Upload
beano-regenhaux
View
17
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Dissertação Mestrado em Linguística, Autor: Roncalli Dantas Pinheiro.SÃO JORGE: PERFORMANCE NÔMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, ÁFRICA EBRASIL NOS TERREIROS AFRO – BRASILEIROS DE JOÃO PESSOA.
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA
MESTRADO EM LINGUISTICA !!!!!!!!! RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!! !!!!!
SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E BRASIL NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS DE JOO PESSOA. !!!!!!!!!!!!! !!!!!
JOO PESSOA 2011
RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!!!!!!!!! !! !!!!SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E
BRASIL NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS EM JOO PESSOA ! !!
Trabalho de dissertao apresentado ao Programa de Ps-graduao em Lingstica (PROLING) da Uni-versidade Federal da Paraba para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica !Orientadora: Profa. Dra. Beliza urea de Arruda Melo ! ! !!!!!!!!!!!
JOO PESSOA 2011
!RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!!!!!!!
SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E BRASIL PRESENTE NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS EM JOO PESSOA ! !! !
Trabalho de dissertao apresentado ao Programa de Ps-graduao em Lingstica (PROLING) da Uni-versidade Federal da Paraba para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica !Orientadora: Profa. Dra. Beliza urea de Arruda Melo ! !
Aprovada em: ____ de____de____. !!COMISSO EXAMINADORA !!!!!
Professor Dr. Luiz Assuno !!!Professora Dr. Maria Claurnia Abreu de Andrade Silveira !!!
Professora Dr. Beliza urea de Arruda Melo !!
http://www.cchla.ufpb.br/proling//index.php?option=com_content&task=view&id=62&itemid=31AGRADECIMENTOS
!!
Agradeo ao Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, atravs de Pai Mari-
naldo e Dona Marina pela disponibilidade, orientao e autorizao durante festas e rituais e
tambm ao Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin pelo acolhimento e adoo.
Ao antroplogo Luis Assuno pelo exemplo de postura tica acadmica em rela-
o ao universo religioso Afro-Brasileiro.
s Professora Maristela Oliveira de Andrade e Maria Claurnia Abreu de Andrade
Silveira pelas contribuies e sujestes na feitura do trabalho final.
s colegas: Luanna Vaz e Alessandra Ferreira por suportarem minhas ausncias
no programa de ensino distancia da UFPB.
Beliza urea, por ser orientadora, co-idealizadora, interlocutora e quase me
em alguns momentos desta jornada.
Aos amigos e amigas: Talita Paz, Dani Calao, Sheila Fadja, Alessandra Isis Cir-
ne, Marta Penner, Marco Aurlio, Iris Helena, Prince Daniele, Dani Travassos, Digenes
Chaves, Cris Carvalho, Adriano Barreto, Manoel Fernandes, Rachel Stanick, Jernimo, Joo
Marcos, Gabriela Arruda, Leonardo Davino, Marlia Gessa e Washigton Cardoso pelos mo-
mentos felizes durante estes anos de elaborao do trabalho. ! !!!!!!!!!!!!!!!!
http://www.cchla.ufpb.br/proling//index.php?option=com_content&task=view&id=62&itemid=31!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Dedico : !!
Francisco Dantas, Josefa Dantas,
meus irmos, Levi, Tatiana, Me Edite
e memria de Me Maria dos Prazeres
!SUMRIO
!INTRODUO 10
1 O NOMADISMO DE SO JORGE/OGUM NA ESTRUTURA URBANA MTICA.......... 12
1.1 O espao, o territrio e os significantes urbanos.................................... 15
1.2 O espao mtico do drago e da cavalaria.............................................. 17
1.3 O castelo de So Jorge.. 20
1.4 O territrio de Ogum na frica e no Candombl da Bahia... 24
1.5 So Jorge/ Ogum em Joo Pessoa.. 28
2 CONTEXTUALIZAO HISTRICA DAS FAMLIAS DE SANTO PESQUISADAS. 41
3 A ESCRITURA PERFORMTICA....................................................................... 48
3.1 So Jorge e a celebrao de Corpus Christi Em Lisboa . 48
3.2 Ogum na frica ....................................................................................... 54
3.3 Metodologia utilizada para pesquisa de performances............................ 573.3.1 As interpenetraes culturais na leitura de performances ... 58
3.4 O ritual de Ogum/So Jorge em Joo Pessoa 613.4.1 Descrio analtica da performance de Ogum 66
3.4.1.1 A Africa e Portugal nas vestimentas dos cultos afro-Brasileiros... 66
3.4.1.2 Alguns aspectos sobre a comida de Ogum e o reflexo da mestiagem . 72
4 O MITO E AS LINGUAGENS............................................................................. 74
4.1 O mito e o universo verbal. 744.1.1 So Jorge do Romanceiro ibrico s corimbas brasileiras de Ogum. 76
4.1.2 Os Pontos cantados para Ogum...................................................................... 81
4.2 A escritura mtica da fotografia em relao linguagem verbal. 904.2.1 A relao entre as linguagens em Pierre Verger ... 91
!!
4.2.1.1 Verger e a escritura verbal.................. 91
4.2.1.2 Verger e a escritura visual... 944.2.1.2.2 A linguagem fotogrfica de Verger 98
5 CONSIDERAES FINAIS .. 100
REFERNCIAS .. 101
RESUMO
!!
A histria de So Jorge, um mrtir que nasceu na Capadcia, territrio
pertencente atualmente Turquia, se deslocou por vrios lugares, traduzido de
diferentes formas, em diferentes suportes. Em Portugal se fixou na religiosidade
catlica popular, que se recriou continuamente na tradio oral, atravs das fes-
tas de Copus christhi e representado urbanisticamente pelo castelo. Durante a
colonizao no Brasil, o Santo Guerreiro entra em contato com Ogum, vindo da
Africa, gerando um Orix Afro-Brasileiro acaboclado nas casas de Umbanda. Esta
pesquisa qualitativa, foi realizada inicialmente a partir de documentao bibli-
ogrfia envolvendo questes sobre territorializaes e performances ritualisticas.
Posteriormente com base na tcnica de observao participante durante dois
anos, considerando a realidade entre dois terreiros de religio afro-pessoense e
com objetivo de descrever as relaes interculturais existentes na expresso reli-
giosa deste personagem hbrido, foi realizado coleta de dados atravs de entre-
vistas no estruturada, em que se verificou a complexidade das interaes entre
as diversas matrizes tnicas formadora da religiosidade popular em Joo pessoa.
!!Palavras Chaves: So Jorge, Ogum, Linguagens
.
!!!
ABSTRACT !!The story of St. George, a martyr who was born in Cappadocia, currently a territory belonging to Turkey, moved to various places, translated from different forms in diffe-rent media. In Portugal settled in Catholic religiosity popular, they recreated continu-ously in the oral tradition through the holiday Copus Christher and represented by the urban planning castle. During colonization in Brazil, the Holy Warrior comes into con-tact with Ogun, coming from Africa, generating an Orisha Afro-Brazilian acaboclado the homes of Umbanda. This qualitative research was conducted initially from pu-blished references issues involving territorialization and ritualistic performances. La-ter based on technique of participant observation for two years considering the reality between two terraces of religion african-pessoense and aims to describe the relati-onship existing cross-cultural religious expression in this hybrid character, was ac-complished through data collection unstructured interviews, which showed the com-plexity of the interactions between different arrays Ethnic shaper of popular piety in Joo Pessoa. !!Word Keys: St. George, Ogun, Languages
!10
1 Introduo !!
O mito de So Jorge uma voz que nasceu na Capadcia, territrio 1 2
pertencente atualmente Turquia e se deslocou por vrios lugares, traduzido de
diferentes formas, em diferentes suportes. Ele est fixado inicialmente na Pedra
da religiosidade catlica popular, embora sendo desprezado por alguns Pedros 3
de Roma. Sua existncia secular, embora registrada em escritos considerados
apcrifos, ganhou atravs da voz de sujeitos, sua existncia que se transmuta e
se recria continuamente no transcorrer da histria oral de vrios povos.
Esta voz chega em Portugal e fixa-se nas pedras e ameias de um
castelo de lembranas contrudo ritualisticamente por mais de quatro sculos na
festa de Corpus Christi e deslocado em caravelas para outros continentes.
Chegando ao Brasil, a voz amolece ao sabor das mucamas. - Feito 4
feijo duro que, cozido, ganha consistncia macia, So Jorge se despe da sua
armadura e veste-se de Ogum, que por sua vez, se expressa nos filhos de santo
durante rituais em terreiros afro-brasileiros.
Expresso em cores, corpos, gestos, danas, sabores e odores, So
Jorge poeticamente uma voz nmade entre o rgido e o fluido, a tradio ora
fixa nos muros, ora recriada ao abrir caminhos, se amalgamando a culturas difer-
entes. Um cavaleiro de armadura de ferro, espada na mo, danando, girando
leve, escorrendo no meio da comunidade.
Mito remete ao conceito elaborado por Eliade (2008, p. 84-89). Ao realizada por seres divinos no 1comeo do tempo, atualizada periodicamente atravs dos ritos
Voz, por Zumthor (2005, p. 62-63), se estabelece como algo material, definido por tom, timbre, al2 -cance, altura, registro, detentor de qualidades simblicas e sensaes que estrapolam o campo da linguagem.
Refernte ao papado romano3
Refere-se metfora que Gilberto Freyre estabelece sobre a influncia da cultura africana na lngua 4portuguesa desde o Brasil colnia, presente no livro Casa Grande e Senzala.
!11
A voz de So Jorge um fio que une culturas e costura raas com fi5 -
bras de cores diferentes. Assim, compreender as relaes que constrem este
personagem mtico multifacetrio, multireligioso e multilingustico fornece bases
para o entendimento cultural do Brasil e de suas matrizes tnicas formadoras.
A pesquisa foi realizada inicialmente a partir de uma documentao
bibliogrfica, envolvendo questes territoriais, e posteriormente um estudo de
campo envolvendo as performances ritualisticas e as relaes entre as lingua-
gens verbais e visuais, tendo como base a observao direta e participante da
realidade atual e complexa entre dois terreiros de religio afro-pessoense.
Para sistematizao das anlises, o trabalho foi dividido em trs
partes: inicialmente foi abordado as relaes territoriais entre Ogum na Africa,
So Jorge em Portugal e o hibridismo que ocorre no Brasil; depois tem-se a leitu-
ra da performance do sujeito em Joo Pessoa, tendo como suporte a anlise de
fotografias e a contextualizao histrica, observando os movimentos corporais,
as vestes e a comida; e, por ultimo, o foco da pesquisa volta-se para as lingua-
gens verbais e visuais, incluindo os textos orais do Romanceiro Portugus, os
pontos cantados nos terreiros e a potica fotogrfica de Pierre Verger, utilizado
como paradigma para a captura das imagens e postura acadmica de
pesquisador na comunidade.
!!
