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Saúde, Fornecimento de remédios e escolhas públicas 1. Introdução. 2. A posição dos Tribunais Superiores. 3. Há acórdãos em contrário nos Estados. 4. A Doutrina nacional. 5. Crítica. 6. A Escassez e os custos médicos; 6.1 O trade-off envolvido, 6.2 Em síntese. 7. Premissas metodológicas: 7.1. A aplicação do direito, 7.2. O consequencialismo. 8. Para terminar Por Gustavo Amaral, Procurador do Estado do Rio de Janeiro 1. Introdução O tema Diretrizes constitucionais relativas à saúde, que integra o temário do XXXV Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, coincide com a segunda edição do livro Direito, Escassez & Escolha, cuja origem mais remota está na tese 1 apresentada no XXIII Congresso, ocorrido em 1997 em São Luís, Maranhão. Assim, me pareceu adequado compartilhar com os colegas o que começou com os colegas a tantos anos. Os limites de tamanho e forma dos trabalhos obrigam a que isto seja feito de forma muito resumida. Assim, procuro condensar aqui alguns pontos que constam no capítulo de atualização da mencionada obra. 2. A posição dos Tribunais Superiores Muito embora o tema do fornecimento de medicamentos esteja sendo objeto de audiências públicas no STF, com vistas a uma decisão em regime de repercussão geral, a partir do leading case, o RE 566.471, até agora há, nos Tribunais Superiores, firme orientação jurisprudencial segundo a qual o Direito à Vida é um direito superior, que não pode ser contrastado com questões menores como as finanças públicas e o orçamento. Examinando alguns julgados que nos pareceram mais significativos vemos que o Min. Celso de Mello, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 393.175-0 2 afirma: Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “capute art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas. 1 Eficácia das Normas Constitucionais Assecuratórias de Prestações Sociais Positivas, pp. 578-600 do livro de teses do XXIII Congresso Nacional de Procuradores de Estado. São Luís, 1997. 2 STF – 2.ª Turma. Agte. Estado do Rio Grande do Sul, Agdos. Luiz Marcelo Dias e Outros Brasília, 12.dez.2006 . No mesmo sentido: RE-AgR 271286 / RS, STF – 2.ª Turma, 12.set.2000, Agte. Município de Porto Alegre, Agdos. Eduardo von Mühlen e Outros.

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Saúde, Fornecimento de remédios e escolhas públicas

1. Introdução. 2. A posição dos Tribunais Superiores. 3. Há acórdãos em contrário nos Estados. 4. A Doutrina nacional. 5. Crítica. 6. A Escassez e os custos médicos; 6.1 O trade-off envolvido, 6.2 Em síntese. 7. Premissas metodológicas: 7.1. A aplicação do direito, 7.2. O consequencialismo. 8. Para terminar

Por Gustavo Amaral, Procurador do Estado do Rio de Janeiro

1. Introdução

O tema Diretrizes constitucionais relativas à saúde, que integra o temário do

XXXV Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, coincide com a segunda edição

do livro Direito, Escassez & Escolha, cuja origem mais remota está na tese1 apresentada

no XXIII Congresso, ocorrido em 1997 em São Luís, Maranhão.

Assim, me pareceu adequado compartilhar com os colegas o que começou com os

colegas a tantos anos. Os limites de tamanho e forma dos trabalhos obrigam a que isto seja

feito de forma muito resumida. Assim, procuro condensar aqui alguns pontos que constam

no capítulo de atualização da mencionada obra.

2. A posição dos Tribunais Superiores

Muito embora o tema do fornecimento de medicamentos esteja sendo objeto de

audiências públicas no STF, com vistas a uma decisão em regime de repercussão geral, a

partir do leading case, o RE 566.471, até agora há, nos Tribunais Superiores, firme

orientação jurisprudencial segundo a qual o Direito à Vida é um direito superior, que não

pode ser contrastado com questões menores como as finanças públicas e o orçamento.

Examinando alguns julgados que nos pareceram mais significativos vemos que o

Min. Celso de Mello, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 393.175-02 afirma: Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.

1 Eficácia das Normas Constitucionais Assecuratórias de Prestações Sociais Positivas, pp. 578-600 do livro de teses do XXIII Congresso Nacional de Procuradores de Estado. São Luís, 1997. 2 STF – 2.ª Turma. Agte. Estado do Rio Grande do Sul, Agdos. Luiz Marcelo Dias e Outros Brasília, 12.dez.2006 . No mesmo sentido: RE-AgR 271286 / RS, STF – 2.ª Turma, 12.set.2000, Agte. Município de Porto Alegre, Agdos. Eduardo von Mühlen e Outros.

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De modo similar, o Min. Eros Grau, no Agravo Regimental na Reclamação n.º

30343, afirmou que o fato de o credor público, via precatório, estar acometido de moléstia

grave tornava a situação excepcional, não valendo para ela a regra dos precatórios. Nas

palavras de Sua Excelência: 2. O seqüestro foi deferido em razão da doença grave e incurável da agravante, não de quebra da ordem cronológica de pagamentos. A decisão impugnada determina o seqüestro de bens do Estado da Paraíba, para quitação de precatório resultante de ação de cobrança movida pela agravante em desfavor do Estado-membro, tendo por fundamento as condições críticas de saúde da agravante e a “notícia de que o TRT –22ª Região já deferiu pleito nas mesmas circunstâncias” [fl. 100]. 3. Em oportunidade anterior afirmei serem três, e apenas três, as situações nas quais a EC 30/00 admite o seqüestro: [....] 4. O Supremo entende, de modo uniforme, que cabe o seqüestro unicamente se houver preterição ao direito de preferência, o que não se verificou no caso destes autos. [....]. 5. Daí porque, até para ser coerente com o que tenho reiteradamente afirmado neste Plenário, eu haveria de votar no sentido de dar provimento ao agravo. Ocorre, no entanto, que a situação de fato de que nestes autos se cuida consubstancia uma exceção. Com efeito, estamos diante de uma situação singular, exceção, e, como observa CARL SCHMITT, as normas só valem para as situações normais. A normalidade da situação que pressupõem é um elemento básico do seu “valer”. [....] 6. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção.

Cabe notar que o fato “ser credor do Poder Público, via precatório” é comum,

talvez extremamente comum, não só porque são diversas as lides envolvendo a

Administração Pública, nos três níveis –o que gera ano a ano um número considerável de

precatórios–, mas também porque há um grande acúmulo de precatórios de anos anteriores

não pagos. Ante o universo de pessoas físicas envolvidas, parece razoável assumir, mesmo

que sem comprovação, que há um número razoável de pessoas acometidas de moléstias

graves e que são credores de algum ente da administração pública federal, estadual,

distrital ou municipal.

Muito embora uma leitura pouco atenta do voto possa sugerir que se trata de uma

situação excepcional, não qualificada pela regra dos precatórios no entendimento do STF-

Pleno, este não nos parece ser o sentido.

3 STF-Pleno. Agte: Estado da Paraíba. Agdo. Pres. do Trib. de Justiça da Paraíba. Decisão unânime. Brasília, 21.set.2006.

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Como bem destaca MacCormick4, às vezes é possível justificar decisões jurídicas

por meio de argumentos dedutivos cujas premissas sejam normas válidas de direito e

proposições de fatos comprovados. Há situações, contudo, em que esgotamos as normas

sem que esgotemos a necessidade de decisões jurídicas, seja porque as normas não são

claras, seja porque a correta classificação dos fatos pertinentes é questionável. Neste caso

é preciso uma justificação de segunda ordem, qual seja, a criar uma deliberação

“‘universal’ ou ‘genérica’, muito embora a própria disputa entre as partes e seus fatos

sejam irredutivelmente individuais e particulares, como deve(m) ser a ordem ou ordens

emitida(s) para essas partes com o intuito de encerrar a disputa”.

Certamente o caso acima não é daqueles cuja solução seja obtida pela subsunção a

uma norma expressa e prévia, em silogismo simples. Parece mais acertado entender que

no feito acima referido o STF-Pleno, ou ao menos o voto do Min. Eros Grau, afirmou

existir5 um comando no ordenamento jurídico pelo qual em situações em que o credor de

precatório esteja acometido de moléstia grave seu pagamento não precisará aguardar a

ordem dos precatórios e o aplicou ao caso em concreto. É claro que o conceito de

“acometido por moléstia grave” é aberto e que talvez seja possível acrescentar uma

restrição no enunciado, qual seja, que a pronta liberação do pagamento seja necessária e

útil no combate à moléstia. Todavia, o ponto relevante para este trabalho é a

superioridade, não prima facie, mas absoluta, do “direito à vida6”.

Neste mesmo sentido vem decidindo o STJ, tanto pela primeira quanto pela

segunda Turma. Confira-se, exemplificativamente: Processual civil. Meios de coerção ao devedor (CPC, arts. 273, §3º e 461, §5º). Fornecimento de medicamentos pelo Estado. Bloqueio de verbas públicas. Conflito entre a urgência na aquisição do medicamento e o sistema de pagamento das condenações judiciais pela fazenda. Prevalência da essencialidade do direito à saúde sobre os interesses financeiros do Estado. Recurso especial a que se dá provimento7. PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. CUSTEIO DE MEDICAMENTO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE. ART. 461, § 5º, DO CPC. 1. A Constituição Federal excepcionou da exigência do precatório os créditos de natureza alimentícia, entre os quais se incluem aqueles relacionados à garantia da manutenção da vida, como os decorrentes do fornecimento de medicamentos pelo Estado.

