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.t' . - /- I I I I I o Emanuela Scribano Guia para leitura das Meditações metafísicas de Desca rtes 0 Tradução Silvana Cobucci Leite Ec:llções lo yo/a

Scribano, Emanuela - Guia Para Leitura Das Meditações Metafísicas de Descartes

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Guia Para Leitura Das Meditações Metafísicas de Descartes

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    Emanuela Scribano

    Guia para leitura das Meditaes metafsicas

    de Descartes

    0

    Traduo Silvana Cobucci Leite

    Ec:lles loyo/a

  • Ttulo original: Guida alia ltrtura dtllt "Mediuuioni m~tafisiclte" di D~scartts

    ~ 1997, 2003 Gus. l..ateru & Fi&li Spa. Roma- Bati Ediio brasileira inlermcdiada pela Asncla liiiOriria Eulama. ISBN 88-420-S272-8

    l'Ru.t.AAO: Maurcio B. Leal Dv.oRAMAO: So Wai Tam Rfv1sl.o: Maria F. Cavallaro

    E41u Loyo\a Rua 1822 n' 347 - lplranaa 04216-000 So Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04Z18-970 - Slo Paulo, SP ($I (ll) 6914-1922 (li) 6163-4275 Home paae e vcnciaa: www.loyoiLC:om.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] 1bdos os deiiM rascrvldc>&. Nenhuma paM c1e&1a obn pldc

    -._-..w.-.....-.-.-~rom..-....qw:r meios (c\eu6nic:o ou mocinico, iniC\u.\ndo f~ c gravalo) ou ~o;ivada em qll&lquu sis~t:m~ ou bano:o de dados sem pcnnisso esc;rila ~ Editora. ISBN: 978-85-15.{)3270-9 C EDIOES LOYOI..A, Sio Paulo, Brasil, 2007

    Sumrio

    Origem da obra ........................................................ ......... . 1. Origem das Meditaes ......................................... ............ . 2. O tron co ... ... .......................................... .... ....... ............... ..

    3. As razes .... .... ....... ....... .. ...... .................. ............................ . 4. o projeto de Descartes .................................................... ..

    11 Estrutura da obra ................................ .................... , ........ ..

    111 Anlise da obra ................................................................. . . 1. A dvida, o indubitvel e o verdadeiro ........................... .

    1.1. A dvtcla como mtodo .......................................... . 1.2. O obJeto da dvida .................. .............................. .. 1.3. Duvidar do lndubitvel .......................................... .

    2. Exlstenda e natureza do eu ............................... .............. . 2.1. A existncia do eu ............................. .................. .... . 2.2. A natureza do eu ..................................................... . 2.3. t mais fcil conhecer o esprito que o corpo ........ ..

    9 10 13

    1~

    19

    29 29 29 32 40 45 46 56 64

  • 2.4. O pensamento ......................................................... 72 3. As idias e a existncia de Deus........................................ 75

    3.1. A natureza das idias ............................................... 79 3.2. A existncia de Deus. A primeira prova a posteriori. 85 3.3. A existncia de Deus. A segunda prova a posteriori. 93 3.4. A idia de Deus........................................................ 103

    4. O erro.. ....... ........................ ............................................ ... 106 4.1. Deus e o erro............................................................ 106 4.2. A teoria do juzo ........ ................................. ............. 109 4.3. A liberdade............................................................... 114 4.4. Os fins de Deus........................................................ 118 4.5. Algumas observaes de mtodo ............................ 122

    S. O inatismo, a essncia das coisas materiais e a existncia de Deus . . ... ....... ....... ................ .......... .... ...... 123

    S.l. O inatismo ............................................................... 123 5.2. A essncia das coisas materiais................ ................ 130 5.3. A prova a priori da existncia de Deus..................... 131 5.4. Existncia de Deus e verdade das idias.................. 137 S.S. O crculo vicioso ...................................................... 139

    6. A mente e o corpo............................................................. 145 6.1. A distlnllo real ........................................................ 146 6.2. A imortalidade da alma ........................................... 148 6.3. A eXistncia das coisas materiais ..... ........................ 150 6.4. A unillo substancial ................................................. 154 6.5. Os erros de natureza.. .............................................. 160

    IV O sucesso da obra..... ....................................................... 165 1. Deus .................................................................................. 169 2. As idias ............................................................................ 174 3. A mente e o corpo...... ....................................................... 181

    Bibliografia .................................................................................. . Obras de referncia ............................. ................................ .. Ensaios crticos ...................................... .............................. ..

    Sobre a dvida ..... ....................................... ................... . Sobre o cogito ................................................................. .

    187 187 188 190 190

    Sobre as idias e o pensamento.... .................................. 191 Sobre as Idias e as verdades eternas.................... .......... 192 Sobre Deus ........................................ ....... ... ... .. .. .. . . .. .. ... .. 192 Sobre a teoria do juzo e do erro ......... ........................... 193 Sobre a llberdade e a vontade ........................................ 193 Sobre a mente e o corpo ..... ,............. .............................. 194 Sobre o drculo vicioso.................................................... 194

    ndice de nomes.......................................................................... 195

  • o

    .

    ADVERT~NCIA Todos os textos de Descartes slo citados a partir da ediao organizada por E. GARIN, Opere filosofiche (Roma/Bari, 1986, 4 vols.), abreviada com a sigla OF, seguida do nmero romano do vo1ume e da paginao em arbico; pela freq~ncia com que aparecem aqui, constituem exceo as Meditazioni metafisiche e as Obiezoni e resposte, que formam seu segundo volume, do qual ser citado apenas o nmero de pgtna. Os textos no contidos na edio Italiana so citados a partir da edio organizada por C. AoAM e P. TANNtRY, Oeuvres (Paris, 1964-1974, 12vols.), indicada com a sigla AT. acompanhada analogamente do nmero romano do volume e da paginao em arbtco.

