos (mas o que você esperava de um trabalho voluntário?). Muitas vezes as publicações via BBS eram diárias, e o feedback dos leitores também. Prometi aos leitores que não haveria um número predeterminado de capítulos: publicaria enquanto a demanda justificasse a continuidade do folhetim. No entanto, consumido por afazeres profissionais, tive que interromper Sangue em meados de 1995. Em fins daquele ano retomei a série por breve período, apenas até o capítulo 30, conta redonda, porém mantendo no rodapé o sinistro “Continua...”.

Nada mais foi como antes. Os programas em DOS sumiram do mapa, a Internet tomou conta do cenário e quase todos os BBSs saíram do ar. Não havia mais uma comunidade BBSiana a apoiar a publicação de novos capítulos; enquanto isso, recursos de publicação na Internet que hoje estão ao alcance das massas (páginas pessoais, blogs, listas de discussão) eram precários ou difíceis de usar — quando existiam. Ainda assim, heróicos usuários redistribuíam espontaneamente os capítulos antigos de Sangue em Pastópolis no subsolo da Rede. Foi o que me levou a dar um novo sopro de vida ao projeto.

Entre 2000 e 2001, a primeira versão do site Rumor do amigo Flávio de Almeida, republicou os capítulos antigos de Sangue em intervalos regulares. Logo se seguiram os capítulos novinhos que faltavam, escritos para a ocasião. Poderia ter arrastado Sangue até hoje (ou até o quanto sobrevivessem personagens suficientes para dar algum sentido à história), mas tive que cumprir uma obrigação maior: não esgotar a paciência do leitor, um recurso que,

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nota-se, é escasso na rede mundial de computadores. O Rumor também deu ao folhetim o apoio das ilustrações de Marcelo Martinez, um recurso inimaginável em tempos de tela preta (e, pior ainda, preta com letras verdes).

*****

Pato ao Molho Pardo, por sua vez, foi escrito especialmente para a segunda encarnação do site Rumor. O relato, publicado ao longo de 2002 em capítulos semanais, é uma preqüência de Sangue, escrita para dar algum sentido ao que se passou no folhetim anterior. Ou teria sido Sangue que forneceu a Pato o barbante para criar sua própria cama de gato? (Chega de referências animais por hoje.) Os dois folhetins podem ser lidos separadamente ou em seqüência, como desejar. Para ler os capítulos na ordem em que foram escritos, siga a numeração das páginas. Para seguir a ordem cronológica dos acontecimentos, comece pelo Livro II, Pato ao Molho Pardo, na página 115, e rebobine a fita até o primeiro capítulo do Livro I, Sangue em Pastópolis. De qualquer forma, nem tudo está explicado. Preencha as lacunas com sua imaginação.

Salomão Gladstone

[email protected]

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A toda essa gente bronzeada pela luz dos monitores que se meteu a besta de dar palpite numa obra em andamento.

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Livro I

Sangue em Pastópolis

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Capítulo 1

A PRIMEIRA MISSÃO NÃO-AUTORIZADA DE HUMANOS À CIDADE DE PASTÓPOLIS

Meus dedos molhados de suor deslizavam em torno do volante naquela manhã sombria. Numa das centenas de freeways da Califórnia, em meio aos mil atalhos, desvios e entroncamentos, ninguém parecia notar que uma das placas sinalizava com todas as letras: “PASTÓPOLIS”. Respirei fundo e virei à direita. Era lá mesmo!

Mesmo naquelas horas de grande movimento, a saída para Pastópolis parecia ser o trecho mais deserto do sistema rodoviário. Em cinco minutos não encontrei um único veículo indo ou voltando. Mais estranho era o céu, que mudava de cor a cada minuto. E quando passei entre duas colinas, a música no rádio desapareceu sob forte estática. Em seu lugar, uma voz grave e rouca:

— Isto é uma gravação. Meus parabéns, Alvin. Se chegou até aqui, pelo menos você sabe seguir setas. Rê, rê, rê... Preste atenção: passar pela alfândega será moleza, pois só há um guarda. Suborne-o com a mala de dinheiro do Banco de Pastópolis. Você terá que trocar seu carro “normal” por um modelo pastopolense que já estará à sua espera. Este é nosso último contato. Nem pense em voltar ao mundo dos humanos sem o serviço cumprido. Siga em frente e boa sorte...

Novo calafrio: finalmente senti que “eles” falavam sério sobre a gravidade da questão pastopolense. Era um ponto sem volta. A qualquer momento os patos poderiam se vingar de nós, invasores humanos. E se eu desistisse, a Organização me mataria.

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Bem, ninguém me disse que seria fácil romper o monopólio das empresas Petinhas O’Pato na distribuição dos misteriosos vasos sanitários pastopolenses — utensílios tão vergonhosos que só são usados na clandestinidade, motivo pelo qual nunca aparecem diante das câmeras.

Pois saibam os leitores que, apesar das aparências, todos os patos, cães, ratos, vacas, cavalos e demais espécies de Pastópolis precisam fazer suas necessidades, ainda que muito de vez em quando. É o mais duradouro dos tabus: impera a lei do silêncio, em que todo mundo finge que não usa privadas e todo mundo finge que não sabe que todos os outros usam.

Ninguém admite lucrar com a fabricação dos vasos — atividade que motivou Petinhas a empreender suas expedições internacionais em busca de tesouros, a fim de “lavar” com um pingo de dignidade os lucros sanitários que já alcançavam 15% do rendimento das Empresas Petinhas.

Chegamos à alfândega. Como combinado, entreguei a mala de dinheiro ao guarda, um dos onipresentes cães caucasianos que desempenham trabalhos de segunda em Pastópolis. Quando ele abriu a mala para conferir o dinheiro, saiu um gás cor-de-rosa que se espalhou rapidamente; enquanto eu nada senti, o guarda desabou inconsciente sobre o asfalto. Passada a cortina de fumaça, tomei coragem e fui conferir o pulso do guarda. Estava morto. Não havia um centavo na mala. Certamente havia muita coisa que a Organização não podia me contar...

Mas segui o roteiro à risca. Esperava-me um carrinho tipo anos 50, com a chave na ignição, na garagem ao lado da alfândega. O mais difícil foi carregar a Esther, que os homens da Organização já me entregaram amarrada e sedada — e certamente continuaria nesse estado até que

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eu a deixasse no gabinete da presidência da Fatalôncio Enterprises.

É claro que seria impossível quebrar o monopólio de Petinhas sem algum tipo de aliança local. Esther não queria ir a Pastópolis. Mas sua presença certamente interessaria muito a Fatalôncio. Pato de inteligência privilegiada, doutor em física aos 17 anos, gênio financeiro, chefe de um conglomerado gigante — não comparável às Empresas Petinhas, porém um grupo mais moderno e eficiente — Fatalôncio era o empresário certo para liquidar com Petinhas nesta cartada decisiva.

Enquanto me aproximava do centro de Pastópolis, pensei seriamente: por que justamente eu fui escalado para tarefa tão esquisita? Talvez a Organização pudesse se livrar de mim facilmente quando achassem que eu sei demais. Quem sabe eu tenha uma facilidade inata para lidar com a raça dos irascíveis patos herdeiros de Cordélio Flatus. Ou pensem que eu entendo muito de sanitários...

Perdido em meus pensamentos, mal notei um garoto (um patinho) de patinete descendo a ladeira da transversal direita. Numa fração de segundo, desviei para a esquerda. O carro subiu na calçada e derrubou um hidrante. O jorro subiu ao terceiro andar do prédio em frente, atingindo em cheio uma das janelas voltadas para a Caixa-forte do Petinhas. Dez segundos depois, exceto pelo grande helicóptero, toda Pastópolis estremecia com a explosão sob a Caixa-forte.

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Capítulo 2

O SENSACIONAL ROUBO DA CAIXA-FORTE

Quem seria essa tal de Esther? Eu sabia tanto na época quanto sabem vocês hoje. As instruções da missão eram obscuras. O vice-presidente da Organização me dera uma fita de cinco minutos, onde uma voz distorcida eletronicamente fornecia o básico do básico da orientação. Quando ia deixar o quartel-general, um sujeito que eu nunca tinha visto me entregou “tudo que eu precisava”. O decadente Buick preto que troquei pelo carro “made in Pastópolis” na alfândega. Três valises no bagageiro: uma fortuna em dinheiro pastopolense, o tal gás venenoso que matou o guarda, e um tal “material de sobrevivência” que incluía contratos pastopolenses e vários disfarces. E a Esther amarrada e adormecida, acomodada no banco traseiro. Uma última ordem:

— Entregue-a com vida ao Fatalôncio. Bem, eu não escolhi aquela situação. Entrei na

Organização sem saber no que estava me metendo; bem que me disseram que anúncio de emprego para “jovens ambiciosos” é a maior furada... Quando pensaram que eu sabia demais, arranjaram esta missão maluca. E eu nem acreditava que Pastópolis existia. Tudo fazia crer que Esther conhecia muita coisa de Pastópolis e não estava nem um pouco a fim de encontrar certos “amigos” emplumados.

O que me consolou no desastre da Caixa-forte foi ver o povo tão perplexo quanto eu. Foi algo como uma implosão do Monte Petinhas: o sopé da colina desmoronou como um castelo de areia; a Caixa, inteira

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como um cofrinho, cedeu uns dez metros para dentro do solo. Poucos prédios nos arredores foram atingidos, mas as ondas de choque estilhaçaram todas as vidraças num raio de 200 metros.

E do sombrio prédio em frente ao qual meu carro estava amassado e o hidrante esguichava, de cada uma das 50 janelas quebradas saltou a cabeça de um Patralha curioso. Estava tudo armado.

Enquanto a cidade mergulhava no caos, o heli-cóptero gigante pairava sobre a Caixa-forte. Quatro Patralhas-ninjas desceram por cabos ao telhado da Caixa, abrindo fogo contra os seguranças de Petinhas. Numa operação rápida, engancharam as janelinhas dos escritórios ao helicóptero. A um sinal de um dos ninjas, o impossível aconteceu: o helicóptero desligou as hélices e continuou flutuando no ar, vencendo a gravidade, cada vez mais alto e mais alto.

Os quatro ninjas subiram de volta ao helicóptero pelos cabos, já esticados ao máximo. Quando a Caixa-forte começou a se erguer do solo, surgiu pela clarabóia o último recurso para a defesa dos bens quaquilionários: o próprio Petinhas e sua velha espingarda.

— Voltem aqui! Soltem já minha Caixa-forte! Soltem meu rico dinheirinho! — grasnava o pão-duro aos Patralhas que nada ouviam.

Os tiros não tiveram o menor efeito contra o helicóptero blindado, que continuava subindo em velocidade crescente levando consigo a Caixa-forte.

De repente, quando a Caixa-forte já estava a dez metros do solo, o helicóptero religou os motores e tomou rumo ao norte. Suspensa com relativa facilidade, a incomensurável carga esbarrava nos edifícios do centro financeiro enquanto era conduzida a local incerto. Uma

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rachadura lateral espalhava um rastro de dinheiro, o que ajudava a distrair a população.

Petinhas, desesperado, via sua munição chegar ao fim junto com suas esperanças. Mas continuou na luta. Determinado a escalar um dos cabos e alcançar os ladrões no helicóptero, o velho pato correu a um dos cantos do telhado — sem contar com um vento lateral que tirou seu equilíbrio.

Os Patralhas vibravam com o desespero de Petinhas. O quaquilionário foi derrubado pelo vento e deslizou para a beira do telhado de sua querida Caixa-forte. Pendurado por uma só mão, Petinhas gritava por socorro. Mas erguer-se de volta ao telhado naquela posição era de-mais para um nonagenário. Bastou que a Caixa colidisse com um edifício mais alto para que Petinhas se soltasse e despencasse duzentos metros. Num grito lancinante. Esperava mais coragem do velho.

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Capítulo 3

TÁ LÁ O PATO ESTENDIDO NO CHÃO

— Irmãos, este é o dia da vitória definitiva! — bradou o Patralha 176-761 enquanto manobrava habilmente o helicóptero entre os arranha-céus da Avenida Cordélio Flatus. Os irmãos — ou nem tão irmãos assim — que o acompanhavam não continham sua curiosidade pelo que tinham deixado para trás.

Mas agora não era o momento mais adequado para especular se o bico de Petinhas entalou no asfalto, pois finalmente a Força Aérea mostrou algum esforço para defender a fortuna do pato mais rico do mundo.

Três caças supersônicos abriram fogo contra o helicóptero. Mostrando incrível habilidade, mesmo com a carga de três acres cúbicos de dinheiro, o helicóptero se desvencilhou dos tiros. Mas o revide não tardou. O co-piloto 176-671 sacou uma espécie de controle remoto do bolso, apontou para os aviões, pressionou um botão vermelho e explodiu os caças. As três bolas de fogo caíram no estádio municipal de beisebol.

O pânico era geral. Sirenes soavam por todos os lados; multidões corriam a esmo como se fosse o fim do mundo. Mas naquele momento pouco importava a explosão no subsolo da Caixa, os edifícios semidestruídos, o rastro de dinheiro, o fracasso da investida militar contra os ladrões. O que todos queriam conferir era o destino final do velho Petinhas.

— Onde estooooou...? Finalmente Esther abriu os olhos. A dose de

sedativo foi trabalho de profissional: nenhum efeito

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colateral observável. Ela ainda estava amarrada, escondida atrás dos bancos dianteiros do apertado carro pastopolense por medida de segurança. Para me proteger do esguicho do hidrante quebrado, eu me sentava no banco dianteiro direito.

— Bem-vinda a Pastópolis, Esther. — O quê????? Em cinco segundos Esther se remexeu um pouco,

e de alguma forma misteriosa, conseguiu escapar das cordas e saltar para o banco traseiro. Ela rosnou:

— Quem é você? Como você chegou aqui? Quem te indicou o caminho de Pastópolis? O que veio fazer aqui?

— Ei, um momento, Esther! Sou eu que faço as perguntas por aqui.

Quando viu que eu levei a mão direita à tranca da porta, Esther segurou meu pescoço e encostou uma gélida Magnum 44 na minha nuca.

— E como é que você descobriu o meu nome verdadeiro, seu canalha?

Enquanto a histeria tomava Pastópolis, lá estava eu sob a mira de um trabuco que eu não sabia se era de amiga ou de inimiga. Mas o que me preocupava é que a Organização me incumbiu de entregar Esther com vida ao Fatalôncio. Se ela não estourasse meus miolos naquele exato momento, meu chefe o faria mais tarde.

Mantive o sangue frio, pensando no que dizer, quando de repente ouvi um forte ruído de passos. Do prédio misterioso saíram rapidamente uns 150 Patralhas, que corriam o mais que podiam rumo à Avenida Cordélio Flatus.

— Ei, o que é aquilo? Parece que armaram uma festinha para a nossa chegada... — Esther apertou a arma contra a minha nuca — Vamos ver o que é. Abra a porta

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lentamente, mantenha as mãos onde eu possa vê-las, não tente nenhum truque, e vamos saindo.

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Capítulo 4

O DIA MAIS NEGRO DA HISTÓRIA DE PASTÓPOLIS

— Hoje Pastópolis voltou a ser nossa!!!!! Glória aos cães caucasianos!!!!! Pato bom é pato morto!!!!! — bradava o Patralha Intelectual, empoleirado na cabeça da estátua do fundador Cordélio Flatus.

— Pato bom é pato morto!!!!! — repetia a mul-tidão de Patralhas, engrossada por centenas e centenas de “populares”, todos legítimos cães caucasianos.

Muitos séculos antes da ocupação dos patos, as terras da atual Pastópolis eram ocupadas por tribos de cães caucasianos — aqueles cachorros antropomorfos de focinho preto e pele “cor da pele” que compõem 80% da população local. A invasão dos patos do Norte foi lenta e gradual: começou com os campos de pousada dos clãs nômades, mas uma série de golpes determinou o assentamento definitivo dos patos liderados por Cordélio Flatus.

— Era só o que faltava: insurreição dos Patralhas — resmungou Esther enquanto me puxava para o local onde se estendia o corpo de Petinhas.

A fundação de Pastópolis dissolveu a identidade política dos cães na margem sul da Baía de Pastópolis. Os cães, acuados, se reuniram em torno da aldeia que viria a se tornar Cinópolis (a cidade dos cães). Temeroso do explosivo desenvolvimento econômico de seus rivais, o Exército de Pastópolis comandado por Cordélio Flatus III promoveu a invasão e saque de Cinópolis, operação financiada pelo então jovem comerciante Petinhas O’Pato.

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— Só acredito vendo! — Esther, ainda segurando meu braço, abria caminho entre os repórteres (por coincidência, Petinhas caíra exatamente em frente à sede de seu próprio jornal A Pastada) e a multidão perplexa e angustiada. Nenhuma ambulância, bombeiro ou policial à vista.

Com o fim de Cinópolis, milhares de cães cau-casianos emigraram para Pastópolis, onde começaram a ser explorados como mão de obra barata enquanto a família Pato assumia postos de comando. Os partidos nacionalistas caninos são proscritos, poucos cães aceitam participar da política oficial dos patos, a imprensa acoberta uma série de conspirações envolvendo cães e patos dissidentes, caem no esquecimento vários atentados contra os líderes caninos clandestinos.

Chegamos a dois metros do corpo. Quando Esther se certificou de que Petinhas se encontrava sem vida, caiu de joelhos num pranto convulsivo. Por um momento ela me largou. Mas naquela cena, Esther não disfarçava que era fortemente ligada ao Petinhas.

Entre soluços, Esther finalmente notou alguém na multidão, do outro lado do círculo em torno do defunto. Num salto, ela me puxou e saímos correndo, atropelando a todos. Em desabalada carreira no meio da Avenida Cordélio Flatus interditada, um sujeito gordo nos perse-guia. Ele sacou uma espécie de pistola de ficção científica e acertou um raio laser incandescente na perna direita de Esther. Ela caiu, desabando seu corpo sobre o meu. Olhamos para trás. Coronel Contra à paisana brandia a pistola:

— Alvin Blake, Esther Altman, vocês estão presos em nome da lei!

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Capítulo 5

ENCERRAMENTO DA OPERAÇÃO CAIXA-FORTE

Indiferentes ao pranto de uma cidade, os Patralhas seguem seu rumo, flutuando no ar com sua carga quaquilionária. Sentiam-se autores da suprema vingança de um povo.

Dizem os militantes da causa canina-caucasiana que tudo começou com os primeiros assentamentos permanentes de patos no território então dominado pelos cães; naquele tempo ainda havia algum entendimento entre os dois povos. O explorador Cordélio Flatus teria se apaixonado por Begônia Beagle — uma paixão proibida, pois pelos costumes de cães e patos o acasalamento entre espécies diferentes tem sido castigado com execuções cruéis.

O caso é descoberto pelos cães. Impossibilitado de consumar sua relação com Begônia, Cordélio reúne seus companheiros para golpear a conspiração dos conselheiros caninos: Begônia toma conhecimento de que trinta anciãos da comunidade dos cães se reuniriam secretamente num barco para decidir o que fazer com aquele “pato inoportuno”.

A pequena tropa de Cordélio Flatus invade o barco e massacra todos os ocupantes. No retorno, enterra seu troféu de guerra — a cabeça de Apolônio Beagle, pai de Begônia — no pátio da aldeia dos patos e toma posse do território: naquele momento é fundada a cidade de Pastópolis.

Chocada com o assassinato de seu pai, Begônia se separa de Cordélio e toma rumo desconhecido; o resto da

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família Beagle parte para o contra-ataque. No entanto, a defesa dos patos é muito forte: cerca de 50 mil cães caucasianos morrem na Guerra de Independência de Pastópolis. Os cães fogem para as terras menos férteis na margem norte da Baía, onde fundam a cidade de Cinópolis.

Passam os séculos; Cinópolis se torna um im-portante centro econômico sob o comando da família Beagle. Os patos mal contêm sua inveja. A confusão causada por uma série de governos tímidos e corruptos diminui seu ímpeto expansionista, até que uma jogada polí-tica dos nacionalistas pastopolenses conduz o velho Cordélio Flatus III (neto do fundador) ao Ministério da Defesa.

Cães caucasianos remexem velhas feridas, prometendo vingança contra os patos invasores. Pastópolis fica de mãos atadas. O jovem comerciante Petinhas O’Pato se estabelece na cidade e propõe a Cordélio III financiar a invasão e pilhagem de Cinópolis.

Num ataque-surpresa, Cinópolis é arrasada em apenas cinco dias. Pastopolenses agora ocupam a totalidade do lado norte da Baía de Pastópolis; os lucros de Petinhas são astronômicos. A família Beagle, dominante em Cinópolis, perde seus bens e suas ramificações se espalham pelo mundo. Um grupo toma o caminho do crime, dando origem aos famosos Irmãos Patralha.

Enfim, para muitos cães caucasianos, o tesouro de Petinhas reunia tudo que lhes fora roubado por séculos de ocupação dos patos. Sim, o roubo tinha motivação política: ninguém teria como gastar tanto dinheiro sem levantar suspeitas. Mas o que mais chocou os patos foi finalmente se dar conta de que o ouro da Caixa-forte era tudo em que Pastópolis se apoiava. Quando o helicóptero ergueu o velho prédio blindado do solo, era como se a cidade fosse arrancada pela raiz...

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Por isso, foram em vão os últimos esforços mili-tares para deter o helicóptero dos Patralhas. Com a morte de Petinhas, ninguém arriscava especular quem seria o legítimo dono da fortuna. Nenhum dos enferrujados mísseis do Exército pastopolense acertou o alvo. E o contra-ataque dos Patralhas, com o controle remoto mis-terioso, era sempre fulminante.

Em alto mar as Forças Armadas nada poderiam tentar. Se a Caixa fosse atingida, o dinheiro não seria facilmente recuperado. Mas não foi para fugir dos mísseis que os Patralhas saíram pelo oceano. Eles tinham um destino certíssimo: uma ilha deserta fora dos limites de Pastópolis.

O helicóptero baixou suavemente as toneladas da Caixa-forte numa clareira de área suficiente. Mas a ilha não era exatamente deserta. Lá um rosto conhecido já os esperava:

— Bom trabalho, rapazes — disse Maga Magalógica.

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Capítulo 6

REI MORTO, REI POSTO

Detidos na delegacia central de Pastópolis, esperamos o fim do luto oficial para sermos interrogados por Muckey. Muito a contragosto, o famoso dublê de pop-star e investigador aceitou o convite para comparecer ao funeral de Petinhas — mesmo sabendo que o falecido quaquilionário nunca lhe dera a menor pelota.

Quem sabe aquele interrogatório nos esclarecesse alguns mistérios: o que tinha Esther a ver com Petinhas? Por que realmente fomos presos enquanto os Patralhas estão à solta? Por que Esther não usou sua Magnum 44 contra Coronel Contra? O que fizeram com meu carro amassado no hidrante? Por que o Coronel nos conhecia de nome e sobrenome?

É claro que Esther tinha muitas destas respostas, mas sua situação era semelhante à minha: se abrisse o bico, morreria.

— Não me fale em bico — resmungou Esther, tentando dormir na cela vizinha.

Naquela noite, quase toda a família Pato já estava mobilizada em torno dos ritos mortuários. Muitos parentes distantes e autoridades estrangeiras se deslocavam a Pastópolis para assistir ao enterro. No entanto, o pranto convulsivo dos cidadãos comuns não era acompanhado por todos os sobrinhos de Petinhas. Especialmente em se tratando da Vagarida.

Pilotando seu carrinho cor-de-rosa, Vagarida se dispusera a atravessar a Cordilheira Negra e dar a má

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notícia a Dinho, Binho e Quinho no acampamento dos campistas juniores. Seus planos eram outros:

— É chegado o momento de tirar aqueles três pentelhinhos da jogada. Em Pastópolis, até os postes sabem que Ronald é o primeiro na linha sucessória do Petinhas, e receberá a maior parte da fortuna. E eu não tenho direito a um níquel sequer! Eu simulo um acidente, mato os três sobrinhos, me caso com Ronald e serei esposa de um quaquilionário! Rá, rá, rá, rá, rá!

E na Rádio Pastópolis seguia com a melodia fúne-bre enquanto o sarcófago de Petinhas não descia ao solo.

Três horas da manhã. Morriam as últimas chamas da fogueira dos campistas juniores naquela madrugada morna. Sob a escassa luz do luar, Vagarida estacionou no alto de uma colina e examinou o terreno:

— Esses campistas escolheram o pior lugar possível para acampamento. Basta que eu desprenda uma daquelas pedras do alto da montanha e a pedra acertará o acampamento como uma bola de boliche...

Vagarida desceu a colina em ponto morto para não chamar a atenção, pegou uma pá no banco de trás do carro e subiu a montanha a pé, caminhando entre as árvores. Ela mal enxergava um palmo diante do nariz e não se dava conta dos riscos, mas a febre do ouro a tudo superava. Menos aquele enorme urso cinzento que se pôs no meio do caminho.

O urso deu um urro macabro. Vagarida tentou espantá-lo usando a pá, mas só conseguiu enfurecê-lo mais ainda. Apavorada, Vagarida saiu correndo montanha abaixo. O urso a perseguiu com fúria. A pá escorregou das mãos da namorada de Ronald; ela tropeçou e rolou pelo penhasco.

O urso continuou a perseguição. Os escoteiros ouviram os urros e foram ver o que era. O chefe dos

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campistas juniores espantou o urso com uma tocha e encontrou Vagarida com as penas ensangüentadas e se contorcendo de dor:

— Vagarida, o que você está fazendo aqui? Um helicóptero da polícia Montada, chamado por

um foguete sinalizador, levou Vagarida para o Hospital Memorial Cordélio Flatus III. Resultado dos exames: duas costelas fraturadas e escoriações nas pernas. Desconfiado, o cirurgião-chefe Romeu Pato pediu novos exames e descobriu o que ninguém esperava:

— Vagarida, a senhorita teve algum encontro íntimo recentemente?

— Claro que não — ela mentiu. — De qualquer forma, eu lamento informar que a

senhorita abortou um ovo fecundado. Meus pêsames.

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Capítulo 7

RIGOR MORTIS

Até Ayrton Senna teria inveja da fila de populares que se formou para as últimas homenagens a Petinhas. Dentre os 600 mil habitantes de Pastópolis, compareceram ao velório justamente os 95% que tinham alguma homena-gem a prestar. A oposição não aparecia nem para fazer média. Muito menos agora que o império Petinhas apodrecia junto com o corpo do velho pato.

Mas na ala da Família Pato no salão do Conselho Municipal, onde o corpo era velado, ouvia-se um murmúrio incômodo: não se sabe como, mas a notícia de que Vagarida abortara ovo de pai desconhecido já era comentada à boca pequena entre uma crise de choro e outra especulação sobre o destino do testamento de Petinhas.

Ninguém se arriscava a pôr em julgamento a envergadura moral de Vagarida — ainda. Bem conceituada como agregada da família Pato, a única que a odiava secretamente era Vovó Ronalda. Todos sentiam que a matriarca da família julgava que Vagarida lhe roubara seu querido enteado Ronald.

Centenária, senil e doente das pernas, Ronalda foi das últimas a comparecer ao velório. A cadeira de rodas era mal e mal empurrada pelo decrépito Gastolino.

— O que aquela velhota aleijada tá fazendo aqui? — perguntaram Naná, Nené e Nini, que já nem reconheciam Ronalda.

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— Calem-se! Respeitem a Vovó Ronalda — resmungou Winie, que tomava conta das garotinhas enquanto Vagarida permanecia no hospital.

Ao mesmo tempo, todos silenciaram seus palpites maledicentes em consideração à dor da velha fazendeira. Ronald cumprimentou sua querida vovó calorosamente, mas em seu íntimo só tinha em vista um objetivo: recuperar a fortuna de Petinhas, custasse o que custasse.

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Capítulo 8

O PACTO SATÂNICO DA MOEDINHA

— Excelente trabalho, Patralhas! Juntos conquistaremos o mundo! — disse Maga Magalógica, montada em sua vassoura voadora, contornando a Caixa-forte.

— Obrigado, Maga — completou, modesto, 176-761 — Na verdade, nem nós imaginávamos que seria assim tão fácil...

— Nós já tínhamos dentro da Caixa-forte um comando pronto para neutralizar o Petinhas e os guardas — explicou 176-671 — Mas quando aqueles humanos invasores derrubaram o hidrante, o jato d'água pressionou o detonador e tivemos que antecipar a operação em meia hora.

Os corvos de estimação pousaram nos ombros da Maga. Já em terra firme, ao lado do helicóptero, ela perguntou, desconfiada:

— E foi muito difícil se livrar do velhote? Há muitos anos eu já teria dado cabo da vida do quaquilionário, se ao menos pudesse... Para onde foi a lenda do corpo fechado de Petinhas?

— Deve ser das coisas estranhas que vêm acon-tecendo em Pastópolis... — filosofou 176-167 — Mas vamos ao que interessa: como fica nosso acordo?

— Ah, é claro, queridos Patralhas. Eu prometo que vocês terão lugar de honra na Nova Ordem pastopolense. Para isso, só preciso da Moedinha da Sorte. Vamos, rapazes...

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Maga entrou em transe. Olhos fechados, braços esticados para frente, começou a caminhar pelos corredores do setor administrativo da Caixa-forte, ignorando os arquivos e bebedouros caídos pelo caminho. Ela já sabia onde encontrar a preciosa Moedinha. Cinco Patralhas foram atrás.

Ao se deparar com a porta blindada da sala da Presidência, Magalógica não recuou: passou através da porta como um fantasma. Enquanto isso, os Patralhas tiveram um bom trabalho para arrombar a porta. Quando conseguiram entrar, encontraram a Maga fazendo passes mágicos diante do grande quadro de Cordélio Flatus.

Um brilho estranho emanava do corpo da Maga. Num gesto ríspido, ela abriu a mão direita e soltou uma bola de fogo contra o quadro. A explosão abriu um buraco na parede, revelando um pequeno “cofre anti-magas”.

— Vamos lá arrombar o cofre, manos! — exaltou-se o Patralha Azarado.

— Cale-se, idiota — resmungou o provecto Primo 001.

O brilho aumentou, em ondas coloridas, e uma contorcida Maga começou a soltar raios para todos os lados. Os Patralhas se encolheram atrás da mesa executiva de Petinhas. Com seu enorme poder despertado, Maga introduziu lentamente o braço dentro do cofre, pegou a moeda e tirou de volta o braço. Os raios baixaram, Maga saiu do transe.

— Patralhas, aqui estamos finalmente todos juntos: vocês, eu, a fortuna de Petinhas... — abriu a mão lentamente, para que todos vissem — E a Moedinha da Sorte!

Na mão de Maga, a moeda era envolvida por uma crescente aura luminosa. Os Patralhas se aproximaram.

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— Dêem uma boa olhada. Dentro em breve esta moeda dissolver-se-á nas lavas do Vesúvio. Terei poderes supremos sobre o céu e a terra. Serei a pata mais poderosa do Universo! Rá, rá, rá, rá, rá!

Dito isso, a moeda começou a soltar ofuscantes raios multicoloridos que atravessaram as paredes da Caixa-forte, cortando a escuridão do céu. O fenômeno mágico foi observado a milhares de quilômetros. Em Pastópolis, alguns notaram, mas poucos interpretaram. Muckey, muito contrariado por ter que comparecer ao velório, nada perce-beu. Ronald notou os lampejos azuis, amarelos e púrpuras que se refletiam no caixão laqueado de Petinhas.

“Maga Magalógica!”, ele pensou. Suas penas se eriçaram. Ronald sabia o que deveria fazer.

— Com licença, com licença... Ronald tentava manter a calma enquanto abria

caminho na ala dos parentes rumo à saída. Ele não se importava mais em ficar queimado diante da família por abandonar o velório de seu tio. Para ele, nada mais tinha sentido, pois o dinheiro, a família e Pastópolis estavam à beira do buraco negro.

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Capítulo 9

O VINGADOR ESTÁ DE VOLTA

— Até que enfim você chegou, Muckey. Já estávamos preocupados com sua demora — disse Coronel Contra, à porta da sala de interrogatório.

— Não foi fácil enfrentar a fila do velório do Petinhas. Será que esse povo não tem nada melhor a fazer? — reclamou Muckey — E o pior de tudo foi passar pela ala VIP e tomar a maior vaia da Família Pato, como se eu tivesse algo a ver com isso. Nunca fui tão humilhado em toda a minha vida...

— Já imagino a cena, Muckey. Mas deixa pra lá. Os patos vão ver só uma coisa.

Ao ouvir o diálogo insólito, pensei com meus botões: “Há algo de podre...”

— Bem, vejo que a caça de ontem foi boa. Lamento não ter interrogado esse lindo casalzinho antes — Muckey riu entre os dentes.

