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MMÁÁRRCCIIOO DDIIAASS DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA
SSAAÚÚDDEE PPOOSSSSÍÍVVEELL EE JJUUDDIICCIIAALLIIZZAAÇÇÃÃOO
EEXXCCEEPPCCIIOONNAALL:: AA EEFFEETTIIVVAAÇÇÃÃOO DDOO DDIIRREEIITTOO
FFUUNNDDAAMMEENNTTAALL ÀÀ SSAAÚÚDDEE EE AA NNEECCEESSSSÁÁRRIIAA
RRAACCIIOONNAALLIIZZAAÇÇÃÃOO
IINNSSTTIITTUUIIÇÇÃÃOO TTOOLLEEDDOO DDEE EENNSSIINNOO
CCEENNTTRROO DDEE PPÓÓSS--GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOO
BBAAUURRUU –– 22000088
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RRAACCIIOONNAALLIIZZAAÇÇÃÃOO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – do Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP, para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Walter Claudius Rothenburg.
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RRAACCIIOONNAALLIIZZAAÇÇÃÃOO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – do Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP, para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Walter Claudius Rothenburg.
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_______________________ (Nota)
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_______________________ (Nota)
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_______________________ (Nota)
Bauru/SP, ___ de __________ de 2008.
DDEEDDIICCAATTÓÓRRIIAA
Aos meus pais, Nelson e Silvia, por incontáveis motivos.
Aos meus irmãos, por acreditarem.
A Luiza, pelo carinho e ajuda.
A Deus por possibilitar tudo isso.
AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Agradeço ao Professor Doutor Walter Claudius
Rothenburg por todas as valiosas lições jurídicas, assim
como por sua dedicação e humildade, também um
ensinamento.
Agradeço ao Professor Doutor Luiz Alberto David
Araujo, pela oportunidade.
Minha gratidão a Rosângela e Marisa, pela amizade e
atenção, paciência e profissionalismo.
“A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada,
mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia.
Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a
coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de
sua água – carece de espelho. Mestre não é quem
sempre ensina, mas quem de repente aprende”.
João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas.
RREESSUUMMOO
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O direito fundamental à saúde e as possibilidades do Estado prestador
ensejam várias abordagens. O direito fundamental à saúde apresenta uma face
prestacional, exigindo atitudes positivas e outra face negativa, impondo-se
abstenções necessárias à sua preservação. A consagração da saúde enquanto
direito de todos e dever do Estado, na Constituição da República,
considerando-se principalmente a face prestacional, tem proporcionado
discussões sobre os limites da responsabilidade do Estado sobre a atuação
sanitária. A estrutura posta mediante o sistema público de saúde à disposição
da população, por vezes, não corresponde às necessidades encontradas. O
reconhecimento do direito à saúde como um direito público subjetivo é
conquista importante, mas não soluciona o problema, podendo até mesmo
agravá-lo. Imperiosa a necessidade de racionalização das discussões sobre as
necessidades apresentadas ao Estado e suas reais possibilidades, para que o
sistema público de saúde não encontre no Poder Judiciário um real obstáculo à
sua implantação, mas, antes, uma instituição comprometida com a questão
sanitária. É preciso maior ciência das reais condições do Estado por parte do
julgador e imposição de critérios objetivos à decisão judicial. Algum limite o
Estado há de encontrar, sendo certo que nenhuma resposta construtiva surgirá
da responsabilização, pura e simples, do agente público efetivador. É preciso
racionalizar as interferências judiciais, aceitar o processo de construção do
sistema público, principalmente com a judicialização excepcional do direito
sanitário, como forma de fiscalizar sua prestação.
Palavras-Chave: Direitos Fundamentais; Efetivação; Direito à Saúde; Sistema
Único de Saúde; Mínimo Existencial; Reserva do Possível; Direito Público
Subjetivo; Judicialização.
AABBSSTTRRAACCTT
� � �
The fundamental right to health and the possibilities of the provider State
try several approaches. The fundamental right to health presents a
profitable face, requiring positive attitudes, and other negative face,
imposing itself necessary abstentions for its preservation. The
consecration of health as a duty, right of everybody and duty of the State,
in the Republic Constitution considering, mainly, the profitable face, has
provided discussions on the limits of the State liability on the sanitary
performance. The structure put through the public health system available
to the population, sometimes does not suit the needs met. The recognition
of the right to health as a subjective public law is an important
achievement, but does not solve the problem and may even worsen it. It is
imperious the need of rationalization of discussions about the needs
presented to the State and their real possibilities, so the public health
system does not find in the Judiciary a real obstacle to its establishment,
but, rather, an institution committed with the sanitary issue. We need more
knowledgement from the real conditions of the State by the judge and
imposition of objective criteria for judgment. The State has to find some
limit being that no constructive answer will come from simply
accountability of the public servant. We must rationalize the judicial
interference; accept the public system organism process, particularly with
the exceptional judicialization of the sanitary right as a way to fiscalize its
performance.
Key-Words: Fundamental Rights; Effectuation; Right to Health; Single Health
System; Minimum Existential; Reserve of Possible; Subjective Public Law;
Judicialization.
LLIISSTTAA DDEE AABBRREEVVIIAATTUURRAASS EE SSIIGGLLAASS
Ampl. – Ampliada
ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar
Art. – Artigo
Arts. – Artigos
Atual. – Atualizada
Aum. – Aumentada
CC – Código Civil
CF/88 – Constituição Federal de 1988
Coord. – Coordenador(a)
CP – Código Penal
CPC – Código de Processo Civil
Dr. – Doutor
EC – Emenda Constitucional
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
Ed. – Edição
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Inc. – Inciso
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
Min. – Ministro
OEA – Organização dos Estados Americanos
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
Org. – Organizador
Reimpr. – Reimpressão
Rel. – Relator
Rev. – Revisada
Ss. – Seguintes
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUS – Sistema Único de Saúde
Tirag. – Tiragem
Tur. – Turma
Vol. – Volume
SSUUMMÁÁRRIIOO
RESUMO ......................................................................................................... vi
ABSTRACT ..................................................................................................... vii
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.......................................................... viii
1 INTRODUÇÃO .................................................................................... 10
2 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE............................................. 14 2.1 O Direito à Saúde como Direito Fundamental Social ..................... 18 2.2 O Direito à Saúde: Direito Prestacional ou de Defesa? ................. 23 2.3 O Direito à Saúde e o Retrocesso ou Reversão dos Direitos Fundamentais .................................................................................... 30
3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL .................................................... 34 3.1 A Positivação do Direito à Saúde nas Constituições Brasileiras ... 34 3.2 Repartição Constitucional de Competências na Área da Saúde ..... 38 3.3 O Sistema Único de Saúde – SUS.................................................... 41
4 PRESTAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ............................................... 54 4.1 Serviço Público de Saúde................................................................. 58 4.2 Iniciativa Privada ............................................................................... 61 4.2.1 Organizações da sociedade civil de interesse público ........................ 69 4.2.2 Saúde suplementar ............................................................................. 72 4.3 O Sujeito Público Efetivador ............................................................ 77 4.3.1 O desafio de efetivar ........................................................................... 78 4.3.2 Sujeito público e improbidade administrativa ...................................... 80
5 A JURISDICIONALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ........................ 85 5.1 Saúde como Direito Público Subjetivo ............................................ 85 5.1.1 Jurisprudência e direito à saúde.......................................................... 91 5.2 O Papel do Poder Judiciário e a Prestação da Saúde.................... 96 5.3 Limites à Atuação Judicial ............................................................... 102
6 CONCLUSÕES ................................................................................... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 110
1100
11 IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
O descompasso entre as necessidades sociais e as possibilidades do
Estado produz questões de difícil resolução, mas nenhuma delas tão eminente
quanto a questão sanitária.
Inicia-se explorando os conteúdos dos direitos fundamentais, sendo que a
primeira tarefa que se apresenta é esclarecer a saúde, enquanto um direito
fundamental. Dada a sua relação com a dignidade da pessoa humana não há
dificuldades em compreender a importância de sua proteção, tanto enquanto
direito prestacional quanto direito de defesa.
É comum se imaginar que o direito à saúde integra um rol de direito que
apenas comporta uma face prestacional, já que o mais aparente mecanismo de
comento do direito sanitário, nos dias de hoje, é a judicialização do direito
prestacional à saúde, quando se exige que o Estado atue em prol do litigante.
Contudo, é possível falarmos em face negativa do direito fundamental à
saúde e, é o que veremos, dissociando a característica prestacional ou de defesa
da classificação dos direitos, em gerações.
Assumindo a importância do direito à saúde e sua possibilidade de
apresentação em face prestacional ou de defesa, seguimos estudando uma
característica dos direitos fundamentais que fala de perto à sua construção
histórica: a não-reversibilidade.
Propomos um estudo específico da característica da não-reversibilidade,
face ao conteúdo que pretendemos desenvolver. Assumimos que a saúde é um
direito fundamental e que esses não devem se submeter a retrocesso por
atuações estatais, mas veremos que a situação fática impõe limitações
inafastáveis e, que a realidade pode exigir racionalidade na interpretação da
possibilidade, ou não, de retrocesso.
1111
No Brasil, a Constituição de 1988 é a primeira a se preocupar com a
criação de um sistema público de saúde, com atendimento universalizado e
integral. Com certeza, o Brasil não estava pronto para, logo no final da década de
1980, iniciar um atendimento público de qualidade.
A herança dos sistemas anteriores não contribuiu para a construção do
serviço sanitário proposto, já que o sistema imediatamente anterior (INAMPS) era de
contratação de serviços privados para prestação de serviço de saúde, não universal.
Partindo, então, para a construção de um Sistema Único de Saúde –
SUS, com atendimento universal, o Brasil considerou a saúde como um serviço
de relevância pública, que deveria ser prestado pelo Estado e que poderia ser
prestado pelo particular.
Como a estrutura era pouca, admitiu-se que a iniciativa privada integrasse
o sistema público, mediante convênios ou contratos com o SUS. A preferência é
dada às instituições filantrópicas, sendo muito relevante a possibilidade de
ingresso das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP na
atuação sanitária.
Em que pese o título de sistema único, o sistema público não se
pretendeu exclusivo, a existência do sistema de saúde suplementar paralelo é
analisada, demonstrando que surgiu um fenômeno classificado por
universalização excludente.
Posta em análise as pessoas jurídicas prestadoras de serviços de saúde,
é importante resumir a tarefa dos sujeitos públicos efetivadores, seres humanos
que se colocam na linha de frente da prestação sanitária. No mais das vezes,
essas pessoas são as responsáveis pelo anúncio à população dos limites do
Estado, do que este é capaz ou não de prestar, verdadeiro desafio.
Com a possibilidade de ingresso de particulares na estrutura sanitária
pública, passamos também a estudar a possibilidade de cometimento de atos de
improbidade administrativa por particulares.
1122
Colocada a fundamentalidade do direito à saúde, sua possibilidade de
manifestação enquanto direito à prestação ou direito de defesa, bem como a
estrutura que se propôs com a Constituição de 1988, passamos à possibilidade
de judicialização do direito à saúde.
Preliminarmente, se coloca a discussão acerca da existência de um direito
público subjetivo sanitário, que revela a existência de argumentos contrários à
manifestação judicial, nesses casos. Analisamos a evolução da jurisprudência.
A localização da judicialização do direito à saúde, na parte final do texto,
quer significar a subsidiariedade da atuação judicial na questão sanitária. O papel
do Poder Judiciário na prestação da saúde deve se revestir de racionalidade, pois
dividir os poucos recursos existentes, sem a análise racional das possibilidades
do Estado é mais que presumir a incompetência do agente público, é impedir a
evolução de um sistema público sanitário, de qualidade.
Veremos que o Poder Judiciário pode atuar de forma comprometida
com o implemento do SUS, racionalizando suas decisões e fiscalizando a
evolução dos trabalhos, ou atuar de forma descomprometida, emitindo
liminares, sentenças e acórdãos irresponsáveis, transferindo ao agente público
a tarefa de manipular a pobreza da burocracia sanitária, impondo aos não
litigantes a reserva do possível.
Assim, as premissas iniciais são a fundamentalidade do direito à saúde e
sua prestação, enquanto dever do Estado, que constituem a festejada tese da
prestação sanitária pública integral e incondicional.
Em seguida, os limites do Estado prestador e a possibilidade de negativa à
efetivação por recursos públicos surgem como antítese do proposto anteriormente,
emergindo a idéia de que o sistema público é limitado, sendo impossível
atendimento integral à demanda sanitária, ainda que pela via judicial.
A síntese do confronto entre a tese e a antítese é a imperiosa
necessidade de racionalização das decisões judiciais em sede de direito à saúde,
1133
que é fundamental, mas impossível de ser totalmente atendida, idéias que se
excluem, mas que ao mesmo tempo estão unidas, devendo ser consideradas na
nova tese.
O método dialético nos pareceu mais adequado à construção desse
trabalho, por permitir a apresentação da tese e antítese, explorando elementos
contraditórios e propiciando o implemento de uma conclusão, fruto da
apresentação das contrariedades e sua evolução.
Para contribuir com a racionalização na tomada de decisões difíceis em
direito sanitário, sugeriremos a adoção de três questões, que reputamos
importantes, antes da concessão, ou não, de ordens judiciais.
Nos dizeres de Samantha Chantal Dobrowlski:
No Direito, quem decide (juízes e funcionários) deve estar atento à demanda social de razões públicas e efetivas e ter consciência de seu papel na sociedade. Nesta perspectiva, não se pode menoscabar a intrínseca relação entre a interpretação jurídica e as questões filosóficas, sob pena de se sofrer os perigosos efeitos do exercício mecânico do poder, alheio à responsabilidade social do intérprete.1
Racionalizar pode ser a única possibilidade de construção um sistema
público de saúde aceitável.
1 DOBROWLSKI, Samantha Chantal. A justificação do Direito e sua adequação social.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 53.
1144
22 OO DDIIRREEIITTOO FFUUNNDDAAMMEENNTTAALL ÀÀ SSAAÚÚDDEE
A construção histórica dos direitos fundamentais e suas importantes
divisões em gerações ou dimensões revelam a grandeza de seus significados e a
importância de sua eficácia e preservação. As expressões direitos humanos e
direitos fundamentais merecem uma abordagem inicial, por atenção à doutrina
especializada e para evitarmos confusões no desenvolvimento dos trabalhos.
Os direitos fundamentais e os direitos humanos fazem parte de um grupo
de direitos indispensáveis à proteção da dignidade humana; foram conquistados
historicamente e a tutela desse núcleo de direitos é exigível, como veremos,
contra o Estado e também por meio do Estado.
É possível anunciarmos um rol de direitos que sejam fundamentais ou
que façam parte dos direitos humanos, mas nenhuma lista será exaustiva. A
localização dos direitos na ordem interna ou internacional determinará a
denominação dos direitos em humanos ou fundamentais. Diz-se direito
fundamental o direito que pertença ao grupo de direitos indissociáveis à proteção
da dignidade humana que estejam positivados na ordem jurídica interna. Já os
direitos humanos seriam os mesmos direitos positivados em instrumentos de
direito internacional, coincidindo ou não com os direitos já positivados no
ordenamento jurídico interno.
O reconhecimento dos direitos fundamentais pelos Estados, em suas
Constituições, bem como a aderência dos mesmos aos pactos internacionais de
direitos humanos, revelam-se frutos das conquistas da humanidade na construção
de sua história em sociedade. A expressão direitos humanos fundamentais foi
mencionada por Ingo Wolfgang Sarlet, nesta lição:
Além dos aspectos já considerados, importa consignar, todavia, que os direitos humanos e os direitos fundamentais compartilham de uma fundamentalidade pelo menos no aspecto material, pois ambos dizem com o reconhecimento e proteção de certos valores, bens jurídicos e reivindicações essenciais aos seres humanos em
1155
geral ou aos cidadãos de determinado Estado, razão pela qual se poderá levar em conta tendência relativamente recente na doutrina, no sentido de utilizar a expressão ‘direitos humanos fundamentais’, terminologia que abrange as esferas nacional e internacional de positivação.2
A preocupação com a terminologia utilizada revela sua utilidade quando
pretendemos analisar a forma como o Direito interno assimila o Direito
internacional, ou seja, como o direito constitucional pretendeu abordar os direitos
humanos em análise. Dessa forma, a constitucionalização dos direitos
fundamentais é fruto do reconhecimento de sua importância face às
reivindicações da sociedade, que clama pelo respeito de determinado direito pelo
Estado.
Trata-se de interpretação realizada pelo Constituinte das necessidades
sociais latentes, sem que isso importe a exclusão de outros direitos não
elencados no rol dos fundamentais, mas protegidos enquanto direitos humanos.
Já esses, no Brasil, podem ser incorporados ao ordenamento jurídico nacional
quando constantes de documentos internacionais de que o país seja parte (Art.
5º, § 3º da Constituição Federal), o que parece dar muito sentido à expressão
direitos humanos fundamentais.
José Carlos Vieira de Andrade escrevendo sobre os direitos, liberdades e
garantias revela que:
[...] são normas preceptivas e conferem verdadeiros poderes de exigir de outrem (do Estado, pelo menos) um certo comportamento (geralmente a abstenção), ao mesmo tempo que impõem o dever correspondente. São direitos cujo conteúdo é constitucionalmente determinável e que não necessitam, por isso, para valerem como direitos, da intervenção legislativa. Na falta de lei, deve entender-se que o direito existe e vale plenamente, limitado apenas pelas outras normas ou princípios constitucionais, pois constam de preceitos directamente aplicáveis pela Administração, pelos particulares, ou, pelo menos, pelos tribunais.3
2 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In: Revista
Diálogo Jurídico, nº 01, vol. 01. Salvador: Centro de Atualização Jurídica, 2001, p. 32. 3 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 205.
1166
Os direitos humanos e fundamentais podem ser expressos em regras ou
princípios e, essa distinção na teoria dos direitos fundamentais merece destaque.
Para Robert Alexy4 sem a distinção entre normas e princípios não pode existir
uma teoria adequada dos limites, nem uma teoria satisfatória da colisão e
tampouco uma teoria suficiente sobre o papel que desempenham os direitos
fundamentais no sistema jurídico.
Princípios buscam estabelecer normas de otimização que, a depender
dos fatos e do direito, apresentam-se mais ou menos concretas, enquanto regras
prescrevem uma exigência que pode ou não ser cumprida. Assim, os princípios
sujeitam-se a conflitos, sem que um sucumba completamente ao outro, como
ocorre com as regras, que se excluem em caso de contrariedade (antinomia).
Note, os princípios conduzem normas de otimização, sendo importante que não
se excluam para que haja o balanceamento de valores e interesses, diferentes
das regras, que prescrevendo exigências contrárias não podem incidir
simultaneamente. Os princípios são valorados e pesados quanto à sua
importância, ponderação e valia. Em se tratando das regras, apenas se discute
sobre sua validade, a norma é correta ou incorreta, deve ou não ser mudada. Em
síntese, essa é a posição de José Joaquim Gomes Canotilho.5
Interessa-nos a classificação das normas sobre direitos fundamentais
enquanto princípios ou regras para que possamos desenvolver uma discussão
sobre a eficácia dos direitos fundamentais, em especial o direito fundamental à
saúde.
O direito à saúde é tratado no ordenamento jurídico brasileiro como
norma constitucional, enquanto direito fundamental social que, pela sistemática
dos direitos fundamentais da Constituição de 1988, tem aplicabilidade imediata
(Art. 5º, § 1º). Mas veremos que o direito sanitário, além das previsões
constitucionais, ainda sustenta vasta regulamentação infraconstitucional,
4 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón
Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 81. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4ª ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 1088-1089.
1177
abrigando normas-regras e também normas-princípios. Em âmbito constitucional,
por exemplo, há o princípio da universalidade no atendimento (Art. 199) e a regra
de aplicação obrigatória de recursos dos entes federativos prevista no Art. 198, §
2º da Constituição Federal.
Já em nível infraconstitucional (Lei nº 8.080/90), há o princípio da
preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua saúde (Art.7º, inc. III), e
a regra segundo a qual o atendimento e a internação domiciliares só poderão ser
realizados por indicação médica, com expressa concordância do paciente e de
sua família (Art. 16, inc. XVII).
A dinâmica do sistema jurídico não pode prescindir dos princípios
constitucionais e mais, não há sustentação ao sistema sem que seja reconhecida
a obrigatoriedade dos princípios e neste ponto, convém destacar o ensinamento
de Walter Claudius Rothenburg:
Desconsiderar que os princípios já carregam em certo e suficiente significado, e sustentar sua insuperável indeterminação, representa desprestigiar sua funcionalidade em termos de vinculação (obrigatoriedade), continuando-se a emprestar-lhes uma feição meramente diretiva, de sugestão, o que não se compadece, absolutamente, com a franca natureza normativa que se lhes deve reconhecer.6
No exercício da vida em sociedade, na dinâmica relação entre direitos e
deveres, destacam-se diversos fatores que poderíamos elencar como sendo
fundamentais ao ser humano, cuja proteção não deve ser afastada ou
diferenciada por encontrar-se prevista abstratamente em um princípio. Assim
como o direito à vida é indiscutivelmente fundamental, todos os requisitos de uma
vida digna tendem a inspirar outros direitos fundamentais.
Tendo a saúde inquestionável importância na preservação da dignidade
humana, não se cogita vida digna se não assegurado à pessoa o acesso aos
préstimos existentes e viáveis na luta por sua saúde.
6 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1999, p. 22.
1188
Para a Organização Mundial da Saúde, saúde é “[...] um estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de
doença ou de enfermidade”.7 E esse parece ser o norte da interpretação do direito
fundamental à saúde.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 harmoniza-se com o conceito
da Organização Mundial da Saúde quando aborda a saúde como um direito social
no Capítulo II, assumindo, mais à frente, no Art. 196, a saúde como um direito de
todos e um dever do Estado, englobando a redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
Decerto, que proporcionar um estado de bem-estar físico, mental e social
deverá ser o objetivo das políticas públicas no âmbito da saúde, que ganham
amplitude muito maior que a simples cura de enfermidades, passando a ocupar
espaço nas políticas de conscientização sobre doenças, condições mínimas de
higiene, saneamento básico e tantos outros.
Ao trazermos o direito à saúde para estudo junto à teoria dos direitos
fundamentais, deveremos enfrentar algumas importantes questões como, por
exemplo: o enquadramento do direito à saúde nas dimensões de direitos
fundamentais; a situação do direito à saúde enquanto direito prestacional ou de
defesa; os direitos prestacionais em sentido amplo e em sentido estrito e, por fim,
a possibilidade de retrocesso das conquistas do âmbito do direito à saúde.
2.1 O Direito à Saúde como Direito Fundamental Social
Os direitos sociais surgem após os direitos de primeira dimensão e não se
preocupam apenas com a exaltação da liberdade (primeira dimensão) ou da
7 No Brasil, a Constituição da OMS foi adotada pelo Decreto nº 26.042, promulgado em
17/12/1948. Em que pese o termo Constituição não adequado para um organismo internacional, essa é a nomeclatura encontrada (Constituion of the World Health Organization).
1199
igualdade (segunda dimensão) pura e simples, muito pelo contrário, prega-se
mesmo certa desigualdade no trato dos indivíduos pelo Estado para que se
promova uma efetiva distribuição de riquezas. É lícito concluir, mesmo, que se
contenha um tratamento intencionalmente desigual, mas que promova uma forma
de compensação final, culminando na situação mais justa possível.
