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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA NOS CRIMES DE POLUIÇÃO NO DIREITO LUSO-BRASILEIRO. SARAH ROSIGNOLI SOUZA MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE ESPECIALIZAÇÂO: JURÍDICO-AMBIENTAL 2010

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVANOS CRIMES DE POLUIÇÃO

NO DIREITO LUSO-BRASILEIRO.

SARAH ROSIGNOLI SOUZA

MESTRADO EM DIREITOÁREA DE ESPECIALIZAÇÂO:

JURÍDICO-AMBIENTAL

2010

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SARAH ROSIGNOLI SOUZA

A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVANOS CRIMES DE POLUIÇÃO

NO DIREITO LUSO-BRASILEIRO.

MESTRADO EM DIREITOÁREA DE ESPECIALIZAÇÂO:

JURÍDICO-AMBIENTAL

2010

Relatório desenvolvido no âmbito da disciplina de Direito Penal do Ambiente, referente ao Mestrado Científico na área Jurídico-Ambiental.

Orientação Prof. Dr. Paulo de Sousa Mendes.

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LISTA DE SIGLAS

AP – Administração Pública

CPA – Código de Procedimento Administrativo

CP – Código Penal

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 52 A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA NA TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE. EXEMPLOS DOS TIPOS INCRIMINADORES DE POLUIÇÃO NOS DIREITOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO. ..................................................................... 63 AS FORMAS DE TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO AMBIENTE............... 10

3.1 Tutela penal relativamente acessória ...................................................................... 103.1.1 Críticas a esse modelo..................................................................................... 123.1.2 O crime de pura desobediência administrativa ................................................ 13

3.2 Tutela penal absolutamente acessória..................................................................... 163.3 Tutela penal independente do Direito Administrativo............................................. 18

4 A DUPLA ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA.............................................. 224.1 Acessoriedade de direito ........................................................................................ 224.2 Acessoriedade de ato ............................................................................................. 244.3 Acessoriedade combinada de norma e ato .............................................................. 26

5 OS ATOS ADMINISTRATIVOS INSERTOS NA ACESSORIEDADE ................. 285.1 Significado do ato no contexto do tipo penal......................................................... 28

5.1.1 Ato administrativo como exclusão da ilicitude ............................................... 295.1.2 Ato administrativo como exclusão da tipicidade ............................................. 30

5.2 Atos administrativos inválidos ............................................................................... 356 RELEVÂNCIA PENAL DOS ATOS PRATICADOS SOB O MANTO DE UM ATO NULO ........................................................................................................................ 37

6.1 Ato nulo e norma administrativa não estipulativa de valores-limites....................... 376.2 Ato nulo e norma administrativa estipulativa de valores-limites ............................. 38

6.2.1 Ato nulo e atividade dentro dos valores-limites da norma administrativa......... 386.2.2 Ato nulo e atividade fora dos valores-limites da norma administrativa ............ 38

6.2.2.1 Soluções apontadas ..........................................................................................396.2.3 Atos praticados de má-fé: pequena anotação ................................................... 45

7 CONCLUSÕES .......................................................................................................... 488 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 51

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1 INTRODUÇÃO

No exame das questões de direito ambiental é preciso se ter em mente o tipo de

tutela buscado, ou seja, que se trata de um direito que almeja a preservação da espécie

humana. Essa é a pedra angular que deve nortear todo o pensar a respeito do Direito

Ambiental.

Isso porque as três tutelas de maior importância para a Humanidade são a

incolumidade física da pessoa humana, a vida dos indivíduos e a sobrevivência da espécie. Na

ordem inversa de importância.

A proteção do ambiente representa, hoje, a sobrevivência da espécie, diante de um

planeta excessivamente danificado pelo impacto desordenado das sociedades. Assim, se tal

proteção entra em conflito direto com paradigmas já estabelecidos, como, por exemplo, as

divisões existentes dos ramos do direito, ou definições consagradas, o caso não é de

submissão a esses conceitos, mas de alteração dos mesmos para que se possa, concreta e

efetivamente, alcançar a proteção pretendida.

Diante da necessidade de preservação da vida humana e da continuidade da

espécie – e esse é um conceito antigo –, praticamente todas as regras validamente postas

podem ser alteradas. E, na detenção de ações humanas lesivas, por certo que o ramo mais

relevante e eficaz é o do Direito Penal.

Posto isso, o presente estudo visa trabalhar a questão da acessoriedade

administrativa no crime de poluição português e brasileiro, analisando também as outras

formas em que o Direito Penal poderia tutelar o meio ambiente, bem jurídico de extrema

importância à Humanidade.

E, ainda, partindo-se de um modelo de acessoriedade relativa, quais seriam as

implicações da nulidade, por estrita responsabilidade da Administração Pública, de um ato

administrativo atribuído a um particular de boa-fé para a consecução da sua atividade

financeira que, entrementes, é considerada uma atividade poluidora. Essas são as questões que

buscamos passar e, humildemente, ainda que de forma ínfima, contribuir para o

aperfeiçoamento do direito penal do ambiente, que tem também o dever de proteger a

qualidade de vida e do ecossistema.

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2 A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA NA TUTELA PENAL DO MEIO

AMBIENTE. EXEMPLOS DOS TIPOS INCRIMINADORES DE POLUIÇÃO

NOS DIREITOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO.

A acessoriedade administrativa é a forma pelo qual o direito administrativo

complementa o direito penal na tutela de um bem jurídico, in casu, o ambiente. De tal forma,

o direito penal não age solitariamente, recorrendo às prerrogativas do ramo administrativo

para trazer – ou tentar trazer – eficácia à sua atuação.

O crime de poluição, tanto na república portuguesa quanto na brasileira, um mais,

outro menos, utiliza-se dessa técnica, onde o direito administrativo auxilia o direito penal. No

ordenamento português, o crime de poluição é revelado no próprio Código Penal, quando da

sua reforma em 1995, que introduziu o atual artigo 2791. Já o legislador brasileiro optou por

apresentar o crime em legislação penal extravagante, mais propriamente no artigo 54 da Lei

9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).2

O crime de poluição em Portugal diz:

Art. 279. Poluição1 — Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições:a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ouc) Provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza;de forma grave, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 — Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

3 — Para os efeitos dos números anteriores, o agente actua de forma grave quando:a) Prejudicar, de modo duradouro, o bem-estar das pessoas na fruição da natureza;b) Impedir, de modo duradouro, a utilização de recurso natural; ou

1 O artigo 279 do CP foi introduzido pela reforma de 1995, mas a redação atual foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro.2 Não entraremos aqui na discussão se o tipo deva ser trazido em legislação penal extravagante ou não, dada a amplitude do tema e a irrelevância para este estudo. Para mais, por todos, vide FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente. In: Revista de Direito e Economia. Ano IV, n.º 1, jan/jun 1978. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978.

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c) Criar o perigo de disseminação de microrganismo ou substância prejudicial para o corpo ou saúde das pessoas.

O artigo é totalmente redigido através da técnica da acessoriedade administrativa,

quando, já no número um do artigo 279, o legislador introduz que comete crime quem poluir

sem a observância das “disposições legais, regulamentares, ou obrigações impostas pela

autoridade competente em conformidade com aquelas disposições”.

O tipo penal utiliza-se da remissão ao ordenamento administrativo para dar efetividade

ao ilícito e tal se traduz na força de suas expressões. A redação disposta diz que quem poluir,

não observando disposições legais e regulamentares, cometerá crime. Ou seja, neste caso, só

infringe a lei penal aquele que não observa as normas administrativas, e, aqui, o que é

utilizado é uma acessoriedade de norma administrativa. Logo após, o legislador continua e diz

que também consuma o crime quem não observa as normas ou obrigações impostas pela

autoridade competente em conformidade com aquelas disposições, configurando uma

acessoriedade de ato, vez que o tipo remete à necessidade de (também) se obedecer a um

dever imposto administrativamente, em conformidade com as normas.

Sucede na letra da lei uma acessoriedade de norma e ato, que se refere, primeiramente,

às imposições normativas que virão a disciplinar os valores-limites daquilo que deve ser

permitido ou não, e, após, à necessidade da imposição concreta de limites – de acordo com as

normas antes referidas – às atividades poluentes em si, cada qual visando a situação real e o

limite de danosidade permitido a cada região. Assim se permite que as normas em abstrato

sejam traduzidas às conjunturas práticas, obtendo um limite de dano mais próximo à realidade

possível.

Já no Brasil, a redação é a seguinte:

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º Se o crime é culposo:Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.

§ 2º Se o crime:I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;

II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade;

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IV - dificultar ou impedir o uso público das praias;V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos:Pena - reclusão, de um a cinco anos.

§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível.

Nesse caso, a técnica da acessoriedade só é utilizada nos agravantes do crime, quando,

em seu artigo 54, § 2º, inc. V, diz que se o crime “ocorrer por lançamento de resíduos sólidos,

líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as

exigências estabelecidas em leis ou regulamentos”; e, ainda, em seu parágrafo terceiro, quem

“deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em

caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível” (grifos nossos), terá um aumento da

pena.

Portanto, para tal, o inciso V remete à norma administrativa que regula as exigências

no que importa ao lançamento de resíduos e substâncias oleosas, mas observa-se que o tipo só

faz menção à remissão normativa nesse caso específico, sendo que, para a poluição em geral

não se reporta a qualquer lei.

Já no último parágrafo, o tipo brasileiro faz uma referência à necessidade de se adotar

medidas de precaução de danos ambientais graves ou irreversíveis, mas apenas quando estas

medidas forem exigidas pela autoridade administrativa.

Portanto, a acessoriedade não é utilizada na redação do crime em si, apenas fazendo

remissões ao ordenamento administrativo no desenrolar dos parágrafos. Na primeira menção,

usa de uma acessoriedade de norma específica no que verse sobre a eliminação residual, e, na

segunda, busca a necessidade de o particular obter um ato administrativo que regre a situação

fática em casos de risco de dano ambiental grave ou irreversível.

Os tipos não são redigidos de forma semelhante, sendo que o primeiro, o português, é

mais aprimorado e emprega a necessidade de uso do direito administrativo para acessorar o

direito penal na tutela de bens tais como o ambiente. Constitui-se em um crime de dano

ambiental cumulado com crime de desobediência administrativa, seja quanto à norma ou

quanto ao ato. O tipo se dá pela soma dos dois elementos: dano e desobediência, que, mais a

frente, entraremos em detalhes.

O caput do tipo brasileiro, por sua vez, quando se refere ao resultado ou perigo de

resultado de danos à saúde humana, configura-se como um crime de perigo-concreto e, ainda

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na sua redação, é também um crime de dano, quando refere-se então à “mortandade de

animais ou a destruição significativa da flora”, reportando-se à acessoriedade administrativa

apenas nos agravantes do crime, e sob alguns aspectos determinados.

São tais as configurações adotadas atualmente por ambas as legislações. Resta

debruçarmo-nos sobre os porquês – e, obviamente, as suas eficácias dentro da ordem jurídica

e do papel que estas representam na sociedade.

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3 AS FORMAS DE TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO AMBIENTE

3.1 Tutela penal relativamente acessória

O artigo 279 do CP português é construído com uma acessoriedade relativa, logo no

número 1, com o direcionamento a uma norma e a um ato administrativo para o

preenchimento do tipo, e discrimina, nas alíneas consequentes, as condutas que pretende

sancionar, sendo elas a poluição das águas, do solo, do ar e, ainda, a poluição sonora. O

legislador prescreve a necessidade de obediência ao ordenamento administrativo, que irá fixar

os limites permitidos, sendo que o crime só se consuma quando ocorrer o dano ambiental de

poluição aliado à transgressão da imposição administrativa: os dois requisitos são conexos e o

tipo só se consuma com o acúmulo das ações (ou omissões)3.

Também no tipo brasileiro, no agravante do inciso V do parágrafo 2º do artigo 54 da

Lei de Crimes Ambientais, o legislador adota uma acessoriedade relativa, quando o inciso

determina a qualificadora da conduta proibida (que é poluir através do lançamento de resíduos

sólidos e substâncias oleosas) e faz uso da remissão às exigências administrativas. Mas,

somente a agravante da pena é que se utiliza da acessoriedade, sendo que a conduta típica é

trazida pelo direito penal autônomo. Ou seja, para se consumar o crime de poluição brasileiro

não é necessário violar norma administrativa, tal transgressão só aduz ao aumento de pena4.

Essa configuração de acessoriedade se dá de maneira relativamente acessória na

interação dos sistemas penal e administrativo, ou seja, a proteção ambiental não é trazida nem

de maneira autônoma pelo direito penal, nem extremamente dependente do direito

administrativo, pois o que se busca aqui é um meio-termo.

3 Neste entendimento, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela jurídico-penal do ambiente: um ponto de vista português. In: Studia Iuridica: A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 187; MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao artigo 279º do CP. In: Comentário conimbricense do Código Penal: parte especial. Dir. de Jorge de Figueiredo Dias. Vol. 2: artigos 202º a 307º. Coimbra: Coimbra Editora. 1999, p. 962; e NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no direito penal: a acumulação e a acessoriedade. In: Direito penal hoje: novos desafios e novas respostas. Org. Manuel da Costa Andrade; Rita Castanheira Neves. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 304.4 Esse é o posicionamento de BELLO FILHO, Ney de Barros. Anotações ao crime de poluição. In: Lusíada -Revista de Ciência e Cultura. Nºs 1 e 2. Porto: Coimbra, 2001, p. 439.

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Para este modelo, emprega-se a técnica legislativa da norma penal em branco, no qual

o legislador penal traz a definição geral da conduta que se pretende punir, aliada a uma

expressa referência a uma determinada (ou determinadas) regulamentação(ões)

administrativa(s)5.

Para a concretização do tipo, o legislador penal – e somente a ele é atribuída esta

competência –, deve buscar demarcar com a maior exatidão e detalhes possíveis o

comportamento que se pretende considerar ilegal, ou que possa vir a sê-lo através da

contrariedade à norma administrativa. E o tipo, então, haverá o encargo de remeter (ou, pelo

menos, de tentar remeter da forma mais completa) às normativas administrativas, sob pena de

se desrespeitar o princípio da legalidade.