— Alvin Blake, Esther Altman — Contra passou nossos relatórios a Muckey — vocês já devem conhecer nosso investigador Muckey Mouse. Vou deixar vocês três a sós até o fim do interrogatório.

— E acho bom falarem tudo, pois já sabemos o suficiente para fazê-los mofar na cadeia!

O Muckey ou a Esther, um dos dois estava ble-fando. Aquelas algemas esmagavam meus pulsos...

— Primeiro de tudo — disse eu — exigimos o básico: o direito a um advogado e saber exatamente do que estamos sendo acus...

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— Cale-se, seu verme! — Muckey acertou uma coronhada em meu maxilar — Se bancar o engraçadinho, vai ter tempo de sobra para fazer perguntas na cadeira elétrica. Mas como você é novo por aqui, é preciso explicar que ninguém tem direito a coisa alguma nesta delegacia quando não se paga a devida fiança...

Pastopolenses desgraçados! O que fizeram então com a mala de dinheiro no meu carro batido? O que eu estava fazendo na delegacia? O que Esther sabia que eu não sabia? O que fez a polícia diante do roubo da Caixa-forte? O quê? O quê? O quê?

— ...e já estávamos procurando sua amiguinha... “Amiguinha?” Nunca vi Esther mais gorda! — ...desde que enquadramos seu contato Fred

Gallus, também conhecido por Honório “Kentucky” Bastos, que não hesitou em colaborar com a polícia.

— Vocês pegaram o Kentucky????? — estrilou Esther.

— Parece que só você é que não sabia, Esther. Que a terra seja leve ao Fred...

Comecei a pensar que abrir o bico (se bem que pegava mal falar em “bico”) seria um péssimo negócio.

*****

Enquanto isso, o carro de Ronald — adaptado secretamente para as operações de Superbicudo — disparava pelas estradas a 350 por hora. Ao longo da Rodovia Litorânea ele procurava, mas já não via os raios multicoloridos de Maga Magalógica.

— Eles só podem estar numa ilha em alto mar. Usando o mapa de seu computador de bordo e seu

nariz farejador eletrônico, ele rapidamente localizou a ilha

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onde se encontravam Maga, os Patralhas e o tesouro de Petinhas. Ninguém notou quando Ronald vestiu seu uniforme de Superbicudo e ativou os Pneus Hiperinflantes em seu carro. Com os balões ativados sob o chassi, o carro pôde dirigir sobre as águas.

Duzentos quilômetros depois, Superbicudo avistou a Caixa-forte no centro da pequena ilha. Mas os Patralhas também tinham binóculos infravermelhos e estavam montando guarda sobre a fortuna de Petinhas. Não sem estranhar a presença de um carrinho flutuando sobre as águas, 176-176 exclamou:

— O pentelho do Superbicudo nos encontrou! Fogo nele!

A bala de canhão atingiu o alvo com precisão absoluta. Os Patralhas comemoraram quando o carro começou a afundar, levando consigo o heróico Superbicudo.

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Capítulo 10

UMA FUGA HUMANAMENTE POSSÍVEL

— Como disse? O prefeito foi seqüestrado? Não admito seqüestros sob minha jurisdição! Vou mandar meus melhores agentes resolver já esse caso.

Coronel Contra rosnava ao telefone como um cão danado: ele considerava a maior das afrontas que o prefeito Omar Suíno tivesse acabado de ser seqüestrado em pleno centro de Pastópolis. Justamente o Omar Suíno, que a polícia apoiava incondicionalmente — ou algo muito próximo disso.

Na verdade, depois de trinta anos de reeleições sucessivas como candidato oficial de Petinhas, Suíno fez uma ou duas declarações consideradas simpáticas ao movimento dos cães caucasianos (a maioria oprimida de Pastópolis) e ficou desprestigiado diante do velho pato. Como o partido já tinha fechado questão em torno de mais uma candidatura à reeleição, Petinhas saiu com um saco de dinheiro, fundou um novo partido e lançou a si mesmo como candidato.

Com esta virada de mesa, o prefeito ganhou a simpatia silenciosa da polícia — 85% de cães caucasianos — insatisfeita com o absoluto desprezo de Petinhas pela corporação, apesar de o magnata ter sido o cidadão mais bem protegido de Pastópolis. Agora que Petinhas estava prestes a ser enterrado, Suíno bem poderia rasgar a fantasia e garantir alguns direitos aos cães vilipendiados.

Contra abriu a porta da sala, interrompendo o interrogatório. Trocou meia dúzia de palavras com Muckey; logo dois carcereiros estavam nos jogando de volta ao fundo das celas.

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— Alvin, Esther — explicou Muckey — agora vamos resolver outro caso; quando voltarmos, reiniciaremos o interrogatório. E acho bom vocês começarem a cooperar conosco e entregar toda a verdade, se é que sabem o que é bom pra vocês...

Quando Contra e Muckey nos viraram as costas, Esther comentou por trás da grade que nos separava:

— Eu sabia que esse Muckey não passa de um sanguinário. Não importa que a gente fale a verdade; de qualquer jeito, vamos ser torturados até a morte, como foi o pobre Fred Gallus.

— Não sei se devo acreditar no que você diz. Afinal, eles perseguiam a você, não a mim... Alguém está me escondendo muita coisa.

— Você não percebe, Alvin, que estamos no mesmo barco? Somos dois alienígenas presos ilegalmente. A polícia não tem o menor interesse em assumir o ônus de nos entregar à Justiça, pois nossa presença está desestabili-zando toda a ordem de Pastópolis.

— Ora, que bobagem! — Veja tudo que aconteceu desde que chegamos!

O acidente de carro, o roubo da Caixa-forte, a morte do Petinhas, o aborto da Vagarida, e agora este seqüestro... O que vem depois? Nada disso poderia acontecer se não fosse por nossa simples presença em Pastópolis!

Ao notar minha expressão incrédula, Esther encontrou uma folha de jornal num canto da cela, tirou um pedaço do tamanho de um cartão postal, amassou-o e atirou a bolinha em minha direção.

— Alvin, guarde essa bolinha em sua mão por dez segundos.

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Não sei por que segui uma instrução tão biruta. Mas quando abri a mão, quase caí de costas: como que por mágica, o papel tinha virado pó!

— Essa é apenas uma pequena amostra do estrago que nossa estrutura molecular humana pode fazer em Pastópolis. Da mesma forma que o papel se transforma em pó, tudo em nossa volta é sutilmente submetido a uma reação em cadeia conduzindo ao desequilíbrio crescente. Em resumo: estamos ferrados!

— E o que espera que eu faça? — Nós dois temos que fugir desta carceragem e

voltar para o mundo dos humanos. — Você está brincando. Minha missão não está

cumprida! A Organização vai me matar se eu voltar de mãos vazias.

— Pelo menos vai ser uma morte um tanto menos cruel que a de Pastópolis... Ei, tive uma idéia. Você está com vontade de fazer xixi?

— Hein? — É, Alvin! Experimente fazer xixi na parede para

ver o que acontece. Sem alternativas, esperei um cochilo do carcereiro

para urinar sobre a parede que nos separava da rua. Inacreditável. Alguns respingos de xixi foram suficientes para abrir um enorme buraco na parede, como se fosse ácido sulfúrico sobre papelão!

Com o resto do xixi, dissolvi uma parte da grade que me separava de Esther. Ainda estava perplexo, mas foi a fuga mais fácil da História... Quando pusemos os pés na rua, deparamo-nos com uma limusine de dez metros de comprimento em frente à qual se postavam quatro granda-lhões impecavelmente vestidos, e no meio da fila, seu maximilionário patrão:

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— Bem-vindos à Pastópolis verdadeira, amigos — disse Fatalôncio.

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Capítulo 11

A SETE PALMOS

— Onde diabos está o Pato Ronald? — grasnou Odorico von Pato, o parente mais idoso a manter sanidade mental para o comando dos ritos fúnebres.

— Sei lá; acho que ele foi comprar cigarros e não voltou — disse a secretária de Petinhas.

— São cinco da manhã; se Ronald não aparecer de volta em cinco minutos, vamos enterrar o Petinhas sem ele, às sete em ponto.

— Que pena. Justo o sobrinho preferido do Petinhas — lamentou um agregado da família.

— Cadê a Vagarida? Vovó Ronalda, que quase não falara com os

parentes durante o velório, de repente levantou a voz para lembrar um detalhe altamente inconveniente: a velhinha não poderia saber que sua querida Vagarida estava internada, em lenta recuperação depois da perda do ovo.

— Eu estou perguntando, gente: cadê a Vagarida? Não me digam que ela sumiu para sair dando por aí como sempre.

Toda a família Pato ficou vermelha de vergonha; não tiveram outra alternativa senão mandar Gastolino empurrar a cadeira de rodas e tirar a provecta matriarca de cena para algumas “explicações particulares”.

Uma coisa era certa: ninguém deixaria barata a ausência de Ronald no enterro. Especialmente por se tratar do principal candidato à herança de Petinhas. A mesma herança que Ronald, digo, Superbicudo, naquele exato momento, lutava para recuperar.

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O tiro dos Patralhas acertou em cheio o carro flutuante, mas Superbicudo teve apenas o tempo necessário para vestir a máscara de mergulho e descer às profundezas do oceano. De fato, foi uma pena que o tradicional carrinho de Ronald tivesse aquele fim.

— Grandes coisas — pensou Ronald. — Daqui a pouco eu serei o dono de vinte fábricas de automóveis.

Com seu minifoguete de mão, Superbicudo venceu com facilidade os dois quilômetros submarinos que o separavam da ilha dos Patralhas. Ninguém notou quando Superbicudo se esgueirou entre a vegetação e começou a escalar a parede da Caixa-forte com suas botas de hipersucção.

Foi simples para Superbicudo neutralizar com sua pistola de gás paralisante o Patralha que vigiava no telhado. Superbicudo abriu a clarabóia do salão de convenções, entrou na Caixa-forte e começou a caminhar pé ante pé nos corredores que ele tão bem conhecia. No gabinete de Petinhas o super-herói finalmente encontrou Maga Magalógica, fazendo passes mágicos diante de seu caldeirão fumegante, ainda envolvida no transe dos rituais de conexão astral que precederiam a fusão definitiva da Moedinha da Sorte.

*****

Quando Esther se deparou com Fatalôncio, deu um passo para trás e pensou em fugir. Não teve tempo: os quatro seguranças do zilionário conseguiram agarrá-la a tempo e carregá-la pelos braços e pernas. De alguma forma, Fatalôncio sabia que eu não fugiria.

— Então é você a famigerada Esther Altman, também conhecida como Cassandra King ou Joanne

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Townshend ou Florence Mackey... Encantado em encontrá-la, minha cara.

— Você não vai conseguir coisa alguma de mim, Fatalôncio! — esbravejou Esther.

— Ainda bem que vocês fugiram a tempo da delegacia. Tenho grandes planos para vocês dois. Queiram entrar em meu humilde automóvel; vocês precisam ver algumas coisas...

— Só por cima do meu cadáver! Fatalôncio, mantendo a calma habitual enquanto

os seguranças continham Esther, sacou um papel do bolso, desdobrou-o e o segurou à altura dos olhos da humana invasora. Só consegui perceber que era o testamento desaparecido de Petinhas.

Imediatamente Esther se acalmou e, cabisbaixa, entrou no carro; depois entramos eu e os quatro seguranças. Em cinco minutos estávamos no edifício-sede do conglomerado empresarial de Fatalôncio.

— Meus caros humanos, eu tenho que admitir: minhas empresas são a maior lavanderia de Pastobônus do Universo!

Talvez Esther estivesse certa a respeito da bagunça que se criava à nossa volta. Pensei com meus botões que muito ainda faltava a ser esclarecido...

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Capítulo 12

NAS ENTRANHAS DO IMPÉRIO DE FATALÔNCIO

— Explique-nos tudo de novo, Fatalôncio —

interrompi o discurso do magnata — Quero ver se entendi a transação.

— Pois bem, Alvin: você sabe por que o falecido Petinhas guardava todo o seu dinheiro num lugar só? Porque toda aquela fortuna simplesmente não tinha curso legal em Pastópolis.

Notei que Esther mal acreditava que tivesse sido enganada por Petinhas por todo aquele tempo. Não só ela, por sinal... Fatalôncio prosseguiu:

— Tudo começou quando Petinhas financiou a invasão de Cinópolis e embolsou o espólio de guerra, tendo lucros fabulosos. Sem ter como converter legalmente seu tesouro em dinheiro de Pastópolis, Petinhas virou a mesa e começou a emitir moedas de ouro com sua própria efígie. Para que esse dinheiro pudesse circular sem que o velhote perdesse seus famosos mergulhos na Caixa-forte, o império Petinhas começou a fazer seus pagamentos em Pastobônus, títulos com taxa flutuante que logo se tornaram moeda corrente na cidade. Em 1957 o Banco Central de Pastópolis, preocupado com a privatização da moeda, fez uma operação enorme e comprou todos os Pastobônus.

— Mas isso deve ter feito disparar o valor dos títulos, beneficiando o Petinhas... O governo aceitou isso numa boa?

— Tem razão, Esther; Petinhas continuou emitindo seus Pastobônus, que passaram a valer o triplo no

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mercado. Nada teria sido possível se Petinhas não tivesse seus amiguinhos no poder...

Dito isso, Fatalôncio pegou um controle remoto e apontou para a parede. Uma porta secreta se abriu: diante de nossos olhos se encontrava, amordaçado e envolto em correntes, ninguém menos que o recém-seqüestrado prefeito Omar Suíno!

— Vamos, excelência — ordenou Fatalôncio enquanto tirava a mordaça do prefeito — Explique para nossos “convidados” humanos o que você tinha com o Petinhas.

— Desde o primeiro mandato eu fui eleito para defender os interesses do Petinhas. Para aprovar a compra dos Pastobônus, eu tive que dissolver o Conselho Municipal duas vezes, até que Petinhas comprou os votos dos conselheiros um por um. Sem que entrasse um centavo na Caixa-forte, o valor real da fortuna do Petinhas disparou da noite para o dia!

Fatalôncio continuou: — Só que com a operação toda, Pastópolis ficou

de caixa baixo. Sem alternativas, o Banco Central revendeu todos os Pastobônus a quem pagasse mais... sem querer saber de onde vinha o dinheiro. Então, através de meus operadores financeiros, usei os lucros de minhas operações clandestinas e comprei tudo a preço de banana. Foi a maior lavagem de dinheiro já vista!

— E os Pastobônus recuperaram seu valor? — Claro, depois que o Petinhas emitiu 200% de

sua fortuna em Pastobônus... Eu e Esther só não estávamos mais boquiabertos

com a revelação-bomba que o próprio Omar Suíno. — Em outras palavras, minhas indústrias só têm

um objetivo: a conversão de dinheiro sujo em Pastobônus

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e daí em dinheiro limpo que comprará mais Pastobônus e assim por diante... Virtualmente todos os Pastobônus acabam sendo lavados pelo meu conglomerado empresarial e o Petinhas não tinha mais controle sobre o próprio dinheiro. Enfim, Petinhas morreu me devendo até as calças... se ele as usasse, claro. Rê, rê, rê, rê, rê...

— Mas se o Petinhas soubesse — perguntei — ele simplesmente daria um calote e os Pastobônus virariam lixo...

— Por que é que você acha que os Patralhas roubaram a Caixa-forte?

Eu e Esther nos olhamos com aquela expressão “ah, entendi tudo...” Fatalôncio prosseguiu:

— Já trabalhei muito com os Patralhas, mas eles não passam de um bando de trapalhões. Eles só teriam uma possibilidade de gastar a grana do Petinhas livremente: reconstruindo sua tão querida Cinópolis.

— Mas você não apóia a reconstrução de Cinópolis?

— Nunca botei a menor fé nisso. Afinal, eu sou um pato. Só não quero me meter com aquela gentalha insuportável da família Pato... Eu já tinha pronto com os humanos da Organização um esquema infalível para tomar o mercado clandestino de vasos sanitários, virar o jogo e me apossar de vez do ouro da Caixa-forte. Mas a Esther quase estragou tudo! Eu ia matá-la com minhas próprias mãos, mas sem a ameaça do Petinhas, tenho outros planos.

Fatalôncio tomou fôlego: — Alvin e Esther, a cidade está mergulhada no

caos, os serviços públicos funcionam mal e mal, os Patralhas estão cada vez mais exaltados, e a estas alturas já há um anel de guardas em torno da fronteira só esperando que vocês apareçam. Não adianta fugir. Eu lhes ofereço a

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única saída: quando eu for o dono de Pastópolis, poderei comprar toda a Polícia para que vocês possam voltar com segurança ao mundo dos humanos... e quem quer que se oponha aos meus desígnios será sumariamente eliminado.

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Capítulo 13

TEMPORADA DE CAÇA AO PATO Nova ausência inesperada no enterro de Petinhas:

aproveitando-se de uma distração dos parentes, Vovó Ronalda reuniu forças e empurrou sua própria cadeira de rodas a um ônibus adaptado para deficientes que passaria justamente em frente ao Hospital Memorial Cordélio Flatus III. A velhota deu entrada como paciente, despistou a todos, e de alguma forma conseguiu acesso ao quarto particular de Vagarida.

— Então é verdade, sua rameira! Você estava para botar um ovo!

Vagarida, com a cabeça enfaixada e as duas pernas engessadas, não acreditava no que via.

— Vovó, não é nada disso que a senhora está pensando...

— Pois então o que você está fazendo aqui? Vá lá aos meus parentes no enterro do Petinhas! Alguma coisa você fez, Vagarida! Justo você não podia me decepcionar, a noiva de meu patinho preferido...

Num acesso de cólera, Ronalda conseguiu com dificuldade se levantar da cadeira de rodas e partir para cima de Vagarida.

— Agora você vai ver qual é o castigo da Família Pato para agregadas vagabundas!

— Calma, vovó! Dito isso, Ronalda ergueu seu guarda-chuva como

uma espada, deu um longo suspiro e desabou sobre a barriga de Vagarida. Mais um sarcófago para o mausoléu da Família Pato.

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*****

— Então, como íamos dizendo — continuou Fatalôncio — a única alternativa para que os Patralhas gastem a fortuna da Caixa-forte é cobrar um resgate que só pode ser pago em Pastobônus.

— Quer dizer, como você tem os Pastobônus, o tesouro vai parar nas suas mãos automaticamente...

— Ainda não. A operação não pode ser feita por outros que não os legítimos donos da Caixa-forte, a saber, os herdeiros do Petinhas. — Fatalôncio pegou o testamento outra vez — Pois eu usei meus agentes secretos e encontrei a única cópia do testamento. Interessante, não?

— Isto é um absurdo. O velho estava caduco! A única herdeira é...

— Flora Senteantes, sua eterna paixão dos tempos da Corrida do Ouro. Aposto que nenhum parente esperava por isto...

— Todos pensavam que o herdeiro era o Ronald. — E vão continuar pensando, meus caros! Dito isto, Fatalôncio acendeu um fósforo e pôs

fogo no testamento. Enquanto o papel ardia, o discurso continuava:

— Agora que dei fim ao único exemplar do testamento, Ronald é o primeiro na linha sucessória; em seguida, em iguais condições, estão Dinho, Binho, Quinho, Gastoso e Pendinha. Meu objetivo é fazer a família Pato brigar entre si até que os negócios das empresas do Petinhas fiquem desgovernados. Nesse ponto, eles não terão outra saída senão receber umas migalhas em Pastobônus para que eu seja autorizado a resgatar dos Patralhas o dinheiro da Caixa-forte.

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Fatalôncio acendeu um charuto e concluiu satisfeito:

— Mas quando eu tiver a Caixa-forte, sou eu que vou dar um calote colossal nos Pastobônus! Os Patralhas e a Família Pato ficarão pobres, eu tenho o governo em minhas mãos e Pastópolis será minha!!!!!

— Mas e quanto ao Ronald? — eu e Esther per-guntamos em uníssono.

— Esta é a sua missão. Matem-no.

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Capítulo 14

A BATALHA DA MOEDINHA Primeiro, uma explicação sobre o seqüestro do

prefeito Omar Suíno: apesar de não ter muito que fazer no enterro de Petinhas, o chefe do executivo municipal não poderia recusar o convite assinado por metade da Família Pato. Precavendo-se da desordem em que Pastópolis mergulhava, foi elaborada uma meticulosa operação. Omar Suíno sairia de sua mansão antes do sol nascer; sua limusine seria acompanhada por seis viaturas da Polícia cheias de homens (homens?) armados até os dentes. Na verdade, a limusine transportava um manequim e o verdadeiro prefeito estava escondido num fundo falso no banco de trás de um dos outros carros.

Mas o Fatalôncio parecia saber de tudo na cidade. Quando o comboio desceu a arrasada Avenida Cordélio Flatus a meros 50 por hora, uma viatura falsa, idêntica às outras, esperava na esquina da Avenida Patal. Enquanto o carro verdadeiro — exatamente aquele onde o prefeito se escondia — virou à esquerda, o carro falso entrou em seu lugar. Todos notaram; todos fingiram que não viram nada.

Pelo menos essa era a versão do Fatalôncio. Pessoalmente, eu já não estava em condições de questionar coisa alguma, porque o Ronald estava com a cabeça a prêmio e nós dois fomos incumbidos de executá-lo. Fatalôncio desenrolou um mapa e espetou um alfinete num certo ponto:

— Ninguém imaginava que Pato Ronald e a Caixa-forte estão juntos nesta ilha deserta.

— Como?

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— Enquanto a cidade inteira só pensava no velório do Petinhas, pus meus agentes para trabalhar e descobri que a Caixa-forte foi levada para uma ilhota fora dos limites marítimos de Pastópolis. Sem querer, os Patralhas até facilitaram meu plano: aquela ilha já é minha proprie-dade há muitos anos.

— E como descobriram que o Ronald está lá mesmo?

— Durante o velório, meus detetives acoplaram um dispositivo rastreador no Ronald. Eu sei que ele está na ilha. Não sei onde. Vocês estarão lá em poucas horas.

Fatalôncio abriu outra porta secreta, revelando um compartimento cheio de armas pesadas, e continuou sua explicação:

— Se encontrarem Patralhas pelo caminho, usem estas armas. Não tenham medo. Vocês humanos são imunes às armas de fogo de Pastópolis e vice-versa. É por isso que Esther não tinha como usar sua Magnum contra o Coronel Contra.

Então era por isso que Fatalôncio estava tão interessado em nossa participação no plano! Mas era de se desconfiar que nossa missão não seria assim tão fácil.

*****

Enquanto o caixão de Petinhas descia a sete palmos, cumprimos todos os detalhes do plano: vestimos perfeitos disfarces de cães caucasianos, pegamos um ônibus para o cais de Pastópolis Norte, embarcamos num velho barco de pesca, seguimos a rota estabelecida e encontramos a ilha.

— Enfim, lá está a velha Caixa-forte... Os Patralhas nos dispensaram sua habitual

“calorosa” recepção. Fatalôncio falara a verdade: as balas

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passavam pelo meu corpo como se eu não existisse, não havia ferimentos, eu nada sentia! O mesmo ocorria com Esther. Desembarcamos já abrindo fogo, abatendo todos os Patralhas que se punham em nosso caminho.

Eu tinha no bolso um receptor direcional sin-tonizado no rastreador do Ronald; o aparelho apitava com mais força na medida em que nos aproximávamos da Caixa-forte. Por um segundo cheguei a cogitar que Ronald tivesse armado todo o roubo apenas para provocar a morte de seu tio Petinhas e tomar a grana para si. Mas quando passei pela porta principal da Caixa-forte, tive a intuição de que a história não era bem essa.

Estava certo. O sinal do receptor estava ficando fortíssimo; sem Patralhas pelo caminho, usamos lanternas para procurar Ronald de sala em sala. Enquanto isso, na sala da presidência, Maga Magalógica conferenciava com três Patralhas de primeiro escalão:

— Meus queridos, estou de partida para o apogeu de minha carreira de feiticeira. Nas lavas vulcânicas derreterei a Moedinha da Sorte e farei o amuleto mais poderoso deste mundo.

Perguntou um Patralha não identificado: — E assim poderá cumprir sua parte no contrato? Maga exibia orgulhosa a moedinha: — Claro! Trarei Begônia Beagle de volta ao

mundo dos vivos assim que tiver o completo domínio das forças do Universo. Rá, rá, rá, rá, rá!

Dito isso, Superbicudo saltou de trás de uma es-tante, brandindo sua pistola de raios:

— Não tão rápido, Maga! — Hein? Ouvimos as vozes. O receptor nos indicava que

Ronald estava ali mesmo. Superbicudo fez um disparo

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certeiro na moeda, exatamente no momento em que irrompemos à porta da sala. Esther, disposta a matar todos à sua frente e boquiaberta com as duas presenças inesperadas, mal notou quando a Moedinha da Sorte foi projetada em sua direção, caiu em sua boca e desceu garganta abaixo.

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Capítulo 15

BAIXA NO MUNDO ESOTÉRICO — Parados aí! Onde está o Ronald? Sabemos que

ele está aqui perto! Se querem continuar vivos, não banquem os engraçadinhos e confessem!

Superbicudo, consciente de sua verdadeira iden-tidade, ficou acuado. Maga Magalógica ignorou minha ameaça:

— Não sei quem é você, mas por todos os diabos, devolva minha moedinha!

Quando Maga sacou uma daquelas inúteis bombas de gás e partiu para cima de Esther, abri fogo. Os tiros rasgavam o peito e trituravam os ossos da Maga. Não houve magia negra que a salvasse.

O cadáver jazia ainda fumegante no centro da sala da presidência quando os Patralhas tomaram as dores da patroa. Apareceram uns quarenta, fortemente armados, vindos de todos os cantos. Perfilados como num pelotão de fuzilamento, os Patralhas atiraram e atiraram com todas as armas que tinham.

Puxei Esther, que ainda sentia a Moedinha da Sorte caindo em seu estômago, e lentamente nos aproximamos dos Patralhas. As balas passavam através do nosso corpo, como se não existíssemos. Intrigados com nossa imunidade às armas de fogo pastopolenses, os estúpidos Patralhas continuavam descarregando suas balas até que sua munição acabasse.

— Agora chegou a nossa vez, Alvin. A bomba! A bomba!

Superbicudo, antevendo a tragédia, saltou pela janela e desceu a parede pendurado por uma corda. Na

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medida que Superbicudo descia, o sinal do receptor ficava mais fraco, sem que eu entendesse o motivo.

— Afinal, Patralhas, cadê o Ronald? Ninguém sabia. Só podiam estar escondendo a

verdade, pensei. Tirei do bolso um saquinho cheio de urina humana e joguei-o no caldeirão da Maga.

— Vamos sair daqui, Esther, ou vamos nos ferrar! Abrimos caminho entre a debandada de Patralhas

e saltamos no poço do elevador, à espera da maior das calamidades.

*****

O juiz Décio Coruja não suportava o falecido Petinhas. Talvez fosse a única autoridade pastopolense que o rico pato não tivesse no bolso. Debaixo de sua fama de durão, não foi sem uma indisfarçada sensação de revanche que Décio reuniu a Família Pato para estabelecer a divisão dos bens — partindo do pressuposto que os bens viessem a ser recuperados.

— Minhas senhoras, meus senhores, de acordo com as investigações por mim coordenadas, lamento concluir que não foi encontrado o testamento de Petinhas O’Pato.

Um forte “Oooooh” ecoou pelo Tribunal de Pastópolis.

— Portanto, segundo as leis de Pastópolis, o herdeiro universal será o parente mais próximo do falecido, a saber, seu sobrinho, Pato Ronald.

Os parentes se entreolhavam com um misto de espanto e revolta. Afinal, Ronald estava sumido desde o velório. Como a Justiça pastopolense poderia permitir tamanha falta de consideração?

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— Pato Ronald será chamado três vezes, com intervalos de trinta segundos, para a assinatura dos papéis. Se o herdeiro não estiver presente, a herança será dividida em partes iguais pelos sobrinhos Dinho, Binho, Quinho, Gastoso e Pendinha. Em seguida, cuidaremos da herança da Sra. Ronalda Pato. Pato Ronald, queira comparecer.

Nada. — Pato Ronald, queira comparecer. Nada. O Tribunal mergulhava no silêncio. — Pato Ronald, queira comparecer. — Presente! Naquele momento, Ronald surgiu na porta do

Tribunal, sob a surpresa de todos e a raiva mal contida dos primos e dos sobrinhos.

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Capítulo 16

HERANÇA MALDITA — Felizmente você chegou a tempo, Ronald.

Venha assinar os papéis. O juiz Décio Coruja parecia aliviado. Com a

presença de Ronald, a Justiça de Pastópolis estava desincumbida da iminente briga familiar. Os parentes mal acreditavam. Ronald avançava pelo corredor sob trezentos olhos fuzilantes.

Chegando diante do Juiz, Ronald assinou os papéis e tirou outros do bolso, anunciando a toda a família:

— Como vocês bem sabem, não preciso correr atrás do dinheiro do meu saudoso tio. Eu já tenho uma enorme renda pessoal no merchandising da minha imagem. Por isso, no pleno gozo das minhas faculdades mentais, transfiro a totalidade da herança de Petinhas à minha querida noiva Vagarida.

A situação era duplamente revoltante. Além de a fortuna ter sido herdada por um parente considerado indigno, ainda foi transferida para uma agregada fornicadora cujo escândalo teria provocado a morte da Vovó Ronalda. Os parentes puxaram uma longa vaia — mas àquela altura os papéis já estavam assinados.

— Quanto a mim, já tirei visto de residência em Grasnópolis e lá pretendo viver pelos próximos dez anos.

— Também vamos, tio? — perguntaram Dinho, Binho e Quinho.

— Claro. Façam suas malas e encontrem-me no aeroporto em três horas.

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Ronald se despediu do juiz, saiu pela porta lateral do Tribunal e entrou no veículo voador do Professor Padral, que já o esperava:

— Então, como foi o plano? — perguntou Padral. — Nunca pensei que fosse tão fácil enganar a

Família Pato! — Ronald tirou o disfarce: na verdade, era o Sovina McGrana — Eles caíram literalmente como patinhos! Ri, ri, ri!

— Parabéns, Sovina. — E como está a fabricação dos patandróides do

Ronald? — De vento em popa. Se aqueles malas sem alça

da Família Pato ainda quiserem tirar satisfações com o Ronald, terão que enfrentar não um, mas vinte Ronalds!

Padral concluiu satisfeito: — O Ronald merece. Ele nunca me pagou pelo

equipamento de Superbicudo... Afinal, se o senhor já sabe que Ronald é o Superbicudo, por que não denuncia isso nos jornais?

— Pouco importa. Sem o Petinhas, Ronald revelaria isso espontaneamente cedo ou tarde. E depois, a proliferação dos patandróides chamará a atenção do Ronald verdadeiro; já tenho centenas de Patralhas atiradores de elite prontos para liquidá-lo assim que reaparecer em Pastópolis.

*****

Enquanto isso, eu e Esther nos escondíamos no poço do elevador da Caixa-forte. Não se enxergava um palmo. Lá fora os Patralhas se atropelavam em busca da porta de saída, pressentindo o pior.

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Ainda havia esperanças em nossa missão: o receptor indicava que Ronald ainda estava por perto. Esther tirou sua pesada máscara de cão caucasiano:

— Ufa! Que calor! Enfim eu enxergava alguma coisa — absoluta-

mente surpreendente! — Esther, está saindo uma luz da sua boca! — Hein? — Eu estou vendo! Quando você abre a boca,

parece que há uma lâmpada lá dentro! Esther virou de lado, abriu a boca e viu o reflexo

luminoso na parede. — Credo! A Moedinha da Sorte deve estar criando

uma reação mágica inesperada quando alojada num organismo humano!

Naquele momento concluiu-se o efeito da bomba de urina no caldeirão de Maga. Uma explosão estremeceu as estruturas da Caixa-forte, o vapor subiu e formou um rosto com voz trovejante:

— Seus malditos! Quem ousou me despertar do meu sono eterno?

Os Patralhas caíram de costas: — Begônia Beagle???????

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Capítulo 17

CAÇA À RAMEIRA Vagarida teve alta e voltou para casa. Seus poros

emanavam apreensão. A cada esquina ela se sentia seguida pelas paredes de mil olhos, acompanhada de perto pelo espectro de mil parentes sedentos de vingança.

Não era habitual que uma cidadã pastopolense abortasse por acidente um ovo fecundado — na pior das hipóteses, havia a opção de abandonar o ovo na Chocadeira de Base de Pastópolis — nem que uma agregada matasse de desgosto uma velhinha decrépita. Na escala de valores da Família Pato, Vagarida estava abaixo do Fantasma Manchado.

Abandonada no hospital pelos parentes, Vagarida ainda não sabia que se tornara a proprietária legal da herança de Petinhas. E por ora nem queria saber. Tudo que Vagarida desejava era voltar para casa e reassumir a identi-dade de Superbicuda que renunciara há cinco anos. Porém...