No Brasil a Constituição tratou de positivar a saúde como um direito social
logo em seu Art. 6º, de onde se conclui que:
[...] o direito à saúde passa a ser um direito que exige do Estado prestações positivas no sentido de garantia/efetividade da saúde, pena de ineficácia de tal direito. De outro lado, verificando-se que os direitos sociais localizam-se no Capítulo II, do Titulo II, da nossa Carta Magna, e esse Título elenca os direitos e garantias fundamentais, pode-se concluir que os direitos sociais (como a saúde) são direitos fundamentais do homem.8
A questão que se apresenta nesse momento trará à baila o fato de serem
os direitos sociais, notadamente a saúde, uma obrigação do Estado, um direito
público subjetivo.9 Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro a saúde é um serviço
público social, vejamos:
Serviço público social é o que atende às necessidades da coletividade em que a atuação do Estado é essencial, mas que convivem com a iniciativa privada, tal como ocorre com os serviços de saúde, educação, previdência, cultura, meio ambiente; são tratados na Constituição no capítulo da ordem social e objetivam atender aos direitos sociais do homem, considerados direitos fundamentais pelo Art. 6º da Constituição.10
O cunho prestacional dos direitos sociais parece evidente quando
lembramos que os direitos fundamentais de segunda dimensão postulam do
Estado a diminuição das desigualdades sociais. Educação, trabalho, lazer,
8 LEAL, Rogério Gesta. Efetivação do direito à saúde por uma jurisdição-serafim: limites e
possibilidades. In: Direitos Sociais e Políticas Públicas, nº 06. São Paulo: WRA, 2005, p. 1527.
9 Sobre a questão da exigibilidade judicial do direito público subjetivo à saúde veremos mais a seguir, no item 5.1.
10 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 105.
2200
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência
social, bem como a saúde, estão no rol dos direitos fundamentais sociais, que no
Brasil encontram-se no Art. 6º da Constituição Federal.
É importante a classificação do direito à saúde enquanto direito
fundamental social porque indica a intenção do Estado em promover o acesso a
toda a população, diminuindo a desigualdade imposta por diversos fatores como,
por exemplo, a má distribuição de renda. Essa preocupação com a promoção da
igualdade material se alinha com o estabelecimento da democracia e do Estado
de Direito, como bem se nota no magistério de Ingo Wolfgang Sarlet:
[…] os direitos fundamentais sociais constituem exigência inarredável do exercício efetivo das liberdades e garantia da igualdade de chances (oportunidades), inerentes à noção de uma democracia e um Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiça material.11
Não importando a dimensão a que pertença o direito fundamental, a
importante classificação que teremos em mente diz respeito à função
desempenhada pelo direito fundamental estudado. Podemos falar em face
prestacional dos direitos fundamentais de primeira dimensão sem incorrermos em
absurdo, da mesma forma que podemos falar em direitos de defesa acerca dos
direitos fundamentais de segunda dimensão. A função preponderante do direito o
conduz à face prestacional ou à de defesa, independente da classificação por
dimensões.
A saúde enquanto direito fundamental social é por vezes estudada no
campo dos direitos fundamentais prestacionais, quando se considera que a
função preponderante desse direito fundamental é a prestação material do
Estado. Contudo não podemos esquecer das possibilidades de aferição do direito
fundamental social à saúde em sede dos direitos de defesa ou negativos, onde o
direito à saúde é prestigiado simplesmente pela não possibilidade de danos, pela
abstenção de atitudes lesivas.
11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007, p. 73.
2211
Nesse sentido, pensando o direito fundamental social à saúde enquanto
direito de defesa, ofertamos o exemplo da não submissão a tratamentos não
desejados, como ocorre com as Testemunhas de Jeová em hipótese de
necessária transfusão de sangue. Deve ser respeitada a autonomia do paciente
que, caso contrário, seria usurpado de sua autonomia, sua liberdade religiosa e,
consequentemente, sua dignidade, motivo pelo qual não há obrigação de
submeter o indivíduo a tratamento que conscientemente recusa.12
Assim, o paternalismo encontrado no princípio da beneficência, onde o
profissional da saúde atua tendo em perspectiva sempre o melhor para o
paciente não prestigia (no caso do paciente Testemunha de Jeová) o direito à
saúde, enquanto direito de defesa, na medida em que quem decidiria o melhor
caminho não seria o paciente, mas terceiros, opondo-se à autonomia do maior
interessado.
O paciente deve ser informado de suas possibilidades de tratamento e
das conseqüências da não submissão, sendo a liberdade de decidir e suportar
suas conseqüências parte da dignidade do indivíduo. Esse direito de escolha faz
parte do direto à saúde em sua face de defesa.
Decerto que a face prestacional do direito à saúde é a que revela maiores
complicações. Como dissemos, a Constituição brasileira traz vários direitos
sociais tidos como fundamentais, que não deixaram de ser direitos subjetivos pelo
fato de não serem criadas as condições materiais necessárias à sua fruição, pois
não é intenção do Estado Social de Direito zelar pela igualdade apenas formal.
Nesse sentido surgiria como último recurso a utilização da via forçada de
efetivação dos direitos sociais prestacionais pelo Poder Judiciário, possibilidade
12 Para Maria Isabel Dias Miorim de Moraes e Zelita da Silva Souza, a conclusão é que: “O
respeito à autonomia do paciente deve estender-se aos seus valores religiosos. Tais valores não podem ser desconsiderados ou minimizados por outrem, sobretudo pelos profissionais de saúde, a despeito dos melhores e mais sinceros interesses destes profissionais. Certamente, os profissionais de saúde estarão agindo dentro dos limites da ética médica ao respeitar as crenças religiosas de seus pacientes, provendo-lhes tratamento médico compatível com tais crenças. Os valores religiosos podem ser uma força positiva para o conforto e recuperação do paciente se ele estiver seguro de que seus valores serão respeitados” (MORAES, Maria Isabel Dias Miorim de; SOUZA, Zelita da Silva. A ética médica e o respeito às crenças religiosas. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/ind1v6.htm>. Acesso em: 10 mar. de 2008).
2222
que revela a importância dos direitos fundamentais sociais, que não podem se
submeter ao ânimo do legislador ordinário ou à sorte das legislaturas.
No entanto, a escassez dos recursos face à crescente demanda de
efetivação dos direitos fundamentais é problema de difícil resolução. A saúde, a
assistência social e todas as prestações positivas em sede de direitos
fundamentais acabam por experimentar uma crise de efetividade face às ditas
limitações do Poder Público, o que não retira o titulo de fundamental ao direito à
saúde e tantos outros.
Assumindo o Estado as responsabilidades sobre a assistência da
sociedade, a discussão ganha área ainda maior. Não poderíamos debater a
prestação estatal dos direitos fundamentais sociais e descartar a necessária
discussão sobre a distribuição das riquezas na sociedade, tendo em foco
principalmente as possibilidades do Estado Social e as demandas existentes na
sociedade, principalmente quanto ao direito à saúde.
O que propomos é que seja alcançada a plena efetivação dos direitos
fundamentais de forma justa e realista, o que vai além do assistencialismo de
emergência, tornando o Estado um ente viabilizador da vida social, tendo o
desenvolvimento humano como maior instrumento.
Para o economista Amartya Sen,13 além dos meios usuais para medir o
desenvolvimento de uma sociedade, como o Produto Nacional Bruto (PNB), o
aumento de rendas pessoais, a industrialização, o avanço tecnológico ou a
modernização social, as liberdades14 conferidas às pessoas também influem no
processo de expansão do desenvolvimento. Assim, pensamos que as
13 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, passim. 14 Amartya Sen utiliza a palavra liberdade com a seguinte observação: “[...] a visão da liberdade
aqui adotada envolve tanto os processos que permitem a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais. A privação da liberdade pode surgir em razão de processos inadequados (como a violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos ou civis), ou de oportunidades inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam (incluindo a ausência de oportunidades elementares como a capacidade de escapar da morte prematura, morbidez evitável ou fome involuntária)” (Ibidem, p. 31).
2233
oportunidades efetivamente oferecidas às pessoas para se desenvolverem
ditam a importância dos direitos fundamentais sociais para o desenvolvimento
humano.
O acesso à saúde, à educação, ao trabalho e à moradia, por exemplo, em
que pese sejam direitos fundamentais sociais, não podem ser plenamente
satisfeitos apenas pelo Estado, que deve promover o acesso às oportunidades de
desenvolvimento, não se limitando a assistir os desamparados.
A importância desse desenvolvimento seria a gradual diminuição da
dependência da sociedade do Estado assistente social, ainda que
permanecessem as demais faces da seguridade social, em especial a saúde, que
se daria em termos mais justos e equilibrados.
Quanto ao direito à saúde e aos demais direitos fundamentais sociais, é
importante classificá-los quanto à forma de efetivação, se prestacionais ou de
defesa, e em seguida, sabendo da importância da efetivação dos direitos
fundamentais para o desenvolvimento, pesquisaremos a característica da
proibição do retrocesso, a fim de que possamos encerrar esse breve ensaio da
teoria dos direitos humanos fundamentais.
2.2 O Direito à Saúde: Direito Prestacional ou de Defesa?
É importante que se resista à tendência de vinculação dos direitos
prestacionais aos direitos de segunda dimensão, direitos sociais, bem como dos
direitos negativos aos direitos de primeira dimensão, que mantêm foco na
liberdade individual. Decerto que superficialmente apresentam sim certa
convergência, mas as características prestacional e de defesa podem ser aferidas
tanto nos direitos de primeira quanto nos de segunda dimensão. As classificações
não se excluem.
Gustavo Amaral esclarece que:
2244
[…] os direitos fundamentais investem o indivíduo em um status jurídico no qual lhe é facultado formular pretensões perante o Estado, pretensões essas que podem dirigir-se a uma abstenção estatal (pretensão negativa) ou a uma ação do Estado (pretensão positiva).15
Percebe-se que os direitos de defesa se expressam pela preservação da
liberdade do indivíduo e, no mais das vezes, a abstenção do Estado encerra a
efetividade esperada pelo titular do direito. Aos direitos de defesa, em grande
parte, não são necessárias atuações legislativas regulamentadoras, extraindo-se
da previsão constitucional a necessária carga normativa que viabiliza sua
proteção.
Contudo, segundo dissemos acima, mesmo os direitos prestacionais
possuem uma face negativa e outra prestacional. A discussão vai além da
classificação dos direitos fundamentais em dimensões, sem, contudo,
suprimi-la.
Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet a divisão dos direitos fundamentais em
direitos prestacionais ou direitos de defesa merece atenção:
[…] a graduação da carga eficacial dos direitos fundamentais depende, em última análise, de sua densidade normativa, por vezes igualmente vinculada à forma de proclamação no texto e à função precípua de cada direito fundamental.16
Os direitos fundamentais de defesa são também chamados direitos
negativos e tipicamente podem ser exemplificados pelos direitos de
primeira dimensão, oriundos do momento histórico em que do Estado foi
exigido não avançar sobre a esfera jurídica do indivíduo, garantindo aos
cidadãos sua liberdade face ao poder soberano, daí chamá-los de direitos
contra o Estado.
Ainda para Ingo Wolfgang:
15 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 101. 16 SARLET, 2007, p. 289.
2255
Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de limitar o poder estatal, os direitos sociais (como direitos a prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômica e social. Diversamente dos direitos de defesa, mediante os quais se cuida de preservar e proteger determinada posição (conservação de uma situação existente), os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que objetivam a realização da igualdade material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais.17
Os direitos prestacionais são divididos pela doutrina em prestacionais em
sentido estrito e prestacionais em sentido amplo. Em sentido estrito encontramos
os direitos sociais prestacionais, a necessidade de prestações materiais do
Estado para a promoção do acesso aos direitos sociais. Em sentido amplo, os
direitos prestacionais traduzem a necessidade de atuações do Estado para
proteção e participação da organização e procedimento (prestações normativas
estatais).
Adepto da expressão direitos prestacionais, Robert Alexy faz uma divisão
entre os direitos às prestações positivas do Estado, definindo os direitos
prestacionais em sentido estrito:
Los derechos a prestaciones em sentido estricto son derechos del individuo frente al Estado a algo que – si el individuo poseyera médios financieros suficientes y si encontrase en el mercado una oferta suficiente – podría obtenerlo también de particulares. Cuando se habla de derechos sociales fundamentales, por ejemplo, del derecho a la previsión, al trabajo, lavivienda y la educación, se hace primariamente referencia a derechos a pretaciones en sentido estricto.18
Se os direitos de defesa exigem a dita não ingerência do Estado, os
direitos sociais prestacionais exigem que o Estado atue positivamente para
proporcionar aos cidadãos o acesso aos seus direitos. Direitos sociais com
freqüência exigem do Estado um agir, não apenas para garantir a liberdade, mas
para proporcionar a igualdade.
17 Ibidem, p. 299. 18 ALEXY, 2002, p. 482.
2266
Os direitos prestacionais postos em comparação com os direitos de
defesa proporcionam discussões diversas. Os direitos sociais prestacionais
pedem do Estado uma atitude positiva, ativa, ação, manifestação fática, normativa
e, se necessário, por via judicial.
Quanto aos direitos sociais prestacionais, em qualquer que seja o Estado,
a efetivação há de encontrar algumas barreiras, dentre as quais destacamos a já
anunciada escassez dos recursos do Estado e a ingerência nas políticas públicas
de atenção aos direitos fundamentais da coletividade. As questões da reserva do
possível e do mínimo existencial mantêm sua sede de discussão neste campo, na
efetivação dos direitos prestacionais.
O uso da expressão reserva do possível para restringir o dever de
atuação do Estado na prestação de direitos sociais teve início no Tribunal
Constitucional Federal Alemão.19 Na oportunidade discutiu-se a regulamentação
do processo de admissão ao curso de medicina nas universidades de Hamburg e
da Baviera nos anos de 1969 e 1970 20 e, na oportunidade o Tribunal Alemão
decidiu que: se a admissão universitária for entendida como direito social de
participação nas prestações estatais, então sua restrição decorre do fato de os
direitos de participação são submetidos à reserva do possível, impondo sejam
regulamentados.
Incorporados aos estudos sobre direitos fundamentais, a reserva do
possível e o mínimo existencial não nos parecem elementos dos direitos
fundamentais sociais. Acompanhamos Wolfgang Sarlet que ensina:
Por outro lado, não nos parece correta a afirmação de que a reserva do possível seja elemento integrante dos direitos fundamentais, como se fosse parte do seu núcleo essencial ou mesmo como se estive enquadrada no âmbito do que se convencionou denominar de limites imanentes dos direitos fundamentais. A reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico
19 BVERFGE 33,303 – Numerus Clausus. 20 SCHWABE, Jurgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal alemão. Uruguai: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 656.
2277
e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos, quando se cuidar da invocação – observados sempre os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.21
Assim, em que pese não seja elemento integrante dos direitos
fundamentais, importante notar que a reserva do possível pode funcionar como
limite jurídico e fático ou como garantia, sempre observados os critérios da
proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial.
A teoria do mínimo existencial se consubstancia por exigir o
cumprimento de prestações positivas estatais e ainda, exibe o status negativo
ou de garantia. Essa, porque visa impedir que o Estado ou particulares venham
agredir os direitos fundamentais mínimos inerentes ao ser humano, a outra,
porque exige a atuação do Estado, no sentido de se preservar o mínimo de
direitos para que a sociedade possa criar condições de desenvolvimento de
uma vida digna.
A idéia de impedir que o Estado venha restringir os direitos dos cidadãos
não é nova, pois se fez presente desde a Magna Carta de 1215 e nas
declarações de direitos, onde os movimentos sociais lutaram pela liberdade.
A dignidade humana é um dos princípios básicos garantidos pela
Constituição, constituindo-se um valor fundamental do ser humano que, além de
vincular os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, deve, também, ser
observado nas relações entre particulares. A teoria do mínimo existencial vem
justamente buscar o que há de mais concreto nesses direitos conquistados,
apregoando-se que em um Estado Social devem ser erradicadas as afrontas aos
direitos básicos, indispensáveis para se viver com dignidade (dimensão negativa)
e proporcionar o acesso ao mínimo vital para preservação da dignidade humana
(dimensão positiva).
21 SARLET, 2007, p. 305.
2288
Assegurar esse dito mínimo existencial é tarefa difícil relegada ao Estado
de riquezas limitadas, o que pode ser um fator da não atenção aos direitos
prestacionais sociais sob o argumento da reserva do possível. Dissemos pode ser
e não afirmamos que seja uma causa de não efetividade, pois, como vimos
anteriormente, não há simetria entre a riqueza do Estado e o desenvolvimento e
qualidade de vida no mesmo.
Quanto a ser o direito fundamental à saúde um direito prestacional ou um
direito de defesa, a resposta não é tão simples. Parece-nos inquestionável a face
prestacional do direito à saúde. Mas menos óbvia é a aferição da face negativa do
mesmo direito.
Caso ocorrido no fim da década de 1990 no Município gaúcho de São
Sebastião do Caí nos chama a atenção e ilustra o problema. Em breve relato, o
Poder Executivo municipal propôs e aprovou uma lei para proceder à fiscalização
de profissionais do sexo, que deveriam realizar testes de HIV a cada noventa
dias. A Lei Municipal nº 2.068, aprovada em 1998, estabeleceu que portadores do
HIV não poderiam trabalhar em casas de prostituição. A imprensa deu notícias de
que o então prefeito – e autor da lei – acalentava o projeto desde seus tempos de
secretário municipal de saúde, justificando-o por seu caráter preventivo (não
proliferação da doença na cidade).
A lei foi impugnada judicialmente e a questão chegou ao Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, onde o município de São Sebastião do Caí foi
condenado à obrigação de não fazer com que as pessoas que se entregam, ou
que se supõe entregar à prostituição sejam compulsoriamente submetidas a
exames de saúde para diagnóstico de HIV e DST, não se exigindo a
apresentação dos resultados em qualquer caso. Vejamos:
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO – APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.04.01.031627-9/RS – Da Violação ao Direito Fundamental à Saúde. Com dito anteriormente, a aplicação desta lei contraria a próprio objetivo a que ela se propõe: a proteção da saúde pública. Face à janela imunológica, a apresentação de exame negativo não é garantia de inexistência de contaminação. Entretanto, pode levar a um relaxamento quanto ao uso dos métodos preventivos, como a camisinha. Este é um dos motivos
2299
pelo qual o Ministério da Saúde, a quem compete formular as políticas de saúde no Brasil, e as organizações internacionais na área da saúde têm posições contrárias à realização de testagem compulsória de sangue com o fim de detectar contaminação por DST/AIDS (fls. 128-138).
O fato é muito curioso e revela um vasto campo para estudo,
principalmente na esfera dos direitos fundamentais e controle das políticas
públicas. A atuação positiva do município de São Sebastião do Caí (nordeste
do Estado do Rio Grande do Sul) contra os supostos praticantes da
prostituição no local suprime o direito à liberdade dos indivíduos e pode até
mesmo se revelar prejudicial à política pública de saúde. Exigiu-se do Estado
uma atuação negativa relativamente a um direito social, revelando o quão
equivocado seria vincular os direitos de defesa exclusivamente aos direitos
de primeira dimensão, ou mesmo, e por conseqüência, desconsiderar os
direitos sociais como direitos de defesa, imaginando-os apenas em sua
esfera prestacional.
A face negativa do direito fundamental à saúde impõe que o Estado se
abstenha de atacar a saúde dos indivíduos a qualquer pretexto.
Se, de um lado, o Estado é obrigado a efetivar a prestação de
medicamentos, tratamentos, cirurgias e políticas públicas que prestigiem a
manutenção da saúde do cidadão, não seria lícito, de outro lado, autorizar o
mesmo Estado a afetar, de qualquer forma, a saúde dos seus.
Contudo, não podemos descartar casos extremos em que se imponha a
ponderação de bens e a prevalência do interesse público.
Neste campo, já dissemos sobre a atuação do Estado no caso específico
das Testemunhas de Jeová, onde concluímos que a preservação da dignidade
humana se expressa com o livre consentimento (ou recusa) informado, com a
completa informação ao paciente sobre os meios terapêuticos possíveis e as
conseqüências do não tratamento. Mas e no caso da vacinação compulsória?
Ora, havendo perigo à coletividade haverá a necessidade de imposição ao
3300
indivíduo da aplicação da vacina, pois a liberdade individual não se sobrepõe ao
interesse público (saúde coletiva).22
2.3 O Direito à Saúde e o Retrocesso ou Reversão dos Direitos
Fundamentais
Sendo os direitos fundamentais fruto de tão importantes conquistas, como
assegurar sua evolução e a consagração de seus avanços? A questão relaciona-
se a uma das características dos direitos fundamentais, qual seja, a proibição de
retrocesso.
Na lição de Walter Claudius Rothenburg:
Representando marcos da conquista civilizatória, os direitos fundamentais, uma vez reconhecidos, não podem ser abandonados nem diminuídos: o desenvolvimento atingido não é passível de retrogradação. Há aqui uma proteção traduzida pela proibição de retrocesso, sendo que essa eficácia impeditiva (negativa) é imediata e por si só capaz de sustentar um controle de constitucionalidade (tanto em relação à ação quanto à omissão indevidas).23
Uma vez consagradas, juridicamente, as prestações sociais, o legislador
não poderá mais eliminá-las sem que desapareça a necessidade. A legislação
concretizadora dos direitos fundamentais sociais que se presta ao papel de lei de
22 Quanto à submissão das Testemunhas de Jeová à transfusão de sangue apresentamos o
Acórdão nº 70020868162/2007, Apelação Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O Desembargador Umberto Guaspari Sudbrack foi o relator e decidiu que o médico tem o dever de submeter o paciente ao procedimento que irá salvar sua vida, independente de seu consentimento ou de sua família. O que predomina é a avaliação do médico. O Desembargador Paulo Sergio Scarparo foi o revisor, e decidiu que “[...] uma vez seguidos os procedimentos adequados para a obtenção do consentimento/recusa informado(a), tem-se que foram cumpridas todas as formalidades jurídicas ao caso, não cabendo ao judiciário interferir na relação médico-paciente”. Em que pese ambos tenham negado provimento ao recurso por falta de interesse de agir, restou evidenciada a preservação da lógica do princípio da beneficência no voto do Relator, e a louvável preservação da dignidade humana, o prestígio ao livre consentimento informado, no caso do voto do Desembargador Revisor.
23 ROTHENBURG, 1999, p. 156.
3311
proteção desses direitos faz surgir um dever de não eliminar ou revogar essa lei,
se isso comprometer o grau de concretização alcançado.
Cristina Queiroz alerta, quanto ao princípio da não-reversibilidade dos
direitos fundamentais sociais:
[...] os direitos fundamentais sociais colocam quase sempre um problema quantitativo: quantos meios de subsistência, quanta instrução, quanto trabalho, que habitação? Tudo isso se reflecte nas diferentes ‘técnicas’ de proteção dos direitos fundamentais sociais, fundamentalmente legislativas, administrativas e jurisprudenciais.24
Assim, a estipulação de um parâmetro pela prática reiterada de efetivação
dos direitos prestacionais poderia revelar uma construção social inabalável, fruto
da evolução da sociedade que não mais aceitaria menos do que aquilo que fora
conquistado. A máxima seriedade na elaboração do conceito de direito
fundamental social conquistado, permitiria sim a visualização de uma quantidade
irreversível do mesmo direito.
A defesa da não-reversibilidade pode ser analisada também em paralelo à
tese da reserva do possível. Imaginemos que a proteção das conquistas dos
direitos fundamentais sociais poderia encontrar, no caso concreto,
impossibilidades supervenientes de um Estado que não mais consegue manter
determinado nível de atuação prestacional aos direitos sociais, por exemplo, ao
enfrentar forte crise econômica. Neste caso as impossibilidades do Estado
alteram os limites de suas possibilidades.