Referente ao conceito de cultura por Laraia (2009, p. 59). Sistemas de padres socialmente trans5 -mitidos que adaptam comunidades humanas aos seus embasamentos biolgicos.
!12
!1 O NOMADISMO DE SO JORGE/OGUM NA ESTRUTURA URBANA MTICA !!
A presena do Castelo So Jorge em Lisboa no alto da colina para
Pessoa (2008) uma referncia memorial dos tempos do imprio Portugus (ver
citao na pgina 17), um smbolo que produz diferentes significados atravs da
histria conforme se observa no Romance de Almeida Garret (1999, p. 164), em 6
constante dilogo com o desenho urbano dos bairros centrais, e com o corpo so-
cial de Lisboa.
Entender a complexidade do homem urbano de Lisboa em relao com
a escritura territorial da cidade fornece pistas de como se organiza o imaginrio
desta sociedade em relao ao mito de So Jorge, que posteriormente, se deslo-
cou, se mesclando ao terreno cultural hbrido brasileiro.
O conceito de territrio envolve muitas facetas que ao longo dos scu-
los foi estudado pelas diversas reas do conhecimento. Fsica, matemtica,
filosofia, teologia, arte e arquitetura se dedicaram sobre problemas e questes
que revelaram as determinaes mentais, psicobiolgicas na orientao do es-
pao, trazendo, segundo Santaella (2007), informaes sobre os processos de
representaes lingusticas.
Orlandi (2004) inclui a cidade em seus estudos lingusticos, mas di-
vergindo de Santaella, no considera a lingustica como o desenvolvimento nat-
ural das outras reas cientficas no estudo da cidade. Ela inclui a cidade sim-
plesmente porque descarta a possibilidade de desenvolver um estudo sobre os
discursos de sujeitos sociais sem relacionar com o que ela chama de corpo da
cidade. A autora de cidade dos sentidos compreende que o espao urbano
um corpo dinmico que envolve, dialoga e molda os sujeitos da mesma forma que
a comunicao verbal pode moldar o discurso entre interactantes no momento da
enunciao.
Em Viagens na minha terra, Almeida Garret narra a mudana do padroeiro de Portugal de So Tia6 -go para So Jorge.
!13
Maingueneau (1997 p. 34) em relao a cena da enunciao, disserta
que a atual tendncia em Anlise do Discurso questiona a topografia que coloca a
realidade e o discurso como exteriores um ao outro. Para o autor os lugares soci-
ais s podem existir atravs de uma rede de lugares discursivos.
A argumentao de Orlandi e Mainguenau desenvolve o raciocnio de
que o lugar no apenas um elemento referencial como est presente nos estu-
dos lingusticos clssicos de Jakobson (2005), mas um elemento essencial du-
rante a interao entre indivduos, porque ao ouvir (comunicao verbal) inclui-se
o gestual que se caracteriza pela multiplicidade de sentidos. Portanto, o que vi-
sualizado, ouvido, sentido espacialmente e pelo olfato, integra-se na interao
entre gestuais no lugar simultaneamente que entre gestuais dos interactantes.
Tericos do campo da filosofia e da antropologia, embora busquem fins
diferentes da lingustica, demonstram tambm a afinidade que h entre esses
campos. Como exemplos, Gilles Deleuze desenvolveu dois argumentos sobre a
relao entre espao e enunciados.
Inicialmente em crtica aos modelos psicanalticos, Deleuze (2004) de-
fende que o desejo surge por construo, agenciamentos com multiplas causali-
dades e objetivando a produo de territrios aliados a enunciados bem demar-
cados. O enunciado se conecta aos territrios na orientao de rituais no cotidi-
ano. Assim, por exemplo, uma mulher que deseja comprar um sapato, est inter-
essada em construir o seu entorno, ela imagina a reao das amigas, que comen-
trios podero surgir a partir da utilizao do utenslio de moda. J o outro argu-
mento mais radical, Deleuze (2005) defende que a representao territrial
pode ser deformada pela ao verbal e cita o exemplo da voz de terroristas que
podem transformar um voo comum de avio em voo-priso a partir da voz.
O antroplogo Geertz (1985, p.4) compara sua anlise etnografica ao
trabalho de algum que constri uma leitura a partir de manuscritos estranhos,
desbotados, com emendas suspeitas, contendo comentrios tendnciosos, es-
crito no s com os sinais do som, mas com exemplos transitrios de comporta-
mentos modelados. Portanto, para Geertz, a construo etnogrfica uma leitura
situacionista com espao/tempo especficos e o resultado do trabalho uma es-
critura hbrida, sem hierarquias, entre indivduos que pertencem a culturas distin-
tas.
!14
Independente da rea de estudo, escrituras, indivduos e espao ur-
bano esto em contnua interao. A diferena que, enquanto a antroplogia
busca, atravs das interaes, entender os exemplos transitrios de comporta-
mentos modelados dos indivduos de uma comunidade, a lingustica busca de-
codificar os exemplos transitrios de comportamentos modelados para entender
as linguagens interativas, sejam verbais, como duas pessoas no telefone, ou
hbridas, envolvendo os varios sentidos em relao com o espao, como na per-
formance, envolvendo verbo, gestos, odores e o seu entorno, a arquitetura.
Portanto, o entorno, o espao que envolve as performances hbridas
de So Jorge e Ogum nos diversos territrios so parte intrnseca do discurso,
formam uma estrutura una com os sujeitos, um contnuo dilogo entre voz, identi-
dade, espaos, executando movimentos entre odores, cores, sabores.
!
!15
!1.1 O espao, o territrio e os significantes urbanos. !!
Analisar o espao urbano de Lisboa e Joo Pessoa para ouvir o dis-
curso de So Jorge e Ogum faz deslocar o objeto de estudo deste primeiro cap7 -
tulo para o campo do no verbal. , portanto, necessrio expandir os conceitos
de texto e escritura (os objetos de estudo da lingustica) de maneira que possa
envolver o universo urbano da cidade. Para isso optou-se por uma fundamen-
tao baseada na conceituao desses elementos elaborada por Barthes (1974,
p.124), em que o texto situa-se em um intervalo, num locus movente e mutante
entre linguagens e sentidos, entranhada nas materialidades do dia-dia. Essa in-
stabilidade (o texto) ao ser fixado quando algum a retm em um suporte (escritu-
ra), transforma-a instantaneamente em algo para alm da linguagem representa-
tiva, possuindo um cdigo prprio, estabelecendo funo direta entre criao e
recepo, carregada de liberdade e memria.
Na viso de Barthes, as escrituras rompem os limites do verbal e inclui
as representaes da cidade no discurso. As construes, assim como as
palavras, se agregam formando universos, que falam aos seus habitantes, mas
se o espao urbano possui um discurso, podem existir locais em silncio, vazios
de significados para uma determinada comunidade.
Discurso remete s prticas discursivas por Michel Foucault (2008) no livro Arqueologia do Saber. 7 [Prticas discursivas] um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma dada poca e para uma determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingustica, as condies de exerccio da funo enunciativa.
!16
Sobre estes aspectos, os gregos so os primeiros a sistematizar e
classificar as diferenas entre os locais do ponto de vista cultural. Segundo Sodr
(2002), Os gregos entendiam o espao como um topos, um espao-lugar, local
marcado, um espao demarcado que afeta os corpos materiais. Heidegger (2005)
retoma os estudos clssicos e acrescenta que a criatividade atuando no espao
o que produz o lugar, distinguindo o espao-lugar, com limites especficos, do es-
pao, este sendo como um spatium, em latim, a extenso descontnua e het-
erognea entre dois pontos. O espao-lugar o resultado do morar, algo que
indica a identidade do grupo, que possui as marcas impressas na terra, nas ar-
vores, nos rios, escrituras, que vo fixar o ordenamento simblico da comu-
nidade. Com o passar dos tempos, a maneira como os indivduos ordenam essas
relaes entre a terra, a gua, e os outros homens, criam uma demarcao na
diferena com outros espaos que do identidade. Esse espao exclusivo, difer-
enciado e possuindo uma carga de identidade chama-se territrio.
Portanto pode-se dizer que o espao fsico demarcado pelos habi-
tantes intencionalmente, imprimindo significantes, fornecendo significados de
identidade para a sociedade local. Decodificar um territrio urbano entender
como as estruturas fsicas e as relaes entre elas e o corpo social esto pre-
sentes no convvio catico e dinmico da cidade. Sodr (2002) apresenta os sig-
nificantes da linguagem arquitetnica e faz uma associao dos elementos mate-
riais ao imaginrio, coordenando significaes de entrada, sada, gravidade, verti-
calidade, interiores, volumes, decorao, aparncia e fachada, com sua articu-
lao nas prticas sociais. Para o autor, esses elementos de linguagem ocupam
um lugar no imaginrio infinitamente maior que a realidade concreta, pois ela reg-
istra variveis polticas, econmicas e ideolgicas, articulando a padronizao
das diferenas sexuais, confirmando as hierarquias e certas formas de controles
sociais alm de servir como pano de fundo para uma memria nem sempre con-
sciente dos habitantes.
!17
!!
1.2 O espao mtico do drago e da cavalaria !!
Observando o espao, o cenrio das imagens que contm a luta mi-
tolgica entre o santo guerreiro e o drago, percebe-se sempre que o local, o es-
pao em torno do evento est sempre fora dos muros da cidade. O drago per-
tence a um ambiente fora do territrio, ele ocupa o espao heterognio sem iden-
tidade, o prprio spatium. uma floresta, uma caverna mida, sempre um am-
biente que no tem significados decodificados. Le Goff (1993 p. 240) analisando
as imagens medievais e renascentistas que retratam as relaes entre os santos
e os animais selvagens, cita So Francisco com seu lobo e So Jernimo com o
leo. Em ambos encontramos as faces tranquilas e os animais domesticados,
simbolizando o poder dos santos em transformar a natureza selvagem (FIG. 1 e
2).
!
" Fig. 1: So Jernimo em seu quarto.
Fonte: Autor annimo. Site culturageralsaibamais. 8!
http://culturageralsaibamais.wordpress.com/2009/08/28/o-leao-de-sao-jeronimo. Acesso em 15 de 8maio de 2011
http://culturageralsaibamais.wordpress.com/2009/08/28/o-leao-de-sao-jeronimo!18
" Fig. 2: So Francisco e o lobo
Fonte: Autor annimo. Site noviciado de varatojo . 9!So Jernimo, como exemplo, est inclusive escrevendo em seu quar-
to de estudo, sua morada, seu territrio, enquanto o leo encontra-se em paz, na
maioria das vezes, agachado aos ps do santo. Na imagem de So Francisco,
embora o espao seja fora da cidade, a natureza est simbolicamente ordenada
atravs da imagem corporal do lobo selvagem.
