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/     POLÍTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAÇÃO E A (IN)SECURITIZAÇÃO SANTOS, Leandro Fernandes Sampaio 1  Resumo: A proposta desta pesquisa é investigar a dinâmica do tráfico de drogas na região dos Andes, as suas interconexões com o crime organizado transnacional e a cooperação em matéria de segurança e defesa entre os países da Comunidade Andina de Nações para o combate ao narcotráfico. Pretende-se estudar o tráfico ilícito de drogas como problema para a cooperação em segurança e defesa para os países da CAN e analisar as percepções de ameaça, os planos, as políticas e as agendas de combate ao narcotráfico na região, bem como as medidas e ações tomadas nos âmbitos nacionais e intrabloco para conter esta modalidade de crime transnacional e construir a “Zona Andina de Paz”, partindo do pressuposto de que a problemática da guerra às drogas levou à (in)securitização da luta contra o tráfico de substâncias ilícitas fazendo com que perdure o conflito na região. Palavras-chave : Região Andina; Narcotráfico; ( In)securitização; Cooperação.  Abstract : The purpose of this research is to investigate the dynamics of drug trafficking in the Andean region, its interconnections with transnational organized crime and cooperation on defense and security between countries of the Andean Community of Nations to combat drug trafficking. We intend to study the illicit drug trafficking as a problem for cooperation in security and defense to the Andean countries and analyze the perceptions of threat, plans, policies and agendas to combat drug trafficking in the region, as well as measures and actions taken at national and intra-block areas to contain this type of transnational crime and build "Andean Peace Zone", on the assumption that the problem of the drug war led to the (in) securitization of the fight against trafficking in illicit substances making that endures the conflict in the region. Keywords: Andean Region; drug trafficking; (In) securitization; Cooperation.  O presente artigo tem por objetivo discutir o tráfico de drogas ilícitas na região andina problematizando a teoria da securitização elaborada pela Escola de Copenhague. Embora tenha contribuído de modo significativo para a compreensão da segurança internacional e para sua construção, esta teoria coloca alguns limites para análise do 1  Mestrando do Programa do Pós-Graduação em Relações Internacionais Santiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). O presente trabalho é uma versão revisada e ampliada do artigo a ser apresentado ao 5º Seminário Nacional de Sociologia e Política UFPR. Endereço de e-mail: [email protected]  

SANTOS, L.F.S. Revista Levs. Política de Drogas Nos Andes- Entre a Cooperação e a (in)Securitização

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  • Revista do Laboratrio de

    Estudos da Violncia da

    UNESP/Marlia

    Ano 2014 Edio 13 Maio/2014

    ISSN 1983-2192

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    POLTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAO E A (IN)SECURITIZAO

    SANTOS, Leandro Fernandes Sampaio1

    Resumo: A proposta desta pesquisa investigar a dinmica do trfico de drogas na regio dos Andes, as suas interconexes com o crime organizado transnacional e a cooperao em matria de segurana e defesa entre os pases da Comunidade Andina de Naes para o combate ao narcotrfico. Pretende-se estudar o trfico ilcito de drogas como problema para a cooperao em segurana e defesa para os pases da CAN e analisar as percepes de ameaa, os planos, as polticas e as agendas de combate ao narcotrfico na regio, bem como as medidas e aes tomadas nos mbitos nacionais e intrabloco para conter esta modalidade de crime transnacional e construir a Zona Andina de Paz, partindo do pressuposto de que a problemtica da guerra s drogas levou (in)securitizao da luta contra o trfico de substncias ilcitas fazendo com que perdure o conflito na regio. Palavras-chave: Regio Andina; Narcotrfico; (In)securitizao; Cooperao.

    Abstract: The purpose of this research is to investigate the dynamics of drug trafficking in the Andean region, its interconnections with transnational organized crime and cooperation on defense and security between countries of the Andean Community of Nations to combat drug trafficking. We intend to study the illicit drug trafficking as a problem for cooperation in security and defense to the Andean countries and analyze the perceptions of threat, plans, policies and agendas to combat drug trafficking in the region, as well as measures and actions taken at national and intra-block areas to contain this type of transnational crime and build "Andean Peace Zone", on the assumption that the problem of the drug war led to the (in) securitization of the fight against trafficking in illicit substances making that endures the conflict in the region. Keywords: Andean Region; drug trafficking; (In) securitization; Cooperation.

    Introduo

    O presente artigo tem por objetivo discutir o trfico de drogas ilcitas na regio

    andina problematizando a teoria da securitizao elaborada pela Escola de Copenhague.

    Embora tenha contribudo de modo significativo para a compreenso da segurana

    internacional e para sua construo, esta teoria coloca alguns limites para anlise do

    1 Mestrando do Programa do Ps-Graduao em Relaes Internacionais Santiago Dantas (UNESP, UNICAMP,

    PUC-SP). O presente trabalho uma verso revisada e ampliada do artigo a ser apresentado ao 5 Seminrio Nacional de Sociologia e Poltica UFPR. Endereo de e-mail: [email protected]

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    fenmeno do trfico de drogas como problema de segurana na agenda da Comunidade

    Andina e de seus pases membros. Para explorar os limites da teoria da securitizao, foi

    utilizada neste trabalho a abordagem terica da Escola de Paris ou Sociologia Poltica

    Internacional sobre os processos de (in)securitizao que no se restringem ao discurso

    dos agentes dominantes considerados institucionalmente legtimos e no reduzem a

    securitizao apenas designao de ameaas segurana, pois no levada em

    considerao a forma como a segurana compreendida em contextos e regies

    especficas, em nosso caso, a regio andina na primeira dcada dos anos 2000.