E, no complemento do tipo, as normas administrativas irão regular os valores-limites

da poluição. Nada mais natural que essa alçada seja dada ao direito administrativo, devido à

sua característica de maior mobilidade e facilidade de interação com os métodos científicos e

perícias constantemente atualizados6.

Este é o ramo mais capaz de se moldar às constantes modificações dos progressos

técnicos, pela sua proximidade com o agente poluidor e, ainda, pela maior facilidade com que

o legislador administrativo pode emitir normas. Tudo isso faz com que o direito

administrativo seja mais conexo com o ramo ambiental.

Caberá à Administração Pública, nesse modelo, o papel de decidir o nível de risco

em que as atividades poluentes são toleráveis, de acordo com as diferentes necessidades

temporais e de cada localidade em específico, estabelecendo as medidas a serem tomadas na

proteção do ambiente.

A violação administrativa é apenas o componente auxiliar do tipo objetivo e não o seu

próprio objeto em si. MATA BARRANCO7 diz que, diferentemente do modelo de

acessoriedade absoluta, que veremos a seguir, neste caso não se trata de proteger

propriamente a garantia da execução das diretrizes administrativas, como bem jurídico, mas

sim de defender diretamente o verdadeiro bem, qual seja, o meio ambiente, com a finalidade

de dar ao mesmo a importância que a consciência social lhe atribui atualmente.

5 Em diálogo com a idéia de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del ambiente y accesoriedad administrativa. Tratamiento penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente amparados en una autorización ilícita. Barcelona: Cedecs, 1996, p. 63 e ss. Anota-se que muitas das proposições tratadas no correr do trabalho são trazidas baseadas no pensamento deste autor.6 Neste sentido, além de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 75., também MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Os crimes contra o ambiente no código penal revisto. In: Actas do I Congresso de Direito do ambiente da Universidade de Lusíada, Porto. Porto: ILDA, 1996, p. 303 e FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 186.7 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 76.

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Não basta o desrespeito às normas administrativas, tal não é condição suficiente para a

consumação do crime, é preciso haver aqui um efetivo dano ao meio ambiente.

3.1.1 Críticas a esse modelo

A acessoriedade relativa é o modelo mais assertivo de uma tutela penal eficaz do bem

jurídico ambiente. O recurso ao direito administrativo é indispensável, devido à peculiaridade

da matéria a ser tratada – o ambiente – e de suas inerentes especificidades técnicas, que

acabam por necessitar da implementação do ordenamento administrativo e da característica

deste de se adequar às constantes modificações advindas das novas tecnologias. Porém, a

integração desses dois ramos só se concretiza com o uso da técnica legislativa da norma penal

em branco e é nesse ponto que se encontram as suas maiores críticas.

A primeira crítica, trazida por MUÑOZ CONDE8, (embora o mesmo admita que

muitas vezes é necessário o emprego dessa técnica) se baseia na possibilidade de o legislador

penal, quando do emprego da norma em branco, utilizar-se de conceitos vagos e

indeterminados, que dão margem a uma difícil interpretação da lei. Se o legislador traz

conceitos de obscura interpretação, sem distinguir bem o lícito do ilícito, resta impossível

sancionar a conduta que se pretende proibir, ferindo assim o princípio da legalidade.

O legislador, por sua vez, deve sempre valer-se de conceitos os mais precisos e claros

possíveis na hora de delimitar a conduta proibida, fazendo com que o destinatário da norma

tenha a completa compreensão do ilícito penal e determinando a conduta que venha a ser

digna de pena, e, ainda, remetendo às normativas administrativas as quais o destinatário deve

observar, para que se diminua a margem de erro.

Uma segunda crítica trazida por esse autor é de que o legislador penal acabe por

transferir a sua função de legislar à autoridade administrativa, que, se assim fosse, quebraria

os princípios da legalidade, da autonomia do direito penal e da divisão de poderes, o que é

refutável pelo simples fato de que, quando o legislador penal faz uso correto da norma em

branco, ele traz o comportamento a ser sancionado claramente delimitado, e assim não há que

8 As críticas trazidas a partir daqui são visualizadas em MUÑOZ CONDE, Francisco. La protección del medio ambiente en el nuevo código penal español. In: Actas do I Congresso de direito do ambiente da Universidade de Lusíada, Porto. Porto: ILDA, 1996. p. 291 e ss. Nesse ponto, o autor diz que “o direito penal está obrigado a dar toda a informação que seja possível sobre as suas normas, suas sanções e o procedimento adequado para impô-las”, mas, no nosso ponto de vista, o legislador não foge a essa função quando tem o cuidado de se utilizar de conceitos claros e precisos da conduta proibida; e MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p . 62.

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se falar em quebra de nenhum desses princípios, vez que a conduta será bem definida, com o

preenchimento dos elementos necessários na definição da matéria de proibição na letra da lei

penal e, não, na lei administrativa.

Não se transfere ao direito administrativo a competência de delimitar a conduta

punível, ele fica com o encargo de determinar tão-somente os valores-limites que se

encaixarão no tipo. Não se trata de transferir a competência legislativa, que sempre será do

legislador penal, mas apenas de se utilizar da complementariedade que o ordenamento

administrativo pode dispor. Assim, pelos argumentos acima expostos, nenhuma dessas duas

críticas são passíveis de se validarem.

HEINE9 também aponta o problema, não pouco comum, da Administração Pública

atuar informalmente, voltada para a negociação e sua “soft-law”. Sucede que o administrador

pode deixar de expedir os atos administrativos necessários, ou, se os expede, o faz com

ausência de clareza em pontos importantes para a aplicação do direito penal (por exemplo,

valores de controle obscuros), fazendo com que caia por terra a possibilidade de atuação

penal. Mas ele próprio traz a solução, afirmando que a remissão às normas administrativas, e

não só ao ato, pode diminuir esse déficit de aplicação.

Ainda, sob o juízo de um possível direito penal simbólico10, tal não se constitui nesse

modelo de direito, vez que, através da acessoriedade relativa, há uma indireta, porém efetiva,

proteção do bem jurídico ambiente – que de tal maneira pode ser viável e penalmente eficaz,

atribuíndo-lhe a tutela que lhe deve ser dispendida.

3.1.2 O crime de pura desobediência administrativa

9 HEINE, Günter. Acessoriedad administrativa en el derecho penal del medio ambiente. In: Anuário de derecho penal y ciências criminales. Tomo XLVI, Fascículo 1. Enero/Abril 1993. Madrid: Ministério de Justiça, 1993. p. 296.10 Para Muñoz Conde e Hassemer, como veremos mais à frente, a tutela penal do meio ambiente se traduz em um direito penal simbólico, dado que este ramo do direito não tem como característica uma atuação preventiva e assim acaba por falhar na proteção do bem jurídico tutelado. MUÑOZ CONDE, Francisco. La protección del...,cit. e HASSEMER, Winfried. A preservação do meio ambiente através do direito penal. In: Actas do I Congresso de direito do ambiente da Universidade de Lusíada, Porto. Porto: ILDA, 1996.

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Mas a maior crítica à acessoriedade administrativa é de que, com o uso dessa técnica,

a atuação do direito penal fica dependente do direito administrativo e acaba por se constituir

em um crime de pura desobediência administrativa11.

Quando o legislador contrói o tipo de poluição, ele afirma que pratica crime quem

polui em desobediência às prescrições administrativas (sejam leis ou atos). A doutrina se

pergunta se, diante desta remissão, estaríamos simplesmente a punir a infringência do

ordenamento administrativo e, assim, subjazendo o direito penal meramente no sustento das

ordens administrativas.

Não. Embora o crime de poluição seja configurado utilizando-se da desobediência

administrativa, este não é o único fator relevante para o desvalor de ação. Este só se configura

através da consumação da poluição, sendo que um, sem o outro, não é crime. Essa é a forma

mais viável e eficaz de se assegurar a proteção, mesmo que imediata, do meio ambiente.

Dadas as características de pluralidade de vítimas e de indivisibilidade do bem jurídico, o

direito penal não consegue alcançar a proteção do bem pelas suas formas clássicas, sendo

forçado a se moldar às novas possibilidades para assegurar uma tutela eficaz.

Pretende-se com o crime de poluição, a proteção e o inibimento da prática poluente.

Não é possível que o direito penal se mantenha nas velhas “cascas” diante de bens “novos”. É

11 Essa dependência do direito administrativo faz com que, segundo Hassemer, as áreas limítrofes do direito penal, ao invés de serem delimitadas pelo juiz, o sejam pela Administração Pública e, consequentemente, o ilícito penal não resta claro. HASSEMER, Winfried. A preservação do..., cit., p. 325. Também na defesa de que o direito penal não pode alterar a sua finalidade para a simples criminalização das leis administrativas – o que nós, nesse ponto, estamos de acordo –, MUÑOZ CONDE, Francisco. La protección del..., cit., p. 297 e ss. Defendendo a perspectiva de um crime de pura desobediência administrativa: SOUSA MENDES, Paulo. Vale a pena o direito penal do ambiente? Lisboa: AAFDUL, 2000, p. 142 e 143. O autor diz que a utilização instrumental da desobediência na construção do ilícito-típico “acaba por transformar, inexoravelmente, o fato punível num crime de pura desobediência”. E justifica no fato de que são impuníveis: a) as atividades poluentes que estejam abarcadas por um ato autorizativo – que tem um “efeito legalizador” – mesmo que esta seja praticada em desconformidade com a proteção ambiental; b) as atividades que estejam em execução mas que possuem licenças obtidas através de fraude; e c) as atividades poluentes exercidas sem a requisição das licenças pertinentes. No nosso humilde entendimento, todos os três argumentos não são pacíficos, pelo fato de que o direito não existe por si só, mas como um todo. A acessoriedade administrativa – e todo o Direito em si – só funciona se a máquina do Legislativo e da Administração Pública não se demitirem dos cargos que a elas são atribuídos. Na primeira hipótese, realmente não podem ser punidas, porque aquilo que foi autorizado pelo Estado, ainda que por erro, está protegido pelos princípios da boa-fé e da segurança das relações jurídicas. E, se houve uma fraude, naturalmente que se estaria falando da hipótese seguinte. A fraude é crime e também o abuso de poder (são princípios universais de Direito), que devem ser investigados e punidos, isoladamente. Para tais, o direito penal criou mecanismos de punição. Quanto às atividades poluentes praticadas sem licença, desde que a poluição ultrapasse os valores-limites estipulados, esta deve ser punida pelo simples fato de que, ao menos em Portugal, a tipicidade é a conduta de poluir sem ato autorizador. Portanto, a poluição não amparada administrativamente, desde que efetivamente polua, no nosso entendimento, é crime. Mas, sobre esses pontos, passaremos mais à frente. O Direito deve ser construído para a realidade e é muito mais real ter uma proibição que funcione – através da acessoriedade administrativa –, do que uma teoria onde não se escapa nada da rede, mas que também deixa escapar o seu objetivo: buscar inibir a poluição.

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forçoso que ele se adeque às novas realidades de bens jurídicos, ainda que o faça de forma

derivada e imediata.

Só é fato típico de poluição aquele que agrega o ato poluidor à desobediência.

Segundo MIRANDA RODRIGUES12, a desobediência aqui é uma “desobediência

qualificada”, pois só o é aquela que constitui um dano ao ambiente. A relevância penal da

conduta só se exprimirá com a poluição (como dizia o antigo artigo português13) “em medida

inadmissível”.

A norma orienta quanto às condutas ambientais que são puníveis e aos órgãos

administrativos resta somente o papel de “concretizar tecnicamente”14 a orientação da conduta

penalmente proibida, assegurando uma dependência relativa do direito administrativo, e não

absoluta como se pretende dizer. Assim, se garante a conciliação entre ambos os ramos, em

prol do princípio da unidade do ordenamento jurídico, vez que não se pude punir aquilo que é

administrativamente permitido.

Também FIGUEIREDO DIAS15 acredita que o crime de poluição, tal como está

construído no tipo português, é um crime de dano construído sob a forma de uma

desobediência. Para o autor, esta é apenas a forma exterior que o legislador julgou própria

para caracterizar o delito, sendo necessário, antes, uma efetiva lesão ambiental.

Questão a ser analisada é que, quando se cogita apenas da incidência do crime de

desobediência, o objeto tutelado é o dever de obediência e, não, a preservação ambiental. E,

assim, a gradação da infração penal seria por quão grande fosse a desobediência e, não, pela

extensão do dano. O que poderia levar a distorções óbvias, como se punir com mais gravidade

a reincidência de colocação de lixo orgânico em vias públicas, do que a transgressão primeira

de ausência de cuidados com lixo radioativo. Portanto, a realidade não tem como amparar

essa espécie de simulação dos mecanismos de controle. Se o que se deseja é a tutela de um

ambiente equilibrado, faz-se necessário que o bem tutelado seja, exatamente, tal ambiente

equilibrado, assim apontado diretamente pelo legislador.

12 Neste sentido, MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao artigo..., cit., p. 962. 13 Embora a redação do tipo tenha mudado, o desvalor da ação de poluição continua sendo, claro, aquela que é praticada em um nível intolerável pela sociedade, pois a fumaça de um cigarro não poderia ser, jamais, considerado como crime.14 MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao artigo..., cit., p. 963.15 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 187. Mas já em seu primeiro artigo sobre o tema, em 1978 (o referido autor foi o primeiro a tratar da acessoriedade administrativa em Portugal), o mesmo designava que o crime de poluição deveria ser construído sob a forma da desobediência administrativa. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o papel..., cit., p. 18. Também neste sentido, NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no...,cit., p. 304.

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De outro lado, há uma premissa concreta, válida, tutelável, que é a necessidade real de

proteção ambiental, garantia de sobrevivência para as gerações futuras, o que necessita da

incidência da tipificação penal. Isso considerado, a conseqüência lógica é que a sociedade terá

que encontrar um caminho, juridicamente válido, para fazê-lo. E, se terá que encontrar um

caminho, isso quer dizer que tal caminho já existe por definição, ou seja, que ele há de ser

possível no universo jurídico.

