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133 Scintilla, Curitiba, v. 13, n. 2, jul./dez. 2016 SCIENTIA SIGNORUM E ARS SCRIBENDI – SOBRE A TEORIA DOS SINAIS DE NICOLAU DE CUSA 1 SCIENTIA SIGNORUM AND ARS SCRIBENDI – ABOUT THE THEORY OF THE SIGNS OF NICOLAU OF CUES Detlef Thiel 2 RESUMO Esse artigo aborda a questão da ciência dos sinais a partir do livro de Nicolau de Cusa, intitulado Compedium. O autor aborda ali a arte da escrita, ars scribendi. Busca-se, a partir disso, compreender a relação desta com as artes e as ciências em geral. A obra abordada é dividida em quatro partes: teoria dos símbolos, o primeiro princípio, as bases psicológicas da teoria e a conclusão. Por fim, conclui-se que a arte da escrita é fundamental para o humano. Seu objeto específico é precisamente aquele medium que possibilita, por primeiro, toda e qualquer tematização e tradição, toda crítica e reflexão mais fundamental. Palavras-chave: Arte de Escrever. Nicolau de Cusa. Artes e Ciências. ABSTRACT This article addresses the issue of the science of signs from the book of Nicholas of Cues called Compedium. The author approaches there the art of writing, ars scribendi. It seeks to understand their relationship with the arts and sciences in general. The work is divided into four parts: theory of symbols, the first principle, the psychological basis of theory and the conclusion. Finally, we conclude that the art of writing is fundamental to the human. Its specific object is precisely that medium that makes possible, for first, any and all thematization and tradition, all criticism and most fundamental reflection. Keywords: Art of Writing. Nicholas of Cusa. Arts and Sciences. 1 Tradução de Enio Paulo Giachini. Texto tirado de: THIEL, D. Miscellanea Mediaevalia. Publicações de Thomas-Institut da Universidade de Colônia. Editado por Albert Zimmermann. Scientia und ars im Hoch- und Spätmittelalter. Editado por Ingrid Craemer-Ruegenberg e Andreas Speer. V. 22 p. 106-125. 2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Trier. Professor na Universidade de Trier e Wiesbaden. E-mail: [email protected]

SCIENTIA SIGNORUM E ARS SCRIBENDI – SOBRE A TEORIA DOS

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133Scintilla, Curitiba, v. 13, n. 2, jul./dez. 2016

SCIENTIA SIGNORUM E ARS SCRIBENDI – SOBRE A TEORIA DOS SINAIS DE NICOLAU DE CUSA1

SCIENTIA SIGNORUM AND ARS SCRIBENDI – ABOUT THE THEORY OF THE SIGNS OF NICOLAU OF CUES

Detlef Thiel2

RESUMO

Esse artigo aborda a questão da ciência dos sinais a partir do livro de Nicolau de Cusa, intitulado Compedium. O autor aborda ali a arte da escrita, ars scribendi. Busca-se, a partir disso, compreender a relação desta com as artes e as ciências em geral. A obra abordada é dividida em quatro partes: teoria dos símbolos, o primeiro princípio, as bases psicológicas da teoria e a conclusão. Por fim, conclui-se que a arte da escrita é fundamental para o humano. Seu objeto específico é precisamente aquele medium que possibilita, por primeiro, toda e qualquer tematização e tradição, toda crítica e reflexão mais fundamental.

Palavras-chave: Arte de Escrever. Nicolau de Cusa. Artes e Ciências.

ABSTRACT

This article addresses the issue of the science of signs from the book of Nicholas of Cues called Compedium. The author approaches there the art of writing, ars scribendi. It seeks to understand their relationship with the arts and sciences in general. The work is divided into four parts: theory of symbols, the first principle, the psychological basis of theory and the conclusion. Finally, we conclude that the art of writing is fundamental to the human. Its specific object is precisely that medium that makes possible, for first, any and all thematization and tradition, all criticism and most fundamental reflection.

Keywords: Art of Writing. Nicholas of Cusa. Arts and Sciences.

1 Tradução de Enio Paulo Giachini. Texto tirado de: THIEL, D. Miscellanea Mediaevalia. Publicações de Thomas-Institut da Universidade de Colônia. Editado por Albert Zimmermann. Scientia und ars im Hoch- und Spätmittelalter. Editado por Ingrid Craemer-Ruegenberg e Andreas Speer. V. 22 p. 106-125.

2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Trier. Professor na Universidade de Trier e Wiesbaden. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Em seu último escrito, (publicado postumamente) o Compendium (1464), Nicolau de Cusa aborda expressamente a ciência desses sinais (scientia signorum) que possibilitam ao homem trocar pensamentos recíprocos e conservá-los. É a ars scribendi. Em muitas passagens, Cusa afirma que todo conhecimento é simbólico, ligado a certas mediações. No entanto, será que com isso ele pensava também no seu próprio escrever? Essa questão dirige-se menos ao projeto “teórico” de uma semiótica, e mais à aplicação desses princípios, à autotematização do autor, à reflexão sobre sua própria atividade literária, bem como à sua necessidade filosófica e teológica e às suas consequências. Não se trata de uma questão especial, surgida de algum rompante moderno. Ao contrário, com isso são expressas bases da autocompreensão de todo e qualquer trabalho intelectual da ciência da natureza ou do espírito, pois, se o escrever, o fixar por escrito e a elaboração literária de processos e dos resultados do pensar, não pertence essencialmente a esse trabalho, que sentido teria ainda o esforço literário? E, se pertence, então com que direito pode-se negligenciar sua tematização expressa?

Este artigo só pode delinear um esboço do imenso espectro de reflexões literárias de Cusa. A multiplicidade das referências expressas e operativas ao material gráfico deve ser abordada noutro lugar de forma sistemática. Ao lado de metáforas conhecidas, como a do livro do mundo, encontramos instrumentalizações metódicas (figuras, diagramas) e comparações didáticas, mas também exortações frente a uma mera literalidade e medidas precautórias platonizantes, gestos para manter sigilo de certas coisas, de não escrever. Aspectos mais gerais, como as referências da ars coniecturalis para a scientia divina, ou a função e o lugar da matemática no pensamento de Cusa, não entram no que se segue. Em vez disso, pergunta-se especialmente pela relação da ars scribendi e da scientia signorum com as artes e scientiae em geral.

O texto que se toma como base é, como diz Cusa no início, um “breve compêndio”, que contém aquilo com que deverá ocupar-se a

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consideração do leitor3. No entanto, esse texto é muito curto e denso para uma simples introdução; faltam indicações de conteúdo mais precisas. Segundo K. Bormann (loc. cit. VIII), a obra está dividida “panoramicamente” em quatro partes: teoria dos símbolos (n. 1-28), o primeiro princípio (29-38), as bases psicológicas da teoria (39-43) e conclusão (44-47). Mais de dois terços do texto não tratam do primum principium. Qual é, pois, o tema desse texto? Uma resposta prévia, hipótese e provocação: o compêndio não almeja preferencialmente uma das visões de Cusa do princípio; tampouco reúne as diversas tentativas de descrever o princípio. Trata-se, antes da tradição da teoria, da tradição de uma teoria. No medium de sinais escritos, a escrita, o caráter de sinal e a medianidade mesma tornam-se objeto de observação, seu motivo e motor. Coincidência de tema e fundamentação; performance textual. Assim, esse texto pode ser chamado de autográfico. As considerações anunciadas em seu miolo sobre o tipo de conhecimento do princípio (consideratio circa speciem notitiae principii; n. 29) têm a função de exemplo. No fim, Cusa diz que ele “descreveu de diversos modos” a revelação múltipla do principium, que é por todo lugar o mesmo4. Mas será possível separar entre si essas diversas manifestações do texto e sua respectiva descrição, cada vez única? O ato da notação, o retomar sempre de novo o pintar ou protocolar, não será a tentativa verdadeira de compreender aquela?

