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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 28 A 31 DE JULHO DE 2009, RIO DE JANEIRO (RJ) GRUPO DE TRABALHO: TEORIA SOCIOLÓGICA

Sbs2009 GT29 Charlles Da Fonseca Lucas

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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

28 A 31 DE JULHO DE 2009, RIO DE JANEIRO (RJ)

GRUPO DE TRABALHO: TEORIA SOCIOLÓGICA

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INDIVÍDUO, SOCIEDADE, CULTURA E CIVILIZAÇÃO EM NORBERT ELIAS

CHARLLES DA FONSECA LUCAS1

A SOCIOLOGIA EM ELIAS: PROFISSÃO OU VOCAÇÃO?

Lembro-me do pequeno professor de segundo ciclo, sr. Ries, ao qual devo meus conhecimentos fundamentais, assim como meu amor pela língua e a literatura francesas, e do sr. Krüger, responsável, entre outras coisas, pela organização de um curso especial de filosofia destinado aos alunos de minha classe. Meus colegas de classe mais brilhantes faziam parte desse grupo. Eu era amigo de alguns dentre eles. Líamos Kant, e minha decisão posterior de seguir estudos de filosofia, paralelamente aos estudos de medicina, explica-se em grande parte pelo estímulo intelectual que esse grupo de alunos me proporcionou. (ELIAS, 2001:94).

Elias não teve êxito nas tentativas de conciliar os estudos de medicina

com os de filosofia e psicologia. As intempéries e os contragostos malograram

a sua empreitada. Mais do que isso, descobriu nos estudos de filosofia e

psicologia que não queria ser médico. E a medicina mostrou-lhe que o seu

amor pela filosofia e a psicologia era maior do que aquele que mantinha por

ela. Elias escutou o seu coração e resolveu assumir a filosofia como legatário

de Sócrates e “abandonar” os estudos de medicina, sanando temporariamente

essa crise profissional.

Um dia, fui interrogado no anfiteatro da clínica ORI e tive que responder a algumas perguntas. As respostas que dei foram absolutamente ridículas, porque não sabia nada daquilo. Assim foi que pouco a pouco decidi interromper meus estudos;

1 Mestre em Sociologia (IUPERJ). Especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal

e Segurança Pública (UFF), em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (USP) e em Sociologia Urbana (UERJ). Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais (Concentração em Sociologia, Ciência Política e Antropologia) – (UERJ). Professor Substituto de Didática no Departamento de Sociedade, Educação e Conhecimento (SSE) da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Sociologia Geral no Curso de Formação de Oficiais (CFO) da Academia de Polícia Militar (APM) Dom João VI da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), de Sociologia e Filosofia no Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Pascoal Carlos Magno da Coordenadoria Regional Metropolitana IX da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEE/RJ). Foi Professor Substituto de Sociologia, Sociologia do Trabalho, Sociologia da Cultura, Antropologia Cultural e Filosofia I e II no Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis (CEFETEQ/RJ, atualmente Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro- IFRJ) e Pesquisador Bolsista da Fundação para Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (FIOTEC) no Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

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e dizia comigo também que na verdade eu não tinha intenção de me tornar médico. Eu queria ser filósofo. (ELIAS, 2001:38).

Será que Elias realmente “queria ser filósofo”? Por que, então, não atuou

como profissional da filosofia e/ou da psicologia, já que tinha essa dupla

formação? O tempo dissipou as nuvens de indecisões e revelou que a sua

formação, aditada mormente com as experiências na fábrica e na Primeira

Grande Guerra, foi o estágio preliminar para que viesse a optar pela sociologia

como seu mais novo e definitivo projeto de vida. “[...] depois de minha

experiência durante a guerra e na fábrica, era natural que quisesse fazer

estudos que tivessem mais próximos da realidade da vida” (ELIAS, 2001:44).

E, nessa opção, Elias conseguiu pôr em “boa harmonia” as contendas entre a

medicina, filosofia, psicologia e outras ciências, dando ao seu investimento

intelectual um caráter eminentemente interdisciplinar e tomando para si o papel

de amante das ciências. Para tanto, divorciou-se da filosofia como formação e

amante exclusiva, reatando o seu relacionamento de amor com ela e as outras

em uma área de convívio entre disciplinas. “Disso resulta a abordagem

interdisciplinar que fascina cada vez mais seus leitores” (WAIZBORT, 1999),

que foi classificada erroneamente pela apresentação editorial do mesmo livro

como uma “abordagem multidisciplinar”. Diante desse equívoco,

aparentemente inofensivo na desfaçatez do seu poder destrutivo, é importante

frisar que pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e

transdisciplinaridade não são sinônimos e, sim, tipos substancialmente

diferentes de disciplinaridade. Sem o estabelecimento e exploração desse

terreno interdisciplinar, Elias não teria revolucionado a sociologia, seria apenas

mais um dos que fizeram sociologia através da própria sociologia.

Seus estudos de medicina tiveram alguma influência em seu pensamento?

Oh, sim! Uma influência enorme. Vejam, os sociólogos que não fizeram estudos de medicina falam com freqüência da sociedade sem integrar em seus discursos os aspectos biológicos do homem. E isso, me parece, é um erro. Os sociólogos têm uma atitude defensiva com respeito à biologia porque temem que a sociologia perca sua substância na biologia. A meu ver, não se pode construir uma teoria... digamos, da atividade humana, sem saber como o organismo é construído e como ele trabalha. Inclusive, quando são desenvolvidas teorias epistemológicas, em filosofia, e que não

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se sabe nada sobre as estruturas do cérebro, aí tem algo de errado. Quanto a mim, ocorreu-me inserir em minhas aulas de sociologia um corte do cérebro, a fim de mostrar aos estudantes como os homens são construídos, porque só aí eles são capazes de compreender como as sociedades funcionam. Dessa forma, não reduzo a sociologia à biologia.