4 MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo, 2006., p. 127. 5 Ou, mais precisamente, criou, sem que isto possa ser tomado como algo pejorativo. Como se lê em Ávila, a construção da norma jurídica compreende tanto a elaboração legislativa quanto a criação para o caso concreto pelo aplicador (2003, pp. 23-24). 6 Cabe destacar que as aspas aqui e alhures em “direito à vida” não pretende denotar nenhuma ironia ou menosprezo, mas apenas para indicar que a expressão não é utilizada como um conceito, mas como uma alusão à pletora de sentidos e eficácias que lhe são atribuídas. 7 STJ, 1.ª Turma. Recurso Especial n.º 933.563 – RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, unânime. Brasília, 05.jun.2007

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2. É lícito ao magistrado determinar o bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde. Nessas situações, a norma contida no art. 461, § 5º, do Código de Processo Civil deve ser interpretada de acordo com esses princípios e normas constitucionais, sendo permitida, inclusive, a mitigação da impenhorabilidade dos bens públicos. 3. Recurso especial provido8.

O STJ se alinha ao STF não apenas na eficácia desse direito, mas também na

(in)delimitação de seu conteúdo. Como restou afirmado no Recurso Especial n.º 9044439: 3. Os arts. 196 e 227 da CF/88 inibem a omissão do ente público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) em garantir o efetivo tratamento médico a pessoa necessitada, inclusive com o fornecimento, se necessário, de medicamentos de forma gratuita para o tratamento, cuja medida, no caso dos autos, impõe-se de modo imediato, em face da urgência e conseqüências que possam acarretar a não-realização.

Os acórdãos acima, bem como os demais de ambas as Cortes, apontam para uma

compreensão do “direito à vida” como amplo, não passível de limitação quanto ao

conteúdo, como na estipulação de tratamentos-padrão10, seja quanto à eficácia, como à

submissão ao regime de precatórios.

3. Há acórdãos em contrário nos Estados

Nada obstante, há tribunais, como o de Minas Gerais, que vêm entendendo a

questão de modo diverso. A 1.ª Turma Cível daquele Tribunal11, no processo

1.072.05.232550-4/001(1), Rel. Des. Armando Freire, afirmou no final da ementa que:

não se pode reconhecer, em sede de mandado de segurança, direito líquido e certo oponível contra o ente municipal, a fim de determiná-lo a custear, por prazo indeterminado, aplicações da vacina anti-tumoral denominada 'HybriCell', de alto custo e ainda em fase experimental, que é supostamente destinada à estabilização nos casos de melanoma, mormente em se considerando as reais limitações orçamentárias municipais e a sistemática de atendimento aos cidadãos definida em programa nacional de saúde, estabelecido segundo possibilidades, prioridades e essencialidades em contexto comunitário.

8 STJ, 2.ª Turma. Recurso Especial n.º 893792 / RS, rel. Min. João Otávio de Noronha, unânime. Brasília, 17.abr.2007. 9 STJ, 1.ª Turma. Rel. Min. José Delgado, unânime. Brasília, 13.fev.2007. 10 Neste sentido vale também transcrever trecho do voto do Min. Joaquim Barbosa no AI 507072/MG: 6. Ademais, consolidou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que o Estado não pode furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida, de medicamento que não esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas, é dever solidário da União, do estado e do município fornecê-lo. Nesse sentido, AI 396.973 (rel. min. Celso de Mello, DJ 30.04.2003), RE 297.276 (rel. min. Cezar Peluso, DJ 17.11.2004) e AI 468.961 (rel. min. Celso de Mello, DJ 05.05.2004). O acórdão não divergiu desse entendimento. 11 Julgado em 26.set.2006. Não se trata de decisão isolada. Em consulta ao sítio do TJMG é possível encontrar vários precedentes em sentidos similares, muito embora alguns tenham por fundamento aparente a separação de poderes, no sentido de que “A competência para decidir sobre a alocação desses recursos cabe exclusivamente ao Poder Legislativo, sem possibilidade de ingerência do Judiciário, por respeito aos princípios constitucionais da democracia e da separação dos poderes” (proc. n.º 1.0000.06.443869-0/000(1), 2.º Grupo de Câmaras Cíveis, julgado em 02.mai.2007, maioria).

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Indo mais a fundo na direção oposta àquela que consta nos precedentes dos

Tribunais Superiores, a 22.ª Câmara Cível do TJRS, em acórdãos relatados pela

Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, vem afirmando que A prestação do serviço de saúde está subordinada à disponibilidade dos serviços dentro do Sistema Único de Saúde, segundo o fluxo pré-estabelecido pelo órgão gestor. A prestação imediata do serviço por ordem judicial sem consideração da ordenação estabelecida administrativamente importa na quebra da garantia constitucional a todos do acesso universal e igualitário aos serviços12.

4. A Doutrina nacional

Parte da doutrina nacional13 pretende ver os chamados direitos sociais em geral

como direito subjetivo, cuja natureza aberta da formulação na Constituição pode ser

completada ou colmatada pelo Judiciário, independentemente de mediação legislativa. Isto

decorreria da conjugação do § 1.º do artigo 5.º da Constituição com o inciso XXXV do

mesmo artigo.14

Esta visão leva alguns a defender que na falta de recursos para atender a todos, “a

resposta coerente na base da principiologia da Carta de 1988 seria: tratar todos! E se os

recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento,

serviço de dívida) onde sua aplicação não está intimamente ligada aos direitos mais

essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde” (KRELL15,).

Como demonstrado adiante, tais posições nos parecem insustentáveis.

Bem mais acertada nos parece a posição de Sarlet16 e Torres17.

Sarlet, depois de afirmar que “negar que apenas se pode buscar algo onde

este algo existe e desconsiderar que o Direito não tem o condão de –qual toque de Midas–

gerar recursos materiais para sua realização fática, significa, de certa forma, fechar os

olhos para os limites do real”, reconhece que mesmo em caso de suficiente determinação

do conteúdo da prestação em nível constitucional, disto não resultaria em afastamento

absoluto da barreira fática da reserva do possível18. A seu ver, sempre que estiver em jogo

o valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou que “da análise dos bens 12 Apelação Cível 70020722500, julg. em 27.set.2007, unânime. O mesmo parágrafo consta na ementa da Apelação Cível 70028998623 em 16.abr.2009. O REsp. 1.032.222, interposto contra o primeiro acórdão, teve o seguimento negado monocraticamente pelo Min. Luiz Fux ao argumento de que a questão fora decidia com base em fundamentos constitucionais. 13 Neste sentido, Mello (1981, pp. 144-5); Grau (1997, pp. 311-315); Assis (1990), Fioranelli Jr. (1994) e Ruschel (1993). 14 CF/88, art. 5.º [...]. XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. [...] § 1.º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 15 KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 53. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre, 2007. 17 TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 18 Sarlet, cit., p. 372

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constitucionais colidentes (fundamentais, ou não) resultar a prevalência do direito social

prestacional”, será possível sustentar que, na esfera de um padrão mínimo existencial,

deve ser reconhecido um direito subjetivo a prestações. Onde o mínimo é ultrapassado,

haveria apenas um direito subjetivo prima facie. Reconhece o Autor, entretanto, que “se

impõe uma relativização da noção de direito subjetivo”. Afirma ainda Sarlet que o

mínimo existencial “não poderá ser reduzido ao nível de um mero mínimo vital, ou, em

outras palavras, a uma estrita garantia da sobrevivência física”, mas não delimita seus

contornos para além desse “mínimo do mínimo”19.

Sarlet faz também importante conexão entre a reserva do possível e o princípio da

subsidiariedade para extrair uma primazia da autorresponsabilidade, que implica para o

indivíduo o dever de zelar pelo seu próprio sustento e o de sua família20. Com isto o autor

deixa aberta a possibilidade de se ponderar, em caso de demanda de prestações positivas,

não apenas a essencialidade da prestação, mas capacidade de obtê-la diretamente ou

daqueles que compõem sua família21. Aberta esta ponderação, fica evidente a relativização

do conceito de “direito subjetivo” empregado frente ao paradigma clássico da Teoria Geral

do Direito Civil.

Torres centra seu exame sobre o mínimo existencial, que constitui o conteúdo

essencial dos direitos fundamentais –da liberdade e sociais– e, assim, é regra e não valor

ou princípio jurídico22.

Embora seja regra e direito absoluto, o “mínimo do mínimo existencial” pode sofrer

limitações fáticas que podem comprometer o seu exercício em casos extremos, afirma

Torres23.

Destaca o autor que nem todo conteúdo essencial dos direitos fundamentais se

incorpora ao mínimo existencial, pois é necessário que esteja presente a nota específica do

direito à existência digna.