    O comrcio internacional de drogas no um fenmeno restrito

    contemporaneidade. Desde o perodo colonial, no qual ocorreu o desdobramento da

    formao dos Estados modernos europeus, a procura por riquezas nos continentes

    americano, asitico e africano no se restringiu apenas ao ouro, a outros metais e pedras

    preciosas ou seda, mas tambm buscava todo tipo de especiarias (pimenta, noz

    moscada, canela, acar, caf, ch, tabaco, lcool etc.), as quais eram conhecidas como

    drogas. Financiados pelos Estados, os navegadores circulavam em diferentes regies do

    globo atrs das drogas, impulsionando o comrcio ultramarino e a expanso do

    capitalismo. A palavra droga aparece neste contexto como um termo para designar um

    conjunto de substncias naturais utilizadas, sobretudo, na alimentao e na medicina. Mas

    o termo tambm foi usado na tinturaria ou como substncia que poderia ser consumida

    por mero prazer (CARNEIRO, 2005, p. 11).

    Na Amrica Andina, a coca est ligada histria e cosmoviso quchua-inca e de

    outras inmeras culturas indgenas da regio desde os tempos pr-colombianos, ela tinha

    importncia no s simblica, mas tambm na economia e na farmacopia. Com a

    chegada dos espanhis no sculo XVI aos Andes a coca passou a fazer parte da economia

    colonial e da lgica de dominao. As plantaes dos incas foram destrudas, mas

    preservaram-se aquelas de outros grupos indgenas que pagavam os tributos com folhas

    de coca (SOMOZA, 1990, p. 19). O controle e a extino de prticas, cultivos e uso de

    drogas sagradas que se opunham aos dogmas e valores cristos eram, na maioria dos

    casos, severamente repreendidos. Os colonizadores impunham a dominao no apenas

    poltica e economicamente, mas tambm cultural e simbolicamente. Do Oriente ao

    Ocidente, do perodo colonial ao sculo XXI, podemos observar que o controle dos

    fluxos das drogas, seja na acepo que a palavra tinha no passado ou na que tem hoje,

    entrelaa interesses polticos, econmicos e culturais.

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    Nas primeiras dcadas do sculo XX teve incio uma rgida regulao e interveno

    estatal no que tange ao consumo e comercializao de drogas lcitas e ilcitas, bem como a

    sua tipologizao tal qual conhecemos hoje em dia2,incorrendo em elaborao de tratados

    internacionais, criao de leis especficas, aperfeioamento e surgimento de novos

    dispositivos policiais e mdicos como estratgias de controle e regulamentao no

    apenas das drogas, mas da populao. O proibicionismo deu o tom s polticas de drogas

    no decorrer de todo o sculo passado. Se por um lado crescia o nmero de legislaes

    nacionais e tratados internacionais antidrogas, por outro surgiam inmeros grupos

    criminosos que comercializavam e lucravam com a proibio.

    As organizaes criminosas internacionais ganharam novos contornos no contexto

    geopoltico e ideolgico do ps-Guerra Fria, ampliando sua rede de atuao e se

    espalhando progressivamente pelo mundo. Passaram a ser consideradas como novas

    ameaas transnacionais, pois no agiam apenas dentro dos Estados. As suas aes

    transterritoriais articulavam grupos criminosos internacionalmente, cujos efeitos

    repercutiam em maior ou menor grau regional e mundialmente, como o caso do trfico

    de drogas. A derrocada da Unio Sovitica tambm abriu espao, em algumas regies,

    para a construo de relaes de confiana na rea de segurana e defesa como pea

    importante dos projetos de integrao e/ou cooperao regional, entretanto, as

    organizaes criminosas e os ilcitos transnacionais ainda colocam obstculos para a

    consolidao de uma comunidade de segurana e defesa cooperativa, principalmente em

    regies e pases em que h herana colonial somada incapacidade dos governos e

    Estados para garantir condies sociais, polticas e econmicas coletivas e individuais

    fundamentais para uma sociedade.

    Desde os anos de 1980, o narcotrfico foi considerado umas das principais

    ameaas para a segurana nacional dos Estados Unidos e se tornou um dos componentes

    centrais da agenda de segurana hemisfrica deste pas. Frente expanso do mercado de

    cocana nesse pas, os governos de Ronald Reagan e George H. W. Bush, sob a crena na

    dicotomia pases produtores x pases consumidores, declararam a guerra s drogas,

    orquestrando esforos para interdio do cultivo de coca principalmente no Peru e

    Bolvia, os maiores cultivadores da folha nesse contexto. Com o objetivo de intensificar a

    2A primeira reunio mundial sobre drogas ocorreu em 1912 para debater a questo do pio. Aps a criao da ONU, em 1945, aconteceram trs convenes (1961, 1971 e 1988) sob seu auspcio que deliberaram os mecanismos de controle internacional de drogas vigente at hoje.

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    poltica proibicionista, destruir os campos de cultivo de coca e desmantelar as redes

    comerciais ilegais, no entanto, o que ocorreu foi uma maior ramificao do capitalismo

    cocaleiro deslocando a produo de um pas para outro expandindo a economia do

    narcotrfico3.

    Aps os atentados de 11 de setembro, a guerra contra o terrorismo global se

    tornou o eixo principal da segurana e poltica externa norte-americana, o que levou

    Washington a direcionar sua ateno para outras regies do globo, fazendo com que,

    neste contexto, a Amrica Latina, principalmente a Amrica do Sul, deixasse de ser uma

    de suas prioridades. De acordo com Coletta A. Youngers e EileenRosin (2005), os

    funcionrios encarregados da poltica externa dos Estados Unidos para a regio buscaram

    conseguir ateno e recursos colocando um leque amplo de assuntos no mesmo bojo do

    terrorismo e narcoterrorismo, referindo-se a todas as atividades transfronteirias ilegais

    como potenciais ameaas terroristas, como a produo e trfico de droga, imigrao ilegal,

    trfico de armas e lavagem de dinheiro (YOUNGERS; ROSIN, 2005, p. 12).