    Origem da obra

    As Meditaes so uma obra de metafsica. Segundo Aristteles, a ''cincia primeira", ou seja, a cincia que depois receber o nome ~ metafsica, ocupa-se das coisas que eXistem separadas dos corpos e qu ~ so imveis 1 A metafsica ocupa-se das substncias separadas da matt _ ria, repetir a escolstica e, em ':"?nformidade com esta tradio, as Mf -ditaes metafsicas se ocupam de Deus e da alma, como eVidenc:a :> subttulo: Nas quais a existncia de Deus e a distino real entre a alma e J corpo so demonstradas. No texto original, latino, Descartes havia pr

  • Creio que poder ser chamado [ .. . ] Meditaes sobre a filosofia primeira1 porque nele eu no trato apen~s de Deus e da alma mas, em geral, de todas as primeiras coisas que podem ser conhecidas filosofando com ordem"2 O tema das Meditaes , portanto, mais amplo que o estudo das substncias separadas da matria -Deus e a alma. De fato, a pri-meira certeza que ser obtida "filosofando com ordem", e qual se confiar a tarefa de fundamentar todo o sistema, ser a existncia do eu. Evidentemente, Descartes temia que o carter privilegiado da certe za da prpria existncia se perdesse no ttulo posteriormente adotado na traduo francesa: Meditaes metafsicas.

    1 . Origem das Meditaes

    O interesse pela metafsica antigo e nasce nos mesmos anos em que, depois de um longo estudo das matemticas, Descartes comea a se ocupar sistematicamente de fsica. Entre 1628 e 1629, Descartes trans fere-se definitivamente para a Holanda e se dedica redao de um breve ensaio de metaffsica, que no chegou at ns; em 1629, d incio ao estudo dos meteoros, e em 1630 trabalha na Di6ptrica, uma obra que o leva a interromper a redao do tratado de metafsica.

    Em 1630, Descartes comep a compor o breve texto que encerra sua fsica, O mundo, concluindo sua redao em 1633. Durante esse traba-lho, confessa a Mersenne que o conhecimento de Deus e de si mesmo constituiu o inc.io de seus estudos, "e eu lhe diria que no teria conse-guido encontrar os fundamentos da fsica se no os tivesse buscado por esse meio. Mas a matria que estudei mais que todas as outras, e na qual, graas a Deus, encontrei plena satisfao"1 Posteriormente ele es-creve a Mersenne dizendo que no renundou de todo idia de elabo-

    2. Carta a Mersenne, 11 de novembro de 1640, AT 111, 239, p. 2-7. Mas cf. tambm a cana a Mersenne, 11 de novembro de 1640, AT lll, p. 235: "Nao dei a ela nenhum titulo, mas parece-me que o mais adequado seria Rena ti Descarres Mtdltatlones de prima philosophia; porque nao trato de Deus e da alma em particular, mas em geral de todas as primeiras coiSas que se podem conhecer ao fazer filosofia.

    3, Carta a Mersenne, 15 de abril de 1630, ATI, p. 144.

    10 Guta para a lettura das Mrditats meta(fslcas de Descartes

    rar um tratado orgnico de metafsica: "No digo que mais cedo ou mais tarde no termine um pequeno Tratado de metafsica, que comecei na Frisia e cujos pontos principais so provar a existncia de Deus e a das nossas almas, quando so separadas do corpo, de onde se segue a sua Imortalidade". Nesse meio-tempo, havia anunciado, sempre a Mersenne, que na sua fsica teria abordado "muitas questes metafsicas", eviden-temente convencido de que no era possvel separar uma das outras.

    A condenao de Galileu dissuadiu Descartes de publicar O mundo: a sua fsica parece-lhe invivel sem a tese heliocntrica que levou con-

    dena~o do cientista italiano. Seja como for, a metafsica de Descartes vem a pblico no Discours de la mthode, que aparece em 1637, como premissa a ''trs ensaios deste mtodo", a Diptrica, os Meteoros e a Geo-metria. A quarta parte do Discurso do mtodo contm a primeira exposi-o sistemtica da metafsica cartesiana. No entanto, Descartes est insa-tisfeito com o estudo da metafsica a que a destinao ampla do Discurso o obrigou- no quis insistir, numa obra dirigida ao grande pblico, na incerte.za de todos os nossos conhecimentos das coisas materiais, incer-teza da qual necessrio estar convencidos, contudo, se se deseja que a existncia de Deus se imponha com evidncias - e se dispe a expor novamente, e com mais liberdade, a sua metafsica. Em 1638, comea a redigir as MeditaDes, escritas em latim, e destinadas portanto aos erudi-tos, ao contrrio do Discurso do mtodo, mals popular. As Meditaes se-ro concludas em 1640. Em 11 de novembro de 1640, Descartes envia o

    4. Carta a Mersenne, 25 de novembro de 1630, AT I, p. 182. S. Carta ao padre Vatlei, 22 de fevereiro de 1638, AT I, p. 558565; p. 560: ~t

    verdade que fui demasiado obscuro naquilo que escreVI sobie a existncia de Deus naquele tratado do Mtodo ( ... ]. A principal causa da sua obscuridade deriva do fato de que nllo ousei me estender sobre as raz.Oes dos cticos, nem dizer todas as coisas que silo necessrias para separar a mente dos sentidos; porque no possvel conhecer bem a certeza e a evidncia das razoes que, no meu procedimento, provam a existn-cia de Deus, a n:lo ser lembrando distintamente as que nos fazem notar a incerteza que se encontra em todos os conhecimentos que temos das coisas materiais; e esses pensame.ntos nao me pareceram aproprtados para lmeiir num livro no qual quis que at as mulheres pudessem entender alguma coisa, e, nao obstante lsso, que at as mentes mais aguadas encontrassem suficiente matria para ocupar a sua ateno".

    Origem da obra 11

  • texto a Mersenne, juntamente com as objees que o telogo holands johan de Kater Oohannes Caterus) comps no vero de 1640, a pedido de dois cnegos capitulares de Haarlem, amigos de Descartes, e anexou a ele as respostas a essas objees, pedindo-lhe que fizesse drcular esses escritos e reunisse as objees que as Meditaes sustatiam, de modo a poder depois public-las junto com a soluo das dvidas levantadas peJos primeiros, e notveis, leitores. Mersenne desempenhar com soli-citude a tarefa de divulgar o texto cartesiano entre os eruditos, e reunir uma srie de observaes que, juntamente com as respostas de Descar-tes, sero acrescentadas primeira edio do texto em latim das Medita-tiones, publlcada em Paris no final de agosto de 16416 As Objees, in-cludas na primeira edio, so s1s: 1. de Caterus; 2. de um grupo de "diferentes telogos e filsofos", na verdade de Mersenne; 3. de Thomas Hobbes; 4. de Antoine Arnauld; 5. de Pierre Gassendi; 6. de um grupo de telogos, filsofos e cientistas. As respostas cartesianas so de extrema importncia tanto para entender as Meditaes como para compreender a evoluo que o pensamento de Descartes teve de sofrer para responder adequadamente s objees dirigidas a ele. Na segunda edio, publlca-da em Amsterd em 16427, figurava uma stima srie de objees, feita pelo jesuta Pierre Bourdin, com as respostas de Descartes, enquanto no rodap das quartas Objees se inserira um trecho sobre o mistrio da Eucaristia, omitido na primeira edio por sugesto de Mersenne. A se-gunda edio continha, alm di-sso, uma carta ao padre Dlnet, na qual Descartes reconstrua a origem da oposio sua filosofia por parte da frente catlica, na pessoa de Bourdin, e da frente calvlnista, de autoria de Gisbert Voi:!t, professor na Universidade de Utrecht.