Por fim, tem-se o desafio de um mundo em que as mudanças se dão em grande

velocidade, as tecnologias crescem e se fundem de um dia para o outro, e cada vez mais.

Mudanças e tecnologias que atuam diretamente sobre o ambiente. De um momento para o

outro se pode ter uma bactéria, ou uma espécie animal ou vegetal, geneticamente modificadas,

que tenham um impacto sobre o ambiente de intensidade igual, ou superior, a dos dejetos que

hoje maculam a natureza. Como, então, efetivar tal controle dentro da rigidez da legislação

penal pura e simples, e do interregno de tempo necessário para que um fato social de dano,

através do Poder Legislativo, se transforme em lei e se instale como resposta estatal através

do Poder Judiciário, em tempo hábil?

Com certeza o instituto da acessoriedade administrativa parece ser uma das respostas.

Posto isso, é mister que o legislador se utilize da forma da desobediência administrativa

qualificada (cumulada com a lesão ambiental), na constituição do crime de poluição,

garantindo, através desta, a proteção imediata do ambiente.

3.2 Tutela penal absolutamente acessória

Porém, existem outros dois modelos de tutela penal do ambiente que são trazidos pela

doutrina, e o primeiro deles é a proteção penal absolutamente acessória do ordenamento

administrativo. Concebe-se através de uma total dependência penal dos atos ou normas

administrativas.

Essa tese se baseia na definição das medidas de poluição pelo direito administrativo,

através da norma ou mesmo de atos, restando ao direito penal somente tutelar o cumprimento

das disposições delimitadas por aquele. Tal se demonstra inviável, dada a ausência de um

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efetivo bem jurídico: o bem que se visa proteger deixa de ser o ambiente em si mesmo e passa

a ser a garantia de execução das normas administrativas em matéria ambiental16.

No nosso entendimento, o parágrafo terceiro do tipo brasileiro se enquadra aqui.

Quando o legislador diz que o crime acontece quando o agente “deixar de adotar, quando

assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano

ambiental grave ou irreversível”, a conduta não é delimitada e o crime deixa de ser a poluição

ao meio ambiente e passa a ser a desobediência pura e simples às exigências ambientais da

autoridade competente.

Pune-se aquele que deixa de adotar as prescrições administrativas. Tal não é o que

esperamos do direito penal do ambiente. Não se pode pretender o simples sancionamento da

desobediência administrativa, pois isto não condiz com o importante papel que o instituto

penal representa.

Há, portanto, uma impossibilidade de definição do ilícito, o que vai de encontro ao

princípio da legalidade e da culpa, já que, nesse caso, a única coisa que resta ao direito penal é

sancionar uma conduta que seja contrária às diretrizes administrativas.

Nesse modelo, o legislador penal transfere a sua função à autoridade administrativa, o

qual desde logo se nota inconcebível, ferindo o princípio da separação de poderes e a

autonomia própria do direito penal17.

Essa completa subordinação do direito penal não é o que se pretende, vez que a

simples contradição ao direito administrativo não é digna de ser tutelada como crime; há aí

um prejuízo à dignidade penal, posto que o instituto de penas somente deve ser utilizado

como ultima ratio e não como forma de incriminar e forçar a execução de disposições

jurídico-administrativas.

O direito penal só se legitima se o for para a proteção de bens jurídicos essenciais de

uma sociedade. MATA BARRANCO18 afirma que “a dependência técnica do ordenamento

administrativo é irrenunciável, porém não é admissível uma penalização de todo o direito

administrativo”.

Sendo assim, a tutela penal absolutamente acessória não se revela como o modelo

ideal dentro de um ordenamento jurídico precedente de princípios fundamentais, tais quais a

16 Em diálogo com o pensamento de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 73 e ss.17 HEINE, Günter. Acessoriedad administrativa en..., cit., p. 295. O autor diz, em tom crítico, que, nesse pressuposto, o direito penal se subordina completamente à função e objetivos do direito administrativo, perdendo a sua finalidade original. 18 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 73 e 74.

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autonomia do direito penal e a separação de poderes, como sendo a melhor forma para o

legislador construir tipos criminalizadores que visem proteger o meio ambiente.

3.3 Tutela penal independente do Direito Administrativo

Por fim, o último modelo doutrinário de tutela ambiental é definido pela proteção

autônoma do direito penal, onde o ramo administrativo não toca aquele. A tutela do ambiente

fica resguardada somente ao direito penal, de forma absolutamente independente19.

Essa proteção autônoma pode ser feita através da proibição absoluta da poluição, onde

a legislação penal se traduz na definição dos valores-limites de contaminação, independente

de qualquer normativização administrativa. E tal independência necessitaria que o legislador

penal trouxesse uma tipificação detalhada e, pretensiosamente, quase exaustiva da conduta

que se pretende sancionar20.

Mas, dadas as infinitas possibilidades de se danificar o meio ambiente, o legislador

penal teria que elencar um rol imenso de possíveis condutas de poluição, o que nunca seria

satisfatório, e acabaria por ser completamente inviável21. O meio ambiente não pode ser visto

como algo intocável, pelo mesmo motivo que visamos protegê-lo: a nossa dependência dele e

a indispensabilidade humana de utilização dos recursos naturais, dentro de um

desenvolvimento sustentável da sociedade. Assim, é necessária alguma tolerância na

danosidade dos mesmos, não sendo possível ao legislador prever – e, ainda, sancionar – todo

tipo de conduta.

E, mesmo que o legislador aceitasse o desafio, o que aconteceria é que as disposições

penais de poluição teriam de ser amplas e vagas, para que se pudesse abarcar uma maior gama

de possibilidades de lesões ambientais, acarretando inevitavelmente em uma falha: a ausência

daquilo que se buscava, ou seja, o preenchimento exaustivo do tipo que concederia a

19 A Escola de Frankfurt (mais nomeadamente Hassemer, Muñoz Conde e Heine) é contra um direito penal do ambiente, sob o fundamento de que este ramo não é instrumento adequado para resolver os problemas ambientais, e que mais seria um “presente fúnebre” nas palavras de Heine, devendo-se libertar o direito penal de funções preventivas, uma vez que ele não foi destinado para tal, utilizando-se deste instituto somente naquilo em que não é necessário o apelo ao ramo administrativo. HASSEMER, Winfried. A preservação do..., cit., p. 319 e ss; MUÑOZ CONDE, Francisco. La protección del..., cit., p. 291 e ss; HEINE, Günter. Acessoriedad administrativa en..., cit., p. 289 e ss. 20 Em diálogo com MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 62 a 65.21 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 67 e ss. e FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o papel..., cit., p. 16.

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independência ao direito penal. A conduta a se punir não seria claramente determinada, o que

viria a desrespeitar o princípio constitucional da legalidade.

Como se não bastasse isso, o legislador penal teria mais um ponto a ultrapassar – o

progresso técnico-científico. A rapidez com que a ciência evolui e as novas formas de

desenvolvimento tecnológico no controle da poluição seriam incompatíveis com o caráter

mais rígido e imutável que é propriamente característico do direito penal, o que faria com que

as suas disposições fossem rapidamente ultrapassadas. Ao direito penal não é permitido

acompanhar toda essa velocidade contemporânea.

Estas são, entre outras, as razões que justificam a necessidade de ligação do direito

penal com o direito administrativo, vez que este possui uma característica mais móbil e

plástil22 às frequentes mudanças técnicas, como já anteriormente mencionamos.

Assim, MATA BARRANCO23 afirma que ainda que se tencione um direito penal

autônomo na proteção do ambiente, este seria “anacrônico e juridicamente inaceitável”, vez

que somente com o auxílio do direito administrativo seria possível um efetivo resguardo do

bem que se pretende proteger.

A proteção autônoma poderia ser feita ainda, garantindo a independência do direito

penal, através da proibição do resultado poluente, estabelecido puramente como um crime de

perigo ou como um crime de dano.

O caput do tipo brasileiro, na primeira parte da sua redação, rege que comete crime

quem “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar

em danos à saúde humana”, o que se traduz num crime de perigo-concreto24, pois a conduta é

a poluição que causa perigo à saúde humana e o ordenamento penal haverá de tipificar a sua

aplicabilidade na obtenção da prova do perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido25.

O que acontece é ser mesmo muito difícil fazer a prova desse perigo real, que deve ser

verificado caso a caso. Assim, e tendo em vista tal dificuldade, e a doravante ausência de

certeza para se condenar alguém pelo crime de poluição, a classificação desse tipo como

22 MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Os crimes contra..., cit. p. 303.23 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 6924 BELLO FILHO, Ney de Barros. Anotações ao crime..., cit., p. 425.25 Sobre os crimes de perigo concreto, ver FIGUEIREDO DIAS. Jorge de. Sobre o papel..., cit., p. 17. MIRANDA RODRIGUES. Anabela. Os crimes contra..., cit., p. 309. Também a mesma autora em MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Comentário conimbricense..., cit., p. 960; MUÑOZ CONDE, Francisco. La protección penal del..., cit., p. 294 e SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 113 e ss.

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crime de perigo comum transgride o princípio da culpa, vez que, sem prova não há culpa, e

sem culpa, não há crime26.

A prova a se fazer advém de investigação científica, não-própria ao legislador penal.

Tal investigação se dá pelo recurso às perícias técnicas, mais facilmente realizadas pela

Administração do que pelo juiz penal na busca da comprovação efetiva do dano. Mais uma

vez, o recurso ao direito administrativo se revela a forma mais viável, ou seja, ao invés de ser

feito em sede processual, mais vale seja feito pelo legislador administrativo, no âmbito do uso

da acessoriedade.

Se o tipo fosse redigido como um crime de perigo abstrato27, ou seja, prevendo uma

presunção legal face à periculosidade de determinado comportamento positivo ou negativo,

também não resultaria da melhor forma possível, devido à consequente dificuldade em definir

os limites e contornos do perigo, com uma interferência penal anterior à afetação do bem

jurídico, que, afinal, esbarraria nos princípios da legalidade e da culpa, e daria luz a um direito

penal simbólico28.

A última parte da redação do caput do tipo brasileiro é construída como um crime de

dano29, quando refere-se à poluição que provoque “a mortandade de animais ou a destruição

significativa da flora”. Mas o que seria a mortandade de animais e a destruição da flora? A

morte de um só animal ou de uma árvore já constitui crime? A destruição de um elemento

natural, de forma isolada, é irrelevante; o que consubstancia o inquinamento ambiental é o

todo, é o efeito do conjunto de ações repetidas.

O crime de poluição, configurado como um crime de dano puro30, que se consuma

com a efetiva lesão do bem jurídico, tal como o são os crimes contra a vida e a saúde, faria

com que a sua prática viesse a ser tão repetida, difusa e indiscriminada, que acabaria por

26 A questão da dificuldade de prova é trazida por SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 118, que leciona que “qualquer exigência de prova do perigo concreto redundaria em estrepitoso fracasso”. Também sobre a matéria, HEINE, Gunter. Accesoriedad administrativa en..., cit. p. 298. 27 Sobre o crime de perigo abstrato, ver FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o papel..., cit., p. 17; MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Os crimes contra..., cit., p. 309. Também a mesma autora em MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao artigo..., cit., p. 960; MUÑOZ CONDE. Francisco. La protección del...,cit., p. 295. 28 Sousa Mendes defende que o crime de poluição seja um crime de perigo abstrato potencial, isto é, é um crime estruturalmente de perigo abstrato, porém, simultaneamente, de resultado. SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 123-124. Classificando o crime como sendo de perigo abstrato-concreto, QUINTELA DE BRITO, Teresa. O crime de poluição: alguns aspectos da tutela criminal do ambiente no código penal de 1995.In: Anuário de direito do ambiente, 1995. Lisboa: Ambiforum, 1995, p. 340.29 BELLO FILHO, Ney de Barros. Anotações ao crime..., cit., p. 42530 Sobre os crimes de dano, vide FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o papel..., cit. p. 16 e 17; MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Os crimes contra..., cit., p. 309; SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 115-117.

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travar o desenvolvimento social e, até mesmo, impedir a eficácia da tutela pela banalização de

um objetivo em desconformidade com a realidade social.

O que acontece, na realidade, é que um crime configurado de tal forma acaba também

por ser um direito penal simbólico, pois a tutela ambiental não visa penalizar qualquer

conduta, mas só a conduta que é reprovável socialmente, só uma poluição em nível tal que se

torna prejudicial à saúde e à sobrevivência humana.

Portanto, a conexão do direito penal com o direito administrativo, de maneira relativa,

é absolutamente necessária para se definir quais são os níveis de poluição que devem ser

admitidos, de acordo com as frequentes mudanças tecnológicas e sociais, visando adequar a

proteção ambiental de acordo com cada região e situação concreta, o que, definitivamente,

não é possibilitado ao direito penal realizar de forma solitária.

A Administração Pública é a única que possui meios para verificar os níveis de

poluição que devem ser tolerados, intervindo precocemente para detectar e evitar os danos

ambientais indesejáveis. Assim, mantém-se o ordenamento jurídico equilibrado, observando o

princípio da unidade do ordenamento jurídico.

A complementação administrativa no modelo de uma tutela penal relativamente

acessória pode ser feita tanto através de normas quanto de atos – vertendo a essência da

norma penal ao fato em si – e, com isso, desvalorando a afirmativa de um possível direito

penal simbólico.

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4 A DUPLA ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA

4.1 Acessoriedade de direito

O tipo português de poluição faz referência, primeiramente, a uma remissão à norma

administrativa, quando diz que comete crime quem polui sem a observância das disposições

legais ou regulamentares. E o agravante do tipo brasileiro também usufrui dessa remissão,

quando indica a necessidade de atenção às exigências administrativas em matéria de

lançamento residual.

Partindo-se do pressuposto de uma acessoriedade relativa, das formas em que o direito

administrativo pode acessorar o direito penal, a primeira se compreende no vínculo do direito

penal com as fontes clássicas do direito administrativo, assim sendo as leis, ordens ou

regulamentos31. Tais normas administrativas serão aquelas que irão complementar as normas

penais em branco, preenchendo parcialmente o seu conteúdo, como elemento adicional ao

tipo objetivo, e estabelecendo os valores-limites32 abstratos de poluição tolerável.