Diferentemente, nas imagens de So Jorge, o Drago a besta no
domesticvel, o que deve ser expulso ou morto, habitando um territrio no de-
codificvel no discurso imagtico. Na fig. 3, So Jorge est armado, com uma
lana, apontando para a boca ou pescoo, fixando em imagem o momento em
que h um domnio das foras do santo em relao ao mal, que habita em um lo-
cal no demarcado significativamente para a populao.
http://noviciadofm.blogspot.com/2011/03/outra-lenda-dos-fioretti-florinhas-diz.html Acesso em 2/fev/20119
http://noviciadofm.blogspot.com/2011/03/outra-lenda-dos-fioretti-florinhas-diz.html!19
Fig 3: So Jorge
Fonte: Pintura de Tintoretto. Site allposters 10!Le Goff (1993 p. 241) sugere que a vitria sobre um drago mais do
que derrotar o mal, tambm a possibilidade de ordenar um stio natural, a flores-
ta, ou um lodaal. Derrotar um drago simbolicamente civilizar, demarcar um
local no conquistado ainda e tem relaes fortes com o empreendedorismo de
uma comunidade. Expulsar o drago expandir o espao significativo, e, portan-
to, aumentar o territrio da comunidade.
http://www.allposters.pt/-sp/St-George-and-the-Dragon-posters_i1342052_.htm Acesso em: fev 201110
http://www.allposters.pt/-sp/st-george-and-the-dragon-posters_i1342052_.htm!20
Outro ponto importante considerar o arqutipo do cavaleiro medieval
em relao ao espao geogrfico. So Jorge na Idade mdia foi acolhido como
mrtir pelos cavaleiros, uma classe social que ascendeu principalmente a partir
do sec X com as cruzadas e as guerras de reconquista na Europa. Assim a cav-
alaria a instituio que vai conectar espacialmente a catedral, o castelo e os
pontos de peregrinao. Em outras palavras, a cavalaria o elo entre o espao
politico do clero, da nobreza, dos militares e o espao heterognio, sem identi-
dade, do desconhecido, do medo, das reas no habitadas, porque o cavaleiro
medieval um ser errante, no possui conforme Le Goff (2009 p.118) natureza
hereditria.
!!1.3 O castelo de So Jorge !!
Via de regra, o castelo medieval era um local auto sustentvel, uma
cidade. Um ambiente delimitado que frequentemente se encontrava em algum
montculo habitado por castelos, sendo o ncleo de aldeias e povoados circun-
vizinhos. Em Lisboa, o espao urbano envolveu o castelo de So Jorge, e este se
envolveu na cidade. Observe a descrio Fernando Pessoa.
!Quase em frente ao limoeiro, a rua da saudade, que leva ao
Castelo de So Jorge (...). Construdo num alto de onde se domina uma ampla vista do Tejo e de grande parte da cidade (PESSOA, 2008 p 24) !
!21
" Fig. 4: Mapa de Lisboa em 1844 desenhado por Joseph Meyer. Em destaque: O castelo de So Jorge
em vermelho, a Baixa Pombalina em amarelo e o Bairro Alto em azul. Fonte: Bibliographischen Instituts Hildburghausen 11!
O local domina o centro de Lisboa, que durante os sculos XIII a XVI
foi a morada dos reis. No pice das grandes navegaes, os governantes
reinavam do castelo. Assim ele acumulou o status fsico de lugar militar, real e
artstico, visto que as peas de Gil Vicente eram encenadas no castelo inicial-
mente. Observe a descrio do imaginrio lisboeta na voz de Fernando Pessoa:
!O castelo tem trs portas principais (...). Todas elas so muito anti-
gas. O prprio castelo assaz e notvel, com suas grossas muralhas, ameias e torres. Deles fizeram os reis sua residncia e foi tambm cenrio de muitos eventos notveis da histria poltica de Portugal.(PES-SOA, 2008 p 34) !
http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~21842~670081:Lissabon,-11Lisboa,-1844---with-view-?sort=Date%2CDate&printerFriendly=1, Acesso em: 10 fev 2011
http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/rumsey~8~1~21842~670081:lissabon,-lisboa,-1844---with-view-?sort=date%25252cdate&printerfriendly=1!22
Ainda hoje o castelo domina a vista em seu redor. O Tejo e o conjunto
urbano que vai do Rossio Baixa Pombalina, construdo logo aps o terremoto
no sec XVII para ser o corao atual administrativo e econmico esto em inferi-
oridade topogrfica. Seja qual for o nvel social do cidado lisboeta, ele estar
topograficamente abaixo diante da fortificao.
O castelo de So Jorge uma edificao que revela atravs do imag-
inrio lisboeta, o testemunho de um perodo de poder e ostentao, confirmando
Sodr (2002), que para ele, as estratgias oculares traam limites, estabelecendo
planos polticos, atribuindo domnios e territrios populao.
!
" Fig. 5: Centro de Lisboa vista da sacada do elevador Santa Justa em 2006.
Fonte: Autor da pesquisa !No entanto, ocorre tambm um esquecimento, um apagamento desta
memria por parte dos lisboetas.
O smbolo de Portugal imperialista e monrquico, expresso na suntuosi-
dade de um castelo na colina em pleno centro comercial urbano e que acompanhou
a histria local desde a formao da nao, tambm alvo de uma desconexo cul-
tural.
!23
Isso facilmente detectvel com moradores mais jovens da cidade. Du-
rante a pesquisa foi estabelecido um contato com um Jovem Lisboeta, Artista Plsti-
co, durante um festival de cinema em lngua portuguesa na cidade de Joo Pessoa,
o Cineport.
Aps conversa verificou-se, coincidentemente, que a nica relao forte
que ele tinha com So Jorge era o Jorge que havia em seu nome, batizado pela sua
av.
No romance Noutros tempos foi So Jorge o meu Patrono, em Fontes
(1987 p. 1151) observa-se um misto de saudade e desgosto pela situao de aban-
dono e desprezo s tradies mais antigas portuguesas. Neste romance, o Eu lrico
invoca a identidade do castelo, se torna um com ele, bordado nas ameias de suas
muralhas e assume o esquecimento de So Jorge pela populao
Noutros tempos foi So Jorge o meu Patrono !Cantada por Aurora Celeste Campos, nascida em 1907. Avelanoso/Bragan-a. Coleta em 31 julho de 1980. Fontes (1987 p.1151). !Noutros tempos foi So Jorge o meu patrono Aos herois aos guerreiros dei abrigo Hoje vivo desprezado, ao abandono Sem o culto da saudade dum amigo !Velho baluarte Das sete Colinas Sou forte estandarte Do pendo da esquina !Das ameias que me bordam na muralha Ao reverdo (?) resisti aos Castelhanos Insensvel aos assaltos e metralha Muito embora j bregado pelos anos !Humilde hospedagem Eu dou os meus braos famosa imagem Do senhor dos passos !!
!24
Portanto, o castelo um smbolo identitrio portugus relacionado ao im-
perialismo, monarquia dos Avis, aos mitos de So Jorge, s suas relaes polticas
com a Inglaterra, s idias de fortaleza e estabilidade contra os invasores histricos
da pennsula ibrica e os Mouros.
!!1.4 O territrio de Ogum na frica e no Candombl da Bahia !!
Conforme Bastide (2005) Ogum, originalmente, vive na terra longnqua
da Africa. Ele no est no Brasil, mas mesmo assim, atrado pelo sangue dos
sacrifcios e pelos toques dos tambores, vem para comer e para danar encarna-
do no corpo de seus filhos. Ogum fixado, escrito em pedras, pedaos de ferro,
na cabea de seus filhos entre frica e Brasil, ocupando, assim como os outros
orixs, um intermezo entre o invisvel (orum) espao espiritual, simbolicamente, o
mato, a Africa, e o visvel (ay) o espao fsico, construdo geogrfico/performti-
co no Brasil, que se interpenetram criando uma cosmogonia prpria.
Essa geografia sagrada entrecortada pelo no observvel, carregada
de significados mais do que um projeto terico, , como afirma Eliade (2005 p.
32), a prpria realidade dos iniciados, pois o mito real, um espao organizado
simbolicamente.
Na Africa, os filhos de santo so segregados de acordo com sua pater-
nidade espiritual, os lugarejos so dedicados aos cultos de entidades especficas.
Tem-se uma ciadade de oxum, outra de iemanj e assim por diante. Verger
(1999) analizou o espao do culto Ogum na aldeia de Ishd, em que 95% da
populao filho do Orix ferreiro.
O templo de Ogum, nessa localidade, ocupa um lugar na vizinhana da
urbe. uma clareira no meio do mato contendo algumas cabanas.
!
!25
" Fig. 6: Templo de Ogum em Eshd Fonte: Foto de Pierre Verger (2002) !
A partir dos deslocamentos dos participantes do culto de Ogum que
Verger (2002) desenhou, possivel estabelecer as relaes espaciais, descrever
a cidade sagrada e observar as relaes entre Ogum, Exu, Oxossi; entre os
orixs e os outros ancestrais, os eguns; as presenas dos ogans, percutindo os
tambores e das mulheres, que vo proporcionar ordem durante todo ritual.
!
!26
" Fig 7: Movimentos dos participantes durante culto para Ogum em Eshd Africa
Fonte: Desenho de Pierre Verger (1999) !Enquanto So Jorge ocupa o centro urbanstico de Lisboa, Ogum em
Eshd, na frica, ocupa um territrio, no menos importante, porm, deslocado
da urbe. Est presente em sua cidade prpria. O local dos rituais para Ogum
possui demarcaes simblicas que estabelece o territrio do Orix.
No Brasil e principalmente na Bahia os rituais afros mais tradicionais
de Candombl se estabeleceram como espelho do territrio original africano, con-
tudo em consequncia do convvio das diversas etnias e naes africanas nas
senzalas durante o perodo da escravido no Brasil, o Candombl aglutinou os
diversos Orixs, que, separados em diversas aldeias na Africa, passou a compar-
tilhar territrios nos interiores das casas de candombl. Portanto, os orixs podem
dividir espacialmente o mesmo Pegi, local sagrado onde esto depositados, as-
sentados, os objetos simblicos que representam a presena dos orixs como
ocorrem em Gantois (FIG. 9), ou obedecer a orientao territorial conforme a
casa de nao ketu do Engenho Velho (FIG. 8), em que os orixs mais impor-
tantes ocupam cmodos diferentes na casa.
!
!27
" Fig. 8 Planta baixa do terreiro do Engenho Velho de nao Ktu at o ano de 1948.
Fonte: Edison Carneiro [s.d] ! possvel perceber que a casa do Engenho Velho (FIG. 8) no
morada de famlia ou de lderes da comunidade, mas frequentado por pessoas
que esto cumprindo tarefas, desepenhando alguma funo na comunidade,
sendo organizado de acordo com a distribuio especfica geogrfica que cada
orix exerce no corpo religioso do Candombl. Cada orix ocupa um territrio da
casa e o barraco o ambiente que ocorre a festa, envolvendo todos os orixs e
filhos de santo nos dias especficos durante o ano.
Diferentemente do que ocorre no terreiro de Engenho Velho, a casa de
Gantois a residncia fixa da tradio genealgica das mes de santo da casa.