    As Meditaes ainda no haviam sido publicadas, e Descartes j pen-sava na redao de um manual que sistematizasse toda a sua filosofia e

    6. Renatl Or.sCAf$ES, Meditationes de prima philosophia, in qua Del exlstentfa et ani-mae lmmortalit.a.s demonstratur, apud Michaelem Soly, via lacobea, sub signo Phoenlcls, Parts\is 1641.

    7. Renati Descartes, Meditatlones de prima philosophia, irr qubus Del existcntla, et animae Jtumanae a corpore distinctio, demonstrantur, apud Ludovicum Elzevtrum, Amstelodami 1642.

    12 Gula para a leitura das Meditllf6es metafCslcas de Descartes

    pudesse ser proposto como compndio filosfico nas escolas. o projf. to dos Principia philosophiae, que viro luz em 1644. Em 1647, sai en Paris a traduo francesa das Meditaes, realizada pelo duque de Luy:te . com as Objees e respostas, traduzidas por Clerselier. Descartes v:u ~ aprovou a traduo. No mesmo ano publicada tambm a tradu J francesa dos Princpios de filosofia.

    A traduo dos Princpios ? recedida por uma ampla carta de De: . cartes ao autor da traduo, o abade Claude Picot. Na carta-prefcic , Descartes, retomando uma anUga metfora, compara o con junto d;: s cincias a uma rvore, na qual a metafsica , em relao fsica, o qu ? as raizes so em relao ao tronco: "toda a filosofia como uma rvon , da qual as razes so a metafsica, o tronco a fsica, e os .camas qu ~ surgem desse tronco so todas as outras cincias, que se reduzem a tts principais, ou seja, a medicina, a mecnica e a moral''6 A rvore cartt-siana apresenta um deslocamento das cincias invertido em relao ~ disposio ideal das cincias aristotlicas, em que no mnimo a fsio precedia e justifica~a a metafsica. No sistema cartesiano, ao contrric , a metafsica desempenha um papel de fundamentao em relao ~ fsica. Assim, para compreender o sentido e o alcance do projeto met fsico cartesiano necessrio ter presentes a estrutura da sua fsica ~ ;:s relaes de fundamentao que, segundo Descartes, ocorrem ent-e :t metafsica e a fsica .

    2. O tronco

    A fsica de Descartes conh .. ce uma elaborao quase completa n J ensaio O mundo, ou Tratado da luz. Esse breve escrito constitui u m 3 espcie de brevirio da cincia moderna. Nele, Descartes pretende d-monstrar que a matria constituda tao-somente pelas propriedd n matemticas: a extenso em trs dimenses e as formas que a e>cter-sJ pode assumir, uma vez dividida e posta em movimento pela interver o divina. Todas as caractersticas qualitativas dos corpos, pereb:d:s

    8. Os prindplos da filosofia (OF 111, p. 1 5).

    Origem da obra 11

  • atravs dos sentidos, o~ sons, as core~, o~ odores, no tem, para Descar tes, assim como para Galileu ou Hobbes, ou ainda para os mais impor-tantes filsofos-cientistas envolvidos na chamada "revoluo cientfi-ca'', nenhuma objetividade, no pertencem aos corpos, mas so antes estados mentais provocados pelas modificaes que o nosso corpo sofre pelo encontro com os corpos externos. Os rudos, os sabores, as cores existem apenas na mente do sujeito percipiente, que traduz na lingua-gem das qualidades sensiveis aq,uelas que, nas coisas, so apenas pro-priedades matemticas. Como a essncia da matria consiste na exten-so, a matria coincide com o espao, e portanto ela no tem limites- Indefinida, e no tnflnlta, Descartes ter o cuidado de esclarecer, reser-vando o atributo de infinito apenas a Deus- e, pela mesma razo, na natureza no existe o vazio. De fato, o vazio deveria ser uma extenso no-matenal, mas a essncia da matria consiste na extenso, de modo que a noo de vazio contraditria, e por isso o vazio impossvel.

    O movimento, que Deus imprimiu ao mundo no ato da criao, segue algumas leis muito simples: a lei de inrcia {cuja primeira formula-o correta se deve a Descartes), a conservao da quantidade de movi-mento impressa originariamente por Deus ao mundo e a tendncia do movimento a ser retilneo. Com a anlise da natureza dos corpos e com a formulao das trs leis que regulam o movimento, Descartes rejeitava radicalmente a fsica de origem aristotlica: os objetos eram despojados das caractersticas qualitativas que, ao contrrio, para a fislca aristotli-ca faziam re.almente parte dos objetos, e a natureza se libertava de todo antropomorfismo, especialment~ da pretensa tendncia ao repouso de todo movimento natural, a partir do momento em que, com base na lei da inrcia, a matria era indiferente tanto ao repouso quanto ao movi-mento. Mas tambm a fsica de origem epicurista era rejeitada, com a rejeio do vazio.

    Com a matria criada por Deus e com o movimento regulado por leis, impresso na origem matria, Descartes pretende explicar todos os fenmenos fsicos. O mundo apresenta-se como um experimento men-tal que, a partir da hiptese da criao de uma matria indefinidamente extensa, dividida em partes e posta em movimento por Deus, recons-

    14 GUa para a l~itura das Medraoes metafsicas de Descartes \

    tri a gnese do universo, mostrando a sua formao em todos os deta-lhes, sem que nenhuma verificao emprica seja considerada necess-

    - ria. A fsica de Descartes uma "fbula", mas, ao contrrio das verdadei-ras fbulas, ao seu final saberemos como feito o verdadeiro mundo, se verdade que existe um mundo.