    A (in)definio destes temas como potenciais ameaas terroristas permitiu aos

    Estados Unidos direcionarem os seus esforos para combater o narcotrfico e o crime

    organizado transterritorial como uma de suas prioridades em matria de segurana para a

    regio andina, influindo direta e indiretamente nas agendas de segurana nacionais e

    regionais, mais precisamente no mbito da Comunidade Andina de Naes. No de

    hoje que assuntos como drogas, crime organizado e outras ameaas de diversas

    modalidades, como as ambientais, se tornaram elementos discursivos justificadores para

    intervenes em Estados Falidos.

    A associao entre narcotrfico e terrorismo, ou entre narcotrfico e guerrilha, que

    remete aos anos de 19804, se baseia na experincia colombiana a partir de uma viso

    estadunidense do conflito e que foi generalizada para toda a regio andina, fortalecendo a

    percepo desses temas como ameaa segurana, o que permitiu aos governos da

    3O termo narcotrfico tambm deve ser problematizado, pois recai em impreciso ao pressupor que todas as drogas so narcticas ou que contm as mesmas substncias em sua composio. A ttulo de esclarecimento, o narcotrfico tratado neste trabalho como grupos e organizaes criminosas nacionais, transnacionais ou internacionais que se articulam em redes complexas para produzir, distribuir, vender e controlar as rotas e fluxos das drogas ilcitas.

    4 No incio dos anos de 1980, o poltico norte-americano Lyndon La Rouche foi o cunhou o termo

    narcoterrorismo, o qual foi elaborado para se referir a interdependncia poltica e financeira entre Londres e Moscou nos esquemas da rede trfico de drogas. E em 1983, o Embaixador dos Estados unidos na Colmbia, Lewis Tambs, chamou de narcoguerrilha e narcoterror as relaes entre os grupos guerrilheiros colombianos e o trfico de drogas. (RUSH, 1996)

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    Comunidade Andina de Naes (CAN) enfatizar a dimenso regional dessas ameaas.

    Esta relao nebulosa entre trfico de drogas, terrorismo e guerrilha impede a

    compreenso sobre as diferenas, particularidades e significados que existem entre esses

    fenmenos, seus agentes e suas atividades a nvel domstico, regional e global.

    A formulao e execuo do Plano Colmbia nos anos 2000 geraram

    desconfianas e desacordos sobre a presena militar dos EUA no sul do hemisfrio e a

    luta contra os narcotraficantes e as FARC aumentou as dissenses polticas entre a

    Colmbia e seus vizinhos com a invaso de fronteiras, ataques a civis e indgenas,

    deslocamentos forados e com as fumigaes contra as plantaes de coca. Essa situao

    se agravou depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, perpetrados contra os

    Estados Unidos. As estratgias de segurana dos norte-americanos passaram a ter um

    carter mais ofensivo para responder ao terrorismo e s novas ameaas. Tais

    redimensionamentos repercutiram indireta e diretamente nos Andes, colocando em

    questo os atores regionais e seus papis concernentes segurana, principalmente no que

    tange ao combate ao terrorismo (waron terror) e ao narcotrfico (warondrugs).

    Comunidade Andina e a Segurana Multidimensional

    Na Regio Andina a construo de um cenrio de cooperao em matria de

    segurana e defesa permeada por obstculos e dissenses. Esses obstculos esto

    associados s divergncias entre os governos, aos conflitos intra e interestatais,

    emergncia de novas ameaas e sua impreciso conceitual e crescente militarizao e

    securitizao relacionadas s disputas, principalmente territoriais, entre os Estados. As

    tenses geradas por ameaas advindas do crime organizado transterritorial o

    narcotrfico figura entre as principais produzem tenses na regio, criando um

    ambiente de desconfiana e incerteza para uma maior aproximao e cooperao em

    segurana entre os pases andinos pertencentes CAN.

    A Regio Andina concentra a maior produo de cocana do mundo (UNODC,

    2013)5e um dos principais centros do trfico de drogas internacional, a militarizao da

    luta contra as drogas como forma de conteno do crime organizado transnacional no

    5 De acordo com UNODC (2008), Em 2007 a regio andina chegou a produzir cerca de 984 toneladas mtricas,

    a maior parte era proveniente da Colmbia (600 toneladas mtricas). Em 2012, no Peru, as plantaes de coca chegaram a 60.400 hectares contra 48.000 hectares da Colmbia. Disponvel em: http://www.unodc.org/documents/crop-monitoring/Andean_report_2008.pdf.

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    tem alcanado os resultados esperados. A estratgia andina contra as drogas procurou

    canalizar esforos com base no consenso e na cooperao, entretanto, a falta de

    efetividade dos mecanismos do bloco andino para cumprimento dos compromissos e o

    debate incipiente dos governos com a sociedade civil que vise a uma mudana nas

    polticas antidrogas, colocam em questo a capacidade instrumental e institucional de se

    criar uma comunidade de segurana cooperativa.

    Segundo Adrin Bonilla (2003), a regio andina seria um mapa composto por

    cenrios polticos distintos integrados fragilmente, cujo processo de integrao e

    interdependncia ainda est em construo. De acordo com o autor, h diferenas

    substanciais entre os pases da regio, no que concerne s sociedades nacionais e suas

    economias, e um fator ilustrativo deste problema o fato de que nenhum destes pases

    tem como seu principal parceiro comercial outro pas andino. No que concerne poltica

    externa, suas agendas sempre estiveram hierarquizadas, tendo como prioridade o

    comrcio exterior bilateral, mas com a implementao do Plano Colmbia, e depois dos

    eventos de 11 de setembro, a segurana,que j vinha disputando espao na agenda, ganha

    maior nfase principalmente na luta contra o terrorismo e no combate ao narcotrfico sob

    influncia da agenda de segurana norte-americana.