Lenio Luiz Streck, nesse ponto específico das possibilidades de crises do
Estado e suas conseqüências nas possibilidades de atuação social:
A crise financeira – ou de financiamento – do Estado parece estar por trás de todas, ou da maioria, das críticas que se fazem a ele e das propostas de sua revisão tendentes a um retorno. É possível
24 QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais
sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 115.
3322
assumir, antecipadamente, que estamos diante de um ponto de não-retorno. Não há como se pensar em uma volta às bases do Estado Mínimo. Este é um caminho fechado. Isto não significa, contudo, que não estejamos sujeitos a ver minguadas algumas de suas características mais marcantes – o que é perceptível nas políticas em voga nos anos 80, em especial com os governos Reagan e M. Thatcher, mas que, mesmo estes não alcançaram plenamente a (des)construção da totalidade dos mecanismos de welfare produzidos ao longo dos últimos 50 anos, principalmente.25
A não-reversibilidade impede retrocessos gratuitos de conquistas sociais.
Mas as condições do Estado Social podem ditar algumas alterações e, isso não
implica retrocesso inconstitucional.
O Direito, enquanto ciência social aplicada, deve ultrapassar a mera
dogmática e alcançar a realidade, indo além da análise do problema, oferecendo
soluções palpáveis e de aplicabilidade imediata. Esta função social urge ser
incessantemente perseguida, sob pena de retrocessão na própria civilização e
seguir ao encontro do Estado Democrático de Direito prometido na Constituição.
Mais que um avanço que se pretende permanente, a não-reversibilidade
dos direitos fundamentais sociais é arma protetora das conquistas do Estado
Social, como a saúde.
O direito fundamental à saúde, tal como previsto na Constituição
brasileira, é “dever de todos e obrigação do Estado” (Art. 196) e, sendo as normas
definidoras dos direitos fundamentais de aplicabilidade imediata (Art. 5º, § 1º), as
restrições de acesso aos tratamentos de saúde por normas infraconstitucionais e
mesmo por normas infralegais se mostram inconstitucionais, por pretenderem
restringir o acesso a um direito fundamental social, ditando as cores de um
retrocesso inaceitável.
O mesmo não se diga sobre o estabelecimento de parâmetros dosadores
da prestação material dos direitos fundamentais sociais, que visam balancear as
necessidades do cidadão com as possibilidades do Estado.
25 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do
Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 58.
3333
Logo, que fique claro: o incremento de normas-regras que instituam
parâmetros limitadores (ou dosadores) na prestação do direito à saúde não
configura retrocesso do direito social, mas necessária equalização.
3344
33 OO DDIIRREEIITTOO ÀÀ SSAAÚÚDDEE NNOO BBRRAASSIILL
3.1 A Positivação do Direito à Saúde nas Constituições
Brasileiras
Historicamente, o direito sanitário vem crescendo em importância nos
textos constitucionais ao longo da trajetória histórica brasileira. Quanto mais
desenvolvida a estruturação institucional do Estado, ou seja, a solidificação das
instituições que o compõem e a legitimação democrática dos exercentes do
poder, maior a preocupação dos textos com o direito fundamental à saúde.
A Constituição do Império, de 25 de março de 1824, tratou muito do tema.
Decerto que o ambiente histórico revela que a preocupação maior era com a
independência da Corte Portuguesa. O delicado momento político revela a
despreocupação do Constituinte com a questão sanitária, já que o termo saúde é
encontrado uma única vez, desta forma:
Art. 179: A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] XXIV – nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos cidadãos.
Como se percebe, a citação demonstra uma preocupação do Constituinte com
as condições de trabalho face à saúde e, não da saúde de todo e qualquer cidadão em
toda e qualquer situação. Trata-se de uma previsão constitucional preocupada com os
tempos de trabalho escravo e desumano, em um momento em que o país precisava
demonstrar sua sensibilidade e humanidade para o Velho Mundo.
Nenhum trabalho poderia ser proibido desde que respeitasse, dentre
outras condições, a saúde dos cidadãos.
3355
O próximo texto constitucional chega em 24 de fevereiro 1891 e, a
constituição republicana não utiliza a expressão saúde em momento algum,
apenas fez abstrata menção à proteção das “[...] garantias e direitos não
enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos
princípios que consigna”.26
Em 1934, a Constituição promulgada aos 16 de julho revela influências da
Constituição de Weimar, como na adoção do modelo de competências
concorrentes entre a União e os Estados-Membros. E é assim que o direito à
saúde aparece no texto:
Art. 10: Compete concorrentemente à União e aos Estados: I – velar na guarda da Constituição e das leis; II – cuidar da saúde e assistência públicas.
Note-se que a Constituição de 1934 aponta a competência concorrente
dos Estados e União para os cuidados na área da saúde e assistência públicas.
Não menciona a competência normativa, tampouco logra distinguir
expressamente a saúde da assistência social.
Já em 10 de novembro de 1937, tem-se o surgimento de uma nova
Constituição, o que revela que os direitos fundamentais encontravam poucos
espaços de rigidez constitucional para se firmarem no ordenamento pátrio.
A Constituição Federal de 1937 traz à União a competência normativa
privativa sobre a defesa e proteção da saúde, dando especial destaque à saúde
infantil:
Art. 16: Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias: [...] XXVII – normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança.
26 Constituição Brasileira de 1891, Art. 78: A especificação das garantias e direitos expressos na
Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna.
3366
A preocupação do Constituinte de 1937 com a questão sanitária foi um
pouco além, quando, no Art. 18 do Texto, acrescentou que, independentemente
de autorização, os Estados poderiam legislar para suprir as deficiências de lei
federal existente ou atender às peculiaridades locais sobre a assistência pública,
obras de higiene popular, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes
medicinais. A lei estadual seria constitucional se visasse apenas complementar a
norma federal ou, quando não houvesse lei federal, para regulamentar a situação
carente de atenção normativa federal.
A próxima Constituição chega em 18 de setembro 1946 e revela a
competência da União para defender e proteger a saúde (Art. 5º, inc. XV, alínea
‘b’). A legislação estadual será complementar quanto às matérias de competência
da União.
O Art. 89, inc. III, da Constituição de 1946 indica que os atentados
contra os direitos sociais praticados pelo presidente da República seriam
crimes de responsabilidade, mas previsões como essas não teriam abrigo no
ambiente político que se seguiu. A Constituição de 24 de janeiro de 1967 e a
Emenda Constitucional nº 01, de 17 de outubro de 1969, revelam o
autoritarismo, o foco principal seria a segurança nacional e o
desenvolvimento econômico-social.
Em 1967, competia à União estabelecer planos nacionais de saúde, bem
como legislar sobre normas gerais de defesa e proteção da saúde. Já em 1969,
competia à União estabelecer e executar planos nacionais de saúde, bem como
planos regionais de desenvolvimento. Ou seja, a Emenda Constitucional nº 01 de
1969 centraliza ainda mais a abordagem do direito à saúde, prevendo a execução
de planos de saúde e de desenvolvimento regionais nas mãos da União. A divisão
orçamentária e a vinculação de verbas à saúde também faziam parte do Texto de
1969.
Chegando à Constituição de 1988, encontramos um ambiente político
sedento por democracia e ferido pelo período de autoritarismo. A positivação, por
vezes, redundante dos direitos fundamentais sociais não deixa dúvidas.
3377
Dispôs no Art. 6º que “são direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados”. O direito à moradia foi acrescentado
posteriormente com a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.
Atentou-se para o fato de o salário mínimo dever ser capaz de atender às
necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família com “[...] moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência
social” (Art. 7º, inc. IV).
A competência é comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência (Art. 23, inc. II). E mais, compete à União, aos
Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa
da saúde (Art. 24, inc. XII).
Aos Municípios, a Constituição determina a tarefa de prestar, com a
cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à
saúde da população (Art. 30, inc. VII). A União e os Estados poderão intervir nos
Municípios quando estes não aplicarem o mínimo de receita exigido nas ações e
serviços públicos de saúde (Art. 35, inc. III)27.
A saúde tem suas ações e serviços elevados ao patamar de relevância
pública, impondo ao Poder Público que sobre elas legisle, regulamente, fiscalize e
controle, já que sua execução pode ser feita diretamente ou através de terceiros
e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
O Constituinte de 1988 determina que a saúde é direito de todos e dever
do Estado e consideram-se de relevância pública as ações e serviços de saúde
(Arts. 196 e 197).
O grande marco prático da nova ordem sanitária trazida pela Constituição
de 1988 foi a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, onde as ações e
27 Apenas de cogita de intervenção federal da União nos Municípios localizados nos Territórios
Federais.
3388
serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com a descentralização, com
direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade
para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e
participação da comunidade (Art. 198).
Com essa visão panorâmica do que foi positivado sobre saúde em nossas
Constituições, passaremos a analisar a repartição constitucional de competências
e o Sistema Único de Saúde.
3.2 Repartição Constitucional de Competências na Área da
Saúde
Sendo a saúde um direito de todos e dever do Estado e, sendo o Brasil
um Estado Federal, há uma repartição de competências entre os entes
federativos (União, Estados-Membros, Municípios e Distrito Federal) para o
cumprimento desse dever.
As necessidades sociais crescentes levaram o Estado a intervir na vida
social e econômica do país, visando proporcionar a igualdade material entre os
indivíduos. Essa cooperação havida no Estado Social leva ao chamado Federalismo
Cooperativo, que nada mais é que a atuação em conjunto da União e dos Estados-
Membros e Distrito Federal para combate dos problemas sociais e econômicos.
No estudo da repartição de competências constitucionais encontramos,
de um lado, as competências privativas que têm origem no federalismo dual, onde
as esferas de atuação dos entes são muito bem divididas e, de outro, as
denominadas competências concorrentes, fruto do federalismo cooperativo.
A repartição horizontal se coaduna com o federalismo dualista, onde as
atribuições dos Estados-Membros e da União jamais se confundem. Já a
repartição vertical de competências encontra sua explicação no federalismo
3399
cooperativo, com a criação de matérias de competência concorrente entre os
entes federados.
A Constituição combinou a repartição de competência horizontal e
vertical, transferindo para cada ente federativo, uma parcela de poder político
para que cuidasse de determinadas matérias de competência privativa
(competência horizontal) e, incluiu áreas de competência conjunta e integrada
entre os entes federativos (União, Estados-Membros, Distrito Federal e
Municípios), competência vertical.
É necessário, ainda, fazermos uma breve explanação sobre a
competência material e legislativa. A primeira relaciona-se a toda atividade
concreta do Estado, a segunda é atribuição legiferante dos entes federativos. Na
Constituição de 1988, a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os
Municípios detêm competência privativa, mas também dividem competências
denominadas concorrentes.
Aos Estados-Membros atribuiu-se a competência residual, que vem prevista
no Art. 25, § 1º, da Constituição Federal. Quanto ao Distrito Federal, esse reúne as
competências legislativas dos Estados-membros e dos Municípios (Art. 32, § 1º).
O Art. 23 da Constituição Federal cuida da competência material
concorrente. Interessa ao nosso estudo dizer que a União, os Estados-membros,
o Distrito Federal e os Municípios detêm competência comum para cuidarem da
saúde. A divisão das competências entre concorrentes e exclusivas visa a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a
marginalização, reduzindo desigualdades regionais, como expresso no Art. 3º,
incs. I e III da Constituição Federal.
No campo legiferante, a competência concorrente é prevista no Art. 24 da
Constituição Federal. Trata-se de uma divisão de competência baseada em
normas gerais e normas especificas. A União é a geradora da normatização geral,
ficando a cargo dos Estados-membros e do Distrito Federal a edição de normas
específicas.
4400
Deixando a União de editar as normas gerais, cabe ao Estado-membro e
ao Distrito Federal, conforme o § 3º do Art. 24 da Lei Maior, o encargo da
legislação plena, isto é, a elaboração tanto das normas gerais como das
específicas. No entanto, se a União outrora omissa resolve editar as normas
gerais, estas têm o poder de suspender a eficácia das normas contrárias editadas
pelos Estados-membros ou Distrito Federal.
Embora o Art. 24 não trate expressamente dos Municípios, eles têm sim
competência legislativa concorrente, ao menos para os assuntos de interesse
local, suplementando a legislação federal e estadual no que couber, nos termos
do Art. 30, inc. II. Havendo interesse, o Município pode lançar mão de normas
específicas para sanar lacunas na legislação estadual ou federal.
Não obstante, os Municípios possuem também competência legislativa
sobre os assuntos de interesse local consoante o Art. 30, inc. I, da Constituição
Federal de 1988.
Dissemos que a competência é concorrente entre os entes políticos no
que diz respeito aos cuidados e às obrigações decorrentes do setor da saúde
pública. A competência material comum, prevista no Art. 23, inc. II, da
Constituição Federal, estabelecendo a obrigação na prestação dos serviços
públicos de saúde, é para todos os entes políticos.
Quando trata dos Municípios e da competência material concorrente na
área da saúde, a Constituição traz uma norma de reforço no Art. 30, inc. VII:
compete aos Municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União
e dos Estados, serviços de atendimento à saúde da população”.
Tratando-se, agora, de competência legislativa concorrente, estabelece
o Art. 24 da Constituição que compete à União, aos Estados-membros e ao
Distrito Federal legislarem concorrentemente sobre proteção e defesa da
saúde. Cabe à União editar normas gerais que devem ser levadas em conta
pelos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios ao editarem normas
suplementares.
4411
Assim, a União deve preocupar-se em editar normas regentes das
normas suplementares dos demais entes federativos, levando em conta que não
poderá ser específica em excesso, para não afastar a norma federal da realidade
local (e por óbvio não atingir a competência do mesmo), tampouco ser tão
genérica que represente um abandono da competência legislativa ao sabor das
leis regionais.
A expressão normas gerais causa divergências doutrinárias por ser um
conceito de natureza indeterminada, trazendo dificuldades hermenêuticas. Em
direito sanitário, interessa dizer que normas gerais oriundas da legislação federal
seriam o equivalente a trilhos centrais da política sanitária, dando aos entes
federativos as diretrizes e os valores a serem atendidos.
As Leis nos 8.080/90 e 8.142/90 foram editadas pela União contendo as
normas gerais básicas em matéria de saúde. Cuidam das condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes, estruturando o SUS e dizendo da participação da
comunidade na sua gestão.
3.3 O Sistema Único de Saúde – SUS
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, conceitua o SUS como o
conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições
públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das
fundações mantidas pelo Poder Público, incluídas as instituições públicas
federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção
de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados e, de
equipamentos para saúde, garantida, também, a participação complementar da
iniciativa privada no Sistema Único de Saúde.
De início indagamos: o que encerra a unidade desse sistema de saúde?
Na busca do conteúdo dessa unidade Marlon Alberto Weichert identifica quatro
4422
elementos que nos permitirão responder à questão: a) a obrigatoriedade de todos
os entes federativos o integrarem; b) a possibilidade de participação dos entes
estaduais e municipais na formulação da política nacional de saúde; c) o custeio
federal, ou seja, compete à União instituir e cobrar contribuições de seguridade
social, não esquecendo que esta não é a única fonte de custeio das ações do
SUS; d) o mútuo controle da atuação dos entes federativos.28
Único é o sistema porque exige a participação de todos os entes
federativos e não admite que os mesmos criem sistemas de saúde paralelos ao
SUS. Os entes locais são coordenados pelo central, que distribui a realização de
tarefas, mas admite a participação de todos na formulação da política nacional.
Quanto ao custeio federal enquanto fator de unificação do sistema de
saúde, Weichert arremata:
O orçamento da seguridade social não é, porém, a única fonte de financiamento das ações do SUS, devendo a ele se somar recursos orçamentários próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (§ 1º do Art. 195 e parte final do parágrafo primeiro do Art. 198). Explicamos melhor. A Constituição da República (Art. 165, § 5º) estipulou que o orçamento anual federal seria desdobrado em: a) orçamento fiscal, alimentado sobretudo pelos impostos, b) orçamento de investimento das empresas estatais federais, e c) orçamento da seguridade social. Este último – o orçamento da seguridade social – refere-se diretamente às ações de saúde, previdência e assistência social, tendo sido contemplado com autonomia formal para fins de facilitação do planejamento e controle sobre a arrecadação e aplicação dos seus recursos. O orçamento anual, porém, continua a ser uno, apenas subdividido em três áreas.29
Já quanto ao mútuo controle dos entes federativos o sistema de saúde é
único conquanto coordenado pela União, mas com a execução de seus serviços
efetivados de forma regionalizada, com ênfase na atuação municipal. Tal
coordenação aponta para a existência de um dever de preservação da unidade do
sistema, zelando pela efetivação das diretrizes centrais da política nacional.
28 WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação da Constituição brasileira. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 185-197. 29 Ibidem, p. 190.
4433
Portanto não se diga que o sistema de saúde é ‘único’ por ser
centralizador, muito pelo contrário, a criação de um sistema de saúde que
contornasse as dificuldades impostas pela centralização (administrativa e de
recursos), transferindo às regiões a direção do sistema inspirou criação do
SUS.
Assim, a direção do SUS é única em cada esfera do governo, em âmbito
nacional pelo Ministério da Saúde, em âmbito estadual, no Distrito Federal e
municípios, pelas respectivas Secretarias de Saúde.
No Capítulo 2 foi abordada a teoria dos princípios jurídicos. As normas
jurídicas podem ser divididas em normas-regras e normas-princípios. As normas-
regras têm um grau de concretude maior. As normas-princípios revelam uma
opção fundamental do Legislador Constituinte servindo de parâmetro para
aplicação e interpretação jurídica. Princípios vinculam comportamentos e obrigam
aqueles aos quais são dirigidos, têm força de normas jurídicas e não de simples
recomendações.
Retomada a teoria, interessa agora apresentar os princípios que
reputamos mais importantes relativos ao SUS, extraídos do Texto Constitucional e
da Lei nº 8.080/90, quais sejam:
a) princípio do acesso universal e igualitário;
b) princípio do atendimento integral;
c) princípio da descentralização;
d) princípio da regionalização e hierarquização dos serviços de saúde;
e) princípio da participação da comunidade e,
f) princípio da participação da iniciativa privada.
4444
O princípio do acesso universal e igualitário vem previsto no Art. 196 da
Constituição e estabelece ser a saúde direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e
serviços para sua promoção e recuperação.
A saúde é um direito fundamental e como tal aplica-se o critério da
maior efetividade possível (Art. 5º, § 1º da Constituição da República). No
SUS, a negativa de atendimento sob qualquer argumento é inconstitucional.
Decerto que a afirmação está sujeita às indagações relativas às
possibilidades do Estado e à razoabilidade das demandas, mas objetivamente
o socorro às portas do Sistema Único de Saúde é sempre possível, o acesso
é universal e igualitário.
É através da estrutura do SUS que o Poder Público cumpre o princípio do
acesso universal. O Estado presta esse serviço por meio de órgãos da
administração centralizada e descentralizada, como hospitais e demais unidades
de atendimento existentes na estrutura da rede pública conforme dita o Art. 4º da
Lei nº 8.080/90. Mediante contratos ou convênios estabelecidos entre o SUS e a
iniciativa privada, também se efetiva o acesso, atuando a rede privada de forma
complementar, conforme o Art. 199, § 1º, da Constituição; o Art. 4º, § 2º, e o Art.
24 e seguintes da Lei nº 8.080/90.
Além de universal, o acesso ao sistema público de saúde deve ser
também igualitário, no sentido de que não pode haver privilégios ou
discriminações pelo Poder Público. É inconstitucional, por exemplo, a reserva de
leitos em hospitais públicos para o atendimento de clientes privados, criando uma
desigualdade material inaceitável.
Já no Art. 198, inc. II, da Constituição, e no Art. 7, inc. II, da Lei nº
8.080/90, encontramos o princípio do atendimento integral, cujo enunciado revela
que o Estado deve oferecer o atendimento ao cidadão de forma integral, ou seja,
tratamento para qualquer patologia, ainda que de elevada complexidade e
elevado custo. É princípio constitucional que obriga o Poder Público a ofertar
4455
tratamento em todas as especialidades e complexidades, ainda que se trate de
mal raro.
Marlon Alberto Weichert lembra que o princípio do atendimento integral é
considerado como um dos vilões das finanças do sistema público de saúde, mas
trata-se uma enorme conquista social. O autor lembra também que:
Até um passado bem recente, não se exigia que igual preceito fosse cumprido por empresas de seguro saúde e de assistência médica, o que levava à utilização dos serviços de alta complexidade do SUS por cidadãos que, usualmente, se serviam dos serviços privados. Com a recente Lei nº 9.656/98, porém, tal inversão tende a ser minimizada, acabando-se com a hipocrisia do pseudo seguro/plano de saúde, que cindia o incindível, ou seja, a saúde do ser humano.30
A complexidade do atendimento à saúde humana não permite a
vinculação de cobertura a determinados eventos, sendo comum a ocorrência de
complicações na evolução do problema. Assim, todo o tratamento deve ser
abrangido pela prestação de saúde suplementar contratada.
O Art. 6º, inc. I, alínea ‘a’, da Lei nº 8.080/90, que estatui estar incluída no
campo de atuação do SUS a execução de ações de assistência terapêutica
integral, inclusive farmacêutica e, bem assim, no âmbito do Estado de São Paulo,
a Lei Complementar nº 791, de 09 de março de 1995 (Código Estadual de
Saúde), cujo Art. 17, inc. II, alínea ‘b’, estabelece que compete à direção estadual
do SUS a realização, em articulação com os Municípios e outros setores da
administração pública estadual, “[...] o atendimento integral dos portadores de
deficiências, de caráter regionalizado, descentralizado e hierarquizado em níveis
de complexidade crescente, abrangendo desde a atenção primária de saúde até o
fornecimento dos equipamentos necessários à sua integração social”. Dispõe
ainda o Art. 24, § 8º, que “[...] as unidades básicas de saúde e os pronto-socorros
públicos manterão em funcionamento, em caráter permanente, serviços de
farmácia para o fornecimento gratuito de medicamentos aos pacientes nele
atendidos”.
30 Ibidem, p. 170.
4466
Preocupado com a aplicação do princípio da integralidade da
assistência terapêutica e dispensação de medicamentos, o Senador pelo
Estado do Acre, Tião Viana, apresentou projeto de lei que visa acrescentar o
Art. 6º-A à Lei nº 8.080/90,31 estabelecendo limitadores à integralidade da
assistência. A preocupação com a judicialização do princípio, levando ao
crescente volume de medidas liminares concedidas contra o Estado justifica
a apresentação do projeto. O argumento de que o marketing das indústrias
farmacêuticas junto aos médicos faz com que esses profissionais transfiram
ao paciente a idéia de imprescindibilidade do medicamento é lamentável e
cruel.
A questão das possibilidades do Estado Social no âmbito sanitário, por si
só, clama pelo estabelecimento de regras na distribuição dos recursos públicos.
Falta ao mencionado projeto de lei do Senador Tião Viana a desconcentração das
decisões sobre o que seria compreendido dentro das possibilidades do Estado.
No mais, a obrigatoriedade de indicação dos medicamentos exclusivamente por
profissionais da rede pública é inconstitucional por ofensa ao princípio da
igualdade, já que o único fator de discriminação entre tais profissionais e os
médicos particulares (ou prestadores de serviços de saúde suplementar) é o
vínculo profissional com o Estado.