Em outras palavras, o tipo objetivo, delimitado de forma aberta através da técnica da

norma penal em branco, remete então às normativas administrativas e, estas, quando violadas,

também passam a constituir matéria de proibição penal.

Sequer é preciso dizer que as normas administrativas que preenchem o tipo devem ser

claras e precisas para que se possa efetivamente construir o delito. Como afirma SCHALL33,

“o direito penal ambiental será tão bom como o seja o direito administrativo ambiental”.

Em sentido amplo, a norma penal em branco é aquela que é estruturada inicialmente

de forma incompleta e posteriormente preenchida por outra instância legislativa, ou

regulamentária, remetendo a outro preceito inserido na mesma lei ou a uma norma de caráter

não penal, mas de nível igual ou superior, e aqui não há maiores problemas. A questão surge

31 A partir daqui, em diálogo com o pensamento de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 79 e ss.32 Os “valores-limites” ou “limites-padrão” devem ser definidos de forma geral e abstrata, pois fundamentam o estruturamento da ação administrativa e a garantia de legalidade da atuação. MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao artigo..., cit., p. 964.33 SCHALL, Hero. Möglichkeiten und grenzen eines verbesserten Unweltschutzes. En NStz, 1992, p.4 apud MATA BARRANCO. Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 79.

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quando esta se revela em sentido estrito e, assim, o pressuposto de fato da norma em branco é

determinado por uma autoridade de hierarquia inferior à norma penal34.

Sendo o dispositivo que virá a definir a conduta antinormativa de nível inferior, a

crítica refere-se à possibilidade de quebra do princípio da legalidade, uma vez que um

dispositivo de natureza jurídica inferior iria compor, em igualdade de condições, uma norma

repressiva de natureza penal.

Também decorrente disto, diz-se, poderia haver desrespeito aos princípio da separação

de Poderes e da democracia, vez que a instância que institui a norma administrativa

complementar não tem competência legislativa penal. Assim, passa-se ao Executivo uma

função típica do Legislativo, este que foi eleito pela voz do povo para legiferar o interesse

público, transgredindo a teoria da divisão de Poderes.

Segundo tal crítica, essa inversão de papéis, e a ausência de prerrogativa para tal, é

algo que, em regra, não se poderia admitir em um Estado Democrático de Direito. Todavia, o

ordenamento jurídico não tem existência baseada em si mesmo, ele depende de atender a uma

realidade concreta, aos propósitos da sociedade.

Por fim, mas não por menos, ainda sob a vestidura do princípio da legalidade, a

utilização da norma em branco poderia atacar a garantia constitucional de segurança jurídica,

vez que as normas que não possuem descrição completa dos seus pressupostos identificadores

da conduta proibida dificultam a certeza jurídica daquilo que se pretende proibir e,

consequentemente, a lei não resta clara aos seus destinatários: nullum crimen, nulla poena

sine lege certa.

MATA BARRANCO35, em desconformidade com tais críticas, e no qual nós nos

perfilamos, vem dizer que, quando da remissão a um dispositivo de cunho inferior pela norma

penal em branco, isso nada mais é do que uma autorização que o Legislativo atribui ao

Executivo, no exercício de sua soberania popular, e não uma intervenção imprópria de um

Poder no outro, afastando assim a inconstitucionalidade da tese.

Ora, vejamos, uma norma de caráter inferior é muita mais apropriada para preencher o

tipo penal, vez que é mais próxima do agente poluidor e pode se adaptar às situações fáticas

de espaço e tempo com maior facilidade, por todos os motivos já expostos, quais sejam, o

34 MUÑOZ CONDE. Francisco. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975, p. 18 e ss apud MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 79 Norma penal em branco, para Muñoz Conde e García Aran, é “aquela cujo pressuposto de fato se configura por uma remissão a uma norma de caráter não penal”. MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARAN, Mercedes. Derecho penal. Parte general. 2ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 36.35 Em diálogo com o pensamento de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 81.

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caráter específico da matéria, as regulações técnicas que são mais próprias ao ordenamento

administrativo, e a maior propensão deste legislador em emitir normas. Até porque, uma

norma superior seria impositiva àquela, uma de igual estatura hierárquica seria modificativa

daquela, ou seja, somente uma norma inferior poderia ser considerada acessória em tais casos.

Todos esses motivos dão embasamento para que se utilize – também – uma norma de cunho

inferior para complementar o tipo.

Aqui, é necessário fazer uma ressalva. Isso só é possível e constitucional se a lei penal

contiver os elementos fundamentais do tipo, trazendo o desvalor da ação e a conduta punível

descrita de forma clara e precisa, restando à norma administrativa apenas o dever de

complementá-lo. Assim, não há que se falar em inconstitucionalidade da matéria, nem ofensa

a qualquer dos princípios36.

Porém, uma acessoriedade só de norma minimiza a importância e a necessidade dos

atos administrativos, que são indispensáveis na atribuição de direitos e deveres da relação

jurídica entre Administração e administrado, aplicando a norma abstrata ao caso concreto e

clarificando as exigências legais ao particular37.

4.2 Acessoriedade de ato

O artigo 279 do CP português, além de remeter a uma norma administrativa, também

designa a necessidade de obediência a um ato administrativo, consumando o crime aquele que

causar dano ambiental sem atender às normas e às “obrigações impostas pela autoridade

competente em conformidade com aquelas disposições” (grifo nosso), atribuindo ao tipo

também uma acessoriedade de ato.

Também aqui se encontra o parágrafo terceiro do artigo de poluição brasileiro, que

remete tão-somente a um ato administrativo, que irá, no caso concreto, determinar as medidas

de precaução a fim de se evitar o dano ambiental grave ou irreversível.

Esse é o tipo de acessoriedade em que a norma em branco remete a um ato

administrativo. O ilícito penal, assim, só se concretiza quando o comportamento traz uma

36 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit. p. 82.37 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 194.

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ofensa a um ato proibitivo da autoridade administrativa, ou não está amparado por um ato

permissivo38.

Nesse sentido, não haveria uma remissão do tipo penal a uma lei ou regulamento, nem

a nenhuma regulação administrativa de caráter geral, referindo-se, então, singular e

diretamente ao ato. Tal é que teria o condão de determinar os limites do admissível e o âmbito

de risco permitido para cada caso concreto.

A acessoriedade somente de ato também é questionada por todas as críticas referentes

à utilização da norma em branco (já anteriormente mencionadas), porém, neste ponto, é

necessário recordar que o ato administrativo tem como característica uma concretude muito

maior, mais do que uma normativa administrativa por si só possa vir a ter, pois o ato é a

exteriorização da vontade administrativa.

A prévia autorização ou licença, precisando as medidas de poluição admissíveis à

coletividade no âmbito de um desenvolvimento sustentável, auxilia a determinar os limites

concretos e mais próximos a cada realidade, quando da definição do que vem a ser proibido,

assim atingível com maior facilidade através da acessoriedade de ato39.

Porém, essa sujeição do direito penal do ambiente ao ato administrativo faz com que a

criminalização da poluição seja exercício, no caso concreto, de uma prévia decisão do agente

administrativo que expede o ato permissivo, o que pode, nas situações reais, suceder de que

este nem sequer venha a ser emanado, ou que o seja de forma difusa ou muito informal, ou,

ainda, de forma arbitrária40.

Fundamentar a licitude do comportamento na existência somente de um ato

administrativo pode vir a ser um problema, dentro de uma realidade de Administração Pública

que muitas vezes não condiz com aquilo que deveria ser. Daí nascem questões de possíveis

concessões fraudulentas de autorização, acordos arbitrários da Administração Pública etc. A

acessoriedade de ato pressupõe uma Administração Pública obrigada pela legalidade, vez que

põe nas mãos da autoridade administrativa a afirmação do ilícito penal41. Quanto a esse

aspecto, vale notar que os atos fraudulentos sempre estarão sujeitos à persecução penal, posto

que concebidos com a intenção de lesar a Administração e transgredir com os critérios de

proteção ambiental.

38 Em diálogo com o pensamento de MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 89 e ss.39 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 89-90; e SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 150.40 SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 148. Também neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 194.41 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 90-91.

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Essa extrema dependência em relação ao ato administrativo, quando da configuração

do ilícito, não pode ser admitida, posto que a ausência do ato provoca a incapacidade de

atuação do direito penal, uma vez que o tipo resta incompleto.

Mas, nas palavras de SOUSA MENDES42, “se for certa a idéia corrente de que o

direito penal do ambiente não pode dispensar a acessoriedade administrativa, então ele tão

pouco poderá dispensar a acessoriedade do próprio ato”, posto que a autorização ou licença,

enfim, o ato administrativo, oferece consigo uma maior acessibilidade do conteúdo de

proibição aos destinatários das normas.

O que sugerimos é que a acessoriedade seja feita de forma combinada entre norma e

ato administrativo, limitando assim a discricionariedade do agente administrativo e deixando

as cordas cada vez mais estreitas na busca de uma efetiva tutela do ambiente.

4.3 Acessoriedade combinada de norma e ato

Essa última estrutura se constrói baseada na união dos dois modelos acima referidos,

somando a acessoriedade de direito com a acessoriedade de ato, criando assim a possibilidade

de tutelar o bem jurídico ambiente com o emprego da norma penal em branco, que se utiliza

da combinação de norma e ato administrativo no preenchimento do tipo43.

O tipo português de poluição faz remissão à norma ou ao ato administrativo, mas,

quando da redação do dispostivo, o legislador utilizou-se do vocábulo ou, afirmando que

comete crime quem poluir sem a observância de disposições legais e regulamentares – aqui há

a remissão à norma –, ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade

com aquelas disposições.

Assim, o ato expedido pelo órgão competente terá sempre de atender à norma

administrativa, por referência expressa do legislador, mas se, porventura, o ato não vier a ser

expedido, por falha do Poder Público, ainda assim o agente tem a obrigação de observar a

norma administrativa, consumando o crime caso não o faça.

42 SOUSA MENDES, Paulo de. O que há de novo..., cit., p. 150 e 151.43 FIGUEIREDO DIAS. Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 193 e 194.

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Segundo as referências do renomado mestre FIGUEIREDO DIAS44, o emprego da

acessoriedade somente de ato daria à Administração Pública uma abertura muito grande de

discricionariedade, o que, poderia, eventualmente, trazer ao destinatário da norma uma

insegurança jurídica inadmissível. Ainda, uma acessoriedade só de direito negaria a

indispensabilidade de determinados atos administrativos concretos na relação entre a

Administração e administrado, tais como, por exemplo, as autorizações, as licenças e as

concessões, que aplicam a norma a cada caso concreto.

Leciona o autor, idéia do qual perfilhamos, que deve haver a exigência cumulativa de

acessoriedade de norma e de ato, pois assim seria possível dar uma maior certeza aos

destinatários que, muitas vezes, sequer compreendem a norma administrativa, e que, em geral,

se traduzem em legislações esparsas e de difícil entendimento.

A união de norma e ato traz uma maior certeza jurídica ao particular, evitando ao

máximo erros sobre a norma e traduzindo a letra da lei em atos permissivos de maior

compreensão, fazendo com que o tipo penal se torne completo e preenchido de forma certeira

e, portanto, dando aos destinatários a clareza suficiente daquilo que é e daquilo que não é

lícito.

Entretanto, tal só é possível se a Administração Pública realizar o seu papel

obrigatório de produção de leis e de atos administrativos, de acordo com o princípio da

legalidade, já que muitas vezes os órgãos administrativos não atuam como deveriam atuar,

deixando de realizar as funções que a lei lhe atribue45.

44 FIGUEIREDO DIAS. Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 193 e 194.45 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre a tutela..., cit., p. 193 e 194.

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5 OS ATOS ADMINISTRATIVOS INSERTOS NA ACESSORIEDADE

5.1 Significado do ato no contexto do tipo penal

Partindo do pressuposto que trabalhamos com uma acessoriedade relativa que se

utiliza da combinação de norma e ato, o ato administrativo que complementará o tipo penal

poderá ser tanto uma licença quanto uma autorização46. A primeira é um ato administrativo

vinculado, onde o particular satisfaz um direito subjetivo, desde que atenda as exigências

legais para a obtenção da mesma, constituindo-se em um ato permissivo de direito. Assim, a

Administração Pública apenas verifica os pré-requisitos e reconhece o direito à execução de

atividades ou a realização de fatos materiais antes proibidos ao particular, concedendo então a

licença.

Já no caso da autorização, ainda que o particular preencha os requisitos legais, a

Administração Pública tem a faculdade de decidir discricionariamente se concederá ou não

que o particular execute determinada atividade ou serviço, de acordo com a sua conveniência,

sendo então um ato constitutivo de direito.

Assim, o particular que obtém uma licença ou uma autorização da Administração

Pública, adquire o direito de praticar uma atividade que, sem a outorga do ato administrativo,

é proibida pela norma penal. Trataremos no decorrer deste trabalho com o vocábulo ato

administrativo em específico para denominar tanto a licença como a autorização.

46 Conforme o direito brasileiro, ver MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 190-191. Sobre autorizações constitutivas e permissivas de direito, em Portugal, ver SOARES, Rogério. Direito administrativo. Ano letivo de 1977/78. Coimbra, 1978 apud CARVALHO, Raquel. Licença ambiental como procedimento administrativo. In: Actas de Estudos de Estudos de direito do ambiente. Crd. de Mário de Melo Rocha. Porto: Coimbra, 2003, p. 248, pelo que a autora leciona que existem divergências doutrinárias nesse âmbito. De tal maneira, em sentido contrário, acreditando que a “licença” é constitutiva de direitos e a “autorização” é permissiva de direitos, ver REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito administrativo geral: atividade administrativa. Tomo III. Lisboa: Dom Quixote, 2007, p. 99. FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de direito administrativo. Vol. II. 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 256-258. Anota-se que os conceitos são os mesmos, invertendo apenas a nomenclatura. Vale a observação. Quanto ao aspecto do direito subjetivo à obtenção, para alguns autores, o significado de “licença”, no direito português, corresponde ao de “autorização”, no direito brasileiro, e vice-versa. Por conta disso trataremos nesse estudo ambas as denominações de forma indiscriminada, além do vocábulo geral “ato administrativo, para denominar tanto uma , como outra.