    Para Arlene B. Tickner (2005), a preocupao com a insegurana e as percepes

    de ameaas ocasionadas pela questo colombiana no so simples produtos objetivos e

    uniformes da regionalizao da crise interna deste pas, mas esto relacionadas s

    dinmicas polticas de cada pas vizinho e forma como os seus representantes

    interpretam a crise e articulam determinados temas como problemas de segurana.

    Portanto, no existe uma correlacin natural ni inmediata entre dichos efectos y las

    polticas de seguridad que cada pas h empleado frente Colombia (TICKNER, 2005, p.

    32).

    A poltica andina contra as drogas ilcitas se fundamenta numa percepo andina

    da segurana como ausncia de ameaas ou riscos, uma situao em que o Estado e a

    sociedade estejam protegidos para exercerem seus direitos e liberdades democraticamente.

    A segurana para a Comunidade Andina tem um carter multidimensional e

    compreensivo:

    a seguridadtieneun carcter multidimensional y comprehensivo e incorpora asuntos de ndole poltica, econmica, social y cultural, reflejadosenlas polticas enmbitostan diversos como losdelfortalecimiento de lainstitucionalidad democrtica y el Estado de Derecho, la defensa, lasalud, el ambiente, laeconoma, eldesarrollo

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    econmico y laprevencin de desastres naturales, entre otros (COMUNIDAD ANDINA, s/d).

    De acordo com Hctor Luis Saint-Pierre (2013), a concepo de

    multidimensionalidade ressurge no continente americano convergindo as diretrizes do

    Consenso de Washington com a preocupao estadunidense em reconstituir a Amrica

    em sua totalidade como sua rea de segurana nacional. Na dcada de 1990, a

    multidimensionalidade foi debatida no mbito da Organizao dos Estados Americanos

    (OEA) inicialmente em torno das ameaas multidimensionais, principalmente as de

    carter transnacional. O carter multidimensional da segurana foi incorporado na VI

    Conferncia Hemisfrica de Ministros de Defesa (VI CHMD), o qual estava atrelado ao

    desenvolvimento e progresso das naes. A concepo andina de segurana

    multidimensional fortemente influenciada por esta construo da multidimensionalidade

    da segurana e das ameaas no campo da segurana hemisfrica da OEA.

    Conforme a Secretaria Geral da CAN, o ciclo produo, trfico e consumo de

    drogas uma ameaa sade e ao bem estar dos seres humanos e afeta as bases

    culturais, econmicas e sociais dos pases andinos (SECRETARIA GENERAL DE LA

    CAN, 2000, p. 2). Em 2001, foi criado o Comit Ejecutivo de Coordinacin em la Lucha Anti-

    drogase, para conter seus efeitos negativos na regio, foi institudo em 2003 o Comit

    Andino para El Desarollo Alternativo. Para complementar estes mecanismos institucionais,

    foram adotadas as decisiones instrumentos que tornam obrigatria a efetivao da luta

    contra as drogas nos pases membros que visam aprofundar a integrao, as

    responsabilidades compartilhadas e a cooperao poltica e social.

    O combate s drogas ilcitas tambm um componente da Poltica Exterior

    Comum da CAN. O estabelecimento das diretrizes da poltica antidrogas competncia

    do Conselho Presidencial e a formulao da poltica externa e da coordenao desta

    poltica fica a cargo do Conselho de Ministros de Relaes Exteriores. A Secretaria Geral

    executa os planos, assessora e coordena as atividades e as reunies dos Estados membros

    e mantm as relaes com organizaes regionais e de cooperao.

    A concepo andina de segurana foi elaborada no Compromisso de Lima, em

    junho de 2002, na Carta Andina para La Paz y La Seguridad, Limitacin y Control de los Gastos

    destinados a La Defensa Externa, a qual estabeleceu instrumentos comunitrios que

    sustentam uma viso comum de segurana, principalmente contra as novas ameaas:

    Estes instrumentos so marcos comunitrios slidos para enfrentar de maneira eficaz, cooperativa e solidria os desafios colocados pelas novas

  • POLTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAO E A (IN)SECURITIZAO

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    ameaas segurana trfico de drogas ilcitas e de armas, lavagem de dinheiro, crime organizado transnacional e terrorismo , tambm devem ser encarados atravs de polticas que promovem maiores nveis de coeso social e de desenvolvimento na sub-regio. (COMUNIDAD ANDINA, 2006, p.7)

    Este trecho que resume a viso andina de segurana apresenta uma concepo

    multidimensional do problema, onde as novas ameaas aparecem ao lado de questes

    polticas, sociais e econmicas, ou seja, um processo de securitizao destes temas. O

    conceito de securitizao permite examinar como um determinado assunto

    transformado por um ator (ou atores) em uma questo de segurana. Para entender essas

    diferentes dinmicas e processos polticos, o conceito de securitizao desempenha um

    papel fundamental, pois a securitizao pode ser vista como uma verso extremada da

    politizao (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, p. 23).

    Cooperao e (In)Securitizao do Combate ao Narcotrfico

    No decorrer das ltimas dcadas, os estudos sobre segurana internacional, bem

    como os estudos de segurana pblica, cresceram significativamente, trazendo novas

    abordagens sobre diferentes dimenses do problema a partir de enfoques

    multidisciplinares. No mbito das Relaes Internacionais, os estudos procuraram analisar

    os Estados no mais como atores unitrios e nem como os nicos agentes na segurana

    internacional. Colocaram em perspectiva os atores no-estatais e os jogos de poder e a

    multiplicidade de atores que esto na base da formulao das polticas de segurana. Entre

    as diferentes perspectivas de anlise, a Escola de Copenhague teve um grande destaque e

    influiu consideravelmente nas pesquisas de segurana internacional no ps-Guerra Fria,

    principalmente para explicar comportamentos dos Estados e de diferentes atores em

    momentos de crise.