— Quaaaaaaaac!!!!!!! A Família Pato, colérica, invadira a casa de

Vagarida. Estraçalharam as portas a machadadas, quebraram todas as janelas. Móveis e utensílios foram revirados. Os objetos de valor desapareceram. A multidão devorou o conteúdo da geladeira. As paredes cor-de-rosa estavam lambuzadas com palavrões que lembravam a imoralidade de Vagarida. Fezes nauseabundas cobriam o chão.

Perplexa, a noiva de Ronald correu ao sótão, onde estava o baú com o equipamento de Superbicuda.

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Saquearam todos os objetos do sótão, menos o baú. Vazio, com um bilhete irônico: “Vá enganar outro, Vagarida”.

Naquele instante, Vagarida se deu conta de que os ares de Pastópolis dificilmente fariam bem à sua saúde.

*****

Aeroporto Internacional de Pastópolis. Exatamente na hora marcada, um Ronald impecavelmente trajado esperava diante do portão de embarque. Logo depois chegaram Dinho, Binho e Quinho, pequenos em comparação com suas mochilas de campistas juniores.

— Olá, meninos! — Olá, tio Ronald! — Vejo que já estão com a bagagem pronta. Aqui

estão seus passaportes; acabei de fretar um jatinho para Grasnópolis e conto com a presença de vocês. Afinal, somos uma família ou não somos?

Enquanto os patos atravessavam o portão de embarque, Binho perguntou:

— Onde o senhor esteve durante todo esse tempo sem nos avisar?

— É uma longa história. Na viagem eu conto. Absortos em sua curiosidade, os sobrinhos

embarcaram e nem notaram que o piloto era ab-solutamente idêntico ao próprio Ronald.

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Capítulo 18

O IMPÁVIDO COLOSSO NÃO FOGE À LUTA — Canalhas! Incompetentes! Cretinos! Idiotas!

Esses humanos boçais não são capazes sequer de matar o Ronald?

Fatalôncio mastigava seu chapéu enquanto lia enfurecido a primeira página de seu jornal A Chatada. Era inacreditável que Ronald estivesse presente no Tribunal de Pastópolis para tomar posse da herança perdida! Tudo já estava assinado nas mãos do juiz Décio Coruja. O plano tinha ido por água abaixo.

Logo a cólera se transformou em determinação. O magnata pegou o telefone vermelho e chamou seu velho amigo:

— Professor Urubu? Estou com sérios problemas. Meus instrumentos de localização indicam que Ronald continua na ilha com os Patralhas e a Caixa-forte, mas ao mesmo tempo todos viram Ronald no Tribunal!

— Impossível, Fatalôncio. Eu só roubo inventos de primeira qualidade.

— Então como o Ronald pôde estar em dois lugares ao mesmo tempo?

— Sei lá. Alucinação coletiva, fraude, golpe publicitário... Uma coisa é certa: se você queria o Ronald morto, não é agora que vai se dar por satisfeito.

— Neste caso, só há uma solução... Você ainda tem aqueles megadesintegradores sobrando aí?

— M-m-m-mas o que você pretende? — Urubu vacilou apreensivo.

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— Aquela ilha é minha, tudo que ela tem me pertence, e nela eu faço o que quiser. Uns cinco mísseis serão suficientes.

— Não vá fazer nenhuma besteira, Fatalôncio! — Não ouse me contrariar, seu gavião subde-

senvolvido! — esbravejou o empresário — Trate de preparar os mísseis imediatamente. Quero aquela ilha riscada do mapa até...

Naquele momento, uma visita não autorizada empurra a porta do escritório. Fatalôncio interrompe a ligação.

— Flora Senteantes? — Folgo em saber que você ainda se lembra de

mim, Fatalôncio... Antes de morrer, o velho Petinhas fingia que não me conhecia.

— Como entrou aqui sem avisar? — Eu tenho minhas cartas na manga... É

fantástico o que se aprende sobre a vida nas mesas de pôquer.

— Pouco me importa que você esteja frustrada sexualmente e que eu seja o único gugolionário de Pastópolis — revoltou-se — De mim você não tirará um centavo!

— E quem disse que eu quero o seu dinheiro? Eu só quero o que me pertence... — Flora se aproximou de Fatalôncio, langorosa e sorridente — Eu sei que Petinhas fez um testamento deixando toda a fortuna para mim. E eu sei que você sabe disso.

— Aquele testamento era uma farsa. Você se aproveitou de um acesso de senilidade do velhote.

— Isto é mentira, meu querido... — Flora olhava dentro dos olhos de Fatalôncio — E você também não acha que foi uma farsa a presença de Ronald no Tribunal?

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— O que você sabe? — Eu estava no Tribunal. Aquele não era o

Ronald verdadeiro. Aquele tinha as pernas muito arqueadas e as penas da cauda eram diferentes. A Família Pato estava tão irritada que nem notou.

— Então vá contar isso à família, ora! — Mas só você poderia estar interessado na

desaparição do testamento. — Você deveria ser morta por sua inconveniênca,

Flora! Dito isto, a velha pegou Fatalôncio pela cintura e o

puxou para si. — Duvido que você faça uma crueldade dessas...

Faz tanto calor; por que não tira essa gravata? — Flora Senteantes, o que você pretende? — Ora, não diga que você tem medo de patas mais

velhas. Eu não mordo... Relaxe, Fatalôncio. — Você está me colocando numa posição com-

prometedora... — Confesse-me: você nunca fez amor com uma

pata? Àquela altura, Fatalôncio já estava deitado na

escrivaninha sob o peso de Flora, sem controle. Ele apertou o botão do intercomunicador:

— Secretária, avise que eu estou numa reunião importante e não posso receber ninguém pelas próximas... hã... hummm... oh...

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Capítulo 19

REVELAÇÕES DO ALÉM — Begônia Beagle, grande matriarca dos cães

caucasianos, concedei tua vasta sabedoria e virtude a estes Patralhas, vossos reles súditos que há séculos esperaram por este momento sublime!

O fantasma de Begônia hesitou por alguns se-gundos e trovejou o que nenhum Patralha queria ouvir:

— Seus idiotas! Eu não sou matriarca de povo nenhum! Eu fugi para as Montanhas dos Magos para cuidar da minha vida!

— Mas reza o dogma canino-caucasiano — disse o Patralha Intelectual — que a senhora voltaria ao mundo dos vivos para a suprema vingança...

— Quem foi o imbecil que inventou isso? Não há vingança nenhuma! Os patos venceram uma luta justa! Será que depois de séculos apanhando e apanhando, vocês não adquiriram um pingo de honra e dignidade?

— Mas nós tínhamos boa intenção, Begônia. — E daí? Lá de onde eu vim, estava em com-

panhia de um monte de bem-intencionados... Eu odeio os cães caucasianos que condenaram meu amor por Cordélio Flatus! Eu odeio os patos que assassinaram os anciãos caninos! Cansei de ser uma pária; só minhas amigas bruxas me compreendiam...

Os Patralhas sobreviventes se entreolharam: — Irmãos, tenho a leve impressão de que en-

tramos numa fria... — ...e tenho o ódio dos ódios pelo infeliz que me

arrebatou do descanso eterno!

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— Q-q-quem, a Maga Magalógica? É melhor procurá-la no outro mundo...

— Não foi a Magalógica. Eu vou achar o res-ponsável...

O fantasma de Begônia encolheu até uma estatura natural e tomou contornos nítidos.

— Eu estou sentindo cheiro de humanos! Esses amaldiçoados humanos estão por perto! Foram eles os responsáveis por tudo!

*****

Enquanto isso, eu e Esther nos escondíamos no poço do elevador. Eu ainda estava abestalhado com a estranha reação da Moedinha da Sorte que fez o corpo de Esther brilhar por dentro. Encostei o ouvido na parede: nada consegui ouvir através daquelas grossas chapas de aço.

— Acho melhor sairmos daqui, Alvin. — E se a saída do elevador estiver cercada por

Patralhas? — Duvido. A explosão deve ter afugentado a

todos. Se aparecer algum, somos imunes às armas dos Patralhas e ainda temos munição suficiente para as nossas.

— Certo. Vamos escalar o cabo e forçar a porta do térreo.

Quando Esther tocou o cabo, o inesperado: o elevador começou a descer!

— Quem ligou o elevador? — Impossível! A eletricidade foi cortada e o pão-

duro do Petinhas não usava geradores. — Vamos ser esmagados! Atire no fundo da

cabine!

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Prontamente abrimos fogo, mas nada conseguimos a não ser transformar a cabine num queijo suíço recheado de ferros retorcidos e cortar acidentalmente o cabo do elevador. Agora a cabine descia em queda livre e seríamos esmagados em segundos. Esther fazia suas últimas orações. Por um instante vi um flashback de minha vida passar diante de meus olhos.

*****

Superbicudo, digo, Ronald estava escondido numa moita em torno da Caixa-forte. Pressentindo um ambiente mais calmo, o herói novamente escalou as paredes com suas botas de sucção. Pé ante pé, Superbicudo chegou à porta do cofre principal.

— Com Patralhas ou sem Patralhas... Superbicudo usou seu lápis-maçarico e arrombou

o cofre com facilidade. Foi apenas uma questão de abrir a porta e saltar na escuridão.

— Finalmente vou poder mergulhar no meu dinheiro! É meu! Meu! Todinho meu!!!!

O cofre estava completamente vazio.

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Capítulo 20

NO ESPETO — Nós vamos morrer! Aaaaaaahhh! Quando o elevador estava a um milímetro de se

esfrangalhar no fundo do poço, um truque de Begônia Beagle fez com que reaparecêssemos, sãos e salvos, no lado de fora da Caixa-forte. Olhamos em volta. A situação não era das melhores: estávamos cercados por uns quinhentos Patralhas.

— Então são vocês os humanos! — surpreendeu-se o Vovô Patralha.

A multidão de criminosos partiu para cima de nós. Begônia fez outro truque e nossas armas não funcionavam mais. Não tínhamos defesa. Mas os Patralhas nos queriam vivos.

Sob os gritos de guerra da multidão, fomos amarrados numa estaca e juntaram lenha para a fogueira. Uma execução antigamente dedicada às bruxas, quem diria... Esther estava mais desesperada do que eu. Mas era ela que tinha a saída nas mãos.

*****

Como que por milagre, Superbicudo se espatifou no fundo do cofre principal, onde já não havia uma moeda sequer, mas saiu pouco ferido. O super-herói se recompôs rapidamente, acendeu sua lanterna e examinou as paredes mofadas que o cercavam. Uma aberração: para onde os Patralhas teriam levado a grana?

Então Superbicudo encontrou debaixo de seus pés uma espécie de porta. Ele apontou a lanterna para o chão:

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uma placa enferrujada dizia “1931”. Não restavam dúvidas. Era aquela a entrada do misterioso porão da Caixa-forte, fora de uso há décadas, que Petinhas freqüentemente mencionava em suas histórias.

Destemido, Superbicudo abriu a porta e desceu uma longa escada. Uma ampla câmara escavada na rocha, semidestruída com a explosão que arrancou a Caixa-forte do solo, era o ponto de convergência de quatro túneis. Coisa dos Patralhas, claro. Mas não havia pistas. Superbicudo escolheu um túnel e seguiu em frente.

*****

Enquanto isso, o ambiente na Delegacia Central de Pastópolis era de desolação.

— Muckey, nunca passamos por uma crise tão grave. A polícia estava completamente impotente diante do roubo da Caixa-forte, mas os jornais caçoam da polícia como se nós fôssemos os ladrões. — Coronel Contra abre a edição vespertina de A Pastada — Pastópolis atravessa uma onda de crimes desde a insurreição dos Patralhas. E quando tínhamos os dois humanos nas mãos, eles fogem inexplicavelmente.

— Isto sem falar do seqüestro do prefeito Omar Suíno. Até agora só encontramos pistas falsas... Acho que eu vou deixar a polícia.

— Como? — Sabe como é, Coronel, eu cansei de fazer jogo

duplo. Agora que o Petinhas morreu, já não tenho mais motivos para acobertar a oposição e fazer bonito diante da opinião pública. É impossível agradar a todos ao mesmo tempo...

— Isto é inaceitável, Muckey. Todo mundo aqui era... hã... “neutro” diante da arrogância da Família Pato,

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mas você não vê um policial com crises de consciência. Pelo contrário, este é o momento em que nossos homens devem resgatar o brio da polícia de Pastópolis...

— Com todo o respeito, isto pode fazer sentido para você, pois sua vida está nesta delegacia, nesse uniforme, nesse distintivo. Esta não é minha profissão verdadeira. Eu entrei aqui de gaiato, estou desgastando minha imagem, já tenho rendas polpudas e não dependo da mixaria que a Polícia paga.

Contra ouvia atentamente enquanto tomava seu café. Muckey continuou:

— E sabe há quanto tempo não vejo a Winie, o Pluteta e o resto da turma? Você não sabe o que é angústia, Coronel. De repente eu acordo e vejo a Caixa-forte flutuando no ar. Depois tenho que fazer teatrinho, interro-gando dois alienígenas presos ilegalmente. Mais tarde, o prefeito é seqüestrado e...

De repente, Omar Suíno surge na porta da delegacia:

— Quem você diz que foi seqüestrado, Muckey?

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Capítulo 21

LODO, CAOS E ESBÓRNIA — Omar Suíno! — espantou-se Muckey — Onde

o senhor esteve? — É uma longa história. Eu tinha que tirar umas

férias em Grasnópolis. — Mas todos viram a cena do seqüestro — disse

Coronel Contra — Toda a polícia estava à sua procura. — Eu tinha que inventar algum pretexto. A

confusão gerada com a morte do Petinhas me abalou profundamente...

Muckey e Contra se entreolharam, desconfiando de alguma coisa no discurso. Omar continuou:

— Nestes dias conversei com uns amigos de Grasnópolis que estão muito preocupados com a situação pastopolense. Eles me convenceram de que agora, sem o Petinhas, estou preparado para as reformas necessárias em Pastópolis...

— Hein? — É chegado o momento de conceder direitos

civis aos cães caucasianos. Aguardem meu pronunciamento na televisão.

Omar Suíno saiu de cena, sob os olhares perplexos de Muckey e Coronel Contra.

*****

Enquanto isso, na ante-sala da oficina de inventos de Professor Padral, crescia o bate-boca entre os Patralhas.

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— Todo mundo viu! Foi uma revelação espiritual de Begônia! E tá falado!

— Não acredito! O Patralha Intelectual é um farsante!

— É verdade! — É mentira! — Quaac!!!!! Chega de discussão!!!! — vociferou

Sovina McGrana — Não quero saber de pendengas religiosas caninas-caucasianas. O que eu quero é destruir a Família Pato de vez.

167-761 resmungou, desanimado: — Pois eu estou fora. Begônia Beagle voltou dos

mortos e afirmou que não devemos lutar contra os patos. Não posso negar a palavra que nos foi revelada.

— O problema é seu — disse 761-761 — Tudo que nos importa é a verdade absoluta que nossos pais nos ensinaram. Vá, siga seu caminho; a ira de Begônia se abaterá contra os infiéis!

Dito isso, 167-761 se retirou, junto com dez irmãos insatisfeitos. Sovina sorriu. Dirigindo-se aos dez remanescentes, disse:

— Muito bem, folgo em saber que ainda tenho muitos fiéis colaboradores para a concretização do meu plano... Qual é o maior objetivo dos Patralhas na vida?

— Reconstruir Cinópolis! — responderam os Patralhas em uníssono.

— Quem usurpou os bens acumulados honestamente pelos cães caucasianos?

— O Petinhas! — Quem é o herdeiro do Petinhas? — O Ronald! — E qual é o dever de todos os cães caucasianos?

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— Matar Ronald! Matar Ronald! Os Patralhas, empolgados, carregaram suas armas

e saíram correndo porta afora, prontos para a caça. Sovina esfregava as mãos:

— Sem o Petinhas, arregimentei a força mais poderosa de Pastópolis. O Ronald ainda há de reaparecer... para nunca mais. Rê, rê, rê...

Padral, esbaforido, chamou Sovina ao laboratório. — Veja isto, chefe! Terminei de montar os novos

dez patandróides do Ronald. Já estão prontos para funcionar.

No canto da oficina estavam os patandróides, estáticos, perfilados como soldados. Sovina se aproximou para examiná-los melhor. Eram absolutamente idênticos ao Ronald.

— Perfeito. Você está trabalhando muito bem. Quero mais vinte patandróides para entrega imediata!

— Obrigado, Sovina, mas para isso eu preciso de verba. O senhor nem pagou pelos patandróides prontos, não lembra?

Sovina franziu o cenho. — Depois eu pago. Meu dinheiro está todo no

meu depósito na África do Sul. Eu não me tornei um zilionário sem protelar um pagamento ou outro... Faça os patandróides, Padral.

— Não tem jeito. Acabaram-se minhas peças e não tenho como comprar novas. Estou atolado em dívidas. Assim não posso mais trabalhar.

— Conversa fiada! E eu que pensei que estava lidando com um inventor distraído... Já disse: faça os patandróides. É para ontem!

— Se estiver insatisfeito, vá arranjar outro inventor.

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Sovina ficou catatônico por longos dez segundos. O velho mudou de expressão e caminhou para o canto oposto da oficina:

— Tudo bem. Vou pegar um adiantamento na minha bolsa.

Não havia um centavo na bolsa. Apenas uma pistola com silenciador. Num movimento rápido e preciso, Sovina acertou o peito de Padral. O corpo semimorto caiu sobre o controle remoto dos patandróides.

— Vai... se... arre... pen... derrrr... ooooooh... Sovina se postou diante do cadáver. — Esse Padral é um perfeito otário. Agora que ele

está morto, ainda posso ter acesso aos seus valiosos planos e...

De repente os patandróides saíram andando sem controle, derrubando tudo pela frente, e começaram a perambular pela rua. Sovina saiu correndo, tentando detê-los.

— Parem! Parem! Isto é uma ordem! Os patandróides não ouviram. Mas para os

Patralhas das proximidades não havia diferença entre um Ronald falso e um verdadeiro:

— Matar Ronald! Matar Ronald! Cinco ou seis Patralhas abriram fogo contra tudo

que se mexesse. Sovina sentiu o perigo e grasnou: — Em mim não, idiotas! Tarde demais. Dois patandróides viraram sucata,

mas um tiro atingiu a perna esquerda de Sovina. Sentindo o drama do velho pato, os Patralhas foram socorrê-lo.

— Não faça nenhum movimento brusco! Vamos levá-lo ao hospital!

— Nada disso, seus incompetentes.

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— Mas a sua perna... — Eu sei do que estou falando. Se for internado

aqui, os pastopolenses vão acabar me matando. Tenho que voltar à África do Sul imediatamente.

*****

— Afinal, tio, explique-nos por que o senhor saiu durante o enterro e demorou tanto a voltar!

Todos os patandróides saíram de controle. Em seu jatinho fretado para Grasnópolis, os sobrinhos logo descobriram que o Ronald que os acompanhava era fajuto.

— Negativo. Meu nome é Pato Ronald, herdeiro de Petinhas O’Pato, meus sobrinhos são Dinho, Binho e Quinho e eu cedi toda a herança à minha querida Vagarida.

— Mas e daí? — perguntou Binho — Que estranho...

— Positivo. Quem são vocês? Meu nome é Pato Ronald, herdeiro de...

— Caramba! Esse não é o Ronald! Dinho e Quinho saltaram e agarraram as pernas do

patandróide enquanto Binho dava uma cabeçada no peito de metal. O patandróide tombou e a cabeça saiu do corpo, mostrando os circuitos elétricos.

Diante da perplexidade dos sobrinhos, o patandróide-comandante se levantou e saiu da cabine de comando.

— Negativo. Meu nome é Pato Ronald, herdeiro de...

— Mais um robô! Pau nele! O patandróide deu um soco em Dinho, que caiu

nocauteado. Quinho, porém, pensou rápido e jogou uma jarra de suco de laranja na junta do pescoço. Em trinta

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segundos o outro falso Ronald estava no chão. E sem piloto, o avião, muito brevemente, também estaria. Binho e Quinho começaram a correr como baratas tontas:

— O avião está desgovernado! Chame a torre! Segure o manche! Consulte o Guia do Campista Júnior!

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Capítulo 22

MATO SEM CACHORRO — Controlem o avião! Vamos nos espatifar na

montanha! Os sobrinhos de Ronald estavam desesperados.

Nenhum capítulo do Guia do Campista Júnior explicava como funcionava o avião. O rádio não dava resposta. Binho, alucinado, começou a apertar todos os botões do painel em busca de algum efeito positivo. Nada.

— Quinho, está encontrando algum pára-quedas? — Que pára-quedas o quê? Já era tarde demais. A asa esquerda se chocou com

o rochedo; o avião rodopiou no ar e despencou no coração da Floresta Negra.

*****

Vagarida não parecia se dar conta que o Expresso Bicanca era a linha mais sórdida e decadente do sistema ferroviário. Desde que os aviões dominaram o transporte entre Pastópolis e Grasnópolis, a viagem nos velhos trens ficou restrita aos muito pobres, a um punhado de nostálgicos amantes dos trilhos, e a todo tipo de punguistas, prostitutas, falsários, vigaristas e picaretas em geral.

— A senhorita tem fogo? — Perdão, eu parei de fumar... O senhor... Hã... O

dia não está quente demais para usar esse casaco? Os funcionários das Ferrovias Petinhas, sob os

reluzentes botões dourados de seus uniformes, ainda tentavam manter o aplomb e as maneiras polidas de um

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passado próximo. Mas nada conseguia esconder a decadência dos terminais, o estado precário dos carros, os constantes atrasos, o baixo estrato social dos passageiros.

— Eu não me preocupo com o calor, muito antes pelo contrário... senhorita...

Vagarida ignorou tudo isso. Afinal, ela tinha pavor de viagens de ônibus. Seu dinheiro não era suficiente para uma passagem aérea. Seus cartões de crédito dificilmente seriam aceitos pela Petinhas Airlines sem complicações posteriores. Pela primeira vez na vida, a pata mais frívola e superficial de Pastópolis teve que tomar uma atitude séria: ir a Grasnópolis de qualquer jeito encontrar-se com seu querido Ronald.

— Altéia. Altéia Marreco. — mentiu Vagarida. — Olímpio Chipper. Encantado em conhecê-la. O

que a leva a Grasnópolis?

*****

O tempo estava ficando quente para nós. Os Patralhas brandiam suas tochas, prontos a acender a fogueira a uma ordem do fantasma de Begônia Beagle. Esther e eu, amarrados

no poste, esperando o Juízo Final. Eu matutava um meio de sairmos dali. Quando os Patralhas começaram a se exaltar, comentei com Esther:

— Temos que fugir. Não dá para dissolver a corda?

— O quê? — É como no truque do jornal que você me

ensinou. Como é que funciona? Não estou conseguindo nada.

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— Meus pulsos estão amarrados. Não consigo agarrar a corda!

— Sei lá; tente se concentrar, movimentar os braços ou...

Naquele momento, Begônia baixou sua varinha de condão e comandou os Patralhas:

— Acendam a fogueira! Tarde demais. Fatalmente viraríamos churrasco. O

fogo crescia sob nossos pés. Esther, num átimo, olhou para Begônia e gritou:

— Nããããããããããão!!!!!!!!!! Um poderoso raio luminoso se desprendeu de sua

boca, abrindo caminho entre os Patralhas e atingindo Begônia como um cruzado no peito. Os Patralhas deram um passo para trás e

fizeram silêncio. Naquele momento desapareceram as cordas que nos prendiam. Esther marchou, decidida, para fora da fogueira:

— Agora é entre nós duas, Begônia.

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Capítulo 23

AINDA QUE TARDIA — Faça suas últimas orações, Begônia Beagle.

Chegou o seu fim! Diante da ameaça, os Patralhas recuaram e se

esconderam atrás das moitas. Begônia ainda estava caída, sentindo os efeitos do golpe mágico.

— Nunca, sua humana desgraçada! Ri melhor quem ri por último!

Begônia, discretamente, apontou para o céu e deu voltinhas com o indicador direito enquanto murmurava palavras mágicas numa língua estranha. Os Patralhas se encolheram ainda mais. Mal percebi o que nos esperava.

Uma chuva de raios caiu aos pés de Esther. A força da seqüência de golpes lançou a humana a dez metros. Esther saiu cambaleante, com um lado do corpo gravemente queimado. Qualquer humano normal estaria morto, mas ela sequer perdera a consciência. Emanando um brilho intenso, seu corpo se recompôs dos ferimentos em poucos segundos. E nisso Esther não percebeu que Begônia reapareceu às suas costas.

— Tome mais isto, Esther! Begônia estendeu as mãos para frente e soltou um

jorro de bolas de fogo. Esther caiu novamente. Controlando a dor, ela rastejou e lançou um olhar fuzilante para Begônia.

— Não admito ataque pelas costas! Esther abriu a boca, emitiu a luz ofuscante e

soprou com a força de um furacão. Begônia foi lançada aos ares. Num grito lancinante, o fantasma se desfez nas nuvens — para nunca mais.

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O silêncio era absoluto. Esther ainda estava caída, lutando para se levantar. Mas logo os ferimentos desapareceram e tudo voltou ao normal. Os Patralhas se reaproximaram. Esther anunciou, orgulhosa:

— É o fim de Begônia Beagle.

*****

Enquanto isso, um comboio de Patralhamóveis corria pelas ruas de Pastópolis levando ao aeroporto o ferido Sovina McGrana.

— Não se preocupe, chefe! — disse 761-761 — Nossos homens acabam de seqüestrar um avião comercial. O comandante está sob nosso poder e levará o senhor de volta à África do Sul.

O velho zilionário mal parecia sentir a dor da bala alojada em sua perna.

— Eu sabia que podia contar com vocês. Não podia dar chances aos açougueiros dos hospitais de Petinhas.

Quando chegaram ao aeroporto, a pista estava cercada por duzentos Patralhas armados, liderados por 167-761.

— Aonde pensam que vão, seus pústulas infiéis? — Do que você está falando? O Sovina está ferido

e tem que ser levado imediatamente para a África do Sul. — Só por cima do meu cadáver! — Você disse que ficaríamos à vontade para

apoiar Sovina contra a Família Pato. Não tem palavra? — Você já devia ter aprendido a não confiar nem

em sua própria sombra. Adeus, 761!

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A um comando de 167, os Patralhas ergueram suas armas. 761 e seus homens estavam totalmente cercados. Não havia para onde fugir.

— Preparar... Apontar... — Parem! Parem tudo! — gritou o primo 002,

carregando um televisor portátil — Vamos ter novidades! — Que foi, seu idiota? — O prefeito vai fazer um discurso decisivo diante

do Conselho Municipal!

*****

Assim como os Patralhas, os conselheiros — quase todos velhos patos corruptos, desnorteados com a morte de Petinhas — esperavam qualquer coisa de Suíno. Toda Pastópolis se acotovelava diante das telas na expectativa das novidades. Suíno pegou os óculos e abriu uma grande folha de papel com o texto do discurso:

— Meus concidadãos, este é um dia histórico para Pastópolis e seus laboriosos habitantes. Até hoje Pastópolis cresceu e frutificou sob a mácula da empáfia e do preconceito.

Notando o olhar incrédulo dos interlocutores, Suíno prosseguiu:

— Proponho ao Conselho Municipal que a partir desta data sejam abolidas todas as medidas discriminatórias contra os cães caucasianos, garantindo-lhes anistia total e concedendo plenos direitos civis a todos os habitantes de Pastópolis.

— Protesto! — levantou-se o presidente do Conselho — A fundação desta cidade é fruto da luta dos patos iluminados e superiores contra os cães caucasianos

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fedorentos. Nada pode deter a marcha dos patos. Não aprovaremos essa lei absurda!

— Não há problema. Neste momento, sob os olhos do Conselho, do povo e das câmeras, converto a mensagem em decreto-lei.

— Sua excelência enlouqueceu? Não existe decreto-lei na legislação pastopolense.

— Agora passa a existir. Naquele momento, a mesa do Conselho estava

cercada por trinta soldados. — Meus concidadãos, este é o jeito de ser de

Pastópolis. Cedo ou tarde alcançamos a democracia... Mesmo que seja na base da porrada.

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Capítulo 24

QUADRILIONÁRIOS UNIDOS Os sobrinhos de Ronald saíram sem grandes

ferimentos depois da queda do avião. Binho e Quinho carregavam seu irmão pelos braços e pernas. Perdidos no meio da floresta, eles tinham que procurar ajuda, já que o rádio do avião não funcionava.

De repente os patinhos ouviram passos e uma voz rouca. Quando notaram quem era, se esconderam atrás de uma moita. Era Professor Urubu falando num telefone sem fio.

— Fatalôncio? Tudo pronto. Quando quiser disparar o míssil, basta pressionar o botão azul na sua escrivaninha... Como? Rolando fatos novos em Pastópolis? Que fatos novos? Anistia? Não estou entendendo, Fatalôncio. Está bem. Meia hora.

— Manos, aí tem coisa... — cochichou Binho — Vamos seguir as pegadas do Urubu e ver de onde ele saiu.

O cientista do mal seguiu em frente e encontrou o avião destruído. Pé ante pé, suspeitando de alguma armadilha, ele entrou e examinou as pistas:

— Um boné dos sobrinhos do Ronald... Dois Ronalds mecânicos caídos... Mas não é possível que... Vou ligar para o Fatalôncio. Ele vai gostar de saber disso.

Urubu tentou, tentou, mas a bateria do telefone começou a falhar.

— Não funciona! Raios! Tenho que voltar ao laboratório.

Neste momento, os meninos seguiam habilmente as pegadas e Dinho recuperara a consciência. Finalmente,

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chegaram a uma antiga mansão perdida no meio da floresta.

— O que o Professor Urubu estará fazendo por aqui? Vamos examinar.

Curioso, Quinho olhou pela janela. No meio da sala estava montado um enorme míssil cercado de aparelhos de altíssima tecnologia.

— Vejam isto! Um míssil! Professor Urubu surgiu às costas dos patinhos: — Pelo que vejo, vocês me pouparam de dar

maiores explicações, seus pivetes!

*****

A anistia não foi exatamente um acontecimento jubiloso para os pastopolenses. A cidade recebeu o autogolpe de Omar Suíno com o mais incrédulo dos silêncios.

É claro que o reconhecimento de seus direitos civis era tudo que a maioria oprimida dos cães caucasianos sempre reivindicou. Entretanto, os cães não acreditavam que o decreto-lei fosse algo mais que uma tramóia do prefeito — um emérito pau-mandado dos patos. Enquanto isso, nada garantia que os patos ortodoxos acatariam a decisão pacificamente.

Alheios à interrogação que pairava sobre o cidadão comum, Patralhas de ambos os lados largaram as armas e marcharam unidos e orgulhosos para fora do aeroporto. Finalmente qualquer cão caucasiano poderia comparecer a uma delegacia de polícia e ratificar sua anistia.

Mas o sangue de Sovina McGrana ainda molhava o banco de trás do Patralhamóvel:

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— Vão me deixar aqui? Voltem, Patralhas! Voltem! Não podem abandonar um velho pato ferido!

Longos minutos se passaram; ninguém socorreu Sovina. De repente, como que surgido do nada, um motorista assumiu o volante, deu a partida e saiu em disparada.

— Até que enfim. Para onde estamos indo? Já disse que não aceito o tratamento dos hospitais de Pastópolis.

— Não tem problema. O senhor vai receber um atendimento de primeira.

Sovina reconheceu imediatamente aquela voz: — Eu sabia que você estava por trás de tudo,

Fatalôncio!

*****

Muckey assistira em casa, boquiaberto, ao pronunciamento do prefeito. De volta à delegacia, o camundongo foi à sala do Coronel Contra comentar as novidades:

— Viu o que aconteceu, Coronel? A ditadura do Suíno acabou com a nossa mamata e... Coronel? Coronel?

Era tarde. A corda mal suportava o corpo frio e lívido do chefe da polícia. Os 115 quilos de adiposidade pendiam da viga do teto sobre um banquinho tombado e um envelope pardo recheado de papéis comprometedores.

*****

Vagarida hesitou quando Olímpio Chipper a convidou para passar a noite em seu apartamento em Grasnópolis. Mas não teve alternativa. O Serviço de

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Informações Integrado levaria dois dias para localizar Ronald, sua amiga Clara Cocó — cidadã grasnopolense há décadas — não estava em casa, seu dinheiro era insuficiente para um hotel digno.

Afinal, Olímpio lhe pareceu bastante simpático e polido, ao contrário do que se poderia esperar de 90% dos cães caucasianos que conhecia. Não poderia haver riscos. Ninguém sabia que Altéia Marreco era a Vagarida disfarçada.