Torres distingue entre a reserva do orçamento e a reserva do possível. A reserva

do orçamento consistiria na necessidade de serem respeitadas, pelo Judiciário, as regras do

direito orçamentário. “Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, a abertura de

19 Idem, pp. 374-376. 20 Idem, p. 383. 21 Cf. CF, art.s 226, 227 e 230, notadamente o caput de cada um desses artigos. 22 TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 83-85 23 Afirma o autor: “Em casos de extrema injustiça ou insegurança decorrentes de subversão da ordem pública, de guerra e de calamidades públicas ocorrem ofensas à vida e à dignidade humana que não podem ser evitadas pelo Estado e nem geram a sua responsabilidade civil, pois não é ele um segurador universal” (TORRES, cit, p. 115). Torres destaca, no entanto, que no Brasil a Constituição estabeleceu hipótese de responsabilidade objetiva do Estado, da qual o STF já extraiu dever de prover segurança.

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créditos adicionais cabe aos poderes políticos (Administração e Legislativo), e não ao

Judiciário, que apenas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial e determina aos

demais poderes a prática dos atos orçamentários cabíveis”24. Já a reserva do possível é

expressão cunhada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha ao apreciar questão relativa

a vagas em faculdade de medicina para estudantes habilitados, mas não classificados.

Afirma Torres que se trata de “um conceito heurístico aplicável aos direitos sociais, que

na Alemanha não se consideram direitos fundamentais”, equivalendo a reserva

democrática, no sentido de que sua legitimidade decorre da concessão discricionária em

lei. A reserva do possível não é aplicável ao mínimo existencial, que se vincula à reserva

orçamentária (p. 105).

Prossegue o autor afirmando que a “reserva do possível” perdeu seu sentido

originário ao chegar ao Brasil, tendo sido criada uma “reserva do possível fática” em

contraste com a “reserva do orçamento”, que seria jurídica, levando ao extravasamento do

campo de aplicação para o mínimo existencial. Assevera Torres: No Brasil, portanto [a reserva do possível], passou a ser reserva fática, ou seja,

possibilidade de adjudicação de direitos prestacionais se houver disponibilidade financeira, que pode compreender a existência de dinheiro sonante na caixa do Tesouro, ainda que destinado a outras dotações orçamentárias! Como o dinheiro público é inesgotável, pois o Estado sempre pode extrair mais recursos da sociedade, segue-se que há permanentemente a possibilidade fática de garantia de direitos, inclusive na via do seqüestro da renda pública! Em outras palavras, faticamente é impossível a tal reserva do possível fática! (2009, p. 110)

5. Crítica

Como já anunciado acima, desconsiderar a escassez, seja pela combinação do § 1.º

com o inciso XXXV, ambos do artigo 5.º da Constituição, seja por qualquer argumento,

nos parece insustentável.

MacCormick25 e Alexy26 bem apontam que seria inusitado e mesmo uma

contradição em termos imaginar que o legislador aprove uma lei tendo a consciência de ser

ela injusta e imoral27.

24 Idem, p. 96 25 MACCORMICK, Neil. Why Law Makes no Claims. In: PAVLAKOS, George (Ed). Law, Rights and Discourse. The Legal Philosophy of Robert Alexy. Oxford: Hart, 2007, p. 59-67. (pp. 63-67) 26 ALEXY, Robert. Thirteen Replies. In: PAVLAKOS, George (Ed). Law, Rights and Discourse. The Legal Philosophy of Robert Alexy. Oxford: Hart, 2007, p. 333-366 (pp. 333-335). 27 Isto não significa, em absoluto, uma presunção de moralidade da lei, mas sim orientação para que interpretação e aplicação sejam feitas conforme a moralidade. MacCormick afirma que conquanto a definição do que seja justo esteja aberta a grandes controvérsias, dividindo pessoas em campos políticos opostos, proclamar publicamente a manutenção ou maximização da injustiça como a essência da lei é algo insustentável (p. 66). Alexy destaca que a pretensão de correção (“claim to correctness”), embora tenha uma vertente subjetiva, tem também um aspecto objetivo, vinculado ao papel do agente no sistema jurídico, vinculando também o julgador.

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Esta premissa de interpretação é aplicável não apenas à legislação, mas também à

Constituição. O ponto em questão não é a intenção subjetiva de um imaginário e irreal

“legislador”28, mas a condicionante de participação dos atores no cenário jurídico, como

bem destaca Alexy no trecho citado. Tem-se, portanto, um elemento da interpretação

externo ao texto, que deve ser observado.

A noção de justiça e moralidade, qualquer que seja, deve levar em conta não apenas

um catálogo de “boas intenções”, aspirações legítimas ou utopias distantes, mas sim os

resultados concretos que se pode antever para o sentido. Ademais, as soluções justas para

o caso devem ter por substrato a enunciação de normas com um mínimo de generalidade e

um nível ao menos adequado de não contradição.

Pretender que haja direitos cuja efetivação concreta dependa de recursos finitos a

despeito da disponibilidade dos recursos, não nos parece atender a tais requisitos.

Dizer “que todos sejam atendidos” é discurso legítimo no campo dos atores sociais.

Todavia, quando tais pessoas estão investidas na qualidade de atores jurídicos, mormente

estatais, e se está presente um quadro de falta de elementos objetivos para o atendimento29,

nos parece mister apontar a origem dos meios e os critérios de escolha.

O resultado desta visão tem sido tornar o Judiciário o alocador de recursos públicos

no campo de remédios30, tornar a compra emergencial e sem licitação rotina e, ao final,

não haver um critério de medição dos resultados. Será que mais vidas foram salvas com o

provimento judicial sendo critério majoritário de alocação de recursos na saúde? Ou será

que o “custo” medido em vidas dos “financiadores ocultos” das decisões alocativas

tomadas nas lides, aqueles que deixaram de receber o órgão, deixaram de ter acesso à

política pública que seria desenvolvida com a verba realocada é mais elevado que o

benefício?

Dizer que o Estado tem verbas nem sempre bem empregadas, muitas vezes

consumidas com fraudes é constatação feita a partir do noticiário dos jornais que, d.m.v.,

tem o mesmo valor jurídico do que dizer, também a partir de notícias de jornal, que há

28 MacCormick, em outro trabalho, destaca as dificuldades que o uso da figura de um “legislador” dotado de vontade próxima a de um ser individual traz. Afirma o autor: “Kant prescreve nossa maneira de agir como se fôssemos legisladores universais ou a confirmar uma norma aplicável a todos. Mas não somos e há grandes dificuldades em conceituar a atuação desse legislador ideal” (2008, pp. 64-65, tradução livre. 29 E. g., falta dinheiro, faltam funcionários, faltam remédios, faltam órgãos para transplante, faltam instalações adequadas, faltam pessoas com a qualificação necessária que queiram trabalhar pela remuneração oferecida pelo ente público, faltam particulares que queiram prestar os serviços pela tabela de valores paga pelo Ente Público. 30 Segundo notícia veiculada na edição de 16.ago.2007 do jornal Valor Econômico, 50% do orçamento da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul é consumido na aquisição de remédios determinada por decisões judiciais.

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máfias por trás da “indústria de liminares de medicamento”: nenhum. Isto pode ter

emprego em discursos panfletários, em discurso de justificação de decisões cujo

fundamento é outro, talvez não explicitado, numa linha de realismo jurídico pela qual o

magistrado decide por sua convicção e cria um pálio de justificação. Tal como não se

acaba com inflação por decreto, não é por liminar ou sentença que se consegue retirar do

“desvão” a verba mal empregada ou desviada e se prestigia os fins públicos. Nelson

Rodrigues disse certa vez que “o subdesenvolvimento não se improvisa”. O processo

civilizatório e a superação do patrimonialismo também não.

Tem-se no Brasil um conjunto bem desenvolvido de medidas de defesa da vida

quando a ameaça pode ser combatida com medicamentos. Mas infelizmente, talvez porque

o fim é inexorável, há diversas outras ameaças à vida que não comportam defesa

farmacológica, mas sim por políticas públicas. Nestes campos a implementação, jurídica e

judicial, não se tem observado. Violência urbana, atendimento em hospitais, caos aéreo.

Nestes pontos a intervenção do Direito e do Judiciário tem se mostrado tímida e de pouco

efeito concreto.

No campo farmacológico, há um ponto que merece atenção em especial. Existe

uma gama de remédios novos, cujo desenvolvimento exigiu elevados investimentos em

pesquisa, que aparentam elevar o paradigma de tratamento a padrões muito mais

avançados do que até então, mas cujo custo é muito elevado. A revista Época, em sua

edição de 02 de maio de 2005 trouxe uma relação exemplificativa, da qual extraímos o

Erbitux, cujo custo mensal para o paciente seria de 17 mil dólares.

Mesmo a quebra de patentes, vista por alguns como panacéia, envolve questões

mais complexas e esconde outro conflito alocativo. Marques31 afirma que em 2003 o total

investido em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, em termos mundiais, alcançou

36 bilhões de dólares (p. 73). Essas pesquisas foram voltadas para o desenvolvimento de

novos medicamentos para quem pode pagar. Afirma Marques, no mesmo trecho, que

segundo o Fórum Global da Saúde, somente 10% dos vultuosos recursos financeiros,

privados e de governos, destinados à pesquisa em saúde como um todo, são dedicados às

condições que respondem por 90% da carga global da doença e que apenas 0,2% são

destinados a condições que correspondem a 18% no quadro da mortalidade mundial por

todas as enfermidades.

31 MARQUES, Marília Bernardes. Saúde Pública, Ética e Mercado no Entreato de dois Séculos. São Paulo, 2005.

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Parcela significativa desse montante vem de recursos privados, de investimentos,

que buscam retorno nas vendas futuras suficiente não apenas para pagar os custos de

produção, mas também a pesquisa bem sucedida, as pesquisas mal sucedidas, tudo isto em

taxas de retorno compatíveis com o tempo e o risco envolvidos32.