Assim, observando a sua planta baixa (FIG.9), pode-se observar que o territrio
dos Orixs encontra-se aglomerados, dividindo espao com as yas e a Me de
Santo.
!
!28
" Fig 9: Planta baixa do terreiro de Gantois.
Fonte: Arthur Ramos (1988) Tanto em Gantois, quanto no Engenho Velho, os Orixs j no habitam
mais um territrio semelhante ao que ocorre na Africa. A mata, a clareira, o es-
pao selvagem, natural, adjcente cidade, substituido pela casa, mesmo que
este espao esteja sendo utilizado sempre em dilogo simblico com o ambiente
africano. !!
1.5 So Jorge/ Ogum em Joo Pessoa !
A expanso horizontal do espao territorial urbano de Joo Pessoa no
sculo XIX aconteceu de maneira vertiginosa, sendo fator preponderante que atu-
ou na identidade do Pessoense atravs da maneira como a comunidade se rela-
cionou com estas mudanas, influenciando tambm na territorializao religiosa
dos terreiros da cidade.
!29
Conforme Trajano (2006 p. 32), durante tres sculos, Joo Pessoa es-
teve espremida entre a colina que repousa a Rua Nova, hoje, Rua General Os-
rio, e o Rio Sanhau. As ruas, na medida em que crescia a populao, iam
tomando novos contornos, se adaptando, encurtando, ora se abrindo em largos,
ora fechando em becos (ver Fig. 11), traando desenhos urbanos que no es-
tavam de acordo com as novas tendncias urbansticas, estimuladas pela mod-
ernizao da Capital Federal, Rio de Janeiro. !
" Fig. 11: Vista area atual de Joo Pessoa a partir do Rio Sanhau
Fonte: Foto de Felipe Gesteira 12!Logo no incio do sculo, a partir da disputa poltica entre os par-
tidrios da reformulao do Porto de Capim no centro de Joo Pessoa e os que
queriam o Porto de Cabedelo como escoamento dos produtos paraibanos,
comeou-se uma especulao sobre a instalao de um novo porto na enseada
de Tamba. Entretanto, antes mesmo da construo desse porto, que nunca ex-
istiu, uma avenida foi aberta no meio do mato, ligando o que seria o futuro porto
zona urbana. Nasce em 1918 a avenida Epitcio Pessoa.
http://felipegesteira.com/blog/?page_id=936 Acesso em: abril de 201112
http://felipegesteira.com/blog/?page_id=936!30
Mesmo com a Avenida construida, foi somente entre os anos 1923 e
1926, na gesto do prefeito Walfredo Guedes Pereira, estudante de medicina no
Rio de Janeiro entre 1902 e 1908 que se empreendeu uma srie de medidas
com o objetivo de melhorar a locomoo; atravs do alargamento de vias, de-
molio de prdio, igrejas e favorecer a higiene com implantao de abstecimen-
to de agua e rede de esgotos. Com esses benefcios, a populao de Joo Pes-
soa ultrapassa o limite da Lagoa e incia a expanso em direo leste, via Epit-
cio Pessoa.
Ainda seguindo a tendncia modernista, em 1932, o urbanista Nestor
Egydio de Figueiredo cria um plano que idealizou a conexo entre o rio Sanhau
e o mar de Tamba, integrando os bairros de Cruz das Armas e Tambi, tendo a
Lagoa Soln de Lucena como elemento central de articulaco entre o rio, o mar e
os bairros adjacentes.
Com intenses voltadas sobretudo para deslocar as camadas mais
populares das regies mais centrais, o plano de Nestou Egydio foi colocado em
prtica e ocupou-se definitivamente as margens da avenida Epitcio Pessoa. O
Bairro da Torre, bero da Tribo Africanos da Torre desde 1918, do carnaval
tradio e tambm do Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, vai surgir
destas primeiras investidas do governo estadual (FIG. 12)
A partir da dcada de 1950, o investimento pblico no setor da
habitao, resultado do Montepio dos Funcionrios Pblicos, do Instituto de
Aposentadoria e Penso (IAPs) e da Fundao da Casa Popular, promove em-
preendimentos habitacionais de pequeno e mdio porte, seguindo o modelo de
residncia unifamiliar de conjuntos habitacionais. O Bairro dos Expedicionrios
surge neste contexto histrico em 1955, onde vai sediar o Terreiro Ogum Toper-
in.
!31
Na dcada de 1960 com a ao do Sistema Financeiro de Habitao
(SFH) e do Banco Nacional de Habitao (BNH), o modelo de empreendimento
ganha novos financiamentos. Os investimentos passam a associar servios de
infra-estrutura urbana e rede viria. A orientao da expanso territorial se distan-
cia ainda mais do centro e passa a seguir em direo sudeste. Criam-se os eixos
rodovirios da BR-101 e da BR-230, a implantao do Campus da Universidade
Federal da Paraba, do Distrito Industrial e dos conjuntos Castelo Branco, Fun-
cionrios e Costa e Silva.
A partir da dcada de 1970 intensifica mais ainda a ideologia de ex-
panso em direo sudeste da cidade. Neste perodo, o objetivo principal foi
recolher populaes das favelas que comeavam a proliferar rapidamente na cap-
ital. Assim atingiu-se um nvel vertiginoso de periferizao com a construo de
grandes conjuntos habitacionais tais como Mangabeira e Valentina Fiqueiredo,
local onde Me Lcia vai morar com sua me, Me Edite e fundar o terreiro de
Candombl Kwe Ceja Azirin (FIG. 13).
!
" Fig. 12: Mapa de Joo Pessoa dos anos 1930 Fonte: Prefeitura Municipal de Joo Pessoa 13!
http://www.geociencias.ufpb.br/~paulorosa/tcc/Mono_Ivo.pdf . Acesso em: 3/maro/201113
http://www.geociencias.ufpb.br/~paulorosa/tcc/mono_ivo.pdf!32
Os terreiros Afro-Pessoense vo surgindo e se deslocando obedecen-
do esta tendncia de expanso territorial no transcorrer da histria da cidade.
Pois as comunidades que praticam os rituais so em sua maioria formada por
famlias menos favorecidas economicamente e, portanto, seguem o fluxo desta
poltica de segregao espacial. Como exemplo, o centro de Umbanda Ogum
Toperin, com antiga sede no Bairro dos Expedicionrios, mas que no suportan-
do a presso imobiliria, o lder vende a casa em 1992
Alm dos deslocamentos da populao mais pobre, esta expanso ter-
ritorial ocasionou tambm uma fenda cultural na classe mdia de Joo Pessoa.
Um apagamento de referenciais simblicos provocado pela fuga imobiliria que
produziu uma nova gerao em torno do mar, desconectada com a memria sim-
blica do centro de Joo Pessoa e bairros adjacentes, ocupada em torno do Rio
Sanhau durante tres sculos.
Desconexo que, consequentemente, provocou uma segregao so-
cial com base territorial entre as populaes das regies da orla envolvendo Cabo
Branco, Manara e Bessa e os bairros da regio sudeste, entre eles, Magabeira e
Valentina Figueiredo.
Comparando os dois mapas pode-se observar a grande expanso ur-
bana da cidade em direo ao sudoeste. O Bairro da Torre, juntamente com os
Expedicionrios foram inicialmente bairros da periferia (ver Fig. 12), aos poucos
foi adquirindo caractersicas de bairro residencial de classe mdia durante os
anos 1970 e atualmente, 2011, boa parte de seu espao ocupado por estab-
elecimentos comerciais.
Assim pode-se deduzir porque em bairros como a Torre residem ter-
reiros antigos da cidade, enquanto que os abertos mais recentemente esto nos
bairros construdos a partir dos anos 1970, entre eles, o bairro de Valentina. !!
!33
"
" Fig 13: Mapa da cidade de Joo Pessoa em 2011
Fonte: Legendas elaboradas por Roncalli a partir do mapa da Prefeitura Municipal de Joo Pessoa 14!.
www.joaopessoa.pb.gov.br. Acesso em: 3 abril de 201114
http://www.joaopessoa.pb.gov.br!34
Diferentemente de So Jorge em Lisboa, como signo esttico urbano,
representado pelo Castelo (Fig 5, p. 18) e Ogum em Eshd na Africa (Fig 6, p.
20), dono de seu prprio territrio, em uma clareira prxima a urbe, Ogum/ So
Jorge se deslocam para Joo Pessoa habitando as margens da cidade, obede-
cendo o fluxo expansionista imobilirio. E alm de estarem na periferia, histori-
camente, se restringiram ao espao privado, um espao interno, no confinamento
dos oratrios catlicos e nos gongs afro-pessoense, o qual representa tambm
o confinamento de Ogum, dividindo espao com outros Orixs africanos, em
convivncia com outras entidades, tais como preto velhos, caboclos, pombagiras,
boiadeiros com origens diversificadas. !
" Fig 14: Gong, oratrio do terreiro Nossa Senhora do Carmo. So Jorge ao lado de Maria, Yemanj,
Oxum e Joo Batista Fonte: Foto de Roncalli Dantas. !
No interior deste espao devocional, cada sistema possui seu territrio
especfico, fisicamente demarcado. Os orixs no se misturam com entidades de
origem indgena ou santos catlicos, eles possuem um Pegi, espcie de quarto,
altar, onde esto depositados os materiais simblicos, os assentamentos, que
so, para os iniciados, a presena dos orixs na casa. Contudo a relao entre
Ogum e So Jorge to forte que se observa normalmente nos gongs de inicia-
dos e das casas de Umbanda, a presena de imagens de So Jorge ao lado de
santos e orixs (FIG. 14).
!35
Do espao urbano de Joo Pessoa para o territrio das casas, a partir
das plantas baixas de dois terreiros em Joo Pessoa possvel observar a
grande complexidade territorial destes espaos interiores, privativos da comu-
nidade e entender as representaes de poder que exercem cada sistema cultur-
al nas diversificadas relaes que existem entre as entidades.
!
" Fig. 15 Planta baixa do Terreiro Nossa Senhora do Carmo at o ano 2008
Fonte: Anotaes de Roncalli Dantas !O terreiro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, fundada em 1973
no bairro da Torre, uma das casas mais tradicionais em Joo Pessoa. Embora
tendo sido aberta em um perodo de valorizao imobiliria no bairro, e tendo o
marido como comerciante de pescado, a casa de Me Maria dos Prazeres, con-
struda em Taipa demonstra a situao econmica nos primeiros anos de trabal-
ho espiritual, tempos em que a Torre era ainda periferia da cidade.
!36
Conforme se observa na figura 15, a comunidade estabelece a organi-
zao territrial entre os Orixs e as entidades amerndias. Cada sistema possui
seu habitat e exigem performances diferentes dos iniciados em cada espao. O
cigarro, a bebida e as vestes sensuais, com exceo das festas de Exu, so im-
pedidos no territrio dos orixs, assim tambm como os elementos representa-
tivos da Jurema, de origem amerndia, que no tem acesso ao territrio de santi-
dade dos Orixs. Em relao aos elementos fsicos da estrutura arquitetonica
dos ambientes, enquanto a casa da Jurema possui o piso em cimento queimado
e paredes pintadas de verde, o local dos orixs ocupa um espao fsico maior,
ocupando toda largura do terreno, mais claro, no fundo da casa, construda em
cermica branca.