[...] Conservo até hoje um interesse pelas relações entre os

músculos, os ossos, os nervos e as vísceras, e nem sempre consigo imaginar que um sociólogo possa ter uma idéia correta dos homens sem possuir conhecimentos desse tipo.

[...] Só mais tarde compreendi com clareza que o estudo da

medicina fora uma das experiências fundamentais que me estimularam a abandonar a filosofia para me consagrar à sociologia. Mas até os anos 60, quando dava minhas aulas de introdução a alunos de sociologia, tinha às vezes ao alcance da mão um crânio humano desmontável. Parecia-me que um estudante de sociologia devia ter algumas noções essenciais da estrutura do sistema nervoso humano para ser capaz de se aproximar da concepção do homem indispensável à compreensão de contextos sociais, ou seja, uma concepção do homem como fundamentalmente organizado para viver em meio a homens, animais, plantas e minerais. (ELIAS, 2001:38, 96 e 99).

Nem mesmo a epistemologia, que é uma fração da filosofia, poderia na

sua disciplinaridade, dar o conforto que a sociologia forneceu privadamente a

Elias na junção das peças bio-psico-sócio-filosóficas e culturais.

Lamentavelmente, as lições de Elias não foram difundidas o suficiente, ou

convincentes o bastante, para que os cursos de sociologia e até os de

antropologia e ciência política eliminassem essa resistência à biologia, quando

as grades curriculares desses cursos espelham abertamente esse

protecionismo inexplicável. Recordo que os únicos contatos que travei com a

biologia no curso de graduação em ciências sociais na Universidade do Estado

do Rio de Janeiro não foram nas disciplinas de sociologia, mas nas obrigatórias

de antropologia (antropologia biológica I e antropologia biológica II), que não

eram muito bem vistas pelo colegiado de professores, inclusive pelos docentes

de antropologia, que reconheciam, majoritariamente, a antropologia social ou

cultural como antropologia, menosprezando a antropologia biológica ou física

como ciência. As noções básicas adquiridas sobre as origens da espécie

humana, evolução, paleontologia, nas aulas expositivas e práticas, que eram

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realizadas no laboratório de antropologia biológica, foram de grande préstimo

para a minha formação e servem de coro aos ensinamentos de Elias. Com as

reformas do currículo, mais cedo ou mais tarde, essas disciplinas

possivelmente vão perder, na “melhor” das hipóteses, a sua condição de

obrigatoriedade.

No interior do crânio humano, quando das seções de dissecação, eu não encontrava nada além dessa estrutura extraordinariamente complexa do cérebro, cujo modo de funcionamento ainda era em grande parte um mistério, mas cuja estrutura fundamental correspondia ao caráter complementar das percepções sensoriais e do movimento, à comunicação permanente entre o “mundo interior” e o “mundo exterior”, à relação que existe entre a orientação e a conduta de si no mundo mais vasto.

A divergência entre essas duas concepções do homem – por um lado filosófica e idealista, por outro anatômica e fisiológica – preocupou-me durante vários anos. Obstinava-me esse problema, voltava sempre a ele, e só muito depois de ter me dedicado à sociologia encontrei a resposta clara. Esse abandono da concepção dominante do homem – do homem hermeticamente fechado ao mundo exterior, do homo clausus – e essa passagem para a concepção oposta, a concepção do indivíduo fundamentalmente em relação com um mundo que não é ele mesmo ou ela mesma, com outros objetos e em particular com outros homens, foram para mim o resultado de um longo processo intimamente ligado ao meu abandono da filosofia. (ELIAS, 2001:98).

Na anterioridade dessa citação atentamos, junto com Elias, para o fato de

que os sociólogos costumeiramente negam o biológico nas suas formações,

porque não foram formados, em um primeiro momento, para coligir ou porque

são incitados a praticar esse exercício cartesiano e repulsivo como meio de

autoafirmação de uma superioridade inferiorizada durante longos tempos no

embate entre as ciências naturais e humanas, entre os métodos nomotético e

idiográfico. Agora, vemos com Elias que as abordagens humanísticas da

medicina e da filosofia são insustentáveis em si, quando não são contraditórias

nos seus elevados graus de idealismo. A medicina e a filosofia, sozinhas ou em

parceria, não podiam ajudar Elias a sair desse impasse certo de que

encontraria uma boa resposta para as suas aflições, porque eram duas visões

herméticas na “anatomia/fisiologia” ou na “filosofia/idealismo”. E foi na opção

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pela sociologia, estribada nessas concepções e na literatura clássica alemã,

que Elias se fartou daquilo que seu espírito carecia.

Ainda hoje, o papel desempenhado pela literatura alemã clássica em minha formação inicial, que se exprimia através do orgulho de que eu sentia de ter esses livros e pelo fato de haver mergulhado muito cedo nessa literatura, me parece determinante. É à literatura alemã, entre outras, que devo a extensão e a profundidade de minha abordagem dos problemas humanos, e isso mesmo quando comecei a compreender a insuficiência da orientação filosófico-idealista e que adotei finalmente, consagrando-me à sociologia, uma atitude crítica em relação a seu humanismo tradicional. Foi na luta contra essa falta de senso da realidade e suas conseqüências evidentes na própria sociologia que se desenvolveu a meu ver, minha própria trajetória sociológica. Mas essa transformação radical foi resultado de um processo relativamente longo. Uma longa série de experiências contribuiu para isso. Não estou certo de que fossem todas conscientes. (ELIAS, 2001:95).

Mais uma vez deparamos com as projeções idealistas de Elias sobre a

literatura clássica alemã como veio vindicativo de sua herança na inteligência

burguesa apolítica alemã. O que Elias estava querendo era um lugar que não

fosse simplesmente o identitário (a literatura clássica alemã) e/ou o de

formação estudantil (a medicina) e profissional (a filosofia e a psicologia); em

outras palavras, visava a encontrar um refúgio que atendesse às suas

expectativas ao vingar os limitadores identitários e formadores de arrojo e as

suas inquietudes cerebrinas, resgatando, ao mesmo tempo, na contramão do

processo, as suas identidade e formação numa nova chave de significância.