A eventual escolha pública pelo fornecimento via quebra de patentes não é um

“almoço grátis”, não apenas porque mascara a ausência de escolhas orçamentárias na

pesquisa de tratamentos para as chamadas doenças neglicenciadas33, mas também traz

risco para a continuidade do ciclo de desenvolvimento tecnológico, expressão de aparência

tecnocrática que significa, neste campo, o não-investimento em novas pesquisas, a não-

descoberta de novos medicamentos e terapias e o não-tratamento de pessoas que se poderia

supor titulares do mesmo direito daquelas que levaram à quebra inicial do ciclo. Há, pois,

um conflito entre pretensões de mesma natureza entre gerações, entre aqueles da geração

presente que pode usufruir de um padrão por conta do legado das gerações anteriores, e

aqueles das gerações presente e futuras, que precisam ter garantido tanto o progresso

quanto mesmo o não-retrocesso, pois o patamar atingido ainda não é suficiente para as

suas necessidades.

Haverá um direito-ao-tratamento-a-qualquer-custo? Será que números precedidos

pelo cifrão ($) são cobertos por anátema no exame do “direito à vida”? Eficiência ––no

sentido de considerar custos e de decisões alocativas que permitam fazer mais por menos–

– é estrangeirismo no idioma dos direitos fundamentais?

6. A Escassez e os custos médicos

Dizer que um bem é escasso significa que não há o suficiente para satisfazer a

todos. A escassez pode ser, em maior ou menor grau, natural, quase-natural, ou artificial.

A escassez natural severa aparece quando não há nada que alguém possa fazer para

aumentar a oferta. A escassez natural suave ocorre quando não há nada que se possa fazer

para aumentar a oferta a ponto de atender a todos. As reservas de petróleo são um

exemplo, a disponibilização de órgãos de cadáveres para transplante é outra. A escassez

quase-natural ocorre quando a oferta pode ser aumentada, talvez a ponto da satisfação,

32 A despeito de haver quem possa aqui ver a comparação desproporcional entre o valor supremo “vida humana” e interesses meramente gananciosos, pensamos que o dinheiro não tem caráter. Quem o tem são as pessoas. O vil metal pode estar a serviço de fundos soberanos de perversas ditaduras comandadas em regime personalista, pode estar a serviço de magnatas, pode estar também a serviço de fundos de pensão, para garantir benefícios previdenciários de pessoas ligadas ao fundo, pode estar a serviço do poupador médio, que aplica em um fundo de investimentos que adquire cotas de outro fundo e este investe na pesquisa. Pode estar a serviço de todos ao mesmo tempo. Ou pode ainda estar a serviço de fins benemerentes, pois fruto de doações, de filantropia e de financiamento público a fundo perdido. 33 Cf. Marques (2005, pp. 69-79).

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apenas por condutas não coativas dos cidadãos. A oferta de crianças para adoção e de

esperma para inseminação artificial são exemplos. A escassez artificial surge nas hipóteses

em que o governo pode, se assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a ponto da

satisfação. A dispensa do serviço militar e a oferta de vagas em jardim de infância são

exemplos34.

“A questão da escassez se põe de maneira especial no acesso à saúde. Algumas

pessoas podem pensar que quando a saúde e a vida estão em jogo, qualquer referência a

custo é repugnante, ou até imoral. Mas o aumento do custo com tratamento tornou essa

posição insustentável”35. Além da questão financeira, há recursos não financeiros, como

órgãos, pessoal especializado e equipamentos, que são escassos em comparação com as

necessidades. Como bem destaca Kilner: Há hoje um mito, que países prósperos como os Estados Unidos não precisam se

preocupar com o problema da seleção de pacientes, já que há recursos suficientes para todos. Há até quem acredite que essa suficiência se estende mundo afora. Esse mito é menos que meia verdade. A verdade nele contida é que há recursos financeiros para eliminar muitas das escassezes de hoje. Serão esses recursos tornados disponíveis para satisfazer as necessidades médicas de todos? Infelizmente, isto não é provável, mesmo nos Estados Unidos. Outros recursos não financeiros, como órgãos para transplante, são escassos em relação às necessidades. Novas escassezes, ademais, são inerentes ao progresso da tecnologia. Em outras palavras, critérios de seleção de pacientes são desesperadoramente necessários hoje em todos os lugares e continuarão a sê-lo no futuro.36 (1990, p. 3)

Prossegue o mesmo autor, demonstrando que o desenvolvimento de drogas que

combatem a rejeição de órgãos vem fazendo dos transplantes uma opção terapêutica viável

para mais pacientes. Em face da melhora nos índices de êxito, mais médicos indicam o

transplante, exaurindo os recursos físicos e humanos existentes para tanto. O mesmo

ocorre, segundo Kilner (pp. 8-9), com as UTI’s, cujo desenvolvimento leva a uma

expansão das indicações médicas de internação além dos níveis recomendáveis por uma

política de contenção de custos.

Há também a ética médica, que proíbe tratamentos que tendam a resultados

perigosos, mas requer dos médicos que prescrevam qualquer ação, não importa o custo, da

qual se espere resultar em ajuda ao paciente37.

Os gastos médicos dos Estados Unidos, em valores atualizados para 1982,

cresceram de US $ 503 per capita em 1950 para US $ 776 em 1965 (último ano antes da

34 ELSTER, Jon. Local Justice. New York: Russell Sage Foundation, 1992, pp. 21-22. 35 AARON, Henry J. & SCHWARTZ, William B. The Painful Prescription: rationing hospital care. Washington: The Brookings Institution, 1984, p. 81 trad. livre. 36 KILNER, John F. Who Lives? Who Dies?: Ethical Criteria in Patient Selection. New Haven, 1990. 37 Cf. Aaron & Scwartz, cit., pp. 7, 10 e 80.

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implantação dos sistemas medicare e medicaid) e para US $ 1,365 em 1982, ou o

equivalente a 10,5% do PIB dos Estados Unidos. Conforme projeções atuariais, o custo do

seguro hospitalar sob o medicare, 2,97% do benefício social básico em 1982, mais que

dobrará em 2005, para 6,29%, e quase quadruplicará em 2035, para mais de 11%38. Em

levantamento feito quatro anos após, os gastos dos Estados Unidos com saúde já haviam

chegado a 11% do PIB, ou mais que 450 bilhões de dólares a cada ano, com aumento dos

preços médicos bem superior aos índices de inflação. Os gastos do programa para doentes

renais crônicos aumentaram de US 229 milhões em 1972, para US $ 2 bilhões em 1983, ao

passo que o número de pessoas atendidas aumentou de onze mil para setenta e três mil no

mesmo período, num acréscimo do custo por paciente de 31,60%.

Observações semelhantes também são encontradas em artigo de Jost39 que faz

interessante análise comparativa entre decisões de tribunais da Alemanha, dos Estados

Unidos e da Grã-Bretanha sobre o racionamento de despesas com saúde. Jost destaca que

o relacionamento por meio do qual cuidados médicos são fornecidos têm três importantes

dimensões. Primeiramente, trata-se de um relacionamento profissional, o que demanda

uma qualificação do profissional de saúde, para que exerça a autoridade profissional e,

diferentemente do passado, demanda também a informação ao paciente sobre as

características e consequências do tratamento, além de uma relação de confiança. Em

segundo lugar, esse relacionamento é também econômico, onde o fornecedor de cuidados

de saúde40 comercializa mercadorias e serviços, o paciente é o consumidor e o paciente, o

segurador do paciente, seu empregador ou o governo é o comprador. Os cuidados médicos

são produtos oferecidos em um mercado que responde às leis da economia. Por último,

essas relações são também jurídicas (pp. 640-642).

France (cit., p. 29), comentando a decisão 992/1988 da Corte Constitucional da

Itália, destaca ainda o chamado “efeito Buchanan”41, pelo qual um sistema público de

saúde que forneça assistência gratuita ou a preços sociais financiados pelo orçamento vai

enfrentar situação crônica de excesso de demanda, já que o cidadão exprime uma demanda

potenciamente ilimitada, mas na posição de eleitor e contribuinte reluta em aceitar as

implicações fiscais do próprio comportamento. 38 MYERS, Robert J. “Financial Status of the Social Security Program” Social Security Bulletin, 46: 13, março 1983, apud AARON & SCHWARTZ, op. cit., p. 113. 39 JOST, Timothy Stoltzfus. “Health Care Rationing in the Courts: a Comparative Study”, Hastings International and Comparative Law Review, 21: 639-714, 1998. 40 Usamos “cuidados de saúde” para abranger não só os cuidados médicos, mas também cuidados não compreendidos na medicina, como de enfermagem, farmacologia, ortodontia, etc. 41 Efeito apontado originalmente em BUCHANAN, J. The inconsistencies of the National Health Service. London: Institute of Economic Affairs, 1985. Apud France (1989, p. 29).

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6.1 O trade-off envolvido

A idéia de escassez traz consigo a noção de trade-off. Sem tradução exata para o

português, podemos dizer que a alocação de recursos escassos envolve, simultaneamente, a

escolha do que atender e do que não atender. Preferir empregar um dado recurso para um

dado fim significa não apenas compromisso com esse fim, mas também decidir não

avançar, com o recurso que está sendo consumido, em todas as demais direções possíveis.