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5.1.1 Ato administrativo como exclusão da ilicitude

Neste caso, o tipo penal se concebe como uma proibição repressiva com cláusula

liberatória e, o ato administrativo, como ato constitutivo ou permissivo de um direito,

operando como causa de justificação. Tal representa uma dispensa normatizada que permite

excluir a antijuridicidade de um comportamento típico. Assim, a sanção representaria a regra

geral, motivando a conduta de não-lesão do ambiente, excetuada em casos especificamente

justificados pelo ato administrativo.

O ato administrativo como causa de justificação exclui a antijuridicidade da conduta, e

para que não haja desvalor de ação é necessário que exista, além dos pressupostos objetivos, o

pressuposto subjetivo da excludente, ou seja, que o agente tenha a percepção de que age

amparado pela justificação, que ele tenha conhecimento e intencione atuar de maneira

juridicamente permitida, que saiba que realiza uma atividade que pode ser danosa, mas age

com a intenção de evitar o dano ambiental47.

A atividade passa então a ser permitida e o agente não incorre em crime, pois a

Administração Pública concede uma justificação para o exercício da mesma, aprovando

juridicamente a conduta que era antes proibida, mas que, no caso concreto, demonstra ter um

interesse mais valioso do que proteger o meio ambiente, qual seja, o desenvolvimento

social48. Assim, o particular age justificado por um exercício regular de direito49.

O ato administrativo atua como um ato constitutivo ou permissivo de direitos, e dá ao

particular a possibilidade de ação, libertando-o de um dever através de um valor positivo

oposto à proibição, concedendo-lhe direitos ou privilégios antes proibidos pelo tipo penal50.

Tal não implica em contradição, uma vez que a manutenção da vida humana e o

desenvolvimento das sociedades, são, por si só, causa de impacto ambiental. A questão é de

graduação e reside na necessidade de se otimizar tal impacto, de forma a que as sociedades

possam se desenvolver com um mínimo aceitável de dano ambiental.

47 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, Vol. I. 14ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2009, p. 326 e ss. Também FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal. Parte geral. Tomo I. 2ª ed., Coimbra:Coimbra, 2007, p. 39348 TAIPA DE CARVALHO, Américo A. Direito penal: parte geral. Vol. II. Teoria geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 14349 No CP português, art. 31, b e c. E no CP brasileiro, art. 23, III. 50 PALMA, Maria Fernanda. A justificação por legitima defesa como problema de delimitação de direitos. Vol. II. Lisboa: AAFDL, 1990, p. 670 e ss.

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Só extraordinariamente, a autoridade competente, e atendo-se a critérios estritamente

previstos na lei, pode levantar a proibição e permitir o ataque aos bens tutelados. De tal

maneira, um fato legalmente autorizado não pode constituir delito, pois este atua como

justificativa51.

Nesse sentido, FERNANDA PALMA52 diz que o agente que não causa o dano, mas

transgride o dever – administrativamente imposto –, praticará um fato atípico, porém, se esse

mesmo agente tiver cumprido o dever, mas tiver causado um dano ambiental, considerar-se-á

um fato típico justificado.

Porém, no nosso entendimento, no caso do crime de poluição, o ato administrativo não

atua somente como causa de justificação que exclui a ilicitude do comportamento, mas, antes,

atua como exclusão do próprio tipo. Assim, só pode haver exclusão da ilicitude se houver

ilícito penal, sendo este o pressuposto daquele.

Ou seja, a verificação da tipicidade tem precedência lógica e metodológica sobre a

verificação da ilicitude. Somente quando se constata que a conduta é típica, é que será cabível

verificar se ela é ou não ilícita nos termos da lei. Isso significa que só se averigua a existência

de uma causa de justificação se se conclui que a ação é efetivamente típica53, posto que o que

não é típico não necessita ser justificado.

5.1.2 Ato administrativo como exclusão da tipicidade

Visto por essa concepção, diferente da anterior, o crime de poluição é considerado

como uma proibição preventiva com reserva de permissão, e o veto do exercício poluente tem

como finalidade o controle da fonte de perigo para um determinado bem jurídico; daí que o

direito penal exija o cumprimento das imposições que se prevê administrativamente quando

da execução de determinada atividade. A autorização administrativa, de caráter meramente

declaratório, pertence então à tipicidade e a sua habilitação permite excluir esta última.

51 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 105-107.52 FERNANDA PALMA, Maria. Direito penal do ambiente – uma primeira abordagem. In: separata de Direito do ambiente, INA, 1994. p. 44553 TAIPA DE CARVALHO, Américo A.. Direito penal: parte geral..., cit., p. 48-50. Segundo Figueiredo Dias, “o primeiro e autônomo qualitativo da ação” é a existência do tipo, devendo-se “começar por comprovar a correspondência da ação concreta a um tipo, para só depois eventualmente negar a sua ilicitude”. FIGUEIREDO DIAS. Jorge de. Direito penal parte geral..., cit., p. 265.

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O primeiro ponto é que para haver dignidade penal do bem jurídico54, in casu, é

preciso que esse tenha relevância ético-social e, aí, é a gravidade da conduta que pode lesá-lo

ou pô-lo em perigo. Conformando-se ao princípio da adequação social, a poluição que é

socialmente reprovada é só aquela que ocorre em “medida inadmissível”, como dizia a

redação antiga do crime de poluição em Portugal – antes da alteração da Lei n.º 59/2007.

A expressão deu asas a várias interpretações, entre elas, MIRANDA RODRIGUES55,

que afirmava que só havia relevância penal na poluição que ocorresse de maneira

inadmissível, como o próprio legislador redigia. Ou seja, não seria qualquer conduta ilícita,

mas só aquela que ultrapassasse a medida do intolerável.

A redação do tipo se modificou e atualmente lê-se que comete crime quem poluir “não

observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade

competente em conformidade com aquelas disposições”. E o número 3 do artigo inclui que

para haver crime é preciso que o agente atue “de forma grave”, trazendo nas três alíneas o que

viria a ser a conceituação de grave56 para existir crime.

Mesmo com a modificação redacional, o papel da norma administrativa e das

imposições da autoridade competente continua a ser a estipulação do que virá a ser a poluição

nessa “medida inadmissível” – afinal, é para isso que elas servem –, porque só a conduta que

ultrapassar o nível do razoável é que virá a ser considerada uma conduta socialmente

desvalorada, ou, mais precisamente, típica.

Também a redação brasileira, que diz que o crime é causar a poluição “em níveis tais

que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade

de animais ou a destruição significativa da flora” (grifos nossos), e aqui a lei (embora não

cumpra bem o seu papel) mostra que não é qualquer poluição que é considerada típica, mas só

aquela além do socialmente razoável, além do limite tolerável.

E é a norma administrativa que irá determinar a fronteira, através dos “valores-limites”

previamente estipulados, que serão concretizados, caso a caso, pelo ato administrativo. A

relevância criminal só se realiza na conduta que efetivamente polua o meio ambiente, essa

sendo condicionante daquela.

54 Não estamos aqui discutindo se o ambiente se constitui em bem jurídico digno de tutela penal ou não, pois, como várias vezes demonstrado no decorrer do texto, acreditamos sê-lo. Aqui, o sentido de dignidade penal do bem jurídico se dá de forma a revelar que não é toda e qualquer poluição que configura nível suficiente para se tutelar penalmente.55 Em diálogo com o pensamento de MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao crime..., cit., p. 966 a 968.56 NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no direito..., cit., p. 318

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Assim, através do ato administrativo, determinar-se-á a conduta admissível e a

conduta inadmissível de poluição, dando relevância penal somente à última. A partir do

momento que a Administração Pública revela o limiar do proibido, a conduta que se enquadra

dentro do permitido não poderá também ser uma conduta típica, pois será administrativamente

tolerada.

O ato então terá repercussão no elemento objetivo do tipo: na conduta, pois não é

qualquer conduta que é penalmente tutelada, mas somente aquela que apresenta uma

valoração negativa pela sociedade. Se o comportamento do agente não é reprovado

administrativamente, tampouco será socialmente, sendo um o pressuposto do outro e

excluindo-se, assim, a tipicidade da conduta.

A valoração negativa de um determinado comportamento é requisito elementar da

tipicidade57, realizando-se, entrementes, pelo desvalor de ação, que se constitui na reunião de

elementos subjetivos que dá forma ao tipo de ilícito (subjetivo) e ao tipo de culpa, ou, mais

especificamente, é o propósito delituoso do autor, a postura interna do agente e a conduta

fática que dá vida a esta reunião de elementos58. O que acontece é que não pode haver ilícito

típico sem desvalor de ação.

Se a conduta é valiosa, não pode haver imputação de resultado ao autor. O fato de se

atribuir um resultado a uma ação não significa automaticamente que esta conduta seja típica.

É antes necessário verificar se há ou não o desvalor da ação59.

E, quando a Administração Pública concede uma autorização – um ato administrativo

permissivo –, ela formaliza o direito que aquele particular possui de atuar, dentro de

determinados limites. Através da obtenção desse ato, a conduta então passa a ter um caráter

permitido – pela própria Administração Pública – que, admitindo-a, faz com que o

57 Assim, nas palavras de Taipa de Carvalho, “esse conceito social de ação em sentido amplo (...) cumpre a função positiva ou de ligação que se exige a um conceito pré-juridico de ação, para que possa ser considerado e assumido como conceito básico da construção categorial da infração penal ou crime”. TAIPA DE CARVALHO, Américo A. Direito penal: parte geral...,cit., p. 41 e ss.58 Esse desvalor de ação é conceituado por Figueiredo Dias como “o conjunto de elementos subjetivos que conformam o tipo de ilícito (subjetivo) e o tipo de culpa, nomeadamente a finalidade delituosa, a atitude interna do agente que ao fato preside e a parte do comportamento que exprime faticamente este conjunto de elementos”. Já o desvalor de resultado como sendo a “criação de um estado juridicamente desaprovado e, assim, o conjunto de elementos objetivos do tipo de ilícito (eventualmente também do tipo de culpa) que perfeccionam a figura de delito”. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal parte geral..., cit., p. 28559 TAIPA DE CARVALHO, Américo A. Direito penal: parte geral..., cit., p. 114 e ss. Também sobre desvalor de ação, Silva Dias afirma que “o desvalor de ação que integra o ilícito-típico da poluição grave (...) traduz-se na violação de grandes normas de comportamento. A vinculação a estas das normas jurídico-penais cumpre um objetivo político-criminal da maior relevância, que consiste em converter para o plano da atividade sistêmica orientações prático-éticas do mundo da vida e, com o respaldo das normas de sanção correspondentes, em tornar perceptível e imperativa a sua observância a papéis que atuam de acordo com uma lógica de custos-benefícios. SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita. Uma análise das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 863

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comportamento do agente passe a ser socialmente aprovado. Assim, por conseqüência, exclui-

se a tipicidade da atitude pois, quando o particular atua embasado pela autorização, não há

nenhum desvalor de ação no seu comportamento.

Assim, o particular possuidor de uma autorização60, comporta-se de forma atípica, vez

que não há na sua conduta caráter socialmente reprovável, pois é a própria Administração

Pública – ente detentor do poder do povo – que formaliza e determina os limites desse direito.

A relevância criminal será só a conduta que efetivamente polua o meio ambiente, essa sendo

condicionante daquela, e, portanto, não se pode admitir a punição de qualquer conduta.

O comportamento tido como típico, então, será só aquele que transpassa os limites

impostos administrativamente e, adicionalmente, lese um bem-jurídico penal, o ambiente.

Assim, através da declaração pública, juridicamente permissiva, do comportamento, por

conseqüência (pelo princípio da unidade do ordenamento jurídico), esse comportamento será

também penalmente desvalorável. É preciso lembrar que, antes de tudo, o direito opera como

um todo em favor da sociedade e, não, o contrário.

Assim se garante a concordância entre o direito administrativo material – que permite

a atividade em questão, submetida a determinadas exigências – e o direito penal; o que

implica que a normativa administrativa será observada enquanto sirva à proteção do bem

tutelado61. A exclusão da tipicidade – através do preenchimento das formalidades requeridas

pela Administração Pública – se dará por não haver o desvalor da ação, perdendo assim a

dignidade penal da conduta. Se não há tipicidade, não há crime.

Da forma como está posto o crime de poluição na letra da lei portuguesa, o conteúdo

do ilícito se traduz na violação das regras – administrativas – que determinam os limites do

risco que é socialmente permitido. É verdade que o tipo é também de desobediência, onde o

desvalor da ação é não haver a autorização, mas esse desvalor só se complementa se houver

aqui uma lesão ao meio ambiente, e aí, o tipo é cumulativamente de dano: além do permitido.

Mas veja bem, a conduta típica é aquela que desobedece a uma norma administrativa

(ou a uma prescrição) cumulado à existência de um dano ambiental62. Só é fato típico a soma

da desobediência com o dano, i. é, se ocorrem os dois. Portanto, o agente que comete um dano

60 Autorização aqui usado em sentido amplo para designar tanto a autorização em si quanto a licença administrativa. 61 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 104-5.62 Silva Dias diz que na seleção das condutas típicas, o elemento de poluição em medida inadmissível (como antes era exposto no tipo penal português) possui uma relevância decisiva, sendo que só podem ser consideradas condutas típicas aquelas que “se traduzirem simultaneamente numa desobediência às prescrições e limitações válidas da autoridade competente” (grifos nossos). Para o autor, “condição fundamental da tipicidade da conduta é a pré-existência de um ato administrativo que preencha os requisitos” do antigo n.º 3 do art. 279 do CP português. SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se..., cit. p. 849.

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dentro das limitações impostas administrativamente, embora possa ser lamentável, ainda

assim não há tipicidade de poluição, porque não realiza os dois pressupostos do tipo, obtém só

o dano.