Nesse instante, ser estudante de medicina, profissional da filosofia e psicologia,

herdeiro da intelligentsia alemã eram condições existenciais vazias em si, re-

significadas na sua opção pela sociologia. “A meu ver, era característico de

uma ética ‘profissional’ mal compreendida postular que era preciso ter

estudado sociologia e nada além da sociologia para se tornar um bom

sociólogo. Tinha às vezes a impressão de que a imaginação sociológica se

beneficiava enormemente de seus representantes terem estudado outra coisa

que não a sociologia” (ELIAS, 2001:92).

O que é de causar perplexidez é que muitos dos comentadores eliasianos

perseveram na ideia de que Elias era um sociólogo por formação, e foram

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justamente essas imperícias que motivaram, em parte, a origem deste artigo,

uma vez que Elias afirma que “Max Weber era sociólogo não por formação,

mas por escolha. O mesmo vale para numerosos sociólogos dos anos 20, os

sociólogos da primeira geração. Eu mesmo sou um deles” (ELIAS, 2001:92-

93).

Operamos freneticamente com as ideias de formação e opção para que

nesse momentum da argumentação pudéssemos problematizar a maneira

como Elias se via na sociologia, arriscando a seguinte pergunta: a sociologia

para Elias era uma opção profissional, descamisada de formação, ou uma

vocação? A resposta para essa indagação está na interpretação weberiana

(1998) da ideia de vocação como um desdobramento do duplo significado do

termo beruf, profissão ou chamada (vocação), alcançado com a tradução

bíblica efetuada por Lutero. Na realidade, Elias não optou pela sociologia como

profissão e projeto de vida a ser seguido. Mais do que isso, Elias foi chamado

pela sociologia no campo de guerra para servi-la. “Creio que a I Guerra Mundial

foi para mim o divisor de águas. Tudo o que vivi então me deu a convicção de

que só os homens podem ajudar outros homens e que eu era o único que

podia ajudar a mim mesmo” (ELIAS, 2001:80). A sua missão consistia em

auxiliar sociologicamente os homens nas suas trajetórias sociobiográficas e,

consequentemente, a si mesmo. Eis a sua vocação entre os homens.

AS SOCIOLOGIAS DA CULTURA E DO CONHECIMENTO: ELIAS ENTRE ALFRED

WEBER E KARL MANNHEIM

Em meados do século XX, os sociólogos com uma vasta cultura histórica não eram raros, e muitos já constatavam que o conhecimento do passado é indispensável para compreender os problemas do presente. A maioria deles, inclusive eu, tinha conhecimento das estruturas das sociedades do passado não como historiadores, mas por um trabalho pessoal adaptado aos problemas sociológicos que buscavam resolver. Era o caso de Marx; em história e em outros domínios, ele era em grande parte um autoditada. Mesmo caso, mais tarde, de Sombart, Max e Alfred Weber, sem falar em Mannheim, sobretudo quando preparava sua exposição sobre o pensamento conservador. Seus conhecimentos repousavam em situações sociológicas anteriores, e em parte precisamente porque as questões que todos esses sociólogos formulavam, a perspectiva na qual utilizavam o material “histórico”, se

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distinguiam radicalmente das questões colocadas pelos historiadores especialistas.

As gerações seguintes, que não compreendiam mais essa diferença, cujos conhecimentos e centros de interesse se limitavam a um presente bastante exíguo, chamaram mais tarde de “sociologia histórica” essa maneira de visar as estruturas sociais do passado, os problemas sociológicos concernindo a fases anteriores da sociedade; mas trata-se de uma designação enganadora. Todos os sociólogos que citei interrogavam o passado sobre assuntos não históricos, mas sociológicos. Compreendiam freqüentemente o que é a dinâmica da sociedade. (ELIAS, 2001:146).

Aqui está uma das ideias que vem sendo amiudada como chavão pela

academia sobre as primeiras gerações da moderna sociologia alemã, mas que

não achou direitos de genuinidade na análise eliasiana, comprometida

basicamente em desmitificar esse olhar descontextualizado. Na condição de

participante dessa tradição, Elias nega que os membros dessa sociologia

tenham pactuado em constituir uma sociologia histórica; pelo contrário, o

interesse deles era sociológico e não historiográfico. Tanto nos projetos

pessoais, quanto na totalidade dessa linhagem difusa, a história aparece

sempre a serviço da sociologia. Sem fazer uma sociologia da história

(sociologia histórica) e, muito menos, uma historiografia sociológica, esses

autores sociologizam a história nas suas leituras para atingir, com exatidão de

cálculos, os alvos que foram almejados em suas investigações.

O que, me parece, dá a esse debate uma acuidade particular é o papel central que a análise da obra de Marx e da concepção materialista da história desempenhou na sociologia alemã dos anos 20. A sociologia de Mannheim, assim como a de Max e Alfred Weber, só pode ser concebida, de fato, como forma diferente desse confronto constante com a teoria marxista da sociedade. Todas as duas representam tentativas de superar a teoria marxista da sociedade e da história. Mannheim empenhou-se nisso, entre outras coisas tentando aplicar ao marxismo a concepção dualista segundo a qual o ser determina a consciência; Max Weber, com extrema prudência, entre outras coisas recorrendo ao conceito da ética econômica das religiões. Estava tentando comprovar a hipótese segundo a qual as religiões, precisamente por sua ética econômica, podem tomar parte ativa na formação de estruturas econômicas. Alfred Weber fez o mesmo ao atribuir à cultura uma relativa autonomia em relação aos desenvolvimentos econômicos e, ao mesmo tempo, ao opor aos interesses de grupos sociais, que podemos apreender de

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maneira empírica, uma esfera intelectual e espiritual quase impossível de captar empiricamente.