Contudo, diante dessa organizao simblica da religiosidade, a est-
tua de So Jorge, assim como os demais santos cristos tem liberdade de se
deslocarem entre os dois universos. So Jorge est presente tanto no gong,
oratrio, de cultos de jurema quanto no oratrio em cultos de orixs, mesmo que
o oratrio esteja em alguns momentos, coberto com cortina.
O Segundo terreiro pesquisado se localiza no bairro de Valentina
Figueiredo. O Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin abriu as suas portas para a
comunidade em 1989, bairro que tambm criado a partir das polticas de ex-
panso habitacionais na cidade em direo ao sudoeste conforme o mapa da
cidade (Fig. 13).
!37
" Fig. 16: Planta baixa do Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin, bairro de Valentina
Fonte: Anotaes de Roncalli Dantas !
!38
O desenho da planta baixa conforme figura 16, no possui os dois es-
paos distintos entre as entidades de Jurema e Orixs. Segundo o lder da casa,
Pai Marcelo, eles no tiveram recursos financeiros para tanto. Assim, a organiza-
o dos universos religiosos se d de maneira mais complexa. As rodas de gira
para Orix e para as entidades de Jurema ocorrem no mesmo local, mas os quar-
tos da casa que servem de assentamento aos elementos simblicos, os Pegis,
existem separadamente em dois quartos. Um ao fundo, o maior, comporta os el-
ementos de Orixs, e outro ao lado, pequeno, fechado por uma esteira de plsti-
co, dedicado s entidades de Jurema: os Caboclos, os Mestres, os Boiadeiros,
e Pretos Velhos. Nas paredes do barraco, existem elementos que simbolizam
Oxum, orix que rege a casa, a Cortina amarela e a foto da matriarca Me Edite
(Fig 17), alm de um certificado fixado no umbral da casa que confirma a comu-
nidade como casa de Candombl desde o ano 1989.
!
" Fig 17: Me Edite.
Fonte: Foto de Roncalli Dantas, acervo do Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin !
!39
Mesmo tendo uma formao forte na matriz afro, pertencente ao can-
dombl, os lderes de Valentina foram iniciados primeiramente em uma casa dita
de Umbanda, na convivncia entre os diversos sistemas de entidades, partindo
do mesmo tronco espiritual do Terreiro de Nossa Senhora do Carmo no bairro da
Torre, visto que a me biolgica da Me de Santo de Valentina, foi me-pequena
do terreiro de Umbanda Ogum Toperin de Pai Valdivino de Lima Morais, casa
que deu origem as duas comunidades estudadas. Atualmente, a casa do Valenti-
na uma casa de Candombl de nao Jeje, mesmo que, por respeito Me
Edite, que continua fiel aos rituais de Umbanda, a casa dedique parte de seu es-
pao e do seu calendrio de festas anuais s entidades de Jurema.
Mas no s harmonia e boa convivncia que ocorrem nas casas de
religio afro-pessoenses. Na Torre, o processo de transio de liderana vem
sendo o principal gerador de mudanas na casa, afetando tambm a estrutura
arquitetnica. Aps a lder Me Maria dos Prazeres em 2009, decorrente do Mal
de Azheimer, perder a memria, muitos filhos da casa se dispersaram, abriram
terreiro e outros levaram seus objetos para as respectivas residncias pessoais.
Do ponto de vista arquitetnico, a casa fsica tambm acompanhou as
mudanas. O local de culto para os orixs ruiu, ficando intacto apenas o quarto do
Pegi e o gong, como se observa na figura 18. A velha casa de taipa, antiga
residncia de Me Maria dos Prazeres tambm foi demolida, dando lugar a uma out-
ra de alvenaria, no mesmo local, via projeto da prefeitura, que subsidia a construo
de casas populares.
Pai Nno, filho biolgico de Me Maria dos Prazeres assumiu a liderana
espiritual da casa em 2010.
!40
" Fig. 18: A gira no Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo aps desabamento em 2009.
Fonte: foto Roncalli Dantas
!41
!!2 Contextualizao histrica das famlias de santo pesquisadas !!
Neste captulo, tem-se uma contextualizao da formao das duas co-
munidades pesquisada e a descrio da genealogia espiritual a partir dos relatos de
Pai Marcelo Jos Ferreira Santos, 33 anos de idade; Me Lcia de Ftima Ferreira
Santos, 52 anos de idade e de Me Edite Ferreira de Lima, 88 anos de idade.
Embora ocorram diferenas entre as duas casas estudadas, com cada
comunidade possuindo autonomia espiritual, ambas so terreiros de Oxum e tm a
mesma ancestralidade espiritual.
O Tenente militar dos Bombeiros, Pai Valdivino de Lima Morais (Fig I), fil-
ho espiritual de Pai Moiss, vindo do Xang, ritual de candombl de nao Nag, foi
o lder espiritual de Me Edite , de Me Lcia, que geraram a famlia de santo em
Valentina e tambm foi ancestral espiritual de Me Maria dos Prazeres, que gerou a
famlia de santo no bairro da Torre. Me Edite e Me Maria dos Prazeres, as duas
lderes dos terreiros estudados, vivenciaram a Umbanda nos conturbados anos da
dcada de 1950.
At meados dos anos sessenta, como em todo resto do pais, somente a
religio catlica gozava de prestgio social. Na memria de Me Edite, em con-
cordncia com a pesquisa de Stnio Soares (2009), figura-se o governo de Pedro
Gondim entre os anos de 1958 a 1966 como a poca de forte perseguio aos cul15 -
tos afro Pessoense, quando a polcia invadia terreiros, apreendia objetos de culto,
batia e prendia os adeptos.
Governador da Paraba de 1958 at 1960 e de 1961 at 1966 pelo partido da ARENA, filiando-se 15depois ao PMDB
!42
" Fig. I A sequncia genealgia espiritual. Pai Moiss, Me Edite e Pai Valdivino (de capa) no terreiro
de Umbanda Ogum Toperin, Bairro dos Expedicionrios. 1969 Fonte: Acervo pessoal de Me Edite
Neste perodo do Governo de Pedro Gondim, a casa de Pai Valdivino as-
cende em Joo Pessoa como refgio, agregando filhos de santo de outras casas.
Me Edite, que foi uma refugiada no castelo do cavaleiro de Umbanda Pai Valdivi-
no, nos d pistas de como isso ocorreu. !
Eu entrei na Umbanda por que vivia doente. Comecei na casa de Sebastio da Gama em Cruz das Armas, mas a casa foi invadida pela polcia pouco antes dele fazer minha cabea. Sebastio ficou muito desgostoso, fechou a casa, nos deixou () e foi embora para o Rio de Janeiro. Fiquei sem casa e sem orientao. Foi quando Pai Valdivino me recebeu e deu continuidade. Ele quem fez minha cabea. Eu sou filha de santo dele. Ele era Tenente
!43
dos Bombeiros. Era conhecido dos policiais. Ningum importunava a casa dele.(EDITE 2010) 16!
O neto biolgico de Me Edite, Pai Marcelo, que foi ogn na casa de
Ogum Toperin, relata sobre as festas principais que ocorria na casa de Pai Valdivi-
no. As festas principais do ano eram para Ogum, Ians, Exu, que se comemo-rava o aniversrio de Valdivino, em 16 de agosto, e para Yemanj, pois ele era tambm devoto de Nossa Senhora da Conceio. No dia da festa de Yemanj descia todos da casa dos expedicionri-os para a praia de Cabo Branco. Um andor com a imagem de Nossa Senho-ra da Conceio escoltado por ele com o seu cavalo branco. Valdivino cria-va aquele cavalo somente para o cortejo de yemanj() O terreiro nos Expedicionrios era enorme, era terreno para stio de granja, em torno de 40 por 50 metros. E o ambiente ainda se tornava pe-queno nas festas, pois se formavam at cinco giras ao mesmo tempo no barraco. A gente se revesava, pois o toque comeava as 5 da tarde e s acabava as 5 horas da manh. Vinha filho de santo de tudo que bairro de Joo Pessoa. (MARCELO 2010) 17!
Aps o Governo de Pedro Gondim, com a eleio de Joo Agripino em
1966, instalou-se a legalizao do culto.
!Joo Agripino ainda hoje reverenciado pelo povo de santo como nosso governador, ou salvador, aquele que liberou a religies afro-brasileiras na Paraba. Ele oficializou a prtica desses cultos retirando-os da clandestini-dade. (SOARES 2009 p. 143). !
O art. 5 da Lei Estadual 3.443/66 proposto por Joo Agripino de Vascon-
celos Maia Filho delega s Federaes de Culto Afro-Brasileiro disciplina, o exer18 -
ccio dos cultos no Estado e representao legal das atividades de suas filiadas, reti-
rando do estado o poder de fiscalizao e represso sobre as casas. Assim Instalou-
se uma liberdade mediada por federaes que eram inexistentes ainda em nosso
estado, desencadeando um processo desordenado de organizao entre as diver-
sas casas, surgindo um desequilbrio entre a autonomia das comunidades e a ne-
cessidade de se filiar a instituies com o objetivo de entrar na legalidade.
No mesmo ano de 1966, foi instituda a festa de Yemanj no dia 8 de de-
zembro. Esse evento marca simbolicamente a sada da clandestinidade do povo de
santo em manifestao pblica de expresso religiosa de conquista do territrio ur-
Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro de Valentina em dez/201016
Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro de Valentina em dez/201017
Governador da Paraba de 31 de Janeiro de 1966 at 15 de marco de 1971 pelo partido da ARENA18
!44
bano de Joo Pessoa. O que antes era restrito e relegado aos fundos das casas ou,
quando muito, limitado aos descampados nos arredores da cidade, se tornou uma
celebrao popular envolvendo a sociedade, incluindo o cidado comum, leigo aos
rituais de yemanj (ver fig II).
!
" Fig. II: Primeiro cortejo da Festa de Yemanj em Dezembro de 1966, organizado por Pai Valdivino.
Fonte: Acervo pessoal de Me Edite. !A celebrao final do cortejo se dava em frente antiga casa de Joo
Agripino, na praia de Cabo Branco.
No contexto de maior liberdade de culto, a Irm de santo de Me Edite na
casa de Ogum Toperin, Em 1973, Me Maria dos Prazeres, abriu terreiro no Bairro
da Torre e em 1987, Me Lcia abriu a sua casa para receber seus clientes no 19
bairro de Valentina . A casa de santo em Valentina inicialmente se denomina casa 20
de Umbanda Oxum Belein e continuou seguindo a tradio como filha da casa de
Ogum Toperin.