À Administração é dada a incumbência de determinar os limites do permitido e do

reprovável, e isso é responsabilidade dela, e só dela. Tal não pode ser jamais imposto a um

cidadão que atua de boa-fé, porque é obrigação daquela, e não desse, verificar os pressupostos

do que pode vir a causar um dano ou não. Se é permitido, o é; se não é, não o é. Essa

responsabilidade é demasiado pesada para se impor a uma pessoa que não seja o Estado. O

peso da balança deixa de ficar equilibrado porque, entre a máquina do governo e um agente

em si considerado, não há, nem de longe, uma medida de equilíbrio.

Aqui, a conduta típica só se formaliza com a não-observância dos preceitos

administrativos, ou a desobediência destes, somado à poluição ambiental realizada de “forma

grave”, ou, em outros termos, de maneira socialmente inadmissível. O crime é de

desobediência e dano.

Segundo RENGIER63, o ato administrativo revela-se como causa de exclusão da

ilicitude quando o tipo expõe de forma suficientemente clara a conduta proibida, independente

do ato administrativo e, no entanto, a exclusão da tipicidade ocorre quando a conduta típica

tem o seu desvalor de ação, em parte, na não-obtenção do ato administrativo, constituindo-se

como elemento negativo do tipo.

A ausência da prescrição administrativa é um elemento negativo do tipo, o ato exclui o

tipo, e, assim, somente através da desobediência ao mesmo se condiciona a relevância

criminal da conduta danosa. O crime somente se consuma com o efetivo inquinamento

ambiental aliado à contrariedade ao ato administrativo, imposto em conformidade com as

disposições legais, sendo ambos os elementos essenciais do crime64.

63 RENGIER, R. Die öffentlich-rechtliche Genehmigung im Strafrecht. In: ZStW, 1989, n.º 4, p. 878 apud SILVA DIAS, Augusto. A estrutura dos direitos ao ambiente e à qualidade dos bens de consumo e sua repercussão na teoria do bem jurídico e na das causas de justificação. In: Jornadas de homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro de Ferreira. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, p. 232. Discordando do referido autor, Silva Dias leciona que a autorização administrativa só existe, nesse caso, para cumprir um papel de permissão extraordinária da conduta que, em regra, é proibida.64 QUINTELA DE BRITO, Teresa. O crime de poluição..., cit., p. 345-348.

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5.2 Atos administrativos inválidos

Obtendo o particular um ato administrativo que permita o exercício da atividade, pode

suceder que esse ato, por qualquer um dos motivos possíveis, contenha um vício e seja

considerado inválido.

Em caráter geral, por motivos de certeza e segurança da ordem jurídica, o ato

administrativo viciado é anulável65, e o são quando infringem regras referentes aos seus cinco

elementos essenciais.

Mas, embora possuidor de uma invalidade, o interesse público é satisfeito pela sua

parcial validez, e este é juridicamente eficaz até que venha a ser anulado ou suspenso, e para

tanto, produz efeitos jurídicos como se válido fosse. Os vícios de atos anuláveis são passíveis

de ser sanados, seja pelo decurso do tempo, ou por qualquer outro instrumento admitido pelo

direito, e aqui não se encontram maiores problemas, uma vez que a própria Administração

Pública pode sanar o vício e este ato produzirá efeitos ex nunc.

O problema efetivamente decorre quando o defeito do ato o faz nulo66, pois este já

surge danificado por um vício insanável, seja por ausência ou defeito substancial em um de

seus elementos constitutivos ou mesmo em seu processo de formação. Os vícios de nulidade

podem advir tanto de uma lei que os decreta expressamente, ou por violação de um princípio

de direito público.

Um ato administrativo pode ser nulo, por exemplo e entre outros motivos, devido à

falta de seus elementos essenciais, por incompetência absoluta, ou por carência absoluta de

65 O Código de Procedimento Administrativo português trata o ato administrativo anulável nos seus artigos n.º 135 e 136. visualizados em http://www.esenviseu.net/Principal/Legislacao/Download/13/28.pdf. Já no direito brasileiro, a matéria é tratada nos arts. 53 e ss. da Lei n.º 9.784, visualizada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9784.htm, ambos em data de 06/08/2010. Ato anulável em FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de direito administrativo..., cit., p. 407 e ss. Também SEABRA FAGUNDES, M. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Forense: Rio de Janeiro, 2005. p. 65. Hely Lopes Meirelles não aceita o chamado ato administrativo anulável no âmbito do direito administrativo, devido, segundo o autor, à impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre o público e não ser admissível a manutenção de atos ilegais, ainda que assim desejem as partes, porque a isto se opõe a exigência de legalidade administrativa. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 176-177.66 Em Portugal, o ato nulo é tratado nos artigos 133 e 134 do CPA, visualizado em http://www.esenviseu.net/Principal/Legislacao/Download/13/28.pdf. No Brasil, a matéria é regida no art. 2º da Lei 4.717/65, visualizado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4717.htm, ambos em data de 06/08/2010. Aqui, ver MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 176-177.

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forma legal67. Portanto, quando a Administração Pública verifica a nulidade do ato, ela tem o

dever de declará-lo como tal, restabelecendo a legalidade administrativa.

Ocorre que, um ato administrativo nulo não é suscetível de ser sanado e, logo que seja

declarada a sua nulidade – o que pode ser feito a qualquer tempo e tanto pela Administração

Pública quanto pelo Judiciário –, este opera, em regra, com efeitos ex tunc, retroagindo às

suas origens e alcançando todos os seus efeitos no passado, presente e futuro.

Dado o efeito ex tunc, retroativo à data de emissão do ato, a conseqüência é que o ato

nulo passa a ser como algo que nunca tivesse existido. Daí decorre a problemática: a

Administração Pública permite ao particular a prática de uma determinada atividade poluente;

o particular, possuidor de uma autorização, exerce-a; o ato administrativo vem a ser,

posteriormente e por estrita responsabilidade da Administração, considerado nulo, por

ilegitimidade ou ilegalidade. Pergunta-se: esse particular incorre em crime? Deve ele ser

responsabilizado penalmente e punido pela prática do crime de poluição, ainda que este tenha

obtido um ato administrativo permissivo? Faz-se necessário, então, examinar a relevância

penal das condutas praticada ao abrigo dos atos nulos da Administração Pública.

67 O artigo 133, n.º 2 do CPA traz o rol de atos nulos, que, além dos acima citados, constituem em atos viciados de usurpação de poderes; de impossibilidade, ininteligibilidade e criminalidade do seu objeto e do seu conteúdo; violação do conteúdo essencial de um direito fundamental; atos praticados sob coação; desrespeito dos requisitos de normalidade circunstancial das deliberações, inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos; violação de decisões jurisdicionais; e relação de consequencialidade com atos administrativos anteriores inválidos. REBELO DE SOUSA, Marcelo e SALGADO DE MATOS, André. Direito administrativo geral...,cit., p. 160 e ss.

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37

6 RELEVÂNCIA PENAL DOS ATOS PRATICADOS SOB O MANTO DE UM ATO

NULO

6.1 Ato nulo e norma administrativa não estipulativa de valores-limites

O particular obteve uma autorização para a prática de sua atividade, que é determinada

como uma atividade poluente. Iniciam-se as atividades e, após, essa autorização é considerada

nula. Partindo-se de uma tutela penal relativamente acessória combinada de norma e ato, uma

vez que seja declarada a nulidade do ato, pela lógica sistemática, faz-se, primeiro, remissão à

norma administrativa.

Se o ato é nulo e a norma administrativa não traz, no corpo do seu texto, os limites de

poluição socialmente permitidos ou não, não há que se falar em conduta típica, pois, ainda

que haja dano ambiental, o tipo não resta preenchido.

O preenchimento do tipo se dá pelo dano ao ambiente cumulado à desobediência das

disposições legais e regulamentares, ou obrigações impostas pela autoridade competente.

Aqui, mesmo que haja o elemento dano, não haverá nenhuma forma de desobediência, pois

não há desobediência nem a um ato – pois este foi considerado nulo e opera, a priori, como se

não houvesse sido consentido – e nem à norma administrativa, que não regula os limites que

se concretizariam em desobediência às estipulações das mesmas. A falha é do sistema, e não

do particular, que não pode ser punido criminalmente pela ausência de lei estipulativa.

Portanto, feita a remissão à norma, e caso esta não estipule as condutas socialmente

aceitáveis ou não de poluição, não se preenche o tipo e a conduta do particular se torna

atípica.

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6.2 Ato nulo e norma administrativa estipulativa de valores-limites

6.2.1 Ato nulo e atividade dentro dos valores-limites da norma administrativa

Se, porém, a norma administrativa estipula os valores-limites da utilização razoável do

meio ambiente, esses valores-limites é que serão a base daquilo que será considerado

socialmente aceitável ou não, ou seja, tudo aquilo que estiver fora desses, será considerado

como dano ambiental. Portanto, mesmo que haja um ato nulo e sem efeitos, a remissão à

norma poderá esclarecer se a atividade praticada se encontra, teoricamente, dentro dos limites

ou não. Se, apesar do ato considerado nulo, a poluição praticada pelo particular se insere

nesses limites permitidos pela norma administrativa, também aqui não haverá o elemento

desobediência, pois a conduta é amparada pela norma – ainda que de forma ampla e não

delimitada ao caso concreto, como deveria ser –, e o comportamento será considerado atípico,

pela ausência de preenchimento do tipo penal.

Em tais casos, e desde que não existissem outros óbices, poder-se-ia dizer que o

particular teria, até mesmo, direito subjetivo a que lhe fosse concedida a autorização para

exercer aquela atividade, ao agasalho do princípio da legalidade. Ou seja, teria o direito

subjetivo de obter o ato declarado nulo, sem os vícios que o macularam.

6.2.2 Ato nulo e atividade fora dos valores-limites da norma administrativa

A dificuldade maior se dá quando a atividade não se encontra dentro dos parâmetros

previamente estipulados pela norma administrativa. Acontece que o particular de boa-fé, que

obteve uma autorização da Administração Pública, acredita que aquele comportamento é

juridicamente permitido, pois foi o próprio órgão administrativo que lhe fez crer na

possibilidade de atuação (A mesma situação se dá quando a acessoriedade atua relativamente

só ao ato. No caso da acessoriedade ser somente ao ato, a nulidade desse terá a mesma

conseqüência da atividade que incorre fora dos padrões delimitados pela norma).

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Assim, o ato administrativo, que foi concedido ao particular, vem, intrinsecamente,

revestido de uma aparência de legalidade, que faz crer que a sua conduta é permitida no

mundo jurídico. A tutela da confiança do administrado no Poder Público, também chamada

teoria da aparência, é construída, segundo SEABRA FAGUNDES68, para o público, no

interesse do público, e visa protegê-lo contra as más atuações administrativas e contra o

perigo de nulidade das situações nas quais não se aparentava nenhuma irregularidade.

E, embora o ato seja nulo, a aparência da sua validade traz conseqüências que não

podem ser desprezadas. O ato aparenta ser legal e válido ao administrado e, portanto, existem

efeitos putativos. Daí que, desde que o agente esteja de boa-fé69, nessa situação, deve-se

prevalecer o direito do particular em detrimento do suposto interesse público, na necessidade

real de se defender o administrado contra a “fria e mecânica aplicação da lei”70, que, no estrito

cumprimento da aplicação da lei, retiraria do particular a rede que lhe fazia crer seguro.

O particular não tem o dever de conferir se a atuação do Poder Público é defeituosa ou

não, este encargo é atribuído à Administração e não ao administrado. Conseqüentemente, este

confia que os atos expedidos sejam válidos e eficazes. Nestes casos, a presunção de

legitimidade e a teoria da aparência devem ser aplicadas, garantindo que haja segurança

jurídica nas relações entre administração e administrado, mesmo quando o ato é viciado em

sua origem.

68 SEABRA FAGUNDES, M. O controle dos atos..., cit. p. 78. Também o artigo 6º-A, n.º 2, alíena a do CPA diz que deve-se ter em conta “a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa”. Rebelo de Sousa e Salgado de Matos apontam as cinco circunstâncias que devem ser consideradas, de forma global e não individualmente, na tutela da confiança, quais sejam, “primeira, uma atuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adoção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da atuação de outrem, ou seja, uma convicção, por parte do destinatário da atuação em causa, na determinação do sujeito jurídico que a adotou quanto à sua atuação subsequente, bem como a presença de elementos susceptíveis de legitimar essa convicção, não só em abstrato mas em concreto; terceiro, a efetivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de ações ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto, o nexo de causalidade entre a atuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado, e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; e, quinto, a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou” (grifos nossos). REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais. Tomo I. 3ª ed. Lisboa: Don Quixote, 2008, p. 222 e 223.69 Sobre o particular de boa-fé que crê na aparência do ato, ver MARTÍNEZ DE VELASCO, José Ignácio Cano. La exteriorización de los actos jurídicos: su forma y la protección de su apariencia. Barcelona: Bosch, 1990, p. 65 e ss. 70 SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica noestado de direito contemporâneo. In: Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, n.º 46, 1988, p. 47 apud PIRES, Luis Manuel Fonseca. Regime jurídico das licenças. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 184. Também RAMOS, João Henrique de Oliveira; PÊGA, Antônio Manuel Moura Fernandes; PINTO, Victor Manuel Ribeiro. Nulidade dos actos administrativos com especial referência aos praticados pelos órgãos da administração local (autarquias e associações e federações de municípios). In: Revista de Direito Autárquico, ano 2, n.º 2, jun/2003. Lisboa: IGAT, 2003. p. 112 e ss.

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O desfazimento do ato, declarando a sua nulidade, acarretaria prejuízos graves ao

administrado – como, in casu, ser responsabilizado criminalmente por uma conduta que

considerava permitida – que, posto na balança junto à legalidade, geraria maiores prejuízos do

que os advindos do ato viciado71.

Priorizando o princípio da legalidade, em detrimento de outros princípios, que também

são considerados vigas mestras do Direito, como o princípio da segurança jurídica e da boa-fé

do administrado, a Administração Pública “está amparando a si própria e não aos particulares

destinatários originários do princípio em questão”72. O limite do poder dos órgãos

administrativos de anular seus próprios atos esbarra nos direitos subjetivos criados por estes.