Decidir atender dada pessoa com um órgão para transplante é também decidir não atender

todos demais que poderiam ser beneficiados com aquele órgão específico. Uma UTI

neonatal consome recursos –dinheiro, espaço, pessoal– que não estarão disponíveis para

atender as necessidades que não sejam de recém-nascidos.

France (cit., p. 33) destaca que judicialização do acesso à saúde costuma por uma

ênfase exagerada na chamada engeneering medicine, que pode levar a importantes

considerações no plano da equidade ao absorver quantias vultosas de recursos para

beneficiar grupos extremamente restritos. Destaca também que numa realidade de

orçamentos restritos, o uso do Judiciário como alocador de recursos cria, na prática, o

critério prior in tempore. Afirma o autor: “In effetti, si assiste all’applicazione di una

sorta di sistema di lotteria, che non tiene alcun conto né del relativo bisogno medico dei

singoli pazienti né di altri criteri comunque pertinenti” (p. 45).

Não se trata de algo “mau”, mas sim de uma característica inexorável.

A noção de trade-off vem bem a calhar para situações como a do Estado do Rio

Grande do Sul. Segundo notícia veiculada pelo jornal Valor Econômico42, 50% de todo o

orçamento destinado à saúde no Estado tem sido comprometido com a compra de

medicamentos por ordem judicial. A grande maioria desses recursos é empregada para a

compra de novos medicamentos para combate ao câncer.

Pode-se assim dizer que a realidade retratada ao menos na notícia é que no Rio

Grande do Sul tem se decidido empregar recursos na aquisição de remédios, em grande

parte novas drogas para tratamentos oncológicos, e, reflexamente, se tem decidido privar

todas as demais prioridades do Estado, no campo médico, dos recursos dispendidos com a

alocação determinada judicialmente.

42 Edição de 16.ago.07, caderno Legislação & Tributos. Acesso a partir do endereço <http://www.valoronline.com.br>. Acesso em 17.ago.07.

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6.2 Em síntese

Do exposto acima parece ser possível extrair que, no campo da saúde43, a escassez,

em maior ou menor grau, não é um acidente ou um defeito, mas uma característica

implacável. No passado isto nos levava a divergir de Sarlet (2007, p. 305) para entender

que ante o caráter expansionista do chamado “direito à vida”44, a escassez faz parte da

definição, da delimitação em concreto do próprio direito, ou, como afirmado antes, da

densificação e decisão quanto ao atendimento da pretensão (cf. cap. 4), pelo que a chamada

“reserva do possível”45 seria elemento integrante.

Agora –e aqui reside o ponto central da evolução entre o que exposto na versão

originária e na atual– nos parece que é preciso separar a interpretação da aplicação do

Direito. A questão da escassez tem papel mais relevante na aplicação do direito do que na

especificação de seu conteúdo sem ser em vista de um caso concreto.

Voltaremos adiante a este ponto, mas, desde já, vale transcrever a lição de

Zagrebelsky: Según la concepción positivista tradicional, en la aplicación del derecho la regla jurídica se obtiene teniendo en cuenta exclusivamente las exigencias del derecho. Exactamente eso significaban la interpretación y los criterios (o «cánones») para la misma elaborados por el positivismo. Como, además, una vez determinada la regla, su aplicación concreta se reducía a un mecanismo lógico sin discrecionalidad –y en caso de que hubiese discrecionalidad se afirmaba la ausencia de derecho– se comprende que los problemas de la aplicación del derecho viniesen íntegramente absorbidos en los de la interpretación.

… Pero esta contradicción terminará por manifestarse como tal y hacerse insostenible

cuando el derecho pase a concebirse como una disciplina práctica. La jurisprudencia, en ese momento, deberá ponerse al servicio de dos señores: la ley y la realidad. Sólo a través de la tensión entre estas dos vertientes de la actividad judicial se podrá respetar esta concepción práctica del derecho.46

43 Em outros campos também, mas disto não tratou o ponto acima e, portanto, dele não podemos extrair tal conclusão. 44 A afirmação na verdade se dirige aos Direitos Fundamentais, mas como neste trabalho é tratado apenas o chamado “direito à vida”, nos limitamos a ele. 45 Cf. Barcellos (2002, pp. 236-237), “A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. (...) significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. Em suma: pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver dinheiro para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo”. Torres (2009, pp. 108-110), entretanto, aponta essa conceituação como desvirtuamento do sentido original, surgido na Alemanha e empregado também em Portugal. 46 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2008: 8.ª ed. Título original: Il Diritto mitte. Legge diritti giustizia, pp. 131-132

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7. Premissas metodológicas

Como bem destaca Greco47, é comum se dizer que a norma é “inexorável”, que o

fato gerador é “necessário” e é “causa” da obrigação, demonstrando a grande influência da

visão causalista de mundo sobre o Direito. Esse causalismo e o correlato cientificismo,

com a busca por um “objeto” que seja exclusivamente jurídico e que não “contaminasse” a

ciência do Direito com elementos de sociologia, política, história etc. levou alguns

positivistas a focar a norma, dimensão formal do Direito, como único objeto merecedor do

qualificativo de “jurídico”.

Posner48 afirma que o triunfo da física newtoniana nos séculos 17 e 18 levou a

maioria a pensar que o universo tinha uma estrutura racional acessível à razão humana e

que, portanto, os sistemas sociais poderiam ter uma estrutura similar49. Wintgens afirma

que o “legalismo” foi o pensamento dominante desde o século 17 até meados do século 20,

sendo compartilhado tanto por positivistas quanto por jusnaturalistas. Para essa corrente,

diz o autor, o comportamento normativo é uma questão de seguir a regra, pouco importa

sua origem. As construções legais constituem proposições normativas atemporais, não

cabendo discussões acerca de seu conteúdo, tampouco sobre quais seriam seus fins.

47 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo, 2000, pp. 23 e ss. 48 POSNER, Richard A. The Problems of Jurisprudence. Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 463. 49 Nesse mesmo sentido, afirmam Bergé, Pomeau e Dubois-Gance (BERGÉ, Pierre, POMEAU, Yves e DUBOIS-GANCE, Monique. Dos Ritmos ao Caos. São Paulo, 1996, pp. 11 e 30) que o século XIX foi a idade de ouro da ciência positivista. A fé na onipotência da ciência era grande e as mentes esclarecidas não duvidavam que se pudesse progressivamente chegar a um conhecimento quase completo do universo, presente e futuro, com base no determinismo das relações matemáticas. O determinismo atinge seu ápice no Ensaio Filosófico sobre as probabilidades, de Laplace, mas não se tratava ali de uma dedução puramente científica e sim de uma tomada de posição materialista, que se opunha a toda intervenção de origem divina. Este determinismo, que também podemos chamar de causalismo, fixou um parâmetro do que seria considerado “ciência”, numa verdadeira ideologia da ciência ou cientificismo. Esse parâmetro passou para as ciências sociais. Se, na célebre frase de Laplace, “uma inteligência que, por um instante dado, conhecesse todas as forças de que está animada a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem, e que, além disso, fosse ampla o bastante para submeter seus dados à análise, abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos” (p. 30) com muito mais razão, no âmbito do Direito, conhecendo-se as regras da Ciência, as regras jurídicas e os fatos, seria possível afastar toda a incerteza. Esta visão do mundo jurídico leva a crer haja direitos “em abstrato”, que, combinados com as variáveis de fato, gerem as conclusões, em um caminho de mão única. É certo que há diversas visões e métodos, desde os silogismos mais simples, do tipo premissa maior, premissa menor e síntese, até os complexos modelos de ponderação. Zagrebelsky parece chegar ao mesmo ponto embora partindo do exame dos Direitos do Homem. Afirma o autor que “se comprende fácilmente que tras esta concepción de los derechos [orientados a la libertad] se haya podido vislumbrar una supervaloración del hombre, casi una religión de la humanidad o una sustitución del Creador por el hombre” (cit., p. 87). Em amparo a esta afirmação, Zagrebelsky remete aos trabalhos de U. Schneuner, (“Menschenrechte und christliche Existenz”, em J. Listl (coord.), Schriften zum Staatskirchenrecht, Duncker & Humblot, Berlin, 1973) e G. Thils, (“Droit de l`homme et perspectives chrétiennes”: Cahiers de la Revue Théologique de Louvain 2(1981), pp. 114 ss).

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Qualquer proposição normativa originada do soberano sobrepujava, ipso facto, qualquer

outra que pudesse ter alguma aspiração a valor normativo. Não menos relevante, no

“legalismo” o estudo do direito está confinado ao estudo das proposições normativas das

leis, adotando metodologia idêntica das ciências naturais (2005, pp. 5-6).

Houve, portanto, a transposição ou mesmo imitação acrítica de modelo das ciências

naturais para o Direito, modelo este que não perdura nem mesmo no campo das ciências

naturais (ZAGREBELSKY, cit., p. 41).

Mas mesmo que a transposição fosse cabível, deixou de se atentar para a diferença

entre a metodologia de trabalho no campo das ciências naturais para o campo das ciências

sociais.

Silveira, em trabalho seminal, destaca: Existe uma divisão substancial de trabalho entre físicos e cientistas da Engenharia.