31 Lei nº 8.080/90, Art. 6º-A: A integralidade da assistência terapêutica, inclusive farmacêutica,
de que trata a alínea d do inciso I do art. 6º consiste em: I – oferta de procedimentos terapêuticos ambulatoriais e hospitalares constantes de tabelas
elaboradas pelo gestor federal do SUS, realizados no território nacional em serviço próprio, conveniado ou contratado;
II – dispensação de medicamento prescrito em serviço próprio, conveniado ou contratado, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas instituídas pelo gestor federal do SUS em protocolo clínico para o agravo à saúde a ser tratado.
§ 1º – Na falta do protocolo a que se refere o inciso II do caput, a dispensação limitar-se-á aos produtos constantes de relações de medicamentos essenciais e de medicamentos de dispensação excepcional elaboradas pelo gestor federal do SUS.
§ 2º – São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de procedimento clínico ou cirúrgico
experimental; I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de procedimento clínico ou cirúrgico
para fins estéticos ou embelezadores, bem como de órteses e próteses para os mesmos fins;
III – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, nacional ou importado, sem registro no órgão público brasileiro competente.
§ 3º – Para os efeitos desta lei, procedimento clínico ou cirúrgico para fins estéticos ou embelezadores é aquele realizado com o objetivo de corrigir alterações de partes do corpo decorrentes do processo normal de envelhecimento ou de alterar variações anatômicas que não causem disfunções orgânicas, físicas ou psíquicas.
4477
Outro importante princípio é o da descentralização, referida na Lei
Orgânica da Saúde editada pela União (Lei nº 8.080/90 e Lei nº 8.142/90),
regulamentadas por Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Saúde.
O objetivo de tais normas é a transferência para os Estados e, principalmente,
para os Municípios de ações de saúde anteriormente concentradas na esfera
federal.
As Normas Operacionais Básicas – NOB32 acima mencionadas
proporcionaram, de forma crescente, a transferência de competências da União
para os Estados e Municípios a fim de executar as ações preventivas e curativas
na área da saúde. Os Municípios foram assumindo a gestão dos Sistemas de
Saúde, avançando a descentralização. Note que a NOB nº 96 (Portaria GM/MS nº
2.203, de 06 de novembro de 1996) previa duas modalidades de gestão da saúde
municipal: a Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada e a Gestão Plena do
Sistema Municipal. Já na esfera estadual há duas modalidades de gestão: a
Gestão Avançada do Sistema Estadual e a Gestão Plena do Sistema Estadual.
Ocorre que a aludida NOB 96 foi alterada no ano de 2004 pela Portaria
GM/MS nº 2.023, de 23 de setembro de 2004, que concretiza a intenção
descentralizadora do sistema público de saúde criado em 1988, ditando que os
municípios e o Distrito Federal sejam responsáveis pela gestão do sistema
municipal de saúde na organização e na execução das ações de atenção básica.
Para tanto, cessa o processo de habilitação de municípios em Gestão Plena de
Atenção Básica e Gestão Plena de Sistema Municipal trazidos pela NOB SUS nº
01/96, e ainda extingue a condição de Gestão Plena de Atenção Básica e Gestão
Plena de Atenção Básica Ampliada.
A municipalização da saúde é um dos objetivos estabelecidos pelo Art.
30, inc. VII, da Constituição, que prevê a competência do Município para manter,
com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de
atendimento à saúde da população. Porém, é mais adequado manter
32 O SUS está amparado em uma vasta legislação, cujo tripé principal é formado pela
Constituição Federal de 1988, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e a Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Complementarmente existem as Normas Operacionais do SUS.
4488
determinados serviços de saúde nas mãos da União e do Estado que repassá-los
aos Municípios, sem estrutura para geri-los, eficazmente. As peculiaridades e
necessidades locais devem ser levadas em conta antes de o Município assumir a
gestão plena do setor da saúde.
A União e o Estado devem colaborar técnica e financeiramente com os
Municípios que assumirem a gestão plena, mediante repasses mensais de
quantias suficientes para o bom e regular atendimento à saúde, como previsto no
Art. 30, inc. VII, da Constituição. A direção única visa manter a unidade do SUS
nos níveis nacional, estaduais e municipais, evitando a fragmentação (Art. 198,
inc. I da Constituição da República e Art. 9º da Lei nº 8.080/90), sendo exercida
pelo Ministério da Saúde, âmbito federal e pelas secretarias estaduais e
municipais.
Atenção primária abrange os procedimentos corriqueiros de prevenção,
diagnósticos e tratamento, relacionados à clínica geral (pediatria, ginecologia,
etc.). Gira em torno dos problemas mais comuns de saúde e prevenção da
população, cuja execução é realizada pelas Unidades Básicas de Saúde –
UBS. Em seguida, temos o nível secundário ou de média complexidade, que
abrange os serviços ambulatoriais e hospitalares, com profissionais
especializados e utilização de recursos tecnológicos de apoio a diagnósticos e
terapêuticos (oftalmologia, urologia, cardiologia, etc.), que podem ser
prestados pelo Município ou em consórcios intermunicipais de saúde (no caso
de pequenos municípios).
Os serviços de alta complexidade necessitam de recursos tecnológicos de
ponta e a custos elevados, como na oncologia (v.g., radioterapia e quimioterapia),
e outros serviços de altas especialidades. Os recursos financeiros provêm
principalmente da União, que arrecada a maior parcela de verbas destinadas à
saúde. A execução das atividades normalmente é realizada em municípios sede
de pólos regionais de desenvolvimento.
Quanto à regionalização e hierarquização referidas no Art. 198, caput, da
Constituição, as ações e serviços de saúde constituem um sistema único. Isso
4499
significa que os esforços das redes públicas federal, estaduais e municipais
devem ser somados e os serviços racionalizados de forma que o atendimento
seja feito de forma articulada e integrada, evitando desperdícios financeiros e
duplicidade de serviços idênticos.
Ainda para Weichert, quanto ao princípio da regionalização e
hierarquização:
[...] o objetivo primeiro do SUS é articular todos os serviços públicos de saúde existentes no país para que, atuando de forma ordenada, possa haver a otimização dos escassos recursos sociais em todos os níveis da federação. Com efeito, a atuação conjunta dos entes públicos propicia um ganho de escala e evita a sobreposição de estruturas [...]. Dividindo-se a rede em níveis hierarquizados de complexidade (v.g., atendimento primário, baixa, média e alta complexidade) e distribuindo-se as unidades por regiões, cria-se uma espécie de pirâmide de serviços, de modo a que haja uma distribuição abundante de serviços primários e de baixa complexidade em todas as localidades (tarefa primordial dos municípios) e, conforme a extensão geográfica e a densidade populacional, sucessivamente, serviços de média e alta complexidade. Não há, efetivamente, necessidade de grande número de hospitais de alta complexidade, ou seja, de municípios o manterem, sendo esta tarefa mais afeta aos Estados, que têm domínio regional da situação da saúde. Fundamental, porém, é que esses serviços estaduais estejam em harmonia, integrados, com os serviços municipais de atendimento primário e de baixa complexidade, de modo a racionalizar os custos sem prejuízo aos usuários.33
A disponibilização de atendimentos de alta complexidade em vários
pontos do país em uma mesma área de atendimento pode ser desnecessária e
pouco eficiente face à escassez de recursos, motivo pelo qual a Lei nº 8.080/90
apontou como uma das diretrizes do SUS a “capacidade de resolução dos
serviços em todos os níveis de assistência” e “organização dos serviços públicos
de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos” (Art. 7º, incs. XII e XIII).
A oferta de centros de referência regionalizados, em áreas de alta especialização
técnica, pode ser suficiente, desde que atendidas as demandas por transporte e
acesso físico dos pacientes residentes em locais distantes do local de
atendimento.
33 WEICHERT, 2004, p. 165.
5500
Nesse Sistema Único de Saúde a participação da comunidade é
importante e vem prevista no Art. 198, inc. III, da Constituição, que estabelece a
democracia participativa no campo da saúde (Art. 1º, § 1º, da Constituição
Federal). A Lei nº 8.142/90 estabelece mecanismos de participação popular na
gestão do SUS, como as instâncias colegiadas populares, de atuação nas três
esferas de governo. As instâncias colegiadas são as Conferências de Saúde e os
Conselhos de Saúde. Cabe às Conferências de Saúde avaliar a situação da
saúde e propor diretrizes para a política de saúde nos níveis federal, estadual e
municipal, reunindo-se a cada quatro anos. Os Conselhos de Saúde funcionam
permanentemente, nas três esferas de governo e, possuem caráter deliberativo,
sendo suas decisões homologadas pelo Chefe do Executivo correspondente.
Suas atribuições são de fiscalização de recursos financeiros (geridos por um
fundo próprio, separado das demais verbas do tesouro), formulação de
estratégias e controle da política de saúde.
O legislador da Lei nº 8.142/90 estabeleceu que os Estados e
Municípios que não constituírem os referidos Conselhos deixarão de receber
as verbas do Fundo Nacional de Saúde. Assim, se o Município fica inerte, os
recursos que eram a ele destinados ficam a cargo da administração do Estado.
E o Estado, por sua vez, se não instituir o Conselho, perde a gerência dos
recursos para a União.
A Lei nº 8.142/90 previu, também, que os usuários irão compor metade dos
membros das Conferências e Conselhos de Saúde (Art. 1º, § 4º). As Conferências e
os Conselhos de Saúde são compostos por representantes do governo, prestadores
de serviços, profissionais da saúde e usuários (Art. 1º, § 20).
Os membros dos Conselhos de Saúde podem ter amplo acesso às contas
bancárias ou outros dados relevantes relativos à gestão dos recursos financeiros
destinados à saúde, decorrência do princípio da publicidade da Administração
(Art. 37, caput, da Constituição Federal e Art. 33, caput, da Lei nº 8.080/90, que
estabelece que “os recursos financeiros do SUS serão depositados em conta
especial, em cada esfera de sua atuação, e movimentados sob fiscalização dos
respectivos Conselhos de Saúde”).
5511
Com isso, pretendeu-se gerar transparência e otimizar a fiscalização,
dotando o sistema público de mecanismos de controle interno, como as auditorias
realizadas pelas Unidades de Avaliação e Controle existentes no âmbito do SUS,
sem contar com os controles externos dos Tribunais de Contas, Poder Legislativo
(nas comissões especiais de inquérito), Ministério Público, Defensorias Públicas,
Polícia Civil ou Federal, além do controle popular a ser feito, principalmente, pela
via dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Saúde.
O princípio da participação da iniciativa privada é encampado no Art. 1º,
inc. IV, segunda parte; Art. 170, caput e no Art. 199, caput, todos da Constituição
Federal de 1988, sendo que, este último, cuida da livre iniciativa na assistência à
saúde.
Como os serviços de saúde são de relevância pública (Art. 197 da Magna
Carta), o Estado pode legitimamente regulamentar, controlar e fiscalizar os
serviços privados de atenção à saúde, sendo que a interferência do Estado no
setor privado é essencial para garantir que as empresas privadas não tratem a
saúde, que é um direito fundamental, como uma prestação de serviços e
mercadorias menores.
A atuação da iniciativa privada no SUS é autorizada pelo § 1º do Art. 199
da Lei Maior, que estabelece: “As instituições privadas poderão participar de
forma complementar do SUS, seguindo diretrizes destes, mediante contrato de
direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem
fins lucrativos”. Quer dizer que cabe primeiramente ao Poder Público, através de
rede própria, propiciar o atendimento à saúde; caso não tenha ele recursos ou
surjam deficiências de equipamentos, deve então recorrer à rede privada como
complementação.
A participação da iniciativa privada é feita segundo regras de direito
público, seguindo as diretrizes do SUS, tendo preferência as entidades
filantrópicas e sem fins lucrativos. No entanto, havendo necessidade, o Poder
Público pode contratar as empresas privadas com fins lucrativos para prestar o
serviço, levando em conta o critério do interesse público. Entidades privadas de
5522
natureza filantrópicas e finalidade não lucrativa (como as Santas Casas e Casas
de Caridade) podem receber recursos públicos para a aquisição de equipamentos
ou custeio de atividades, caso tenham convênios ou contratos com o SUS.
Em 1983, implantou-se o plano AIS (Ações Integradas de Saúde), o
primeiro desenho estratégico de co-gestão, de desconcentração e de
universalização da atenção à saúde. Em 1986, foi realizada a 8ª Conferência
Nacional de Saúde e, no ano seguinte, criou-se o SUDS – Sistema Unificado e
Descentralizado de Saúde, que representou a desconcentração das atividades do
INAMPS para as Secretarias Estaduais de Saúde.
Aos 05 de outubro de 1988, nasce o Texto Constitucional que normatiza o
SUS (Arts. 198 a 200), com as alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº
29, de 13 de setembro de 2000 e, regulamentado pelas Leis nos 8.080, de 19 de
setembro de 1990 e 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Com a publicação do Decreto nº 99.060, de 07 de março de 1990, o
Ministério da Saúde ganha a administração do Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social, que deixa o Ministério da Previdência e acaba
extinto em 1993, sendo suas funções, competências, atividades e atribuições
absorvidas pelas instâncias federal, estadual e municipal do SUS.34
No Art. 200 da Carta Magna, consta a competência do SUS. A Lei nº
8.080/90 traçou mais profundamente as atribuições comuns dos entes políticos
em relação ao SUS (Arts. 15 a 18), sendo essas atividades administrativas. A
norma infraconstitucional atribui à União a coordenação geral do SUS, deixando
para os demais entes federativos, em especial os Municípios, as atividades de
execução das atividades. Dessa forma, racionalizou os serviços evitando
desperdícios de recursos públicos e duplicidade de ações.
A Lei nº 8.080/90 traçou o organograma de atuação coordenada de todos
os entes políticos no setor da saúde, objetivando esforços conjuntos, como se
34 Lei nº 8.689, de 27 de julho de 1993.
5533
espera de um modelo de federalismo cooperativo. Podemos ilustrar com o Art. 16,
inc. III, letra ‘c’ e ‘d’ e incs. VI e VII;35 Art. 17, inc. IV, letras ‘a’ e ‘b’ e inc. XIII;36 e,
Art. 18, inc. IV, letras ‘a’ e ‘b’ e inc. IX,37 que tratam das ações de vigilância
sanitária nas fronteiras, portos e aeroportos, que são de atribuições da União,
com a colaboração dos Estados e Municípios. Os demais setores de atividade
ficam a cargo do Município, com a colaboração da União e dos Estados. Assim,
ocorre uma verdadeira integração dos entes federativos, com o objetivo voltado à
prevenção da saúde da população.
Até aqui demos notícias do direito que positivou a política sanitária
brasileira, com ênfase na postura normativa pós 1988, com a nova ordem
constitucional e a criação e implantação do SUS. Doravante trataremos do
assunto sob os aspectos práticos de sua efetivação, enfocando o funcionamento
e a efetivação do direito fundamental à saúde, voltando sempre que necessário
aos temas tratados, mas com a nova abordagem já sugerida.
35 Art. 16: A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete: [...] III – definir e coordenar os sistemas: [...] c) de vigilância epidemiológica; e d) vigilância sanitária. [...] VI – coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica; VII – estabelecer normas e executar a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras,
podendo a execução ser complementada pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. 36 Art. 17: À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete: [...] IV – coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços: a) de vigilância epidemiológica; b) de vigilância sanitária. [...] XIII – colaborar com a União na execução da vigilância sanitária de portos, aeroportos e
fronteiras. 37 Art. 18: À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete: [...] IV – executar serviços: a) de vigilância epidemiológica; b) vigilância sanitária; [...] IX – colaborar com a União e os Estados na execução da vigilância sanitária de portos,
aeroportos e fronteiras.
5544
44 PPRREESSTTAAÇÇÃÃOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ SSAAÚÚDDEE
A saúde tem que ser um serviço público, mas pode ser um serviço
privado. Vimos que a opção da Constituição foi a prestação do direito à saúde
mediante um sistema único, de direções regionalizadas e com forte tendência à
municipalização.
A Administração indireta, ou descentralizada, é composta de autarquias,
fundações, empresas públicas e sociedade de economia mista, que são pessoas
jurídicas criadas ou autorizadas por lei especialmente para o desempenho de
serviços públicos específicos. A Constituição Federal no Art. 37, inc. XIX, autoriza
a criação dessas autarquias, empresas públicas, sociedade de economia mista e
de fundações nos termos de lei específica, e o Art. 4º da Lei nº 8.080/90 corrobora
nesse sentido, quando diz que o Sistema Único de Saúde é constituído pelo
conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições
públicas federais, estaduais e municipais da Administração direta e indireta e das
fundações mantidas pelo Poder Público.
O Ministério da Saúde, além de seus órgãos, conta também com
fundações, autarquias e sociedades de economia mista como a Fundação
Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) e a Fundação Nacional de Saúde, a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), sendo as duas últimas autarquias federais. Já os hospitais Cristo Redentor
e Nossa Senhora da Conceição no Rio Grande do Sul, por exemplo, são
sociedades de economia mista.
O Estado de São Paulo tem como órgão da Administração direta, a Secretaria
Estadual de Saúde, já a Fundação Oncocentro de São Paulo e a Fundação para o
Remédio Popular (FURP), fazem parte da administração indireta, como o Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, a
superintendência de controle de Endemias (SUCEM), e o Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
5555
A preocupação da Constituição Federal no Art. 199, § 1º, que informa a
preferência que deve ser dada a entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos,
na saúde suplementar, poderia traduzir-se na indagação de que talvez a estrutura
jurídica mais adequada para a atuação no campo da administração indireta da
saúde fossem as autarquias e fundações, já que as empresas públicas e as
sociedades de economia mista regem-se pelo regime jurídico das empresas
privadas (Art. 173, § 1º, inc. II, Constituição Federal). Contudo, entendemos que
nenhuma das estruturas jurídicas está imune aos problemas na prestação de
serviço público, sendo o controle sobre a prestação o melhor remédio em todos
os casos.
Assim, não se diga que uma autarquia, por natureza, preste excelentes
serviços, tampouco que uma sociedade de economia mista, em essência, é má
prestadora de serviços de saúde. A fiscalização do cumprimento dos princípios
constitucionais da administração (legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência – Art. 37), imperativos tanto na administração direita
quanto na indireta, suprime eventuais questionamentos sobre a gestão de verbas
públicas confiadas à administração indireta, estando os mecanismos de controle
de atos de improbidade administrativa a serviço, também, do controle dos órgãos
da administração indireta.
Podemos dizer que o Estado brasileiro pretendeu valer-se de todo o
aparato disponível (ou acessível) em fornecimento de saúde à população,
oportunizando o ingresso da iniciativa privada na estrutura do Sistema Único de
Saúde onde não possa diretamente atuar, lançando mão de convênios e
contratos de direito público. Essa atuação privada terá caráter excepcional e, face
às limitações de recursos financeiros e à importância do direito social à saúde, a
participação de entidades privadas com fins lucrativos na estrutura do SUS será
admitida apenas como última alternativa ao Poder Público, que jamais
abandonará o poder de polícia sobre a atuação sanitária, dentro ou fora do
sistema único.
Com a Constituição Federal de 1988 a saúde toma posição de dever do
Estado, que escolheu o Sistema Único de Saúde como forma de efetivar tamanha
5566
tarefa. Mas a história democrática brasileira ainda pagava as contas do
autoritarismo que a antecedeu, deixando sérios problemas financeiros à
previdência social, o que se constatou na qualidade dos serviços estatais de
saúde. Essa qualidade de serviços ofertados pelo sistema público cria a
pluralidade de sistemas de saúde, ou seja, quem possui condições financeiras
paga pelo atendimento que deseja (serviços privados); a classe média migra para
os convênios particulares de saúde, pagos, em regra, por meio de mensalidades,
criando uma seguridade sanitária privada, mais cômoda e barata que o
atendimento particular e muito menos precário que o atendimento público. Resta
a camada mais pobre da população, que se submete aos serviços prestados pelo
setor público e privado, conveniado ou contratado pelo Sistema Único de Saúde.
Com isso parece descomplicado responder à questão proposta por
Eugênio Vilaça Mendes sobre quem teria ganhado com o SUS:
O Sistema Único de Saúde instituiu-se com base no princípio da universalidade. Por meio dele, incorporaram-se como cidadãos da saúde, possuidores de direitos a serem garantidos pelo Estado, a partir da criação do SUS, 60 milhões de brasileiros, até então submetidos a uma atenção estatal de medicina simplificada ou à filantropia. Ainda que se deva reconhecer o caráter peculiar da universalização da saúde no Brasil – a universalização excludente – que se fez junto com a queda na qualidade média da atenção médico-hospitalar, é inegável que para os milhões de despossuídos que adquiriram direitos e livraram-se da indigência, os ganhos, tanto do ponto de vista dos serviços, quanto da perspectiva psicossocial, são inegáveis. Bastaria perguntar a um cidadão, integrado pelo SUS, se gostaria de voltar à condição de recorrer, como indigente, aos serviços dos hospitais filantrópicos. A contradição está em que esses brasileiros que ganharam com o SUS não estão socialmente organizados e são destituídos de voz política. Em outros termos, os ganhadores do SUS são maioria silenciosa que conta pouco no jogo político e na formação de opinião. Alcançaram, com o SUS, cidadania na saúde, mas permanecem subcidadãos políticos. Enfim, os ganhadores não contam porque ninguém lhes ausculta, ninguém lhes dá ouvido.38
A aludida universalização excludente é o resultado de uma prestação
ineficiente dos serviços assumidos pelo Estado, pois, quem tem condições
econômicas foge da triste realidade do sistema público, deteriorado pela escassez
38 MENDES, Eugênio Vilaça. Uma agenda para a saúde. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 77.
5577
de recursos. Resta um dilema: de um lado aqueles que teriam força política e
consciência para ao menos lutar por mudanças não se submetem ao sistema
público, que por todo o dito não acumularia clientes voluntários; de outro lado,
proibir a prestação de serviços privados de saúde seria desestimular a criação de
mão-de-obra especializada e aumentar os gastos do sistema público,
aumentando suas filas de acesso e reduzindo o número de atendimentos. A
regulamentação do setor privado de saúde, bem como da saúde suplementar,
estudaremos adiante neste trabalho.
Situação que revela alguma novidade e muita curiosidade é a norma
constitucional do Art. 53 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
transcrevemos:
Art. 53: Ao ex-combatente que tenha efetivamente participado de operações bélicas durante a Segunda Guerra Mundial, nos termos da Lei nº 5.315, de 12 de setembro de 1967, serão assegurados os seguintes direitos: [...] IV – assistência médica, hospitalar e educacional gratuita, extensiva aos dependentes.
Ora, se a própria Constituição Federal determina que a saúde é direito
social e sua prestação é um dever do Estado, porque o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias precisou especificar a condição dos ex-combatentes?
Por prováveis ferimentos de guerra que tragam consigo como estigma dos
tempos de hostilidades? Mas e quanto à extensão aos dependentes? Teria o
Estado reconhecido que o SUS não é bom o suficiente no desempenho de suas
atividades, a ponto de escolher não submeter os pracinhas da Segunda Guerra e
seus descendentes às angústias do sistema único?
Levado a se manifestar, o Supremo Tribunal Federal, em voto do Ministro
Relator Carlos Veloso, no agravo regimental em recurso extraordinário nº
414.256-2 responde às indagações:
O Constituinte, bem assinalou o parecer do Ministério Público Federal, reconheceu o sacrifício dos brasileiros que, no campo de batalha da maior guerra que o mundo conheceu, defenderam a
5588
honra nacional. Por isso, concedeu-lhes, além de benefícios outros, assistência médica e hospitalar, gratuita (CF/88, ADCT, Art. 53, inc. IV). Nada mais adequado que essa assistência seja prestada, principalmente, pelas organizações militares de saúde, não sendo possível antepor-se ao comando constitucional Art. 53, inc. IV, ADCT – disposição infraconstitucional, Lei nº 6.880/80.