Era um apartamento de 18 cômodos no 78º andar de um condomínio de alta classe. Olímpio tirou seu estranho casaco e carregou as malas para a sala. Vagarida encostou o bico nas amplas vidraças; daquele ponto podia-se avistar toda a cidade.

— Não quer tomar um drinque, Vagarida? A pata estremeceu. Como Olímpio descobriu seu

nome? Uma eternidade de milissegundos de silêncio constrangedor; Vagarida murmurou, sem tirar os olhos da janela:

— Deve haver algum engano. Meu nome é Altéia. — Sim, claro... Muito prazer; Papai Noel. Ri, ri, ri,

ri, ri... — Ficou louco, Olímpio? Vagarida virou-se. Naquele momento Olímpio

vestia uma ampla camisola preta e um capuz preto. Não havia dúvidas. Ela nunca poderia imaginar que Olímpio Chipper era o Fantasma Manchado sem disfarce.

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Capítulo 25

PATOS NO BURACO O ferido Sovina McGrana desmaiou no meio do

caminho quando era levado à mansão de Fatalôncio, nos arredores de Pastópolis.

— Felizmente o senhor foi resgatado a tempo, Sovina — disse o médico particular de Fatalôncio — Não sei o que seria do senhor com uma bala alojada na perna por mais horas.

— Ora, deixe pra lá. Eu tenho que voltar imediatamente à África do Sul e cuidar de meus negócios.

— Ainda não. O senhor precisa de repouso. Fatalôncio surgiu à porta: — E depois, eu prefiro que você se estabeleça de

vez em Pastópolis. Sem os Patralhas nem a família Pato para atrapalhar, a cidade será toda nossa!

— Fatalôncio, seu sem-vergonha!!!! Como um ordinário como você tem a ousadia de dirigir a palavra a...

— Calminha, Sovina... Temos nossas diferenças pessoais, mas você não está em condições físicas de ter ataques de nervos. E sei que não foi desse jeito que Mamãe McGrana lhe ensinou a agradecer os favores dos outros...

Sovina grunhiu de desprezo. Fatalôncio continuou: — Na condição de pato mais rico de Pastópolis,

quero ter você, o pato mais rico do mundo, como meu sócio.

— O quê? — Sim... Sozinho você não poderá mais conduzir

os tentáculos pastopolenses dos seus negócios. Os Patralhas não trabalharão mais para nós. Eu já tenho o

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governo no bolso e submeti Omar Suíno a uma lavagem cerebral para anistiar os cães caucasianos.

— Você ficou louco, Fatalôncio? Agora que os Patralhas viraram “cidadãos honestos” de uma hora para outra, eles vão acabar negociando o dinheiro da Caixa-forte com a família Pato.

— Não se eu puder impedir... Já tenho um míssil nuclear apontado para a Caixa-forte. Quando mandarmos tudo para os ares, a cidade estará em minhas mãos. Você entra com o dinheiro, eu entro com Pastópolis. Tudo que eu quero são dez por cento dos seus lucros.

— Definitivamente, a morte de Petinhas não fez bem à sua cabeça.

— Compreenda, Sovina. Quando você estiver recuperado da perna, as portas da minha casa estarão abertas. Você é que escolhe como prefere sair: quaquilionário provinciano expatriado ou senhor supremo dos destinos de Pastópolis! Se aceitar minha proposta, faço questão de lhe conceder tudo que você sempre quis na vida...

— Ouro? Diamantes? Petróleo? — Mais, muito mais... Você já está nadando em

dinheiro e não vai ser influenciado por uns trocados a mais. Quero que você tenha o privilégio de apertar o botão do míssil e detonar pessoalmente a...

Nesse instante, soou a campainha do telefone vermelho.

— Urubu? Sim. Sim. Como? Excelente. Você é um anjo, Urubu. Até mais.

Fatalôncio desligou. — Que foi? — Excelentes notícias, Sovina. A festa está apenas

começando!

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*****

Naquele momento, Superbicudo procurava a fortuna de Petinhas nos subterrâneos da ilha. Pé ante pé, o super-herói rastreava as paredes do túnel em busca de alguma pista. Até que de repente...

— Quaac! Que será aquilo? Um grande veículo se aproximava. Dois faróis

ofuscantes apareciam no fundo do túnel. As paredes tremiam; o barulho era ensurdecedor.

— Pare!!!!! Pare!!!!! O veículo ignorou a presença de Superbicudo e

seguiu em frente. Sentindo sua aceleração, só restou a Superbicudo correr e correr. Mas não teria chances de escapar. Quando estava quase sendo atropelado, Superbicudo acionou as molas de suas botas e saltou para cima da máquina, pistola de raios em punho:

— Parado aí! Se mexer uma pena eu te... Flora Senteantes?

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Capítulo 26

A NOVA ORDEM DE PASTÓPOLIS — Corra, Superbicudo! — disse Flora Senteantes

— Entre aqui se quiser salvar sua vida! Não temos tempo a perder!

“Ainda bem que não fui reconhecido”, pensou, como de costume, o Ronald sob a máscara de Superbicudo.

— Mas do que a senhora está falando? — Fatalôncio vai mandar a ilha inteira para os ares! Nisso, Flora pisou fundo no acelerador, quase

jogando Superbicudo para trás.

*****

— M-m-mas, Fantasma Manchado, você era a última pessoa que eu esperava encontrar em Grasnópolis...

— Exato, Vagarida. Quando a justiça de Pastópolis inventou para mim uma pena de 830 anos, sumi da prisão e vim para esta cidade divina cuidar de meus negócios. Tanto melhor. Nem preciso usar esta capa preta e sou conhecido apenas como um empresário respeitável...

— Não me venha com subterfúgios, Manchado. O que você quer comigo?

— Você está muito nervosa. Sente-se e relaxe. — Eu vou fazer um escândalo!!!!! — Ótimo. A Família Pato vai adorar saber onde

está você, a tão “querida” Vagarida... A noiva de Ronald teve um calafrio.

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— ... E em segundo lugar, estou tão surpreso quanto você com todos esses eventos estranhos ocorrendo em Pastópolis. Eu estava lá, reunido com uns amigos, quando assisti o roubo da Caixa-forte, a insurreição dos Patralhas, o aborto acidental e a revolta dos parentes quando Ronald lhe concedeu a herança.

— E daí...? — Bem, hoje você está em posição extremamente

vulnerável, mas os negócios das Empresas Petinhas não podem parar. Praticamente toda a Família Pato vivia às custas do falecido velhote. Sendo você a proprietária legal da fortuna, cedo ou tarde a família vai ter que esquecer as divergências e beijar seus pés.

— Isso é bobagem — esquivou-se Vagarida — A família vai preferir partir para a vingança. E eu não tenho como me defender sozinha.

— Por enquanto... Esta é a hora certa para virar a mesa. Eu quero você na minha chapa na próxima eleição para a prefeitura de Pastópolis.

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Capítulo 27

A LISTA CHEIA DE BICHOS Superbicudo transpirava perplexidade. Numa base

secreta plantada no fundo do oceano, ele tinha diante de si Flora Senteantes e todo o primeiro escalão sobrevivente da Família Pato.

— Agora todo o dinheiro de Petinhas — disse Odorico — está seguramente depositado aqui nas profundezas, longe dos olhos curiosos e protegido por tubarões assassinos.

— Isso é uma loucura. Como assim vocês aproveitam uma distração dos Patralhas, abrem o fundo da Caixa-forte e roubam todo o dinheiro?

— Roubamos, uma vírgula. A herança de Petinhas O’Pato nos pertence de fato! Era o único jeito de salvarmos tudo o que é nosso, pois a qualquer momento o Fatalôncio pode apertar um botão e varrer a ilha do mapa.

Superbicudo raciocinou: — Bem, eu não duvido que o Fatalôncio seja

capaz disso. O difícil é descobrir qualquer segredo da máfia que envolve aquelas empresas.

— É, Superbicudo — Flora Senteantes interrompeu — Mas o próprio Fatalôncio me confidenciou todo o plano. Ele disse que precisava dar um fim no ouro do Petinhas para acabar com o lastro dos Pastobônus e forçar nossa família a aceitar um acordo humilhante.

— Não acredito que ele tenha entregado o jogo desse jeito.

— Como eu evitaria saber? Ele fala dormindo.

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Por um milissegundo Ronald tremeu sob a máscara de Superbicudo. Tudo estava claro: Flora tinha dormido com o inimigo, a abominação máxima! Mas os parentes à sua volta não pareciam se abalar. Os mesmos que condenaram Vagarida a uma condição humilhante estavam interessados menos em moral do que em dinheiro. É uma pena que os parentes não possam ser escolhidos, como são os amigos.

Mas não era este o único motivo para preocupação. De repente entra na sala o dono da base submarina:

— Oi, Superbicudo! Vejo que temos mais um aliado contra a safadeza da Nova Ordem de Pastópolis — disse Professor Seligma.

*****

Antes de chamar o rabecão, Muckey escondeu o envelope de provas comprometedoras sob seu paletó, deixou uma nota alta entre os dedos do cadáver de Coronel Contra e um bilhete para os legistas: “Finjam que nada disto aconteceu”.

Muckey aproveitou uma distração dos colegas da delegacia e pegou um dos carros de placa fria do estacionamento. Naquela circunstância, ser reconhecido poderia fazer muito mal à saúde. Em cinco minutos o camundongo estava na casa do Pluteta.

— Oi, Muckey... — como de costume, Pluteta estava deitado diante do sofá, assistindo sua velha televisão preto-e-branco.

— Ainda bem que você está aqui. Aconteceu uma coisa terrível! O Coronel Contra não segurou a barra! Ele deixou estas provas e...

— É, eu já sei de tudo. Leia o jornal de hoje.

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Pluteta entregou ao amigo uma edição vespertina amarfanhada de A Pastada. A manchete feriu os olhos de Muckey: “Patralhas compram polícia”. Abaixo, cópias dos principais documentos do envelope, fotos de Muckey e Coronel Contra.

— Isto é uma armação. Contra ousou entregar tudo aos jornais antes do suicídio!

— Você entrou numa fria, Muckey... Ei, veja aquilo!

No noticiário de televisão apareciam as imagens de um “cinegrafista amador” transmitidas algumas horas antes à redação da emissora. Dinho, Binho e Quinho, amarrados em camisas de força, choravam pendurados pelo teto como salames emplumados. Ao fundo, através da porta, distinguia-se uma cadeira de balanço virada para trás, onde se sentava uma conhecida pata de saltos altos, vestido rosa e amplo laço na cabeça.

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Capítulo 28

QUEIMA DE FOGOS

Não apenas Muckey e Pluteta assistiam ao telejornal.

— Sovina, nosso plano é um sucesso. Visto de longe, o patandróide do Ronald, vestido e maquiado, é igualzinho à Vagarida. Agora todos acreditam que Ronald simulou o acidente na Floresta Negra para seqüestrar os próprios sobrinhos com a ajuda da Vagarida... e chantagear o resto da família, claro.

— Família Pato... Aquele bando de boçais não pode superar talento, criatividade e uma pilha de dinheiro muito maior que a deles. Bom trabalho, Fatalôncio. Quando fechamos o negócio?

— Assim que eu lhe conceder o imenso prazer de apertar o botão, explodir a Caixa-forte e mandar o Ronald pros quintos dos infernos.

— A ilha... O Ronald ainda não está lá? — Pouco me importa. O sistema localizador ficou

no meu gabinete. Se por acaso ele se safar dessa, vai chegar a Pastópolis completamente morto, econômica, moral e socialmente... O que mais falta para tomarmos conta da cidade?

— A chegada dos meus navios carregados de dinheiro, claro! Cinco... Quatro... Três... Dois...

Sovina, na sua cadeira de rodas, deu um sorriso cínico e pressionou o botão com vontade. Mas àquela altura a Caixa-forte estava completamente vazia e todos já estavam longe da ilha — exceto três ou quatro vigilantes Patralhas que não fariam a menor falta.

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*****

— Fantasma Manchado, aceito a sua hospitalidade, mas não posso aceitar uma proposta eleitoral assim de repente...

— Não há alternativa melhor, Vagarida. É pegar ou largar.

— Mas você esqueceu que meu filme está completamente queimado em Pastópolis?

Ninguém vai votar em mim. Eu mesma já perdi três vezes a eleição para o Clube Feminino. Imagine se eu concorresse à prefeitura!

— Tire esses pensamentos negativos da sua linda cabecinha... Especialmente porque logo você será dona da maior fortuna do mundo e poderá comprar todos os votos que quiser.

— Hein? — Segundo meus agentes, os advogados da

Família Pato entraram na Justiça pedindo anulação da partilha dos bens, pois Flora Senteantes duvida que o Ronald verdadeiro tenha comparecido ao tribunal.

— Isso não quer dizer nada. Basta conferir as assinaturas do Ronald.

— Que assinaturas? O prefeito Omar Suíno, com suas prerrogativas ditatoriais, decretou intervenção no Poder Judiciário. O juiz Décio Coruja não pode mover um dedo. Enquanto isso, meus agentes infiltrados na Prefeitura fazem a festa com os documentos!

Vagarida ouvia tudo, incrédula. Fantasma sentou-se diante de um computador e pediu para a noiva de Ronald se aproximar.

— E para quem pensava que isso apenas atrasaria o processo, veja o que eu faço. Consegui a senha do banco

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de dados da Justiça de Pastópolis e posso mexer à vontade nos processos.

— Não entendo nada de computadores, mas... Isso não é ilegal?

— Sei lá. Mas agora que os originais já viraram cinza, pouco importa. Neste exato momento — plim! — o processo de anulação da partilha foi completamente apagado, e daqui em diante, para todos os efeitos, nunca existiu na Justiça de Pastópolis.

Ela foi se aproximando, estarrecida, até que quase encostou o bico no monitor.

— Veja o seu reflexo na tela, Vagarida. Você não está vendo uma megaquaquilionária instantânea?

Vagarida ficou sem voz, sem saber se grasnava de raiva ou pulava de alegria.

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Capítulo 29

A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM

— Vamos embora daqui, Pluteta — disse Muckey. — A barra sujou legal para nós. Temos que fugir de Pastópolis por um bom tempo!

— “Temos?” Quem está sujo é você. Não tenho culpa de nada, e não sou eu que fico desfilando em Pastópolis com carteirinha da Polícia.

— Você não é besta de abandonar o barco agora. Vamos embora agora mesmo, e ponto final.

— Muckey, quantas vezes tenho que repetir que não sou a metade do palerma que você imagina? Sempre fiz vista grossa para todas as falcatruas e nunca levei um centavo por isso. Agora não me peça para dividir os prejuízos.

Furioso, Muckey apontou sua arma para a testa de Pluteta e gritou:

— Tire essa bunda fedorenta desse sofá agora mesmo e vamos para Grasnópolis! É uma ordem!

— Muckey, você não seria capaz de... — Vamos andando, já! Silêncio profundo. Pluteta, acuado, ergueu as mãos

e andou dois passos para trás. Muckey não mexeu um músculo.

— Tudo bem, Muckey, vamos a Grasnópolis. Primeiro preciso ir ao banheiro.

Mantido sob a mira da pistola de Muckey, Pluteta abriu o esconderijo de sua proibidíssima privada: era preciso arrastar uma velha e pesada estante no centro da

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sala para tirar uma tábua solta do assoalho e erguer o diminuto vaso sanitário fabricado no quaquilionário conglomerado industrial de Fatalôncio. Muckey não desviou o olhar nem por um segundo. Enquanto abaixava as calças, Pluteta alcançou no chão, ao lado do vaso, o pote de vidro que continha seu maior tesouro: os últimos amendoins mágicos.

— Quer um amendoim, Muckey? — Como é que você pode pensar em comida

numa situação dessas? Pluteta engoliu, inteiro, um amendoim. Um

milissegundo depois, voltou a ser o Superpluteta. Muckey quase caiu de costas.

— Pluteta... Então você é o... — Sim, Muckey. Agora virou o jogo entre nós,

pois não? — Tome isto, seu canalha! Muckey atirou, atirou e atirou no peito de

Superpluteta, até gastar toda sua munição. Nenhum resultado. Tomado pelo pavor, Muckey jogou a arma no chão e saiu correndo. Inútil: Superpluteta voou à porta da casa e conseguiu agarrar Muckey pelas orelhas.

Foi a última coisa de que Muckey se lembrou antes de levar um supersoco no queixo e acordar no banco de trás do calhambeque de Pluteta, amarrado, amordaçado e com os pés presos num bloco de concreto. O velho rato grunhiu em pânico quando Pluteta parou o carro no meio da ponte da Baía de Pastópolis.

— Fim da linha. Desculpe, Muckey, mas doeu mais em mim do que em você. Eu sabia que a máfia me mataria logo que chegássemos a Grasnópolis, o efeito do amendoim mágico não duraria mais de meia hora e você

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não vai sobreviver para entregar o segredo da origem da superforça...

Pluteta tirou a mordaça de Muckey. — Você não pode fazer isto comigo! Eu sou o

rato número 1 de Pastópolis! O ídolo da multidão! O paladino da verdade e da justiça! O que será de Pastópolis sem mim?

— Nada pior que a bagunça em que está agora... Mas vamos ao que interessa. Onde está a grana?

— Hein? — Grana. Tutu, money, argent. Não há outra

explicação. Por que outro motivo você estaria enfiado até o pescoço nesse mar de lama?

— Não recebi um centavo, Pluteta. Acredite. — Nem para manter presos ilegalmente os dois

humanos invasores? — Não sei do que você está falando! Pluteta carregou Muckey em seu ombro,

preparando-se para jogá-lo ponte abaixo. — E ainda por cima é mentiroso! Qual é a relação

entre a prisão dos humanos e a negociata dos sanitários? O que isso tem a ver com o suicídio do Coronel Contra? Quanto você recebeu do Fatalôncio?

— Você não está fazendo essas perguntas tarde demais, Pluteta?

— Eu quero respostas. Afinal, você não vai usar seu dinheirinho quando estiver ancorado no fundo da Baía de Pastópolis...

Muckey, por cima da cerca enferrujada, viu o reflexo da lua nas águas salgadas da Baía. Seu destino final não poderia ser tão inglório.

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— Você não está falando sério quando diz que vai me jogar lá embaixo.

— Por que não? E ser otário a vida inteira, eu posso? Diga logo onde está o dinheiro.

— É uma pena, mas você vai se dar mal. — Diga logo, seu rato pentelho! — gritou Pluteta. — Você passou por uma lavagem cerebral. Só

pode ser. Você é meu amigo e vai superar essa fase. — Está no cofre? No banco? Na conta da Winie? — Você me solta, leva cinco por cento e eu

prometo nunca mais incomodar. Juro! — Ora, vá pro inferno, seu... O que é isso? Cinco viaturas da Polícia frearam ruidosamente em

torno do carro de Pluteta. Com o susto, Pluteta acabou empurrando Muckey ponte abaixo. Foi apenas o tempo de apontar um holofote para um Pluteta já acuado e ouvir o “tchibum” do concreto afundando na Baía de Pastópolis.

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Capítulo 30

CRIME E CASTIGO

Dez dias se passaram. Descontada a indignação dos ecologistas com o bombardeio da ilha onde estava a Caixa-forte — o que julgavam ser uma “simples” manobra militar do governo de exceção de Omar Suíno — o ambiente era cada vez mais calmo em Pastópolis. Ninguém soube de coisa alguma sobre a morte de Muckey (consta que Winie recebeu uma quantia polpuda para desistir de procurar seu noivo) e a prisão de Pluteta era dada como boato até pelos mais esclarecidos. Os cães caucasianos começaram uma campanha — totalmente legal — de arrecadação de donativos pela reconstrução de Cinópolis, sua cidade sagrada. Pouco a pouco, mesmo os austeros patões de bico largo começavam a ver com melhores olhos aquela nova movimentação política, e alguns até arriscavam jogar uma moeda na sacolinha dos cães.

A guarda do cativeiro de Dinho, Binho e Quinho foi confiada pelo Professor Urubu a Kid Abo e Little Ted — o que já caracterizava uma alta traição a Fatalôncio, inimigo da organização criminosa a que pertenciam. Mesmo sabendo do risco que corria, Urubu tinha que ir a Passarópolis selar com sangue seu pacto com o chefão da máfia. Urubu não se abalou: a polícia ainda não tinha motivos sérios para procurá-lo e seu passaporte permanecia válido.

No aeroporto de Pastópolis, enquanto esperava na fila do check-in, Urubu pensava na fortuna que renderiam suas transações com a nova organização. Uns megabilhõezinhos que despertariam risadas em Fatalôncio

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ou Sovina McGrana, mas uma quantia bem superior aos pequenos golpes dos quais sobrevivera por tantas décadas.

— Nada pode dar errado... Nada pode dar errado... Os gentis funcionários da Pastópolis Airlines

providenciaram o despacho da bagagem — uma coleção de armas pesadas e munição, que a alfândega de Passarópolis não conferiria nunca — carimbaram o passaporte de Urubu e apontaram o caminho para o portão de embarque. Urubu alargou os passos e acabou dando um esbarrão com um cão caucasiano, acompanhado de uma pata de peruca desalinhada, que vinha em sentido contrário.

— Ei, olhe por onde anda, seu... Urubu não demorou a identificar o sujeito: — Fantasma Manchado, seu traidor desgraçado! — Sujou! O Urubu me descobriu! Vagarida, com um disfarce ainda mais ridículo que

o da viagem ferroviária, foi puxada por Fantasma Manchado para fora do aeroporto, onde uma limusine já os esperava. Urubu tirou uma submetralhadora de sua valise, correu atrás da dupla e pegou um táxi para persegui-los. De pé no banco da frente, abrindo fogo através do teto solar, Urubu transformava a limusine de Fantasma num queijo suíço, mas o carro não parava. Já perto do centro de Pastópolis, o motorista de Fantasma, com extrema habilidade, deu um cavalo de pau, atravessou o carro na pista e disparou os assentos ejetáveis, lançando a si e aos dois passageiros a uma distância razoável. O táxi não teve tempo de se desviar e entrou a 140 quilômetros por hora no meio da limusine, fazendo explodir os dois carros.

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Capítulo 31

BATENDO O MARTELO

Os corpos carbonizados e sem identificação de Vagarida, Fantasma Manchado e Professor Urubu foram removidos rapidamente e desapareceram nas gavetas do IML de Pastópolis. Como de costume, os jornais não disseram uma palavra sobre a tragédia. Mas Fatalôncio parecia saber de tudo naquela cidade. Ele sabia que Muckey tinha sido morto por Pluteta, a quem nem todo o dinheiro do mundo salvaria do pelotão de fuzilamento. Ele conhecia as mãos sujas que mantinham os sobrinhos de Ronald no cativeiro. Mas achava que sabia que tinha mandado para os ares o dinheiro de Petinhas e que seu pacto com Sovina MacGrana seria um completo sucesso.

E foi com essa confiança que Fatalôncio e Sovina participaram de uma assembléia muito especial no luxuoso Teatro Cordélio Flatus: fechando o processo de emancipação dos cães caucasianos, o prefeito-ditador faria o leilão das terras históricas tomadas ilegalmente dos cães caucasianos. Mas a alta sociedade local era mera figurante no leilão: quem mais, além de Fatalôncio e Sovina, poderia dispor de tanto dinheiro em Pastópolis?

*****

Estava com muito medo. Não tinha a menor idéia do que Esther tramava com os Patralhas, a não ser que ela engoliu uma maldita moedinha, derrotou Begônia Beagle e passou a ser tratada como semideusa. Pois os Patralhas, como todos os cães caucasianos, receberam anistia; Petinhas, o velho inimigo dos Patralhas, estava morto e

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enterrado, e sua fortuna tinha virado fumaça atômica. Então, por que é que os sobreviventes do bando precisavam se armar até os dentes e usar um comboio de carros blindados para voltar ao centro de Pastópolis? E o que fazíamos eu e Esther nessa nova megaoperação?

— Desculpe, Alvin. Na verdade, você pode saber, mas aí eu vou ter que matá-lo... Ordens superiores. A nossa volta ao mundo dos humanos depende disso.

Seria mais um blefe daquela mulher matreira? Enquanto isso, as fumacentas viaturas dos Patralhas avançavam pelo asfalto esburacado. E eu pensava nas tortas de cereja da mamãe.

*****

Diante da platéia lotada, Omar Suíno tomou o microfone:

— Meus caros, nós temos a satisfação de mostrar nosso empenho na reconstrução de Cinópolis, a histórica metrópole dos cães caucasianos impiedosamente arrasada por Petinhas e sua malta.

A multidão de antigos aliados de Petinhas soltava grunhidos de revolta com o inesperado acerto de contas com o falecido. Suíno prosseguiu:

— Agora que nosso governo, na minha pessoa, concedeu a cidadania plena aos cães caucasianos, chegou a hora de reunirmos nossos esforços e nosso capital para erguer uma nova Cinópolis, uma cidade moderna, orgulho de todos nós, destinada a ser o maior centro mundial de finanças e tecnologia.

A platéia, perplexa com a iminente queda de prestígio de Pastópolis, não dava um pio. Sovina e Fatalôncio, sentados lado a lado na primeira fila, trocavam sorrisinhos marotos.

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— Para isto, o Governo de Pastópolis abre mão das terras tomadas ilegalmente a quem pagar mais. O lance inicial é de 50 zaralhões. Alguém?

Fatalôncio levantou a mão, por si e por seu sócio. — O Consórcio Fatalôncio-McGrana oferece 50

zaralhões. Quem dá mais? Ninguém se manifestava. Afinal, quase todos

aqueles pseudo-socialites estavam procurando emprego desde a morte do Petinhas.

— Dou-lhe uma... — Está no papo, Sovina! — Dou-lhe duas... — 200 zaralhões! — ouviu-se uma voz no fundo

do corredor central. — Superbicudo? Ato reflexo, todos os presentes engoliram em seco. — Sim, eu mesmo, Superbicudo, o defensor de

tudo que é de fato e de direito da Família Pato! Se acharem pouco, eu pago 300, 400, 500 zaralhões!

— Eu vou estrangular esse desgraçado agora mesmo! — grasnou Fatalôncio, roxo de raiva.

— Calma, Fatalôncio — disse Sovina, apontando a bengala para a barriga de seu sócio — Deixe para lá. Esse garoto está delirando. Quem mais tem dinheiro em Pastópolis, sem o dinheiro do Petinhas?

— Mentira! A Caixa-forte foi para os ares, mas o dinheiro está a salvo. E é todinho meu!

— Quem é você para dizer isso? Então Superbicudo tirou a máscara diante da

boquiaberta alta sociedade de Pastópolis.

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Capítulo 32

A HORA DA VERDADE — Há algo errado aí! — grasnou Fatalôncio ao ver

Superbicudo desmascarado — Ou você não é o Pato Ronald coisa nenhuma, ou você é o Ronald se fazendo passar por Superbicudo!

— Nada disso, seu velho corrupto. Eu sou o Ronald mesmo, e sempre fui o Superbicudo. Não contavam com minha astúcia...

— Você é um pato morto, Ronald! Eu vou arrancar suas penas, uma por... Aaaaaargh!

Com um tiro certeiro de sua pistola de raios, Ronald (digo, Superbicudo) pôs Fatalôncio a nocaute. Em seguida, acionou suas botas com molas e saltou ao palco, onde encontrou um Omar Suíno mais assustado que qualquer pessoa do auditório.

— Como é, excelência? Quem vai levar as terras dos cães caucasianos?

— E eu vou lá saber se você está blefando, Ronald?

— Quer saber mesmo? Lá vai bomba, Omar! Dito isto, um enorme saco de dinheiro despencou

sobre a cabeça do prefeito de Pastópolis como um piano que cai do vigésimo andar. Sem saber se Omar Suíno sobrevivera à pancada, Ronald deu outro hiper-salto para o lado, abrindo espaço para a queda de centenas e centenas de sacos sobre o palco. Sovina ainda tentava acordar Fatalôncio. Ao ver a chuva de dinheiro, Sovina é que precisou de cuidados médicos.

— Pode descer, pessoal!

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Liderados por Flora Senteantes, os membros remanescentes da família Pato, um a um, desceram ao palco por uma corda. Todos, até os menininhos, estavam armados até os dentes.

— Acho que isto dá e sobra para cobrir qualquer oferta desses dois ziliardários picaretas — disse Ronald, truinfante. — E há muito mais de onde veio este dinheiro. Alguma dúvida?

— Não sei como você conseguiu salvar o dinheiro do seu tio, mas neste leilão não há lugar para a família Pato!

— Omar Suíno? Como você se salvou? Quase inteiro, como que renascido das cinzas, o

prefeito-ditador ressurgira no poço da orquestra, sob os olhos incrédulos de todos.

— Foi um milagre. Com o peso do dinheiro, caí num fundo falso do palco. Mas o mais importante continua de pé: minha autoridade de líder supremo de Pastópolis.

— E por que eu não posso participar do leilão? — Porque não pode, e acabou! Este era para ser

um negócio honesto e transparente, mas se for para dar fim aos dias de poder da família Pato, tenho que abrir uma exceção. Guardas! Fogo neles!

Os parentes de Petinhas entraram em posição de combate quando viram as centenas de soldados da guarda de honra de Omar Suíno cercando o auditório. Num piscar de olhos, Ronald sacou uma bomba de fumaça e a atirou no meio da platéia. O público, desnorteado, começou a correr para todos os lados em busca da saída do teatro.

*****

Ao menos por fora, o Teatro Cordélio Flatus era um monumento. De longe, já impressionava. E quanto

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mais o comboio dos Patralhas se aproximava, menos o teatro se parecia um local para se pagar dívidas com sangue.

No entanto, era lá mesmo o ponto final da nova missão dos Patralhas. Se eles já tinham conseguido arrancar do chão a Caixa-forte, por que fracassariam agora? No entanto...

— Ih, pessoal! — gritou Esther. — Acho que chegamos à festa um pouco tarde demais...

Em desespero, dúzias de velhotes metidos a aristocratas, de casacas e vestidos longos, desciam aos tropeções a escadaria do teatro. Rolos de fumaça branca saíam de todas as janelas; os estrondos dos tiros ecoavam como trovões.

— E aí, Alvin? Vamos encarar mais essa? — Vamos na frente, Esther — disse eu. — Nós

somos imunes aos tiros pastopolenses. — Deixe essa comigo, Alvin. Fique na retaguarda

com os Patralhas enquanto eu faço o serviço. Até logo, amiguinho...

Então ela me surpreendeu quando se despediu de mim com um beijo longo, ardente e altamente energético. E nem mesmo era efeito da Moedinha da Sorte. Que mulher!

Seguida por uns trinta Patralhas, Esther abriu caminho entre a debandada do público dando tiros para o alto. Encolhidos entre as poltronas, os amedrontados Omar Suíno, Fatalôncio e Sovina assistiam à troca de tiros entre a família Pato e os soldados de Pastópolis. O sangue dos mortos dos dois lados da batalha tingia de vermelho o tapete dos corredores. Até que Esther entrou no auditório, fechou os olhos e gerou em torno de si uma luz violeta

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intensa e crescente. Subitamente, todos jogaram suas armas no chão. Ronald e Esther olharam nos olhos um do outro.

— Não está faltando algo fundamental para a sua fortuna, Ronald? Venha aqui pegar, se você for homem... Digo, pato... Digo, ah, sei lá, ora!

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Capítulo 33

TEATRO DE OPERAÇÕES

— Veja só quem temos aqui... A brilhante Esther, neste caso, literalmente brilhante... O que aconteceu com você, menina? Engoliu uns vaga-lumes? Rá, rá, rá!

— Pato Ronald, seu pulha! Se você realmente sentisse o drama, não estaria dando uma de engraçadinho numa hora tão imprópria... Como é que você vai manter essa grana toda sem os poderes da Moedinha da Sorte do seu tio?

— Nem pense em me impressionar com as superstições do velho muquirana... Aaaaaaaaaaaaargh!

Com um leve supersopro mágico, Esther atirou Ronald contra o monte de sacos de dinheiro. Apavorados com o suposto milagre, os guardas de Omar Suíno saíram correndo. Os Patralhas avançaram e se posicionaram em formação de combate.

— Viu só? Da mesma forma que fiz isto, posso usar os poderes da Moedinha para transformar toda a sua fortuna em pó de traque.

— Pelo menos por enquanto. Humanas mortas não fazem truques!

Dito isso, Ronald sacou do bolso de trás uma legítima pistola do mundo dos humanos, a única arma que poderia ferir Esther.

— Ouse puxar esse gatilho, Ronald! Eu engoli a Moedinha; agora ela faz parte de cada uma das células do meu corpo... Se você me matar, a Moedinha vai junto. Quer dar um fim à galinha dos ovos de ouro?

Ronald deu um passo para trás.