Talvez eu devesse acrescentar que a atualidade desse debate e do problema da superação da teoria marxista pela sociologia não é nem menos nem mais aguda hoje do que nos anos 20. Parece-me, porém, que todas as tentativas de contornar a dificuldade que cria obstáculos à sociologia são vãs. Max desenvolveu uma teoria dos processos sociais de longo prazo que atribui a uma esfera parcial do desenvolvimento da sociedade a função de um motor da evolução em seu conjunto. Estou seguro de que não se pode ignorar essa hipótese. Ela é indispensável. No futuro, a meu ver, toda teoria sociológica deverá conter uma teoria dos processos sociais de longo prazo.

O que se pode desde hoje dizer com certeza é que a tentativa de reduzir o motor dos processos sociais a uma esfera única da vida em comum, isto é, a esfera econômica, não corresponde aos fatos tangíveis. Outros impulsos que não os de uma ordem estritamente econômica operam na evolução social não-planejada. (ELIAS, 2001:132).

Todavia, indiferentemente de sua manifestação, Elias tem sido visto pelos

intelectuais como integrante dessa tradição e promotor de uma sociologia

histórica, inclusive, por Richard Sennett e pelo History, que outorgaram as suas

críticas literárias do segundo volume d’O Processo Civilizador,

respectivamente, como: “Trata-se da mais importante peça de sociologia

histórica escrita desde a época de Max Weber. Sua importância não apenas

está no tema, mas também no método, pois aqui encontramos integradas a

história, a teoria social e a psicanálise” (ELIAS, 1993) e “[...] esta brilhante e

inventiva análise da ‘curva da civilização’ deve ser irrestritamente reconhecida

como um pequeno clássico na historiografia sobre o tema” (ELIAS, 1993). Nas

primeiras observações, Sennett diz, com todas as letras, que a obra de Elias é

uma “peça de sociologia histórica”, colocando a história antes da teoria social

na sua ideia de integração, enquanto nos comentários seguintes o History foi

mais longe, porque comportou-se como um homicida e usurpador ao

assassinar o sociólogo Elias e consagrá-lo como um historiador clássico.

Os comentaristas do primeiro volume d’O Processo Civilizador também

certificaram as suas considerações nesse sentido, a não ser o Publishers

Weekly, que apresenta a obra como “Um desses raros livros que podem mudar

nossa maneira de pensar sobre o mundo” (ELIAS, 1994b). Para Renato Janine

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Ribeiro, “Depois deste livro, que no microscópio enxerga a ação de forças que

só se manifestam na vertente dos séculos, o estudo de história, da psicologia

ou da sociologia não pode ser o mesmo [...]” (ELIAS, 1994b). Já para Keith

Thomas, representante da The New York Review of Books, “Uma vez que

nenhuma história mais detalhada de boas maneiras e decoro corporal foi ainda

escrita, o primeiro volume de O processo civilizador continua a ser um trabalho

tão pioneiro hoje quanto quando foi escrito” (ELIAS, 1994b). Não seria mais

sensato que as construções verbais de Ribeiro e Thomas fossem modificadas,

respectivamente, para “[...] o estudo da sociologia, da psicologia e da história

[...]” e “Uma vez que nenhuma sociologia mais detalhada [...]”

Sennett, o History, Ribeiro, Thomas e outros intelectuais e veículos de

comunicação estão sumariamente equivocados. Definitivamente, nem Elias,

nem outro pensador da tradição em que estava inserido, fizeram parte de uma

sociologia histórica. Partindo do pressuposto de que esse falso problema

relacionado à sociologia histórica foi solucionado, mobilizamos essa etapa

como preambular para que pudéssemos desnaturalizar esse raciocínio e

adentrar por um outro viés na moderna sociologia alemã, articulando, a

posteriori, os referenciais eliasianos, Alfred Weber e Karl Mannheim, e,

principalmente, o seu posicionamento entre eles e nas suas respectivas

sociologias da cultura e do conhecimento. Nessa segunda fase, uma cilada não

menor tem sorvido os leitores e estudiosos eliasianos e reduz-se na ideia de

que Elias teria sido um sociólogo da cultura ou do conhecimento, ainda que ao

olho desnudo, a primeira versão venha prevalecendo. Essas inverdades são

cegas de uma das duas faces, a da cultura ou a do conhecimento, e do

posicionamento intermediário de Elias em função dessas sociologias, que

sobreviveram interna e externamente nele, sem uma afiliação unilateral

obrigatória, a não ser naqueles que foram escravizados pelas classificações.

O impacto de Alfred Weber e Mannheim na vida e obra de Elias é

verificável em Norbert Elias por Ele Mesmo, quando reserva unicamente para o

lido dessa temática duas notas biográficas: “Alfred Weber e Karl Mannheim (1)”

e “Alfred Weber e Karl Mannheim (2)”, além dos tratamentos protagonistas na

entrevista e nas outras notas, em especial, na “Sobre o que aprendi” e na

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“Tarde demais ou cedo demais. Notas sobre a classificação da teoria do

processo e da figuração.” Mas quem são Alfred Weber e Karl Mannheim?

ALFRED WEBER, autor de Ideen zur Staats- und Kultursoziologie (1927), é, diz L. von Wiese, o representante principal da sociologia cultural, entendida esta expressão como a “doutrina histórica da sociedade”. Esta maneira de compreender a sociologia (sociologia histórica ou filosófico-histórica) se origina da concepção histórico-social (kultur-historisch) da filosofia da história, com que se pretende identificar a sociologia, tomada como a história geral da humanidade, cientificamente construída. (AZEVEDO, 1958:294).