O que se pediu no caso apresentado foi a possibilidade de atendimento
em hospitais militares, não se tratando de pleito por atendimento privado ou
simples fuga do sistema público ordinário. O foco de discussão na equiparação ou
não do ex-combatente ao militar não é a questão principal a ser resolvida, em
verdade trata-se de uma regra constitucional, fruto da manifestação de vontade
do Poder Constituinte Originário e sustentável sob os ângulos da igualdade e da
razoabilidade. Não teria o Constituinte desprestigiado o SUS com o referido
dispositivo, mas validamente reconhecer a bravura dos praças que combateram
na segunda guerra mundial, os equiparando aos militares na atenção à saúde.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o Art. 53, inc.
IV, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é norma de eficácia plena
e aplicabilidade imediata,39 com o que concordamos.
De toda a forma, os serviços públicos esvaziados pela classe média
sofrem considerável perda de qualidade, já que deixam de contar com sua
capacidade questionadora, condições culturais e de organização, a exemplo,
além da saúde, dos serviços públicos de educação em níveis fundamental e
médio.
4.1 Serviço Público de Saúde
O Art. 197 da Constituição Federal trata os serviços e ações de saúde
como de relevância pública, note:
39 STF – RE nº 417.871/AgR – Relator Min. Cezar Peluso – j. 15/02/2005, DJ 11/03/2005. No
mesmo sentido: STF – RE nº 421.197/AgR – Relator Min. Cezar Peluso – j. 15/08/2006 – DJ 08/09/2006.
5599
Art. 197: São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
A devida conceituação daquilo que se classificou por serviço de
relevância pública não é tão simples. Afirmar que seria uma classificação
quanto à essencialidade não é seguro conforme ensinamento de Hely Lopes
Meirelles, lembrando que existem outros serviços públicos, além dos
essenciais, que atendem interesses dispensáveis da comunidade. Para o
administrativista:
Serviços de utilidade pública: são os que a Administração, reconhecendo sua conveniência (não essencialidade, nem necessidade) para os membros da coletividade, presta-os diretamente ou aquiesce que sejam prestados por terceiros (concessionários, permissionários, ou autorizatários), nas condições regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários. São exemplos dessa modalidade os serviços de transporte coletivo, energia elétrica, gás, telefone.40
Serviços públicos propriamente dito: são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde pública.41
Sabemos que a Constituição autoriza a iniciativa privada a atuar na
prestação do direito à saúde, bem como reconhece sua natureza de direito
fundamental social. Assim, os ditos conceitos de serviços públicos ou serviços de
utilidade pública ora apresentados não satisfazem o enunciado do Art. 197 da
Constituição Federal.
40 MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo brasileiro. 20ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1995, p. 311. 41 Ibidem, p. 312.
6600
Dizer que as ações e serviços de saúde são de relevância pública
significa classificá-los como serviços públicos? Decerto que sim, ao menos sob o
aspecto da essencialidade à população, mas com a característica de poder ser
prestado pelo particular, sempre submetido ao poder de polícia do Estado. Ainda
que se permita a presença da iniciativa privada, o Poder Público há de se fazer
sempre presente, regulamentando e fiscalizando sua prestação.
A Lei nº 8.080/90 dispõe em seu Art. 15 que: "A União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as
seguintes atribuições” e, no inc. XI, dita a “elaboração de normas para regular as
atividades de serviços privados de saúde, tendo em vista a sua relevância
pública". Assim resta construída a regra de que nas ações e serviços de saúde
prestados pelas instituições privadas, ainda que sem nenhuma vinculação com o
Sistema Único de Saúde, ou seja, sem contratos ou convênios, presente estará o
Estado exercendo suas funções regulamentadora e fiscalizatória da prestação do
serviço de relevância pública.
Reforça a idéia da presença constante da fiscalização do Estado na
prestação do direito à saúde, a eleição do Ministério Público pela Constituição
para cuidar dos ditos serviços de relevância pública, vejamos:
Art. 129: São funções institucionais do Ministério Público: [...] II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.
A presença do Poder Público mais a fundamentalidade do direito à saúde
permite classificar as ações e serviços de saúde como serviços públicos, que
mesmo prestados por terceiros, se submetem ao poder de império do Estado
fiscalizador e regulamentador.
Mesmo porque, cabe ao Estado garantir a saúde e, as diretrizes e
políticas que a constituem, mas a sua execução pode ser levada a cabo pelo
próprio Estado, ou através de terceiros. E como escreve Rogério Gesta Leal:
6611
Salvo melhor juízo, entende-se por terceiros também a iniciativa privada e o Mercado, situação que efetivamente ocorre no cenário nacional. Ora, sabendo-se que os recursos que sustentam a iniciativa privada e o Mercado são hauridos pela forma de subsídios e contraprestações dos usuários, e levando em conta que esse setor está habilitado constitucional e infraconstitucionalmente para prestar serviços dessa natureza, não é crível extrair daqui a premissa de que o serviço público de saúde deva ser absoluta e universalmente gratuito e responsável exclusivo pelo atendimento de tamanha demanda, até porque a fonte de recursos estatais para tal mister decorre de contribuições de natureza fiscal e extrafiscal, restritas em termos de limites e atribuições. Alia-se a isso a responsabilidade da Sociedade Civil nesse âmbito, destacada anteriormente, devendo responder por sua quota de participação na gestão da saúde, por exemplo, desonerando o Estado dessa atividade de acordo com suas possibilidades.42
Em que pese as descritas conseqüências do abandono do sistema
público por aqueles que podem optar por outra forma de prover seu acesso à
saúde, somos sim favoráveis à existência de sistemas alternativos ao público.
Já dissemos sobre a unicidade do sistema público de saúde e, ficou claro
que o Estado não pretendeu monopolizar a prestação, muito pelo contrário,
normas constitucionais e infraconstitucionais disciplinam a atuação privada do
direito social em tela.
Assim, veremos a forma como se efetiva referida participação privada,
estudando ainda as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público –
OSCIP.
4.2 Iniciativa Privada
Indispensável o estudo da participação da iniciativa privada no direito à
saúde frente à sua abrangência, exercendo prestação particular e, principalmente,
enquanto chamada a complementar o sistema público.
42 LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato (orgs.). Direitos sociais e políticas públicas.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006, p. 1532.
6622
A Lei nº 8.080/90 determina que a “assistência à saúde é livre à iniciativa
privada” (Art. 21), conceituando os serviços privados de saúde da seguinte forma:
Art. 20: Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde.
As atuações de profissionais da saúde e de pessoas jurídicas de direito
privado na assistência à saúde são permitidas nos termos e limites da lei, que
exige a habilitação técnica do profissional e a “[...] observância dos princípios
éticos e às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde
(SUS) quanto às condições para seu funcionamento”.43
Este meio de acesso privado à saúde é paralelo ao SUS, não integrando
sua estrutura, mas sujeitando-se ao Poder Público regulamentador e fiscalizador,
por tratar-se da prestação de um serviço de relevância pública.
De outro lado, a iniciativa privada pode sim integrar a estrutura pública do
SUS, de forma complementar e em caráter excepcional, vejamos novamente a Lei
nº 8.080/90:
Art. 24: Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Parágrafo único – A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.
Art. 25: Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os ditos serviços ofertados pela iniciativa privada podem constituir o meio
hábil de o Estado efetivar a prestação do serviço público de saúde, direito
43 Art. 22 da Lei nº 8.080/90.
6633
fundamental social. Tal participação privada tem seus mecanismos fixados na lei,
que apenas por contrato público ou convênio admitirá, preferencialmente,
pessoas jurídicas sem fins lucrativos ou entidades filantrópicas, não afastando a
possibilidade de, em não havendo outra opção, contratar particulares que tenham
fins lucrativos.
Assim, a participação da iniciativa privada na prestação de serviços de
saúde pode se dar de duas formas: a) pela existência de serviços particulares
ofertados àqueles que possuem recursos financeiros para custeá-lo, sem
qualquer contato com o Sistema Único de Saúde; ou b) pelo ingresso de
instituições privadas no SUS, via convênio ou contrato público.
Esse ingresso da iniciativa privada no SUS encontra duas vias, o contrato
de direito público e o convênio, e Francisco de Assis Alves esclarece que:
Em maior escala, o convênio tem sido o instrumento preferido pelo SUS para formalizar junto aos Estados, através de suas Secretarias de Estado da Saúde e com Hospitais particulares, a prestação de serviços de Saúde. Embora o convênio, tal como o contrato, seja um acordo de vontades, ambas as figuras não se confundem. No contrato há partes, com pretensões opostas; no convênio não há partes, e, sim, partícipes, cujos interesses são coincidentes. Todos os partícipes buscam o mesmo resultado. A característica mais marcante a separar esses dois instrumentos é que o convênio não admite cláusula obrigatória de permanência, podendo, qualquer dos partícipes retirar sua cooperação quando bem o desejar, sem sofrer qualquer sanção.44
Talvez o caráter excepcional de participação privada no SUS explique a
preferência do Estado em celebrar convênios e não contratos públicos, que por
suas características se mostram muito mais vantajosos àqueles que trazem em
seu espírito a idéia efêmera e paliativa do acordo, usado para atenção imediata,
mas não como solução definitiva na política pública de saúde.
E Hely Lopes Meirelles é por todos quando nos ensina que:
44 ALVES, Francisco de Assis. Fundações, organizações sociais, agências executivas:
organizações da sociedade civil de interesse público e outras modalidades de prestação de serviços públicos. São Paulo: LTr, 2000, p. 221.
6644
Convênio é acordo, mas não é contrato. No contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio os partícipes têm interesses comuns e coincidentes. Por outras palavras: no contrato há sempre duas partes (podendo ter mais de dois signatários), uma que pretende o objeto do ajuste (a obra, o serviço, etc.), outra que pretende a contraprestação correspondente (o preço, ou qualquer outra vantagem), diversamente do que ocorre no convênio, em que não há partes, mas unicamente partícipes com as mesmas pretensões. Por essa razão, no convênio a posição jurídica dos signatários é uma só, idêntica, para todos, podendo haver apenas diversificação na cooperação de cada um, segundo suas possibilidades, para a consecução do objetivo comum, desejado por todos. Diante dessa igualdade jurídica de todos os signatários do convênio e da ausência de vinculação contratual entre eles, qualquer partícipe pode denunciá-lo e retirar sua cooperação quando o desejar, só ficando responsável pelas obrigações e auferindo as vantagens do tempo em que participou voluntariamente do acordo. A liberdade de ingresso e retirada dos partícipes do convênio é traço característico dessa cooperação associativa, e, por isso mesmo, não admite cláusula obrigatória da permanência ou sancionadora dos denunciantes.45
Esclarecido o fato de convênios e contratos públicos subsidiariamente
viabilizarem o trato privado da saúde pública, tal estrutura de ingresso na
prestação sanitária pode ser melhor compreendida mediante a apresentação de
sua origem constitucional:
Art. 199: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fim lucrativos. § 2º – É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. § 3º – É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei. § 4º – A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
Importa anotarmos, a intenção do artigo é admitir, apenas em caráter
excepcional, a participação da iniciativa privada não filantrópica no Sistema Único
45 MEIRELLES, 1995, p. 354-355.
6655
de Saúde. A regra do § 1º é a porta de entrada da iniciativa privada na saúde
pública, mas não trata dos serviços particulares de saúde localizados fora do
SUS, que se submetem apenas à fiscalização e regulamentação do Estado.
Neste sentido segue o § 2º tratando dos serviços particulares de saúde
que fazem ou não parte do SUS, impondo a regra da não destinação de recursos
públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
Assim, às instituições privadas com fins lucrativos resta estabelecido que:
a) somente farão parte do SUS quando não houver entidades filantrópicas ou as
sem fins lucrativos e, b) recebem apenas pelos serviços prestados quando
admitidas a atuar na estrutura do SUS, não lhes sendo possíveis quaisquer
auxílios ou subvenções vindas dos cofres públicos.
Quanto à vedação encontrada no § 3º do Art. 199, relativa à participação
estrangeira na assistência à saúde no país, apenas podemos concluir que se trate
de uma norma tendente a evitar que o Brasil não se coloque em condições de
sustentar a prestação do direito social à saúde, impedindo que o capital
estrangeiro explore atividade sanitária com exclusivo caráter lucrativo. A vedação
não é absoluta, admite exceção por intermédio de lei, o que se explicaria pela
admissão de participação externa quando for de interesse da nação. Ives Gandra
da Silva Martins comenta:
O § 3º exterioriza a mesma linha de preconceitos ideológicos do § 2º e de nacionalismo próprio de país subdesenvolvido. Lembra o slogan que os comunistas lançaram, na campanha de Ledo Fiúza para a presidência da República, em 1946, e que se tornou centro das atenções das esquerdas, a partir de então, que dizia ‘o petróleo é nosso!’. Os constituintes estabeleceram idêntico princípio. Pelo § 3º do Art. 199, a ‘saúde é nossa!’, devendo libertar-se da ‘maléfica influência’ do capital externo nesta área. Como o dispositivo fala em participação direta ou indireta do capital estrangeiro, a norma não pode deixar de produzir certa perplexidade, pois é de se lembrar que a grande maioria dos medicamentos é estrangeira. Ora, cada vez que um hospital estatal adquire um medicamento estrangeiro ou fabricado por laboratório nacional controlado por empresa estrangeira, está havendo uma participação indireta do capital estrangeiro na assistência à saúde do país, o que é, evidentemente, desejável para que a população receba terapêutica, ou seja, protegida de
6666
moléstias com o que há de mais moderno na ciência médica e nos medicamentos desenvolvidos fora do país [...]. A expressão ‘salvo nos casos previstos em lei’, deve ser lida como ‘nos casos de alta complexidade e alta tecnologia’, permitindo maior perenidade à lei, ou seja, impedindo que se torne insuficiente e obsoleta, de forma a poder atender ao principal desiderato do constituinte, que é o de ofertar a melhor assistência à saúde possível à população brasileira.46
Decerto que quanto aos medicamentos concordamos com o
exposto, negar o ingresso de remédios produzidos no exterior não faria
sentido e discordamos do autor por entender que não seja esse o objetivo
da lei. Quanto à exploração dos serviços de saúde, com fins lucrativos,
pelo capital estrangeiro entendemos que esta seria tributada pelo Poder
Público, que reverteria recursos para o Sistema Único de Saúde. O
problema que vislumbramos surge na hipótese de o capital estrangeiro
ocupar grande parcela dos serviços particulares (dos chamados para
integrarem o SUS por convênio ou contrato público), transformando o
sistema público em cliente dos serviços privados construídos com capital
de origem externa.47 Mesmo porque a tendência de afastar a atividade
lucrativa dos particulares na prestação do serviço social da saúde existe
e já foi acima estudada.
Por seu turno o § 4º aborda a remoção de órgãos, tecidos e
substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, e
também a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados.
A Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, regulamenta o dispositivo
constitucional e tipifica penalmente condutas (de particulares ou de agentes
públicos) indesejáveis no procedimento de doação que regulamenta,
notadamente repudiando a venda de órgãos. A lei de 1997 não se aplica ao
sangue, ao esperma e ao óvulo.
46 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Inteligência do Art. 199, § 3º da CF/88: hipótese em que o
capital estrangeiro pode ser admitido na assistência à saúde (Parecer). Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?content=8648.11287>. Acesso em: 03 mar. 2008.
47 Preocupações outras poderiam surgir, como v.g., a incerteza na continuidade dos serviços essenciais, a maior dificuldade em responsabilizar os agentes estrangeiros ante as cortes internacionais.
6677
Importa-nos dizer que a Lei nº 9.434/97 permite aos serviços privados de
saúde, a realização das cirurgias de transplante de órgãos e tecidos:
Art. 2º: A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser realizada por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde.
Por evidente, a iniciativa privada se submete, também aqui, ao controle
do Poder Público, que exige prévia autorização do Ministério da Saúde para a
realização de transplantes em hospitais públicos ou privados.
Para que possamos ilustrar a questão da comercialização de partes do
corpo humano, no ano de 2006 o Supremo Tribunal Federal foi chamado a
manifestar-se em ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo governador do
estado de Espírito Santo, contra lei capixaba que garantia o pagamento de meia
entrada em locais públicos de cultura, esporte e lazer aos doadores regulares de
sangue:
Lei nº 7.737/04, do Estado do Espírito Santo. Garantia de meia entrada aos doadores regulares de sangue. Acesso a locais públicos de cultura esporte e lazer [...]. A Constituição do Brasil em seu Art. 199, § 4º, veda todo tipo de comercialização de sangue, entretanto estabelece que a lei infraconstitucional disporá sobre as condições e requisitos que facilitem a coleta de sangue. O ato normativo estadual não determina recompensa financeira à doação ou estimula a comercialização de sangue. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.48
Acertadamente o Supremo Tribunal Federal afastou a
inconstitucionalidade da Lei nº 7.737/04 do Estado do Espírito Santo, entendendo
que deve prevalecer o direito à saúde, sendo certo que o § 4º do Art. 199 da Lei
Maior abomina a comercialização de sangue, mas prestigia a criação de
incentivos aos doadores.
48 STF – ADI nº 3.512 – Relator Min. Eros Grau – j. 15/02/2006 – DJ 23/06/2006.
6688
Indagamos, então, se no caso apresentado, se tratasse de um banco de
sangue mantido por um hospital particular, sem qualquer contrato ou convênio
firmado com o SUS, seria permitida a oferta de benesses aos potenciais doadores?
De acordo com o ordenamento jurídico vigente anotemos que a Lei nº
10.205, de 21 de março de 2001, veio regulamentar o Art. 199, § 4º da
Constituição fazendo constar logo em primeiro artigo que:
Art. 1º: Esta Lei dispõe sobre a captação, proteção ao doador e ao receptor, coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, de seus componentes e derivados, vedada a compra, venda ou qualquer outro tipo de comercialização do sangue, componentes e hemoderivados, em todo o território nacional, seja por pessoas físicas ou jurídicas, em caráter eventual ou permanente, que estejam em desacordo com o ordenamento institucional estabelecido nesta Lei.
A lei não fez distinção entre os serviços privados com fins lucrativos
integrantes e os não integrantes do SUS, mas estabeleceu que a proibição da
remuneração do doador e a proibição da comercialização da coleta e distribuição
do sangue são princípios da política nacional de sangue.49
Mesmo sem ser incluído de forma literal no texto da Lei nº 10.205, os
serviços privados de saúde locados fora do SUS e, que recebam doações de
sangue, estão sim acolhidos pelas regras regulamentadoras do disposto no Art.
199, § 4º da Constituição. O legislador não obrou de forma sistêmica, não
imprimindo coerência entre as leis da saúde, o que não pode prejudicar o
incremento regulatório em sua máxima aplicabilidade.
Assim, os serviços de saúde privada sem vínculo com o SUS, mas que
mantêm serviço de coleta de sangue, não poderão ofertar paga ou recompensas
49 Art. 14: A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se pelos
seguintes princípios e diretrizes: I – universalização do atendimento à população; II – utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder
público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social; III – proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue; IV – proibição da comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e
transfusão do sangue, componentes e hemoderivados.
6699
aos doadores, sob pena de configuração de comercialização da atividade, que
roga por doadores, não fornecedores.50
4.2.1 Organizações da sociedade civil de interesse público
Seguindo no estudo da participação da iniciativa no sistema público de
saúde pretendemos apresentar as ditas organizações da sociedade civil de
interesse público – OSCIP, instituídas pela Lei nº 9.790, de 23 de março de 2003,
que foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999.
A intenção da lei foi permitir a qualificação de pessoas jurídicas de direito
privado e sem fins lucrativos, que visem determinados objetivos sociais (Art. 3º),
como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Tais instituições,
depois de qualificadas, podem firmar termos de parceria com o Poder Público,
objetivando a criação de um “vínculo de cooperação entre as partes” (Art. 9º) para
fomento e execução de atividades de interesse público.
A outorga da qualificação à pessoa jurídica de direito privado é ato
administrativo vinculado, de atribuição do Ministério da Justiça, ou seja,
preenchidas as condições legais será deferido o requerimento de qualificação de
OSCIP à requerente. Esclarece Ana Paula Rodrigues Silvano:
Ao contrário do que ocorre na qualificação das organizações sociais, a obtenção do título de organização da sociedade civil de interesse público se dá através de ato vinculado da autoridade administrativa. Assim determina, expressamente, o Art. 1º, § 2º, da Lei nº 9.790: ‘A outorga da qualificação prevista neste artigo é
50 Poderia ser indagado, então, se há autorização ao particular não integrante do SUS para
manutenção de serviço de coleta de sangue. Não encontramos na lei mecanismos que impeçam tal atuação, muito pelo contrário, pedimos atenção à Portaria nº 1.469, de 10 de julho de 2006, do Ministério da Saúde, que tem por objetivo dispor sobre o ressarcimento de custos operacionais de sangue e hemocomponentes ao Sistema Único de Saúde (SUS), quando houver fornecimento aos não-usuários do SUS e instituições privadas de saúde. Salvo melhor juízo, seria inconstitucional o Estado pretender restituição de valores de um procedimento sanitário sobre o qual pretende monopólio. Lembremos que saúde é um dever do Estado, facultado à iniciativa privada sua prestação.
7700
ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos por esta lei’. Dessa forma, observa-se que aqui o legislador foi mais cauteloso. Não incidiu no mesmo erro, de excesso de discricionariedade, como na qualificação das organizações sociais, [...].51
Iremos nos ater à atuação das OSCIP e, especificamente, ao campo da
saúde, mas salientamos que esta prestação não encerra as possibilidades
trazidas pela lei para a qualificação de tais organizações. Falaremos das OSCIP
face à relativa novidade do tema e principalmente por revestir tal figura de
instrumento de grande potencial na oferta do direito à saúde.
Portanto, observemos que jamais poderão requerer tal qualificação, por
exemplo: as organizações sociais; as cooperativas; as fundações públicas, com
destaque à vedação às instituições hospitalares privadas e não gratuitas e suas
mantenedoras.52
As OSCIP que atuem em direito sanitário terão ter por objetivo social a
promoção gratuita da saúde, que poderá se concretizar mediante execução direta
das atividades, ou indiretamente, apoiando o setor público da saúde ou outras
organizações sem fins lucrativos que prestem esses serviços.
Promoção gratuita da saúde é a prestação dos serviços financiados com
seus próprios recursos, sem a exigência de contrapartida ou doações, não sendo
considerados recursos próprios os frutos de cobranças por seus serviços ou
oriundos de repasse ou arrecadação compulsório.
Uma vez qualificada como organização da sociedade civil de interesse
público, a pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos poderá firmar com
o Poder Público (Federal, Estadual, Municipal ou Distrital) os chamados termos de
parceria, que vinculam a organização da sociedade civil e o Estado na prestação
do objetivo social (atividade de interesse público).
51 SILVANO, Ana Paula Rodrigues. Fundações públicas e terceiro setor. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 80. 52 Lei nº 9.790/99, Art. 2º, inc. VII. Exprime, mais uma vez, a intenção do Poder Público de
investir seu limitado orçamento em um único sistema, com a primazia da não contratação de serviços particulares que visem lucro.
7711
Hoje, o Ministério da Justiça conta com 193 organizações qualificadas
como OSCIP e atuantes apenas em prestações relacionadas à saúde.53 Dentre
estas está a Associação de Cooperação Familiar em Saúde e Cidadania,
localizada na cidade de Curitiba (Paraná), onde presta atendimento a
adolescentes e famílias, desenvolvendo ações em saúde preventiva.