    A teoria da securitizao, inaugurada pela Escola de Copenhague6 influenciada

    pelas teorias construtivista e realista das relaes internacionais, surge para explicar a

    emergncia do Estado de exceo, quando um determinado tema sai da esfera poltica e

    passa para esfera de segurana em um momento histrico e poltico especfico. Esta

    abordagem permite que haja uma expanso da agenda de segurana e os fatos polticos e

    6 A Escola de Copenhague um grupo de professores do Instituto de Pesquisa de Paz de Copenhague, os

    principais expoentes tericos desta escola so Barry Buzan e OleWaever.O que marcou a sua consolidao foi a publicao do livro People, StatesandFear: The National Security Problem in InternationalRelations, em 1983.

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    sociais so interpretados a partir da tica da exceo e da urgncia como problemas de

    segurana.

    A securitizao um ato de fala (speech act), no qual a prpria enunciao uma

    ao: quando um agente utiliza o termo segurana para dar um carter de emergncia para

    uma questo poltica, essa questo passa desta esfera para esfera de segurana, portanto,

    para proteger o objeto referente (aquilo que percebido como objeto de uma ameaa

    existencial, por exemplo, a democracia, a integridade territorial, o meio ambiente) passa a

    ser legtimo o uso de medidas extraordinrias de exceo para conter a potencial ameaa

    (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998). A securitizao como quebra da normalidade

    polticas e aproxima dos escritos de Carl Schmitt sobre a exceo e o decisionismo

    polticos para quem o soberano quem decide sobre o estado de exceo (SCHMITT,

    2009). Esta deciso envolve dois momentos: primeiro a deciso sobre uma emergncia

    que est para alm do mbito poltico normal e das disposies da ordem jurdica

    existente e o segundo a deciso sobre quais medidas devero ser tomadas para resolver a

    situao.Portanto, o soberano toma duas decises sobre a exceo e tem o monoplio da

    ltima deciso mantendo uma relao incomum com a ordem jurdico-poltica, pois ele

    pertence e est acima ou fora desta ordem simultaneamente decidindo quando a

    constituio no se aplica mais a uma circunstncia. Segundo esta frmula, a lei ,

    paradoxalmente, fora de si, uma vez que o soberano que est acima da lei declara que no

    h nada fora da lei, podendo suspender as normas e prticas jurdico-polticas existentes,

    colocando todos sob o estado de exceo.

    De acordo com Jef Huysmans (2011), o aspecto fundamental do ato de fala de

    segurana a ruptura nas regras normais do jogo poltico. Quando a segurana se torna

    um ato, cria situaes em que os atores e as questes so trazidos para uma relao que

    desafia um determinado modo de fazer as coisas, quebrando a normalidade instituda e

    declarando o inesperado, o desconhecido.

    The security speech act legitimates authority to move from the normal procedures of democratic politics to exceptional political measures by referring to existential threats that cannot be met within the confines of the usual procedures and repertoire of actions. Answerability to others here brings the process of securitizing to political judgement in public debates about the legitimacy of exceptional politics, of authority transgressing rules of the normal political game (HUYSMANS, 2011, p. 373)

    Alm do objeto de referncia, o qual no se restringe ao Estado como na

    abordagem tradicionalista, existem outros dois componentes que integram o conceito de

  • POLTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAO E A (IN)SECURITIZAO

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    securitizao: os atores securitizadores e a audincia. O primeiro componente so os

    atores securitizadores, estes anunciam a defesa de um determinado objeto referente e

    declaram a securitizao por meio do ato discursivo, se valendo da retrica para eleger um

    assunto como prioritrio em detrimento de outros. O segundo o alvo do ato de

    securitizao que precisa ser persuadido e aceitar o problema como uma ameaa

    segurana (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998).

    Segundo os autores, a securitizao um processo intersubjetivo socialmente

    construdo e no um ato unilateral dos atores securitizadores. Ela depende da aceitao

    do pblico, quando a audincia identifica a questo como ameaa existencial

    sobrevivncia de um determinado objeto de referncia, o ato discursivo alcanou o seu

    xito. Conforme os autores salientam, existem atores que possuem legitimidade tal que

    alm de obter xito na nomeao e promoo de uma ameaa especfica perante as

    demais, tambm conseguem fazer com que a audincia concorde com as medidas a serem

    executadas que de outro modo no seriam aceitas. Isto permite que o objeto referente se

    separe do processo poltico pblico onde estaria submetido s dinmicas do debate e do

    processo democrtico. Quando a securitizao se efetiva, significa que os mecanismos

    democrticos falharam e ocorreu uma incapacidade ou ausncia de vontade das elites

    polticas em resolver tais problemas pelos canais polticos normais. Isto implica uma viso

    elitista da poltica, uma vez que a anlise centra-se, na maioria dos casos, em lderes e/ou

    polticos de dentro do aparato estatal que desfrutam de legitimidade suficiente para

    decretar um assunto como problema de segurana. Estes atores podem estar ligados

    positivamente, compartilhando a escolha de um mesmo referente, ou negativamente,

    quando no h convergncia desta escolha:

    Assim como na teoria dos complexos de segurana, as securitizaes podem estar ligadas em conjunto positivamente (onde um grupo de atores pertencentes, ou parcialmente pertencentes, de uma mesma definio de ameaa e objeto referente), ou negativamente (onde os atores ou grupos de atores, constroem um ao outro como ameaa) no processo formando padres potencialmente durveis de interdependncia de segurana (BUZAN; WVER, 2009, p.256).