Bairro perifrico no incio do sculo XX, que possuia grande envolvimento nas culturas populares, 19sendo alvo da visita de Mario de Andrade quando esteve em Joo Pessoa entre os dias 28 de janeiro a 7 de fevereiro de 1929 conforme Carnicel (1994, p. 138 -139)
Bairro construido nos anos 1980 que vai receber a populao de outras periferias da cidade 20
!45
Em 1992, Pai Valdivino vende a casa nos expedicionrios e muda-se para
Mangabeira. Este deslocamento provoca a disperso de boa parte das filhas de san-
to mais antigas, dentre elas, Pai Marcelo cita em depoimento, Me Edite, Maria Pa-
trcia, Me Mocinha e Maria do Carmo. Algumas delas foram para o Valentina, o que
provocou sucessivas reconstrues da casa para acomodar as pessoas que
chegavam.
Em 1997, pai Marcelo conhece o Candombl de rito Jje da casa de Me
Renilda em Cruz das Armas e logo em seguida Me Lcia segue a mesma atitude 21
de mudar de folha, que a expresso que significa a mudana de orientao espir-
itual. A casa de Umbanda Oxum Belein que era de orientao umbandista, descen-
dente direta da casa de Ogum Toperin, se transforma em casa de Candombl Kwe
Ceja Azirin de nao Jje, trazendo consigo todas as mudanas contidas ao mudar a
origem cultural dos ritos, inclusive na comunicao verbal, pois as celebraes e os
rituais no que diz respeito a matriz afro (celebraes para orix) so agora realiza-
dos utilizando lnguas de origem africanas.
Portanto, atualmente, na casa de Candombl Kwe Ceja Azirin coabitam
pessoas que produzem rituais individuais distintos e consequentemente perfor-
mances distintas. Os remanescentes que continuam seguindo os rituais da casa de
Ogum Toperin e os novos filhos, j formados em Candombl. Vale salientar que ex-
iste uma unanimidade na opinio entre eles relativo ao aspecto de que todos tiveram
boa formao nos ensinamentos de Orix, pois a casa formadora inicial era forte-
mente influenciada pela matriz afro vinda do Xang de Recife, candombl de rito
Nag. Por outro lado, a mesma casa de candombl perpetua, no seu calendrio an-
ual, os toques para Jurema, principalmente em respeito aos filhos mais antigos. So-
bre os rituais na casa de Ogum Toperin e a influncia das diferentes matrizes cul-
turais na viso de Pai Valdivino, Pai Marcelo explica: !A Umbanda em Pai Valdivino, que deu origem a grande parte das casas de Joo Pessoa, tinha o rito Nag do Xang [Candombl] de Recife. mais a parte branca, a parte clara. () Ele [Pai Valdivino] nunca raspou cabea de nenhum de seus filhos(). Cantava-se em portugus, mas se fazia curi-ao[matana de animais] (MARCELO, Valentina) 22
Bairro perifrico enquanto o territrio de Joo Pessoa ainda se limitava at a Lagoa Soln de Lu21 -cena no incio do Sculo XX. Localiza-se logo ao sul do centro histrico (Ver fig 13)
Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro Valentina em 12/201022
!46
Em 2003, Pai Valdivino se desloca novamente e abre nova casa em Pe-
dras de Fogo . Em 2007 ele fecha definitivamente sua casa, deixando seus objetos 23
rituais com Pai Severino, que o acompanhou desde os tempos dos expedicionrio.
O cavaleiro de Umbanda, j vivo, retorna para Joo Pessoa idoso, fican-
do aos cuidados de uma filha de Santo, Me Irene no bairro de Mangabeira.
Em Aroeiras, cidade vizinha de Pedras de Fogo, Pai Severino tambm
muda a folha e procura o terreiro de Me Renilda. Pai Severino, que era filho de Val-
divino e Irm de Santo de Me Lcia, passa a ser filho de santo de pai Marcelo no
Candombl, aumentando a complexidade das relaes de genealogia que produz as
relaes de hierarquia no interior dos rituais e no cotidiano das casas. (ver os dia-
gramas 1 e 2)
Cidade localizada no sul da Paraba, a 42 km de Joo Pessoa 23
!47
!
" Diagrama 1: Genealogia em Umbanda. !!!!
" Diagrama 2: Genealogia aps mudana da Umbanda Para o Candombl. !
!48
!3 A escritura Performtica !!
Aps a representao do espao fisico e simblico entre os territrios de
Ogum e So Jorge em suas respectivas cidades simblicas, e de contextualizar
histricamente o sujeito que vivencia as prticas afro-pessoense, necessrio a
compreenso de como este territrio dialoga com as comunidades atravs da leitu-
ra das narrativas performticas que os indivduos produzem.
Neste captulo, Inicialmente, tem-se um esboo do que foi a presena do
patrono de Portugal, So Jorge, durante o cortejo da celebrao do dia de Corpus
Christi, celebrado ano aps ano, por mais de 3 sculos e registrado pelas lentes de
Joshua Benoliel. Depois tem-se a narrativa da celebrao para Ogum em Eshd,
Africa, fundamentado nas fotografias de Pierre Verger. E por ultimo, a narrativa da
performance de Ogum/ So Jorge registrado pelo autor da pesquisa em abril de
2008.
. !3.1 So Jorge e a celebrao de Corpus Christi Em Lisboa ! !
A celebrao de Corpus Christi teve origem em 1243, em Lige, na
Blgica, no sculo XIII, quando a freira Juliana de Cornillon teria tido vises de
Cristo desejoso de que o mistrio da Eucaristia fosse celebrado com maior
destaque. Em 1264, o papa Urbano IV atravs da Bula Papal estendeu a festa
para toda a Igreja e em Portugal, a celebrao ordenada pelo rei Dom Dinis no
ano de 1284.
A partir da implantao da dinastia de Avis em 1385, Portugal cria vncu-
los com a Inglaterra, que tinha So Jorge como patrono, atravs do tratado de Wind-
sor em maio 1386 e do casamento do Rei Dom Joo I com a filha de Jonh of Gaunt,
Filipa de Lancaster em 1387, que introduziu vrios usos ingleses em Portugal.
Durante este perodo, So Jorge se eleva a categoria de patrono de Por-
tugal para substituir a antiga relao lusa com Castela atravs da figura de So Tia-
go e ainda em 1387, a imagem de So Jorge includa na principal festa do calen-
drio portugus.
!49
Em uma palestra, Georgina S. Santos descreve a presena do Santo na 24
procisso de Corpus Christi em Portugal durante o antigo regime atravs do cronista
Barbosa Machado que ocorreu em 1719.
()Mas foi de fato a introduo do santo [So Jorge] na procisso do Cor-po de Deus, ainda em 1387, a grande responsvel pela transformao do mrtir numa entidade popular. Realizada em todo torro portugus, a pro-cisso em honra Eucaristia era a festa mais importante da Igreja lusa. Or-ganizado pela Cmara local e financiado pelos participantes, o cortejo con-tava com a presena dos oficiais camarrios, dos oficiais mecnicos, da clerezia e, s vezes, do prprio monarca. Os preparativos para o evento mobilizavam pessoas do lugar, dos arredores e coalhava as ruas de gente. Por determinao municipal, as vias eram tapizadas de flores e ervas, nas sacadas e janelas punham-se veludos e damascos (SANTOS 2006 p. 5). !
Toda populao mobilizava-se durante os preparativos da cerimnia e ha-
via um momento em que So Jorge reapropriava-se do Castelo, local que durante a
dinastia de Avis, foi smbolo da realeza imperialista em Lisboa.
!Nas cidades massacradas outrora pelos cercos castelhanos a apario de So Jorge era o clmax da festa. Em Lisboa, So Jorge sobre um cavalo era escoltado por um pajem, um alferes, o popular homem de ferro, e por cava-larios vistosamente trajados. No encerramento da festa, ano aps ano, o santo tomava posse de seu castelo e recebia ali, vista de uma multido entusiasmada, as honras de general ( SANTOS 2006 p.5) !
O cronista Barbosa Machado descreve com detalhes a formalidade da en-
trada do personagem no cortejo e a presena do vermelho, presente nas vestes
carmesin, e os metais ferro e prata.
A presena de So Jorge no cortejo de Corpus Christi simbolizava a funda-o da dinastia dos Descobrimentos e imprimia no evento um carter cvico que se transformou em tradio. Em 1719, no reinado de D. Joo V, o santo fez uma apario memorvel segundo o cronista Barbosa Machado. Trom-beteiros a cavalo, vestidos de veludo carmesim, guarnecidos de gales de prata, abriam passagem para um cavaleiro vestido e calado de ferro com viseira e colete, que se mostrava como o alferes da milcia antiga. Levando uma comprida bandeira, o mancebo liderava a apario de quarenta e seis cavalos da caudelaria real, conduzidos mo pelo mesmo nmero de mo-os das cavalarias, calando luvas brancas e vestidas em libr da Casa Real. (SANTOS 2006, p.5) !
Palestra para o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro em 9 de agosto de 200624
!50
No final do sculo XIX, a monarquia Portuguesa entra em crise devido ao
aumento de impostos, dficit da balana comercial e endividamento externo, geran-
do descontentamentos populares, que fizeram crescer a influncia dos republicanos.
Em 1891 estoura a primeira revoluo na cidade do Porto, mas a monar-
quia e o governo respondem com represso culminando com o estabelecimento da
ditadura por Joo Franco em maio de 1907. O apoio do Rei D. Carlos ditadura
coloca-o em oposio s duas tendncias politicas de Portugal, os monarquistas e
republicanos, ocasionando o regicdio e assassinato de seu filho, herdeiro do trono,
no dia 1 de fevereiro de 1908 na Praa do Comrcio.
O Segundo filho de D.Carlos, D. Manoel II recebe a coroa e fica no trono
at a revoluo em outubro de 1910, quando os republicanos tomam o poder e im-
plantam o estado laico, fortemente influenciado pelos ideais positivistas, diminuindo
a fora da igreja no pas
O captulo III da Lei de Separao da Igreja do Estado enftico quanto
s limitaes das manifestaes pblicas da igreja, entre elas, a procisso de Cor-
pus Christi.
!Artigo 55 e 57 Os actos de culto de qualquer religio fora dos lugares a isso destinados, incluindo os funerais ou honras fnebres com cerimnias cultuais, importam a pena de desobedincia, aplicvel aos seus promotores e dirigentes, quando no se tiver obtido, ou for negado, o consentimento por escrito da respectiva autoridade administrativa. As cerimnias, procisses e outras manifestaes exteriores do culto no podero permitir-se seno onde e enquanto constiturem um costume inveterado dos cidados da respectiva circunscrio, e devero ser imediata e definitivamente proibidas nas localidades onde os fiis, ou outros indivdu-os sem seu protesto, provocarem, por ocasio delas, tumultos ou alteraes da ordem pblica (PORTUGAL, 1911). !!
Durante os dois anos que D. Manoel reinou em Portugal, o fotgrafo
Joshua Benoliel registrou a procisso de Corpus Christi. Embora decadente, con-
forme o texto da reportagem, ainda continha a pompa do perodo monrquico (ver
fig. 19)
!51
!