O termo de parceria apontará as atuações da organização,
pormenorizando seus elementos, gastos, metas, prazos e tudo o mais que diga
respeito ao interesse público objeto da parceria. O cumprimento do termo será
fiscalizado pelos Conselhos de Políticas Públicas da esfera celebrante do
governo.
Por receberem, a contar da celebração do termo de parceria, verbas
públicas, as OSCIP estarão sujeitas aos meios de controle previstos em lei,
podendo seus responsáveis incorrerem nos atos de improbidade administrativa
previstos na Lei nº 8.429/92, conforme veremos no capítulo seguinte.
A qualificação OSCIP é um título, posto que declara uma pessoa jurídica
de direito privado, como tal, podendo ser retirado a pedido da pessoa jurídica ou
por decisão em processo administrativo ou judicial, sendo que qualquer cidadão é
parte legítima para requerer fundamentadamente a perda da qualificação, vedado
o anonimato e ressalvada a atuação do Ministério Público.
As pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, atuantes na
oferta gratuita da saúde antes mesmo do advento da Lei nº 9.790/99 e, que foram
qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público com o
advento da lei, automaticamente, receberam o Título de Utilidade Pública e o
Certificado de Entidade Filantrópica, expedido pelo Conselho Nacional de
Assistência Social – CNAS e cumularam os títulos por cinco anos,54 ou seja, até
2004. Decorridos esses cinco anos do período de transição, a lei sugeriu duas
53 Informação disponível em: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ59319A86PTBRIE.htm>.
Acesso em: 16 mar. 2008. 54 A lei inicialmente pretendeu que o período de transição e termo final para a opção fosse de
dois anos, portanto 2001. Ocorre que em 2001 o Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 2.216-37, alterando o prazo do artigo 18 para cinco anos, portanto 2004.
7722
hipóteses: a) ou a pessoa jurídica se manifestava favorável à manutenção na
condição de OSCIP, perdendo automaticamente o Título de Utilidade Pública e
Certificado de Entidade Filantrópica, b) ou não se manifestava, importando a
omissão em perda automática da qualificação de OSCIP.
Quanto às mudanças José Eduardo Sabo Paes, comentou:
[...] de agora em diante, há, no Direito brasileiro e haverá mais claramente daqui a dois anos –, uma clara diferenciação nas finalidades das OSCIP’s (pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, integrantes do denominado terceiro setor, que têm fins comunitários ou fomentam e executam atividades de interesse público) e daquelas que, criadas ou não pelo Poder Público, apresentam fins mútuos ou destinados a um círculo restrito de beneficiários, sócios ou associados: as detentoras dos Títulos de Utilidade Pública e do Certificado de Entidade Filantrópica.55
E, por certo houve mudanças, o sistema das Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público inaugurou novas possibilidades na atuação privada no
serviço de saúde.
4.2.2 Saúde suplementar
A participação da iniciativa privada na estrutura do SUS, denominada
participação complementar (Título III, Capítulo II, da Lei nº 8.080/90) em nada
pode ser confundida com a ora analisada saúde suplementar, que sequer integra
o sistema público, sendo uma das formas da atuação privada na saúde.
O exercício das atividades em saúde suplementar é regulamentado pela
Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998, com suas alterações56 e ainda, pela Lei nº
9.961, de 28 de janeiro de 2000, que criou a Agência Nacional de Saúde
55 PAES, José Eduardo Sebo. Fundações e entidades de interesse social. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000, p. 72. 56 A Lei nº 9.656/98 foi substancialmente alterada pela Medida Provisória nº 1.665, de 04 de
junho de 1998, ainda não convertida em lei e sistematicamente reeditada, recebendo atualmente o nº 2.177-44/01, com reedição em trâmite.
7733
Suplementar – ANS e, lhe conferiu atribuições de regulação do setor. Essas
normas não criaram, apenas regularam a atuação suplementar, que mesmo
antes, já atuava sem regras específicas.
As sociedades seguradoras que atuam na saúde suplementar não podem
ofertar outros tipos de serviço de seguro, a Lei nº 10.185, de 12 de fevereiro de
2001, exigiu que seus estatutos sociais vedem a atuação em quaisquer outros
ramos ou modalidades, bem como, as sociedades seguradoras que já operassem
o seguro de assistência à saúde, de forma não exclusiva, providenciassem a sua
especialização até 1º de julho de 2001.
A saúde suplementar consiste na formação de uma rede privada de
seguro para as prestações na área da saúde, formada por pessoas jurídicas de
direito privado que operam os produtos, serviços ou contratos do Plano Privado
de Assistência à Saúde. Assim, a lei dos planos e seguros privados de saúde fixa
os seguintes conceitos:
Art. 1º: Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001). I – Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001). II – Operadora de Plano de Assistência à Saúde: pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inc. I deste artigo; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001). III – Carteira: o conjunto de contratos de cobertura de custos assistenciais ou de serviços de assistência à saúde em qualquer das modalidades de que tratam o inciso I e o § 1o deste artigo, com todos os direitos e obrigações nele contidos (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001).
7744
O estabelecido se aplica em todo o sistema de saúde suplementar. O
mecanismo mais utilizado é o de preços pré-estabelecidos e pagos, com a oferta
de rede própria, credenciada ou referenciada de hospitais, clínicas, médicos e
laboratórios. Há possibilidade, ainda, de operadoras admitirem a livre escolha de
serviços pelos segurados, que são ressarcidos pela operadora mediante
reembolso dos valores contratados e tabelados.
Operadoras são os fornecedores dos planos privados de assistência à
saúde, juridicamente classificadas como sociedade civil ou comercial,
cooperativa, ou entidade de autogestão.
Estudo realizado pela Organização Pan-Americana da Saúde revelou
como se dividia o setor de saúde suplementar no Brasil no ano de 1998:
Os planos e seguros privados de assistência à saúde estão agrupados em quatro grandes categorias: (i) medicina de grupo, modalidade de pré-pagamento, representando 47% do mercado de serviços privados; (ii) cooperativas médicas, modalidade de pré-pagamento que representa 25% do mercado; (iii) planos de saúde de empresas, que compreendem uma combinação de serviços de autogestão e compra de serviços de terceiros, em distintas modalidades, e representam 20% do mercado; e (iv) seguro-saúde, modalidade de cobertura por indenização ao segurado ou a terceiros, que representa 08% do mercado.57
Na categoria de medicina de grupo encontramos as empresas
especializadas na venda de serviços médicos, com profissionais organizados
em grupos, criando uma estrutura de atendimento, com custos fixos e
previsíveis. Outra situação ocorre nas cooperativas médicas onde os
médicos, além de prestadores de serviços, são também co-proprietários;
recebem pagamentos na proporção dos atos médicos realizados e
participação nos resultados. Já na autogestão, são as empresas, sociedades
civis ou fundações que instituem e administram os planos de saúde de seus
empregados, sócios, e beneficiários.
57 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE – OPAS/OMS. Escritório de
Representação no Brasil. A Saúde no Brasil. Disponível em: <http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/SAUDEBR.PDF>. Acesso em: 15 jan. 2008.
7755
Hoje, o setor de saúde suplementar reúne mais de duas mil empresas
operadoras de planos, atendendo mais de 37 milhões de consumidores segundo
dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar,58 tornando indispensável a
atuação do Estado no controle da atividade.
Pelas regras atuais, o Poder Público, de fato, orquestra toda a atuação
em saúde suplementar, sujeitando quaisquer prestações de serviços ou produtos
de assistência médica hospitalar e odontológica de prestação continuada,
caracterizada nos termos da definição de Plano Privado de Assistência à Saúde
(Art. 1º, inc. I, da Lei nº 9.656/98), à fiscalização da ANS.
As operadoras de planos de saúde começam e encerram suas atividades
na ANS, que responde pela autorização de funcionamento e também é
responsável pelo cancelamento da autorização, seja a pedido da pessoa jurídica,
seja em decorrência dos preceitos sancionatórios da lei.
Quanto ao número de cancelamentos de operadoras realizados entre
1999 e 2007 a ANS declara que:
Enquanto as cooperativas médicas apresentaram menos de 10% de cancelamentos em relação ao número de registros, as seguradoras apresentaram o maior percentual, atingindo quase 85% de descredenciamentos. Esta grande parcela de registros cancelados deve-se à Lei nº 10.185/01, que determinou a especialização em planos privados de saúde das sociedades seguradoras, impondo o veto à sua atuação em quaisquer outros ramos ou modalidades.59
A informação sinaliza a existência de controle efetivo sobre a atuação
suplementar na saúde, mas também aponta a força das cooperativas médicas no
setor, fato que merece atenção face à possibilidade de aglutinação de
profissionais em operadoras e cooperativas médicas. Também por esse motivo a
58 Disponível em: <http://www.ans.gov.br/portal/site/entenda_setor/entenda_setor.asp>. Acesso
em: 05 mar. 2008. 59 CADERNO DE INFORMAÇÃO DA SÁUDE SUPLEMENTAR: Beneficiários,
Operadoras e Planos. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/portal/site/informacoesss/informacoesss.asp>. Acesso em: 04 mar. 2008.
7766
previsão do Art. 18, inc. III, da Lei nº 9.656/9860 deve ser rigorosamente
fiscalizada, impondo-se as sanções previstas no Art. 25, inclusive o cancelamento
da autorização de funcionamento da operadora e imposição de alienação da
carteira. No entanto falha o dispositivo quando não prevê a aplicação das sanções
que enumera aos profissionais médicos que se sujeitam ao cruel pacto de
exclusividade com operadoras (notadamente as cooperativas, mas quanto a
essas, o profissional pode e deve ser punido enquanto membro da operadora).
Outra característica importante do sistema de saúde suplementar é o
mecanismo de reembolso dos valores gastos pelo SUS no atendimento de
consumidores dos planos de saúde privado, é a lei:
Art. 32: Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inc. I e o § 1º do Art. 1º desta lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS. § 1º – O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao SUS, mediante tabela de procedimentos a ser aprovada pela ANS.
Vimos que a saúde é dever do Estado e direito fundamental do cidadão,
assim, o SUS deve prestar atendimento a toda e qualquer pessoa. Não se
tratando de pacientes cobertos pela saúde suplementar, o atendimento é coberto
pelos cofres públicos, mas em se tratando de paciente consumidor de serviço
suplementar, os gastos são ressarcidos pela pessoa jurídica contratada.
Nos termos do Art. 884 do Código Civil Brasileiro, “aquele que, sem justa
causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente
60 Lei nº 9.656/98, Art. 18: A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou
profissional de saúde, da condição de contratado, credenciado ou cooperado de uma operadora de produtos de que tratam o inc. I e o § 1º do Art. 1º desta lei, implicará as seguintes obrigações e direitos:
III – a manutenção de relacionamento de contratação, credenciamento ou referenciamento com número ilimitado de operadoras, sendo expressamente vedado às operadoras, independente de sua natureza jurídica constitutiva, impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade profissional.
7777
auferido, feita a atualização dos valores monetários”. Logo, a operadora do
sistema suplementar de saúde enriquece sem justa causa quando não cumpre a
obrigação de atender seu consumidor. O sistema público, que jamais poderá
negar atendimento ao paciente, empobrece injustamente por atuar cumprindo o
dever de outrem. Existe relação de causalidade entre o empobrecimento do SUS
e o enriquecimento da operadora, impondo-se o ressarcimento ao sistema
público, seja ao SUS, seja à entidade prestadora que o integre.
Para o controle da atividade de saúde suplementar, além da já referida
Agência Nacional de Saúde Suplementar, existe o Conselho Nacional de Saúde
Suplementar – CONSU, também criado pela Lei nº 9.656/98, Art. 35-A 61 e deve
atuar na definição, regulamentação e controle das ações relacionadas à prestação
de serviços de saúde suplementar nos aspectos médico, sanitário e epidemiológico.
4.3 O Sujeito Público Efetivador
Realizada a abordagem das pessoas jurídicas públicas ou privadas na
prestação à saúde, tratemos agora dos sujeitos, pessoas físicas integrantes do
SUS.
61 Lei nº 9.656/98, Art. 35-A: Fica criado o Conselho de Saúde Suplementar – CONSU, órgão
colegiado integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde, com competência para: I – estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde
suplementar; II – aprovar o contrato de gestão da ANS; III – supervisionar e acompanhar as ações e o funcionamento da ANS; IV – fixar diretrizes gerais para implementação no setor de saúde suplementar sobre: a) aspectos econômico-financeiros; b) normas de contabilidade, atuariais e estatísticas; c) parâmetros quanto ao capital e ao patrimônio líquido mínimos, bem assim quanto às
formas de sua subscrição e realização quando se tratar de sociedade anônima; d) critérios de constituição de garantias de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro,
consistentes em bens, móveis ou imóveis, ou fundos especiais ou seguros garantidores; e) criação de fundo, contratação de seguro garantidor ou outros instrumentos que julgar
adequados, com o objetivo de proteger o consumidor de planos privados de assistência à saúde em caso de insolvência de empresas operadoras;
V – deliberar sobre a criação de câmaras técnicas, de caráter consultivo, de forma a subsidiar suas decisões.
Parágrafo único – A ANS fixará as normas sobre as matérias previstas no inc. IV deste artigo, devendo adequá-las, se necessário, quando houver diretrizes gerais estabelecidas pelo CONSU.
7788
4.3.1 O desafio de efetivar
Por sujeito público, denominamos as pessoas físicas responsáveis pela
prestação do direito à saúde, façam ou não parte do conjunto de funcionários do
Estado, abrangendo, também, os sujeitos integrantes das pessoas jurídicas de
direito privado envolvidos na atividade sanitária.
São todos aqueles que empenham sua força de trabalho, físico e
intelectual, na árdua tarefa de concretizar o direito fundamental social à saúde.
Referimo-nos às pessoas físicas que formam a linha de frente nessa tarefa, não
apenas profissionais da saúde, mas também todos os integrantes da estrutura de
prestação sanitária, de administradores aos enfermeiros e médicos participantes
do SUS, direta ou indiretamente.
Um sem número de normas e regras regem todo o sistema público de
saúde, sobremaneira a atuação dos sujeitos públicos (servidores públicos ou
não), que operam a estrutura material existente com todas as características que
já apontamos.
Dizer da fundamentalidade do direito à saúde, apontar a possibilidade de
recusa do Estado ante uma reserva do possível,62 não é nada abstrato. Não raras
vezes a atuação dos sujeitos públicos em saúde é declarar a atitude possível, o
atendimento viável e, nem sempre o atendimento ideal, em suma, o que o Estado
pode prestar.
Nesse propósito a estrutura pública cria mecanismos de atuação com o
que pode ser ofertado e, desta prática nascem conceitos que muito bem
expressam as dificuldades encontradas, como, por exemplo, o conceito de vaga
zero, em caos onde se impõe o atendimento, mesmo sem a existência de leitos
vagos, pela imperiosa necessidade de preservação da vida, pondo à prova os
limites da aludida reserva do possível.
62 Sobre reserva do possível vide item 2.2.
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A Portaria nº 2.048, de 05 de novembro de 2002, do Ministério da Saúde,
busca regulamentar os serviços de urgência e emergência em saúde, e uma de
suas ações é a criação de uma central de vagas disponíveis no sistema, que deve
ser consultado para encaminhamento e distribuição dos atendimentos. Na central
obedece-se uma planilha, preestabelecida e pactuada na região sob a
responsabilidade daquela central, que se submete às determinações de um
médico regulador.
Consultado, o médico regulador deve decidir os destinos hospitalares,
não aceitando a inexistência de leitos vagos como argumento para não direcionar
os pacientes para a melhor hierarquia disponível em termos de serviços de
atenção de urgências, ou seja, garantir o atendimento nas urgências, mesmo nas
situações em que inexistam leitos vagos para a internação de pacientes (a
chamada vaga zero para internação).63
63 A Portaria nº 2.048 do Ministério da Saúde invoca a chamada vaga zero em dois momentos,
vejamos: 1.2 – Gestoras: Ao médico regulador também competem funções gestoras – tomar a decisão
gestora sobre os meios disponíveis, devendo possuir delegação direta dos gestores municipais e estaduais para acionar tais meios, de acordo com seu julgamento. Assim, o médico regulador deve:
a) decidir sobre qual recurso deverá ser mobilizado frente a cada caso, procurando, entre as disponibilidades a resposta mais adequada a cada situação, advogando assim pela melhor resposta necessária a cada paciente, em cada situação sob o seu julgamento;
b) decidir sobre o destino hospitalar ou ambulatorial dos pacientes atendidos no pré-hospitalar;
c) decidir os destinos hospitalares não aceitando a inexistência de leitos vagos como argumento para não direcionar os pacientes para a melhor hierarquia disponível em termos de serviços de atenção de urgências, ou seja, garantir o atendimento nas urgências, mesmo nas situações em que inexistam leitos vagos para a internação de pacientes (a chamada “vaga zero” para internação). Deverá decidir o destino do paciente baseado na planilha de hierarquias pactuada e disponível para a região e nas informações periodicamente atualizadas sobre as condições de atendimento nos serviços de urgência, exercendo as prerrogativas de sua autoridade para alocar os pacientes dentro do sistema regional, comunicando sua decisão aos médicos assistentes das portas de urgência.
3.2 – Responsabilidades/Atribuições da Central de Regulação/Médico Regulador. Além das estabelecidas no Capítulo II deste Regulamento, ficam definidas as seguintes responsabilidades/atribuições para a Central de Regulação/Médico Regulador:
a) o acionamento e acompanhamento da unidade e equipe de transporte, caso estes se localizem descentralizados em relação à estrutura física da central de regulação, como nos casos de transporte aeromédico, hidroviário ou terrestre, em que se opte por descentralizar viaturas e equipes para garantir maior agilidade na resposta. Nestes casos, a localização dos veículos e das equipes de saúde responsáveis pelo transporte deverá ser pactuada entre os gestores municipais da região de abrangência da central;
c) utilizar o conceito de “vaga zero”, definido no Capítulo II deste Regulamento também nos casos de regulações inter-hospitalares, quando a avaliação do estado clínico do paciente e da disponibilidade de recursos loco regionais o tornem imperativo (grifos nossos).
8800
O médico regulador dirá onde deve ser feito o atendimento e, mesmo sem
vagas, o estabelecimento deve atuar, prestando o mínimo de atenção possível à
manutenção da vida do paciente. Seria o embate dramático entre o mínimo
existencial e a reserva do possível? Decerto que não foram nesses termos que se
forjaram os conceitos, mas entendemos presente, de certa forma, tais conteúdos.
A mencionada portaria ministerial é um exemplo latente da função dos
sujeitos públicos na prestação da saúde, demonstrando onde se concretiza os
conceitos lançados pela doutrina. Por evidente que este exemplo se repete várias
vezes no ordenamento, mas o desafio de efetivar o direito à saúde envolve muitos
outros sujeitos, podendo até mesmo (excepcionalmente) recair sobre as mesas
do Poder Judiciário, que não deve se furtar em considerar os limites do Estado e
as necessidades do povo.
4.3.2 Sujeito público e improbidade administrativa
Vimos que o sistema único de saúde é composto pela soma de serviços
próprios e serviços prestados por particulares (contratados ou conveniados).
Dissemos, ainda, que os serviços prestados por particulares devem ser
preferencialmente, prestados por entidades sem fins lucrativos, mas que podem,
excepcionalmente, ser prestados por pessoas jurídicas com fins lucrativos.
Consideremos desde logo que ato de improbidade administrativa não se
tipifica, por si, como fato típico penal, e que os atos de improbidade administrativa
podem ser divididos em três grupos, a saber: a) atos que gerem enriquecimento
ilícito (Art. 9º); b) atos lesivos ao patrimônio público (Art. 10) e, c) atos atentatórios
aos princípios regentes da atividade estatal (Art. 11).
Todos os sujeitos integrantes das pessoas jurídicas contratadas ou
conveniadas, filantrópicas ou não, mas ligadas ao SUS, devem responder por
suas atividades enquanto prestadores de serviço de relevância pública e gestores
de verbas públicas.
8811
Os executores dos serviços de relevância pública submetem-se, no que
couber, à legislação pertinente à administração pública, independentemente da
posição que ocupem, seja no Estado ou na pessoa jurídica de direito privado. Se
estas pessoas jurídicas prestam serviços de relevância pública, percebendo
dinheiro público, devem respeito à lei administrativa e seus agentes podem ser
considerados funcionários públicos para fins penais ou de atos de improbidade.
A preocupação do legislador foi atingir o maior número de sujeitos
passíveis de cometer os atos tipificados na Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992,
vejamos:
Art. 1º: Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei. Parágrafo único – Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
Art. 2º: Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
Em sede de improbidade administrativa, o conceito de agente público
deve ser tão abrangente quanto necessário, a fim de enquadrar as condutas dos
mais diversos sujeitos que tratarem do dinheiro público. Emerson Garcia e
Rogério Pacheco ensinam que:
À mingua de uma maior uniformidade terminológica na doutrina e partindo-se da disciplina realizada pela Lei nº 8.429/92, a expressão agente público deve ser considerada o gênero do qual
8822
emanam as diversas espécies. Trata-se de conceito amplo que abrange os membros de todos os Poderes, qualquer que seja a atividade desempenhada, bem como os particulares que atuem em entidades que recebam verbas públicas, podendo ser subdividido nas seguintes categorias: agentes políticos, agentes particulares colaboradores, servidores públicos e agentes meramente particulares.64
A prestação sanitária oriunda da iniciativa privada é controlada pelo Poder
Público, faça ou não parte do SUS, que exerce poder de polícia quando fiscaliza,
normatiza e controla a prestação de serviços privados. Mas a atuação pública
enquanto passível de controle de probidade administrativa incide sobre a atuação
privada em saúde, em que haja verba pública aplicada.
A participação privada em saúde fora do sistema público, sem qualquer
colaboração financeira do Estado, não há tipificação de improbidade
administrativa, mas há, como já afirmado, controle e fiscalização por sua natureza
de serviço de relevância pública.
A participação da iniciativa privada no Sistema Único de Saúde deve se
dar de forma complementar à rede pública, ou seja, somente pode haver
contratação de serviços privados quando forem insuficientes as estruturas do
Poder Público.
Assim, cabe aos Conselhos de Saúde determinar as áreas
necessitadas de reforço privado e da especialidade a ser contratada,
determinando também sobre o tempo, as localidades e quantidade de
instituições privadas a serem contratadas para a prestação de serviços do
SUS. Mas, o que mais nos interessa é que caberá à Secretaria de Saúde
homologar a decisão e providenciar a contratação, através do processo
adequado.
Ao contratar o serviço solicitado pelo Conselho de Saúde, a administração
pública deve iniciar processo licitatório. Como bem lembra Weichert:
64 ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2002, p. 169.
8833
Não há autorização constitucional ou legal para se afastar o preceito genérico do Art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal de 1988. Nem mesmo a existência de uma tabela de valores para pagamento dos serviços médicos previamente estipulada pelo Poder Público elide a exigência do certame. Isso porque outros critérios podem ser estipulados para o julgamento das propostas, como o de melhor técnica, ou, ainda, podem os concorrentes oferecer preços inferiores aos da tabela. A não realização da licitação somente é admissível nos casos previstos na própria Lei de Licitações (atualmente a Lei nº 8.666/93) para a dispensa ou a inexigibilidade.65
O sujeito público que proceda a contratação da iniciativa privada sem
prévio procedimento licitatório, quando este não seja dispensável, será
responsabilizado criminalmente nos termos da Lei nº 8.666, de 21 de junho de
1993.66
A busca da proposta mais vantajosa e a garantia de ampla participação
no certame são bases do ingresso da iniciativa privada no SUS e, não representa
novidade em relação aos demais campos em que particulares pretendam
contratar com a Administração Pública, mas apenas lembremos que existirá
preferência às entidades filantrópicas e, apenas subsidiariamente, será contratada
pessoa jurídica com fins lucrativos.