O objetivo é proteger os administrados de boa-fé, e, excepcionalmente, deve-se manter o ato

administrativo viciado, ou, ao menos, alguns de seus efeitos putativos.

Necessário, nesses casos, é que o particular não tenha sido partícipe no vício gerado e

que esteja de boa-fé, princípio que deve ser considerado diante da posição de supremacia do

Poder Público. Assim, a boa-fé subjetiva do agente atua como uma crença, errada, porém

desculpável, da possível situação jurídica de permissão da conduta73.

6.2.2.1 Soluções apontadas

De acordo com o princípio da unidade do ordenamento jurídico, não se pode

considerar penalmente ilícito aquilo que administrativamente se considera permitido. O

sistema jurídico tem que atuar sem que nele haja contradições, isto é, “não se pode proibir

penalmente o que administrativamente está permitido (ou foi), bem por uma norma, bem por

71 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 435 e 436 apud PIRES, Luis Manuel Fonseca. Regime jurídico das..., cit. p. 183 e 184.72 SEABRA FAGUNDES, M. O controle dos..., cit., p. 55. Também MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 201 e ss. 73

NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 151. O autor faz, a partir da página 177, a uma referência ao instituto da boa-fé também no direito grego e alemão, dizendo sobre o primeiro que “os atos administrativos, embora perpetrados à margem da ordem jurídica, tornam-se irrevogáveis, desde que perfaçam quatro condições: a) sejam de caráter individual; b) criem direitos em prol dos seus destinatários; c) haja transcorrido, ao depois de sua emissão, plausível lapso de tempo; d) esteja o seu beneficiário de boa-fé” e, sobre o segundo, que, “o parágrafo 48 da Lei do Procedimento Administrativo da Alemanha enuncia as situações segundo as quais a confiança, regra geral, é digna de tutela, especificando, logo após, as hipóteses em que aquela não poderá ser invocada em proveito do administrado, quando o ato administrativo: a) fora obtido mediante engano doloso, ameaça ou suborno; b) fora alcançado com base em dados no essencial inexatos ou incompletos; c) tinha a sua nulidade conhecida pelo beneficiário, ou este não a conhecia por culpa grave”.

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uma autorização”74, sob pena de o sistema jurídico dar a atribuição ao particular de, além de

conformar a sua conduta à atividade administrativa, ter o dever de se inteirar sobre as

possíveis reações penais, o que é, absolutamente, fora de propósito.

Tendo em vista os princípios da aparência, da boa-fé do administrado, da unidade do

ordenamento e da segurança jurídica em contraposto ao princípio da legalidade, a doutrina

aceita que, muito embora a nulidade do ato tenha por regra efeitos ex tunc, repondo-se o status

quo ante, excepcionalmente, alguns efeitos podem vigorar como sendo ex nunc75.

Excepcionalmente, diz-se, por força dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé

do administrado, é passível de se considerar efeitos válidos, ou mesmo ex nunc, para o ato

nulo. Tal o pode ser por decurso do tempo e/ou devido à necessidade de harmonia de todo o

ordenamento com os princípios basilares do direito76.

Assim, o ato administrativo existe toda vez que ele aparente existir, e a inexistência

jurídica só se realiza com a falta dos pressupostos ou dos elementos essenciais do ato que o

impeçam de ter essa aparência, que visa produzir efeitos numa situação individual e real77.

Segundo PIRES78, se o administrado-partícipe da relação jurídica com a

Administração Pública estava de boa-fé e, no caso concreto, o ato viciado era ampliativo de

direitos daquele, deve-se confrontar e preponderar os valores em embate. Os atos serão

invalidados, mas isso não significa que se invalidará todos os seus efeitos, mas só aqueles “na

medida e para o fim que justificam e autorizam a ponderação de interesses em disputa”.

Estes não perdurarão para sempre, mas só até o momento em que os seus efeitos sejam

necessários. O particular pode ter que cessar a sua atividade, que não será mais permitida pela

74 MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 69 e ss.75 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 201 e ss. 76 Meirelles, observando a excepcional admissão de efeitos ex nunc aos atos nulos, acrescenta jurisprudência nesse sentido, onde o STF/BR decidiu que: “irregularidades formais, sanadas por outro meio, ou irrelevantes por sua natureza, não anulam o ato que já criou direito subjetivo para terceiro” e “em direito público, só se declara nulidade de ato ou processo quando da inobservância de formalidade resulta prejuízo” apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 201 e ss. Também Freitas do Amaral, ao relevo da matéria, desde logo ressalva neste ponto que “isso não quer dizer que por força do decurso do tempo e de harmonia com os principios gerais do direito, não se possam atribuir certos efeitos juridicos a situações de fato resultantes de atos nulos (cfr. CPA, artigo 134º, n.º 3)” FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de direito..., cit. p. 404.77 “O ato administrativo existe sempre que haja uma aparência de ato, pelo que a inexistência jurídica fica reduzida à ausência de pressupostos ou de elementos essenciais do ato que o privem dessa aparência ou identificabilidade mínima”. REBELO DE SOUSA, Marcelo. Regime jurídico do acto administrativo. In:Cadernos de ciencia de legislação, n.º 9/10. Oeiras: Ina, jan/jun 1994. p. 167 e ss. 78 PIRES, Luís Manuel Fonseca. Regime jurídico das..., cit., p. 185-186. Segundo Amado Gomes, “a intangibilidade dos ‘direitos adquiridos’ nasce da associação entre a figura dos atos criadores de direitos e da irretroatividade da revogação, a qual, por sua vez, é jusitificada pela necessidade de preservar a estabilidade do direito adquirido”. AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do ato administrativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Tese de doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas (Direito Administrativo), apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito. Lisboa: 2006, p. 693.

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Administração Pública, mas, sob nenhuma circunstância, poder-se-ia imputar ao mesmo a

prática do crime de poluição.

VIEIRA DE ANDRADE79 ressalta que, embora o regime da nulidade seja o

excepcional, as situações de nulidade não são tão raras assim e cada vez menos evidentes, de

tal forma que se acumulam motivos para se proteger os cidadãos contra os erros ou abusos

imputáveis ao órgão administrativo e que geram vícios de nulidade. O autor, em tom crítico,

afirma que embora o artigo 134, n.º 3, do CPA traga a admissibilidade de efeitos jurídicos a

situações de fato, conseqüentes de atos nulos, tal não é satisfatório para atribuir flexibilidade

ao regime da nulidade, pois se limita às eventualidades de decurso do tempo, relacionado a

princípios gerais de direito.

Assim, essa rigidez de não-atribuição de quaisquer efeitos jurídicos aos atos nulos tem

sido enfraquecida, passando a haver uma idéia de prescrição aquisitiva baseada nos princípios

da segurança e da confiança do particular na Administração. O ato continua a ser nulo, porém,

justifica-se a permanência de alguns dos seus efeitos pela situações fáticas criadas em sua

decorrência, ou seja, pela sua aparência de validade, criando-se, assim, um “regime atípico de

nulidade”80 e possibilitando o reconhecimento de efeitos jurídicos a situações de fato que

sejam emergentes de atos nulos81.

Todavia, é comum, no direito, o intérprete ter mais de uma solução jurídica capaz de

alcançar o objetivo da proteção desejada. Nesses casos, cabe a ele, eleger aquela que, sendo

mais simples, mais se aproxima da realidade.

Como visto antes, os atos nulos, em princípio, uma vez declarados, operam efeitos ex

tunc. São como se nunca tivessem existido. Porém, essa conseqüência não se pode dar de

forma absoluta, atingindo aquelas pessoas que agiram de boa-fé, ao agasalho da presunção de

legalidade e validade dos atos emanados pela Administração Pública.

79 VIEIRA DE ANDRADE, J.C. A revisão dos atos administrativos no direito português. In Cadernos de ciência de legislação, n.º 9/10, Oeiras: Ina, jan/jun 1994, p. 187. Diz ainda que “a declaração administrativa de nulidade de atos favoráveis (sobretudo de atos com conteúdo patrimonial) não deve ser admissível a todo tempo, mas só num prazo razoável, é inaceitável quando o vício é inteiramente imputável ao órgão administrativo, é inadequada quando a nulidade não é evidente e é, em princípio, impossivel se a nulidade resulta da aplicação de lei inconstitucional. VIEIRA DE ANDRADE, J.C. Validade (do acto administrativo). In: Dicionário jurídico da Administração Pública. Vol. VII. Lisboa, 1996. p. 591.80 A expressão é de OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007. p. 1.030 e ss. Vide também REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito administrativo geral..., tomo III, cit. p. 174.81 Como no caso dos agentes putativos da Administração Pública, onde o particular confia que o ato foi validamente expedido, não sendo de sua competência – o que seria absolutamente irrazoável – verificar a prova da regularidade dos títulos destes agentes, assim, “a segurança jurídica exige que se reconheça a validade dos atos praticados pelos agentes putativos”. CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Vol. II. 10ª ed. 9ª reimp. Coimbra: Almedina, 2008, p. 645 e ss.

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Assim, por exemplo, o administrado que obteve uma autorização para praticar um ato

que, por sua própria natureza, tenha forte impacto ambiental, mas que não configuraria o tipo

penal justamente porque tal ato estava abrigado por uma “licença da autoridade”, poderia se

encontrar, com a declaração de nulidade daquele ato, em um momento futuro, alcançado pelo

tipo penal, isso se se considerasse que a referida autorização fosse como se nunca tivesse

existido, para todos os fins de direito.

Por certo que o direito não pode aceitar tal solução, até mesmo porque não teria como

se configurar o elemento subjetivo do tipo. Nesse caso, poder-se-ia configurar o erro de tipo,

uma vez que ao tempo dos fatos a ação do administrado não configuraria o tipo penal82.

Poder-se-ia dizer que o agente recai em erro de tipo, pois erra sobre o elemento do tipo

“poluir sem autorização”, uma vez que essa, embora tenha sido expedida, é declarada nula,

havendo uma falsa percepção do elemento normativo do tipo; ou, então, poder-se-ia dizer que

ele incorre em erro de proibição, pois conhece os elementos do tipo, sabe que a conduta é

típica e ilícita, mas erra sobre a sua antijuridicidade, baseando-se na crença de que aquele era

um comportamento, a priori e in casu, permitido pela Administração.

O particular que atua embasado por um ato nulo, mas na crença de sua validade,

acredita que o seu comportamento é lícito, uma vez que imagina estar amparado por uma

autorização administrativa. Assim, o particular erra sobre a antijuridicidade da conduta. Ele

sabe que praticar a atividade poluente sem autorização é crime, mas acredita realizá-la

embasado por uma permissão do órgão administrativo – que vem a ser, posteriormente,

declarada nula.

Portanto, ele atua acreditando estar protegido da ilicitude do fato, pois acha que é

possuidor de uma autorização e faz um juízo errado daquilo que lhe é consentido fazer.

Assim, ainda que a anulação do ato não tenha efeitos ex nunc, o particular fica amparado pelo

erro em direito penal.

Não seria minimamente razoável admitir que um empreendedor, atuando de boa-fé e

acreditando estar abrigado por um ato administrativo permissivo do exercício da sua

atividade, incorresse em fato típico por estrita culpa da Administração Pública, que

desempenha a sua função com deficiência e produz um ato nulo. O Poder Público tem

responsabilidade pelos seus próprios atos, e seria absurdo que se atribuísse essa obrigação –

82 Para mais, ver BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal. Vol. 1: parte geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 402 e ss. Também explicando os erros em direito penal e, mais ainda, o que o autor chama de “suposição errônea de elementos normativos do tipo justificador”, VELOSO, José Antônio. Erro em direito penal. 2ª ed. Lisboa: AAFDL, 1999, p. 33-36.

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de conferir o serviço público – a um particular, que não está apto e sequer haveria capacidade

para tal83.

O agente só age porque se embasa em um ato administrativo válido – ou, ao menos, na

crença da sua existência. Segundo SILVA DIAS84, independentemente do significado

dogmático do ato no contexto do tipo penal, se o erro se encontra na atribuição de um valor

errôneo, como no caso da nulidade do ato, será então um “erro de valoração”, que encontra

respaldo no artigo 17 do Código Penal Português e no artigo 21 do Código Penal Brasileiro.

Portanto, ter-se-á configurado, também, o erro de proibição. Pois o administrado,

embora a partir de determinado momento se visse no enquadramento tipificado, por certo

estaria em condições de argüir, com razão, que jamais a sua vontade esteve dirigida à

realização do tipo, pois que sempre acreditou estar agindo de forma lícita diante das

evidências que tinha da licitude de seu ato. Ou seja, estaria em condições de argüir o erro

sobre a antijuridicidade de seu comportamento, o que significa erro de proibição.

Ambas as soluções seriam eficazes, mas por certo não são aquelas que realizam o

direito de uma forma mais perfeita e simples, na adequação do fato à solução jurídica. A

melhor solução, nesses casos, é se considerar como erro de tipo permissivo. Isso porque a

estrutura que afasta a ilicitude, no caso, está no erro de tipo, enquanto a conseqüência é

própria do erro de proibição.

Como ensina a doutrina, é válido lembrar sobre a construção dogmática do crime que,

enquanto os elementos normativos do tipo se referem à construção da conduta típica, os

elementos jurídicos normativos da ilicitude são, como o próprio nome diz, referentes à

ilicitude da conduta, e são, em geral, caracterizados no tipo com expressões como “sem justa

causa” e “sem licença da autoridade”, como é o caso do crime de poluição que se utiliza da

acessoriedade administrativa85.

O erro que recai nesses elementos, isto é, em crimes que contenham essas expressões,

pode se classificar tanto como um erro de tipo quanto como um erro de proibição, ou, ainda,

como uma consolidação dos dois: o erro de tipo permissivo. Pois, afinal, a expressão “sem

83 No direito brasileiro essa responsabilidade do Estado fica clara no § 6º do art. 37 a Carta da República: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” BRASIL, Constituição da República de 5 de outubro de 1988. In: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Data do acesso: 14.09.2010. 84 SILVA DIAS, Augusto da. A estrutura dos direitos ao ambiente e à qualidade dos bens de consumo e sua repercussão na teoria do bem jurídico e na das causas de justificação. In: Jornadas de homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro de Ferreira. Lisboa: FDUL, 1995, p. 233.85 Em diálogo com BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal..., cit., p. 412 e ss.