No começo do compêndio, Cusa delineia certa teoria fundamental do sinal. Apresenta as bases teológicas e epistemológicas aceitas pelo senso comum de todo ser humano: único não é múltiplo, um não é muitos e

3 O compendium é citado segundo a ed. de B. Decker e K. Bormann (Hamburg, 1970, 2. ed. 1982) = Schriften des NvK, cad. 16; Philos. Bibliothek, vol. 267), depois do parágrafo (n.); edição crítica: Hamburg, 1964 (= Opera Omnia, vol. XIV/3; Sigle: h). Para os demais textos, usa-se a Studienausgabe da Philos.-theol. Schriften; ed. L. Gabariel, trad. alemã D. e W. Dupré, 3 vols. Viena 1964-1967 (Sigle: PTS). Apoiando-se nessas, às vezes apresenta-se uma tradução própria. Por vias de clareza, às vezes no lugar de ratio consta entendimento; no lugar de intellectus, razão, de mens e spiritus, espírito, no lugar de ars e scientia, arte e ciência.

4 “ostensionem eius variam varie depinxisse”, n. 44. A multiplicação dos discursos é bastante útil, pois “o que deve ser dito, não pode ser expresso convenientemente”. Deus é immultiplicabilis; mas ele mistura cores como um pintor e pinta muitas e infinitas imagens de Si, pois só assim pode ser mais bem conhecido (De mente 4; PTS III 506); cf. De vis. Dei 25 (PTS III 214sqq).

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assim não pode ser singularizado, mas só no caso de ser comunicável a muitos (modo multis communicabili; n. 1). Ademais, segundo sua natureza, uma coisa deve ser, antes de poder ser conhecida. Segundo sua natureza – mas também segundo sua tradição filosófica, pois se trata aqui de um filósofo clássico. Aristóteles observa que “ao que parece, o sabível deve vir antes que o saber”, e igualmente o percebível antes que a percepção. Tomás de Aquino confirma essa precedência do ser frente ao conhecer quando diz que a essencialidade de uma coisa, a entitas rei, precede seu conhecimento, a ratio veritatis; com ajuda das imagens do conhecimento (species) conhecem-se as próprias coisas, os entes extramentais5.

Nesse problema epistemológico central, Cusa segue antes uma tradição neoplatônica (Plotino, Proclo, Dionísio Areopagita). O próprio modo de ser está fora ou anterior a toda cognoscibilidade. Sensorialidade, representação e intelecto (sensus, imaginatio, intellectus) não são suficientes, não podem atingir o modus essendi, só podem designá-lo. Atingível, cognoscível não são as próprias coisas, mas suas semelhanças, imagens ou sinais (similitudines, species aut signa; n. 1). Pode-se até ver com máxima certeza que há aqueles modos de ser, mas não é possível uma ciência deles (scientia; perfectissima scientia, se diz no De ven. Sap. 33; PTS I 152ss). É só um “ver espiritual” que pode intuir isso, o que precede todo conhecimento e assim supera-o. Cusa esclarece a diferença entre o conceito e a intuição através de comparações do âmbito da ótica. Quem quiser encontrar o modus essendi dentro do conhecimento esforça-se à toa, como alguém que quer tocar também com a mão a cor que só pode ser vista. Como a visão sensorial (visus sensibilis) até vê a luz, mas não a reconhece, assim é o “ver espiritual” daquele modo de ser. E como o sol pode ser colocado como pai da luz sensorial, assim é Deus como pai das coisas, como a luz inacessível a todo conhecimento (lux inaccessibilis). As coisas são seu resplendor (splendor; n. 2), reconhecíveis como reflexos da luz escura do modus essendi.

5 Aristóteles, Categorias 7b 23 e 36; Tomás, De veritate, I, 1; S. Th. I q. 85, a.2 cf. K. Bormann, l.c. 60 sq., adn. 3 e 6.

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Fundamental para Cusa é o modus do dar-se de um objeto, o modo de sua mediação: Res igitur, ut cadit in notitia, in signis deprehenditur (n. 3). Nesse sentido, na medida em que uma coisa chega ao conhecimento, ela é apreendida em sinais. Os sinais são irredutíveis, pois fora deles nada pode ser conhecido. Mas não se esgotam em si mesmos. Segundo sua definição, formam uma rede de remissões; e essa esfera entre o homem cognoscente e as coisas ou o mundo não deixa de ter uma certa autonomia. Assim, nos diversos sinais temos de procurar os diversos modos de conhecer. Ali há que se observar que nenhum sinal sensível singular designa o modo de ser de forma suficiente (sufficienter; n. 3), como poderia ser designado de forma ideal. Cusa justifica isso a partir do pensamento bastante recorrente de que todo conhecimento humano seria um processo de aproximação infinita: nenhum sinal é tão perfeito e determinado (speciale) que não possa ser mais perfeito. Como se deve chegar à melhor cognição possível (noticia) ou conhecimento (cognitio) de uma coisa, o melhor é conjugar diversos sinais que correspondam aos cinco sentidos: cinco sinais são mais perfeitos que dois6.

Nicolau formulou um raciocínio que leva de razões inicialmente metafísicas de determinações ou deduções aprióricas do homem como tal a uma fundamentação antropológica de determinadas espécies e artes e da ciência a uma teoria de sinais. A premissa do argumento contém até as pressuposições que ainda não foram formuladas no começo da metafísica de Aristóteles (980a 21): “visto que aos homens o conhecimento é mais necessário que aos demais [i. e, animalia], por isso ‘todos os homens buscam por natureza pelo saber’” (n. 4). A assimilatio Dei, se diz no De coni., seria a única razão pela qual “buscamos por ciências aperfeiçoadoras no desejo natural” (ad perficientes scientias (PTS II 6); aquele desejo de saber, explica o cardeal no De possest (PTS II 312),

6 N. 11. Esse pensamento fundamental já fora formulado no De docta ign. I 3 (PTS I 202): “A razão que não for a verdade jamais concebe tão precisamente a verdade que não possa ser concebida de forma infinitamente mais precisa” (per infinitum praecisius). Essa é a ratio da regula doctae ignorantiae: dentro do reino do relativo nada há de absoluto; onde ainda é possível um mais e um menos, jamais se chega a um maior ou menor absoluto (De vem sap. 26; PTS I 124). A partir daí, cada afirmação positiva sobre o verdadeiro é uma coniectura, uma conjectura ou suposição (De coni. I 2 PTS II 2).

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seria saciado na felicidade suprema, na visio intellectualis do Todo- -Poderoso; enquanto a scientia dei ainda não teria sido alcançada e a palavra de Deus ainda não estaria conhecida, ainda restaria a “ciência das ciências”. No Compendium, Nicolau tira as consequências: aquele desejo de saber é satisfeito pela instrução (informatio), pela transmissão da doutrina (traditio doctrinae). Como isso só pode acontecer por sinais, vamos abordar “o conhecimento dos sinais” (ad cognitionem signorum descendamus; n. 4).