    No mbito da Comunidade Andina, as securitizaes esto ligadas em seu

    conjunto positivamente, o grupo de pases desse bloco partilha da mesma definio de

    ameaas e objetos referentes em maior ou menor grau, o que forma uma

    interdependncia de segurana, mas, ao contrrio do que afirmam os autores, no

    necessariamente ser durvel, pois o que gera tenses so as medidas extraordinrias que

    so empregadas para combater as ameaas existentes. A excepcionalidade das aes

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    sobrepe a norma comunitria andina, como foi a operao militar das foras armadas

    colombianas em territrio equatoriano para atacar guerrilheiros das FARC em 2008. A

    luta contra as drogas na Colmbia e no Peru tem um carter mais militarizado em

    comparao com a Bolvia e o Equador. Os marcos regulatrios nacionais das polticas de

    combate s drogas tambm so dspares entre os pases andinos. As polticas e normas

    legais bolivianas tm maior legitimidade perante a sociedade devido ao seu carter menos

    militarizado. As normativas peruanas ocupariam uma posio intermediria entre a

    legitimao e a militarizao, enquanto a Colmbia estaria situada na zona de militarizao

    (GUSMO, 2009).

    A anlise da securitizao nos estudos de segurana internacional no se restringiu

    Escola de Copenhague. Outras abordagens sobre a questo foram desenvolvidas por

    estudiosos mais influenciados pelo construtivismo e pelo ps-estruturalismo dando novas

    direes tericas e empricas. Um nmero considervel desta agenda de pesquisa

    desenvolvido pelos tericos da Escola de Paris (ou Sociologia Poltica Internacional).

    Alguns autores desta escola que ganharam bastante destaque so: Didier Bigo, Jef

    Huymans, Anastasia Tsoukala e Thierry Balzacq (McDonald, 2008). Esta vertente da

    teoria das relaes internacionais ganhou fora a partir dos anos 2000 e marcada pelas

    produes acadmicas da sociologia e filosofia francesa sob forte influncia de Pierre

    Bourdieu, Michael Foucault e tambm da Escola de Copenhague. Os principais focos da

    Escola de Paris esto direcionados ao discurso de segurana e os processos de

    (in)securitizao, construo da ameaa, prticas de segurana, ao papel dos

    profissionais de segurana, conduta do policiamento, s atividades das empresas

    privadas de segurana, vigilncia das fronteiras e crtica ao binarismo interno/externo.

    De acordo com Matt McDonald:

    For these theorists, security is constructed and applied to different issues and areas through a range of often routinised practices rather than only through specific speech acts that enable emergency measures. Practices of surveillance and border controls, for example, particularly as undertaken by bureaucrats or professional managers of unease(...) are a central part of securitisation, and are not simply those actions enabled by preceding speech acts. For these theorists, to attend to the study of securitization is to focus on the creation of networks of professionals of (in)security, the systems of meaning they generate and the productive power of their practices. This stands in opposition to the conception of security in the securitisation framework, in which security practices follow speech acts and in which security is the realm of dramatic emergency measures (McDONALD, 2008, p. 12).

  • POLTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAO E A (IN)SECURITIZAO

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    Na impossibilidade de fazer um debate mais amplo e aprofundado sobre a Escola

    de Paris e seus principais tericos, ser destacado neste artigo Didier Bigo7, pois este

    terico dar subsdios para provocar um debate sobre a securitizao e suas prticas. Para

    Bigo (2000), a Escola de Copenhague se concentra apenas nos atos de fala, enfatizando as

    aes discursivas e a retrica dos atores securitizadores sem considerar os processos e as

    prticas que constituem a securitizao desde a sua origem, pois os atos de fala no so

    suficientes para compreender a segurana. necessria uma abordagem que procure

    investigar as estratgias, as bases conceituais sobre as quais os discursos so erigidos e as

    tecnologias de poder empregadas no s pelo governo, mas tambm pelos diferentes

    profissionais envolvidos. Considerando os desdobramentos e implicaes que os atos

    discursivos podem ter sobre a sociedade e o prprio campo da segurana, estes processos

    no acontecem apartados de um contexto social.

    Na perspectiva Didier Bigo (2000), a securitizao no uma resposta

    insecuritizao, mas sim a capacidade de gerir e gerar a insegurana. Quando h um

    aumento da securitizao ocorre tambm um aumento da insegurana. A

    securitizao/insecuritizao so prticas que atravessam tanto a esfera interna, quanto o

    domnio externo. O autor diverge da abordagem da Escola de Copenhague sobre a

    securitizao como um simples ato discursivo exclusivo da linguagem. Esta compreenso

    permite analisar apenas um lado da relao sem considerar as lutas de poder simblico8 e

    omite a dimenso semitica da securitizao (gestos, manobras, rituais de demonstrao

    de fora, etc). Sendo assim, a securitizao no apenas retrica, uma ideologia que se

    impe por si s, ela produto de um trabalho de mobilizao:

    It is the product of a considerable work of mobilisation. Securitisation rests on the capacity of actors to constitute statistics about their aim and under their own categories, to put them in series, to be able to submit them to examinations, to protocols of research, with empirical checks, in short, to produce a truth on these statements. Truth which needs to be congruent with what is the current knowledge about the world. This of course is given only to the security professionals. Only they may impose a hierarchy of threats, rendering certain phenomena not only dangerous but more dangerous than others.(BIGO, 2000, p. 347).

    7D. Bigo em sua anlise da securitizao ele se fundamenta basicamente nos conceitos de campo, habitus e poder simblico de P. Bordieu e nas concepes de governamentalidade e dispositivo de M. Foucault.

    8 O poder simblico um poder de construo da realidade que institui e ordena o sentido de ser no mundo,

    conformando concepes supostamente homogneas que fazem com que seja possvel a aquiescncia entre os pensamentos (BOURDIEU, 2010).

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    Conforme analisa Bigo, quem tem a capacidade de securitizar so aqueles que exercem

    posies de autoridade reconhecida em um determinado contexto histrico, a posio

    social de quem produz determinadas declaraes sobre o que ameaa e o que se

    constitui como insegurana o que d legitimidade para a securitizao. Apenas estes

    atores podem impor uma hierarquia de ameaas e de temas de segurana fazendo com

    que certos fenmenos sejam mais ameaadores do que outros. O autor francs concorda

    com a Escola de Copenhague neste aspecto, reconhecendo a importncia das prticas

    discursivas e seus efeitos na construo dos significados sociais acerca de um dado tema

    ou fato, entretanto, problematiza a nfase colocada nos atos de fala e nos lderes,

    principalmente polticos, como agentes que seriam capazes conformar o pensamento

    coletivo.