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— O que você quer com isso, Esther? — Nada de extraordinário. Alvin e eu queremos

nos livrar desta terra desgraçada e voltar ao nosso verdadeiro mundo. É claro que assim você ficará sem Moedinha, e em pouco tempo, sem dinheiro e sem razão de existir neste mundo. Mas para mim, francamente, isto é apenas um detalhe sem importância...

— Ah, é, é? E o retorno ao seu mundo, com a Moedinha dentro de si, não vai causar perturbação nenhuma? Já pensou nisso? Considerando que não será surpresa se a Moedinha fritar suas entranhas assim que você sair de Pastópolis, deixe-me fazer o serviço sujo aqui mesmo. Eu terei o poder da Moedinha, nem que tenha que beber todo o seu sangue!

— Nem pensar, Ronald! Você é apenas um usurpador desprezível, um inútil que passou seus melhores anos esperando a morte do Petinhas e jamais mereceu um centavinho sequer de herança. É fácil notar por que o velho desconfiava tanto da própria família que deixou toda a grana para Flora Senteantes.

— O testamento desaparecido é uma farsa! Para nomear Flora como única herdeira, titio só podia estar de porre...

— Veja lá como fala do meu amado Petinhas! — grasnou Flora Senteantes, saltando como uma fera sobre o pescoço de Ronald. Num piscar de7 olhos, Esther se aproveitou da distração de ambos: um tiro certeiro na testa de Flora assinalou o ponto final da disputa pela herança de Petinhas.

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Capítulo 34

GATILHOS RÁPIDOS

— Raios! Errei por pouco! — lamentou Esther, ainda com os braços rígidos segurando a arma fumegante.

— Mas eu acertei na mosca, digo, na pata... Rê, rê, rê! Bem que algo me dizia que eu não podia confiar na mira de uma mulher humana...

— Fatalôncio! Eu pensei que você quisesse matar o Ronald, não a Flora Senteantes.

— Águas passadas, Esther. Considerando os fatos novos da disputa de poder em Pastópolis, Ronald vale mais vivo do que morto.

— É duro admitir, Fatalôncio, mas obrigado pelo grande favor — disse Ronald. — Pelo menos não teremos nenhuma velhota esclerosada dizendo ser a única legítima herdeira da bufunfa de Petinhas...

Esther voltou-se para o acuado Omar Suíno. — E então, excelência? Como autoridade suprema

de Pastópolis, não vai dar voz de prisão a Fatalôncio? — Quem, eu? Flora Senteantes nem era cidadã

pastopolense... — Chega de conversa fiada, seus moleques! —

grasnou Sovina McGrana. — Nós estamos aqui para decidir o destino de nossa existência e vocês ficam se preocupando com mesquinharias de herança?

— Cale-se, Sovina! — disse Ronald, instintivamente apontando a arma para o velho megazilionário e puxando o gatilho. Naquele momento, com um pequeno estrondo, os dias de Sovina sobre a Terra chegavam ao fim.

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— Ronald! — grasnou de volta Fatalôncio — Viu o que você fez? Você matou o Sovina! E, pior ainda, sujou de sangue meu terno novinho! Você me paga, seu pato desgraçado!

Esther deu um passo para frente, curiosa: — Espere aí, Ronald... A sua arma não deveria

funcionar só contra humanos? — É... Algo deu errado, mas não importa. Agora é

a sua vez, Esther! Ronald disparou contra Esther todas as balas

restantes. Nada aconteceu: as balas passavam pelo peito de Esther como se atravessassem uma sombra. Num acesso de fúria, Ronald atirou a arma no chão.

— Malditos! A munição foi trocada! — Que legal, Ronald! Estão isto muda o equilíbrio

de forças entre nós. Agora você não passa de um patinho desarmado, cheio de dinheiro inútil, contra uma mulher de poderes imensos. E como testemunhas, um empresário picareta, um ditador de araque e os presuntos de dois bicudos da terceira idade.

— O q-q-que v-v-ocê quer dizer com isso, Esther? — Você é insignificante. Não me fará a menor

falta. Vou sair deste inferno de Pastópolis levando o poder da Moedinha comigo, por bem ou por mal.

— Você está blefando... — Eu sei que, quando voltar ao mundo dos

humanos, posso causar uma desestruturação na ordem das coisas. Mas não quero nem saber. Por minha liberdade, vale a pena lutar.

— Não, Esther! Poupe-me! Poupe-me! Ainda com o dedo no gatilho, Esther caminhou

lentamente em direção a Ronald. O poder da Moedinha estava elevado como nunca. Um ofuscante halo

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multicolorido circundava a pistoleira. Assustados com a cena, os Patralhas bateram em retirada. Atrás dos sacos de dinheiro, a família Pato assistia, incrédula.

— Você escolhe, seu pato nojento: prefere ter uma morte limpa e sem dor agora mesmo, ou ser consumido lentamente pelo desgosto por ter a grana de seu tio sem o poder da Moedinha?

Ronald estava sem fala. Esther parou de andar, olhou o branco dos olhos de Ronald, começou uma angustiante contagem regressiva e puxou o gatilho. Mas algo desceu arrebentando o telhado e deteve a bala.

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Capítulo 35

MOÇA FAZ MAL A CACHORRO

— Quem mandou você se meter onde não é chamado, Superpluteta? — disse Esther. — Isto aqui é assunto entre mim e o desprezível Ronald.

— Ah, é, é? O Ronald pode ser desprezível, mas eu ainda tenho que arrancar uma nota preta dele.

— Hein? — espantou-se Ronald. — Sim, seu patinho fedorento! Eu tenho em

cativeiro os seus três queridos sobrinhos... Ronald ficou de penas em pé. Superpluteta

prosseguiu: — Na verdade, eu sempre estive por trás de todo o

plano de seqüestro. O falecido Professor Urubu só fez o trabalho sujo. Meu único problema era cobrar o resgate quando ninguém sabia o destino da grana do Petinhas e eu não tinha como usar meus “meios de pressão” regulares...

Para ressaltar a importância de seus poderes, Superpluteta arrancou do chão, com uma mão só, uma fileira inteira de poltronas. Com a facilidade de quem brinca com uma bolinha de papel, atirou as poltronas pelo teto, fazendo grande estrondo.

— E como você recuperou seus poderes? — Sei lá. Só sei que eu estava na cadeia, vi um

grande clarão... Esther entendeu tudo. Era mais um efeito da

Moedinha da Sorte. — ...E me transformei de volta em Superpluteta

sem engolir nenhum amendoim mágico. Melhor ainda, até

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agora o efeito da transformação não passou! Tanto melhor: os amendoins mágicos têm um gosto horrível...

— Sinto muito, Superpluteta — disse Esther. — Você não pode cobrar resgate nenhum de Ronald, pois morrerá antes de ver a cor do dinheiro.

— Olha só quem fala! Superpluteta encheu os pulmões e usou seu

famoso supersopro contra Esther. A humana acabou sendo arremessada contra uma coluna próxima. Sem se abalar, Esther limpou a poeira e bradou:

— Você chama isso de golpe? Realmente, não se fazem mais super-heróis como antigamente.

Como um touro em fúria, Esther avançou contra Superpluteta, preparando-se para desintegrá-lo com uma cusparada sulfúrica. Antes que ela pudesse tentar qualquer coisa, Superpluteta acertou-lhe um chute certeiro na barriga, lançando-a ao ar como uma bola de futebol. Esther acabou pendurada no candelabro do teatro.

— E agora, Esther? Doeu ou não doeu? Desça já para apanhar de novo!

*****

Essa batalha de superpoderes não renderia coisa boa. Todos estavam distraídos esperando o resultado. Até que eu tive uma idéia brilhante. Sem ser notado, esgueirei-me pelos cantos do teatro e puxei a perna do acuado Ronald.

— Ronald? Tenho que fugir para o mundo dos humanos. Venha comigo.

— Está louco? — Nenhum de nós dois vai se dar bem com o

resultado dessa luta, qualquer que seja. Superpluteta morre,

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seus sobrinhos morrem. Esther morre, a Moedinha morre. O que é melhor do que escapar de tudo isto?

— Hummmmm... — Vamos, Ronald! Pegue dois sacos de dinheiro

para subornar os guardas pelo caminho. Eu posso dirigir um dos carros dos Patralhas.

— Vamos! Eu conheço uma saída secreta pelo esgoto. Logo estaremos na rua. Ninguém vai notar.

*****

Em poucos segundos Esther desembaralhou as ferragens do candelabro e voltou à ativa, mais enfurecida do que nunca. Superpluteta olhava Esther com desprezo.

— Vai tentar o quê, sua humana insignificante? — Tome isto! Brilhando de energia multicolorida, Esther fechou

os olhos, abriu a boca e soltou uma enorme bola de fogo que acertou Superpluteta em cheio. O super-herói se contorceu de dor. Aproveitando a distração momentânea, Esther soltou mais duas, três, quatro bolas, deixando Superpluteta caído ao chão.

— Você me paga, Esther! Com sua visão de calor, Superpluteta derreteu a

corrente que prendia o candelabro. Mas Esther pressentiu a queda e deu um grito lancinante, saltando sobre o próprio Superpluteta.

Uma luz ofuscante envolveu os dois. No fim, só se via o Superpluteta.

— Onde está você, Esther? Disse uma voz de dentro de Superpluteta: — Minhas células se misturaram às suas células.

Agora somos um só!

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— E o que está crescendo deste jeito dentro de mim?

Envolto numa esfera de luz branca, Superpluteta começou a inchar como um balão até explodir em um milhão de pedaços. Os espectadores, incrédulos, se aproximaram para ver o resultado da luta. Nem sinal de Esther por entre o cheiro de carne de cachorro queimada. No chão, a Moedinha da Sorte.

*****

A fuga de Alvin e Ronald para o mundo dos humanos foi um sucesso. Hoje Ronald trabalha recebendo turistas num parque temático, o único lugar onde ninguém acreditaria que ele fosse ele mesmo.

O cativeiro dos sobrinhos de Ronald foi estourado pela polícia de Pastópolis. Oito bandidos foram mortos (incluindo peças-chave da máfia) e seis foram dados como desaparecidos, mas os meninos saíram vivos para dividir a herança de Petinhas. Depois de brigas e mais brigas, ninguém mais se fala na Família Pato.

Sovina MacGrana não deixou herdeiros. De acordo com seu testamento, toda sua fortuna foi destinada ao Clube dos Criadores de Gatos da África do Sul. E Sovina sempre detestou gatos.

Fatalôncio continua rico, mas não tanto. O fim do puritanismo da Era Petinhas foi um golpe de morte no segredo que envolvia os vasos sanitários de Pastópolis, o que abriu o mercado para inúmeros outros fabricantes. Fatalôncio foi obrigado a diversificar ainda mais seus negócios, incluindo alguns investimentos furados em empresas de Internet. Mas não foi por isso que ele deixou de ser o pato mais rico de Pastópolis desde a morte de Petinhas.

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Omar Suíno superou as expectativas e cumpriu seu mandato até o fim. Os cães caucasianos mantiveram os direitos civis conquistados, mas a ditadura de Omar não sobreviveu mais que alguns meses. O regime democrático não garantiu a popularidade do prefeito. Ao entregar a faixa a seu sucessor, Omar só conseguiu conter as vaias do povo quando prometeu abandonar definitivamente a vida política.

Como resultado da divisão da fortuna de Petinhas, os Patralhas se dividiram em dezenas de facções rivais, em eterna luta umas contra as outras e todas contra todos (Fatalôncio, Família Pato, governo de Pastópolis). Atualmente o maior conflito entre os Patralhas diz respeito aos direitos autorais da marca “Irmãos Patralha”.

Esther reapareceu milagrosamente na cela acolchoada de um hospital psiquiátrico em Los Angeles, aonde já não chegou muito bem da cabeça. Muitas drogas depois, embirutou de vez. Ninguém parece acreditar que ela voltou de um mundo de patos e cachorros falantes. Jamais foi reencontrada pela Organização.

Alvin resolveu viver uma vida honesta. Depois de entregar todos os chefes da Organização (o que não adiantou muito, pois já eram figurinhas manjadas do FBI), Alvin entrou no Programa de Proteção à Testemunha, trocou de nome, fez uma operação plástica e tornou-se especialista em criação de galinhas.

***** ***** *****

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Livro II

Pato ao Molho Pardo

Como a pacata e conservadora cidade dos patos chegou à barafunda que conhecemos em Sangue em Pastópolis? Pato ao Molho Pardo acompanha o rastro de tragédia dos primeiros habitantes de Pastópolis que se aventuraram no mundo dos humanos. No centro de tudo, a indústria que nenhum pastopolense ousava admitir que existia: um negócio tão lucrativo quanto mortífero, disputado bico a bico por magnatas sem escrúpulos e mafiosos sanguinários, todos aparentemente incapazes de reconhecer a fria em que se metiam.

Como na pirueta cronológica de Guerra nas Estrelas, Pato ao Molho Pardo conta o que veio antes de Sangue em Pastópolis. Portanto, considere zerada a contagem de cadáveres do folhetim anterior. Mas ainda vamos dar muito trabalho ao sindicato dos coveiros. Pode contar com isso.

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Capítulo 1

A noite de Pastópolis era quente e úmida como

não se via desde quando o velho Petinhas ainda tinha cabelos pretos. Mal passava das dez horas; quase todos os laboriosos e conservadores pastopolenses já dormiam (ou pelo menos tentavam) sob o bafo quente dos ventos do norte. A não ser aqueles que tinham negócios muito importantes a esconder.

Por exemplo, Vagarida e seu amante no mirante do Monte Patal.

No interior daquele carrão antiquado, do tipo que só se vê em histórias em quadrinhos, a cena era triplamente arriscada. Primeiro, Vagarida era noiva. Segundo, a família de seu noivo seria capaz de mover até o último quaquilhão da Caixa-forte para vingar a traição de Vagarida. Terceiro, e pior de tudo: se em Pastópolis nem o sexo entre indivíduos da mesma espécie é bem tolerado, imagine um caso amoroso entre espécies diferentes.

— Já pensou se a polícia nos descobre? — provocou o amante de Vagarida. — Nós dois vamos parar no pelotão de fuzilamento.

— Isso não é nada, meu bem... Já pensou se a família do Ronald nos descobre? Vai ser muito mais cruel do que qualquer fuzilamento.

— Não se eu passar fogo primeiro na polícia inteira... Rá, rá, rá! Agora vem, meu docinho... Entregue-se por inteiro... Hummmmm...

De repente, um forte solavanco quase joga o carro ladeira abaixo.

— Que foi isso, Vagarida? — Hein?

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— Deram o maior porradão na traseira! — Mas você nem botou ainda... — O maior porradão na traseira do carro, sua

depravada! Esse barbeiro me paga! O amante de Vagarida, um cão caucasiano mal-

encarado de uns dois metros de altura, abotoou as calças e saiu com um revólver na mão para acertar contas com o motorista desastrado. De dentro do outro carro, uma voz fina bem familiar:

— Não me mate, patrão! É por uma boa causa! — Pancrácio Mergulhão! O que você está fazendo

aqui, seu verme? — Desculpe, patrão, mas eu tinha que encontrá-lo

de qualquer jeito. Descobriram o lance da parada! — O quê? O lance da parada? Tem certeza? — Tenho. O grandalhão guardou a arma e voltou correndo

para seu próprio carro. — Vagarida, foi mal... Fica pra próxima. Tenho

que cumprir uma operação de emergência. Saia agora mesmo, pegue um táxi por minha conta e finja que nada disto aconteceu.

— Que pena... E depois, você me liga? — Talvez. Com todos esses grampos por aí, todo

cuidado é pouco. Os dois carros saíram cantando pneus, deixando

Vagarida a xingar as desventuras do destino: — É por isso que eu odeio sair com esses caras da

Organização!

*****

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No mundo dos humanos, que os pastopolenses mal acreditavam que existia, também havia algo de podre no ar. E não era só o cadáver da velhinha, encontrado num ônibus da Viação Cosmeta. Acima de tudo: por que é que surgiu do nada um agente do FBI para investigar um crime desses no Brasil?

Porém, na rodoviária de Piracicaba, ninguém parecia estar espantado com a presença do agente Todd McLay na malcheirosa cena do crime, não só passando o pente fino no ônibus, como dando ordens à polícia local. Naquele momento, só McLay e a falecida permaneciam dentro do cordão de isolamento; o agente repassava mentalmente as pistas:

— A passageira Elvira dos Prazeres embarcou no Rio de Janeiro com destino a Piracicaba. Em algum ponto da viagem, Elvira foi morta com uma facada certeira no abdome. Nenhum outro passageiro notou qualquer movimento estranho. Não foi latrocínio; aparentemente, nenhum dos pertences de Elvira foi mexido. O corpo foi deixado com a cabeça encostada na janela, coberto por uma manta, e com um travesseiro sobre o corte abdominal. Antes do ponto final, ninguém notou nada. A principal suspeita: uma passageira que desembarcou na parada do almoço e não apenas não reembarcou, como desapareceu sem deixar qualquer pist...

Nisso, os olhos do agente McLay brilharam ao encontrar algo sobre a poltrona ao lado do cadáver. Uma pena de pato.

Como nos filmes, McLay a recolheu cuidadosamente com uma pinça e a depositou num envelope plástico. O agente comentou consigo mesmo:

— E esta é apenas a primeira. Vem um longo rastro de penas por aí...

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Capítulo 2

O que o agente Todd McLay tinha a ver com o

caso da velhinha morta no ônibus em Piracicaba? Não havia nada de especial naquele caso que pudesse interessar à investigação do FBI. No entanto, pela rapidez com que McLay surgiu na cena do crime, ele parecia estar na hora certa no lugar certo para... Afinal, qual era a do agente McLay?

Era tudo que o delegado Seixas queria saber. Quando McLay desceu do ônibus, sem ter mexido no cadáver e com a misteriosa pena de pato envelopada no bolso, o chefe do distrito local o esperava na porta.

— Com licença, cidadão. Quem você pensa que é para atravessar um cerco da polícia sem autorização prévia?

Imediatamente, o agente mostrou seus documentos.

— Todd McLay, FBI, Operações Especiais Criptozoológicas.

— FBI? Meu filho, que é fã de Arquivo X, tem uma carteira de mentirinha igual à sua! Rá, rá, rá! — disse o delegado, sem tirar os olhos das letrinhas miúdas da carteira — Mas vamos deixar de brincadeira, pois esta é a minha jurisdição e o caso da velhinha morta é meu cas...

Nisso, McLay começou a mover rapidamente em círculos a mão que segurava a carteira, de modo a distrair o delegado, Com a outra mão, tirou do bolso do paletó uma latinha vermelha e lançou um gás sobre o rosto de Seixas, deixando-o levemente atordoado.

— Delegado, este não é um caso comum. O futuro da civilização ocidental como a conhecemos está em perigo! Você precisa nos ajudar nesta investigação, ou será pior para todos nós.

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— Sim, senhor. — Para começar, preciso da lista de passageiros do

ônibus com os dados completos de cada um, e tenho que chegar o mais rápido possível ao ponto de parada de almoço onde desapareceu a passageira misteriosa.

— Claro, senhor. É pra já.

*****

Morta de vergonha, Vagarida pegou um táxi de volta para casa. Todo cuidado era pouco: para despistar os vizinhos enxeridos, o jeito era dar mil voltas por Pastópolis antes de chegar ao destino. Tudo bem; era o homem da Organização que pagava a corrida. Ainda assim, ao virar a esquina, Vagarida toma um susto:

— Quaaaaaac! Motorista, mudança de planos: passe direto e me deixe na Avenida Cordélio Flatus número 200.

— Como quiser, madame. Encolhida no banco o mais que podia, Vagarida

nem pôde observar detidamente a expressão de ódio de seu noivo Ronald, andando de um lado para o outro em frente ao portão de sua casa. Mas Vagarida sabia melhor que ninguém o que se passava na cabeça de Ronald. O jeito era se abrigar no apartamento de sua amiga Eugênia Paturi até achar um jeito de acalmar os ânimos da família Pato.

Vagarida subiu a passos largos os dois andares de escada e tocou a campainha.

— Quem é? — Sou eu, a Vagarida! Estou com um problemão.

Posso passar a noite aí?

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— Claro, amiga — disse Eugênia, em sua voz inconfundível. — Espere um pouquinho que vou pegar a chave.

Minutos depois, a porta se abre e revela uma cena apavorante. Eugênia estava amordaçada e amarrada numa cadeira. A seu lado, Coronel Contra esperava a entrada de Vagarida.

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Capítulo 3

— Coronel Contra, o que você está fazendo aí

com a Eugênia toda amarrada? — grasnou Vagarida, incrédula e de penas arrepiadas.

— Pois você é quem mais deve explicações aqui. — o coronel aproximou-se da porta, chegando bem perto de Vagarida. — O que você estava fazendo com um criminoso condenado na escuridão do mirante do Monte Patal?

— Francamente, isso não é da sua cont... Coronel Contra, irritado com a insolência, ergueu

sua grande mão e deu um forte tapa no bico da noiva de Ronald.

— Deixe de se fazer de besta, sua vadia! Desembuche!

— Você vai se arrepender! — choramingou Vagarida — Tio Petinhas vai saber disso...

— É claro. Foi ele mesmo que me mandou aqui quando soube o que você andava fazendo.

— Não é possível... Será que até nos campos de petróleo do Alasca ele sabe da minha infidelidade?

— Rá, rá, rá! Quem falou em infidelidade, Vagarida? O Petinhas tem muito mais a se preocupar. Mafiosos armando para dar fim a seu império empresarial, por exemplo...

Vagarida quase caiu de costas. Coronel Contra se afastou e começou a desamarrar a inquieta Eugênia.

— Desculpe o mau jeito... Mas eu sabia que Vagarida viria direto para cá ao menor pressentimento de ameaça.

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O telefone tocou. O coronel atendeu com a convicção de já saber quem estava do outro lado da linha.

— Oi, Muckey. Tudo correu melhor do que o esperado. Pode vir para cá correndo: a noite promete!

Enquanto isso, Vagarida ficava a pensar como faziam falta os apetrechos de seu kit de super-heroína.

*****

Como a maioria dos restaurantes de beira de estrada, aquele também servia uma comida meio sebenta que custava uma nota preta. Mas nem a comida nem o preço contribuíram para matar quem quer que fosse... Pelo menos não neste caso.

Pegando carona numa ambulância cedida pelo delegado Seixas, Todd McLay conseguiu chegar ao restaurante em menos de uma hora. E com o acesso às informações certas, o agente do FBI já tinha na ponta da língua a descrição da passageira da Viação Cosmeta que desaparecera naquela mesma parada e tornara-se a suspeita número 1 do assassinato da passageira da poltrona ao lado. McLay já foi logo perguntando à mocinha que distribuía na entrada os cartões de consumação:

— Por acaso você viu entrar aqui na hora do almoço uma mulher de uns cinqüenta anos usando saltos altos, saia preta e blusa azul de mangas compridas?

— Que estranho... Foi o mesmo que o outro sujeito acabou de perguntar.

— Quem? — Aquele de terno preto que está indo para o

banheiro. — Hein????? Vou resolver isso já.

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Num acesso instantâneo de fúria, McLay saiu correndo rumo ao banheiro, pronto para voar no pescoço do outro homem, enquanto a mocinha gritava:

— Ei, espere! O senhor se esqueceu de pegar o cartão de consumação!

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Capítulo 4

— Ei, você! Volte aqui! — gritou Todd McLay,

enquanto corria atrás do estranho homem de preto. Nem foi necessário. Foi só ouvir os passos rápidos

para o homem sair correndo com um desempenho digno de um atleta olímpico. McLay ignorou os olhares incrédulos dos transeuntes e perseguiu o homem banheiro adentro. Era um daqueles salões enormes com quarenta mictórios, vinte cabines e lavatórios incontáveis. Bem no meio, McLay se jogou ao chão e, como um jogador de futebol americano, agarrou as pernas do homem.

— Quem é você? O que você está fazendo aqui, seu cachorro?

O sujeito, porém, nada dizia enquanto buscava se desvencilhar do agente do FBI. A esta altura, os dois estavam enganchados como lutadores de jiu-jítsu. McLay não poupava energia para imobilizar o estranho, mas seu adversário era fortíssimo. De repente, McLay acertou um soco que entortou o rosto do sujeito. Literalmente. Era uma máscara.

— Ei, o que é isso? O agente puxou a máscara. O homem era um pato

disfarçado! Aproveitando-se da surpresa de McLay, o homem-pato escapou da imobilização, correu para uma das cabines e mergulhou de cabeça no vaso sanitário, desaparecendo magicamente sem deixar vestígios.

McLay, de queixo caído e ainda segurando a máscara, não podia acreditar no que vira. Menos ainda quando, às suas costas, saiu de outra cabine ninguém menos que Fatalôncio, o magnata número 2 de Pastópolis,

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— Todd McLay, agora que você sabe o que não deve, você tem duas chances: ou morre aqui mesmo, ou passa para o nosso lado.

*****

De volta a Pastópolis... — Vagarida, a situação está preta para seu tio

Petinhas — filosofou Muckey, andando de um lado para o outro na sala do apartamento de Eugênia. — Os Irmãos Patralhas estão loucos para roubar a grana do velho, e você e o Ronald babam pelo dia em que herdarem aquela fortuna. Mas não são só vocês que querem puxar o tapete do Petinhas.

— Quem mais? — perguntou Vagarida. — Pensei que você soubesse. Afinal, você tem

uma graaaaande intimidade com alguns importantes nomes da conspiração mafiosa...

— B-b-bem, eu saio com uns caras por aí só para me divertir mesmo... Eu nunca misturo negócios com lazer.

— Talvez eu possa refrescar sua memória. Cerca de duas horas atrás você estava bem próxima (se é que me entende) de Otávio “Navalha” Buldogue, peça-chave da sociedade secreta dos cães caucasianos, condenado cinco vezes por formação de quadrilha, atualmente investigado por sérias suspeitas de contato dimensional clandestino.

— Contato o quê? — Artigo 4897 do Código Penal Pastopolense.

Realizar, ou mesmo tentar, a transferência de pessoas, animais, objetos e informações do nosso mundo para o mundo dos humanos ou vice-versa por meios diferentes dos autorizados por lei. Pena: morte por fuzilamento ou

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afogamento na Baía de Pastópolis, conforme a escolha do juiz.

— Resumindo: Otávio deve estar tramando com os humanos — disse Coronel Contra.

— E como é que os humanos podem ajudar a Organização a passar a perna no Petinhas?

— É isso que nós não sabemos. Você vai ter que seduzir os caras da Organização, um a um, para que contem tudo que sabem. O que não disserem na vertical, hão de dizer na horizontal.

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Capítulo 5

Todd McLay quase caiu de joelhos ao ver

Fatalôncio diante de seus olhos, inteirinho, em carne, osso e penas. Era o apogeu de uma carreira policial devotada a acreditar no inacreditável: a existência de raças inteligentes em Pastópolis! Por outro lado, McLay bem sabia que não tinha entrado numa fria. Aquilo era muito pior.

— Fatalôncio? É você mesmo? — Agente McLay, você me surpreende. Ouvi falar

muito de você. Sem dúvida, é o investigador de araque mais esperto que já encontrei. E, até hoje, não foram poucos. Esta vida de negócios escusos ainda me mata...

Àquela altura, os seguranças do restaurante já estavam mais do que avisados que algo de estranho acontecia no banheiro masculino. Nem passaram pela porta e já gritavam, armados até os dentes:

— Vamos acabar com a bagunça! Todo mundo quietinho aí! Mãos na cabeça!

Antes que pudessem se tocar de como era estranho encontrar um pato de chapéu coco e paletó, McLay se assustou e gritou:

— Não atirem! Esse pato falante vai nos render uma fortuna num circo! Eu posso dividir a grana!

— Não me surpreenda outra vez, seu palerma! — grasnou Fatalôncio, enquanto sacava do bolso interno do paletó uma bomba de fumaça.

Com um lançamento certeiro, a bomba estourou bem nos pés dos seguranças. Fatalôncio pegou McLay pela mão, ambos se jogaram no chão antes que fosse tarde: com o efeito do gás, os seguranças tombaram inconscientes.

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— Fatalôncio, dê um jeito de nos tirar daqui! — gritou McLay.

— Você tirou as palavras do meu bico!

*****

Era um esquema tático digno de Copa do Mundo. O desgostoso Ronald, ainda com o “sumiço” de Vagarida atravessado na garganta, foi chamado para uma missão de emergência nos campos de petróleo de seu tio no Alasca. Seus três sobrinhos, como de costume, acampavam, alheios a todas as notícias. E o sindicato do crime de Pastópolis organizava um congresso... que, pelo visto, seria muitíssimo animado. Vagarida poderia agir à vontade para conseguir os segredos da Organização. A propósito, o que os mafiosos pastopolenses celebravam de tão especial?

— É o que precisamos saber, Vagarida — disse Muckey, ao volante do carrão preto da polícia. — Oficialmente, a festinha é para comemorar os 17 anos de aliança das Indústrias Reunidas de Pastópolis com a União Industrial de Grasnópolis, duas notórias fachadas para a máfia. Mas em Pastópolis isso nunca foi motivo para grandes embalos. Há algo muito maior por trás disso.

Coronel Contra, ao lado de Muckey, explicou melhor a missão:

— Primeiro, você terá que usar seus contatos com os caras da Organização para conseguir um convite para a festa.

— Assim, como se fosse uma festinha de aniversário? Pensei que a coisa fosse séria.

— E é séria, Vagarida. Você pode conseguir isso facilmente. Prometa que vai dar para todo mundo. O importante é conseguir as informações. Se você quiser dar mesmo, o problema é seu: não quero nem saber.

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Vagarida olhou para o teto, com um olhar de “isso vai dar um trabalho...”.

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Capítulo 6

O que pode ser pior do que ser capacho do tio

megatriliardário? Ser chamado pelo tio, num cafundó do Judas qualquer do mundo, para ajudá-lo numa missão especial que o tornará ainda mais megatriliardário... e não ter nenhuma esperança de ver a cor do dinheiro antes do enterro do velho.

Era o que pensava o melancólico Ronald em seu vôo fretado da Pastópolis Airlines para os campos de petróleo das Organizações Petinhas, lá nos grotões do Alasca. A comida do avião era horrível, a viagem parecia que não terminava nunca, o lugar era frio e desagradável — do chão, só brotavam as torres de petróleo. Mas Petinhas botava a maior fé naquele negócio e precisava de Ronald para vigiar os trabalhos de perto. Ou pelo menos dizia que precisava. Lá no quinto dos infernos, na companhia das focas e das baleias, quem iria saber?

Ronald, como único passageiro de um avião com capacidade para vinte (uma extravagância desmedida para as Organizações Petinhas: em condições normais o velho pato faria Ronald esperar por um vôo de carreira), não tinha muito a fazer além de procurar uma paisagem entre as nuvens e falar consigo mesmo de sua existência miserável.

— Esta viagem está muito estranha... Tenho que criar coragem e enfrentar meu tio de uma vez por todas. Dane-se a herança! Deste jeito, sou eu que vou morrer antes do velho.

E se ao menos Ronald soubesse que, naquele momento, tio Petinhas é que estava à beira da morte, nas mãos de bandidos?

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*****

Enquanto os seguranças continuavam caídos, Todd McLay e Fatalôncio se arrastaram para a primeira saída que julgaram possível. Abrindo uma janelinha acima dos mictórios, os dois pularam num matagal. Bem longe dos olhos dos curiosos, felizmente. Fatalôncio se manteve escondido enquanto McLay se esgueirava até a ambulância. Ninguém notou: aparentemente, todos estavam distraídos com a fumaceira que saía do banheiro. McLay apanhou Fatalôncio e caiu na estrada.

— Obrigado pela ajuda, McLay — disse, ainda ofegante, o magnata bicudo.

— Obrigado, nada! Você é o maior achado da zoologia de todos os tempos... Quando o mundo souber que você existe, muita gente boa por aí vai ter que mudar de idéia sobre um bocado de coisas.

— Só por cima do meu cadáver! — Tanto faz. Vivo ou morto, os cientistas farão a

festa. — Não se eu puder impedir. Numa fração de segundo, Fatalôncio sacou uma

pequena pistola e a encostou na cabeça de McLay. — Deixe de ser besta, McLay, e faça o que eu

mando. — Isso aí pode machucar alguém... Abaixe essa

arma, Fatalôncio... — Primeiro, você vai ter que me levar para Miami

o mais breve possível. Questão de negócios. — Então por que você não usa aquela ridícula

passagem transdimensional do vaso sanitário? — Não discuta, McLay!

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De repente, um gato surgiu no meio da estrada. Instintivamente, McLay fez uma curva para se desviar do animal. Com o solavanco, Fatalôncio puxou o gatilho enquanto a arma cutucava a orelha do agente do FBI.