A capacidade de conhecimento pertence ao ser perfeito (perfectum esse) de uma coisa. O ser sensível perfeito deve movimentar-se de um lugar para outro, para poder procurar conhecimento e seu alimento; assim, deve possuir todos os sentidos (n. 3). Nisso Nicolau concorda com Aristóteles e Tomás. Ele descreve o objetivo do ser perfeito também como viver melhor ou estar bem (melius vivere, bene esse). Os seres vivos precisam apoiar-se mutuamente na comunidade e por isso precisam ouvir e compreender (intelligere) um ao outro. Ora, um ser vivo mais nobre precisa de um conhecimento superior para seu estar-bem; por isso, o homem possui uma cognição (noticia) mais elevada. Assim, ele não pode “subsistir bem e feliz” (bene et feliciter subsistit), sem a arte mecânica e as artes liberais (artes mechanicae et liberales), as ciências morais (morales scientiae) e as virtudes teológicas ou divinas (virtutes theologicae; n. 4).

Com isso, são apresentados motes: determinadas artes e ciências parecem amplamente de valor igual, na medida em que fundamentam e caracterizam o que é especificamente humano para além da possibilitação de uma certa qualidade de vida. No Compendium são expostos novamente os tipos de arte e as ciências morais com o mesmo objetivo: caracterizar a posição superior do homem frente ao animal. À primeira vista, Nicolau não faz distinção entre ars e scientia. As duas fundamentam-se na igualdade: ao lado das artes liberales estão as scientiae liberales; existe uma ars divina e uma scientia Dei; uma ars absoluta, aeterna, universalissima, e igualmente uma scientia infinita,

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universalis ou ultima etc7. Bastante provocativas são as observações em De fil. Dei (PTS II 616): Maestria seria a adoção das ciências particulares numa arte universal (transsumptio scientiae particularium in universalem artem), que se fundamentaria no mundus intellectualis – entre as duas não haveria proporção. Entretanto, a ciência no significado universal (scientia universali sua acceptione) abarca todo o sabível, i. e., Deus e tudo mais. Apoiando-se sobre essas observações terminológicas curtas, poder-se-ia tomar a indiferenciabilidade e a oscilação dos significados como sinal para uma sinonimidade entre ars e scientia, alcançada no século XV. Observando com mais atenção, os contornos começam a aparecer com mais nitidez.

No De mente 10, o filósofo apresenta uma explicação da frase de Boécio: Sem o quadrivium – aritmética, geometria, música, astronomia – ninguém poderia filosofar corretamente. A verdade das coisas, afirma o laico, é concebida através de multiplicidade e grandeza. Boécio teria retrocedido a primeira à distinção (discretio) através da força dos números, contida na aritmética e na música; a grandeza, porém, reside na integridade (integritas) e estaria contida na geometria e na astronomia8.

7 Comp. N. 18. As virtutes theologicae são, segundo 1 Cor 13, 13, fé, amor e esperança: “Omnis scientia et ars in aequalitate funditur”: De aequal. (PTS III 398). A participação na ordem pode ser encontrada em todo lugar, também naquilo “que surge do espírito humano, nos poderes, dominações e na direção do Estado e do privado, nas mecânicas, nas ciências liberais” (in mechanicis, in liberalibus scientiis; De vem. Sap. 31 PTS I 146). Ars divina: De possest. (PTS II 310); scientia Dei: De ludo globi (PTS II 566 ss); ars absoluta etc.: De dato patris lum. (PTS II 668); scientia infinita etc.; Compl theol. (PTS II 664); De fil Dei (PTS II 616); De beryllo 37 (PTS III 86). Esse valor igual também se expressa quando Nicolau, por assim dizer, enumera possibilidades existenciais do homem: ele pode ser muitas coisas, “grammaticus, rhetor, logicus, philosophus, mathematicus, theologus, mechanicus et talia omnia” (De vem. Sap. 29; PTS I 136). Provocativas são as observações em De fil. Dei (PTS II 616): Maestria seria a adoção de ciências singulares numa arte universal (transsumptio scientae particularium in universalem artem), que estaria fundamentada no mundus intellectualis – entre as duas não haveria proporção. Mas ciência na significação universal (scientia universali sua acceptione) abarcaria todo sabível, i. e., Deus e qualquer outra coisa. Com base nessas observações terminológicas lapidares, seria possível tomar a indiferenciação, a oscilação dos significados como sinais de que no século XV teria se alcançado uma sinonimidade entre ars e scientia. Olhando mais de perto, os contornos ficam mais nítidos.

8 PTS III 564 ss. Sobre Boécio (De instit. Arithm. I 1), cf. De docta ign. I 11 (PTS I 230): o atomisto epicureu teria sido refutado através das demonstrações matemáticas dos pitagoreus e dos peripatéticos.

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No De Ludo globi II (PTS II 322ss), Nicolau explica ao jovem duque da Baviera, Alberto, que tudo que é necessário para um conceito perfeito estaria implícito na alma racional (anima rationalis) e por sua força seria descoberto e explicitado: as disciplinas matemáticas, os dez predicamentos, os cinco universais, os logicalia e outros. A alma seria a criadora do conceitual (notionalium creatrix), como Deus é do essencial (essentialium). Por sua invenção, cria-se “novos instrumentos, para separar e conhecer, como Ptolomeu criou o astrolábio e Orfeu a lira e muitos outros”. Isso não é um mero elaborar de materiais prévios, mas sim um desenvolver o conceito no material sensível. Assim também o tempo, como medida do movimento, seria um instrumento criado pelo homem – fora da alma ele nada é. Em que medida essa tese da prioridade e superioridade da verdade do conceito, frente a sua realização material demonstra influência nominalista, deve ficar em aberto aqui. O certo é que, para Nicolau, o quadrivium não é só um pressuposto para a formação do conceito. Deus usou essas quatro artes na criação do mundo; por isso, também o homem deve possuí-las, se quiser investigar as proporções das coisas, dos elementos e do movimento9.

No De coni. II 15, Nicolau emprega o método universal da conjectura também ao homem: ele planeja uma espécie de antropologia geográfica que antecipa teses do século XVIII no contexto teológico10. Dentro do círculo que abarca as quatro direções celestes ou horizontes

9 De docta ig. II 13 (PTS I 410). Sobre o Trivium, cf. De genesi (PTS II 438). No De mente 11 (PTS III 576) se diz que o espírito criaria os dez gêneros gerais “como primeiros princípios sem um genus commune; esses dez não seriam reconhecidos em si, mas como estão no espírito, ao modo da forma ou da composição. Nesse sentido, não podem estar fora do espírito”. Cf. De possest. (PTS II 267s) e De docta ign. II 6 (PTS I 350 ss): os “peripatéticos” têm razão ao afirmar que só o singular é real (actu est). No De beryllo 32 (PTS III 66ss), Nicolau observa que quem possui a ar mechanica tem as figuras dessa arte em maior verdade em seu conceito espiritual (in suo mentalis conceptu) do que podem formar-se para fora. No De princ. (PTS II 262) ele critica que “os platônicos” chegavam a acreditar “que os deuses dirigiriam as artes mecânicas como Vulcan a arte da fundição”.

10 PTS 166ss, cite-se aqui apenas a história da cultura de Rousseau no Essai sur l’origine des langues (Posthum, Genf, 1781), as ideias de Herder sobre a filosofia da história da humanidade (1784) e os trabalhos kantianos sobre a geografia ou antropologia física, assim como as ideias sobre uma história universal na perspectiva civil (1784) e sobre a paz eterna (1795; 2. ed. 1º adendo).