    3. As raizes

    No Mundo, as leis da natureza eram fundamentadas na natureza de Deus: como imutvel, Deus continua a conservar as partes da matria no mesmo modo em que as criou, e portanto cada parte da mat-ria "petsiste no mesmo estado at que o choque das outras a obriga a mud-lo"'; como Deus imutvel, a quantidade de movimento impres-sa originariamente no mundo permanece in variada, no obstante a pas-sagem, no choque dos corpos, do repouso ao movimento; como Deus imutvel, os corpos so conservados sempre com o mesmo movimento tendendal, e como o movimento tendencial compatvel com uma con-servao instantnea, como a divina, da matria o movimento reti-lneo, vale o princpio de que os corpos se movem s~gundo um movi-mento tendencialroente retilneo. Como se v, por uma sua parte impor-tante, ou seja, para determinar o contedo das leis da natureza, a fsica cartesiana se fundamenta na natureza divina e na anlise da relao que Deus mantm com o mundo10 Assim, o conhecimento da natureza de Deus indispensvel para estabelecer uma parte relevante do con-tedo da cincia fsica. Esse o primeiro nvel do papel fundamenta! que a metafsica desenvolve em relao fsica . E era provavelmente a esse papel que Descartes aludia na clebre carta a Mersenne de 15 de abril de 1630, anteriormente citada, na qual afirmava ter iniciado os seus estudos empenhando-se no conhecimento de Deus e que lhe teria sido impossvel encontrar "os fundamentos da fsica" se no tivesse

    .,

    9. O mundo ou Tratado da luz, cap. 7 (OF I, p. 148). 10. Uma fundamentaa:o anloga das lels da natureza encontra-se nosPrindpios de

    filosofia, lt, 37, 39, 42 (OF 10, p. 91-95).

    Origem da obra 15

  • percorrido esse caminho11 Ora, nas Meditaes no h1 vestgio desse nvel de fundamentao da metafisica em relao fsica, mas no por-que nas Meditaes n:io se fala de fsica: ao contrrio.

    Sempre a Mersenne, Descartes confidenciar: "aqui entre ns, devo dizer que estas seis Meditaes contm todos os fundamentos da mi-nha Fsica. Mas peo-lhe que no o diga, porque os que defendem Arist-teles talvez imponham maiores dificuldades para aprov-las; e eu espe-ro que os que as lerem se habituem insensivelmente aos meus princ-pios e reconheam a sua verdade antes de se dar conta de que eles destroem os de Aristteles"12 Os fundamentos da fsica, de que fala Descartes nessa carta, devem ser identificados na anlise da natureza da matria, ou melhor, na reduo da essncia dos corpos unicamente s caractersticas matemticas, que ser teorlzada sobretudo na quinta Meditaao. Mas, como veremos, a matemtica que descreve a natureza dos corpos, ao contrrio das leis de natureza, no deduzida - nem dedutvel -da natureza divina. As Meditaes, portanto, expem algu-mas teses fundamentais da fsica cartesiana, que tambm no so deri-vadas da metafsica. No entanto, a metafsica desempenha um papel central tambm em relao a esses princpios. De fato, a ela confiada a tarefa de ~segurar que aquilo que a mente conhece como constituti-vo da essncia da matria constitui, efetivamente, a sua natureza. A metafsica, que nada pode dizer sobre a natureza da matria, contudo indispensvel para garantir a verdade do conhecimento que a mente humana tem do mundo. A metafsica desempenha desta vez um papel epistemolgico.

    Descartes est convencido de que a prpria fsica composta ape-nas de idias "claras e distintas", ou seja, de idias presentes ao espirito atento- "claras"- e cujo objeto so as essncias das coisas de que se pretende tratar- "distintas''. Essas idias tm uma caractedstica: im-possvel duvidar delas quando se apresentam mente. Ao contrrio, toda a dncia aristotlica composta de idias "obscuras e con~sas",

    11 . Ver nota 3. 12. Carta a Mersenne, 28 de janeiro de 1641, AT 111, p. 297-298.

    16 Guia para a leitura das Mediwll~ metaficas de Descartes

    que, precisamente por isso, so sempre dbias. Assim, bastaria escolhe o critrio de clareza e distino das idias paia que a cincia cartesian. fosse plenamente garantida. No entanto, Descartes no considera sufi ciente esse critrio. Diante da.s idias claras e distintas da mente, d _ fato, sempre possvel se perguntar se elas so, mais que indubitv~i~ tambm verdadeiras. A mente humana finita, e por isso a sua cenez; no pode ser a medida do verdadeiro. Com base nisso, aJis, o ceticis-nc havia se aproveitado da reflexao crist sobre a onipotncia divina. Deus que criou a mente, tem pleno poder sobre ela, e poderia fazer com qUF o assentimento irresistvel que a mente d s idias claras e distipta no correspondesse verdade.

    Descartes, por sua vez, no faz nada para diminuir a diferena entn mente humana e mente diVina . A sua teoria do conhecimento est m ui te distante da perspectiva de garantir o acesso ao verdadeiro graas r;ar tidpao da mente humana na dimenso divina. Descartes no s pro pe uma teoria sobre a origem das idias- o inatismo - , em decorreo cia da qual as idias esto inscritas na mente - e, portanto, nesta f no em Deus que o conhecimento verdadeiro pode ser encontrado -mas ir mais alm, ao estabelecer uma cesura entre Deus e as mer.te criadas, a ponto de considerar que aquilo que o entendimento h uma nc julga necessariamente verdadeiro, ou seja, o contedo das idias inzta -em primeiro lugar a matemtica -, foi criado livremente por Deus

    Segundo Descartes, a matemtica trata de naturezas simples- pon tos, linhas, nmeros- que o homem no criou, mas que "descobre , r das quais parte no conhecimento dos teoremas e das demonst raes Como no so obra do homem, ser preciso indagar qual relao essa: naturezas mantm com Deus. A relao da matemtica e, ao m esmc tempo, das essncias dos corpos com a natureza divina uma questc de antiga tradio. Descartes, que, como veremos melhor a seguir, terr. uma concepo plat~ica da matemtica - ela lida com essnda.5 i n dependentes tanto da mente humana como das coisas existentes m natureza -, tem diante de si duas escolhas: a via platnica em sentidc estrito-as essncias das coisas materiais so independentes da nature za divina e coeternas a Deus -ou ento a via do platonismo cristiani-