KARL MANNHEIM (1893-1947), nascido na Alemanha,

onde se formou e iniciou sua obra científica, atingiu o ponto mais alto de sua carreira, como professor da Universidade de Londres. Na série de seus livros, desde Ideology and Utopy, 1929 e 1936, Man and Society in the age of reconstruction, 1940, The Diagnosis of our Time, 1944, Libertad y planificación social (versão espanhola, México, 1942), Mannheim “analisou do ponto de vista sociológico a situação muito complexa da sociedade presente em plena transição”. Em 1943 fundou, em Londres, uma coleção de livros sociológicos sob o título de “Biblioteca Internacional de Sociologia e da Reconstrução Social”. Karl Mannheim, na exata observação dos “Cahiers Internationaux de Sociologie” (vol. II, 2e. année, 1947, pág. 191) “foi um dos principais promotores deste novo ramo da sociologia que se chamou a Sociologia do Conhecimento. Continuador a um tempo de Marx, Scheler e dos pragmatistas americanos, Karl Mannheim adquiriu nos quinze últimos anos uma influência de primeiro plano sobre o pensamento sociológico anglo-saxão. (AZEVEDO, 1958:295-296).

As notas biográficas de Azevedo (1958) são contidas, e uma delas, a de

Mannheim, preserva um erro esclarecedor. Enquanto Azevedo afirma que

Mannheim tinha “nascido na Alemanha”, tanto Elias (2001), quanto Garrigou e

Lacroix (2001) identificam esse autor como de origem húngara. Segundo Elias,

“Há poucos exilados vivendo num país estrangeiro e falando a língua local sem

dominá-la totalmente que tenham alcançado por duas vezes uma cadeira.

Mannheim efetivamente conseguiu isso duas vezes fugindo das ditaduras: na

Alemanha primeiro, depois de ter sido expulso por Horthy de seu país natal, a

Hungria; depois, uma segunda vez na Inglaterra, onde se refugiara para

escapar de Hitler” (ELIAS, 2001:117). Para Garrigou e Lacroix, Elias “conhece

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então as primícias de uma carreira universitária, tornando-se, em Frankfurt, em

1930, assistente de Karl Mannheim, o sociólogo de origem húngara”

(GARRIGOU & LACROIX, 2001:XVII).

Se Mannheim era húngaro, então o seu berço de nascimento tinha sido o

Leste ou o Oriente, o que fazia dele um “bárbaro” (ELIAS, 2001:27). Por que

Elias nunca olhou Mannheim por esse aspecto? Por que ele era polido? E/ou

por que ele podia assegurar uma vaga de professor assistente?, o que Elias

tanto pleiteava em vida. No modelo europeu do Ocidente, ou do Oeste, que

guiava Elias inconscientemente e em consciência, Mannheim ocupava, nesse

particular, um polo diametralmente oposto ao de Alfred Weber. Mais uma vez,

Elias estava não somente entre Alfred Weber e Mannheim, entre as sociologias

da cultura e do conhecimento e, sim, entre a civilização e a barbárie. Essa

questão foi inscrita em Elias como um dilema identitário: ser ocidental,

civilizado, superior (alemão, francês, inglês) e inferior (judeu) ou ser ocidental,

civilizado, inferior (judeu) e superior (alemão, francês, inglês) ou ser oriental,

bárbaro e amplamente inferior (polonês).

Numa outra chave, cabe inserir Elias nas seguintes vertentes: entre a

cultura e a civilização, ou na sociologia cultural weberiana, e entre a política e a

ideologia, ou na gnoseologia mannheimiana, bem como, entre as sociologias

da cultura de Alfred Weber e do conhecimento de Mannheim, ou entre os pares

cultura/civilização e política/ideologia.

As ideias de cultura e civilização estiveram presentes de maneira

incipiente em seu trabalho que foi apresentado no seminário de Jaspers

(ELIAS, 2001:115), sendo retomadas na sociologia weberiana, quando

concretiza um passo mediano e vital para que pudesse desenvolvê-las com

maior fôlego no primeiro tomo do Processo Civilizador (1994b), em que se

posiciona entre a Alemanha (cultura) e a França/Inglaterra (civilização),

coligindo as duas ideias em si como alemão e francófilo. Com esse meão

encorajamo-nos a dizer que dificilmente Elias teria conseguido urdir as suas

teorizações sobre o processo civilizador, tal como o conhecemos, sem as

contribuições diretas e indiretas de Alfred Weber. Elias não tinha como dar o

terceiro passo, sem que antes realizasse o primeiro e o segundo.

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Logo compreendi que as pesquisas sociológicas efetuadas por Alfred Weber no domínio da cultura retomavam e desenvolviam uma tradição alemã mais antiga, que se exprimia sobretudo na oposição antitética entre “cultura” e “civilização”. Havia me confrontado com isso pela primeira vez durante minha primeira temporada em Heidelberg, quando havia trabalhado em minha exposição para o seminário de Jaspers.

[...] Encontrei então Mannheim, que não era muito mais velho

que eu; gostamos um do outro e nos tornamos bons amigos. Mannheim, quanto a isso não há a menor dúvida, era um homem brilhante e estava em seu apogeu na época; atraía então cada vez mais estudantes, que abandonavam os professores mais velhos, como Alfred Weber. Havia também uma tensão fortíssima entre esses dois homens, mesmo que se exprimisse de forma muito civilizada. (ELIAS, 2001:115 e 42).

As ideias de política e ideologia não vingaram conscientemente em Elias,

pelo menos não antes da sua vocação pela sociologia. Em grande medida,

foram estimuladas pelo pensamento conservador de Mannheim, visto que

antes de receber o chamamento e até no convívio com Alfred Weber essas

palavras ainda não compunham, a não ser marginalmente, o dicionário de

jargões eliasianos. E Elias mostra isso em inúmeras passagens da entrevista,

quando enxerga a sua apolitização e praticamente ignora a ideologia. Longe

das interpretações bizarras de Garrigou e Lacroix (2001) sobre a política e a

história em sua vida, Elias enveredou pelos processos sociais de longa

duração, combinando todas as dimensões da vida social, sem que uma

predominasse sobre a outra, afastando-se crescentemente da visão ideológica

de ideologia de Mannheim. “Num ponto, evidentemente, superei o pensamento

de Mannheim: enquanto ele se aferrava à ideia de que tudo era ideológico, de

meu lado eu pretendia desenvolver uma imagem da sociedade que não fosse

ideológica. E consegui.” (ELIAS, 2001:45).