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dos habitantes deste mundo, deve-se tomar uma dupla gradação: o ascenso da espécie humana percorre de norte a sul; o descenso, ao contrário (ascensus humanae speciei, descensus). Nos habitantes do extremo sul sobrepuja a razão; no meio, o entendimento; e no inferior, no norte, a sensorialidade. Por isso, nas regiões da Índia e do Egito dominam as religiões intelectivas (religio intellectualis) e as artes da matemática abstrata; na Grécia, junto aos africanos e romanos, floresce a dialética, a retórica e a ciências jurídicas (legales scientiae); nas demais regiões nórdicas, predominam as artes mecânicas sensoriais (sensibiles mechanicae artes).

Também no sermão Ubi est qui natus est rex Iudaeorum11, Nicolau liga o tema de uma configuração de vida especificamente humana com determinadas artes. A arte têxtil (ars textoria) ajuda a cobrir com roupas a nudez natural; já a arte de cozinhar, edificar casas, domesticação de cavalos etc. tem outras utilidades. Mais adiante, quando Nicolau menciona os inventores de “artes mecânicas e do semear e plantar e comerciar”, e outras, que “registraram as regras da política e da economia, que inventaram a ética para comportar-se segundo a moral ou os costumes”, em que pode-se observar aquela gradação tradicional. Tudo isso a arte acrescentou à natureza (ars addidit naturae); e Nicolau considera “um grande presente ou uma graça da invenção”. Pois, para além dessas artes surgidas da natureza, essas outras fornecem conjecturas (tradunt coniecturas) em cujo modo pode-se levar uma vida virtuosa e louvável, uma vida feliz em paz e repouso. Não se prestam, pois, ao espírito (non serviunt spiritui), muito embora devam-se sempre ao ingenium ou à iluminação divina de um indivíduo. Também a religião fundada na autoridade e revelação divina dirigem-se à vida prática.

Na multiplicidade das artes e scientiae mencionadas por Nicolau, ainda transluz a sequência tradicional de graus de modo bem fraco: o desprezo de todo trabalho manual simples e de todas as “artes” como mero amontoado de regras frente à sabedoria, ao autoconhecimento e ao conhecimento de Deus possibilitado pela ciência. Todas as artes

11 Sermo 213 na contagem de h (Brixen, 6 jan. 1456). In: Vier Predigten im Geiste eckharts. Hamburg: Ed. J. Koch, 1937, n. 12 (= Cus.-Texte I, 2-5).

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create só podem tocar algo copiado (De quaer. Deum. PTS II 602). No exemplo da ars cocleria, o leigo explica que todas as artes humanas seriam apenas imagens da arte divina e infinita – não conseguem alcançar a precisão da perfeição (perfectionis praecisionem). Assim, a arte infinita deve ser o protótipo (exemplar) de todas as artes limitadas: origem, meio, fim, medida, verdade, precisão, perfeição (De mente; PTS III 490ss). O que Nicolau considera aqui sem valor, noutro lugar condena com força retórica: a ciência desse mundo não seria vera scientia, não seria scientia laudi, mas saber livresco jactancioso; pecaminosamente, a razão é escravizada e mal-usada para adquirir bens materiais – vemos isso “nas artes liberais e nas artes mecânicas, que provêm da razão”12.

Como muitos de seus contemporâneos, Nicolau toca na distinção entre ars e scientia, artes verbales e reales etc., não mais conforme as delimitações clássicas – essas só têm ainda o valor de auxílio para orientação. De um lado, permanece ligado à tese de Hugo de S. Vítor, de que todas as ciências deveriam servir à divina scientia. De outro, Nicolau aparece como herdeiro da resolução do sistema das artes liberais constituídas no século XII por Varro, Capella, Cassiodoro, Agostinho, Isidoro Boécio, entre outros. O reagrupamento repousa na recepção das traduções árabes de Aristóteles, por Alfarabi, Adelardo de Bath, Dominicus Gundisalvo ou Roberto Kilwardby13.

Agora retomamos a leitura interrompida anteriormente do Compendium. A cognitio signorum começa com definições e divisões. Todos os sinais são sensíveis (sensibilia); alguns designam as coisas a partir da natureza (naturaliter), outros através da instituição ou acordo (ex instituto). Os sinais naturais designam um objeto (objectum)

12 Idiota de sap. I (PTS III 420); Carta a Albergati, n. 26 ss (Ed. G. v. Bredow, Heidelbert, 1955 = Cus.Texte IV, 3). Cf. Sermo 25, 2, 11-13 (h XVI): Com sua espada flamejante, o querubim impede que a ciência humana toque o infinito, eterno, incomensurável, imortal.

13 HUGO, De sacram. Prol. C. 6 (PI, 176, 185c) No Dicascalicon, Hugo, por volta de 1130, já conceitua o desenvolvimento técnico emergente em seu tempo, estabelecendo o número de artes mechanicae como sete: tecelaria, produção de utensílios e armas, náutica, agricultura, caça, medicina e teatro (PL 176, 760ª ss). Nicolau possuía esse texto no Cod. Cus. 64; ele cita Hugo na Apologia (PTS I 560). As fontes citadas em h XIV/3, p. 5 Adn. e paralelos não serão abordadas aqui.

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na apreensão dos sentidos; eles são naturaliter nota: naturalmente e sempre já conhecidos. Os sinais para cores, sons ou afetos são conhecidos por todos que os percebem. Um objeto vermelho designa naturalmente “vermelho” como tal; rir se associa à alegria; chorar, à tristeza etc. Todos os demais sinais são empregados segundo o agrado (ad placitum, n. 3): as palavras (vocabula), os sinais escritos [(signa) scripturae], designam tudo que é captado pelo ouvir ou ver e a respectiva coisa (n. 5).

Também essa distinção entre natureza e vontade ou arte é clássica. Parece óbvia e vinculante, todavia cunhou as teorias ocidentais sobre sinais desde o Crátilo de Platão até a Linguística de Sassure (e mais além). Para Aristóteles, o nome (ónoma) é um som, que significa algo em virtude de uma concordância (phonè semantikè katà syntheken), i. e., um nome não é constituído pela natureza (hóti phýsei), mas pelo homem quando se torna sinal (sýmbolon; De interpretatione, 16a 19 e 16a 27s). Também Agostinho, que criou uma teoria dos sinais e da interpretação, que foi marcante até a Idade Média, distingue sinais naturais e dados (naturalia, data); mas ele afasta expressamente aqueles e se dedica apenas aos sinais produzidos intencionalmente com certa vontade ou appetitus significandi, aqueles “que os seres vivos se dão mutuamente para mostrar na medida do possível os movimentos de sua alma ou as percepções sensoriais ou conhecimentos” (ad demonstrandos motus animae vel sensa, aut intellecta). Isso porque a única ratio do emitir sinais consiste em “comunicar e transmitir à alma do outro (ad depromendum et trajiciendum) aquilo o que tem na alma quem emite o sinal”. Nessa perspectiva, um sinal, em geral, aparece como “uma coisa que além de sua figura [species], que impinge os sentidos a partir do se fazer a si, ainda faz chegar ao pensamento algo outro”14. Decisivo não é o vestígio percebido ou a fumaça, mas o animal que passou ou o fogo.

Nos seres humanos, as palavras assumem o primeiro posto; com elas, podem ser enunciados todos os outros tipos de sinais, mas esses não podem substituir as palavras. Apesar disso, esses últimos demonstram falhas.

14 “aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire”; AGOSTINHO. De doctr. Christ. Paris: Ed. G. Combès et abbé Farges, 1949 (= OEuvres 1, XI) II 1.