    Origem da obra o l

  • zado - as essncias das coisas se encontram em Deus e se identificam com a natureza de Deus, uma escolha que GaUleu, por exemplo, havia reproduzido na sua teoria da matemtica. Pois bem, Descartes rejeita ambas as alternativas. Contra o platonismo cristianizado, ele se recusa a identificar as essncias das coisas com a natureza divina; contra o platonismo originrio, recusa-se a fazer delas entidades separadas e in-criadas. Para Descartes, ao contrrio, a idia de um Deus nico e Infini-tamente poderoso, como o cristianismo imps cultura filosfica, obrl ga a considerar que as essncias das coisas tenham sido criadas livre-mente por Deus como so as e~istncias. Descartes apresentar sempre essa teoria como conseqncia necessria da infinltude e da incom preensibiUdade de Deus, uma incompreensibilldade que preciso acei-tar se no se quer correr o risco de cair no atefsmo13

    Na carta de 15 de abril de 1630, endereada a Mersenne, Descartes anunciava que no seu t ratado ~e fsica, agora quase concludo, teria abordado algumas questes metafsicas, e citava, a ttulo de exemplo, precisamente a sua teoria metafsica mais original, a de que Deus havia criado livremente no s as existncias das coisas, como qualquer fil-sofo cristo sempre considerou, mas, ao contrrio do que todo filsofo havia pensado at ento, tambm as essnci~ das coisas, e como a essncia das coisas constituda de caractersticas matemticas - a ex-tenso tridimensional e as suas figu ras-, Deus havia criado livremente os nmeros e as figuras. Na.o obstante esse anncio, a doutrina que recebe o nome de "livre criao das verdades eternas" no aparece de modo algum no Muf'!do. E tampouco aparece nas MeditaDes metafsicas e nas obras sucessivas publicadas. A nica meno pblica encontra-se nas respostas s quintas e sextas objees que foram dirigidas s Medi-taes. Esta ltima circunstncia suficiente para excluir que Descar-tes tenha decidido na.o torna .. pblica aquela doutrina por razes de prudncia. Tampouco se deve pensar em uma renncia doutrina en-quanto tal. De fato, Descartes continuou a trabalhar nela por toda a

    13. Cf., sobretudo, a carta a Mersenne de 6 de maio de 1630, AT I, p. 149-150. 14. Risposte alie quinte obiezloni, p. 361 , e Rlsposte alie seste oblezioni, p. 402-403.

    18 Guia para a le1tura das McdtaOes meta(fslcas de D~sc;utes

    vida, numa consistente troca de correspondnda com alguns interlocu-tores, sobretudo Antoine Arnauld, o filsofo ingls Henry More e o pa-dre jesuta Mesland. A explicao mais simples para essa ausncia que o projeto de fundamentao da verdade empreendido nas Meditaes metafsicas no consiste em garantir a cincia contra a ameaa que po-deria vtr da Indita relao entre Deus e as essncias, que Descartes comunicara a Mersenne. A garantia que Descartes busca tem em vista uma imagem de Deus mais tradicional, a de um Deus que pode exercer o seu poder infinito no sobre as essncias, mas sobre as mentes que, criadas por ele, dele dependem. De fato , isso suficiente para fazer temer que as mentes finitas possam ser habitadas por iluses e enganos criados de propsito por Deus, que tornam as prprias mentes incapa-zes de alcanar a verdade. E, efetivamente, isso havia sido suficiente para levar cticos modernos e telogos a duvidar de que a razo, unica-mente com s~s foras, seria capaz de alcanar o verdadeiro.

    4 . O projeto de Descartes O problema central das Meditaes fornecer a garantia de que a

    cincia humana legitimada a falar com verdade do mundo. Para ter certeza de que o que aparece verdadeiro mente humana no apenas aparncia, Incapaz de descrever a verdade, necessrio saber muito de Deus. Por isso, em Descartes a metafsica fundamenta a fsica. S o co-nhecimento da natureza de Deus pode responder pergunta sobre uma possivel falcla incorrig{vel da mente. O conhecimento de Deus inte-ressante para esse projeto, e portanto o conhecimento de Deus a que so dedicadas as Meditaes, rigorosamente limitado pela funo de garantia do verdadeiro que o prprio Deus deve assegurar cincia. So dois os atributos de Deus que necessrio conhecer para essa finalida-de: a infinita potncia, graas qual Deus poderia manipular o conhe-cimento humano, e a veracidade, que dever garantir que Deus no pode querer usar o seu poder nesse sentido.

    O projeto de Descartes destaca-se pela sua peculiaridade em relao a fundamentaes alternativas da cincia contemporneas a ele. A tese

    Ongem da obra 19

  • da total separao entre mente humana e mente divina produziu o con-vencionalismo de Hobbes. De acordo com Hobbes, s se tem verdadei-ro conhecimento daquilo de que se conhece a origem. S conhece real-mente alguma coisa aquele que a produziu. Ora, Hobbes considera que a matemtica obra humana, e por isso inteiramente dominvel pela mente finita. O mundo, em contrapartida, obra de Deus, e portanto o homem n~o conhece nem pode conhecer-lhe a natureza. Em conse-qncia disso, o conhecimento do mundo atravs da matemtica nun-ca poder dizer como a" coisas so de fato, mas apenas como a mente humana as conhece. A realidade permanece inacessvel ao entendimento finito. A separal!o entre a mente humana e Deus permite a construo de uma cincia certa - a fsica matemtica -, mas necessariamente hipottica. O projeto cartesiano, por sua vez, contra o convencionalis-mo, pretende que o conhecimento humano alcance a essncia das coi-sas. Por isso ele precisa assegurar a cincia humana atravs da garantia divina. E a cincia cartesiana certamente precisa de uma garantia por-que ela no se fundamenta na tese de uma participao da mente hu-mana na verdade incriada. As idias claras e distintas silo idias inatas, impressas por Deus na mente humana, e dentro da prpria mente que o homem deve buscar a garantia de que aquelas idias silo legitimadas para descrever o mundo. Essa legitimao ser fornecida por uma outra idia inata, a de Deus. Tambm Deus, portanto, conhecido atravs de uma idia finita e no por participao da mente na verdade divina. Desse modo, Descartes no s rejeitou o convencionalismo de Hobbes, mas tambm o renascente agostinismo que impelia a invocar uma par-ticipao da mente humana na verdade incriada para fundamentar a necessidade e a universalidade do saber.