Seria possível essa pretensão eliasiana? Elias conseguiu “desenvolver

uma imagem da sociedade que não fosse” conservadora ou liberal, mas isso

não fez com que ele superasse o seu ideário pelas próprias ideias sem que um

novo conjunto de ideias ocupasse essa lacuna. A ideologia estava lá, no seu

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corpo, na sua mente, nos seus escritos e não tinha como fugir disso, porque

diante das ideologias todos nós somos reféns e sequestradores.

O que eu queria de fato era levantar o véu das mitologias que mascara nossa visão de sociedade, a fim de que as pessoas pudessem agir melhor e de maneira mais sensata; pois tinha a convicção de que uma visão assim deforma o olhar que se tem sobre as coisas. E a tese central de Mannheim, segundo a qual todo pensamento é ideologia, ia totalmente nesse sentido. Ele dava uma forma mais sistemática a uma intuição que me tomava totalmente, isto é, que tudo o que eu lia e ouvia em minhas discussões estava repleto de quimeras, de expectativas de salvação e de estigmatizações, e que precisávamos de um conhecimento sobre o mundo dos homens que fosse o mais realista possível. (ELIAS, 2001:45).

Elias vivenciou as sociologias de Alfred Weber e Mannheim, habilitando-

se para preencher um posicionamento mais audacioso entre os pares

cultura/civilização e política/ideologia. Negando alguns e afirmando outros

aspectos dessas sociologias, assistiu, de uma posição privilegiada, as querelas

e combates que foram dramatizados entre Mannheim e Alfred Weber e a

grande contenda travada no VI Congresso de Sociologia Alemã, em Zurique

(ELIAS, 2001:123). Esses confrontos foram internalizados por Elias e

externalizados em suas vida e obra com moderação. A nota biográfica “Tarde

demais ou cedo demais”, sintetiza esse meão, principalmente quando analisa

as visões ideológicas que congelaram as relações internacionais.

Assim, Elias cumpriu os seus rituais de passagem para o mundo da

sociologia como um guerreiro que precisa com rigor as horas oportunas de

retirar e colocar o elmo, recolher e desembainhar a espada como

demonstração de sua vulnerabilidade e agressividade nas pelejas e na paz.

CRÍTICA ÀS TEORIAS SOCIOLÓGICAS INDIVIDUALISTAS E COLETIVISTAS:

ELIAS ENTRE O INDIVÍDUO E A SOCIEDADE

Recentemente – e isso me irritou muito – li num estudo inglês que eu era o último representante da sociologia clássica, alguém que aspira à grande síntese, e assim por diante. Isso me irritou porque preferiria ser o primeiro a abrir um novo caminho. Sempre fiquei espantado ao ver o número de pessoas que perdem a coragem em nossos dias, como se nada mais valesse a pena ser feito; há tantas coisas a fazer, e há tanta gente fazendo qualquer coisa ou que se corrompeu

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intelectualmente. Minha experiência é que vou vendo pouco a pouco alguma coisa de novo, e assim dou um exemplo: pode-se fazê-lo, e isso vale a pena. Acho essa falta de coragem, esse niilismo e essas lamentações absolutamente insuportáveis. (ELIAS, 2001:84).

Por que Elias escreveu a Introdução à edição de 1968 do Processo

Civilizador (Elias, 1994b), destoando do conjunto da obra? Por que não fez,

ipsis verbis, a Introdução à edição de 1939? Porque no final dos anos 30 não

havia lugar, e nem seria justificável esse posicionamento, que passou a ser

vital e estratégico com o principiar do desmoronamento do império intelectual

estrutural-funcionalista no cerrar da década de 60. Ou Elias situava-se no

tempo sociológico, ou estaria sociologicamente fora do tabuleiro e do jogo. E foi

isso que Elias fez, sem tomar partido das teorias sociológicas individualistas e

coletivistas: ipso facto, posicionou-se entre o indivíduo e a sociedade como um

indivíduo de dupla face (indivíduo/sociedade) ou como um indivíduo da

sociedade dos indivíduos, para criticar essas teorias que encolheram o

indivíduo na sociedade, a sociedade no indivíduo e a sociologia como ciência.

Conforme já mencionamos, uma das peculiaridades da imagem tradicional do homem é que as pessoas freqüentemente falam e pensam em indivíduos e sociedades como se fossem dois fenômenos com existência separada – dos quais, além disso, um é com freqüência considerado “real” e o outro “irreal” – em vez de dois aspectos diferentes do mesmo ser humano.

Essa curiosa aberração do pensamento, além disso, tampouco pode ser compreendida sem um exame, ainda que superficial, de seu conteúdo ideológico implícito. A divisão da imagem da humanidade em imagem do homem como indivíduo e sua imagem como sociedade possui raízes que se ramificam muito. Um dos ramos é uma cisão muito característica nos ideais encontrados, a um exame atento, em todos os Estados nacionais mais desenvolvidos, e talvez de forma mais pronunciada naqueles que possuem uma forte tradição liberal. No desenvolvimento dos sistemas de valores de todas essas nações-Estados, descobrimos, por um lado, uma corrente que considera a sociedade como um todo, a nação, como o mais alto dos valores; e por outro, uma vertente que postula o indivíduo inteiramente auto-suficiente, o indivíduo livre, a “personalidade fechada”, como o mais alto valor. Nem sempre é fácil harmonizar esses dois “valores mais altos”. Há situações em que os dois ideais são simplesmente irreconciliáveis. Mas, em geral, ninguém enfrenta francamente esse problema. Fala-se com grande entusiasmo na liberdade e

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independência do indivíduo, e com calor não menor na liberdade e independência de sua própria nação. O primeiro ideal cria a expectativa de que o membro individual do Estado nacional, a despeito de seu senso de pertencer a uma comunidade e de interdependência com outros, pode tomar decisões de maneira inteiramente auto-suficiente, ignorando os demais; o segundo gera a expectativa – concretizada sobretudo nas guerras mas também, com grande freqüência, em tempo de paz – de que o indivíduo deve e tem que subordinar tudo o que possui, mesmo a vida, à sobrevivência do “todo social”.

Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como ponto de partida o indivíduo independente, auto-suficiente, como a “verdadeira” realidade e, por conseguinte, como o objetivo autêntico da ciência social; outras começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a idéia de um indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social” igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza do problema. O reflexo dessa persistente divisão interna entre os dois ideais é visto, acima de tudo, nas teorias de sociólogos cujo ideal nacional tem uma cor conservadora-liberal. O trabalho teórico de Max Weber – ainda que não o seu trabalho empírico – e as teorias de seu sucessor, Talcott Parsons, são exemplos disto. (ELIAS, 1994b:235-236).

Cronologicamente, Elias encarou com audácia o compromisso de fazer

uma sociologia nacional nos anos 60, tal como foram as sociologias de Niklas

Luhmann e Jürgen Habermas, na Alemanha, de Anthony Giddens, no Reino

Unido e de Pierre Bourdieu, na França. Após terem restaurado à sua moda o

legado sociológico dos anos 50/60, essas sociologias souberam enfrentar a

crise dos anos 70, respondendo com uma produção fértil em um campo

intelectual completamente fragmentado nos anos 70/80. Os esforços que foram

nutridos em todos esses decênios resultou na criação e aprimoramento, por

vezes até no sentido da recriação, das teorias da dualidade (Habermas),

estruturação (Giddens), dos campos e habitus (Bourdieu) e da configuração

(Elias). Jeffrey Alexander não foi bem-sucedido na sua síntese teórica e

Cornelius Castoriadis pode ser enquadrado nesse período desagregado da

lógica producente do novo movimento teórico das ciências sociais, em

especial, a partir do ano de 1975, quando publica A Instituição Imaginária da

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Sociedade, abrindo portas para uma série de outras produções destacáveis,

dentre as quais os três volumes de Les Carrefours du Labyrinthe, os dois

primeiros editados em 1978, e o último em 1989.

Mas Elias não podia ser o “último representante da sociologia clássica”

(ELIAS, 2001:84), porque não extremou as suas teorizações no indivíduo ou na

sociedade, tal como fizeram Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim. No

tempo sociológico é inegável dizer que ele estava entre aqueles como mais um

“que aspira à grande síntese” (ELIAS, 2001:84), ainda que não se agradasse

dessa classificação. Sem desafinar o coro dos sociólogos, Elias esperava ser

reconhecido singularmente entre os seus pares como um inovador da

sociologia, alguém que estivesse trazendo as boas novas e um novo tempo

sociológico, “o primeiro a abrir um novo caminho” (ELIAS, 2001:84). O

problema é que Habermas, Giddens e Bourdieu também acreditavam, ser com

exclusividade, “o primeiro a abrir um novo caminho” (ELIAS, 2001:84).

Admirando os trabalhos intelectuais uns dos outros ou não, cada um à sua

maneira revolucionou a sociologia, sem perder de vista uma fração comum

desse espaço de mudanças que legitimava e reconhecia esses autores nas

suas similitudes e diferenças como pares entre si nessa jornada e fundadores

de discursividade e distinção na heterogênea comunidade interpretativa dos

sociólogos. E o que identificava Elias como partícipe desse movimento era a

sua teoria da configuração.

[...] o conceito de figuração foi criado expressamente para superar a confusa polarização das teorias sociológicas em teorias que colocam o “indivíduo” acima da sociedade e outras que colocavam a “sociedade” acima dos indivíduos. Essa polarização das teorias sociológicas correspondia ao eixo principal das lutas de convicções e de interesses na sociedade. Um sociólogo, porém, não deve se submeter a essa coerção, considerando que, na realidade, faz muito tempo que esse eixo de luta foi ofuscado por outros. (ELIAS, 2001:148).

A sociologia de Elias encontrou na figuração – desenhos sociais que

combinam indivíduo com sociedade – um meio de inibir a dicotomia entre

sujeito e objeto. Nessa sociologia, os conceitos que normalmente são

essencializados em outras abordagens teóricas passam a ser relativizados,

servindo para arrumar o material empírico. É da derivação prática que deriva o

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sentido da análise. Como exemplo, podemos tomar o conceito de

interdependência, que pode ser utilizado em diversos contextos, aparecendo

como figuração, configuração ou formação. Esses conceitos que vêm da

tradição sociológica nos remetem a uma compreensão heurística e à

regionalização das atividades, o que foi recorrentemente rejeitado e criticado

por Elias, que pensou os conceitos (interdependência, interconexão, todo

expressivo, todo relacional, circulação de constrangimentos, sistema de

polaridades, gradients) como montagens do arcabouço de evidências

empíricas que encaminham a análise, ajudando na formação da descrição com

a etapa da interpretação já cumprida.

O que distingue o conceito de figuração dos conceitos mais antigos com os quais se pode compará-lo é precisamente que ele constitui um olhar sobre os homens. Ele ajuda a escapar de armadilhas tradicionais, as das polarizações, como a do “indivíduo” e da “sociedade”, do atomismo e do coletivismo sociológico. Os meros termos “indivíduo” e “sociedade” já bloqueiam freqüentemente as percepções. Caso se chegue a efetuar o procedimento do distanciamento, fica-se em condições, nos degraus da escada em espiral da consciência, de se reconhecer a si próprio, aparentemente no degrau precedente, enquanto homem entre outros homens, e de reconhecer a sociedade como uma figuração constituída de numerosos indivíduos fundamentalmente interdependentes, ou seja, tributários e dependentes uns dos outros; só então se é capaz de superar intelectualmente a polarização entre indivíduo e sociedade. Eis um objetivo tão fácil como o ovo-de-colombo e tão difícil como a revolução copernicana. (ELIAS, 2001:149).