" Fig. 19: A procisso de corpus Christi em Lisboa.
Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 25!
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html25
!52
Em recorte, detalhe da revista Ilustrao Portuguesa (fig. 20) em que
possvel observar a performance de So Jorge no cortejo durante o antigo regime,
ilustrando a descrio do cronista Barbosa Machado contida na pgina 37.
Esto presentes na imagem: os pajens, o Santo Guerreiro devidamente
paramentado sobre o cavalo adornado, e, no ultimo plano da fotografia, a populao
por tras do muro confinada e vestida formalmente, acompanhando o cortejo !
" Fig. 20: So Jorge na procisso de corpus Christi em Lisboa.
Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 26!
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html. Acesso em 2 agosto 201026
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html!53
!!Joshua Benoliel tambm registrou a presena de negros durante o even-
to, acompanhando o cavaleiro de ferro.
!
" Fig. 21: Os negros na procisso de Corpus Christi
Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 27!
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html acesso em 2 agosto 201027
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html!54
!3.2 Ogum na Africa !!
Ogum o Deus dos ferreiros e de todos que usam o ferro: guerreiros,
pescadores, caadores, lenhadores, lavradores, cabeleireiros, mecnicos. Ogum
um s, mas conforme Verger (1999 p. 151) possui vrios nomes, assim como ocorre
na Umbanda Afro- Brasileira.
Ele representado por franjas de folhas de palmeiras desfiadas denomi-
nadas de mariwo, elemento principal das vestes do Orix ferreiro. O mariwo tam-
bm instrumento de orculo. Alado na entrada de caminhos ou colocado prximo
ao cho produzir diferentes significados relacionados a passagens, impedimentos
de trnsitos.
Ogum o Orix que abre ou fecha caminhos, que relaciona-se com os
deslocamentos espaciais, que representa o desenvolvimento e o empreendedoris-
mo. Por isso, Ele saudado logo em seguida a Exu.
Na Africa, Verger (2002 p. 149) descreve um ritual para Ogum na cidade
de Eshd que ocorreu no dia 8 de junho de 1958.
Inicialmente, Verger apresenta os personagens Onisengum (Ver fig. 22) e
Olupan
!A manifestao da presena de Ogum acompanhada pela presena de Oxossi e Exu, que incorporam respectivamente em Onisegum e Oluponan. Uma mulher, Yafero encarregada de acalmar Ogum se ele se tornar muito violento. Ela participa de todas as danas do ritual. () O cho da clareira cuidadosamente varrido, os sacerdotes dos Orixs e os dignatrios chegam uns aps o outro e tomam assento nos lugares determinados pela tradio (VERGER 2002 p. 152).
!55
" Fig. 22 : Onisengum assentado em frente ao templo de Oxssi
Fonte: Foto de Pierre Verger !Logo em seguida tem-se a narrativa das saudaes entre os participantes
!Os diversos participantes, quando ao incio da cerimnia, eles vo se saudar uns aos outros e se oferecem, reciprocamente, sementes de cola. () Essas trocas [de oferendas] no so simples demonstrao de deli-cadeza, mas uma refeio entre os interessados e os deuses. !
Aps o silncio das saudaes, ocorre a entrada das percusses. Com os
atabaques e as danas, a harmonia se estabelece e ocorre o transe (ver Fig.23)
!A orquestra composta de tres atabaques entra em ao e os sacerdotes dos Orixs Seba, Oxogum, Oluponan e Yafero entram em transe e danam em harmonia perfeita, uma espcie de quadrilha. () Eles vo e vem, saudam os notveis e dignatrios presentes. Os Egbelas, soldados de Ogum, acompanham suas evoluoes armados de faco (VERGER 2002 p. 152).. !
!56
" Fig. 23: Transe de Saba (possudo por Ogum) e de Yafero, acompanhados pelos Egbenlas
Fonte: foto de Pierre Verger (2002) !
!57
!3.3 Metodologia utilizada para pesquisa de performances.
!!
Antes de iniciar a anlise da Performance de Ogum em terreiros afro-
pessoense, necessrio a discusso em torno da metodologia utilizada para a
leitura, tendo em vista a dificuldade de conter semioticamente a complexidade
expressiva da performance e o desafio de interpretar uma cultura predominante-
mente oral a partir da escrita.
Conforme Zumthor (2007), seja qual for a mdia utilizada, impossvel
reproduzir, repetir uma Performance, porque ela no se encontra no campo semi-
tico. A performance no signo mediado, uma voz que no est representan-
do algo. o prprio Ogum, sua presena mtica, que se entroniza e performatiza
juntamente com os demais no ambiente. A semntica do significante movente que
se apreende em tais evolues corporais no se relaciona apenas com audio,
paladar, olfato, tato etc. , antes de tudo, uma multiplicidade dos sentidos, sendo
algo que se presencia somente no instante do evento, graas s trocas e comuni-
caes com aquele pblico especfico, naquele tempo especfico. Ento surge a
dificuldade da transcrio de uma linguagem que no possui representatividade
em sua atuao mais global (a performance) para um outro cdigo (a escrita),
que reivindica para si sua semioticidade.
!!
!58
!3.3.1 As interpenetraes culturais na leitura de performances !
Alm da dificuldade de envolver semiticamente a Performance, existe
o desafio tambm da compreenso da enunciao, visto que ocorrem diferenas
culturais entre um pesquisador que pertence cultura escrita e comunidades que
privilegiam a cultura oral.
O ponto de partida desta discusso o olhar tico de Verger e o seu
envolvimento como pesquisador. - At que ponto imprescindvel que o
pesquisador seja um membro da comunidade para imergir de maneira eficaz em
outra cultura com intuito de interpretar a multiplicidade expressiva cultural? Pois
Verger tentou ser ele prprio tambm o objeto de sua pesquisa. Ele iniciou-se na
religio, se tornou mestre do If (orculo africano que se assemelha ao jogo de
bzios), sendo ele respeitado por toda comunidade afro-brasileira como perten-
cente comunidade do candombl.
Em acordo com a postura de Verger, Laraia (2008) tambm defende
que toda cultura possui uma lgica prpria que no transponvel sem perdas de
um sistema para outro.
!A coerncia de um hbito cultural somente pode ser analisada a par-
tir do sistema a que pertence (LARAIA 2008 p.87)
Laraia defende essa posio levando em considerao o contexto et-
nocntrico, em que se pregava a superioridade de culturas cientficas em relao
s primitivas, de pensamento mgico. Mas retirando a afirmativa do seu contexto
original, observando-a isoladamente, pode-se problematizar as questes de hib-
ridismos culturais no Brasil como forma de questionamento do posicionamento de
Laraia. - Ser que impossvel analisar aspectos da cultura europia tomando
como ponto de partida o olhar do afro-brasileiro, por que eles eram formados em
outro sistema cultural durante o processo de colonizao no Brasil?
A performance de Ogum nos terreiros de umbanda uma expresso
cultural que resulta tambm da leitura que esses povos fizeram de uma outra cul-
tura. Assimilaram para si e produziram algo hbrido entre duas regies de culturas
distintas e distantes geograficamente.
!59
Do ponto de vista histrico, sabemos dos elementos sociais, polticos e
econmicos pelo qual os africanos passaram no Brasil. A escravido, a proibio
na realizao dos seus cultos, a dificuldade de comunicao nas senzalas devido
a presena das diferentes etnias que propositadamente estavam juntas para evi-
tar rebelies. Mas, observando as performances de Ogum em terreiros de Um-
banda, elas envolvem tambm, intrinsecamente, uma leitura Africana dos elemen-
tos da cultura europia, uma sistematizao, resultado de mescla, tendo os com-
ponentes culturais africanos trazidos pelos negros.
Outro elemento a levar em considerao na leitura da performance de
Ogum a dinmica de mudana cultural envolvida. Pois ela existe independente
do sistema a qual esteja estudando. So mudanas que ocorrem com maior ou
menor velocidade, dependendo da rea cultural que esteja em foco. A liturgia reli-
giosa composta por noes sociais que costumam ter uma dinmica mais lenta
do que as mudanas tecnolgicas, cientficas. Ento, a tendncia seria possuir
uma dinmica restrita, com poucas mudanas no transcorrer do tempo, o que de
fato no ocorreu na umbanda. Essa assimilao, tomando como base os con-
ceitos de interstcios culturais de Homi Bhabha (2007), resultante mais de um
embate fronteirio de culturas do que parte de um continuum de passado-pre-
sente gerado no seio de um sistema cultural, de uma dinmica interna. Para As-
suno (2006 p. 22) o universo religioso da umbanda nordestina formado e
reelaborado pela mistura dinmica de elementos oriundos do candombl, da ju-
rema, do espiritismo kardecista e do catolicimo popular
Assim, entender a Performance de Ogum considerar uma dinmica
cultural de entre lugares, que perfomatiza-se nmade e impura entre culturas dis-
tintas conforme Santiago (2000 p. 9-26 ). tambm apreender uma lgica tica,
em que a alteridade celebrada, mas que tambm existe jogos de hierarquias
complexas entre santos, entidades que variam no transcorrer do tempo. E por ul-
timo, ter a conscincia de que a descrio das vivncias nunca estaro esgo-
tadas do ponto de vista analtico e semitico devido a multiplicidade expressiva
dos participantes durante o ritual.
Portanto, devido a complexidade interpretativa em apreenso dos signifi-
cantes performticos, ao desafio de decodificar enunciados que possuem diferenas
culturais entre o pesquisador e o objeto de estudo, e a dinamica cultural que envolve
!60
o universo religioso da Umbanda, jugou-se necessrio fazer uma pesquisa com
abordagem qualitativa utilizando a tcnica de observao participante, que conforme
Queiroz (2007 p.278) consiste na insero do pesquisador no interior do grupo ob-
servado, tornando-se parte dele, interagindo com os sujeitos, buscando partilhar o
seu cotidiano para sentir o que significa estar naquela situao, embora, no caso
desta pesquisa, no possui autoria de um iniciado na religio.
Na observao participante, tem-se a oportunidade de unir o objeto ao
seu contexto, contrapondo-se ao princpio de isolamento. Tem-se tambm a oportu-
nidade de incluir as impresses do pesquisador durante a observao, pois confor-
me Queiroz (2007 p.278) um princpio importante na observao participante a in-
tegrao do observador sua observao, e do conhecedor ao seu conhecimento.
!
!61
!
3.4 O ritual de Ogum/So Jorge em terreiro de Joo Pessoa !!
O ritual narrado nesta pesquisa comeou dias antes da festa do Orix
guerreiro, a partir da reunio dos participantes, filhos da casa, para preparar a festa
na sede da comunidade religiosa. A descrio continua com a performance de Dona
Marina Fernandes da Silva durante a festa que aconteceu em abril de 2008, no 28
Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, situado no bairro da Torre, em Joo
Pessoa.