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licença da autoridade” é parte constituinte da redação do tipo, mas é, ao mesmo tempo,

elemento da antijuridicidade, vez que é o exato elemento que define a consumação do crime.

O assunto não é pacífico na doutrina, posto que se mescla a estrutura do erro de tipo

com a conseqüência da exclusão da ilicitude, própria do erro de proibição, criando-se então

um “erro eclético”86. O problema da conceituação, mais do mesmo, deixa de ser doutrinário e

passa à realidade pelas conseqüências do tipo de erro pois, num, afeta o dolo, e, noutro, a

culpabilidade.

Para BITENCOURT87, o erro de tipo permissivo mantém o dolo do tipo e somente

afasta a culpabilidade dolosa, nos casos de erro evitável e a culposa, em casos de

inevitabilidade.

Assim, por todos os motivos acima expostos, não há que se falar em relevância penal

do agente que atua abrigado por um ato nulo – quando esse ocorra por estrita responsabilidade

da Administração Pública –, pois o particular crê que lhe é permitido agir, embasando-se na

aparência do ato e na sua presunção de legitimidade.

6.2.3 Atos praticados de má-fé: pequena anotação

Como corolário a justificar a posição expressa no tópico anterior, entendendo que

nesses casos o erro de tipo permissivo seria a interpretação mais adequada no enquadramento

da realidade, pois assim, e nesses casos, não seria necessário qualquer outro elemento para as

situações em que o administrado não fosse inocente na compreensão do que estava

efetivamente ocorrendo, ou seja, naquelas situações em que o administrado tivesse

consciência plena da ilicitude de sua conduta, ou, até mesmo, tivesse agido de forma a obter a

autorização ao fim declarada nula.

Em tais situações, se se considerasse a questão como erro de tipo, ter-se-ia que buscar

um terceiro elemento, como a fraude (por exemplo), para alcançar a persecução penal.

86 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal..., cit., p. 417. Vale notar que os erros de tipo permissivo são aqueles que, geralmente, trazem na construção do tipo, expressões como “indevidamente”, “injustamente”, “sem justa causa”, “sem licença da autoridade” etc. Ou seja, que o tipo se constrói sob uma condicionante externa ao mesmo.

87 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal..., cit., p. 420.

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Se, de outro lado, se se considerasse a questão como erro de proibição, ter-se-ia, ainda,

que buscar esse mesmo terceiro elemento, a fraude (ou seja, a condição de que o agente tinha

consciência da, ou agido em prol da, ilicitude), para chegar à solução jurídica da questão.

Todavia, ao se admitir cabível, em tais hipóteses, apenas o erro de tipo permissivo, a

solução se daria pela simples não-aplicação da hipótese, sem qualquer elemento

extraordinário, posto que, em tais casos, havendo consciência da ilicitude ou fraude,

simplesmente não restaria configurada a hipótese do erro de tipo permissivo, ipso facto,

caracterizando a ilicitude da conduta pura e simplesmente.

Anota-se que as proposições feitas no correr desses estudos, referem-se ao particular

que atua de boa-fé, pois, se esse atua conscientemente de que a sua atitude não é correta,

sabendo que pratica um crime, desejando-o, ele então atua com dolo direto e, assim, não

incorre nos pressupostos mencionados.

Pode ser que o agente tenha obtido uma autorização administrativa mediante suborno,

coação ou fraude, e aí, não resta duvida que deva ser punido, não pela nulidade ilegítima do

ato, mas pelo emprego dos meios inescrupulosos que utilizou para a obtenção do mesmo.

Aqui, o agente tem a clara intenção de poluir, age com dolo direto, busca burlar o sistema

para atingir os seus objetivos, ou seja, para poluir além do limite permissível. Nesses casos,

pelas próprias características, a hipótese de erro de tipo permissivo não poderia ser aplicada.

Se o particular oferece vantagem indevida88 a funcionário da Administração Pública,

com objetivo de que esse último conceda uma autorização que não deveria ser concedida, ou

que não o seria naqueles termos, estabelecendo, por exemplo, valores além do que deveriam

ser permitidos, ou, se, porventura, oferece promessa financeira para que o funcionário público

se omita quanto a determinados pontos negativos da autorização, em vantagem do próprio

agente, isso, por si só, já é fato típico, e é punido criminalmente de forma isolada.

Também assim em casos em que a autorização seja obtida mediante o

constrangimento ilegal89 do funcionário público, compelindo-o, física ou moralmente, com

violência ou grave ameaça, ou por qualquer outro meio, a praticar ato indevido ou, além disso,

88 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal. Parte especial 5. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 206 e ss. Também COSTA, A. M. Almeida. Anotações ao crime de corrupção ativa. In: Comentário conimbricense do Código Penal: parte especial. Dir. de Jorge de Figueiredo Dias. Vol. 3: artigos 208º a 386º. Coimbra: Coimbra Editora. 1999, p. 680 e ss.89 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Especial. 2. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 364 e ss. Também MONTEIRO, Cristina Líbano. Anotações aos crimes contra a autoridade pública. In: Comentário conimbricense do Código Penal: parte especial. Dir. de Jorge de Figueiredo Dias. Vol. 3: artigos 208º a 386º. Coimbra: Coimbra Editora. 1999, p. 336 e ss.

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através de fraude, no caso de, por exemplo, o particular vir a falsificar documentos para a

obtenção indevida da autorização pública.90

Todas as três hipóteses possuem o dolo do agente na conduta, e todas essas são

punidas pelo direito penal de forma autônoma, independente de o crime ser de poluição ou

não. Para tal, o direito atribui mecanismos de proteção da veracidade, legalidade e

legitimidade do ato administrativo.

Também a autorização que seja expedida com abuso de direito91, se desviando dos fins

públicos a que são obrigatórios o exercício da Administração Pública, concebendo-se através

do excesso de poder ou desvio de finalidade. A primeira sucede quando o agente ultrapassa os

limites do que pode ou do que deve fazer e, a segunda, como o próprio nome diz, desvia das

atribuições públicas a qual estão, obrigatoriamente, destinadas. E aqui, o crime será praticado

(também) pelo funcionário público – que age em afronta à lei – praticando crime juntamente

com o particular.

Mas para tais matérias, caberia um novo estudo, porquanto, não adentraremos na

matéria. Vale anotar que, segundo MIRANDA RODRIGUES92, o particular que segue o

procedimento mas, de alguma forma, busca obter a autorização de forma mais “rápida” do

que o normal, porém, sem a intenção de praticar qualquer dos meios citados, não deve ser

punido, pois, então, nos encontramos frente a um ato “legítimo” no que toca aos efeitos da

prática do crime de poluição.

90 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal Parte especial 4. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 340 e ss. Também MONIZ, Helena. Anotações ao crime de falsificação de documentos. In: In: Comentário conimbricense do Código Penal: parte especial. Dir. de Jorge de Figueiredo Dias. Vol. 2: artigos 202º a 307º. Coimbra: Coimbra Editora. 1999, p. 674 e ss.

91 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro..., cit., p. 112-117. Para mais sobre a matéria de abuso de direito, ver MATA BARRANCO, Norberto J. de la. Protección penal del..., cit., p. 173 e ss. 92 MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Anotações ao crime...,cit., p. 967.

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7 CONCLUSÕES

Em nossos dias, presente a devastação sofrida pelo nosso planeta, tornou-se

imprescindível a tutela do meio ambiente, sendo o direito penal, por sua importância e

efetividade, um dos principais instrumentos para se alcançar tal propósito.

Para tanto se faz necessário partir da premissa, real, de que a Humanidade, e as

sociedades humanas, têm um desafio de proteger o ambiente, sob pena de legar às gerações

futuras e, quiçá, ao seu próprio futuro imediato, danos irreversíveis que comprometam a

qualidade de vida conquistada através de milênios. Alguns importantes cientistas já

consideram, hoje, irreversíveis os danos referentes à camada de ozônio e ao degelo dos

continentes ártico e antártico, sendo essas algumas das evidências concretas da urgência de tal

proteção.

Daí este trabalho se debruçar sobre algumas questões afetas ao direito penal na

proteção do bem ambiente.

Entre as formas com que o direito penal do ambiente, através da normatização, pode

exercer tal tutela, os doutrinadores vêm elencando a tutela autônoma e a acessoriedade

absoluta, mas, a nosso ver e como demonstrado ao longo desse estudo, esses são dois modelos

que não atingem o alvo de proteção efetiva do ambiente.

O primeiro, entre outros motivos, porque a tipificação teria que trazer conceitos

amplos e indeterminados, para abarcar todo tipo de situação, o que, aliado a uma rígida

característica do direito penal frente aos constantes e urgentes progressos científicos, faria

com que as disposições legais fossem rapidamente ultrapassadas. Ou, ainda, a tutela poderia

vir, independente do direito administrativo, através da tipificação como crime de dano puro,

ou de perigo, mas em qualquer dessas hipóteses não se alcançaria a validade efetiva do que se

pretende resguardar, com o risco de se chegar a um direito penal simbólico.

A segunda forma, a acessoriedade absoluta, também erra o alvo, porque o bem

jurídico que se visa proteger deixa de ser o ambiente e passa a ser somente a criminalização

da violação das normas administrativas, como visto no corpo deste trabalho.

Assim, concluímos que a forma que mais possibilita, ainda que de forma mediata, a

tutela do ambiente, é, sem dúvida, o modelo de acessoriedade relativa. Neste, o direito penal

tem a obrigatoriedade de estipular de forma clara e precisa a conduta proibida. E, assim, em

associação com o direito administrativo, incumbe a este último a determinação apenas dos

valores-limites, através de normas de cunho administrativo – e não penal –, para serem

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empregados na situação concreta de atividade poluidora, e através de atos administrativos,

alcançando assim de forma mais próxima e real a proibição do inquinamento ambiental. Esse

é o modelo que pode dar verdadeira efetividade à proteção penal na manutenção do equilíbrio

ecológico, através de uma acessoriedade combinada de norma e ato, em nosso entendimento.

Todavia, o que acontece hoje no direito português e brasileiro?

Como vimos, o crime de poluição nas repúblicas portuguesa e brasileira utiliza-se do

instituto da acessoriedade administrativa quando da construção redacional de seus

dispositivos. O primeiro é redigido absolutamente conforme a acessoriedade relativa – que é o

modelo ideal segundo a nossa interpretação –, enquanto o segundo traz o tipo estipulado

conforme tutela autônoma, apenas tocando a acessoriedade no que diz respeito ao aumento de

pena.

Vale notar que o tipo brasileiro, a nosso ver, não assegura uma tutela real, pois a sua

redação traz conceitos indeterminados e muito amplos, concretizando-se ora em um crime de

perigo-concreto, ora em um de perigo de dano, dificultando, assim, a atuação do Estado na

aplicação da lei penal.

Já o tipo português estabelece um crime de dano, configurado como crime de

desobediência administrativa, mas, aqui, a desobediência é só a forma pela qual ele se

apresenta, consumando-se o crime somente com a existência do dano ambiental

cumulativamente com a não-observância das normas e prescrições administrativas. Tal

encontra maior objetividade na tutela, já que o fator relevante para o desvalor da ação deve

ser, sempre, o dano ambiental.

No caso português, o ato administrativo que se insere no tipo penal de poluição

atuará, não como causa de exclusão da ilicitude, mas, antes, como a própria exclusão da

tipicidade, uma vez que, primeiramente, não é todo tipo de dano que deve ser punível, mas só

aquele que ultrapassa o nível do permissível, só aquele que ultrapassa a medida do que é

socialmente tolerável.

Há, assim, também proteção do administrado.

Se a Administração Pública permite a um particular que esse pratique determina

conduta, de acordo com as estipulações anteriormente determinadas por aquela, então o

comportamento deixa de estar inserido dentro do que é proibido, adquirindo a característica

de ato permissivo, de conduta permitida, de comportamento socialmente valorável. É o Poder

Público – representante do povo – que o determina. E, se o faz, por óbvio que o

comportamento perde o seu desvalor de ação, tornando-se, assim, atípico e impunível.

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E mesmo quando um ato vem a ser declarado nulo, ainda assim o administrado que

agiu de boa-fé não é atingido pela invalidade do ato, o qual, apesar de ser retirado do mundo

desde a sua origem, como se nunca tivesse existido (ex tunc), preserva uma eficácia marginal

(ex nunc) para com o administrado inocente na constituição do vício.

Por seu turno, na solução de tais questões afetas ao ato nulo, em relação ao

administrado que age de boa-fé, deve-se adotar a teoria do erro de tipo permissivo, a qual,

assim como no caso da acessoriedade relativa, tanto é mais simples em sua concepção, como

traz uma maior proximidade entre o fato social e a solução jurídica.

Nossas conclusões têm como pedra angular o desejo de que as soluções jurídicas

adotadas sejam aquelas que mais se aproximem da realidade não-jurídica que as embasa.

Delegar a tutela ambiental apenas ao direito penal, de forma independente do direito

administrativo, assim como a posição contrária, representa buscar uma solução que simula e

afronta a realidade, na medida em que, neste caso, as questões estão afetas aos dois ramos do

direito e de forma indissociável. Tais construções, estanques em seus pressupostos,

corresponderiam a uma simulação no controle de uma realidade que nada tem de estanque.

Além disso, é de suma importância que a lei declare, de forma objetiva e direta, a sua

pretensão: proteger o ambiente, regulando e limitando os impactos inevitáveis de nossas

sociedades. Quanto mais esse propósito se tornar claro, mais fácil será a consecução de seus

objetivos, até mesmo pela compreensão do homem comum em relação à tutela almejada.

E, se as compreensões e os institutos hoje existentes não forem suficientes a tal

objetivo, ligado à preservação da espécie humana, e ao legado que deixaremos às gerações

futuras, o caso não será de limitar tal objetivo – impostergável –, mas, sim, de ampliarmos a

nossa compreensão e inovarmos em soluções jurídicas eficazes para tanto.

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