O primeiro é forçado, pela busca de generalidade ascendente, a um processo de crescente abstração, enquanto o segundo é restrito dentro do realismo imposto pela exigência de aplicabilidade. Ambos são teóricos, em oposição ao engenheiro profissional. Os construtos da Física – vácuo, gás perfeito, movimento sem atrito etc.– tornam-se crescentemente distanciados da realidade na medida em que a teoria progride. Este não é, e não pode ser, o caso das ciências da Engenharia, porque as entidades teóricas precisam estar mais proximamente ligadas às suas contrapartidas reais, e toda espécie de coeficientes de segurança tem que ser desenvolvida para permitir implementação. O fenômeno sob análise é o mesmo, mas é tratado sob diferentes fachos de luz.50 (1991, p. 72)

Prossegue Silveira afirmando que saber-como é tarefa do engenheiro profissional.

Seu interesse no saber-porque limita-se ao necessário para o desenvolvimento de

produtos e processos, nada mais. Já o físico, por oposição, está interessado no saber-como

apenas até o ponto em que isto auxilia no desenvolvimento de sua teoria, nada mais. Seu

comprometimento é com o saber-porque, não com produtos e processos (pp. 73-74).

A natureza não-experimental da economia, e de outras ciências sociais, acaba por

significar demandas conflitivas sobre economistas abstratos, prejudicando a especialização

e alimentando o dissenso de modelos entre os especialistas, abstratos ou aplicados

(SILVEIRA, cit, pp. 85-86).

Com amparo nas lições de Mill, Senior e Schumpeter, dentre outros, Silveira

formula o que chama de indeterminação de Senior, nos seguintes termos: As proposições de economia abstrata, não importando a generalidade ou a verdade

que encerrem, não autorizam conclusões normativas51, mas não podem ser ignoradas. A economia aplicada positiva pressupõe as teorias abstratas da economia, assim como em relevância variável, outras ciências sociais. Conclusões normativas – sob a forma do que

50 SILVEIRA, Antonio Maria da. A Indeterminação de Senior. Revista de Economia Política. São Paulo, vol. 11, n.º 4, pp. 70-88, out/dez de 1991, p. 72. 51 Para o autor, “diz-se positivo em relação ao que é, normativo em referência ao que tem que ser ou, mais apropriadamente, ao que não pode ser” (p. 76).

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não pode ser feito – são deriváveis das proposições da economia aplicada, mas são ainda qualificáveis pelas especificidades do caso em questão. (SILVEIRA, cit., p. 79)

Silveira destaca também o chamado vício ricardiano, batizado por Schumpeter,

conforme trecho abaixo: Eles [Senior, Mill e outros] quiseram apenas dizer que as questões de política

econômica envolvem sempre tantos elementos não-econômicos, que seu tratamento não deve se feito na base de considerações puramente econômicas... poder-se-ia apenas desejar que os economistas daquele (como de qualquer outro) período nunca se esquecessem deste toque de sabedoria – nunca fossem culpados do vício ricardiano.

O vício ricardiano, a saber, o hábito de empilhar uma carga pesada de conclusões práticas sobre uma fundação tênue, que não se lhe iguala, mas que parece, em sua simplicidade, não apenas atrativa, mas também convincente.52

Silveira trata da aplicabilidade de teorias econômicas, mas com lições que,

pensamos, são aplicáveis ao Direito.

O discurso jurídico se dá não quanto ao fato em si, mas sim quanto a imagem do

fato. Todavia, os fatos simples não são regidos pelo Direito e sim pela natureza em geral

ou mesmo pela natureza humana. Não raro um mesmo fato será significativo para mais de

um ramo do direito, produzindo sua imagem nos respectivos domínios.

Isto parece demonstrar que os mesmos problemas colocados por Silveira para a

economia estão presentes no direito.

O conteúdo de tais princípios pode ser formulado de diversos modos, mas sempre

significará também um controle de resultados. A falta de razoabilidade poderá se dar em

abstrato, tal como a notória ineficiência. Caberá o controle abstrato, o controle da norma.

Mas também haverá casos nos quais o irrazoável ou o ineficiente se dará na aplicação da

norma abstrata ao caso concreto. Haverá a chamada inconstitucionalidade do caso

concreto.

Isto demonstra, ao nosso ver, que há, tal como destacado por Silveira (obr. cit.),

planos distintos de abordagem, em diferentes níveis de abstração, não cabendo retirar

conclusões normativas do plano mais abstrato sem considerar a situação concreta. Esta

conclusão parece ter amparo em Larenz53, que bem aponta a distinção entre o “sistema

«externo» ou conceptual-abstrato” (pp. 531 e ss.), o “sistema «interno»” (pp. 577 e ss.) e a

necessidade do exame caso a caso (p. 591)54. A relevância da situação em concreto para a

52 SCHUMPETER, Joseph A. History of Economic Analysis. London: Allen & Unwin, 1986, pp. 540 e 1.171, apud SILVEIRA, cit., p. 80. 53 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1989. 54 Tomando como exemplo o conceito técnico-jurídico de “declaração de vontade”, Larenz afirma que este “só liberta o aplicador do Direito da necessidade de examinar caso a caso, se nele se trata unicamente de «autodeterminação» ou se entra em jogo a «heterodeterminação». Esta conduz desde logo à ineficácia do acto, se ocorrer uma das previsões a este propósito criadas pela lei, tais como dolo, coacção ou prejuízo imoral” (cit., p. 591).

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definição-especificação-criação da norma em concreto encontra apoio também em Ávila55,

(2003, p. 23) e Kelsen56.

Além da influência ideológica e dos paradigmas epistemológicos vindos das

ciências naturais, a própria realidade social favorecia a visão causalista. Como bem

destaca Zagrebelsky57, a realidade do século XIX era de sociedades em que havia uma

única classe hegemônica. Nesse tipo de sociedade a lei refletia uma ordem simples, com a

qual expressava sua visão de justiça. É certo que havia críticas ao ordenamento liberal

burguês a partir de outras visões de justiça, mas tais críticas eram externas ao sistema, pelo

que, vistas como antijurídicas.

Hoje, para além do novo paradigma epistemológico, há uma mudança essencial no

objeto do Direito enquanto ciência. O Estado monoclasse foi substituído pelo Estado

pluriclasse e houve grande fragmentação das realidades regradas, e.g. direito do consumo,

direito da concorrência, diversos segmentos de direito regulatório.

Há hoje uma marcante “contratualização” do conteúdo das leis, vez que esta é a

conclusão de um processo político em que participam grupos de pressão, sindicatos,

partidos, grupos suprapartidários. O resultado deste processo plural é marcado pela

ocasionalidade. O acordo é visto como second best: se algum dos grupos crer que tem

força suficiente para aprovar o texto em seus próprios termos, o fará, ou tentará mudar a lei

já aprovada, sancionando a nova correlação de forças58 (). “Esta ocasionalidad es la

perfecta contradicción de la generalidad y abstracción de las leyes, ligadas a una cierta

visión racional del derecho impermeable al puro juego de las relaciones de fuerza.”

(idem).

Vale aqui trazer o depoimento de MacCormick, que soma além da privilegiada

posição de, junto com Robert Alexy, configurar “o que se poderia chamar de teoria

padrão (atual) da argumentação jurídica”59, ter tido a experiência concreta de ser membro

do parlamento europeu de 1999 a 2004. Afirma MacCormick:

Falando da experiência relativamente transitória de legislador (fui membro do parlamento europeu de 1999 a 2004), posso dizer que o processo deliberativo está distante de uma deliberação moral pura. Ele envolve argumentos entre indivíduos e entre partidos (também dentro dos partidos). Ele reclama compromissos e então compromissos sobre os compromissos e, finalmente, há uma votação sobre um texto que não é o ideal de ninguém, mas o melhor a que se conseguiu chegar naquele momento. Quando aprovado (se o for),

55 ÁVILA, Humerto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 23. 56 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 363 e ss., esp. p. 366. 57 Obr. cit., p. 96. 58 Idem, p. 37 59 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2002, pp. 13-14.

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há uma minoria que votou contra, não raro uma minoria substancial. Nenhuma destas características me parece algo a se lamentar. Sistemas políticos de democracia plural geram exatamente este processo. Todavia, como modelo para deliberação moral pessoal, me parece algo bem distante do paradigma.

No domínio jurídico, é o judiciário mais que o legislativo o Poder que assegura um paralelo mais crível de deliberação moral, deliberação que, tem que se admitir, tipicamente chega às suas conclusões no julgamento mais que na elaboração de leis.60

Não se diga que o argumento não é adequado porque voltado ao legislador e um

dos marcos do constitucionalismo contemporâneo é a vinculação do legislador à

constituição. Primeiro, qualquer descrição histórica da Constituição e de seu processo de

formação mostra seu elevado grau compromissório. É texto que, em sua redação original,

estava sendo redigido com forte viés socializante, voltada para regime parlamentarista, mas

que depois sofreu forte mudança em decorrência do surgimento de um grupo

suprapartidário denominado na imprensa de “Centrão”, que ajustou as decisões para uma

economia de mercado e regime presidencialista, mantendo instrumentos de regimes

parlamentares, como a medida provisória, o que acabou por resultar em hipertrofia do

Executivo. Até abril de 2009 já foram 57 as emendas aprovadas pela maioria de três

quintos, em duas votações em cada casa61, e mais seis emendas aprovadas em revisão

constitucional.