    Para compreender este processo preciso se atentar s relaes de poder e

    concorrncias existentes entre grupos sociais e dentro do campo da segurana, pois no

    se trata de uma estratgia unilateral de um ator isolado. necessrio abordar quem so

    os produtores da construo social de ameaas. Bigo, a partir dos aportes de Bourdieu,

    compreende o espao social do campo da segurana como uma construo derivada das

    diferentes posies dos agentes de segurana e definida pelos diferentes lugares que cada

    agncia ocupa no mbito nacional e internacional.

    A conceituao de campo de Pierre Bourdieu (2004; 2010) pode ser entendida

    como um microcosmo ou espao relativamente autnomo estruturado por relaes

    objetivas de posies que esto em concorrncia e disputa interna entre os agentes

    obedecendo a leis e cdigos sociais prprios. Cada espao um campo especfico no

    qual definida objetivamente a posio social dos agentes e das instituies onde se

    distribui diferentes formas de poder e se manifestam as figuras de autoridades capazes de

    deterem o maior volume de capital simblico levando s relaes de dominao,

    subordinao, resistncia, subverso etc.

    Dentro do campo da segurana pode ocorrer um processo de unificao com a

    fuso de atores que tende a homogeneizar as formas de olhar para um determinado

    problema, podendo definir um foco partilhado por todos, como o caso do

    narcotrfico na regio andina, isto acontece quando as diferenas entre a segurana

    interna e externa diminuem com o avano do processo de des-diferenciao.

    Os pases pertencentes CAN, em consonncia com as determinaes e

    resolues de organismos internacionais e dos Estados Unidos, consideram a produo,

  • POLTICA DE DROGAS NOS ANDES: ENTRE A COOPERAO E A (IN)SECURITIZAO

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    trfico e consumo de drogas ilcitas, bem como a lavagem de dinheiro, trfico de armas e

    contrabando de produtos qumicos utilizados na produo de drogas, como ameaas

    segurana e ao desenvolvimento de suas naes. Em 22 de junho de 2001, o Conselho

    Andino de Ministros de Relaes Exteriores assinou a Desicin 505Plan Andino de

    Cooperacin para la Lucha contra las Drogas Ilcitas y Delitos Conexos. O Plano Andino pretende

    abordar a questo das drogas ilcitas em sua totalidade abrangendo os aspectos envolvidos

    na produo, trfico, consumo e delitos relacionados, tendo como princpios norteadores

    a responsabilidade compartilhada e o pleno respeito a suas respectivas legislaes e

    soberania e ao Direito Internacional.

    No ano de 2003, na cidade de Bogot, os ministros de relaes exteriores e de

    defesa da CAN9 firmaram o Compromisso para El Fortalecimiento de La Coordinacinen La

    lucha contra el Terrorismo y El Problema Mundial de las Drogas y ls Delitos Conexos. Este

    documento ratificou a adeso dos pases que assinaram o compromisso s convenes

    internacionais contra o terrorismo, adotadas no mbito das Naes Unidas e no mbito

    hemisfrico, Conveno Interamericana contra o Terrorismo e tambm apoiaram a

    Declarao de San Salvador, a qual versa sobre o reforo da cooperao na luta contra o

    terrorismo, que foi adotada em 24 de janeiro de 2003 pelo Comit Interamericano contra

    o Terrorismo. Nesta mesma reunio, os pases membros reiteraram o repdio a todas as

    formas de terrorismo e acordaram coordenar os esforos para enfrentar os desafios

    postos pelo terrorismo e a sua conexo com o crime organizado transnacional em suas

    diferentes modalidades.

    O terrorismo, o crime organizado e o trfico de drogas sofreram um processo de

    desterritorializao, fazendo com que esses fenmenos se transterritorializassem e, a partir

    de uma percepo construda, tais fenmenos ganharam uma mesma roupagem sob o

    signo de novas ameaas. As linhas que os conectam so tnues e imprecisas, e

    justamente esta impreciso que endossa o discurso securitizador e permite a criao de

    inmeros mecanismos e instrumentos institucionais poltico-militares, viabilizando a

    utilizao do uso da fora na luta contra as drogas ilcitas.

    O trfico de drogas ilcitas na regio andina no unssono. Existe uma grande

    diversidade geogrfica, social, cultural, poltica e econmica e cada pas apresenta a sua

    9Estavam presentes nesta reunio os Ministros das Relaes Exteriores da Colmbia, Peru, Bolvia, Venezuela, os Ministros da Defesa da Colmbia, Peru e Equador, os Vice-ministros das Relaes Exteriores do Equador e do Panam, o Diretor Geral de Polcia do Panam, os representantes do Ministrio da Defesa da Bolvia e do Brasil, e do Secretrio-Geral Tpicos Amrica do Sul Brasil, e delegaes de observadores dos Estados Unidos e da Unio Europeia.

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    dinmica prpria, que muitas vezes se articula envolvendo nos palcos do conflito

    diferentes agentes de campos distintos: organizaes criminosas, guerrilhas, comunidades

    campesinas e cocaleiras, polcias, exrcitos, governos, organizaes no governamentais,

    organizaes regionais e internacionais. Essa multiplicidade tambm se reflete nas

    diferentes medidas polticas e de segurana nacional adotadas pelos pases pertencentes

    CAN para enfrentar o narcotrfico, que se chocam diretamente com a proposta de

    Poltica Externa de Segurana Comum Andina elaborada em 1999 e ratificada na Ata de

    Lima de 2000, a qual propunha aes concretas de cooperao entre os pases membros

    para reforar a luta contra o problema mundial das drogas.