Pode ocorrer que a prestação da saúde venha a ser exercida por sujeitos
que não tenham ingressado no serviço público através de uma investidura
regular. Nesses casos estariam esses submetidos o mando da lei de improbidade
administrativa?
Os sujeitos que mantenham uma relação jurídica de natureza funcional
com as entidades enumeradas no Art. 1º da Lei de Improbidade estarão sujeitos
às prescrições desta. Ou seja, os particulares que obrem em direito sanitário
somente serão considerados agentes públicos (para os fins da Lei de
65 WEICHERT, 2004, p. 201. 66 Lei nº 8.666/93, Art. 89: Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou
deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena – detenção, de 03 (três) a 05 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único – Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido
para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.
8844
Improbidade) quando assumem a prestação à saúde com manifestação do Poder
Público (lesado). Integrando a estrutura pública de saúde há possibilidade de
cometimento de atos de improbidade, também pelo particular.
8855
55 AA JJUURRIISSDDIICCIIOONNAALLIIZZAAÇÇÃÃOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ SSAAÚÚDDEE
O direito à saúde é questão que não pode encontrar sua sede primeira de
discussão no Poder Judiciário, já que, por tudo o que apresentamos, é um direito
fundamental social, indissociável à preservação da dignidade humana,
fundamento da República (Art. 1º, inc. III da Constituição Federal).
Saúde na Constituição brasileira é “dever de todos e obrigação do Estado”
(Art. 196) e, enquanto fundamental, tem aplicabilidade imediata (Art. 5º, § 1º), logo,
restrições indevidas, como falha ou falta de acesso, aos tratamentos de saúde (por
normas infraconstitucionais e mesmo por normas infralegais) se mostram
inconstitucionais, por pretenderem restringir o acesso a um direito fundamental social
e mais, em sede de direito sanitário há de se reconhecer a possibilidade de
judicialização, por tratar-se de um direito público subjetivo, conforme veremos.
Contudo, nunca percamos de vista a possibilidade de restrições impostas
pela escassez de recursos do Estado, que imponha a racionalização na oferta de
procedimentos excepcionais.
5.1 Saúde como Direito Público Subjetivo
De início cumpre notarmos as pertinentes considerações de Dimitri
Dimoulis sobre os direitos subjetivos e objetivos:
A distinção entre direito objetivo e subjetivo é necessária em português, como em muitos outros idiomas, nos quais não há termos diferentes para indicar essas realidades diversas. O contrário acontece em inglês, em que se distingue claramente entre o termo law (ordenamento jurídico objetivamente válido) e o termo right (direito subjetivo de determinada pessoa).67
67 DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução do estudo do Direito. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 274.
8866
Dimoulis pondera ainda, que o conceito de direito subjetivo foi elaborado
sistematicamente na Alemanha, por doutrinadores de direito civil, no século XIX,
Jhering e Savigny:
A teoria da vontade, associada a Savigny, considera importante o conteúdo do direito subjetivo e o define como ‘poder para manifestar sua vontade’ em relação ao destino de pessoas e coisas, podendo impedir a interferência dos demais (Willensmacht). Nessa perspectiva, o direito subjetivo consiste na capacidade do indivíduo de impor determinada norma ou decisão [...]. O segundo modo de definição é conhecido como teoria do interesse e se associa a Jhering. Considera decisiva a finalidade do direito subjetivo, que define como interesse juridicamente protegido e objetivando assegurar os fundamentos da existência do indivíduo [...]. Consideramos que a primeira definição é mais adequada porque indica a função jurídica do direito subjetivo, que é mais importante do ponto de vista da dogmática.68
A configuração do direito como público subjetivo assinala sua
justiciabilidade, ou seja, possibilidade de o titular do direito fundamental à saúde
ingressar em juízo, reclamando o cumprimento do dever derivado do direito, ou,
ao menos, a satisfação de alguma ou algumas das pretensões a ele
correspondentes.
A efetivação do direito à saúde depende de um universo de recursos
financeiros que precisam respeitar a reserva do possível e, por força dessa
limitação de recursos, apenas o mínimo existencial poderia ser garantido, isto é,
apenas direitos sociais mais relevantes à dignidade da pessoa humana são
exigíveis judicialmente, enquanto direitos públicos subjetivos.
Konrad Hesse69 lembra que na resolução dos problemas jurídico-
constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que
favoreçam a integração política e social, possibilitando o reforço da unidade
política, a saber, não podemos prestigiar uma concessão judicial sanitária ou a
68 Ibidem, p. 275. 69 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 119. Fala o autor, aqui e na verdade, da tese de que, na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência constante.
8877
condenação de um agente público sanitário por si só, é preciso limites e
parâmetros de integração entre as instituições.
Ser um direito público subjetivo não quer significar que o direito à saúde
seja um cheque em branco nas mãos dos magistrados, é preciso que também
estes ponderem valores em uma macro-justiça.
Para José Roberto Dromi, conforme seja a situação jurídica subjetiva do
sujeito, assim será a proteção do ordenamento jurídico, assim:
Quien tiene un derecho subjetivo puede reclamar su reconocimiento tanto ante la propia administración (por vía de recursos administrativos) como ante la jurisdicción (por vía de acciones judiciales ordinarias, interdictos, acciones sumarias, acciones procesales administrativas, entre otras vías). Si aquella no le reconoce su derecho, el particular puede accionar judicialmente – por proceso administrativo – ejerciendo la acción subjetiva de plena jurisdicción y peticionando, además de la extinción del acto lesivo (anulación total o parcial), el restablecimiento del derecho vulnerado, desconocido o incumplido y el resarcimiento de los perjuicios sufridos.70
Ao tratarmos dos direitos subjetivos, a questão principal é a possibilidade
de se caracterizar a posição jurídica a que se chama de direitos sociais
prestacionais como verdadeiros direitos, passíveis de terem sua concretização
exigida e, apenas em caso de não satisfação espontânea, ser obtida através da
prestação jurisdicional.
É certo que todo direito fundamental tem potencial para levar o Estado a
atuar, impondo obrigações positivas e negativas, mas temos que descobrir o que
especializa o direito à saúde de forma a possibilitar sua exigência pela atuação
judicial, porém bem salienta Germano Schwartz:
Elucide-se, também, desde já, que pretender que a resolução da problemática sanitária se esgote na interpretação da saúde como direito fundamental do homem e direito público subjetivo é um erro
70 DROMI, José Roberto. Derecho subjetivo y responsabilidad pública. Bogotá: Temis
Librería, 1980, p. 40.
8888
tão grande como negar seu caráter público subjetivo e fundamental, visto que a primeira grande tarefa das Constituições contemporâneas é estabelecer os direitos fundamentais do homem [...].71
No caso do direito à saúde, a tarefa das constituições é estabelecer como
pretensão absoluta, válida por si mesmo, independente de lei, pois como
corretamente coloca Ingo Sarlet:
Pela sua inequívoca relevância sob o aspecto de garantia do próprio direito à vida, poder-se-á ter como certo que o direito à saúde, ainda que não tivesse sido reconhecido expressamente pelo Constituinte, assumiria a feição de direito fundamental não-escrito implícito, a exemplo, aliás, do que ocorre em outras ordens constitucionais, como é o caso da Argentina.72
A expressão direitos sociais fundamentais não quer dizer direitos exigíveis
judicialmente, e a noção de direito público subjetivo não tem sua conceituação
pacificada na doutrina jurídica. Caracterizar os fazeres estatais como direitos
subjetivos não é tese pacífica, e muitos autores utilizam a expressão direitos
prestacionais, sem que isto implique aceitação da tese de que estas situações
jurídicas são exigíveis judicialmente.
No entender de José Horácio Meirelles Teixeira, situação jurídica
subjetiva, é:
[...] a especial situação da vontade individual, determinada pela norma ou por atos e fatos jurídicos, relativamente à maior ou menor possibilidade de realizar certo interesse, seja por ato próprio, seja exigindo ação ou omissão de terceiros.73
Para Teixeira há o interesse simples, a expectativa de direito, o interesse
legítimo culminando, enfim, na figura do direito subjetivo, como a situação jurídica
subjetiva, em que são postos à disposição da vontade individual, os meios
71 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 58. 72 SARLET, 2007, p. 298. 73 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Org. e atual. por Maria
Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 347.
8899
jurídicos que permitam uma exigência direta, plena e específica de certo
interesse.
Para Hans Kelsen:
Tal derecho en el sentido subjetivo sólo existe cuando en el caso de una falta de cumplimiento de la obligación, la sanción que el órgano de aplicación jurídica – especialmente un tribunal – tiene que dictar sólo puede darse por mandato del sujeto cuyos intereses fueron violados por la falta de cumplimiento de la obligación [...]. De esta manera, la disposición de la norma individual mediante la que ordena la sanción depende de la ación – demanda o queja – del sujeto frente al cual existe la obligación no cumplida [...]. En este sentido tener un derecho subjetivo significa tener un poder jurídico otorgado por el derecho objetivo, es decir, tener el poder de tomar parte en la generación de una norma jurídica individual por medio de una acción específica: la demanda o la queja.74
Resta assentada a idéia de jurisdicionalização como exceção do direito
fundamental social, quando ao sujeito é outorgado um poder jurídico pelo direito
objetivo para buscar, ainda que judicialmente, seu cumprimento.
Assim, para nosso estudo tomemos que direito subjetivo é o interesse
juridicamente tutelado, a que corresponde um dever imediato e diretamente
exigível e, que tem seu cumprimento assegurado por ação judicial.
Quanto aos direitos sociais cabe observar que o que qualifica a
existência de um direito social como direito pleno, não é apenas o
cumprimento da prestação pelo Estado, mas a existência do poder jurídico
para que o titular do direito atue no caso de não cumprimento da obrigação
devida.
Neste sentido, Abramovich e Courtis75 esclarecem que mesmo que o
Estado observe uma norma de direito social, satisfazendo habitualmente
74 KELSEN, Hans. Teoria general de las normas. Ciudad de México: Trillas, 1994, p. 142-143. 75 ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Chistian. Los derechos sociales como derechos
exigibles. Madri: Editorial Trotta, 2002, p. 37.
9900
determinadas necessidades ou interesses tutelados pelo direito, não seria
possível afirmar que o beneficiário da conduta estatal goza desse direito,
como direito subjetivo, até verificar se ante eventual descumprimento da
obrigação, o titular se encontra, na realidade, em condições de demandar
judicialmente a prestação pelo Estado. Como o exemplo do desenvolvimento
pelo Estado de um programa de provisão de medicamentos à população
ameaçada por epidemia, impondo-se a possibilidade de ingresso em juízo
para reclamar o descumprimento da obrigação.
Nos dizeres de Mauro Cappelletti, sobre a judicialização dos direitos
sociais e a atuação do juiz neste campo:
Tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do estado, freqüentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos sociais – como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não podem ser simplesmente atribuídos ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas.76
Não sendo as normas constitucionais sanitárias meras normas
programáticas, mas sim normas enunciadoras de um verdadeiro direito
público subjetivo, a jurisdicionalização é perfeitamente possível, mas, frise-
se, a jurisdicionalização será (ou deverá ser) soldado de reserva, utilizado
somente em caso de esgotamento dos meios convencionais de solicitação,
ou em face de situações excepcionais, sob pena de descaracterizar sua
função de socorro, substituindo receitas médicas por sentenças judiciais,
verdadeiro absurdo.
Fato é que são freqüentes os desrespeitos ao direito fundamental à
saúde, e que cresce a cada dia o número de ações que exigem o respeito a este
76 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 41.
9911
direito público subjetivo, seja individual e/ou coletivamente. A jurisdicionalização
deve ser garantida por tudo o que já vimos, mas principalmente pela imperiosa
necessidade de preservação da dignidade humana, indissociável da prestação
sanitária.
Talvez, a única forma de equalizar a situação seja a atuação consciente
do Poder Judiciário, conscientemente influindo na prestação sanitária requerida
individualmente e, mesmo influindo em políticas públicas de saúde, sem medo de
decidir sempre em prol do interesse público, sem jamais desprezar o direito
fundamental à saúde, árdua tarefa.
5.1.1 Jurisprudência e direito à saúde
A judicialização do direito à saúde como último recurso à sua
efetivação é algo extremamente importante, mas não é algo aceito há muito
tempo, tampouco hoje é ponto pacífico. O Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, há pouco tempo, com base na clássica interpretação do princípio
da separação dos poderes, negou o reconhecimento do direito subjetivo
público à saúde:
Não se há de permitir que um poder se imiscua em outro, invadindo esfera de sua atuação específica sob o pretexto da inafastabilidade do controle jurisdicional e o argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O respectivo exercício não mostra amplitude bastante para sujeitar ao Judiciário exame das programações, planejamentos e atividades próprias do Executivo, substituindo-o na política de escolha de prioridades na área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento da existência de recursos para tanto suficientes. Em suma: juridicamente impossível impor-se sob pena de lesão ao princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes obrigação de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos, de oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu [...].77
77 TJSP – Agravo de Instrumento nº 42.530.5/4 – 2ª Câmara de Direito Público – ReIator Des.
Alves Bevilacqua – j. 11/11/1997 – DJ 18/11/1997.
9922
O direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais citados pelo agravante, Arts. 196 e 227 da Constituição Federal de 1988, apenas são garantidos pelo Estado, de forma indiscriminada, quando se determina a vacinação em massa contra certa doença, quando se isola uma determinada área onde apareceu uma certa epidemia, para evitar a sua propagação, quando se inspecionam alimentos e remédios que serão distribuídos à população, etc., mas que quando um determinado mal atinge uma pessoa em particular, caracterizando-se, como no caso, num mal congênito a demandar tratamento médico-hospitalar e até transplante de órgão, não mais se pode exigir do Estado, de forma gratuita, o custeio da terapia, mas dentro do sistema previdenciário.78
Na mesma época, a mesma direção seguia o Superior Tribunal de Justiça
Para esboçar a vertente perfilhada:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LIQUIDO E CERTO. INEXISTENCIA. Direito líquido e certo para efeito de concessão de segurança é aquele reconhecível de plano e decorrente de lei expressa ou de preceito constitucional, que atribua, ao impetrante um direito subjetivo próprio. Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito à saúde – protegem um interesse geral, todavia, não conferem aos beneficiários desse interesse, o poder de exigir sua satisfação – pela via do mandamus – eis que não delimitado o seu objeto nem fixada sua extensão, antes que o legislador exerça o múnus de completá-Ias através da legislação integrativa. Essas normas (Arts. 195, 196, 204 e 227, da CF/88) são de eficácia limitada, ou, em outras palavras, não têm força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não dispõem de eficácia plena’, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação complementar. Na regra jurídico-constitucional que dispõem ‘todos tem direito e o Estado o dever’ – dever de saúde – como afiançam os constitucionalistas, ‘na realidade todos não tem direito, porque a relação jurídica entre o cidadão e o Estado devedor não se fundamenta em um vinculum juris gerador de obrigações, pelo que falta ao cidadão o direito subjetivo público, oponível ao Estado, de exigir em juízo, as prestações prometidas a que o Estado se obriga por proposição ineficaz dos constituintes’. No sistema jurídico pátrio, a nenhum órgão ou autoridade é permitido realizar despesas sem a devida previsão orçamentária, sob pena de incorrer no desvio de verbas. Recurso a que se nega provimento.79
78 TJSP – Agravo de Instrumento nº 48.608-5/4 – 9ª Câmara de Direito Público – Relator Des.
Rui Cascaldi – j. 11/02/1998 – DJ 04/03/1998. 79 STJ – RMS nº 6564/ RS – 1ª Turma – ReIator Min. Demócrito Reinaldo – j. 23/05/1996 – DJ
11/06/1996.
9933
Tais decisões representam a parte da jurisprudência que ainda hoje é
seguida por significativa parte do Poder Judiciário, que nega reconhecer direito
subjetivo à saúde, refugiando-se nos argumentos da eficácia limitada do
dispositivo constitucional, na impossibilidade de determinar a entrega de
prestação material pelo Estado, uma vez que tal compete aos demais Poderes,
etc.
A preocupação dessa corrente jurisprudencial parece ser eminentemente
financeira, desconhecendo a importância que o Poder Judiciário pode ter na
fiscalização da atenção aos direitos fundamentais pelo Estado, notadamente no
campo do direito à saúde, desde que seja o último recurso.
Não obstante a negativa em reconhecer direitos fundamentais sociais
como direitos subjetivos, quando invocados diretamente das disposições
constitucionais, seja uma linha ainda bastante presente na jurisprudência, nesta já
se encontra uma mudança de direcionamento, em especial quanto ao direito à
saúde.
O começo da mudança da jurisprudência sobre a exigibilidade do direito à
saúde encontra seu leading case na decisão monocrática proferida pelo Min.
Celso de Mello:
A singularidade do caso (menor impúbere portador de doença rara denominada Distrofia Muscular de Duchene), a imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (necessidade de transplante das células mioblásticas, que constitui o único meio capaz de salvar a vida do paciente) e a impostergabilidade do cumprimento do dever político-constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à saúde (CF, Art. 196) e de dispensar especial tutela à criança e ao adolescente (CF, Art. 6º, c/c Art. 227, § 1º) constituem fatores, que, associados a um imperativo de solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (fls. 02/30). O acolhimento da postulação cautelar deduzida pelo Estado de Santa Catarina certamente conduziria a um desfecho trágico, pois impediria, ante a irreversibilidade da situação, que o ora requerido merecesse o tratamento inadiável a que tem direito e que se revela essencial à preservação de sua própria vida. Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como
9944
direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (Art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida. Por tal motivo, indefiro o pedido formulado pelo Estado de Santa Catarina, pois a decisão proferida pela Magistratura catarinense – longe de caracterizar ameaça à ordem pública e administrativa local, como pretende o Governo estadual (fls. 29) – traduz, no caso em análise, um gesto digno de reverente e solidário apreço à vida de um menor, que, pertencente a família pobre, não dispõe de condições para custear as despesas do único tratamento médico-hospitalar capaz de salvá-lo de morte inevitável (fls. 76). Publique-se. Brasília, 31 de janeiro de 1997. Ministro CELSO DE MELLO. Vice-Presidente, no exercício da Presidência (RISTF, Art. 37, inc. I).80
O Supremo Tribunal vem firmando entendimento de que se deve
reconhecer aos indivíduos, em caso de moléstias, com base no direito à saúde, o
direito subjetivo a prestações estatais, seja para manutenção ou restabelecimento
da saúde, por vezes condenando o Estado a fornecer medicamentos ou
proporcionar a realização de cirurgias.81
Hoje o Poder Judiciário parece ter reconhecido, em boa parte, sua
importância na questão sanitária. Em manifestações mais recentes já se recolhe o
direito à saúde como direito subjetivo.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o agora ministro do
Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, relatou julgado, do qual se
extrai:
[...] depois, anota-se que a saúde, de um lado, constitui direito público subjetivo do cidadão e, de outro, dever do Estado (CF, Art. 196). Nessa linha de entendimento, afigura-se inaceitável a ereção por parte da Administração, de obstáculos ao fornecimento de medicação considerada indispensável à sobrevivência da agravada, sob os repisados argumentos da repartição de
80 STF – Pet. nº 1246 MC/SC – ReIator Min. Celso de Mello – j. 31/01/1997 – DJ 06/03/1997. 81 Nessa esteira: RE nº 195.186-RS, ReIator Min. Ilmar Galvão; RE nº 195.192-RS, ReIator Min.
Marco Aurélio; RE nº 198.263-RS, ReIator Min. Sydnei Sanches; RE nº 237.367-RS, ReIator Min. Maurício Corrêa; RE nº 242.859-RS, ReIator Min. limar Galvão; RE nº 246.242-RS, ReIator Min. Néri da Silveira; RE nº 279.519-RS, ReIator Min. Nelson Jobim; RE nº 273.834-RS (AgRg), ReIator Min. Celso de Mello; STA nº 36/CE, ReIator Min. Nelson Jobim.
9955
competências, da falta de numerário ou da necessidade de pré-fixação de verbas para o atendimento dos serviços da saúde [...]. Este Relator, por sua vez, em casos semelhantes, já assinalou que a recusa em fornecer medicamento a paciente enfermo, com fundamento em argumentos de natureza puramente formal, constitui ato desarrazoado e, portanto, contrário à lei, passível, pois, de anulação por parte do Judiciário, ainda mais porque a saúde constitui um direito público subjetivo do cidadão e, em contrapartida, um dever do Estado, a teor do Art. 196 da Carta Magna.82
No Superior Tribunal de Justiça a tendência também muda:
SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE PORTADOR DO VÍRUS HIV. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. 1. Ação ordinária objetivando a condenação do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre ao fornecimento gratuito de medicamento não registrado no Brasil, mas que consta de receituário médico, necessário ao tratamento de paciente portador do vírus HIV. 2. O Sistema Único de Saúde – SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-Ia, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 3. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, posto legítima e constitucionalmente garantida, uma vez assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida. A saúde, como de sabença, é direito de todos e dever do Estado.83
DIREITO À SAÚDE. 1. Consoante expressa determinação constitucional, é dever do Estado garantir, mediante a implantação de políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário à saúde, bem como os serviços e medidas necessários à sua promoção, proteção e recuperação (CF/88, Art. 196). 2. O não preenchimento de mera formalidade – no caso, inclusão de medicamento em lista prévia – não pode, por si só, obstaculizar o fornecimento gratuito de medicação a portador de moléstia gravíssima, se comprovada a respectiva necessidade e receitada, aquela, por médico para tanto capacitado. Precedentes desta Corte. 3. Concedida tutela antecipada no sentido de, considerando a gravidade da doença enfocada, impor, ao Estado, apenas o cumprimento de obrigação que a própria Constituição Federal lhe reserva, não se evidencia plausível a alegação de que o
82 TJSP – Apelação Cível nº 13.511-51 – ReIator Des. Ricardo Lewandowski – j. 24/11/2004 –
DJ 05/12/2004. 83 STJ – REsp. nº 684646/RS – 1ª Turma – ReIator Min. Luiz Fux – j. 12/05/2005 – DJ
30/05/2005.
9966
cumprimento da decisão poderia inviabilizar a execução dos serviços públicos.84
O direito fundamental à saúde deve ser prestigiado, e nessa linha é
imperioso que o Judiciário reconheça sua importância e seus limites, para que
possa prever as conseqüências de suas atuações. Por vezes negar procedência a
um pedido individual se mostra mais coerente com os direitos à saúde, à vida e
dignidade humana que a procedência descomprometida. É necessário, mais que
bom senso, parâmetros de atuação.
5.2 O Papel do Poder Judiciário e a Prestação da Saúde
Aceita a possibilidade de jurisdicionalização do direito fundamental à
saúde, cumpre analisarmos um pouco da tarefa do Poder Judiciário na prestação
desse importante direito fundamental.
Levado ao Judiciário, o direito público subjetivo à saúde já deve ter se
ressentido da inércia de outras esferas do Poder Público, seja por falta de
atenção aos cuidados públicos de saúde, seja pela escassez de recursos públicos
ou quaisquer outras ações ou omissões atentatórias ao direito fundamental
anunciado.