Mesmo a leitura dos chamados direitos fundamentais positivados não é unívoca.

As redações são soluções de compromisso e influenciadas pelas três grandes correntes do

pensamento político moderno, o liberalismo, o socialismo e o cristianismo social. O valor

social do trabalho e da livre iniciativa, bem como o direito de propriedade62 dificilmente

podem ser definidos sem o uso das visões de mundo colidentes dessas três correntes de

pensamento, todas inspiradoras da Carta63.

Dir-se-á que a função do intérprete é exatamente esta, encontrar o sentido

decorrente desta interação, desta mistura de conteúdos, ponderando-os. Nenhum autor

hoje negará que elemento chave da ponderação é a razoabilidade, mas como bem destaca

Zagrebelsky, “es «razonable» el derecho que se presta a someterse a aquela exigencia de

60 . Practical Reason in Law and Morality. Oxford: Oxford University, 2008, pp. 64-65. Tradução livre. 61 CF, art. 60, § 2.º e ADCT, art. 3.º 62 CF, art.s 1.º, IV e 5.º, XXII e XXIII. 63 Os chamados “direitos” não se materializam em abstrato, mas em situações concretas que estão inseridas em uma complexa relação de aspectos que são valorados juridicamente por diversos ângulos. O “direito à saúde”, em sua aplicação em concreto, sofre influências do “valor social do trabalho” e da livre iniciativa. Os serviços de saúde são prestados dentro de uma cadeia de fatos que envolvem trabalho, sua remuneração, iniciativa, sua remuneração, e capital, bem como sua remuneração. Nos pareceria inusitado não reconhecer isto, inclusive a influência do direito à remuneração, ante o descompasso da valoração estipendial existente dentro dos ramos do serviço público brasileiro, até porque, custa a crer que esta opção realocativa, na via judicial, esteja no catálogo daqueles que pretendem uma “saúde-a-qualquer-custo”.

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composición y apertura, es decir, el derecho que no se cierra a la coexistencia

pluralista”.64

A Constituição Brasileira, por suas características históricas concretas, pela

ambiguidade dos ideais políticos positivados, é um marco aberto de princípios, o que

confere um razoável espaço de conformação para “o legislador65”. O mesmo já não parece

acontecer com as constituições da Alemanha e da Espanha, que, pelas características

históricas concretas em que surgiram, caracterizam-se como marco fechado, em que o

“constitucionalismo” envolve completamente a legislação em uma rede de vínculos

jurídicos que deve ser reconhecida pelos juízes66.

Por tudo isto, pelo choque, pela tensão dinâmica entre suas proposições, não

nos parece adequado ver a Constituição brasileira como um repositório de respostas à

espera de serem aplicadas.

7.1. A aplicação do direito.

A falta de um sentido unívoco ao comando jurídico, ou, mais propriamente, a

necessidade de construir o comando com a interpretação e em vistas da aplicação não leva,

por óbvio, a uma mera moldura ou lista de significados possíveis, cujo critério de escolha

esteja além do Direito67.

O deslocamento do foco do legislador para o aplicador da norma torna o Direito um

“servo de dois senhores”, a lei e a realidade. Esta concepção prática faz com que a

enunciação do caso a partir da situação posta tenha que ser em referência ao ordenamento,

mas também a atribuição de sentido ao texto, a interpretação da norma, que deve estar

orientada ao caso68.

Um bom exemplo dessa actio duplex no lugar da subsunção do tipo modus barbara

I69 pode ser vista no caso das gêmeas siamesas trazido por MacCormick (cit., pp. 173-181).

Um casal de católicos praticantes, nacional e residente na Ilha de Malta, foi para o Reino

Unido a fim de que fosse realizado o parto de suas filhas gêmeas, unidas pelo tórax e pelo 64 Obr. cit., p. 147. 65 O legislador e não necessariamente o legislativo. A observação parece elementar, mas destacamos porque a esmagadora maioria da doutrina estrangeira utilizada, aqui e alhures, é originada de países em parlamentaristas, em que a maioria no parlamento leva ao controle do executivo. No Brasil, entretanto, a preponderância da função legislativa está no executivo, ou melhor, é exercida pelo executivo, não apenas em “propor e aprovar leis”, mas também em propor, remanejar e executar o orçamento. 66 Zagrebelsky, cit., p. 151. 67 Como quer Kelsen (cit., cap. VIII). 68 MacCormick, cit., p. 192 e Zagrebelsky, cit., pp. 131-132. 69 Premissa maior, premissa menor e síntese, conforme Klug, que destaca ser esta forma de raciocínio jurídico uma forma de implicação, que, como característico da lógica clássica, não demonstra a correção do raciocínio e adverte quem busca o caráter de evidência para fundamentar leis da lógica confunde Lógica com Psicologia (KLUG, Ulrich. Lógica Jurídica. Bogotá: Temis, 1990., pp. 61-63)

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abdômen. Apenas uma delas possuía as funções cardíacas completas, mas jamais

conseguiria oxigenar seu sangue e o de sua irmã. Se as gêmeas não fossem separadas,

aquela que possuía as funções cardíacas morreria em poucas semanas ou meses, morrendo

também a outra, que não possuía todas as funções cardíacas. Realizada a operação, haveria

a morte imediata da “segunda irmã” e a primeira, sobrevivendo, teria que ser submetida a

uma série de complexas e difíceis cirurgias para reconstruir seu corpo em algo próximo à

forma humana normal, embora incompleta.

Os pediatras e cirurgiões encarregados do caso entenderam que teriam o dever de

realizar os procedimentos, pois estavam vinculados em agir no melhor interesse da “irmã

viável”. Os pais, devotos, entretanto, preferiam que a cirurgia não fosse realizada porque

não poderiam concordar com a morte de nenhuma delas como decorrência direta de sua

escolha, pois ambas lhes haviam sido dadas por Deus. Além disto, ponderavam que a

outra menina, na melhor das hipóteses, dependeria de constantes e intenso

acompanhamento médico, que isto não era viável em Malta, onde moravam, e que não

teriam condições de mudar para a Inglaterra.

O caso foi levado ao Judiciário pelos médicos, ante a falta de concordância dos

pais, muito embora tenha sido mantida em todo o tempo uma relação de respeito mútuo e

colaboração, segundo destacado no voto do Lord Justice Ward.

Ao final de seu voto, destacou o Lord Justice Ward: Não se deve pensar que esta decisão pode se tornar precedente para proporções

maiores, como que um médico possa matar seu paciente uma vez que diagnosticado que não sobreviverá; é importante enfatizar as circunstâncias únicas para as quais este caso constitui precedente. Elas são que seja impossível preservar a vida de X sem levar à morte Y, que Y, por suas próprias condições, levará inevitavelmente e em breve à morte de X e que X é capaz de viver uma vida independente, mas Y não é capaz em nenhuma circunstância, incluindo todas as formas de intervenção médica, de uma existência independente viável.

Este caso limite permite evidenciar a relevância do descobrimento dúplice e

circular entre o caso e o ordenamento, com vistas à determinação da regra concreta.

A situação fática é dada no mundo fenomênico. Cabe, para a elaboração do caso,

não apenas a atividade probatória, a transposição para os autos ou para o foro de decisão

daquilo que antes existia apenas no mundo fenomênico70, mas também a separação dos

elementos relevantes nos fatos à luz das possibilidades jurídicas e a atribuição de sentido

às normas abstratas à luz do caso em construção.

70 Vale lembrar que decidir a partir de uma “verdade demonstrada” e não de uma “verdade real” é conquista fundamental do processo civilizatório, como bem demonstra Foucault (FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003, cap. II).

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A escolha dos elementos relevantes da situação trazida à debate e a escolha das

normas pertinentes para chegar à solução fazem parte de um processo não linear, mas

circular, em que se compreende o caso a partir do ordenamento e o ordenamento a partir do

caso, em círculos concêntricos a partir de antecipações de sentido71

Há, portanto, uma distinção de método entre os casos jurídicos simples ou

rotineiros e casos difíceis72. Nos casos simples o trabalho do aplicador é exercido através

do que Wróblewski chamou de justificação interna, que se vale da lógica dedutiva e das

inferências. Já nos casos difíceis o aplicador precisa buscar uma justificação externa,

obtida exatamente através desse processo circular de mútuas descobertas.73

Caso difícil é aquele que envolve um problema, assim entendida “a toda cuestión

que aparentemente permite más de una respuesta y que requiere necesariamente un

entendimiento preliminar, conforme al cual torna el cariz de la cuestión que hay que

tomar en serio y a la que hay que buscar una única respuesta como solución”74.

7.2. O consequencialismo

A possibilidade de haver mais de uma resposta pode decorrer de choques e

antinomias aparentes no sistema, que a doutrina clássica supera com os critérios

cronológico, de especialização e hierárquico, ou, mais recentemente, com a ponderação à

luz de categorias e situações-tipo.

Outra possibilidade –e é a tratada aqui e nas obras referidas– é que a aparência de

mais de uma resposta decorra das peculiaridades do ocorrido, que na composição75 do caso

a partir dos fatos, haja elementos significativos que possam projetar respostas distintas e

incompatíveis entre si, como exemplificado acima, a partir do caso das gêmeas siamesas.