    A CAN redefiniu sua agenda de segurana e suas estratgias incluindo, alm das

    ameaas e atores tradicionais, tambm as novas ameaas e atores no-estatais a partir de

    uma concepo ampla de segurana por meio de um processo de (in)securitizao, a nova

    agenda que procurava garantir uma segurana livre de ameaas levou a um aumento do

    uso das Foras Armadas para combater o crime organizado e o trfico de drogas e sua

    mltipla teia de produes afetando populaes locais e indgenas indiscriminadamente

    ou, nas palavras de Bigo, a prometida segurana levou insegurana, tornando

    simultaneamente outros atores inseguros. Para o autor francs, esse processo no

    dicotmico, a segurana como uma condio positiva e a insegurana como o seu inverso.

    Segurana e insegurana esto em simbiose, so inter-relacionadas e interdependentes.

    O alargamento da concepo de segurana nos pases andinos amalgama conceitos

    tradicionais e no-tradicionais de segurana (AYUSO, 2008; BONILLA, 2003;

    KANNER, 2009). A concepo convencional se alicera no monoplio legtimo da fora

    e tem como foco os assuntos relativos paz e segurana, enfatizando os aspectos

    militares, de segurana e defesa, ou seja, manter a ordem e lutar contra o crime no plano

    interior e defender a soberania do pas no plano exterior. Portanto, as ameaas devem ser

    combatidas militarmente como conflitos armados com inimigos internos ou externos,

    sejam regionais ou extrarregionais, participando da tomada de deciso somente o governo

    e os militares. A concepo no tradicional parte do pressuposto de que a segurana deve

    estar centrada nos indivduos e no no Estado e busca incorporar temas como

    emancipao10, os direitos humanos, o desenvolvimento social, a segurana ambiental, a

    segurana humana11.

    10A ampliao da agenda de segurana e o debate aberto pela Escola de Copenhague sobre o objeto referente provocaram inmeras discusses tericas sobre qual seria o objeto primordial da segurana. Entre estas teorias se

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    Este alargamento prope um debate sobre uma nova agenda de segurana que

    abrangeria conflitos econmicos, polticos e sociais, as imigraes e deslocamentos

    forados, os problemas ambientais e o narcotrfico. O desafio se coloca no que tange

    desmilitarizao da segurana e sua dessecuritizao e repolitizao, ou seja, o trato de

    temas de segurana no seio da esfera poltica, o que implicaria numa ampliao de atores

    que participariam no processo de tomada de deciso e na formulao de polticas pblicas

    voltadas para estes temas.

    Consideraes Finais

    A Comunidade Andina passou por transformaes polticas, econmicas e

    institucionais na ltima dcada. O trfico de drogas ilcitas se tornou um dos grandes

    desafios para os pases do bloco, aprofundando sua complexidade e crescente

    transnacionalizao e ampliando os pontos de frico domsticos, sub-regionais, regionais

    e internacionais. Seus efeitos so visveis na regio andina e duram dcadas. As

    concepes e sistemas de defesa e segurana andinos sofrem com a ausncia de uma

    maior articulao que busque alternativas ao proibicionismo e guerra s drogas,

    distinguindo o que cada modalidade de ameaa e, consequentemente, separando o que

    segurana interna e externa. Esta indistino coloca desafios para a proteo dos direitos

    humanos e para a construo da confiana, impedindo um debate democrtico e mais

    amplo sobre a fronteira obscura entre os papis e funes das polcias e dos militares.

    Os programas e mecanismos andinos para conter o trfico de drogas aumentaram no

    que tange participao da sociedade civil, diminuindo o seu vis militarizado ao menos

    no plano do discurso, entretanto, distante de polticas, o exrcito frequentemente

    acionado para atividades de segurana interna, comprometendo alternativas no

    militarizadas para a questo. Os avanos institucionais andinos e de seus programas para o

    problema mundial das drogas esbarram em uma realidade menos colaborativa, resultado

    destaca os Estudos Crticos de Segurana (ou na sigla em ingls CSS) que, influenciados pelo projeto da Teoria Crtica, vo reconhecer o indivduo como objeto principal da segurana, esta por sua vez deve propiciar a emancipao e no a submisso vontade do soberano (WYN-JONES, 2005). 11

    O conceito de segurana humana aparece na nova Constituicin de La Repblica de Ecuador de 2008 no Art. 393: O Estado deve garantir a segurana humana atravs de polticas e aes para garantir a coexistncia pacfica entre as pessoas, promover uma cultura de paz e evitar as formas de discriminao e violncia e a prtica de delitos e crimes integrados. O planejamento e implementao dessas polticas sero confiados a organismos especializados em diferentes nveis de governo.

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    de uma deteriorao da ideia de integrao e de uma comunidade de segurana

    cooperativa.

    As abordagens relativas s drogas ilcitas como problema regional podem ser mais

    efetivas se coordenadas, mesmo que haja algumas aplicaes especficas para cada pas. O

    aumento recente dos ndices da produo de drogas no Peru, que chegou a superar a

    Colmbia, um exemplo de que as aes militarizadas e os processos (in)securitizao

    para combater as drogas ilcitas no esto trazendo a soluo esperada e colocam srios

    desafios para a consolidao da confiana e da cooperao entre os pases, ou mesmo

    para a construo de uma comunidade de segurana conforme proposto por Emanuel

    Adler e Miachael Barnett (1998), ou seja, para reduzir as instabilidades e assimetrias, que

    so construdas historicamente, as unidades passariam a resolver suas divergncias por

    meios institucionais, aumentando a maturidade das relaes para manter expectativas

    confiveis de mudana sem o uso indiscriminado de violncia por parte dos Estados, o

    que permitiria a elaborao de identidades comuns de defesa e segurana com objetos de

    referncias compartilhados, ampliao dos canais de comunicao e transparncia,

    tornando possvel um conhecimento mtuo entre os diferentes atores e intensificando o

    compromisso entre as partes.

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