Todo ritual est narrado tendo a cozinha como eixo narrativo, pois o
elemento que est presente em todas as etapas do ritual. Incia-se com a curiao,
sacrifcio de animais para o Orix e a prepao do alimento, que ocorrem antes da
festa. Durante a celebrao, ao trmino da gira, ocorre a distribuio dos alimentos
entre os participantes, convidados e visitantes, e, por ultimo, a devoluo natureza
das partes dos animais sacrificados que no so comestveis, ocorrendo geralmente
no dia seguinte da festa.
O sacrifcio comeou em frente a um pequeno quarto com p direito bai-
xo, localizado na entrada do terreiro, um espao que dedicado a Exu. Enquanto
sacrificavam as galinhas, cantavam em voz alta, derramando o sangue em alguida-
res. Eu, atras da casa de Exu, distante, apenas acompanhava os cantos e uma jo-
vem se aproximou e disse: Vai l ver, no tenha medo, porque eu no posso partici-
par. Somente homens participam dessa curiao para Ex. Logo depois, os sacrif-
cios continuaram no espao onde se dana a gira, com a matana de vrias gali-
nhas e um bode, que faz parte do cardpio de Ogum, espalhando sangue entre os
alguidares, exalando odor no ambiente, enquanto cantavam pontos em homenagem
ao Orix.
Com as carnes prontas, inicia-se a preparao da comida, geralmente
encarregada por Dona Marina, que, alm de ser filha de Ogum, tem relao com
Xang e Iemanj, exercendo um papel de liderana na cozinha da casa.
Dona Marina no sabe ao certo informar a sua idade, apenas sabe que nasceu entre os anos 1930 28e 1943
!62
A preparao na cozinha em forno de alvenaria lenha leva algum tempo,
as vezes dias e obedece a uma sequncia de cozimento do qual no tive acesso.
Segundo um Pai de Santo da casa, cada etapa realizada obedecendo a um es-
quema ritual mgico, finalizando com a feitura da feijoada completa, da farofa, da
galinha cozida, do arroz, sendo acompanhado tambm por algumas frutas como la-
ranja e melo.
" Fig. 24: incio da cerimnia para Ogum
Fonte: Autor da pesquisa !Dois dias depois eu retorno ao barraco, agora todo decorado com folhas
de espada de So Jorge cruzadas, bandeirolas em azul, vermelho e verde no teto e
nas paredes. O espao, as pessoas, as comidas, tudo est preparado para o desfe-
xo, a festa de Ogum.
O momento em que se canta para Ogum , por tradio, logo depois de
Exu, no incio da celebrao. Ento os filhos de santo, embalados pelas percusses
e pelos pontos cantados giram em crculo, com todas as filhas vestidas de verde e
vermelho e alguns filhos de branco, at que entra um membro com um tecido tra-
zendo as cores de Ogum. Neste instante, todos se prostram em direo ao tecido e
comea uma sequncia de gestuais de reverncia aos filhos de Ogum da casa (Ver
fig.24).
!63
!
" Fig 25: Dona Marina em performance de Ogum, vestida com as armas de Jorge
Fonte: foto de Roncalli Dantas !A gira segue com os pontos cantados para Ogum at que o prprio Orix
toma como cavalo, expresso utilizada pelos prprios praticantes, o corpo de Dona
Marina. Ela, uma das filhas mais antigas da casa, recebe o Orix e se transforma na
figura viril, de esprito guerreiro, cortando o ar com as mos, como abrindo caminhos
na mata. Os olhos expressam impetuosidade, violncia e ela comea a circular no
ambiente sem obedecer a regularidade da gira. Logo depois, alguns a cercam e le-
vam-na para o pegi, onde ela se veste com as armas de So Jorge, voltando triunfal
ao barraco, evoluindo a performance de Ogum ( Ver fig. 25 e 26) !
!64
" Fig 26: Evoluo da performance de Ogum atravs de Dona Marina
Fonte: foto de Roncalli Dantas !Pouco a pouco, os outros filhos de santo prestam reverncia presena
de Ogum na gira, se curvando diante dela em respeito ao antigo Orix vencedor de
demandas. Os visitantes tambm observam atentamente e respondem os pontos
para Ogum sentados ou em p, enquanto outros filhos vo recebendo tambm o
Orix ferreiro.
A gira continua com todos cantando para Ogum e So Jorge at que uma
ekede, pessoa na gira que no recebe entidades e que tem a funo de dar suporte
aos que esto em transe, retorna com Dona Marina ao pegi, onde ela retira a sua
armadura e retorna para a gira vestida como antes.
Mesmo sendo um dia especfico para Ogum, Os Orixs so homenagea-
dos um a um atravs dos pontos cantados. Assim dada a cada filho, a oportunida-
de de receber seu prprio Orix e de reverenci-lo.
Depois de cantarem para alguns Orixs durante a noite de celebrao,
pra-se tudo e trazem, ao centro do barraco, o banquete preparado nos dias ante-
riores (ver Fig 28)
!
!65
" Fig. 28: Comidas de Ogum
Fonte: foto de Roncalli Dantas !As pessoas so servidas comeando pelos ogans, que so aqueles que
tocam os ils, instrumento de percusso. Enquanto todos comem com as mos, sem
auxlio de colheres, garfos e facas, realizada a comunho em meio a conversas e
uma rpida limpeza na casa. Aos poucos, os participantes vo se despedindo, ter-
minando o ritual.
!66
3.4.1 Descrio analtica da performance de Ogum
!!Para descrever as relaes performticas entre Ogum e So Jorge du-
rante o ritual da festa de Ogum narrada no tpico acima, optou-se por limitar-se ao
estudo das vestimentas e das comidas.
!!
3.4.1.1 A Africa e Portugal nas vestimentas dos cultos afro-Brasileiros !!Para Raul Lody (2001), a suntuosidade das vestimentas que as filhas
de santo se apresentam nos terreiros ou quando saem s ruas com seus tab-
uleiros tem origem na Idade Mdia, quando o catolicismo se caracterizava por
uma fase mais alegrica, com realizaes suntuosas como as missas, procis-
ses, beatificaes, rituais de grandiosidade cnica e de impacto audiovisual.
Especificamente ao considerar o conjunto de tecidos das quituteiras e
quitandeiras do Brasil no sec XIX, contrariamente a Nina Rodrigues (2008), Raul
Lody observa: O conjunto de tecidos e suas diferentes disposies na formulao
dos trajes das quituteiras e quitandeiras sem dvida tem muito mais de por-tugus do que de africano. As roupas das negras de ganho [quituteiras, qui-tandeiras] do sec. XIX so projees das roupas das vendedeiras portugue-sas do sec. XVIII e XIX, aquelas mulheres que vendiam nas ruas, nas praas e mercados principalmente de Lisboa, Porto e Coimbra, o que fornece, inclusive, grandes informaes visuais para o estudo de uma das roupas mais brasileiras: a baiana. (LODY 2001, p. 44) !
Ao comparar fotos das Varinas, vendedeiras de Lisboa (Fig. 29), com
mulheres de ganho, vendedeiras no Rio de Janeiro do sculo XVIII (Fig. 30), pos-
svel observar as semelhanas entre estas personagens femininas. Observe o patu
no pescoo da vendedeira na imagem da aquarela como evidncia de tratar-se de
uma religiosa de matriz afro, no entanto, a forma como o tecido envolvido no corpo
e a maneira como dispe o produto para a venda so muito semelhantes s Varinas
e muito semelhantes ao que se encontra nos terreiros afro-brasileiros atualmente
!67
" Fig 29: A Varina, vendedeira de Lisboa no sec XIX
Fonte: Foto de Joshua Benoliel para Edio 339 da revista Ilustrao Portuqueza. 19 de agosto 1912 29!
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html. Acesso em 2 ago 201029
http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html!68
" Fig 30: Vendedeiras no Rio de Janeiro do Sc. XVII
Fonte: Aquarela de Carlos Julio, Lody (2001) !Dentre os acessrios utilizados pelo povo de santo, os fios de contas, que
nas religies afro-brasileiras tem fora simblica durante a iniciao religiosa, eles
guardam relao maior com a Africa, embora guarde tambm a memria da relao
entre as demais matrizes tnicas brasileiras, dependendo da casa de santo obser-
vada.
Os colares em fios de contas ou guias so corforme Bastide (2005) impor-
tantes para o elo de vnculo entre o iniciado e a entidade. A relao individual e
representado na maneira que disposta durante os rituais.
Para a compreeno da gramtica dos colares da religio afro-brasileiras,
utilizou-se a descrio classificativa das contas em candombl proposto por Raul
Lody (2001) em comparao com o que se encontrou nas performances de Ogum
em Umbanda na cidade de Joo Pessoa.
O autor, que museolgo da fundao Gilberto Freyre e da Fundao
Pierre Verger classifica a disposio dos fios de contas por tres enfoques: de acordo
com o cdigo cromtico, com a morfologia, ou seja, o material fisico de que compe,
e com a taxionomia, a maneira e a quantidade disposta no corpo do iniciado.
!69
Cromaticamente, a tradio da representao de Ogum no Candombl
o azul, morfologicamente pela pedra africana Segui, de forte cor azul marinho e tax-
ionomicamente, se estabelece de diferentes modos dependendo do tempo e da
posio do iniciado na hierarquia da casa.
Comparando com o que foi observado no Centro de Umbanda Nossa
Senhora do Carmo, as cores predominantes em festas para Ogum so o verde e o
vermelho. Poucos filhos de santo usam azul em festa de Ogum, ainda que esteja
presente nas paredes da casa referncias em cor azul marinho.
Veja a fotografia dos fios de contas (fig. 31) durante a performance e ob-
serve que a cor azul quase ausente. Portanto, morfologicamente, a pedra de
Segui, um material raro e importado da Africa de cor azul substituido por outras
pedras, principalmente, mianga de cor vermelha e verde, de menor valor financeiro,
mas que cumpre simblicamente a funo cromtica e morfolgica de representar o
santo e a posio hierrquica do iniciado na comunidade do terreiro.
Segundo Dona Marina, a conta de cor azul claro, presente na figura 31
representa Yemanj, e os outros fios representam Xang e Ogum.
!
!70
!!
" Fig. 31: Fios de contas no pescoo de Dona Marina
Fonte: Foto do autor da pesquisa !!A cor vermelha inserida nos rituais de Umbanda, dependendo da lin-
hagem tnica de influncia na casa, pode ter origem da relao entre Ogum e So
Jorge, pois o vermelho a cor caracterstica de So Jorge, presente na sua ban-
deira alm de no encontrar relao do vermelho na descrio simblica de Verger
na frica relativo a Ogum, nem na tradio de candombl Nag, Jeje e Ketu da
Bahia, que predomina o azul marinho e o verde(fig. 32)
!
!71
!.
" Fig : 32 Bandeira tradicional de So Jorge
Fonte: Desenho de Roncalli Dantas !Outra caracterstica importante da introduo da simbologia europia no
ritual de Ogum so as formas da espada e do capacete.
!
" Fig. 33: Espada de Ogum na Africa Fonte: Foto de Pierre Verger (2002) !
Na performance de Ogum em continente Africano, a espada tem