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Eles despassam, tão logo tenham soado e transposto o ar (verberato aëre statim transeunt), e não duram mais do que o soar. Por isso foram empregadas letras como sinais das palavras. Para Agostinho, a literalidade é desde sempre fonética: “assim, os sons são mostrados aos olhos, não por si mesmos, mas como que por seus sinais” (Ita voces oculis ostenduntur, non per seipsas, sed per signa quaedam sua; l. c. II, 4). O escrito surge de uma falha e substitui a fluidez do acústico pela duração do visual, além de comunicar e trazer novamente a vontade comunicativa animal.

No Compendium, Nicolau amplia esse pensamento. Os sinais arbitrários são obra humana, conhecidos só por arte ou doutrina (non innotescunt nisi arte aut doctrina; n. 5). Antes deve ocorrer o seu aprendizado, pois se mestre e alunos não conhecem esses sinais, nada se pode transmitir. Nessa instrução, portanto, está incluído todo o instruível e transmissível. E como nossos antecedentes foram criados perfeitos por Deus, deveria também “ter uma ciência desses sinais, pela qual informassem mutuamente seus pensamentos” – eles precisavam passar a seus filhos essa ciência15. A terminologia de Nicolau parece de novo imprecisa: fala-se de uma ciência determinada, a ciência de certos sinais. Mas essa scientia abarca duas artes, a ars dicendi e a ars scribendi. A arte de falar é ciência primordialmente necessária para o bem-estar. É natural ao homem e nada lhe parece mais fácil; já as crianças, que aprendem a falar logo (cito fari), podem exercê-la. A instrução nas únicas artes que habilitam a tradição de todas as outras artes diz menos respeito à linguagem e mais ao ler e escrever.

As observações de Nicolau sobre a origem da linguagem e a necessidade dos meios de comunicação não se apoiam em pesquisas históricas, mas apenas no texto bíblico. Lê-se que Adão, o próprio homem, deu nome aos animais do campo e aos pássaros do céu (Gn 2,19s). A primeira linguagem, ou linguagem originária (Bormann; prima língua), foi um presente de Deus. Nicolau refere-se aqui ao milagre de

15 “scientia signorum talium habuisse, per quae sibi mutuo conceptus suos panderent et quam scientiam filiis et posteris tradere possent”, n. 6.

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Pentecostes: de súbito, os apóstolos dominaram as línguas nas quais deveriam pregar16. O filósofo não teme afirmar que aqueles dispunham da arte de “escrever ou designar palavras” (ars scribendi vocabula seu designandi). Com isso, “coisas passadas e ausentes se tornam presentes” (praeterita et absentia praesentia fiunt; n. 7). Essa presentificação traz muito auxílio (adiumenta) ao gênero humano. Ao superar o limite da mera fonética, a escrita disponibiliza o que está distante no tempo e no espaço, e que já não pode ser transmitido por via oral – a escrita opera uma importante ampliação da esfera da presença. A representação por meio da leitura abre um âmbito rico de disponibilidade. Mais tarde, essa experiência fundamental de cada leitor repica na imagem do cosmógrafo, no prefácio de De conc. cath. E na Apologia, Nicolau mesmo conta sobre sua caça a livros em bibliotecas e de excertos, como do manuscrito de Mainz, de Mestre Eckhart, etc. (h XIV/1 p. 3; PTS I 568).

Todavia, devem-se distinguir duas ciências – ou artes. A prima scientia se ocupa com a designação das coisas através de palavras, captadas pelo ouvido. A secunda scientia consiste em designar “nos sinais visíveis das palavras as coisas” que são apresentadas diante dos olhos (designandi res [...] in vocabulorum vivibilibus signis, quae oculis obiciuntur). Ela pressupõe a primeira ciência, mas está “bem afastada da natureza” e mais próxima do intelecto (remotior est a natura [...] propinquior intellectui; n. 7). Só se aprende a escrever depois de falar. Língua e escrita estão num processo de desnaturalização e intelectualização, num progresso da natureza para a razão. Esta é criadora das artes (creator artium), mas a arte ajuda a natureza desmembrando e modificando os sinais confusos (confusum signum) produzidos por ela. Como afirma Nicolau posteriormente, todos os sinais sensíveis ou suas marcas (notae) são de início confusos e genéricos (generica). Só quando se tornam próprios e específicos (propria, specifica) pode-se nomeá-los perfeitamente (n. 11; cf. Aristóteles, Física I 1, 184 a 21). Mas certamente não são absolutamente perfeitos.

16 Comp. N. 6; At 2,1-11. Cf. De possest (PTS II 310): “Lemos que alguns receberam de súbito pelo dom do Espírito Santo a arte da linguagem (artem verbi linguarum recipisse), de modo que ignorantes de súbito sabiam os tipos de línguas. E essa força, recebida por inspiração súbita, nada mais era do que a participação na palavra da arte divina (participatio verbi divinae artis). Mesmo assim, só tinham uma ciência humana”.

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Com isso, tocou-se o complexo tema da relação entre natureza e arte. A técnica (téchne), afirma Aristóteles na Física (199 a 15-17), “em parte, leva a completar o que a natureza não pode levar à finalização”, em parte imita a natureza (mimeîtai). A ideia de que a arte seria uma espécie de mimesis é acolhida e diversificada por Nicolau. No De coni. (n. 12: De natura et arte; PTS II 144ss) ele chama a natureza de unidade masculina e a arte de alteridade feminina: “o começo e o fim do artístico é a natureza. Assim, a arte racional [ars rationalia], como falar, tecer, semear, cozinhar etc., é ordenada ao fim da natureza sensível, assim como a arte do intelecto (ars intelligentiae) o é ao fim da natureza racional”. Isso leva a uma hierarquia: a natureza sensível obedece à natureza racional; a qual obedece à intelectiva, que, por sua vez, obedece à divina.

Segundo Nicolau no Compendium, o homem forma a ciência das coisas (scientia rerum) a partir de sinais e palavras (vocabulis), assim como Deus forma o mundo de coisas. Ele atribui a esta ornamento, sonoridade, beleza, intensidade etc., assim como atribui retórica, poesia, música, lógica e outras artes à gramática, imitando a natureza (naturam imitando). “Todas essas artes são sinais da natureza” (n. 25s); não cópia proporcional, mas refinamento do substrato natural de acordo com a semelhança (similitudo), que é species ou sinais da igualdade (aequalitas; n. 32). Assim, toda arte está “fundamentada numa consideração que o sábio faz na natureza”, mas essa última é “pressuposta, pois seu fundamento permanece desconhecido para ele”17.

17 “quia causam eius propter quid ignorat; m. 27. Em De vem. Sap. 20 (PTS I 88), Nicolau compara a natureza com a corda de um saltério tocado pela razão; no De ludo globi (PTS III 254; cf. 226), ele observa de forma lapidar: Natura movetur intelligenta. Sobre esse tema, cf. o excelente trabalho de K. Flasch: Ars naturam imitarur. In: Parusia. Studien z. philos. Platons, FS Hirschberger, ed. K. Flasch, Frankfurt a.M. 1965. Em geral vale: a arte imita o tanto que pode; jamais consegue alcançar a precisão da natureza. Por isso, a medicina, a alquimia, a magia e outras artes da transmutação dispensam a precisão da verdade, mesmo que a medicina seja mais verdadeira (De docta ign. II 1 318). Im Sermo 2: “Ibant magi” (1431; h XVI/1 n. 18ss), Nicolau trata também de um esquema setimal de artes incertae ou magicae, “artes proibidas”, métodos mântico-astrológicos que eram muito difundidos no século XV. Cf. W. Schmitt. Zur Literatur der Geheimwissenschaften im späten Mittelalter. In: Fachprosaforschung. Ed. por G. Kail e P. Assion. Berlim, 1974, p. 170 e 179; id. In: Lexikon des Mittelalters, v. 1, Munique; Zurique, 1980, 1058.