    A garantia da verdade da cincia humana no , contudo, o nico aspecto de fundamentao da fsica que a metafsica chamada a desen-volver. Tambm a teoria do conhecimento, que Descartes deve desenvol-ver para justificar a sua ctnda, requer uma justificao metafsica. Desta vez, porm, no de Deus que preciso falar, mas do segundo objeto privilegiado da investigao metafsica: a alma, ou a mente, da sua natureza e sobre as suas relaes com o corpo. A matemtica, segundo

    20 Guia para a leitura das Medita~es 111eta{(slcas de Descartes

    Descartes, no obtida por abstra~o e elaborao dos dados rccebdm atravs da experincia sensvel nem uma construo da mente , Par~ justificar essa dupla recusa, Descartes pretende construir uma teoriz que fundamente a possibilidade de adquirir conh~cimtntu verdadeirc independentemente dos sentidos e da livre atividade da mente. Eis< teoria o inatismo: a mente conhece as essncias das coisas atravs dE uma bagagem de idias que fazem parte da prpria natureza do enten-dimento. O inatsmo, por sua vez, justificado por Descartes mediantE uma teoria sobre a natureza da mente e das suas relaes com o corpo: mente e corpo so duas substncias separadas e de natureza diversa . e por isso a mente pode conhecer independentemente dos sentidos, atra-vs de idias que esto inscritas na sua prpria natureza. Tambm n esse caso, Descartes busca a tradio platnica contra a aristotlica, que h a-via considerado que a alma e o corpo constituam uma nica substn -cia, e que se servira tambm dessa teoria antropolgica para justificar o empirismo. No entanto, como veremos, Descartes abandonar ta::n-bm Plato, ao tratar de teorizar a relao que se verifica entre a rner:te e o corpo.

    O papel fundacional da metafisica em relao fsica obriga a rP.a-lizar uma investigao sobre Deus (para garantir a verdade do conheci-mento) e sobre a natureza da mente (para fundamentar o inatismo) A esses dois temas dedicada a parte central das Meditaes, ao passo q-.Je a fsica est presente, como objeto a ser fundamentado, atravs da teo-ria da natureza matemtica da matria.

    Talvez no seja intil relembrar o conjunto de teorias que o ptoleto cartesiano de fundamentao metafsica da cincia deve estabelecer para alcanar o seu intento. a) Teorias fsicas:

    1. A matria estruturada matematicamente. 2. As caractersticas quatltativas percebidas pelos sentidos so apenas stb-

    jetivas (contra a fisica aristotlico-escolstlca). b) Teorias gnosiolglcas:

    1. As essncias das coisas sllo conhecidas independentemente da ex.perinc~a . 2. As idias da matemtica so inatas (contra o empirismo da cincia a ris-

    totlica e o convencionalismo).

    Ongem da obra Ll

  • c) Teorias metafsicas necessrias possibilidade das teorias compreend1das em b): 1. A mente ~ realmente distinta do corpo (contra a tese aristotlica da

    mente como forma do corpo). 2. As essncias so independentes das existncias (contra a tese aristotU-

    ca, e, em geral, empirista da prioridade da existncia sobre a essncia). d) Teorias metafsicas necessrias para fundamentar a verdade das teorias com-

    preendidas em a): 1. Deus existe. 2 . Deus no enganador.

    A metafsica desenvolve, portanto, um papel multo relevante na fundamentao da fsica, e Isso explica a sua complexidade e a sua exati-do extraordinrias. No entanto, ela permanece, em relao aos conte-dos da tsica, uma cincia instrumental. E Isso explica a surpreendente recomendao de Descartes, que tanto cuidado dedicou construo da metafsica, de no perder muito tempo com ela, mas de aceitar os resultados do muito tempo que ele mesmo lhe dedicou, e de passar logo a construir sobre eles aquelas dncias que Descartes havia considerado realmente importantes para o homem, a fsica, antes de tudo, mas tam-bm a medidna: "Deve-se ter presente que na.o se deve exagerar em se dedicar s meditaes e metafsica em geral ( ... ]. Basta ter adquirido uma vez um conhedmento geral delas, e lembrar depois sua conclusa.o; de outro modo, a mente se desvia multo das coisas ffsicas e sensfveis, tornando-se incapaz de tom-las em considerao, quando essa a ocu-pao humana que mais devemos favorecer( ... ]. Por outro lado, o autor se deteve o bastant~ nas verdades metafisicas ( . .. ] e estabeleceu a certeza delas de modo a eximir os outros de se empenhar e de se preocupar muito tempo em refletir sobre elas"15

    Nenhum homem mora nos alicerces da casa, nenhum pssaro faz o ninho nas razes da rvore, e no entanto preciso construir alicerces slidos e razes robustas para que as casas e os ninhos possam se.r habi-tados com segurana, o que Descartes espera ter feito, de uma vez por todas, e para todos, nas Meditaes metafsicas.

    15. Descartes a Burman, AT V, p. 165.

    22 Gula para a le1tura das Meditaes meta(fsicas de Descartes

    11

    Estrutura da obra

    Para expor a sua metafsica, Descartes escolhe a forma da medita-o. O termo tomado emprestado do gnero da literatura espiritual e religiosa. Esse gnero literrio geralmente dedicado a descrever o ca-

    o minha de quem busca a salvao a partir das trevas do pecado. As meditaes religiosas so obras didticas nas quais a experincia pes-soal deveria servir para guiar os leitores mais com o exemplo que com o preceito, ao longo do itinerrio que levou o autor salvao. Seguin-do esse modelo, as Meditaes cartesianas traduzem a busca da salvao espiritual na busca da salvao especulativa. Devemos libertar-nos dos prejulgamentos e dos erros nascidos na confiana imprudentemente concedida ao conhecimento sensvel, e com eles devemos abandonar a sistematizao culta daqueles pr-juzos, representada pela cultura aristotlica e escolstica. Das trevas do erro e da priso do conheci-mento sensfvel o leitor dever subir de novo ao caminho que o levar luz da verdade.