Mais uma vez nos valendo das palavras de Zagrebelsky, “Los principios de justicia

vienen previstos en la Constitución como objetivos que los poderes públicos deben

perseguir. El cuadro no es estático, vuelto hacia el pasado, sino dinámico y abierto al

futuro” (cit., p. 93).

71 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 436 e ss.; GÜNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica. Doxa. Madrid, n.º 17-18, p. 274-302, 1995; e Zagrebelsky, cit., pp. 136, 147 et passim. 72 Neste sentido cf. Atienza, cit., pp. 50-51. 73 Veja-se também GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. São Paulo, 2004 pp. 247-252. 74 VIEHWEG, Theodor. Tópica y Jurisprudencia. Madrid: Civitas, 2007, p. 57; Zagrebelsky, cit., p. 136. 75 Enfatizamos a ausência de identidade necessária entre “o que ocorre” e “o que se prova”, bem como que a referência da decisão é com a verdade “construída a partir da prova” e não com uma “verdade sabida” a despeito da prova.

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Exatamente porque os princípios de justiça nas constituições vigentes são muitos,

frutos de inspirações político-filosóficas distintas, a razoabilidade na interpretação é

aquela que não se fecha à coexistência pluralista de leituras. Assim: En lugar de [a Constitución] ser como el vector que hace irresistible la fuerza que

actúa en su nombre, ponen en escena vectores que se mueven en muchas direcciones y es preciso calcular cada vez «la resultante» de la concurrencia de fuerzas. De nuevo, el resultado constitucional no viene dado, sino que debe ser construido. (Idem, p. 96)

Portanto, no lugar da exclusiva visão causalista, na qual dadas as premissas a

conclusão é inexorável e a premissa menor apenas declara, apenas afirma sua pertença à

maior, ganha relevo cada vez maior, nos casos difíceis, a consideração quanto aos

resultados.

Hart76 (1953, pp. 20-21) já destaca a relevância das consequências e dos

pressupostos de aplicabilidade na definição dos conceitos jurídicos e na delimitação dos

significados.

Lübbe-Wolff77 vai mais longe, afirmando que “não é o papel da ponderação das

conseqüências da decisão no caso isolado que deve ser abordado, mas sim o papel da

ponderação das conseqüências na formação das regras jurídicas e dos conceitos ali

implicados” (p. 139). Afirma a autora, hoje Magistrada da Corte Constitucional da

Alemanha, que a adequação do conteúdo na formação de regras e conceitos jurídicos

depende de suas consequências reais (p. 138).

Ponderar as consequências não corresponde necessariamente a um utilitarismo

quanto aos efeitos do ato em concreto, mas sim quanto ao prestígio do conjunto de regras

cuja observação pela grande maioria dos envolvidos deva produzir os melhores

resultados78.

76 HART, L. A. Definition & theory in jurisprudence : an inaugural lecture delivered before the University of Oxford on 30 May, 1953. Oxford : Clarendon Press, 1953, pp. 20-21 77 LÜBBE-WOLFF, Gertrude. Rechtsfolgen und Realfolgen: Welche Rolle können Folgener-wägungen in der juristischen Regel- und Begriffsbildung spielen? München: Karl Alber Freiburg, 1981. 78 HOOKER, Brad. Ideal Code, Real World. Oxford, 2002; Lübbe-Wolff, cit., MacCormick, Pracital Reason…, cit., passim; Zagrebelsky, cit., pp. 136-137 e 147. Hooker defende o uso do consequencialismo de regras em contraposição ao consequencialismo de atos. Segundo autor, o consequencialismo de regras pode ser assim definido: RULE-CONSEQUENTIALISM. An act is wrong if it is forbidden by the code of rules whose internalization by the overwhelming majority of everyone everywhere in each new generation has maximum expected value in terms of wellbeing (with some priority for the worst off). The calculation of a code’s expected value includes all costs of getting the code internalized. If in terms of expected value two or more codes are better than the rest but equal to one another, the one closest to conventional morality determines what acts are wrong. (p. 33) Já o consequencialismo voltado ao ato em concreto pode ser assim definido: ACT-CONSEQUENTIALISM claims that an act is morally permissible if and only if the actual (or expected) overall value of that particular act would be at least as great as that of any other act open to the agent. (p. 144)

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Em sentido similar é a lição de Günther79, para quem “uma norma é válida se as

consequências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos,

sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um, individualmente”.

Sobre a argumentação consequencialista, vale a definição de MacCormick80: A argumentação consequencialista envolve a elaboração da deliberação

universalizada necessária para a decisão em pauta, examinando seu significado prático pela ponderação dos tipos de decisão que ela exigirá na faixa de casos possíveis que cobrir e avaliando esses tipos de decisão como conseqüências da deliberação. Essa avaliação não usa uma escala única de valores mensuráveis [...]. Ela envolve critérios múltiplos, que deve incluir no mínimo “justiça”, “senso comum”, “política de interesse público” e “conveniência jurídica”.

Como bem destaca Sen81, o argumento em favor do raciocínio consequencialista

surge do fato de que as atividades têm consequências. Mesmo atividades que são

intrinsecamente valiosas podem ter outras consequências, pelo que o valor intrínseco de

qualquer atividade não é uma razão adequada para menosprezar seu papel instrumental, e a

existência de uma importância instrumental não é uma negação do valor intrínseco de uma

atividade. É preciso, pois, examinar não apenas o valor intrínseco da norma e o estado de

coisas por ela direcionado, mas também as diversas consequências intrinsecamente

valiosas ou desvaliosas que possam decorrer das atividades afetadas pela norma.

O exame das consequências não ocorre apenas ex post facto, mas também quanto

aos resultados que razoavelmente se podem esperar.

Neste ponto cabe o emprego amplo da interdisciplinariedade, com uso de recursos

da Antropologia, da Economia, da Psicologia de massas e da Sociologia, dentre outros

ramos do conhecimento, sempre ilustrados pela Ética, pois “as deliberações éticas não

O mesmo autor (p. 129) traz como argumento contrário ao consequencialismo de atos a existência de atos inaceitáveis a despeito dos resultados, para o que se pode tomar como exemplo o trecho abaixo do diálogo entre os irmãos Ivan e Aliócha Karamazov (DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 694).

– Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante felicidade? Responde sem mentir.

– Não, não consentiria. Sem o mesmo lirismo, MacCormick (Pratical Reason..., cit. pp. 47-49) expõe que o “erro” é uma razão excludente, afastando qualquer possibilidade de deliberação, mas que pressupõe um padrão de julgamento, uma base de julgamento e um contexto relevante. Restariam abertas a consideração todas as opções “não-erradas” (non-wrong) Lübbe-Wolff afirma que enquanto para o utilitarista de ato a ação concreta deve ser considerada correta ou não em função de serem seus resultados bons ou úteis, o utilitarista de regra considera correto apenas o ato que segue a regra cuja observância geral produz melhores resultados. (Trad. livre, p. 138). 79 Teoria da Argumentação..., cit., p. 67. 80 Argumentação Jurídica..., cit., p. 329 81 SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 91.

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podem ser totalmente irrelevantes para o comportamento humano real”82 (SEN, 1999, p.

20).

8. Para terminar

O tema bem rende um livro... Não há como enfrentá-lo no já suplantado limite das

teses para nosso Congresso de Procuradores. Assim, apresento estas conclusões:

1. Pode-se concluir, contudo, que o enfrentamento das questões ligadas à saúde do

indivíduo, é necessária uma abordagem consequencialista, não no sentido de maximizar a

utilidade específica de cada alocação, mas para buscar a melhor regra, o melhor critério

num cenário dinâmico de incerteza.

2. Uma abordagem voltada a consequencias a decisão se justifica em grande parte

pelo processo. No processo das escolhas públicas, o Estado precisa esclarecer seus

critérios, justificar suas escolhas e dar publicidade aos critérios, aos motivos e aos

procedimentos de escolha.

3. Tais decisões alocativas têm como melhor sede o orçamento. Não a lei formal do

orçamento, mas todo o processo desde a elaboração de sua proposta até a execução. O

controle das escolhas ínsitas a este processo permitem ver e dar voz tanto ao lado

“vencedor”, que receberá os meios, quanto ao lado “perdedor”, que os terá em menor

monta ou mesmo não os terá.

4. É necessário ter, como elemento de pré-compreensão, que a escassez é limite ao

conteúdo das pretensões positivas. A interpretação deve ter isto em consideração.

5. Incumbe em especial ao órgão público justificar suas escolhas. O não atendimento

de pretensão abarcada pelo mínimo existencial pressupõe razão extrema, que ou bem é

notória como um cataclismo, ou deve ser cabalmente demonstrada. Cabe ao órgão público

ao menos delinear “quem paga a conta”, qual o perfil daqueles que foram beneficiados

pelo nível de decisão alocativa tomado e seriam prejudicados se fosse determinado o

atendimento pretendido na demanda. Cabe à Advocacia Pública zelar para que tais

informações sejam prestadas nos autos e orientar não apenas que as escolhas sejam

fundamentadas, mas que haja registro disto. O espaço para argumentos puramente formais

ou etéreos, como separação de poderes, mérito do ato administrativo, prevalência do

interesse público são de pouco valor prático.

6. O direito à saúde se afirma preferencialmente por políticas públicas e como tal

deve ser controlado.

82 SEN, cit., p. 20.