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O intelecto deve auxiliar a natureza mais uma vez. Visto que cada sinal que repousa na arte da fala “se esquiva da expressão, é infiel à memória e não alcança o distante, o intelecto acrescentou um instrumental através de outra arte, a da escrita, e a submeteu a sinais sensíveis do sentido da vista”18. A falta essencial de sinais sonoros articulados não pode ser suprimida por uma maior precisão, mas apenas por uma espécie de deslocamento, pela submissão a outra força sensória. Com isso, vêm expressos outros motivos.

Como Agostinho, também Nicolau joga na panela aquela sonorização, visto que aquele só tem em mira uma escrita alfabético- -fonética. Novos são os motivos da fraqueza natural da memória, assim como da comunicação a grandes distâncias19. Nicolau afirma que a escrita apoia a memória; fundamenta isso com uma argumentação já conhecida. Cada ser sensível haure as imagens de conhecimento correspondentes a sua natureza dos sinais sensíveis, e precisamente o tanto que ele necessita para seu bem-estar (n. 16). Essas species correspondem à natureza racional do homem; elas permitem-lhe tirar conclusões corretas (bene ratiocinari) e encontrar alimento para o corpo e para o espírito. Esses são os dez predicamentos, os cinco universais, as quatro virtudes cardeais etc., e aparecem aqui como desempenhos característicos do homem. Delas, a arte raciocinativa (Bormann; vis ratiocinativa) retira as diversas artes pelas quais o homem supre as

18 Et quoniam signum illud, in quo haec ars ponitur, prolatione cessat a memoriaque labitur et ad remotos non attingit, remedia intellecus alia arte, scilicet scribendi, addidit et ilam in signo sensibili ipsius viso collocoavit, n. 7, W. Dupré (PTS II 691) usou como remédio “um conservante”. K. Bormann (l.c. 64 Adn. 8) remete para a citação de Agostinho supracitada, e para o Comentário ao peri hermeneia, de Tomás (I, lect. 2, n. 2). Ali, a necessidade do uso da escrita é fundamentada a partir da intelectualidade do homem: ele seria capaz de abstrair do hic et nunc e, assim, precisaria tornar manifesto seus pensamentos.

19 A ideia de que o esquecimento poderia ser suprimido por um recurso artificial deve ser visto como totalmente a-platônico. Theuth, deus ou demônio, inventor do que mais tarde se chamou de artes liberais – número, cálculo, geometria, astronomia, jogo de xadrez e de dados, escrita – expõe sua téchnas ao deus-régio o qual julga sobre as grámmata, que nada mais seriam do que um meio de recordação, não para a memória (Oukoun mnémes allà hypomnéseos phármakon heúres I; Fedro 274 c ss). Cf. D. Thiel, Platons Hupomnemata. Friburgo; Munique, 1993. Nicolau leu apenas a primeira metade do Fedro, na tradução de Leonardo Bruni, e fez anotações nela (Cod. Cus. 177). Ele desconheceu a famosa crítica da escrita ao final do diálogo.

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“faltas de seus sentidos, o alcance de seus membros, as enfermidades e se socorre para restabelecer prejuízos físicos e para expulsar a ignorância e a letargia do espírito”. Isso porque deve se tornar “um adorador do divino”20.

Como ilustração, Nicolau remete para aquilo que foi encontrado “nas artes mecânicas e liberais e nas ciências morais”. Seus exemplos lembram Hugo de S. Vítor e dizem respeito aos cinco sentidos, ao movimento, ao espaço e ao tempo. Na falta de luz, caracteriza-se o homem sendo auxiliado por uma vela acesa; tendo olhos fracos, usando óculos (beryllis); na ilusão de ótica, com a arte da perspectiva; nos alimentos crus, com o cozinhar; no mau cheiro, com o perfume; no frio, com vestes, aquecimento e moradia; na lentidão, com carros e navios; e na defesa, com armas, assim como a memória deve apoiar, pela escrita, a arte da memória (memoriae scriptura arteque memorandi succurrat; n. 18).

A arte da memória é mencionada também em De vem. sap. 31. Depois de ter abordado o campo 10 e último, o ordo, Nicolau apresenta exemplos, dentre eles logo um de Platão: Porque quem interroga mantém a ordem, o escravo de Mênon pode responder corretamente, como se a ciência da geometria lhe fosse inata. O orador e qualquer outro profissional precisa de ordem; igualmente “uma memória colocada em ordem lembra facilmente, como se mostra na arte da memória, que se baseia na ordem das posições”21. Para os teóricos da ciência natural do século XVII, a comunicação é obrigatória e pertence ao repertório argumentativo estabelecido na teoria dos sinais do século XVIII. Warburon, Condillac, Rousseau, Herder, entre outros, argumentam que a voz humana é essencialmente limitada ao espaço e ao tempo.

20 Fiat homo speculator divinorum; n. 17 K. Bormann (l.c. 68 Adn. 9) remete a De ludo globi I (PTS III 248): “A alma é a força inventiva [vis inventiva] de novas artes e ciências”. Segundo Bormann, Nicolau deixa de lado sua antiga teoria da abstração e se aproxima de Agostinho: os dois sensoriais iniciam a formação conceitual, sem intellectus agens (aristotélico). Cf. K. Kremer, Erkennen bei NvK. Apriorismus – Assimilation – Abstraktion. In: MFCG 13 (1978) p. 23-57.

21 Memoria in ordinem redacta de facili reminiscitur, sicut in arte memorativa in ordine locorum fundata patet. Aquele que vai expor (lector) “distingue o que vai dizer e ordena as diferenças” (PTS I 146s).

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O tema da distância espacial, de os indivíduos estarem fora do âmbito de atingimento mútuo, leva necessariamente ao desenvolvimento de um outro meio de comunicação, de um meio que conserva e transporta o sentido e que pode ele próprio ser transportado22.

No capítulo 4 do Compendium, Nicolau explica a prioridade do ótico sobre o acústico, a função do sentido da vista e do próprio ver. Ali ele descreve a difusão espacial distinta dos sinais sensíveis (signa sensibilia), fundamentando ainda a medialidade do conhecimento em geral. Diferente de um discurso ou de uma imagem, nenhuma coisa, como é, pode ser multiplicada. Se quiserem ser conhecidas, as coisas que não podem alcançar a cognição de outra pessoa (in notitiam alterius intrare) devem fazer isso através de suas designações (per suas designationes). Deve haver, assim, um intermediário (medium), pelo qual a coisa possa multiplicar uma species ou um sinal de si. Isso só pode acontecer na presença da coisa, e quando esse desaparece, seus sinais devem ser anotados (annotari) para que se conservem como assinalados (signata) e para que permaneça uma cognição da coisa. Essa anotação se dá na força interna da fantasia (in interiori phantastica virtute); ali, os sinais se conservam “como as palavras se conservam escritas no papel quando a expressão da fala some; essa permanência (remanentia) pode ser chamada de memória”23.