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Capítulo 7

A arma de Fatalôncio era pequena, mas o estrondo

era de grosso calibre. Todd McLay tinha tomado o maior susto de sua vida, mas fora só o susto. Não era apenas uma aberração da física: era um milagre. A bala atravessou a cabeça de McLay como se McLay não existisse. Ou teria a bala desaparecido antes de entrar no ouvido direito de McLay e reaparecido magicamente depois do ouvido esquerdo? Só não pergunte ao Fatalôncio como pôde acontecer uma coisa dessas.

— Raios! Você continua inteirinho! McLay, mal refeito do susto, parou no

acostamento. O incrédulo Fatalôncio continuou atirando no humano: cinco, seis, sete, oito tiros no peito. Absolutamente nada. McLay não sentiu nem o ventinho das balas.

— Isso é bruxaria! Minha arma de Pastópolis não funciona com humanos!

— Acho que isto quer dizer algo... Agora você está meio indefeso fora de seu mundo, não é mesmo?

— McLay, não me olhe desse jeito... — Pois chegou a minha vez de me dar bem na

vida de uma vez por todas! — declarou McLay num sorriso satânico. — Desde a infância eu sempre acreditei que os desenhos e histórias em quadrinhos sobre a “fictícia” Pastópolis eram apenas uma cobertura para despistar a existência real da terra dos patos! Ainda na adolescência, contra tudo e todos, eu comecei a juntar pistas e mais pistas que me levassem a estabelecer contato com a raça dos patos inteligentes. No FBI um bando de colegas invejosos já tentou várias vezes denunciar minha “insanidade” mental. Enquanto isso, eu tinha cada vez

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mais certeza de estar na pista correta da descoberta que pode mudar o rumo da Humanidade!

— Não se eu puder impedir, Blade Runner de araque! — disse Fatalôncio, já se preparando para sair correndo.

— Ah, é, é? Se você fugir, o primeiro caipira que o encontrar vai cozinhá-lo ao tucupi. Você decide.

— E-e-então... — Se quiser ter alguma esperança de vida, venha

comigo. Primeiro, tenho uma pequena lista de 246 perguntas sobre Pastópolis que restam ser respondidas...

*****

O melhor lugar de Pastópolis para encontrar os homens da Organização era o Boliche Central nas tardes de quarta-feira. Isso era público e notório, mas ninguém conseguia fazer uma acusação formal contra o bando. Sem o noivo Ronald por perto e com a cobertura total da polícia, Vagarida teve a chance que precisava para estreitar seus laços com os membros da gangue. Se é que você me entende.

Vagarida jogou um charme para o garoto da portaria para conseguir uma pista vizinha à dos mafiosos. Eram uns oito, dos quais pelo menos metade já conhecia Vagarida de vista. Impossível que não notassem a presença da noiva do sobrinho de Petinhas: a tática de se fazer de jogadora burra era mais velha que a estátua de Cordélio Flatus, mas sempre dava certo. Depois de Vagarida lançar a quinta bola seguida na canaleta, um dos rapazes cochichou com seus colegas:

— Essa Vagarida... Bicampeã pastopolense de boliche e quer bancar a lesada pra cima de nós. Essa pata está pedindo, e muito...

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Um risinho malicioso tomou conta da turma de bandidos. Não demorou a que Pancrácio Lontra, um veterano da Organização, se oferecesse para dar umas “aulas” a Vagarida.

— Oi, garota! Quer aprender a derrubar uns pinos?

Vagarida deu um risinho e chamou o homem para sua pista. Conversa vai, conversa vem, ela deu o bote:

— O que vai fazer hoje à noite? — Eu e meus colegas vamos a uma recepção

hiper-mega-privativa, e você pode vir com a gente. Mas não sei que você vai gostar — Pancrácio despistou. — É daquelas festas em que só tem macho.

— Agora sim, o negócio está subindo de nível... Rê, rê, rê...

Pancrácio lambeu os lábios de satisfação.

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Capítulo 8

A viagem interminável chegava ao fim: finalmente

o avião de Ronald desceu na pista particular do campo de petróleo de Petinhas. Só que ninguém veio receber Ronald. Não que Petinhas achasse que Ronald merecia um comitê de boas-vindas com banda de música. Mas não se via ninguém na pista de pouso. Nos arredores, muito menos.

— Será que todo mundo parou para almoço? Mais estranho ainda, o avião ficou mais de meia

hora taxiando em círculos. E ninguém aparecia. Ronald chamou alguém da tripulação. Aparentemente, todos estavam ausentes. Assustado, Ronald se levantou rumo à cabine de comando.

— Onde está todo mundo? — disse o sobrinho de Petinhas do lado de fora da porta.

— Está tudo bem, Ronald. Entre aqui — disse a voz lá de dentro.

Um microssegundo depois de abrir a porta, Ronald não viu mais nada. A tijolada na cabeça foi certeira.

*****

Àquela altura, a ambulância só tinha dois quintos de combustível. Todd McLay não sabia bem quantos quilômetros isso renderia, e qualquer reabastecimento seria altamente arriscado — afinal, depois da confusão do restaurante, ele já devia ser mais procurado que Osama bin Laden. Sem se abalar, o agente do FBI começou o questionário pelo básico do básico.

— Primeira pergunta, Fatalôncio: o que você veio fazer no mundo dos humanos?

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— Negócios, como sempre. — Como assim “como sempre”? Não é todo dia

que nós, humanos, encontramos um pato inteligente andando por aí. Na verdade, parece que só eu mesmo acredito na sua existência.

McLay, antevendo as possibilidades, torceu o pescoço e olhou Fatalôncio com um olhar de serpente.

— Quer dizer... Se você está aqui, é para fazer contato com outro humano... Não é verdade?

Fatalôncio engoliu em seco, mas manteve a história:

— Não. De jeito nenhum. Era só coisa de patos. Eu sei que não devo ser visto por aí.

— Bem... Esta é a primeira vez que você vem ao mundo dos humanos?

— Sim. — Esta é a primeira vez que alguém de seu mundo

vem ao mundo dos humanos? — Não sei. Pelas leis de Pastópolis, qualquer

contato com o mundo dos humanos é punível com a morte.

— Hummmmm... — Que foi, McLay? — Nada... Quer dizer, nada que já não confirmasse

minhas antigas suspeitas. Dito isto, McLay entrou numa estrada de terra,

determinado a esconder Fatalôncio a qualquer custo.

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Capítulo 9

Vagarida não precisou contar à polícia onde seria a

festa da máfia: a polícia já estava careca de saber o endereço. Difícil era pôr uma pessoa de confiança lá dentro para arrancar os segredos da Organização. Muckey já tinha alugado, em nome de seus sobrinhos, um apartamento no prédio do outro lado da rua. Enquanto Muckey e Coronel Contra vigiavam, o movimento de carros começava cedo. Aparentemente, todo mundo que era alguém na Organização pastopolense sabia que não podia perder o embalo.

Vagarida também não demorou a sair. Com um longo vermelho-sangue, ela estava vestida para matar — talvez não tão literalmente, mas não era o tipo de roupa que ela costumava usar quando Ronald estava por perto. Em frente à sua própria casa, Vagarida já se preparava para levantar o braço para o táxi, quando sua amiga Anabela passou de carro (um modelo dos anos 30 daqueles que os pastopolenses usam até hoje) pelo outro lado da rua.

— Vagarida! Que bom te encontrar aqui! O Clube Feminino precisa de você.

Àquela altura, a noiva de Ronald tinha se esquecido totalmente dessas caretices de Clube Feminino. Ela tentou disfarçar quando Anabela deu meia-volta.

— Oi, Anabela! Infelizmente, hoje não dá... Tenho algo muito import...

— Vagarida, você é a campeã de canastra do Clube! Nossa equipe precisa de sua habilidade — Anabela desceu do carro. — Afinal, todas as mulheres de Pastópolis estarão lá nos esperando para jogar umas cartas e bater aquele papo esperto...

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— Desculpe mesmo. Não posso... — disse Vagarida, dando um passo para trás.

— E tem mais! Hoje começa o campeonato beneficente de canastra em prol da Fundação Chocadeira de Base de Pastópolis. Vai ser o acontecimento social do ano! Como é que você pode perder essa? E sem o Ronald, você vai fazer o quê por aí?

Sem dar a mínima para os apelos da amiga, Anabela pôs sua mão enorme sobre as costas de Vagarida e a conduziu para a porta de seu carro.

— Escute, Anabela, eu só posso jogar uma partida... Eu prometi a mim mesma que vou dormir cedo esta noite.

— Cedo? Rá, rá, rá! — Anabela pisou fundo no acelerador. — Esta noite vai ficar para a história das mulheres de Pastópolis! Você nem imagina! A propósito, amiga, o seu vestido está arrasador...

*****

Enquanto isso, no interior do Alasca, finalmente Ronald e seu tio Petinhas se encontraram. Na horizontal.

— Isso aí! Ponham o Ronald sobre essa mesa, mas tomem cuidado... Não quero mais um pato quebrado para atrapalhar.

Era tudo que os Patralhas precisavam. Depois que Ronald foi posto para dormir com um golpe certeiro na cabeça, dois Patralhas “genéricos” se encarregaram de transportá-lo do avião para o posto médico do (estranhamente deserto) campo de petróleo.

Daquele jeito, Ronald nem podia ver que, a seu lado, o nonagenário Petinhas se encontrava em coma profundo, mantido por aparelhos. Um serviço médico de primeira, ainda mais impressionante por ser obra dos

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habitualmente incompetentes Irmãos Patralha. Contente com o resultado, Vovô Patralha entrou na sala e observou os dois patos desacordados:

— Nosso segredo continua bem guardado. Ninguém há de saber que o campo de petróleo de Petinhas jamais produziu uma só gota de petróleo.

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Capítulo 10

De volta a Piracicaba, o delegado Seixas não

conseguia acreditar como Todd McLay o tinha enganado daquele jeito.

— Simplesmente não me lembro, Gusmão... Depois que o tal McLay mostrou a carteira do FBI, parece que tudo se apagou da minha cabeça...

— Gás hipnótico. O autêntico modus operandi do vigarista. Primeiro, ele não é agente do FBI coisa nenhuma. Segundo, ele se chama Derek Johnson.

— Hein? O delegado Gusmão pegou uma pasta estufada de

papéis e resumiu a história: — Derek Johnson, estelionatário amador e teórico

da conspiração profissional, é um notório propagandista da existência de inteligências animais num mundo paralelo. Desde muito jovem ele não tem medido esforços para comprovar sua tese... Ou melhor, Johnson é que é conduzido por sua idéia fixa. Sob vários pseudônimos, tornou-se autor de quinze livros sensacionalistas como Os patos estão entre nós, Patos — eu acredito! e A inteligência secreta dos patos, todos devidamente ignorados, a não ser por meia dúzia de curiosos.

— Para mim, esse é apenas mais um piradão americano.

— Pode ser. Mas ele é muito hábil na mudança radical de identidade conforme as circunstâncias. Por isso, Johnson já acumula 79 processos em 39 estados americanos. Ultimamente ele tem circulado com uma carteira do FBI com o nome de “Todd McLay”, e em

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qualquer conversa ele é capaz de convencer a todos de que é um agente do FBI de verdade.

— Então o que ele veio fazer no Brasil? E justamente aqui? E interessado neste caso da morte no ônibus?

— É o que veremos, Seixas. A propósito... Você acredita em patos inteligentes?

*****

Enquanto Vagarida morgava num jogo de canastra no Clube Feminino, os sempre vigilantes Muckey e Coronel Contra apontavam os potentes microfones da polícia para a festa da máfia no salão de festas do Hotel dos Frangos (que, por sinal, já pertencia à Organização há tempos). Sem sucesso: no salão entupido de gângsteres, não se conseguia distinguir uma voz sequer. De repente, Professor Urubu subiu ao palco e pediu a palavra:

— Irmãos, este é um momento histórico para nossos negócios. Os dias de monopólio de Petinhas estão chegando ao fim.

Gritos, assobios, aplausos. Urubu continuou com sua voz de taquara rachada:

— Em menos de um mês, com o apoio financeiro de Fatalôncio e os contatos transdimensionais da Organização, os pastopolenses poderão comprar vasos sanitários em regime de livre concorrência. Os preços astronômicos do Petinhas se tornarão coisa do passado!

Agora os gritos se ouviam até da rua. Pior para Muckey, que não conseguiu gravar nem uma palavra do discurso.

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Capítulo 11

Professor Urubu prosseguiu na apresentação

comemorativa. A um toque num controle remoto, fez descer uma tela de projeção sobre o palco do salão de festas. Luzes reduzidas. Depois de meio minuto de chuviscos, uma imagem meio embaçada foi tomando forma diante dos olhos de todos. Silêncio total. Urubu explicou:

— Como de costume, não podemos entrar num negócio sem alguma garantia de mercado, o que é muito compreensível... Com vocês, ao vivo via satélite, as imagens da fábrica de vasos de Petinhas disfarçada de campo de petróleo, atualmente invadida e dominada pelos Irmãos Patralha.

Aplausos. A câmera passeia pelas instalações da linha de montagem de vasos: filas e mais filas de máquinas e vasos incompletos, até onde a vista alcança, enquanto os Patralhas caminham para lá e para cá com desenvoltura. De repente, a câmera dá meia volta, entra no posto médico e encontra dois patos velhos conhecidos: Petinhas em coma e seu sobrinho Ronald amarrado à mesa, grasnando em fúria.

— Seu Patralha miserável! O que você fez com meu tio?

Urubu toma um segundo microfone e conversa com o pato:

— Ronald, desse jeito você está muito feio para aparecer na televisão. Sorria para a câmera! Afinal, toda a Organização está de olho em você aqui em Pastópolis.

*****

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Na base improvisada de espionagem, Coronel Contra recebe uma mensagem no monitor:

— Muckey, interceptamos um sinal de vídeo suspeito na antena do hotel.

— Boa pista, Contra. Aponte a antena e mande desembaralhar o sinal.

O computador começou uma contagem regressiva para revelar as imagens. A cinco segundos da conclusão da operação, entra na sala Pluteta, o fiel escudeiro de Muckey, que tinha sido chamado para dar uma força nas investigações.

— Boa noite, pessoal... Epa! Com seus pés enormes, Pluteta tropeçou no fio

elétrico principal, desplugando todo o equipamento. — Pluteta, seu desastrado! — esbravejou Muckey.

— Como é que vamos rastrear o sinal da Organização agora?

*****

Ronald, atônito com a imitação de telejornal interativo, esticou o pescoço e olhou dentro da câmera sem acreditar na situação. Urubu continuou a palestra:

— É, minha gente... Petinhas vai ficar um tempo sem poder fabricar seus vasos caríssimos. Também, quem mandou o velho pato contratar uma equipe de medrosos? Até os Patralhas conseguiram botar a galera toda para correr.

— Como assim, “até” os Patralhas? — protestou o Patralha operador da câmera.

— Quer dizer... Para os Patralhas, bastou usar o velho truque do Godzilla mecânico para afugentar a todos. Na correria, Petinhas caiu de bico e está sendo

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caridosamente mantido por aparelhos, para que ninguém pense que a Organização não tem fins beneficentes...

Os gângsteres riem da piada do Professor Urubu, mas de repente alguém grita lá do meio do salão:

— Puxem logo esses tubos! Matem o Petinhas! — Nada disso, caro colega... Lembre-se do ditado

“Deus dê longa vida a meus inimigos para que assistam de pé à minha vitória!”

Aplausos, urros, braços erguidos num delírio comemorativo. E no prédio em frente, a polícia nada sabe.

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Capítulo 12

Os mafiosos de Pastópolis babavam de satisfação

com as imagens de Ronald e Petinhas, no distante Alasca, debaixo das botas dos Patralhas. Enquanto todos se distraíam, um dos convidados de honra, Fantasma Manchado, punha a cabeça para funcionar sob a capa preta.

“Quer dizer que, sem a fábrica do Petinhas, automaticamente o esquema de Fatalôncio tomará conta de 100% do mercado de vasos...”

Manchado deu um puxãozinho na manga de Otávio Buldogue (o “amiguinho” que acabou largando Vagarida no mirante por motivo de força maior) e o chamou para conversar num canto discreto.

— Otávio, acho que essa jogada de desativar a produção do Petinhas não estava nos planos. O trato inicial era deixar Petinhas na dele e ganhar mercado com produtos melhores e mais baratos. Mas se Fatalôncio não tiver concorrência, será pior para todos.

— Mas e daí, Manchado? Monopólio por monopólio, é melhor que seja o nosso.

— Pelo menos os vasos do Petinhas são de boa qualidade e chegam a Pastópolis com facilidade. É verdade que são caros, mas se não forem mais fabricados, os consumidores vão sentir falta.

— É exatamente essa a idéia, irmão: atiçar o ódio do consumidor contra Petinhas até que os nossos produtos pareçam ser o máximo.

— Pode ser, Otávio. Só que, até o quanto eu saiba, Fatalôncio não tem nenhuma fábrica de vasos para suprir a demanda: o esquema depende de uma aliança misteriosa com os humanos e uma tal de “porta transdimensional”

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que ninguém ainda viu funcionando. Os preços irão para as nuvens, até o ponto em que a Organização não conseguirá mais fazer dinheiro com o negócio. O pior é que ninguém se dá conta do óbvio: de olho na promessa de grana fácil, todos os companheiros pulam e gritam como macacos amestrados.

Otávio pensou e pensou por um quarto de segundo antes de tranqüilizar Fantasma Manchado.

— Meu irmão, você não precisa se preocupar. O plano de Fatalôncio é 100 por cento perfeito! Já temos garantido o fornecimento de vasos, e eu posso assegurar que a porta transdimensional funciona mesmo: daqui a pouco o Professor Urubu mostrará o resultado a todos. Neste exato momento, nossos agentes já são muitos entre os humanos.

— Mesmo? — Venha ver isto. Otávio levou Manchado à suíte 36. Sobre a cama,

o corpo esfaqueado, coberto de sangue coagulado, de um pato disfarçado de mulher humana.

— A tática manjada de Evilásio Patão — suspirou Manchado. — Enfim nos livramos desse mala...

— Não disse que nossos homens já estavam em toda parte no mundo dos humanos? Através de nossa rede de informantes, seguimos Evilásio até um restaurante de estrada no interior do Brasil. Interceptamos a porta transdimensional que ele usaria para voltar a Pastópolis e enviamos nosso agente Carlos Navalha. Foi perfeito: Carlos deu de cara com Evilásio, fez o “serviço”, enviou o corpo através da porta e retornou ele próprio a Pastópolis.

— Como posso saber se Evilásio foi morto lá mesmo?

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— Com essa crueldade, só podia ser no mundo dos humanos.

Os dois saíam da malcheirosa suíte enquanto Otávio filosofava:

— Fantasma Manchado, você está no negócio há tempo suficiente para saber do básico: não podemos tolerar qualquer discórdia na Organização. Acima de qualquer dúvida, temos que estar sempre, sempre, sempre unidos em torno do mesmo ideal. Olhe para trás e veja o trágico destino de quem sai da linha...

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Capítulo 13

Fantasma Manchado, o diplomata de sempre, não

quis entrar em atrito com seu amigo Otávio Buldogue. Afinal, a noite era de comemoração, e um Otávio enfurecido seria capaz de virar Manchado pelo avesso com uma mão nas costas, se quisesse. Pedindo desculpas por sua própria desconfiança, Manchado reafirmou sua fidelidade à Organização para o que desse e viesse. A dupla trocou sorrisos e tapinhas nas costas e voltou ao salão de festas.

Pura falsidade. Otávio sabia que precisava ficar de olho em cada passo de Manchado. E Manchado não sabia qual tinha sido seu maior erro: abrir o bico contra a mudança de rota da Organização ou simplesmente ter entrado na Organização.

*****

Enquanto isso, Professor Urubu comandava o show via satélite.

— E então, Ronald... O que você tem a dizer, agora que o negócio de produção de vasos das Organizações Petinhas vai enfrentar concorrência braba?

— Seus bandidos miseráveis! Não seremos derrotados assim tão facilmente!

— Vire esse bico para lá, seu tolo. Eu só não mando matar o Petinhas agora mesmo porque ainda precisamos dele vivo e com saúde. Daqui a pouco um avião trará você e Petinhas de volta a Pastópolis, onde já haverá uma equipe médica de prontidão para cuidar do coroa. Quando ele voltar a si, será “convidado” a assinar

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um contrato vendendo sua fábrica de vasos à nossa Organização por apenas um centavo.

— Você está blefando, Urubu. Petinhas não venderia a fábrica nem sob tortura!

— E quem falou em tortura? Nós já temos provas suficientes de que Petinhas é o atual monopolista dos vasos... Um negócio que ninguém em Pastópolis é capaz de admitir que existe. Depois que jogarmos a lama no ventilador, em poucos meses a família Pato só terá um meio de vida: pedir esmolas na Avenida Cordélio Flatus, desde que a polícia de Coronel Contra não os prenda por vadiagem. Rê, rê, rê!

— Urubu, quando eu puser minhas mãos em você, não sobrará pena sobre pena!

— Calma! Ainda nem contei o que faremos com você, seu inútil. Quando você chegar a Pastópolis, eu e os companheiros da Organização pegaremos nossas facas afiadas e...

Nisso, a imagem do telão desapareceu. — Maldição! — esbravejou Urubu para o garoto

da mesa de controle. — Cadê o link de satélite? — Sei lá! Parece que estamos sofrendo um

bombardeio eletromagnético de alguma espécie estranha.

*****

Nem tanto: quando Coronel Contra, Muckey e Pluteta reinicializaram o sistema de rastreamento, cometeram o erro de plugar a tomada na tensão errada. Isto bagunçou de vez os sinais de todas as antenas num raio de 300 metros — incluindo a poderosa parabólica da Organização no prédio em frente.

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— Desisto, coronel — resignou-se Muckey. — Parece inútil captar qualquer sinal dos mafiosos.

— O que fazer então? Muckey deu uma olhada rápida para o lado,

encontrou Pluteta encostado na parede e chamou o coronel num canto.

— Temos que tirar a Vagarida da festa imediatamente. Só o Pluteta pode ir lá e chamar a Vagarida.

— Mas todos os mafiosos conhecem o Pluteta. Ele será transformado em churrasquinho!

— Isso depende da pontaria do pessoal, e já faz tempo que eu estou mesmo a fim de me livrar do Pluteta...

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Capítulo 14

Os mafiosos estavam em silêncio esperando o

restabelecimento do link de satélite. Enquanto a equipe técnica arrancava as penas, Coronel Contra e Muckey preparavam Pluteta para entrar no hotel. Um disfarce tão obviamente manjado que o pessoal da Organização não ousaria desconfiar: Pluteta atravessaria a rua e tocaria a campainha vestido de entregador de pizza.

— Tem certeza de que dará certo, Muckey? — Claro que sim. Para qualquer eventualidade, há

uma pistola dentro da caixa da pizza. Pistola? Conversando com seus botões, enquanto

descia a escada do prédio, Pluteta acabou tendo uma idéia muito melhor:

“Cansei de ficar sempre em segundo plano nessas operações do Muckey. Chegou a minha vez de me dar bem na parada! Não só vou tirar a Vagarida lá de dentro, como vou tocar o rebu na festa. Rê, rê, rê!”

Conforme o combinado, Pluteta saiu para dar uma volta de bicicleta em torno do quarteirão, só para disfarçar antes de chegar ao hotel. Longe das vistas de todos, Pluteta tirou sua carta da manga — ou melhor, seu amendoim mágico do chapéu. Plim! Lá estava Superpluteta pronto para mais uma missão heróica.

Superpluteta acionou seu poder de vôo, entrou num bueiro a 200 por hora e buscou uma saída para o salão de festas. Acertou em cheio: saiu bem debaixo do palco onde Professor Urubu, arrancando as penas, esperava a solução técnica que não vinha.

— Oi, Professor Urubu! Quanto tempo, hein?

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O super-herói segurou Urubu pelo pescoço, deixando o vilão roxo de falta de ar. Quinhentos gângsteres sacaram suas armas.

*****

Enquanto isso, no mundo dos humanos... — Por que um trio? Nossa turma só trabalha em

duplas, sempre trabalhou em duplas. Não entendo como pode ser diferente agora.

— Segurança, Honório, segurança — disse Norberto Bicudo. — Cada um de nós vigia os outros dois. Neste mundo não se pode confiar nem na própria sombra.

— E, afinal, vocês pensam que eu penso que nós estamos confortáveis aqui, num vagão de trem, comendo poeira, engaiolados como... aves para o matadouro?

— Ué? Nós somos aves, Teddy! — Mas nada me convence de que esta não seja

uma missão suicida. No interiorzão, a mil quilômetros da porta transdimensional mais próxima, e com os homens da Organização à solta por aí... O buraco é mais embaixo. Querem nos fazer de iscas vivas para capturar o Fatalôncio.

— Deixe de besteira, Honório! E continue falando e falando desse jeito, até que os humanos enxeridos acabam encontrando a gente. Se os humanos souberem que nós existimos, todos saem perdendo.

— Ainda não entendi por quê... — Forças ocultas, meu caro. Nem eu sei. E é

melhor nem querer saber.

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Capítulo 15

— Abaixem essas armas, seus estúpidos! Querem

me matar? — grasnou Professor Urubu no fiapo de voz que lhe restava.

Superpluteta, sorridente, ergueu o professor à vista de todos e anunciou com sua voz poderosa:

— Não quero machucar ninguém. Só quero saber uma coisa: onde está a Vagarida?

Os gângsteres, ainda brandindo seus trabucos, se entreolharam sem entender direito a pergunta. De fato, ninguém tinha visto Vagarida na festa.

— É duro ter que encarar uma crise de amnésia coletiva. Talvez isto refresque a memória de vocês...

Superpluteta disparou sua visão de calor no meio do salão. Fez-se o pânico.

*****

Enquanto isso, no Clube Feminino, até que enfim estava encerrado o jogo de canastra. Vagarida se despediu das amigas afobadamente, o que causou muita estranheza. Anabela quis dar uma de boazinha:

— Deixe que eu te levo para casa, Vagarida. — Não é preciso. Eu pego um táxi. Na verdade, de onde estava, Vagarida poderia ir a

pé ao Hotel dos Frangos com facilidade. Mas Anabela não largava de seu pé.

— Tem certeza? Olha que no caminho eu te conto todos os babados da colônia de férias da Associação de

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Tricô de Pastópolis! Você nem sabe quem ficou com quem...

— Amanhã de manhã você me conta. Pode ser, amiga? — disse Vagarida, com a cara mais falsa do mundo.

— Não! Às seis horas eu tenho passagem marcada para Grasnópolis, e depois eu posso te levar lá em casa para a gente botar a conversa mais em dia e...

Vagarida pôs os miolos para funcionar e teve uma idéia brilhante:

— Pensando melhor, Anabela... Quer ir ao bar do Hotel dos Frangos para um último drinque antes de voltar para casa?

*****

Otávio Buldogue, alheio ao barraco armado no salão de festas, admirava na entrada do armário de vassouras do quinto andar o tesouro máximo da Organização: a porta transdimensional.

— E pensar que, com esse botãozinho, abrem-se as porteiras para o mundo dos humanos...

Como uma criança curiosa, Otávio pressionou o botão vermelho “Transporte”. O batente da porta começou a emitir uma luz verde piscante. Do interior do armário saía uma estranha fumaça esbranquiçada.

Então surgiu no fundo do corredor uma multidão de bandidos fugindo dos poderes de Superpluteta com o ímpeto de um estouro de boiada. Otávio não teve tempo de se desviar da massa humana. Ele e dois companheiros foram empurrados porta adentro.

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Capítulo 16

Enquanto os mafiosos mais procurados de

Pastópolis saíam correndo do Hotel dos Frangos, Anabela e Vagarida acabavam de chegar. As duas garotas custaram a entender por que a galera corria pelas ruas como um enxame de formigas bêbadas. Enquanto encostava o carro no meio-fio em frente à porta do hotel, Anabela perguntou:

— Ué? O que é que está havendo no Hotel dos Frangos?

— Sei lá. Se for uma festa, já acabou. De repente, um dos gângsteres apavorados,

correndo mais que um Ben Johnson entupido de anabolizantes, deu de cara com o carro de Anabela e mergulhou no banco de trás. Recomposto em um microssegundo, ele rosnou:

— Pé na tábua, rápido! — Tá pensando que isto aqui é um táxi, malandro?

Vai se... O sujeito encostou sua arma na nuca de Anabela: — Não se faça de engraçadinha, garota! Estrada de

Grasnópolis, já. Vagarida olhou discretamente para trás e

reconheceu o bandido. Eufrosino Fuinha, um “amigo” de outros carnavais. Não pôde conter o sorriso discreto. Se alguma mulher fosse mandada para o inferno, não seria ela.

*****

— Eu sabia que o Pluteta era feio, mas nem tanto... — filosofou Muckey, com grande surpresa, ao ver

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da janela a fuga dos mafiosos — Foi só ele entrar na festinha que tudo mundo saiu correndo em pânico...

— Não sei como ele fez isso, mas este é o momento certo para invadir o recinto. — Coronel Contra pôs duas armas na cintura e outra sob a perna da calça.

— Mas ainda não temos provas contra o bando. — Temos, sim. Se isso não é perturbação da

ordem pública, o que é, então? Muckey deu uma gargalhada de satisfação. Os dois

desceram correndo e atravessaram a rua. Enquanto isso, no salão de festas, entre as cadeiras reviradas, sobraram apenas o Professor Urubu e o triunfante Superpluteta.

— Largue-me, seu vira-lata superdesenvolvido! Já disse que nunca vi mais gorda essa tal de Vagarida!

— E o que você diria se eu queimasse cada uma de suas penas, Professor? Iac! Iac! Iac!

Nisso, o poder de Superpluteta se esgota repentinamente. Pluteta, de volta ao normal, larga o Professor Urubu de cabeça no chão. O cientista do mal desmaia, sem saber o que houve. O segredo do super-herói estava mantido. Muckey e Contra entram no salão.

— Muito bem, Pluteta! — disse Muckey. — Isto é que eu chamo de trabalho bem feito.

— Q-q-quem, eu? Não fiz nada de mais! Coronel Contra cumprimentou Pluteta e examinou

Urubu. Estava vivo. — Muckey, mande fazer um cerco policial em

torno do hotel. E chame uma ambulância. Este meliante tem que estar muito saudável para dizer à polícia tudo que sabe...

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Capítulo 17

Muckey e Coronel Contra não tiveram o menor

trabalho para levar Professor Urubu para o xadrez e deter os mafiosos que não conseguiram fugir a tempo do Hotel dos Frangos. É claro, ninguém tinha a menor idéia de que aquele armário de vassouras do quinto andar ocultava a misteriosa porta transdimensional, que levara Otávio Buldogue e dois comparsas para lugar incerto e não sabido.

Teriam os bandidos caído num buraco negro entre Pastópolis e a dimensão dos humanos? Será que a porta transdimensional de destino estava desativada por falta de luz? Pouco provável. Em questão de segundos, o trio de malfeitores foi rematerializado num barril num vagão de trem em movimento. Quer dizer: o trio foi praticamente cuspido pelo barril em direção a um carregamento de engradados de patos.

— Ué, chefe? Não sabia que o Hotel dos Frangos tinha todo esse estoque de patos vivos...

— Não estamos mais no hotel, seu palerma! — esclareceu Otávio. — Na verdade, não estamos mais em Pastópolis. Acabamos de ser enviados para algum lugar no mundo dos humanos!

— Isso é grave? — perguntou Elpídio Labrador. — Não sei. Alguns companheiros da Organização

já estão neste mundo, mas não tenho a menor idéia de onde eles possam estar.

— Como não? Eles também não passaram pela tal porta?

— Passaram, mas não por qualquer uma. Em Pastópolis há duas portas em atividade: uma no hotel, outra no laboratório do Professor Urubu. Do lado de cá,

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não sei quantas portas existem, mas teoricamente é possível ter acesso instantâneo a qualquer canal transdimensional. Só que a porta do hotel não estava ajustada para nenhuma porta específica... Em resumo: estamos perdidos!

— Mas eu sei como sair dessa: é só voltar a Pastópolis pelo mesmo caminho! — disse o afobadinho Elpídio. — Pro barril, rapazes!

— Não faça isso, idiota! Insensível aos protestos de Otávio Buldogue, o

meliante deu um salto e mergulhou de cabeça no barril. Otávio ainda tentou segurá-lo pelas calças, mas foi tarde: o corpo de Elpídio passou até a cintura para cima, quando a transferência foi subitamente interrompida.

— O que a gente faz agora, chefe? As pernas de Elpídio, para fora do barril, se

debatiam em desespero. Não adiantava empurrar nem puxar: alguma falha no sistema de transporte transdimensional fez com que metade do corpo ficasse em Pastópolis, o resto no mundo dos humanos. Para os ouvidos de Otávio, ainda bem que a metade xingadora ficou bem longe.