Na óptica eliasiana, cada formação social é uma configuração, um

mecanismo de enredamento, que deve ser constantemente resgatado.

Recuperar o mecanismo, aqui, significa tornar viável a realização de uma boa

etnografia, pois o mecanismo tem um cimento, um linguajar que é partilhado

por todos os informantes. Repudiar essa recuperação significa abandonar o

conteúdo de todos os agentes que estão envolvidos no enredamento. Dessa

forma, a configuração é uma conflagração de tensões e conflitos, que para ser

notada reivindica a localização do engate que permite a sua existência,

sabendo que essas tensões são provenientes de um apanhado de evidências

que são postos em confrontos com outros fragmentos de evidência. Destarte, o

que importa na configuração é o engate, e não os elementos da imbricação.

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Para Elias, é a variabilidade dos registros e das vozes que dá uma dinâmica à

trama; entretanto, é necessário que a configuração pulse.

Foi pouco a pouco que compreendi essa missão, de maneira ainda bastante vaga durante minha temporada em Heidelberg, depois de modo mais nítido em Frankfurt. Ela consistia em elaborar uma teoria central da sociologia que fosse empírica, ou seja, verificável e emendável, em vez de fundar as bases de uma teoria sobre as quais as gerações futuras pudessem construir, ou mesmo rejeitar, corrigir e desenvolver. Mergulhei nessa consciência cada vez mais aguda de meus objetivos e trabalho nisso até hoje, entremeado às numerosas tarefas particulares que realizei ao longo de minha vida.

Isso não significa que pensava ter criado alguma coisa. Não me considerava um inovador que tivesse trabalhado a partir do nada. Tinha consciência de me inscrever na cadeia das gerações, e portanto também na dos sociólogos. Via-me, com uma consciência agudíssima, como um homem de minhas gerações (o plural indica que o que vivi com as gerações mais tardias não perdeu o efeito, mesmo se aquilo que vivi com as de um passado muito remoto ou mais recente tenha me marcado profundamente). (ELIAS, 2001:145).

No lugar de uma teoria pronta para dar conta do material empírico, Elias

tentou construir uma teoria com conceitos descritivos e analíticos de médio

alcance, que não contêm em si uma explicação e não servem para a

interpretação, estando disponíveis somente para pensar o material empírico de

uma experiência histórica concreta, Operando em um registro que renuncia às

explicações reducionistas que desconsideram a experiência ou valorizam um

caráter anedótico, Elias criticou a psicanálise por não lidar com materiais

históricos e enfatizar os universais e o recalque. De acordo com Elias, não

adianta ter um repertório acabado para descrever qualquer material empírico,

uma vez que as experiências mais anódinas para uma dada sociedade podem

ser relevantes para uma outra sociedade.

Orientado pelos princípios norteadores dessas escolhas e renúncias, que

fazem parte de um conjunto maior, Elias perseguiu os artefatos (etiqueta,

pintura, romance, duelo) produzidos por determinadas sociedades como

retentores do fulcro dessas sociedades. Identificando os artefatos como mais

ou menos impregnantes e pertinentes, sustentou a ideia de que toda e

qualquer apreensão de artefatos relevantes significa um espelho para os

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outros, porque esses artefatos são depositários e luzeiros das experiências,

que podem ser acessadas por qualquer registro da experiência. Por essas

razões e outras mais Elias não pode ser aprisionado em nenhuma categoria

que nomeie o mundo recorrendo às esferas da economia, política e sociedade.

Contrariar isso, implica condenar formas de registro que não autorizam esse

tipo de leitura.

Em verdade, Elias repudiou as análises estruturais ao fazer uma

sociologia da economia, do Estado, dos sentimentos, valorizando somente as

análises do material empírico em que as coisas devem ser compreendidas em

termos de polaridades e não de oposições. A única oposição que foi posta por

Elias está textualizada em sua obra de formalização, A Sociedade dos

Indivíduos (1994a), os demais trabalhos concentram-se, direta e indiretamente,

em polaridades. Para efeitos ilustrativos, podemos tomar como exemplificações

o tratamento que foi impresso por ele ao lidar com o enraizamento da violência

e o militarismo n’Os Alemães (1997), ou então, quando preocupa-se, em

Mozart (1995), com o posicionamento desse artista entre dois sistemas com a

finalidade de buscar a procedência do fracasso social desse outsider. Na

decorrência da apropriação desses dois termos (estabelecido e outsider)

podemos registrar mais uma polaridade que foi apresentada n’Os

Estabelecidos e os Outsiders (2000).

Para findar esse artigo, é de bom tom dizer que a sociologia de Elias não

deve ser entendida fora da sua trajetória sociobiográfica, que foi

paulatinamente constituída desde sua nascença até seu desaparecimento. Por

esse motivo, não fitamos as passagens de seu trajeto como se fossem

descoladas de um universo maior, porque a nossa intenção, neste artigo, era

avançar recuando e recuar avançando. E essa foi a mentalidade que gerenciou

a narrativa da sua escalada desde a formação estudantil em medicina,

passando pelas formações profissionais em filosofia e psicologia, chamamento

profissional da sociologia, negação da sociologia histórica, internalização das

sociologias da cultura de Alfred Weber e do conhecimento de Mannheim, até a

sua sociologia da configuração. Essas passagens são interdependentes e

dependentes de outras ocorrências, estando a sua expressividade depositada

no todo relacional ou no processo como um todo. Desse modo, esbarramos na

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ideia de que a vida e a obra de Elias são uma só coisa, e ele tentou mostrar

isso não como parte de um “sistema social” (ELIAS, 1994b), que funcionava

sob “condições normais de temperatura e pressão” e, sim, como sujeito e

agente nos “processos sociais de longa duração” (ELIAS, 1994b). A crítica

tinha endereço certo, o funcionalismo parsoniano, e ad hoc vieram as críticas

às teorias sociológicas que entronizaram o indivíduo ou a sociedade.

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