    A aprendizagem do leitor exige uma atitude ativa. Como se trata de retomar a experincia do autor, o leitor dever meditar tambm, e por

    23

  • isso a matria dividida no em captulos, mas em meditaes, que prevem e prescrevem a pausa em cada uma para que o percurso feito se torne parte integrante da vida intelectual do leitor. As Meditaes devem convencer e no vencer: "no concebemos to bem uma coisa, nem a fazemos prpria, quando a aprendemos de outros, e sim quando a en-contramos por ns mesmos"'. Isso muito mais necessrio quando se considera que a metafsica uma disciplina que parte de pressupostos distantes da experincia sensvel, e por isso precisa ser absorvida lenta-mente para penetrar a mente e lev-la a concordar com os princpios cuja evidncia obscurecida pela fora dos pr-juzos: "E foi por esse motivo que escrevi mais d~s meditaes que das disputas ou d~s ques-tes, como fazem os filsofos, ou tambm i-meiro" no so necessariamente as que fundamentam logicamente as sucessivas, e sim aquelas que foram descobertas primeiro e que, na or-dem da descoberta, no dependem das seguintes. A ordem das razes deve ser sempre respeitada se SP deseja que o prprio raciocinar se;a, mais que persuasivo, tambm logicamente correto, mas o percurso ce-monstrativo pode ser organizado segundo um itinerrio analtico ou segundo um itinerrio sinttico. No primeiro, a ordem das razes seg.1e a hierarquia das descobertas: as primeiras verdades so as que foram descobertas primeiro e cuja c~pacidade de persuadir no depende de outra coisa; o segundo, por sua vez, segue a hierarquia da fundamenta-o lgica: as primeiras verdades so aquelas que, na ordem lgica, no dependem de outra coisa.

    3. Cf. tambm a carta a Mmenne de 2.4 de dezembro de 1640, m, p. 266-270

    Estrutura da obra ~

  • Descartes est convencido de que, em metafsica, o mtodo analti- '.!l co mais vantajoso, precisamente porque se tem de lidar com uma disciplina que, desde os seus primeiros princpios, deve lutar contra as inclinaes dos sentidos, e que por isso encontra especial dificuldade em convencer. A geometria, ao contrrio, pode servir-se proficuamente do mtodo geomtrico, graas a uma maior conformidade dos seus pri-meiros princpios com o conhecimento sensvel: que a reta a linha mais curta entre dois pontos revela-se intuitivamente verdadeiro, at porque se presta facilmente a um experimento imaginativo. A metafsi-ca, em contrapartida, tem de lidar com entes - Deus e a alma - que no slio nem imaginveis nem muito menos experimentveis, e por Isso deve lutar contra o hbito de aceitar como verdadeiro apenas aqui-lo que experimentvel e imaginvel. Meditar e seguir a ordem daquilo que conhecido primeiro deveria ajudar a superar as dificuldades pecu-liares da metafsica.

    A forma do meditar, do convencer, do envolver no prprio Itiner-rio para a descoberta do verdadeiro fornece uma primeira explicao para o fato de o texto seguir uma exposio em primeira pessoa. Mesmo ao expor pela primeira vez a sua filosofia, no Discurso do mtodo, Descar-tes o fizera de forma autobiogrfica e em primeira pessoa. Ao celtar expor a sua metafsica segundo a Impessoal ordem geomtrica, Descar-tes o far ou contra a vontade, para atender a um pedido de Mersenne, em apndice s respostas s Segundas objees, ou com Inteno sistem-tica, para conquistar o mercado da cultura institucional, nos Princfpios. Ao contrrio, quando expe a prpria filosofia escolhendo livremente a modalidade de exposio, Descartes opta pela forma autobiogrfca, e pela narrao em primeira pessoa.

    A ordem analtica e a forma meditativa aperfeioam o foco das Meditaes no eu: as primeiras verdades no so nem aquelas que fun- C: damentam logicamente o percurso argumentativo (os primeiros prlnc!- ~ pios), nem aquelas que fundamentam ontologicamente o sistema (Deus), mas aquelas de que o sujeito se convence primeiro; conseqentemente, o critrio do verdadeiro identificado em uma caracterstica aparente-mente subjetiva e psicolgica: a indubitabllidade. No entanto, o funda-

    26 Guia para a leitura das Meditaes metafsicas de Descarte~

    mente da metafsica no sujeito nlio redutvel a uma escolha netodo-lgica, uma vez que ele comandado pelo prprio projeto mEtafsico cartesiano, o de fundamentar a verdade da cincia em regim~ c e sepa-rao com o infinito, baseando-se portanto naquilo que de al,soluta-mente verdadeiro se pode conhecer a partir do sujeito finito. A p imeira verdade que Descartes encontrar desse modo ser a da existnca do eu pensante, e todas as outras verdades, tambm a da existncia d ~ Deus, sero alcanadas no interior do pensamento. O eu , assim, ao mesmo tempo o protagonista e o centro do sistema metafsico cartesiaw.

    As etapas do meditar esto enunciadas nos ttulos das Medit 1es. A primeira, Das coisas que se podem colocar em dvida, dedicada

  • 0

    111

    Anlise da obra

    1 . A dvida, o indubitvel e o verdadeiro

    A primeira Meditao comea anunciando a in teno de buscar um fundamento slido e durvel nas cincias. Esse fundamento no poder ser encontrado no interior das opinies at agora consideradas verdadeiras, porque a experincia demonstrou freqentemente que a fora do pr-juzo impe como absolutamente certas opinies que, em seguida, se revelaram falsas. Para descobrir uma base slida para edificar o saber, deve-se utilizar um critrio para discriminar as crenas assumi-das no decorrer da vida. Esse critrk a indubitabilidade.

    1. 1. A dvida como mtodo o

    O projeto cartesiano de fundamentao da cincia prope-se elimi-nar todas as opinies que sejam passveis de dvida, em busca de um ncleo de proposies indubitveis sobre as quais seja possvel cons-truir o edifcio de uma cincia no mais passvel de ser revista. Nessa tarefa, o ceticismo , de um lau, o inimigo a ser derrotado e, de outro,

    29

  • o aliado cujas exigncias servem de base para avaliar a resistncia das crenas aceitas acriticamente durante a vida. No Resumo das MeditaCes, Descartes ressalta a dupla funo da dvida: de um lado, a dvida deve servir para libertar a mente dos pr-juzos e, de outro, deve eliminar a possibilidade de duvidar ulteriormente daquilo que se descobrir ser verdadeo: "a utilidade de uma dvida to geral [ ... ) muito grande, pois nos livra de todo tipo de pr-juzos [ .. . ] e [ ... ] faz com que no seja possvel que possamos ter mais alguma dvida do que depois descobri-remos ser verdadeiro" (p. 13). Se, depois de tentar pr em dvida, se-gundo o ensinamento do ceticismo, toda crena, se concluir que uma ou mais crenas so indubitveis, ter-se- encontrado a base para a cons-truo de uma cincia cena.