Enquanto isso, do meio dos engradados de patos a caminho do matadouro, surge um trio de patos vestidos, inteligentes e armados até os dentes... Se tivessem dentes, é claro.

— Otávio Buldogue, Nicanor Furão, metade inferior de Elpídio Labrador... — disse Honório Bastos. — A vida no mundo dos humanos não é para amadores. Ajoelhem-se e prestem reverência, ou digam adeus às suas existências miseráveis!

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Capítulo 18

No sacolejante vagão ferroviário, o destemido

Otávio Buldogue sacou sua arma e deu um passo à frente, desafiando as aves desafiadoras. O clima era de duelo de faroeste. O primeiro que piscasse levaria chumbo.

— Não se faça de engraçadinho, Honório. Eu sei muito bem quem você é e o que você faz por aqui, portanto...

Nisso, alheia a tudo, a metade inferior de Elpídio continuava dando sinais de desespero, até que o barril tombou e começou a andar como uma barata tonta. Honório abriu fogo contra o barril. Nenhum efeito. Otávio riu da desgraça de Honório.

— Arrá! Pelo visto, você anda comprando armas no mundo dos humanos sem saber exatamente para que servem... Tome isto!

O tiro de Otávio acertou o pé de Honório, que respondeu com mais tiros para todos os lados. Dezenas de patos (os normais, do mundo dos humanos, não os de Pastópolis) morreram na hora; o piso do vagão ficou furado como uma peneira. Mas as balas nem fizeram cócegas nos mafiosos pastopolenses.

Honório e seus comparsas, acuados, deram passinhos tímidos para trás. Enquanto isso, Elpídio continuava na pior posição possível entre um mundo e outro.

*****

— Fantasma Manchado, tire-me daqui!!!!!

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Mesmo considerando sua situação delicada (para dizer o mínimo), Elpídio tinha a intuição de que Fantasma Manchado ainda estava por perto, escondido numa das centenas de suítes do Hotel dos Frangos. Errado. Àquela altura, Fantasma tinha encontrado uma passagem secreta para a rede de esgotos. Mas os gritos de Elpídio chamaram a atenção de Cremilson Bicolargo, um policial que vasculhava o hotel em busca de pistas da Organização.

— Mãos ao alto, seu facínora! Não tente nem dar um passo em falso!

— Se eu pudesse dar um passo, não estaria entalado nesta porta maldita!

O tira, sentindo cheiro de emboscada, se aproximou lentamente. Elpídio tentou negociar:

— Eu me rendo! Mas tire-me daqui como puder! Minha metade inferior está presa do outro lado desta maldita porta transdimensional que...

Antes que pudesse concluir, o elevador chegou trazendo Muckey e Coronel Contra. Ao ver a cena, Muckey exclamou:

— Estou vendo que tem gente aqui sabendo demais...

— É mesmo! — disse Cremilson. — Esse sujeito deve conhecer um bocado da Organização.

— E quem falou de Organização, seu babaca? — vociferou Coronel Contra. — Você, Cremilson, é que meteu o focinho onde não devia!

— M-m-m-mas eu só estava cumprindo meu dever e...

Coronel Contra, com a habilidade de um caubói de filme, sacou sua arma em um microssegundo e acertou um tiro na testa de Cremilson. Elpídio ficou em estado de choque.

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— É a primeira vez que eu mato em serviço — disse o coronel, observando os últimos movimentos do corpo ensangüentado. — Mas você bem sabe que é estritamente necessário...

— Não faz mal, Coronel. Diga que foi uma “troca de tiros com malfeitores” e mande organizar um enterro de herói para Cremilson.

Para concluir o serviço, Muckey virou de costas, olhou nos olhos de Elpídio e tirou seu próprio revólver do bolso do paletó.

— Não, Muckey! Poupe-me! — Você pensa que eu vou te matar, assim, sem

mais nem menos? Você é um ser tão desprezivelmente azarado que não merece uma gota de sangue. E se for para revelar nosso segredinho, menos ainda. Tome isto!

Muckey deu uma dúzia de tiros na chave de força da porta transdimensional. Em Pastópolis e no mundo dos humanos, as metades de Elpídio desapareceram em nuvens de fumaça. Nunca mais se ouviu falar de Elpídio Labrador.

*****

Enquanto isso, no Alasca... — Já que Professor Urubu não manda notícias, é

hora do plano B — disse Vovô Patralha. — Vamos levar Petinhas e Ronald de volta a Pastópolis, onde o Professor certamente vai dar um “trato legal” nesses dois patos pulguentos...

— Na minha humilde opinião, eu mataria os dois agora mesmo, mas já que o senhor insiste... — opinou um Patralha “genérico” — Só dependemos do Fatalôncio mandar a grana para o transporte, pois o dinheiro da operação acabou.

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— Boa pergunta! — disse outro Patralha. — O combustível do avião acabou, o estoque da fábrica está a zero e Fatalôncio nunca mais fez contato...

— Por que vocês não assaltam um posto de gasolina, meninos?

— Aqui, no meio do nada? De repente, Maga Magalógica, montada em sua

vassoura voadora, entra pela clarabóia: — Não se preocupem com isso, seu bando de

palermas. Em troca da moedinha do Petinhas, vocês terão toda a minha ajuda...

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Capítulo 19

A família Patralha não gostava muito de Maga

Magalógica, mas todos ficaram felizes com a presença inesperada da feiticeira naquelas terras distantes. Uma aliança de interesses era tudo que os dois lados mais precisavam para esfolar de vez o velho pato.

— A propósito, meninos... Nunca vi uma operação criminosa tão burra nos meus 427 anos de vida. Onde já se viu armar uma emboscada para um velho decrépito neste fim de mundo?

— Você não entendeu, Maga. Desta vez o plano não é só para levar a grana do velho: temos uma aliança com o Fatalôncio e a Organizaç...

— Cale a boca, seu demente! — Vovô Patralha acertou uma bengalada na cabeça do neto indiscreto. — Assim você está entregando todo o plano!

— Não precisa se preocupar, Vovô. Eu já vi tudo em minha bola de cristal: este campo de petróleo é um disfarce para a fábrica de vasos sanitários. E sei muito bem como o plano pode me ajudar. Sem mais demora, vamos levar os patos de volta para terras mais quentes...

— Como? — Sem problemas; eu dou meu jeito. Maga Magalógica, num gesto de bailarina do

Bolshoi, ergueu sua varinha de condão e espalhou estrelinhas pelo ar. No segundo seguinte, Maga, Vovô, mais cinco Patralhas e os (literalmente) amarrados Ronald e Petinhas reapareceram no escritório do zilionário dentro da Caixa-forte.

— Maneiro! — disse um dos Patralhas. — Isso é melhor do que a porta transdimensional!

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— Nem tanto. Para manter esse poder todo, eu preciso da moedinha de sorte do Petinhas, desde que eu possa tirar uns obstáculos do caminho.

— Então é agora que a gente mata o velho? — Ainda não, estúpido. Temos um trabalho a

fazer. Dito e feito. Vinte seguranças surgiram na porta da

sala, armados para a guerra. Quem desse um pio viraria hambúrguer. Magalógica ficou com medo. E, daquela vez, não estava blefando.

*****

Enquanto isso, num vagão de trem entre o nada e o lugar nenhum, Otávio Buldogue condenava sumariamente Honório Bastos a um fim trágico.

— Agora é sua vez de fazer as últimas orações, Honório. Nossa missão aqui é não deixar pedra sobre pedra... ou melhor, pena sobre pena.

— Não se eu puder impedir! Honório, num movimento digno de filmes de

kung-fu, saltou sobre a cabeça de Otávio. Num movimento instintivo, Otávio puxou o gatilho, acertando mortalmente seu comparsa Nicanor Furão. Àquela altura, Honório e seus companheiros aproveitaram a distração e fugiram para o teto do trem. Otávio, mesmo com aquele tamanhão todo, foi atrás.

— Voltem aqui, seus franguinhos subdesenvolvidos! Quero abatê-los com minhas mãos nuas!

A perseguição se estendeu por uma dúzia de vagões. Honório, que não era besta, observou uma

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ambulância no cruzamento esperando o trem passar, e gritou para seus comparsas:

— Boa sorte, amigos! Tchau, Otávio otário! Honório abriu as asas e saltou sobre o capô da

ambulância. Dentro da cabine, Fatalôncio sorriu de orelha a orelha:

— Pois é, Todd McLay... Mundo pequeno, o dos humanos. Quando você menos espera, o arquiinimigo da Organização aparece na sua frente.

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Capítulo 20

Honório Bastos cacarejou de medo ao encontrar

Fatalôncio no banco do carona da ambulância. Todd McLay levou um baita susto.

— Quem é esse frango mal nutrido, Fatalôncio? — Não se meta nisso, McLay. Negócios de ave

para ave. Fatalôncio botou a cabeça para fora da janela,

sacou sua arma e a apontou para Honório. O franguinho respondeu, como um caubói de filme: ergueu sua própria pistola e puxou o gatilho. Nem parou para pensar que aquela era a arma que só funcionava contra humanos. A bala atravessou Fatalôncio como se o pato fosse feito de vento, mas acertou mortalmente o peito de McLay.

— Quaaaaac! Fatalôncio, em ato reflexo, meteu uma bala no

meio da testa de Honório. Agora eram dois os cadáveres que Fatalôncio tinha que fazer sumir o mais rápido possível. E o trem desaparecia no horizonte, levando as pistas da inesperada presença de Honório no mundo dos humanos.

— Buááááá! Quero voltar pra casa! Buááááá!

*****

Em Pastópolis, Maga Magalógica e os Patralhas marchavam para fora do escritório de Petinhas, sob a mira das metralhadoras dos seguranças.

— E aí, Maga? Que tal fazer de novo aquele truquezinho para nos tirar daqui?

— Cale-se, seu Patralha palerma!

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Meia hora depois, Manuel Corvo, o médico particular de Petinhas, chegou ao gabinete para ver o estado do ancião zaralhonário. Ronald, preocupado, observava.

— Afinal, doutor, isso é grave? — Nada de mais. Pressão baixa, temperatura

caindo, batimentos quase sumindo... Só tenho uma coisa a fazer.

O médico desligou as tomadas de todos os aparelhos. Petinhas morreu na hora. Ronald ficou de queixo caído.

— M-m-m-mas... Como ousa, seu pulha? Meu único tio zaralhonário, e você...

— Calma, Ronald! Não é nada disso que você está pensando!

Manuel Corvo tirou a máscara. Era o próprio Petinhas disfarçado.

— Rá, rá, rá! Preguei uma peça em todo mundo! Esses Patralhas ainda têm muito o que aprender...

— Então eu fiquei preocupado todo esse tempo à toda? E qual é o corpo que está nessa maca?

O Petinhas verdadeiro tirou a máscara do Petinhas falso. Eram os restos mortais do verdadeiro doutor Corvo.

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Capítulo 21

— Titio! Isso é brincadeira que se faça? — grasnou

Ronald, revoltado por ter caído... hã... como um patinho. — Rê, rê, rê! Não está mais reconhecendo seu tio

num disfarce ridículo desses, rapaz? Agora que botei todo mundo num mato sem cachorro, posso agir à vontade.

— Mas precisava ter matado o velho doutor Corvo?

— Você não sabe de nada, Ronald. Basta dizer que, no mínimo, ele sabia demais sobre a operação...

Ronald se espantou mais uma vez. O que seu velho tio estaria tramando? Petinhas, vendo a dúvida nos olhos de seu sobrinho, disse:

— Venha comigo, patinho desmiolado. Tenho algo para lhe mostrar na caixa-forte.

— Eu, hein? Estou por aqui de tanto olhar suas montanhas de ouro.

— Desta vez é diferente, Ronald. Você realmente não viu nada ainda!

Ronald tinha certeza de que o velho estava caducando. Mas não poderia contrariá-lo: afinal, uma herança considerável estava em jogo. Petinhas, sob o peso da idade, abriu a porta do cofre com dificuldade, e mostrou o depósito de dinheiro. Estava totalmente vazio.

— Quaaaaaac! Para onde foi a sua grana, titio? — Lá no Alasca, de onde você acabou de vir! Você

não viu o que há debaixo da terra. — Então aquela era uma caixa-forte subterrânea

disfarçada de fábrica de vasos sanitários disfarçada de

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campo de petróleo... Brilhante idéia para confundir a Organização!

— Obrigado, Ronald. Mas a idéia não é minha: é do meu sócio exclusivo e especial.

— Quem? Nisso, Sovina McGrana entrou no cofre. — Estou meio surdo, mas acho que ouvi alguém

me chamar...

*****

Horas depois, sob as ordens de Eufrosino Fuinha, o carrinho de Anabela chega ao esconderijo campestre da Organização. Eufrosino era, para Vagarida, algo como um velho amigo. Mas o lugar, a pata leviana não conhecia.

— Ponham o carro na garagem, desçam e sigam minhas ordens! — rosnou Eufrosino, fingindo dar uma de valente.

— Acho melhor a gente seguir as ordens dele, amiga.

Anabela se assustou, mas Vagarida sabia que era apenas uma armação. Sob a mira da arma de Eufrosino, as duas entraram num enorme barracão, cheio de corredores labirínticos. No fim, uma portinha discreta. Lá dentro, o escritório de Fantasma Manchado.

— Eufrosino, muito obrigado por trazer Vagarida ao nosso convívio. Não sei se eu já lhe disse isso hoje, mas tenho que repetir: você é uma flor de pessoa. Huá, huá, huá, huá, huá!

A risada irritante de Fantasma Manchado estremeceu as paredes. Eufrosino agradeceu e saiu tão rapidamente quanto entrou. Na sala, o trio trocava olhares.

— O q-q-que você quer de mim, Fantasma?

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— Eu não quero nada de você, sua rameira inútil. Eu quero você! É um absurdo que você tenha sido comida por metade da Organização, menos por mim.

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Capítulo 22

Vagarida olhou para os lados em busca de alguma

saída. A seu lado, sua amiga Anabela a olhava como se tivesse encontrado o monstro do Lago Ness. A sua frente, Fantasma Manchado fazia sua tradicional pose de todo-poderoso. O que fazer?

— M-m-m-mas... Eles eram meus amigos, e você nunca me foi apresent...

— Conversa mole! — Fantasma quase quebrou a escrivaninha com sua mão pesada, fazendo um grande estrondo. — Você é uma marafona por vocação. Seu negócio é esperar o Ronald virar as costas, chamar os rapazes da Organização e dar, dar, dar! Estou me preparando para tomar conta de Pastópolis de uma vez por todas... E se você não cooperar, será o fim dos seus dias na face da Terra!

Vagarida deu dois passos para trás. — Não vou avisar de novo, Fantasma: eu não faço

nada dessas coisas por obrigação. Não importa se o cara é poderoso. Com você não vai ser diferente...

— É o que veremos! Fantasma Manchado, como um morcego, voou

sobre Vagarida. Os dois se atracaram numa briga feroz. Anabela, subitamente, deixou a covardia de lado e acertou uma sapatada na cabeça de Fantasma. Só serviu para irritar o bandido mais ainda.

— Como ousa, sua vaca? Anabela atirou seu outro sapato bem no meio da

testa de Fantasma. Vagarida aproveitou a distração, pôs-se de pé e tirou do bolso secreto do vestido sua arma secreta: a pistola paralisante de seus tempos de super-heroína.

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— Fantasma Manchado, fique quietinho aí e não mexa uma sobrancelha. Agora é a minha vez de acertar contas...

Nisso, derrubaram a porta da sala. Surgiram trinta homens da Organização.

— Vagarida, deixe o acerto de contas com a gente. Vocês duas podem ir embora.

A dupla de moças não acreditava no que via. A Organização armou um golpe contra seu próprio parceiro! Vagarida escondeu a pistola rapidamente, viu Fantasma ser rendido com uma metralhadora na nuca e ouviu o agradecimento de um de seus “amigos”:

— Parabéns, Vagarida! Só você para derrubar Fantasma Manchado. Lá na cadeia, Professor Urubu vai gostar de saber disso...

*****

Enquanto o pacto dos bandidos fazia água, a aliança de Petinhas com um arquiinimigo ficava mais clara para Ronald.

— Sobrinho, posso compreender por que você fica assim tão assustado, mas eu e Sovina McGrana nos cansamos de brigar. Estamos velhos demais para arranjar inimigos, justo agora que nossas fortunas estão em jogo...

— Hein? — Concorrência, rapaz — completou Sovina. —

A era das caixas-fortes e dos banhos de dinheiro está chegando ao fim. Agora uma meia dúzia de espertalhões fica jogando dinheiro para lá e para cá via Internet, e os magnatas da velha guarda acabam ficando para trás.

Petinhas continuou:

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— Além disso, o monopólio das Indústrias Petinhas na fabricação de vasos sanitários está indo para o brejo. Nossa equipe de agentes secretos descobriu que os planos da porta transdimensional vazaram para duas grandes quadrilhas... E pelo menos uma delas está envolvida até o pescoço com a máfia dos humanos. Daí para um esquema transdimensional de tráfico de vasos, é um pulinho.

— E qual é o seu plano de contra-ataque? — Já que sabemos que Fatalôncio é o verdadeiro

cérebro da operação, temos que partir para o tudo ou nada: destruir todas as portas transdimensionais existentes, tendo o cuidado de deixar Fatalôncio no lado errado... O lado dos humanos, é claro. Tenho até pena do que pode acontecer com um pato falante sozinho no mundo dos humanos.

*****

Horas e horas de suor, e finalmente Fatalôncio terminou de enterrar os corpos de Todd McLay e Honório Bastos. Antes, Fatalôncio pegou a arma de Honório. Só restavam duas balas, mas era sua única defesa contra a xeretice dos humanos. Fatalôncio pensou, pensou e bolou um plano:

— Se eu subir numa árvore, esperar um trem passar e saltar sobre um vagão, há uma grande chance de eu achar o que Honório estava procurando. É isso!

A primeira parte deu certo. Honório escalou a árvore rapidamente. Um tempão depois passou um trem. Fatalôncio se preparou, respirou fundo e saltou sobre um vagão de minério. Afundou como em areia movediça. Lá no fundo, quase sufocado, Fatalôncio se sentiu sugado por uma fonte de luz intensa e foi atirado de três metros de altura sobre um piso duro e gelado. Era o xadrez da

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delegacia central de Pastópolis, onde estavam detidos os mafiosos da confusão do Hotel dos Frangos.

— Que bom te ver, Fatalôncio! Tenho certeza de que os rapazes estavam com saudades suas. — disse Professor Urubu.

Fatalôncio, meio grogue da queda, resmungou: — Não acredito... Ou aqueles remédios para

enxaqueca não me bateram bem, ou essa proliferação de portas transdimensionais está saindo do controle...

— Ih, pintou sujeira!

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Capítulo 23

Os homens da Organização, que lotavam a cela,

ficaram excitados com a aparição de Fatalôncio. — Oba! Uma passagem secreta! Vamos fugir

daqui, galera! Professor Urubu, branco de pavor, conteve os

bandidos. — Nãããão! Essa é uma porta transdimensional

para o mundo dos humanos, que ninguém sabe direito onde vai sair! É melhor ficar aqui na cela mesmo, que é mais seguro.

Fatalôncio limpou a poeira do paletó e disse: — Concordo totalmente, Urubu. Que bom que

pelo menos voltei à companhia de meus amigos de Pastópolis... Não agüentava mais a confusão lá do outro lado. Mas que raio de porta é essa que aparece numa carceragem?

— Foi mal, Fatalôncio... Resolvi experimentar uma nova e revolucionária porta móvel, que pode ser instantaneamente implantada em qualquer lugar. Só que ainda não resolvi o problema de “linha cruzada” entre uma porta e outra...

Fatalôncio agarrou Urubu pelo colarinho. — O quê? Quer dizer que eu poderia ter sido

mandado para qualquer mato sem cachorro? E eu nem sequer sabia que estava entrando numa porta transdimensional!

— Epa! — disse algum chefete da Organização. — Como ousa falar assim com Professor Urubu, o nosso líder?

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— Tasca ele! — disse outro. — Esperem! Vocês não entenderam. Fatalôncio

ainda vai ser muito útil para nós. Não podemos fazer nenhuma de nossas megaoperações sem financiamento. E agora que Fantasma Manchado foi posto fora de combate...

— Hein????? — É isso aí, Fatalôncio. Eu nunca suportei aquele

magriço, que é inteligente, mas não sabe trabalhar em equipe. Muito menos na nossa equipe! Tramei tudo com Otávio Buldogue e deixei todos os rapazes de prontidão para garfar o Manchado.

— Espere aí! Isso não estava em nossos planos. — Muito menos o seu sumiço e o de Otávio

Buldogue... A propósito, por onde anda aquele vira-lata superdesenvolvido?

Dito isso, foi a vez de Otávio, todo tingido de sangue, despencar ruidosamente na cela.

— Que droga! — gritou Urubu. — Essa porta transdimensional saiu do controle! Tenho que desligar isso antes que apareçam humanos xeretas!

O burburinho na cela chamou a atenção de Coronel Contra, que veio correndo ver o que acontecia.

— Que bagunça é essa? Na minha delegacia, prisioneiro só tem direito a ficar calad... Fatalôncio? Otávio? Como vocês entraram aqui?

— Oi, Coronel — disse Otávio. — Digamos que a gente fez como o cachorro da piada, que entrou na igreja porque a porta estava aberta. Rê, rê, rê, rê, rê!

— Não me venha com gracinhas! Tratem de explicar como arrumaram esse horário “alternativo” de visita, ou os dois vão fazer companhia a seus amigos até o juiz Décio Coruja bater o martelo.

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Fatalôncio se ergueu, metendo a mão no bolso. — Sem problemas, Coronel. Tenho uns

documentos que podem interessar muito ao reforço da ceia de Natal da briosa corporação policial pastopolense...

— Mande! Preciso examinar isso minuciosamente. Fatalôncio, por entre as grades, encheu a mão

estendida de Coronel Contra com um rolo de cédulas das grandes. Para o magnata, era um trocadinho. Para o Coronel, mais de oito meses de salário. A porta da cela se abriu em segundos. Fatalôncio saiu lépido e fagueiro; Otávio o acompanhou, até ser barrado pela espingarda do Coronel.

— Você fica, Otávio. — Ora, vá pastar, Coronel! Fatalôncio pagou

muito bem pago por nós dois e... — O quê? Como ousa acusar de corrupção um

policial honrado como eu, seu verme? Dito isso, Coronel acertou uma coronhada na

barriga de Otávio. Sob as vistas de todos, Coronel brandiu a espingarda como um machado e continuou batendo e batendo. O mafioso rolava de dor, mas o chefe da polícia parecia disposto a transformar Otávio em hambúrguer de cachorro. Até os mais durões dos homens da Organização ficaram chocados com a crueldade.

— E tem mais, Otávio: policial, além de ter que ser honesto, tem que se divertir um pouco de vez em quando.

*****

Ronald nunca tinha visto seu tio engendrar um plano tão esquisito. Mas o inventor das portas transdimensionais, Professor Padral, chegou à Caixa-forte para as devidas explicações:

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— Petinhas, Sovina, Ronald, já tenho dois inventos prontos: um localizador de portas transdimensionais, para sabermos exatamente por onde os meliantes estão passando, e um neutralizador de canais, para interromper instantaneamente a transmissão de objetos entre uma porta e outra.

— E como eles são usados? — perguntou Ronald. — Primeiro instalamos esta antena de radar no seu

carro... — Logo no meu carro? — Fique quieto, sobrinho desmiolado! — grasnou

Petinhas. — É só pelo tempo que durar a operação de busca.

— ...E então seguimos o sinal para encontrar as portas transdimensionais ativas num raio de 50 quilômetros. Uma vez localizada uma porta, nós nos aproximamos dela e apontamos esta pistola de raios neutralizadores. Os raios mandam o canal transdimensional para uma espécie de buraco negro: daí em diante, quem entrar na porta não consegue mais sair. Não é brilhante?

Enquanto Petinhas e Ronald examinavam os planos dos inventos, Sovina McGrana murmurava satisfeito:

— Consegui tudo que precisava. Que otário! Esse Petinhas precisa aprender a não confiar nem na própria sombra.

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Capítulo 24

Ronald, alheio ao entusiasmo de seu tio diante dos

novos planos de Professor Padral e da aliança com Sovina McGrana, pediu licença para se retirar.

— Desculpe, titio, mas estou muito cansado. Este foi o dia mais corrido da minha vida, daqui a pouco já vai amanhecer, e faz um tempinho que não vejo Vagarida e os meninos.

Petinhas estava tão dominado pela febre do ouro que não fez oposição. Com um gesto, dispensou o sobrinho. Ronald desceu correndo as escadas da caixa-forte, pegou seu carrinho antiquado e voltou para casa em alta velocidade. Enquanto isso, pensava:

“Esse Sovina quer fazer Petinhas de trouxa. Não posso deixar que um picareta desses ponha a perder toda a fortuna que um dia será minha. Tenho que ficar de olho no coroa.”

Em casa, enquanto seus três sobrinhos dormiam o sono dos justos, Ronald pegou o elevador secreto do armário e desceu à base secreta de Superbicudo, o maior super-herói de Pastópolis (que, por acaso, era o próprio Ronald disfarçado). Ligou o cérebro eletrônico e consultou todos os dados existentes sobre Sovina McGrana.

— É incrível. Todo mundo está careca de saber que Sovina e os Patralhas são aliados, mas ele jamais foi acusado de um crime em qualquer lugar do mundo. Que tremenda fraude!

Nisso, Ronald ouve a campainha do despertador de seus sobrinhos. Provavelmente eles tinham que levantar cedo para algum acampamento. No painel de controle da base de operações, Ronald pressionou o botão “Bilhete

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Instantâneo” e — plift! — caiu sobre a mesa da cozinha um bilhete: “FUI VISITAR O CAPITÃO MORBIDUQUE. NÃO ME ESPEREM PARA O ALMOÇO. — RONALD”.

Esse era um álibi infalível. Só Ronald sabia que o velho Morbiduque estava morto.

*****

— Agora é a nossa vez de ir embora, Petinhas. Vou pegar uma carona com o Professor até o hotel.

— OK, Sovina. Durma com os anjos. Professor Padral e Sovina McGrana, tão logo

embarcaram no carro e saíram da área de alcance dos microfones da caixa-forte, botaram a conversa mais em dia.

— Sovina, o senhor acha que esse plano vai dar certo?

— Certamente que sim. Você me dá os equipamentos transdimensionais, eu neutralizo todas as portas dos outros, abro as minhas portas exclusivas, os meus vasos sanitários baratos entram no mercado e Petinhas será um ex-zilionário.

— E da minha parte, o senhor esqueceu? — Não, Padral. Você será regiamente

recompensado. Sabe aquele seu plano de dissolução da diferença reprodutiva entre as espécies?

— Ã-hã. — Eu prometo que você vai ter todo o dinheiro

que precisar para realizar sua façanha bioquímica, e muitas outras... Logo que mandarmos Petinhas grasnar de raiva no asilo de mendigos de Pastópolis.

Padral esfregou as mãos de satisfação. Enfim seu talento de cientista recebia o reconhecimento devido. Sovina continuou:

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— Só mais uma coisa: deixe-me na delegacia central de Pastópolis. Tenho uns assuntos a acertar.

— Deixe comigo.

*****

Que pena que Ronald estava longe e não podia ouvir a conversa da dupla. Pelo contrário: ele teve que esperar pacientemente pela saída dos sobrinhos antes de tirar o carro da garagem — aparentemente, era o carro de sempre, mas por baixo do capô se escondia o arsenal de truques de Superbicudo. Por ironia do destino, desenvolvidos e montados pelo Professor Padral, o vira-casaca.

— Este radar me dirá exatamente onde se encontram Sovina e Padral. Se eu estiver na pista certa, Sovina está nas imediações da delegacia central...

Enquanto Ronald dirigia, a seu lado vinha o carro de Anabela, com Vagarida no banco do carona. As duas ainda estavam assustadas com toda a confusão da noite e com o golpe contra Fantasma Manchado. Ronald se esqueceu da espionagem, emparelhou e gritou:

— E aí, Anabela e Vagarida? Saíram cedo hoje, hein?

Vagarida levou um susto de deixar as penas em pé, mas forçou um sorriso de saudação. Anabela pensou rápido:

— É mesmo, Ronald... Vamos fazer um trabalho voluntário no Clube Feminino.

— Que legal, hein? Parabéns e boa sorte! Dito isso, uma limusine preta que vinha na

transversal parou no meio da rua, fechando o trânsito. Um

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sujeito de capa preta abriu a janela, apontou uma metralhadora e encheu de tiros os dois carros.

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Capítulo 25

— Rápido! Abaixem-se já, meninas! — grasnou

Ronald antes de se encolher atrás do painel de seu carro. Ronald esticou o braço, pegou no porta-luvas a

pistola de raios de Superbicudo, abriu a porta direita do carro e atirou na metralhadora. Enquanto o atirador misterioso se abaixava para pegar outra arma, foi a vez de o motorista da limusine abrir fogo contra o sobrinho de Petinhas.

— Salve-nos, Ronald! — gritavam Vagarida e Anabela.

Ronald voltou ao banco do motorista, acionou o botão “Hiper-Ultra-Turbo” (mais um dos truques de Superbicudo) e meteu pé na tábua. O carro de Ronald “estacionou” bem no meio da limusine, mas o assento ejetável salvou Ronald antes que os dois veículos se transformassem numa bola de fogo. As duas moças estavam perplexas. Ronald se recuperou da queda, limpou a poeira e esperou o fogo baixar para identificar os meliantes — ou o que restou deles.

— Como sempre, a Organização. Alguém aqui está sabendo demais...

Vagarida e Anabela se aproximaram de Ronald, pé ante pé, mas felizes com o desfecho.

— Meu herói! Você salvou nossas vidas! — disse Vagarida.

— Obrigado, Ronald! — disse Anabela. — A propósito... Que arma é essa que você usou? E que assento ejetável é esse? Parece até que o Superbicudo passou por aqui...

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Ronald, ao ouvir isso, sacou de seu bolso duas bolinhas e as atirou no chão com força. Uma fumaça cor-de-rosa derrubou as duas garotas, mas Ronald saiu correndo a tempo.

— Rê, rê, rê! Adoro as utilidades do Superbicudo! Quando elas acordarem, terão esquecido de tudo que se passou nas últimas 24 horas. Melhor assim.

*****

Numa das celas da carceragem de Pastópolis, Maga Magalógica e alguns Patralhas dividem o pouco espaço disponível. Maga tem seus poderes reduzidos e não consegue fazer nenhum truque para se livrar das grades. Porém, Maga conseguiu chamar telepaticamente um de seus corvos de estimação e enviar um bilhete para sua amiga Madame Minha. Quem sabe ela não conseguiria tirá-los de lá antes que o juiz Décio Coruja batesse o martelo?

— Maga! Seu corvo está de volta! — disse o velho, mas ainda esperto, Vovô Patralha.

O fiel corvo passou pela janelinha da cela com um bilhete no bico. Maga agradeceu ao pássaro, pegou o bilhete e o leu para os Patralhas:

— “Amiga Magalógica: Já estou com uma poção mágica pronta para tirar você e seus parceiros da cadeia. Como estou sabendo que o fofinho do Fantasma Manchado foi passado para trás, tenho certeza de que você também poderá me quebrar um grande galho: faça com que Professor Urubu corrija essa grande injustiça com o bandido mais adorável de Pastópolis. Com carinho, Madame Minha”.

Vovô Patralha se espantou: — O que tem a ver uma coisa com a outra?

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— Tudo. Madame Minha é apaixonada pelo Fantasma, e não está nem aí se ele não gosta dela. Coisa de mulher idiota...

— Não importa. Você não pode mexer uma palha para livrar a pele do Fantasma. Ordens do Professor Urubu.

— Mas ela é minha amiga, afinal... — Você sabe, Maga, que não há amizade entre

membros da Organização. Se Madame Minha nos ajudar, ela ajudará a Organização. Isso representa um pacto de morte. E aí ela deixa de ser amiga e passa a aliada.

— Desculpe, Vovô. Eu posso ser a maga mais picareta do mundo, mas prezo minha liberdade e minha amizade com Madame. Quero ser solta e quero ajudar Madame, ainda que isso me leve a bater de frente com a Organização!

— Ainda que isso a leve a perder a Moedinha para sempre?

Maga sentiu um gelo na espinha. O momento de pegar a Moedinha de Petinhas estava cada vez mais próximo. O que a poderia deter? Mas a bruxa número 1 de Pastópolis teve uma idéia.

— Já sei, Vovô. Madame Minha nos solta, a gente reabilita Fantasma, eu consigo a Moedinha e faço churrasquinho de Fantasma. Topa?

— Mas aí Madame não vai gostar nada de ser enganada.