22 A tradição da techné mnemoniké ou ars memoriae leva de Simonides de Keos à retórica anônima ad C. Herennium, Quintilian, Hugo von st. Viktor (cf. I. Illich, In: Weinberg des Textes. Als das Schriftbild der Moderne entstant. Frankfurt a. M. 1991, 37ss) até um teatro enciclopédico da memória de um Giulio Camillo ou Robert Fludd. No final do século XV são impressos diversos tratados da memória. De J. Wenck, o adversário da Apologia doctae ignorantiae, foram conservadas algumas anotações sob o título Artificium memoriae, um “estudo didático-mnemotécnico para as Sagradas Escrituras e para a visualização de verdades teológicas” (R. Haubst, Studien zu NvK und J. Wenck. Do manuscrito da biblioteca vaticana. Münster, 1955 = BGPhThMa, vol. 38 cad. 1). Foi pioneiro para as pesquisas o livro de F. A. Yates, The art of memory (1966). Para o século XVII (Descartes, Hobbes, Leibniz) cf. D. Thiel, Über die Genese philosophischer Texte. Studien zu J. Derrida. Friburgo; Munique, 1990, cap. 6.

23 N. 8s. Para a determinação de memória, K. Bormann (l.c. 65 Adn. 7) cita Aristóteles, De anima III (2, 425 b 24 ss) e De mem. et rem. (450 a 25-32): Na base da mnéme está um perseverar, um permanecer, um demorar-se (moné), “como uma impressão [typos] ou uma pintura [zográphema] em nós”. Ao lado de sua famosa dedução da expressão mens de mensurare (De mente; PTS III 486), Nicolau apresenta uma outra: mens a memoria dicitur (Sermo: Trinitatem in

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Ora, segundo uma frase batida de Aristóteles, nada há na fantasia que antes não tenha estado na percepção sensorial. Aqueles sinais representativos escritos (signa illa phantastica) ou sinais das coisas são, portanto, “sinais de sinais do sentido” (signa signorum sensuum). Esses sinais da imaginação ou da fantasia (signa rerum in imaginatione seu phantastica; em resumo: signa phantastica) são mais afastados da matéria e mais formais. Como a escrita, encontram-se num processo, num movimento entre os polos da materialidade e da formalidade; em vista daqueles, são menos perfeitos, em vista dos outros, são mais (n. 9). Mas jamais estão totalmente abstratos (abstracta): a representação de cor talvez não seja ela própria colorida, porém deve conter algo sensível para ser representação de uma cor e não de um som, por exemplo.

Essa abstração é limitada, pois, como foi dito, nada pode ser tão pequeno que a representação não possa dividi-lo novamente (n. 10). Disso, Nicolau deduz a ideia de uma abstração pura. Em todos os seres sensíveis perfeitos, os sinais representativos são alcançados (sinais dos sentidos). É só o homem que procura um “sinal desvinculado de toda conotação material e totalmente formal, a forma simples das coisas que doa, representa o ser”24. Com isso, a desnaturalização chegaria ao fim. Nicolau esboça um processo de aperfeiçoamento do sinal, uma desmaterialização, formalização, abstração infinita, do confuso para o próprio, do genérico para o específico (cf. n. 11), uma redução de todas as substâncias-suporte e de todas as conotações até o ponto final, onde se deve perguntar-se ainda se trata de “sinal”. Até lá o conceito de sinal continua válido; a ideia de um fazer-as-vezes-de, de um remeter-a-algo, cunha ainda a concepção da abstração pura ou absoluta.

unitate veneremur; Excitat. VII, Opera, ed. Paris 1514, fol. 134v). Para a discussão do conceito de tempo, cf. o artigo crítico de K. Bormann Zur Frage nach der Seinserkenntnis in dem whrscheilich letzten philosophisch-theologischen Werk des NvK, dem “Compendium”. In: Archiv f. Gesch. D. philos. 50, 1968, 181-188; e a interpretação mais pontual de M.-A. Schramm, Zur Lehre vom Zeichen innerhalb des Compendiums des NvK. In: Z. f. philos. Fo. 33 (1979), 616-620.

24 Signum ab omni materiali connotatione absolutum penitusque formale, simplicem formam rei, quae dat esse, repraesentans; n. 10. Para a discussão da expressão forma quae dat esse, cf. K. Bormann l.c. 65, Adn. 12.

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Nicolau distingue claramente humanidade e animalidade, diversas vezes com ajuda do exemplo da literalidade, ou melhor, com o auxílio das operações gramaticais fundamentais. “O homem enquanto homem está para o animal como um homem instruído para um não instruído. Ambos, o douto e o indouto, veem as letras do alfabeto, mas o douto compõe sílabas das diversas combinações de letras, e das sílabas, palavras, e das palavras, orações”. O não instruído não o pode, pois lhe falta aquela arte “que o instruído adquiriu pelo exercício de seu intelecto”. Assim, “o homem pode compor e dividir (componere et dividere) as imagens naturais do conhecimento em virtude de seu intelecto exercitado e formado (exercitatus et reformatus intellectus) e delas formar imagens cognoscitivas do intelecto, da arte e dos sinais conceituais”25.

São atos combinatórios. Nicolau se refere ainda mais claramente a Raimundo Lullo, com cujos textos estava familiarizado. Ele cita exemplos para imagens cognitivas que, em virtude de diversas combinações, abarcam muitas artes (multarum artium complexiva) e deixam conceber também muitas coisas, como por exemplo o que Aristóteles chama de movimento, ou o mais preciso e fecundo de uma arte geral (ars generalis). Aquilo que, no começo do Evangelho de João, se chama de Palavra está ainda mais elevado, pois é a “imagem cognitiva de toda a arte formadora (species artis omnia formantis)”. Como expõe enfaticamente Nicolau, isso abarca todo o inteligível: o falar do falante, o escrever do que escreve, o operar do que opera em geral. Todo saber é palavra, mas a palavra é manifestatio mentis. O que se pressupõe de todo ente real, in actu, como base ontológica só pode ser conhecido se for formado; ele mesmo não tem nome, mesmo que lhe chamemos de hyle, caos, matéria, possibilidade etc. (n. 19; cf. De non aliud; PTS II 478).

Seguindo essas três species tomadas de outros autores, Nicolau projeta uma quarta: a descrição do ser sensível perfeito como cosmógrafo. Dos aspectos ali unificados como um holograma, destacam-se apenas alguns. Pelos cinco portais de uma cidade entram mensageiros com relatos para o chefe da cidade. O receptor dos relatos parece mudo, mas

25 Intellectuales et artificiales spedies et signa notionalia; n. 18; cf. K. Bormann, l.c. 69 Adn. 17 Der Quaternário também no n. 25 e outros textos.

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ouve e senta-se no trono (sede atque) como no centro, imóvel. Ele nada modifica, deixa tudo como está e anota tudo que lhe foi comunicado (cuncta relata notet), “para possuir anotada a descrição de todo o universo sensível em sua cidade. Esforça-se com todo zelo (studet omni conatu) para manter os portais sempre abertos para novos mensageiros e formular sua descrição do mundo cada vez mais perfeita e verdadeira” (n. 299). Isso pressupõe ou, de certo modo, faz com que o mundo seja finito ou fechado, apreensível por completo e comunicável.

Para não perdê-lo (como e onde poderia ser perdido?), o chefe da cidade redige suas informações num mapa bem ordenado e com medidas proporcionais (in mappam redigit bene ordinatam et proportionaliter mensuratam). Essa descriptio ou designatio, panorama e reunião completa de dados, é a cosmografia. Essa cosmografia deve ser ao mesmo tempo uma autografia, sendo cada vez assinada por si mesmo – o mapa de outro seria imprestável. Agora o chefe da cidade se volta para sua obra, despede os mensageiros, fecha os portais e dirige o olhar interno (internum intuitum) para o fundador do mundo. Esse nada é o que os mensageiros compreenderam e relataram e o que se anotou por primeiro – o artífice (artifex) e o fundamento de tudo. Ele se reporta ao mundo todo como o cosmógrafo a seu mapa. Esse último contempla em si aquele criador do mundo e considera com o espírito “na imagem, a verdade; no sinal, o designado”26.