Talvez por isso, via de regra, o que se impõe à apreciação judicial é a
análise de casos urgentes, casos de iminente risco à vida se prolongada a inércia
ou desatendimento, como exemplo da oferta de medicamentos, vagas de
internação em unidades de terapia intensiva, etc. Há, também, a possibilidade de
84 STJ – Ag. Reg. STA nº 83/MG – Corte Especial – ReIator Min. Edson Vidigal – j. 05/11/2004 –
DJU 06/12/2004. Na mesma linha: REsp. nº 577836/SC – 13ª Turma – ReIator Min. Luiz Fux – j. 02/02/2005 – DJU 28/02/2005; AgRg. REsp. nº 690483/SC – 13ª Turma – ReIator Min. José Delgado – j. 01/06/2006 – DJU 06/06/2005; REsp. nº 171.258/SP – ReIator Min. Anselmo Santiago – j. 01/12/1998 – DJU 18.12.1998; REsp. nº 231.550/CE – ReIator Min. Edson Vidigal – 03/01/2005 – DJU 21/02/2005; RMS nº 11.129/PR – ReIator Min. Peçanha Martins – j. 02/10/2001 – DJU 12/12/2001.
9977
judicialização de necessidades em saúde que não se mostram vitais,85 todas
passíveis de análise pelo Poder Judiciário.
A responsabilidade imposta aos juízes nessa questão sanitária se mostra
cada vez maior, a atuação dos juízes na efetivação dos direitos sociais é parte da
função do Estado como lembra Cappelleti:
[...] será difícil para eles não dar a própria contribuição à tentativa do estado de tormar efetivos tais programas, de não contribuir, assim, para fornecer concreto conteúdo àquelas ‘finalidades e princípios’; o que eles podem fazer controlando e exigindo o cumprimento do dever do estado de intervir ativamente na esfera social, um dever que, por ser prescrito legislativamente, cabe exatamente aos juízes fazer respeitar.86
A função jurisdicional em direito sanitário cumpre o papel imediato de
possibilitar uma resposta do Estado face à pretensão individual ou coletiva, bem
como uma função mediata de controle da atuação dos poderes Executivo e
Legislativo na questão sanitária.
Como lembra Luis Roberto Barroso87 em recente artigo sobre o tema,
várias críticas podem ser feitas à atuação judicial em saúde, como: a) serem as
normas sanitárias de natureza programática; b) o desenho institucional; c) a
legitimidade democrática; d) reserva do possível; e) desorganização da
Administração Pública; f) análise econômica do direito; g) aumento das
desigualdades econômicas e sociais e, h) a impossibilidade técnica de análise
judicial da necessidade dos pedidos.
Analisando tais pontos, o Art. 196 não encerra mera norma programática
e, como vimos, o direito sanitário é sim direito público subjetivo. Quanto ao
desenho institucional, o entendimento é que a melhor forma de otimizar a
85 Tomemos por procedimentos não vitais aqueles não destinados necessariamente à
conservação imediata da vida, destinados ao aumento da qualidade de vida e da longevidade, e intimamente relacionados à dignidade humana.
86 CAPPELLETTI, 1993, p. 42. 87 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e para a atuação judicial. Disponível em <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>. Acesso em: 01 mar 2008.
9988
eficiência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência, para tomar
decisões nesse campo, ao Poder Executivo, que possui visão global tanto dos
recursos disponíveis quanto das necessidades a serem supridas.
A crítica quanto à legitimidade democrática refere-se à retirada dos poderes
legitimados pelo voto popular da prerrogativa de decidir a sorte dos recursos
públicos. Quanto à reserva do possível, que toca a insuficiência dos recursos estatais
para atender às necessidades sociais, levando à necessidade de tomada de
decisões difíceis, mas não afasta a possibilidade de atuação judicial.
Quanto à crítica da desorganização da Administração Pública, tem-se a
situação gerada pela decisão judicial que determina a entrega imediata de
medicamentos, retirando o remédio de um paciente regular, para entrega ao
litigante individual que obteve a decisão favorável.
A análise econômica do direito refere-se ao benefício da população com a
distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria
obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde
pública.88
A crítica referente ao aumento das desigualdades econômicas e sociais
embasa-se, segundo Barroso, no privilégio àqueles que possuem acesso à
Justiça, por conhecerem seus direitos e poderem arcar com os custos do
processo judicial, que serviria à classe média e não aos pobres.
Por derradeiro há a crítica técnica de que o Judiciário não domina o
conhecimento necessário a instituir políticas de saúde e não tem como avaliar se
determinado medicamento é efetivamente necessário à saúde e à vida.
88 Lembra Barroso que: “Em 2007, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, já foram gastos
com os programas de Assistência Farmacêutica R$ 240.621.568,00 – cifra bastante superior aos R$ 102.960.276,00 que foram investidos em saneamento básico. Tal opção não se justificaria, pois se sabe que esta política é significativamente mais efetiva que aquela no que toca à promoção da saúde. Na verdade, a jurisprudência brasileira sobre concessão de medicamentos se apoiaria numa abordagem individualista dos problemas sociais, quando uma gestão eficiente dos escassos recursos públicos deve ser concebida como política social, sempre orientada pela avaliação de custos e benefícios” (Idem).
9999
Não nos parece que tais críticas tendem a extinguir o acesso ao judiciário
de questões de direito sanitário, notadamente em caráter prestacional, o que se
revela é a preocupação com os efeitos da atuação judicial isolada da análise das
possibilidades do Estado e das conseqüências da decisão judicial no sistema
público.
Inadmissível é a concessão judicial de pedidos sanitários a qualquer
preço, sempre que se apresente ao magistrado o argumento da ofensa à
dignidade humana e risco iminente de morte. Não estamos a dizer que não sejam
motivos justos o suficiente à ensejar procedência do pedido, mas que, se há
possibilidade de preservação da dignidade humana e da vida por meios diversos
daqueles apontados pelos litigantes, menos onerosos ou de prestação direta pelo
Estado, há que se proteger o direito à saúde, não o direito à procedência do
pedido judicial sanitário.
Não é aceitável que se coloque a magistratura na condição de salvador
ou de carrasco, assim como não é aceitável que a magistratura imponha este
papel aos sujeitos responsáveis pelo sistema público, proclamando decisões sem
critérios.
O mais importante é o estabelecimento de balizas para a atuação judicial
sanitária. Não há mais público para a negativa da autuação judicial, assim como
não deve prosperar a política do cada um por si entre os poderes do Estado
Brasileiro, onde hoje os juízes são solicitados a determinar atendimentos, ou
obrigar a entrega de medicamentos, como se a estrutura sanitária ordinária não
estivesse em plenitude de atuação por conta de desestímulo espiritual, ou desídia
dos sujeitos públicos, ou por qualquer outro motivo que tornasse indispensável a
apresentação de liminares junto aos pacientes.
Mais uma vez: os magistrados não podem condenar agentes públicos
como responsáveis pelo mau atendimento sanitário e por descumprimento de
medidas judiciais. É o risco da atuação judicial descomprometida, não com a
efetivação dos direitos sociais, como acima mencionamos com Mauro Cappelletti,
mas descomprometida com o sistema sanitário público (e possível), que, se não é
110000
capaz de atender a todos, que atenda ao maior número possível de pessoas, ai
sim, sob pena de judicialização.
Um caso que pode muito bem ilustrar a importância da atuação judicial
em questão sanitária é a seguinte: em março do ano de 2008, na cidade do Rio
de Janeiro, que foi atingida por grave epidemia de dengue, o Ministério Público
Estadual ingressou com ação civil pública para exigir do Estado e Município do
Rio de Janeiro o atendimento à toda a população, se não por estabelecimento
próprio ou credenciado, através da rede privada de saúde, A juíza de Direito
Patrícia Cogliatti de Carvalho assim se manifestou:
Decido. Diante da gravidade da situação narrada, que é de conhecimento geral e notório, assim como o é o completo descaso das autoridades públicas com a epidemia que se disseminou neste Estado, demonstra-se imprescindível a adoção de medida de urgência com escopo de ao menos tentar reparar ou amenizar as suas conseqüências [...]. Portanto, determino que os demandados encaminhem, no prazo de 24 horas, os pacientes com suspeita de dengue ou com diagnóstico confirmado, às clínicas e hospitais conveniados ao SUS que possuam clínica médica e pediatria, para que estas sejam integradas à rede de urgência de atenção à dengue, a fim de receberem primeiro atendimento, tratamento ambulatorial, exames e internação, além das demais medidas necessárias ao diagnóstico e tratamento. Caso não seja possível a providencia acima mencionada, determino que os demandados encaminhem os pacientes à rede médico hospitalar privada, não conveniada ao SUS, quando deverá haver devido controle dos usuários atendidos e o pagamento à instituição privada em até 20 dias com base na tabela SUS, na forma requerida pelo Ministério Público, no item 02 a 06 da petição inicial.89
Neste caso o Poder Judiciário reconheceu a importância da concessão da
medida liminar a fim de exigir que o Estado e o Município atendessem a todos os
enfermos, ainda que se valesse da estrutura privada de saúde, que deveria ser
posteriormente remunerada com base na tabela própria do Sistema Único de
Saúde. A atuação judicial foi a resposta do Estado à sociedade, que experimentou
a inércia das autoridades ordinariamente competentes à prestação sanitária.
89 O texto da medida liminar concedida foi disponibilizado através do sitio do Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro, acessado em: 29 mar. 2008. Disponível em: <http://www.mp.rj.gov.br/pls/portal/docs>.
110011
Um contraponto talvez possa ser encontrado na decisão do Poder
Judiciário do Estado de São Paulo, veiculada no Jornal da Cidade, em Bauru,
interior do estado, em de 26 de janeiro de 2008. A manchete jornalística dava
conta de que Ação garante prótese peniana a bauruense, e seguiu:
Um bauruense paraplégico conseguiu na Justiça o direito de receber do Estado uma prótese peniana avaliada em cerca de R$ 30 mil. O caso é considerado inédito no âmbito da Defensoria Pública de Bauru, que ingressou com ação na Vara da Fazenda Pública solicitando o equipamento ao governo estadual. O processo foi julgado procedente e, na sentença, o juiz substituto Rodrigo Vieira Murat determinou o cumprimento imediato da decisão à Direção Regional de Saúde 6 (DRS-6), que poderá recorrer ao Tribunal de Justiça. Os defensores públicos Márcia Rossi Coraini, que moveu a ação, e Luis Guilherme Pereira Delledono, que a auxiliou no processo, explicaram que, preliminarmente, a liminar foi negada pela Justiça. No entanto, no julgamento do mérito, o juiz reconheceu o direito constitucional da saúde e da dignidade humana, os principais argumentos utilizados pelos defensores públicos na peça, e determinou ao Estado o fornecimento da prótese ao bauruense, que ficou paraplégico após um acidente automobilístico há 21 anos e, desde então, tem capacidade limitada para manter relações sexuais.90
Não se questiona a fundamentalidade do direito à saúde especificamente
tutelado, tampouco a importância do atendimento ao pedido formulado. O que
pretendemos é contrastar atuações judiciais, a fim de estabelecermos a
importância do estabelecimento de regras básicas à judicialização da questão
sanitária.
Pode ser que a noticiada concessão de prótese fosse possível mesmo
após a sujeição da decisão aos quesitos colocados em seguida, o que seria ideal
e, se respondidos os quesitos formulados antes da sentença favorável, não
restariam dúvidas de que o Poder Judiciário atuou considerando todos os fatores
relacionados à pretensão, às possibilidades e às conseqüências sociais.
Tanto as demandas individuais quanto as coletivas são possíveis e
devem ser asseguradas em Direito Sanitário, decerto as preocupações encontram
90 Disponível em <http://www.jcnet.com.br/busca/busca_detalhe2008.php?codigo=122554>.
Acesso em: 20 fev. 2008.
110022
amplitudes diferentes, bem como as peculiaridades processuais devem ser
atendidas (objeto, legitimados, competência, etc.). Contudo, no que tange à
coercitividade das decisões judiciais procedentes, as demandas polarizam ordens
a serem cumpridas pelo agente público, em última análise, linha de frente na
resposta estatal.
5.3 Limites à Atuação Judicial
Superada a questão da possibilidade de análise judicial do direito
à saúde, posto que encerra verdadeiro direito público subjetivo, anunciamos a
imperiosa necessidade de comprometimento dos julgadores em sua análise, que
deve ser posterior à inércia ou má atuação dos órgãos públicos ordinariamente
incumbidos.
A atuação judicial, em causas individuais ou coletivas, compreende
inúmeras diferenças e, encontram resistências diversas, mas os limites da
atuação judicial a que nos propomos, atinem a ambos. Quando o Poder Judiciário
deixa de analisar amplamente a situação sanitária, via reflexa reconhece que o
agente público não efetivou, antes, por desídia ou falta de apego à causa alheia.
Impor decisões em saúde, com certeza, envolve questões muito mais
complexas que a falta de interesse do agente público e, deita raízes na falta de
recursos financeiros do sistema. Essas possibilidades financeiras do Estado são
apresentadas inicialmente por negativas aos requerimentos realizados à
Administração Pública. Mas a cultura da judicialização sem critérios, somada à
falta de comunicação entre Poderes faz com que a população acredite que o
problema não seja de falta de recursos, mas, sim, de descaso do agente público.
Não estamos a defender o agente público, que no mais das vezes é
relapso na atuação sanitária, mas estamos a tratar dos agentes que, de fato, são
levados a decidir sobre a oferta sanitária possível. Nestes casos, muitas vezes as
sentenças judiciais determinam a responsabilização pessoal do agente em caso
110033
de descumprimento da determinação, o que acaba por servir como salvo conduto
ao mesmo, que estará obrigado atender o litigante em desfavor dos seus pares
enfermos não litigantes.
Mais uma vez: não somos contra a possibilidade de judicialização, mas
repudiamos a alimentação da cultura da judicialização sanitária descomprometida,
que acaba por inviabilizar políticas públicas sanitárias. Se ao juiz é imposta a
decisão sobre a vida ou a morte de paciente, que pleiteia judicialmente seu
atendimento possível, por óbvio haverá socorro judicial em conseqüência.
A miséria do Estado não é posta por conta da prestação sanitária
judicialmente concedida, e não podemos desacreditar o Poder Judiciário
enquanto ultima ratio. Carlos Maria Cárcova escreveu sobre o juiz e a sociedade
interessante passagem:
Los jueces aparecen instalados en imaginario de la sociedad como ultima ratio, como garantes finales del funcionamiento del sistema democrático. Desacreditado el sistema político que no parece funcionar sin altas cotas de corrupción; ensachada de manera cada vez más profunda la brecha entre representantes y representados; cercada la gobernabilidad por la lógica implacable de mercado y por la sobredeterminación de poderes transestatales y transnacionales, se há depositado, se diría, más por razones sistemáticas que de otra índole, una mayor expectativa en la performance del Poder Judicial que en la de los otros poderes de Estado.91
Reafirma-se a posição de subsidiariedade da judicialização da questão
sanitária, mas como a atuação administrativa ordinária é deficiente e cresce o
descrédito nas vias tradicionais, cresce, também, as filas de acesso ao Judiciário.
[…] una visión crítica y discursiva del derecho implica concebir el papel de los jueces – para volver de una vez a ellos – como un papel creativo, interveniente, teleológico. Como un papel que debe atender tanto aI plexo de valores contenidos en las normas y fundamentalmente a las garantias básicas consagradas en cada ordenamiento, cuanto a los efectos sociales de su aplicación.92
91 CÁRCOVA, Carlos Maria. Los jueces en la encrucijada: entre el decisionísmo y la
hermeneutica controlada. In: Revista AJURIS, nº 96. Porto Alegre: RJTJRGS, 1996, p. 317. 92 Ibidem, p. 325.
110044
Aumentando a judicialização, tanto maior o impacto dessa na sorte das
políticas públicas (por mais desacreditadas que estejam). Comprometimento dos
julgadores é o que se exige, impedindo que prevaleça a cega atuação, ora
negando a judicialização do direito à saúde, ora deferindo pedidos sem considerar
a posição do Estado, seus recursos e políticas.
Condicionar a prestação sanitária aos limites do Estado, à reserva do
possível, é algo cruel, mas necessário, a judicialização não pode sufocar a
prestação ordinária, sob pena de se tornar a regra.
Portanto, é preciso que haja critérios específicos para decisões judiciais
sanitárias, que preservem a subsidiariedade da medida e possibilite ao Estado a
continuidade na prestação sanitária ordinária.
Propomos a adoção de um questionário aplicável na análise das
demandas sanitárias pelo julgador, preservando grande margem ao livre
convencimento do magistrado.
O juiz comprometido deve inicialmente ter conhecimento da situação do
sistema público de saúde, verificando os motivos da falta de atendimento ou
fornecimento (individual ou coletivo), de forma a não presumir a desídia do
sistema público. Em seguida, entendendo que a demanda analisada possa
encontrar inúmeras similares, todas diante de recursos públicos cada vez mais
escassos, deve responder às seguintes questões:
a) o pedido formulado é o meio mais adequado de atenção ao problema
apresentado pelo demandante, mesmo se considerando as inúmeras causas
idênticas possivelmente existentes?
Sendo tratamento totalmente abandonado pelo sistema público, cuja
atenção seja razoável exigir-se do Estado, a concessão da medida individual ou
coletiva deve acompanhar comunicado à Administração Pública sobre a situação
sanitária que sinaliza a possibilidade de crescente judicialização no tema
específico.
110055
b) existe qualquer outro tratamento ou medicamento que não o postulado
na inicial, mas possível de prestação pelo SUS?
Comprovada a eficácia do tratamento público disponível e, a
impossibilidade de prestação em massa do tratamento requerido, sinaliza-se para
a impossibilidade de procedência da demanda.
c) há critérios discriminadores entre a demanda em análise e outras que
pretendam também parcela dos recursos públicos?
Ao juiz não é dado gerenciar os cofres públicos, mas o conhecimento das
possibilidades da Administração e do volume de demandas sanitárias existentes
pode e deve ser confrontado, não apenas pelo juiz, mas também pela
Administração. Tal medida contribuiria não só para a conscientização na prolação
de sentenças em casos mais ou menos urgentes, como para a adoção de
caminhos na atuação do sistema público de saúde.
Assim, se o pedido formulado é o adequado ao restabelecimento da
saúde, não há no sistema público tratamento similar ou que atinja aos fins
pretendidos e na hipótese de existirem outros casos judiciais em idêntica posição,
este se revele mais urgente, há procedência.
Ao propormos critérios à decisão dos magistrados pretendemos tornar objetiva,
em parte, a decisão sanitária específica, onde os pedidos envolvem, via de regra,
fundamentações sobre a preservação do direito à vida e da dignidade humana.
Parece desumano então decidir pela reserva do possível, mas pode ser
necessário. Assim como não é justo transferir o problema da escassez de
recursos à pessoa do agente público (por vezes autoridade coatora em mandados
de segurança), que irá interferir em filas, cadastros e toda a burocracia da
pobreza pública sanitária.
Casos há em que não existe tempo para qualquer outro ato senão a
concessão de liminares, que não podem ser proferidas a fundo perdido, impondo
análise objetiva no decorrer do processo.
110066
Retomando uma lição de Amartya Sen, agora sobre a possibilidade de
progresso baseado na razão:
A idéia de usar a razão para identificar e promover sociedades melhores e mais aceitáveis estimulou intensamente as pessoas no passado e continua a faze-lo no presente [...]. Precisamos, então, de uma estrutura avaliatória apropriada; precisamos também de instituições que atuem para promover nossos objetivos e comprometimentos valorativos, e, ademais, de normas de comportamento e de um raciocínio sobre o comportamento que nos permita realizar o que tentamos realizar.93
O desafio é realizar progressos no sistema sanitário público, possibilitar a
judicialização excepcional e, até chegarmos ao ponto desejado de atenção
máxima ao direito fundamental à saúde, não permitir ofensas gratuitas a esse
direito.
Decerto que se trata do atendimento possível, não do atendimento ideal,
e que sem a racionalização da atuação judicial sanitária – que permita e fiscalize
o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde – jamais será o possível.
93 SEN, 2000, p. 284.
110077
66 CCOONNCCLLUUSSÕÕEESS
Em momento algum perdemos de vista a fundamentalidade do direito à
saúde, sua importância na preservação da dignidade humana e tampouco o dever
do Estado de preservá-la.
Na história das constituições brasileiras a Constituição da República
Federativa do Brasil imprime sua preocupação na formulação de um sistema
público de saúde que atenda às necessidades crescentes de seu povo. A
construção do Sistema Único de Saúde encontra os problemas oriundos da
originalidade de seus objetivos no Estado brasileiro, notadamente a
universalização e integralidade no atendimento.
Para estruturação de um sistema público novo e eficaz, mais que tempo,
é imprescindível recursos financeiros, que levem à construção de uma estrutura
física e humana ao menos suficiente a prestar saúde.
Admitimos que estamos em um período de transição, de implementação
de um sistema público de saúde – SUS, ainda que já contemos com vinte anos da
promulgação de nossa Constituição e, que a judicialização deve ser garantida
cumprindo duas importantes funções: a) possibilitar a fiscalização da instalação
do sistema público e b) não permitir a supressão gratuita do direito fundamental à
saúde.
A implementação do sistema público encontra na admissão da
participação privada uma ferramenta fundamental na prestação sanitária. A
celebração de contratos e convênios com instituições privadas, preferencialmente
filantrópicas, permite a chegada do Estado-saúde onde os limitados recursos
públicos ainda não permitiram, em quantidade e conseqüente qualidade.
Façamos nota sobre a retirada de importante parcela da população das
filas do serviço público face à preservação e regulação do sistema de saúde
110088
suplementar, fruto da dita universalização excludente, mas que em grande
proporção diminui os números de atendimentos e prestações sanitárias exigidas
do Estado. Em contraponto, a retirada da classe média das filas do serviço
público decerto que retira, também, grande pressão popular contra descasos com
a saúde, por sua força política face ao conhecimento de seus direitos.
A participação privada, a manutenção do sistema suplementar e a
possível judicialização podem ser vistas como contribuições à tarefa de
implementação do Sistema Único de Saúde, por permitirem a concentração
dos recursos existentes (e possíveis) na formação do serviço público
sanitário.
Contudo, a judicialização descomprometida atua como fator fortemente
impeditivo da instalação do sistema público eficiente e mais, inviabiliza a
prestação ordinária mínima, por vezes irracionalmente dividindo a reserva do
possível.
A judicialização é indispensável, mas deve atender a sua função de
viabilizar o sistema, daí a imperiosa necessidade de implementação de critérios
racionais à prestação judicial sanitária.
Neste ponto específico, culminamos por ofertar três quesitos que devem
ser respondidos pelo juiz comprometido, ante a uma pretensão judicial sanitária.
Repetimos:
a) o pedido formulado é o meio mais adequado de atenção ao problema
apresentado pelo demandante, mesmo considerando-se as inúmeras causas
idênticas possivelmente existentes?
b) existe qualquer outro tratamento ou medicamento que não o postulado
na inicial, mas possível de prestação pelo SUS?
c) há critérios discriminadores entre a demanda em análise e outras que
pretendam também parcela dos recursos públicos?
110099
Este comprometimento anunciado pode se valer, também, de outros
mecanismos de relacionamento e certificação entre Poderes, para que o
magistrado não presuma a inércia voluntária do agente público em toda demanda
que se funde no direito à saúde.
Não é justo que a população e, mesmo o Poder Judiciário, coloquem os
agentes públicos atuantes na prestação sanitária como responsáveis pela
ineficiência do sistema público, posto que a esses é relegada a tarefa de anunciar
as possibilidades do Estado.
Colocada a judicialização, os juízes não podem, sem conhecimento das
possibilidades reais, condenarem os agentes pela falta de atenção à questão
sanitária, mas, sim, racionalmente analisar o pedido e suas conseqüências.
As impossibilidades geradas pela falta de recursos não são sanadas pela
judicialização, mas a judicialização comprometida pode ajudar a tornar possível
um sistema público eficiente.
111100
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