— Pouco importa. Com o poder da Moedinha, Madame não poderá me ignorar: se não conquistá-la pela amizade, eu a conquistarei pelo temor. Rá, rá, rá, rá, rá!

Os olhos de Vovô brilharam através das lentes grossas.

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— Sim, isso parece brilhante. Mas sabe como é a Organização: primeiro o Professor Urubu tem que dar o OK.

Então se ouviu uma batida de bengala na grade da cela e uma voz rouca:

— Urubu? Quem precisa daquele saco de penas seqüelado? Já está tudo combinado, e Urubu é carta fora do baralho.

Todos se viraram. Era Sovina McGrana. — Sovina? O que você está fazendo aqui? A esta

hora você devia estar lá na África do Sul contando seu rico dinheirinho.

— Tive uma idéia melhor, Vovô. Ou os Patralhas não querem meter a mão na grana do Petinhas?

— Óbvio. — Então é melhor se apressar. Quando meu

esquema de portas transdimensionais entrar em operação, a fortuna do coroa vai para o brejo.

— Os chefes da Organização disseram a mesma coisa.

— Esqueçam a Organização! Eu poderei neutralizar todas as portas transdimensionais daquele bando de patetas. Quando vocês tiverem todo o dinheiro de Petinhas que conseguirem carregar, poderão comprar todos os homens da Organização, um por um. E Maga terá a cobiçada Moedinha de uma vez por todas.

— Isso parece bom demais para ser verdade — disse Maga. — O que o senhor exige em troca?

— Nada de mais. Só o testamento do velho Petinhas.

Ronald, que ouvia tudo através do megamicrofone de Superbicudo, grasnou de raiva:

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— Assim não há condições! Agora, só matando o Sovina.

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Capítulo 26

— Mas, Sovina McGrana, por que o senhor quer o

testamento do Petinhas? — perguntou Maga Magalógica. — O senhor poderia embolsar 90 por cento da grana da Caixa-forte e se tornar o pato mais rico do mundo...

— Não me subestime, pata otária! Primeiro, eu não sou ladrão. Já estou riquíssimo, não preciso do dinheiro de Petinhas e nem quero sujar minhas mãos naquilo. Eu quero é o poder daquele bicudo ordinário. Segundo, eu vou bancar a operação, centavo por centavo, e vocês não têm o que discutir! Terceiro, a bufunfa já não está mais na Caixa-forte há tempos. Eu vi com meus próprios olhos aquele depósito de dinheiro completamente vazio...

Os Patralhas se entreolharam, boquiabertos. Vovô perguntou:

— Hein? Como é que você sabe? — Eu fiz uma aliança com Petinhas com o

pretexto de deter a proliferação de portas transdimensionais. Mas meu verdadeiro objetivo era fazer um acordo em separado com Professor Padral e conseguir os planos de seus novos inventos: o criador de portas instantâneas e o neutralizador de portas ativas. Assim, só eu terei o controle do transporte entre dimensões! Aí é que Petinhas vai ficar pobre mesmo.

— E a bufunfa, Sovina? — Está escondida no subsolo do Alasca,

disfarçada numa fábrica de vasos sanitários disfarçada em campo de petróleo...

Os Patralhas quase caíram de costas. Vovô rosnou:

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— O quê? Quer dizer que a gente faz um pacto com o escroque do Urubu, se mata naquele fim de mundo do Alasca... E tudo não passou de uma pista falsa?

— Não olhe para mim desse jeito, Vovô. Eu juro que não sabia de nada antes que o próprio Petinhas me contasse. Palavra de pato zaralhonário.

— A propósito, Sovina... Por que é que nós teríamos que confiar no senhor? — perguntou Magalógica. — Será que o senhor é aliado mesmo de Petinhas e veio aqui confundir nossas cabeças?

— Realmente, minha cara, nem você nem os Patralhas têm a menor obrigação de confiar em mim. Mas em quem vocês podem confiar? O Urubu, na primeira chance, trairá Fatalôncio do mesmo jeito que traiu Fantasma Manchado. Como gesto de boa-vontade, farei com que vocês saiam da cadeia pela porta da frente, com ficha limpa. Lá fora, sim, vocês decidirão o que fazer: ou seguem seus caminhos como se nada tivesse acontecido, ou cometem o ato de extrema inteligência de me apoiar neste plano infalível. Vocês é que sabem. Qualquer coisa, me procurem.

Sovina ergueu sua bengala e, antes de ir embora, ainda se virou para a cela e disse:

— Só mais uma coisa: nem pensem em me denunciar à Organização. Eles já estão carecas de saber o que vocês precisam aprender o quanto antes: eu valho mais vivo do que morto. Passar bem, amigos!

*****

— Por favor, Coronel, mate-me de uma vez por todas! Não agüento mais...

— O quê? Agora que a festa está ficando boa, Otávio Buldogue? Eu é que não vou lhe dar esse gostinho.

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Você ainda tem que ver com seus próprios olhos a cara de satisfação de Muckey ao encontrá-lo nesse estado miserável.

— Misericórdia! Eu dou o que você quiser, mas acabe logo com isso.

— E eu ainda quero alguma coisa sua? Você nunca teve dinheiro seu, como bom gângster de segunda categoria. E agora não tem poder nem de levantar sua bunda gorda dessa poça de sangue... pois, se tivesse, seria para apanhar mais ainda!

Nisso, a porta da sala do Coronel Contra se abre subitamente.

— Entre, Muckey! Venha participar da festinh... Epa! Sovina McGrana?

— Bom dia, Coronel. Desculpe atrapalhar sua operação especial... Não quero tomar seu tempo. Preciso de um favorzão do senhor: eu, os Patralhas e Maga Magalógica fomos convidados para uma festinha, e acho que não vou poder me divertir sabendo que meus amigos terão que recusar o convite. Será que é possível deixá-los dar uma voltinha? Serei eternamente grato pela sua compreensão...

— Sem dúvida, Sovina. O que eu não faria por um amigo? Espero que aquela parada ainda esteja de pé.

— Sim, está. O iate está esperando por você na Marina de Pastópolis. É só passar na recepção do meu hotel e pegar as chaves. É todo seu. Divirta-se!

— Obrigado, Sovina. — De nada, Coronel. Agora vou descansar, pois

estou realmente exausto. Bom trabalho... e solte logo os Patralhas e a Maga.

— É pra já.

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*****

Na noite seguinte, Petinhas chamou seu sobrinho para mais uma reunião, desta vez na suíte imperial onde Sovina McGrana estava hospedado. Sovina recebeu os dois patos com camaradagem e serviu um drinque comemorativo.

— Um brinde à nossa aliança! Sovina levou a taça ao bico, tomou um gole e deu

um grito: — Aaaaaarghhhhhhh! — Que foi, Sovina? — preocuparam-se Petinhas e

Ronald. O segundo pato mais rico do mundo, roxo de falta

de ar, não conseguia dizer uma palavra. Envenenamento na certa.

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Capítulo 27

— Sovina McGrana está passando mal! Chame a

ambulância já, Ronald! — grasnou Petinhas diante do desmaio de seu sócio.

— É pra já, titio. Na verdade, Ronald estava tão assustado quanto

Petinhas. Quem poderia ter envenenado a bebida? Será que Sovina era mesmo o alvo? Ronald, com a ajuda de seus aparelhos de escuta, já estava careca e depenado de saber que Sovina estava armando para dar o bote em Petinhas, seu rival histórico. Mas se foi a Organização que mandou matar Sovina, teria que ser alguém muito poderoso. Nem a turma do Professor Urubu, nem os Patralhas, nem os mafiosos do círculo de Fantasma Manchado se meteriam a besta de mandar eliminar o pato zaralhonário número 2 do universo. A não ser que...

“É isso!”, pensou Ronald, antes de discar um número que não era o do pronto-socorro do Hospital Memorial Cornélio Patus.

*****

Enquanto isso, por entre o emaranhado de fios e cabos coloridos que se alastravam pelas paredes do porão de seu laboratório, Professor Padral admirava uma tela de cristal líquido de cinco metros de largura.

— Esta é a parte dos projetos que Petinhas e Sovina nem sonham que existe: o intercomunicador transdimensional instantâneo! Sem as inconveniências do transporte convencional entre dimensões, posso conversar ao vivo, em tempo real, com meus sócios no mundo dos

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humanos. Enquanto os velhos magnatas e os mafiosos comuns quebram a cara com as portas transdimensionais, que ainda não estão totalmente testadas, tenho aqui um canal direto para chamar os humanos, os verdadeiros chefes da operação...

Padral ligou os aparelhos e pressionou um grande botão verde. Em cinco segundos surgiu uma imagem em preto e branco, cheia de chuviscos, mas ainda assim identificável: Esther Altman, direto do último andar de uma torre megaempresarial em Miami. A voz potente da mulher, para não despertar a curiosidade dos vizinhos, foi direcionada para os fones de ouvido do intercomunicador:

— Boa noite, Padral! Como está o tempo aí? E então... Conseguiu a parada?

— Boa noite, Esther. Enfim, tenho boas notícias. Petinhas caiu no conto da aliança estratégica e Sovina vai botar uma nota preta em nosso projeto de estimação. A fórmula da unificação reprodutiva das espécies está cada vez mais próxima da realidade! Vai chegar ao fim o drama dos pastopolenses que são proibidos, sob pena de morte, de transar com quem não seja de sua mesma espécie.

— Uma mão há de lavar a outra. No mundo dos humanos, uma fórmula dessas será uma revolução da biologia... Que fará de nós os senhores do planeta! Rá, rá, rá, rá, rá!

— Quando isso der certo, você pode até fazer uma visitinha... Já disse que, para uma humana, até que você é uma gata?

Esther sorriu sem graça: — Deixe de galanteios, Padral... Temos que tratar

de altos negócios. Falei com os chefões sobre a sua participação no negócio. Eles oferecem meio por cento do faturamento da fórmula no mundo dos humanos, mais a

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garantia de que você terá o monopólio da fórmula em Pastópolis.

— Que espécie de garantia? — A de sempre... A cobertura armada da

Organização, agora reunificada sob o meu comando pessoal.

— O quê? Você acha que a Organização vai se curvar a uma mulher humana? E a grana do Fatalôncio, que financia as operações regulares?

— Ê cientistazinho burro! Primeiro, quando sair a unificação das espécies, eu poderei ser tão pastopolense quanto você, o Petinhas, o Ronald e o Fantasma Manchado. Segundo, a Organização só precisará do dinheiro de quem tiver dinheiro grosso em Pastópolis. E quando a fórmula entrar em fabricação, as fortunas de Sovina e Fatalôncio reunidas serão trocadinho diante da montanha de dinheiro que você vai ganhar! Por isso e muito mais, esses magnatas da velha guarda são cartas fora do baralho.

— Mas tem gente muito poderosa que não vai gostar de saber disso.

— Isto é um segredinho entre mim e você... Deixe os “meninos” para lá. Afinal, você não estava a fim de... hummmm... estreitar suas relações comigo?

— Pode ser... Mas acho que você ainda vai precisar passar por cima de alguns cadáveres poderosos no caminho...

*****

Ronald, instintivamente, ligou para o laboratório de Padral. Como o telefone ficava no térreo e Padral estava ocupado com a conversa picante transdimensional, não

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ouviu o toque. Mas o telefone foi atendido e Ronald ouviu uma voz:

— Alô, Ronald. Isto é uma gravação do Fantasma Manchado. Acabei de tomar conta desta linha telefônica esperando que você ligasse. Quer dizer que você, o sobrinho do Petinhas, se acha muito esperto, não é? Pois se você andou espionando o Padral, meus mil olhos em Pastópolis já espionavam vocês dois há tempos. O Padral não tem nada a ver com o envenenamento do Sovina: ele não é inteligente o suficiente para fazer esse servicinho sujo por nós. O Sovina vai sobreviver, mas o recado está dado. O próximo da lista é você. Não adianta correr, pois estou mais poderoso do que nunca. Tenha medo. Tenha muito medo.

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Capítulo 28

Ronald, com o susto, ficou mais branco ainda. O

veneno deixou Sovina McGrana totalmente roxo. E Petinhas, vermelho de raiva, grasnava em busca de uma atitude de seu sobrinho.

— Ronald! Cadê a ambulância? — M-m-m-mas... O hospital não atende, titio.

Deixe que eu levo Sovina à emergência. Quando Ronald já se preparava para carregar

Sovina, Petinhas deu um salto (improvável para sua idade avançada) e postou-se diante da porta da suíte.

— Não você, Ronald. — Hein? — Largue o Sovina. Você não confia de verdade

nele, e eu não confio em você. — O quê? Depois de todos esses anos como seu

capacho em todas as aventuras de exploração, o senhor me vem com essa? Eu sou seu herdeiro, viu?

Petinhas acertou uma bengalada na cabeça do sobrinho.

— Cale-se! Você não sabe de nada! Eu, que escrevi o testamento, é que sei quem tem direito à minha herança... É bom você ficar quietinho enquanto nós três vamos ao hospital. Nós três!

Ronald pensava: “Não vai ser mesmo agora que vou dar um fim no safado do Sovina...”

*****

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Enquanto Sovina McGrana recebia os devidos cuidados médicos sob a estrita vigilância de Petinhas, a própria Caixa-forte estava entregue às baratas. Um descuido da segurança permitiu que Maga Magalógica, com suas bombinhas de gás paralisante, derrubasse todos os guardas que encontrou no caminho. Os alarmes foram desligados rapidamente. Atrás da bruxa, uma dúzia de Patralhas. Nada parecia mais fácil. Até a porta do cofre principal estava aberta.

— Vamos lá, manos! Vamos tomar banho na grana do velho!

— Nada disso, 171-171! — gritou o Patralha Intelectual. — Nossa missão aqui é pegar o testamento e a Moedinha, não lembra? O Sovina disse que o velhote levou o dinheiro todo para o Alasca.

— Rá! Só acredito vendo! — disse 171-171, enquanto corria para o reservatório de dinheiro... que, como era de se prever, estava completamente vazio. Foram as últimas palavras de 171-171 antes de espatifar os miolos lá embaixo.

— Oh, não! É o primeiro homem que perdemos nessas operações especiais — lamentou Maga ao esticar o pescoço para ver o que restou do Patralha.

— Mas isso não pode atrapalhar nossos planos! Achem a Moedinha e o testamento, já! Revirem tudo! Não desistam!

— Calma, Intelectual! — disse Maga. — Não conhece meus dons paranormais? Eu vou achar a Moedinha e o testamento com a força da mente.

Maga fechou os olhos, concentrou-se profundamente, deu meia-volta e apontou para a janela mais próxima.

— Lá está o testamento do coroa... Corram...

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— Lá fora, Maga? — irritou-se o Intelectual. — O que há lá fora? Um gramado enorme, um monte de prédios e avenidas, a estátua de Cordélio Flatus...

— O testamento está na estátua, mas não por muito tempo. É de quem chegar primeiro... Há concorrentes... Sejam espertos...

Intelectual disse a seus companheiros: — Não sei o que ela quer dizer com isso, mas é

melhor a gente cumprir a instrução. Vamos lá, rapazes! Magalógica e os Patralhas embarcaram nos dois

furgões pretos e desceram os dois quilômetros de rua até a estátua de Cordélio. Tarde demais. Naquele momento, enquanto Pastópolis dormia, Fantasma Manchado acionava uma enorme escavadeira e derrubava a estátua. Ao notar a chegada da quadrilha rival, Fantasma disse debochadamente:

— Que otários! Não há nada que eu não saiba nesta cidade de titica. Huá, huá, huá, huá, huá!

Vovô Patralha, que até aquele momento era um coadjuvante na operação, ergueu a voz.

— Fogo no Fantasma, meninos! Pela alma do 171-171!

Os Patralhas sacaram suas armas e atiraram sem cessar na cabine da escavadeira. Mas a cabine era muito bem blindada e Fantasma nada sofreu. Ignorando os tiros, Fantasma pisou no acelerador e avançou pela Avenida Patal, com estátua e tudo.

— Ele vai sumir daqui a pouco! Atrás dele! Rápido!

Dito e feito! Em alguns metros, Fantasma, escavadeira e estátua desapareceram por completo numa porta transdimensional, em pleno asfalto, diante dos olhos

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de todos. Os Patralhas não conseguiram alcançar o bandido de preto. Muito menos pegar o testamento oculto.

Enquanto isso, numa praia próxima a Miami, a ardilosa Esther já esperava a chegada do testamento. A estátua passou perfeitamente. Mas a escavadeira, com Fantasma dentro, parecia ser grande demais para se materializar no mundo dos humanos através de uma porta transdimensional portátil.

— Maldição! Não posso confiar mesmo nessas portas absurdas!

Esther nem teve tempo de ouvir a voz de Fantasma: a escavadeira se desfez em milhões de pontinhos e desapareceu no “buraco negro” entre as dimensões. Mas a estátua ficou, para a felicidade de Esther.

— Pronto... Agora é só pegar o pé-de-cabra, arrombar a portinha sob o pedestal e pegar o testamento.

No começo parecia meio difícil, mas Esther conseguiu em cinco minutos. Agora uma mulher humana teria acesso ao segredo mais bem guardado de Pastópolis: o destino da herança de Petinhas! Esther, trêmula de emoção, desenrolou lentamente o papel e começou a ler:

— “Eu, Petinhas O’Pato, em pleno gozo de minhas faculdades mentais, venho por meio deste testamento legar a totalidade de meus bens, incluindo, mas não limitados a, reservas de numerário, imóveis, máquinas e equipamentos, obras de arte e...”

Esther não conseguiu terminar de ler o documento. Uma mão emplumada surgiu do nada e, numa fração de segundo, tomou o papel e desapareceu em outra porta transdimensional. Esther saltou em direção à porta, mas caiu de cara na areia.

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Alguém em Pastópolis estava rindo à toa. Mas muita gente poderosa em Miami não gostou nada do que viu.

— Levante as mãos, Esther. Seus dias de máfia chegaram ao fim!

Esther sabia que não era a polícia. A voz de seu chefe era inconfundível. Era ele mesmo e seus capangas, todos fortemente armados. Se fosse eliminada sem dor, sairia no lucro. Tudo estava perdido, menos o ímpeto desafiador.

— Mate-me agora mesmo, se você for homem! — Pois eu não tenho culpa de ser viado, sua

embusteira! Rá, rá, rá! Pensa que vou te dar esse gostinho? Fatalôncio vai adorar saber o que você anda fazendo. Já para o carro, Esther!

O chefe deu uma olhada para o lado, encontrou a estátua e deu a ordem:

— Essa estátua de Cordélio Flatus vai ficar ótima no jardim da minha mansão. Obrigado pelo presente, Esther...

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Capítulo 29

Professor Padral tentava retomar contato com

Esther, mas sem sucesso: àquela altura, a mafiosa estava amarrada como uma múmia, no fundo de um camburão, sendo levada a toda velocidade para local incerto e não sabido. Como Padral iria saber?

— Raios! Não encontro ninguém do outro lado... Vou ter que acionar o hiper-turbo-reforço do sinal transdimensional.

Padral puxou a alavanca “Hiper-turbo-reforço” no painel de controle. Estava emperrada. Padral arregaçou as mangas e fez mais força. Nada. Antes de ter que apelar para ferramentas menos “científicas”, o inventor agarrou a alavanca, apoiou os dois pés no painel e continuou puxando. A alavanca quebrou, e o desastrado Padral acabou caindo sentado sobre o controle remoto das portas transdimensionais.

— Ai! Tenho que me lembrar de fazer uns controles remotos mais macios da próxima... Epa! O que está acontecendo?

Abriu-se uma grande porta transdimensional no meio do laboratório. Adivinhem quem apareceu em instantes: Fantasma Manchado e sua poderosa escavadeira, que era grande demais para não sair destruindo tudo no porão da casa de Padral. A começar pelo controle remoto.

— Volte de onde você veio! Saia daqui! Poupe meu querido laboratório!

A escavadeira passou por cima de todo o sistema de intercomunicação entre as dimensões. Destruiu o único exemplar do neutralizador de portas transdimensionais. E arrasou as anotações de laboratório e as amostras de

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produtos químicos que dariam origem à menina dos olhos de Padral: a fórmula da unificação reprodutiva das espécies.

— Nããããão! Pare já, seu destruidor maluco! Pare, eu ordeno! Pare, senão vou chamar meus amiguinhos!

Depois de não deixar um parafuso inteiro no laboratório, Fantasma Manchado finalmente puxou o freio de mão da escavadeira e foi ver o tamanho do estrago. Só se deu conta de onde estava quando encontrou Padral choramingando num canto.

— Chuif! Chuif! Agora vou ter que trabalhar mais vinte anos para recuperar isso tudo...

— Padral? É você mesmo? Epa, foi mal, mas deu um defeito quando eu passava de uma dimensão para outra e...

Fantasma nem teve tempo de completar. Uma bota enorme arrebentou a porta do laboratório, abrindo passagem para vinte policiais armados até os dentes.

— Quieto, Fantasma Manchado! — rosnou Coronel Contra.

— Oh, não! Como é que descobriram a gente? — assustou-se Fantasma.

— “A gente”, uma vírgula! Você, Fantasma, é que está preso em nome da lei por invasão de domicílio, vandalismo e operação de escavadeira sem licença. Se tem amor à sua vida, deite-se no chão e nem pense em dar uma de engraçadinho!

Sabendo das habilidades de Fantasma em artes marciais, quatro policiais grandalhões cuidaram de algemar as mãos e os pés do meliante.

— Obrigado, Coronel Contra! Veja o que esse monstro fez no meu laboratório! O senhor salvou a minha vida — disse Padral, na maior cara-de-pau que o chefe da polícia de Pastópolis já tinha visto.

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— Não há de quê, professor. A missão da polícia é defender cidadãos honestos como você, não é verdade?

Nisso, Contra deu uma piscadinha cúmplice a Padral e deu ordem a seus homens para levar Fantasma Manchado a mais uma temporada de férias na penitenciária.

*****

Fatalôncio, em sua poltrona executiva, estava feliz como uma criança. Finalmente o testamento de Petinhas estava em suas mãos!

— Rá, rá, rá, rá, rá! Fui mais esperto que todos aqueles palermas, seja em Pastópolis, seja no mundo dos humanos... Vamos ver aqui para quem vai a grana do velhote.

Fatalôncio leu uma vez. Quase caiu para trás. Pensou que fosse um trote. Releu mais umas cinco vezes para ter certeza do conteúdo. A realidade era mais absurda que qualquer ficção.

— Realmente, o velhote está doido. Mas não há de ser nada. Na hora certa, no momento exato, este papelucho valerá mais que todo o ouro do Petinhas... É hora do Plano B.

Fatalôncio pegou seu velho cronômetro, apertou o botão e contou os segundos.

— Cinco... quatro... três... dois... O intercomunicador tocou ruidosamente. Do

outro lado, a sonolenta secretária: — Sr. Fatalôncio, os Irmãos Patralha e Maga

Magalógica aguardam na recepção. — Mande-os subir logo. Obrigado!

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Pouco depois, a turma se sentava à frente da escrivaninha do megaempresário.

— Exatamente como eu previa... Se fosse ensaiado, não sairia tão perfeito!

— Como você sabia que a gente vinha para cá, Fatalôncio? — perguntou Maga.

— Eu sabia que o plano de vocês com Sovina McGrana não podia dar certo. Grampeei os telefones de Fantasma Manchado, que, por sua vez, grampeou os telefones de todo mundo na cidade... Tenho que reconhecer que Fantasma é competente. Conseguiu levar o testamento para o mundo dos humanos, mas eu fui mais esperto e usei minha porta transdimensional pessoal para recuperar o documento.

— Hein? — Para piorar a situação de vocês, Sovina saiu de

circulação por uns tempos por motivos de saúde, Fantasma está encrencado com a polícia, Otávio Buldogue está mais para morto-vivo, Professor Padral não apita mais nada e Urubu vai mofar na cadeia. Enfim, a quem mais vocês poderiam pedir ajuda? Ao Petinhas? Ao prefeito Omar Suíno? Ao bispo de Pastópolis?

— Hummmm... Pensando bem... — resmungou Vovô Patralha.

— Pensando no bem-estar de meus amigos, já tenho um novo plano na manga: carregar a Caixa-forte inteira para bem longe de Pastópolis, por via aérea!

— Mas a gente já esteve lá na Caixa-forte, e está completamente vazia. Petinhas escondeu tudo no Alasca.

— É o que vocês pensam. Ouçam esta gravação feita agora há pouco.

Fatalôncio pressionou um botão num controle remoto. A voz de Petinhas envolveu o ambiente.

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“Ronald, eu sei que nossas vidas correm perigo, pois Sovina é metido com muita gente que não presta. Só inventei aquela história de mandar o dinheiro para o Alasca para despistar malfeitores. A grana está toda escondida nas paredes falsas da própria Caixa-forte. Tudo que eu quero é encerrar a história das portas transdimensionais e voltar a tomar meus banhos de dinheiro.”

— Raios! Que otários que somos! — protestou o primo 666-666.

— Vocês não viram nada... A cartola de truques de Petinhas é inesgotável.

— E, afinal, o que diz o testamento do velho? — Está tudo aqui escrito, mas não posso revelar.

A não ser que vocês queiram perder a bocada de meu novo plano. O trato é o seguinte: vocês terão todo o dinheiro que precisarem para arrancar a Caixa-forte do chão. Depois de pagas as despesas da operação, a grana de Petinhas é toda de vocês. Se Petinhas morrer, pouco importa. Pato morto não precisa de Moedinha da Sorte. Não é mesmo, Magalógica?

— Não entendi, Fatalôncio. Você sempre quis Petinhas vivo e nunca se importou com o dinheiro dele... Por que mudou de idéia?

— Novamente, amiga... Está tudo aqui escrito. Um dia vocês vão descobrir. Agora, mãos à obra!

*****

No hospital, Otávio Buldogue, todo enfaixado e mantido por aparelhos, se recuperava precariamente das sessões de “massagem” de Coronel Contra. De repente, no meio da madrugada, uma visita pouco esperada e muito desagradável: Professor Urubu.

— Boa noite, Otávio! Que bom te ver... Rê, rê, rê!

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— Não estou entendendo mais nada, Urubu. Quer dizer que eu quase morro de tanto apanhar do Coronel, só para depois ele te libertar e você vir para cá terminar o serviço?

Urubu tirou do casaco uma reluzente submetralhadora e a apontou para o peito de Otávio.

— Só há espaço para um chefe supremo na Organização pastopolense. Por isso, eis um presentinho pela sua recuperação: muito chumbo quente. Reze, Otávio, reze!

Naquele momento, Superbicuda saltou janela adentro e caiu de pé bem na frente de Urubu.

— Só por cima do meu cadáver! — Superbicuda, sua intrometida! Volte para a

cozinha e deixe que nós, homens, acertamos nossas contas. Com sua pesada bota, a super-heroína

pastopolense deu um chute na barriga de Urubu, fazendo-o largar a metralhadora.

— Engano seu. Ninguém vai mais encostar um dedinho em Otávio.

Enquanto Urubu se contorcia de dor e Superbicuda apanhava a arma, Otávio não continua sua dúvida:

— Você está blefando, Superbicuda. Se você combate a Organização, por que me defende?

— Nada a ver com a Organização. É uma questão pessoal, meu caro...

Dito isso, Superbicuda ergueu seus óculos e deu uma piscadinha para Otávio. Agora, sim, Vagarida era inconfundível, mesmo dentro daquela roupinha colante ridícula.

— E como soube que eu estava aqui?

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— Já que eu não te encontrava em nenhum outro lugar, procurei na lista de pacientes do hospital. Sabia que você estava correndo perigo.

Urubu pegou o revólver que estava escondido em sua perna. Antes que pudesse se levantar, Superbicuda apontou a metralhadora para o bico do bandido:

— Parado aí, Professor Urubu. Ninguém mexe assim com macho que eu beijei... Aquiete-se antes que eu conte para todo mundo o seu segredinho íntimo.

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Capítulo 30

— O que você quer dizer com isso, Superbicuda?

— disse Professor Urubu, num momento inédito de hesitação.

— Eu nem vou contar para Otávio não passar mais mal ainda... Mas você sabe, seu ordinário.

— Ela é a Vagarida, Urubu! — disse Otávio, num fiapo de voz.

— Hein? Superbicuda, sentindo-se desmascarada, tentou

esconder a hesitação. — Não dê ouvidos a esse traidor! — Ué? Pensei que Otávio fosse seu queridinho... — Nem mais um passo, senão leva fogo! Superbicuda olhou sorrateiramente para os lados,

em busca de uma saída para o impasse. Uma coisa parecia certa: dos três que estavam naquele quarto, pelo menos um teria que sair morto. Pensou rápido. Agiu mais rápido ainda.

— Tome isto, Urubu! Com uma agilidade de campeã de ginástica,

Superbicuda acionou as molas das botas, deu um salto para trás e passou para o outro lado da maca de Otávio. Destravou as rodinhas e empurrou violentamente a maca na direção de Urubu, arrancando os tubos que mantinham Otávio vivo.

— Uff! Isso não estava nos planos! Quem tinha que matar Otávio era eu!

— Mudei de idéia.

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A esta altura, a maca rolava rapidamente para fora do quarto e Superbicuda trocava socos com Urubu em cima da barriga de Otávio. A maca desceu em disparada um longo corredor. A rotina do hospital ficou seriamente abalada.

— Que foi isso? — perguntou um médico. — Sei lá. Por um momento, pareciam Professor

Urubu e Superbicuda brigando em cima de uma maca — opinou outro médico.

De repente, Urubu perde o equilíbrio, cai para o lado e derruba a porta de um dos quartos. Lá dentro, mais uma surpresa: Sovina McGrana.

— Isto é jeito de entrar, seu moleque desaforado? — Ufa! que bom encontrá-lo, Sovina! O senhor

está enrolado, e eu também... Precisamos sumir de Pastópolis por uns tempos, até que a poeira baixe para nós dois.

— Como é que é? — Venha! Vamos aproveitar a distração de todos e

fugir para qualquer lugar. Enquanto os dois se esgueiravam para fora do

hospital, a maca despencou por uma janela e caiu três andares numa caçamba de lixo. Otávio já estava mortinho da silva, mas Superbicuda nada sofreu. Antes que os curiosos se aproximassem, Superbicuda tirou o uniforme. Assim ela voltava a ser a Vagarida de sempre.

*****

Fantasma Manchado sabia demais. Sabendo disso, conseguia tudo que queria na prisão. Era mantido numa cela individual da delegacia de Pastópolis, com relativo conforto e comida de primeira qualidade. E ainda podia

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dar uma de chato, batendo com a caneca nas grades por qualquer coisinha: os outros presos ficavam furiosos, mas Coronel Contra fingia que não dava mole para o meliante.

— Carcereiro, o jantar! Carcereiro, o jantar! Logo que ouviu a voz de trovão de Fantasma, um

guardinha de terceira categoria foi atendê-lo. Surpresa total: a cela estava completamente vazia.

— Coronel! Coronel! Fantasma Manchado sumiu! Foi como mágica: ele me chamou e...

O chefe da polícia olhava para o teto, resignado. — Só pra variar... É como eu sempre digo: é mais

fácil prender o Gasparzinho que manter o Fantasma Manchado na cadeia.

*****

Alguns até viram. Quem viu, achou que era uma ilusão de óptica, um disco voador, algo assim. Quem viu e teve certeza do que era, não foi levado a sério. Alguém poderia acreditar que uma vassoura voadora cruzava os céus de Pastópolis naquela noite de lua cheia?

— Obrigado por me salvar, Madame Minha. Mas fique sabendo: eu continuo não querendo nada com você.

— Ora, Fantasminha do meu coração... Você, que já comeu todas as mulheres do submundo de Pastópolis, vai dispensar justamente o piteuzinho aqui? Vem cá que eu vou te dar um trato no meu castelo mal-assombrado...

*****

Ronald e Vagarida não poderiam perder a cena de jeito nenhum. Na Caixa-forte, diante do depósito central totalmente vazio, Petinhas pressionou um botão e abriram-

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se as portas dos reservatórios secretos de dinheiro. Em minutos o depósito estava cheio, como nos velhos tempos. Petinhas deu um salto mortal e mergulhou na piscina de moedas.

— Urruuuuuuu! Finalmente posso voltar a tomar meus banhos de dinheiro!

Ronald e Vagarida, felizes com a felicidade de seu tio, se olharam apaixonadamente.

— Eu te amo, Ronald. — Eu é que te amo, Vagarida. Enfim, juntos! Vagarida deu as mãos a Ronald e olhou de

esguelha para as montanhas de dinheiro do megazilionário. — É... Pobre Petinhas. Com toda essa bufunfa, o

coroa vale mais morto do que vivo. — Sabe de uma coisa, Ronald? Por isso é que, no

fundo, no fundo, a morte de Petinhas é um desejo de todos nós.

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