Assim, “ele descobre em si mesmo o primeiro sinal e o mais próximo do criador”, onde reluz a força criadora mais do que em qualquer outro ser sensível conhecido. Isso já não é um sinal sensível, mas um sinal intelectual (signum intellectuale). Nicolau chama-o também de intelectivo, simples e formal (inelligibilis, simples, formale). Esse sinal

26 In signo signatum mente contemplando; n. 23. Concorda com isso o que está no começo do De beryllo, a citação de Hermes Trismegisto de que o homem seria um segundo Deus, “pois como Deus é o criador do ente real e das formas naturais [creator entium realium et naturalium formarum], assim o homem [criador] dos entes racionais e das formas artificiais [rationalium entium et formarum artificialium], que nada mais são que semelhanças de seu intelecto, assim como as criaturas de Deus são semelhanças do intelecto divino” (n. 6; PTS III 8). Fala-se da forma mundi seu charta cosmographiae também no Sermo Semen est verbum Deis (Excit. VII fol. 129r).

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primeiro e mais perfeito do criador é o espírito humano27. Quando ele se retrai de todos os sinais sensíveis, portanto, também de seu mapa, o cosmógrafo percebe com atenção máxima que nos sinais intelectivos reluz a luz eterna (lux aeterna), como uma face em diversos espelhos, ou como o intelecto humano, que se manifesta multifariamente “em suas diversas artes e a partir de diversas produções das artes, como uno em si e permanecendo invisível”. Como o rosto, também o intelecto humano permanece uno em si e invisível: assim como o primeiro se mostra (ostendit) de diversos modos, o segundo também se manifesta em diversas artes e seus produtos. A forma do ser (forma essendi), porém, permanece inconcebível e só pode ser contemplada no modo inconcebível do ser. Depois que ele penetrou até a causa, origem e meta de si mesmo e de todas as coisas, o cosmógrafo conclui sua especulação (speculatio, n. 24).

Podem ser apresentadas muitas fontes para o tema da cidade (-de-Deus), desde Agostinho até a città ideale dos arquitetos da Renascença italiana. Mas a relação entre percepção dos sentidos, imagem intrapsíquica, expressão na linguagem e conservação gráfica parece ter sido redigida primeiramente no Filebo de Platão (39 a – 40 a). Sócrates afirma que da memória e da percepção surge a representação (dóxa). Quem traz à linguagem uma percepção transforma a representação num discurso (lógos); mas quem a retém para si, tem sua alma equiparada a um livro (he psychè biblío tinì proseoikénai). A expressão da memória que coincide com influências externas (pathémata) parece “registrar como que discursos em nossa alma” (gráphein hemôn en taîs psychaîs póte lógous). Ou melhor: um escritor (grammateús) imita o discurso concebido no surgir; seguindo-o, um segundo mestre (demiourgós), um pintor (zográphos), pinta as imagens (eikónas) do que é falado. A escrita deve substituir o diálogo; a pintura, mecânica ou arte, ilustra o livro já escrito.

Mas tudo isso novamente é apenas uma “imagem”, uma metáfora? Em todo caso, a força imaginativa, de certo modo, superou o sentido ao

27 N. 23 s. cf. n. 33: o espírito seria o sinal da igualdade (coaequalitas). K. Bormann (l.c. 72, n. 6) remete para outras passagens, nas quais o espírito humano é chamado de imagem ou semelhança do espírito divino.

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qual deveria ter meramente ajudado e que (se crê) pode se separar dele. Como Platão, Nicolau descreve uma situação monológica: o que lá era um caso de necessidade, aqui é uma exigência metodológica. Necessita-se constantemente de uma anotação dupla: primeiro do protocolo, a coanotação dos relatos; depois de sua transcrição cuidadosa, a iluminação do mapa. E como em Platão, também o cosmógrafo consegue ver a si mesmo, em imagem, sinal ou contexto. Ora, Nicolau pode ter haurido o tema do deus escritor, símbolo da matemática, também de outras fontes, como da iconografia contemporânea. Porém, a função do escrito não pode ser negligenciada na (e para a) equiparação. O mapa, grafia universal, conserva o mundo comunicado pelo discurso fugidio dos mensageiros. O homem aparece como necessariamente “escrevente”, num sentido metafórico, coisa que também já foi antecipada por Platão: o mestre deve “escrever [o discurso autêntico] com ciência na alma do aprendiz” (met’epistémes gráphetai: Phaidros 276 a). Nicolau toma esse tema da anotação intrapsíquica e a visão de que a reflexão radical, o conhecimento de si e até de Deus (assimilatio Dei; homoíosis gheô; Politeia 613 b, Timeu 90 b), só é possível através de certa fixação.

Todas as artes são sinais da natureza. Isso leva à questão: De que é sinal a ars scribendi? O que é que da natureza é tomado, imitado e formulado em escrito pelo intelecto? E por fim: Qual protótipo ou modelo tomou como exemplar a natureza para si? Se houvesse uma natureza ou escrita natural ou uma escrita originária, já não seria mais artístico no sentido usual. Seria transcrição: Mimesis do procedimento natural fundamental, do simples edificar o complexo de elementos, átomos stoicheia ou propriamente de letras (desenvolver sílabas, palavras, discursos).

As explanações chamadas autográficas do Compendium sobre sinais se orientam na doutrina da transmissão do que uma vez se encontrou, e também na conservação da cultura humana. Nicolau retoma diversas vezes esse tema básico; no De genesi, ele aborda a tradição da arte da pintura; no De possest, a da doutrina da ignorância (PTS II 424 SS; II 332). Ele diz ao leitor do Compendium (n. 28): “[se você] inventou uma arte e tenta transmiti-la por escrito

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[in scriptis tradere conaris], deves cuidar [opus habes] para escolher antecipadamente palavras correspondentes ao que tens em mente, explicitando seus significados [significata] de acordo com teu espírito. Isso é o principal”. Então o que importa desenvolver (enodare) a cada vez é aquela palavra (verbum) designada naquelas palavras (vocabulis): a arte. Assim, todo o esforço (studium) do que se escreve deve voltar-se para ensinar da maneira mais precisa possível (quanto praecisius potes doceas) o que foi concebido no espírito através dessas palavras. Pois a definição que opera o saber é o desdobramento do que está compilado na palavra. Daí, Nicolau deduz também regras gerais para o estudo dos livros: o leitor deve atingir a “interpretação das palavras conforme o espírito do escritor”; assim, conseguirá harmonizar em concordância escritos contraditórios (scripturasque concordabis). A distinção dos conceitos (distinctiones terminorum), as análises das significações fundamentais e a solução de incongruências superficiais estão a serviço de uma redução até dar-se a igualdade (ad aequalitatem reducere).

A ars scribendi e a scientia signorum destacam-se num certo sentido do feixe das outras artes e ciências. Essas são necessárias ao homem e distinguem-no do animal, mas sua tradição não pode ser uma arte ou uma ciência. Ciência dos sinais e arte de escrever não são meros exemplos de scientia ou de ars. Antes, elas pervertem a função usual de caráter paradigmático e destroem os quadros usuais da exemplaridade. O tema “escrito”, em certo sentido, é sem-exemplos: seu objeto específico é precisamente aquele medium que possibilita, por primeiro, toda e qualquer tematização e tradição, toda crítica e reflexão mais fundamental. Aquilo que se acreditava poder lançar mão só para explicar alguma outra coisa, pelo menos nesse caso, já era sempre o que deveria ter sido explicado.

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REFERÊNCIAS

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