    A dvida cartesiana visa, portanto, a busca do indubitvel. O indu-bitvel de que fala Descartes no deve ser entendido apenas em sentido psicolgico, como algo de que no se consegue duvidar, mas tambm em sentido normativo, como algo que niio passvel do "mnimo mo-tivo de dvida". Isso significa que basta um motivo de dvida at sutil e distante do senso comum para colocar em dvida as prprias certezas, mas que, por outro lado, um motivo de dvida verdadeiro, ou seja, ao menos pensvel, deve sempre existir para poder duvidar. Duas hipte-ses so excludas: a de se contentar com uma alta probabilidade mas tambm a de um duvidar indefinido, se imotivado e gratuito.

    Mediante a prova da dvida, Descartes no se contenta em ressaltar a incerteza de toda uma cat~:goria de crenas, mas pretende que, por causa dessa incerteza. tais crenas devam ser todas rejeitadas como fal-sas. A dvida "hiperblica" porque transforma a dubitabilidade em um juzo de falsidade. Desse modo, o exercdo da dvida utilizado para colocar temporariamente entre parnteses todas as opinies que ocuparam a mente at agora. A exigncia cartesiana de transformar a dvida em negao pode ser satisfeita graas estrutura particular do juzo, que Descartes teorLzar apenas na quana Medita~o. Segundo Descartes, o assentimento a uma proposio sempre voluntrio. o entendimento limita-se a propor a relao entre dois ou mais conceitos, enquanto o valor de verdade dessa relaiio (se verdadeiro ou falso, por

    30 Guia para a leitura das MeditgOes meta{fsfcas de Descartes

    exemplo, que o bastao Imerso na gua est quebrado) obra da vonta-de. A verdade ou falsidade est apenas n a assero e no no enunciado. Ora, a vontade s se pronuncia necessariamente em um nico caso, ou seja, quando a relaiio entre os conceitos que compem uma proposi o necessria. Por exemplo, impossvel negar que 2 + 3 igual a 5, porque a negao dessa relao implica contradio. Em todos os ou-tros casos, a vontade tem o poder de afirmar, negar ou suspender o juzo. Se o contedo de uma proposio dbio, a vontade permanece livre e, em vez de se conformar com uma suspenso do juzo ao conte-do dbio da proposio, pode negar e rejeitar como falso aquele con-

    o tedo. A quem negasse tal poder vontade, e afirmasse que o mximo que a vontade pode fazer julgar dbios os contedos no necessrios do entendimento, Descartes pode contra-argumentar que a liberdade da vontade em relao ao contedo do entendimento j est demons-trada pelo fato de que, at agora, aqueles mesmos contedos, ainda que dbios, foram julgados verdadeiros em decorrncia dos pr-juzos dos sentidos, superando assim livremente - e arbitrariamente - o dado fornecido pelo entendimento. Trata-se de realizar agora uma escolha oposta, mas possvel pela mesma razo pela qual at agora foi possvel julgar verdadeiro aquilo que era apenas provvel. Em outras palavras, trata-se de vencer um arbtrio, aquele com o qual a vontade deu o as-sentimento a coisas provveis, com um outro arbtrio, aquele com o qual a vontade escolhe agora declarar falsas as coisas provveis. A dvi-da cartesiana o resultado de uma escolha livre em relao aos dados oferecidos pelo entendimento: "o esprito que, usando de sua prpria

    n liberdade, supe que no existem todas as coisas de cuja existncia possvel at a mnima dvida" (p. 13).

    Se a vontade se adequasse percepo do entendimento, e no usasse da sua liberdade, jamais teria xito na"tarefa de se livrar dos pr-juizos, uma vez que as "opinies antigas e ordinrias'' so enfim prov-veis, e teriam portanto acorrentado o entendimento com a fora de sua verossimllhana: "E eu no me desabituarei nunca de aderir a elas e de ter confiana nelas, enquanto as considerar como so de fato, ou seja, de algum modo dbias, como h pouco mostrei, e contudo muito pro-

    Anlise da obra 31

  • vveis, de modo que ternos muito mais motivo para crer nelas que para neg-las. Eis por que penso fazer delas um uso mais prudente, se, to-rnando um partido contrrio, emprego todos os meus cuidados em en-ganar a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos sejam fal-sos e imaginrios" (p. 17) . Graas deciso de transformar em negao todos os juzos dbios, a mente cria um espao temporariamente livre dos pr-juzos e de toda crena precedente, na qual pode desenvolver-se o projeto de busca do indubitvel.

    A deciso de julgar falso tudo o que dubitvel estabelece, por opo-sio, o critrio do verdadeiro: o que no passvel de nenhum motivo pensvel de dvida o verdadeiro. O verdadeiro e o falso so as nicas categorias que Descartes admite, e que a dvida discrimina. O artifido metodolgico de julgar temporariamente falsa toda opinio dubitvel logo revela os limites da investigao cartesiana. No h nenhum inte-resse por cincias provveis ou verossimeis: o que se busca apenas a verdadeira cincia.

    o

    1.2. O objeto da dvida No resumo que antecede as Meditaes , Descartes esclarece que a

    dvida concerne principalmente s coisas materiais: "apresento as ra-zes pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas, e em particular das coisas materiais" (p. 13). das coisas materiais, de fato, que se deseja adquirir a cincia mais perfeita. Para esse objetivo, Descar-tes se dispe a pr. em discusso as crenas aceitas anteriormente, ava-liando a consistncia do princpio que as orienta, ou seja, que uo saber mais verdadeiro e seguro" deriva dos sentidos. O projeto cartesiano visa, em primeiro lugar, pr em discusso, para destrui-la, toda cincia que, como a aristotlica, seja construda sobre a generalizao dos dados sensveis e, em segundo lugar, avaliar a consistncia da cincia cartesia-na j estruturada segundo a maternatlzao do mundo, e portanto pres-cindindo dos dados da sensibilidade.

    Para combater a cincia aristotlica que, segundo Descartes, no outra coisa que a sistematizao culta das crenas espontAneas e ing-

    32 Gula pa.ra a leitura das MeditaCes metll{fslcas de Descartes

    nuas do senso comum, so suficientes os argumentos que o c:eticisno clssico acumulou contra a certeza do conhecimento sen svel. quer en-quanto ela pretende atestar a existncia dos corpos externos . q uer enquanto pretende fornecer ele.mentos para conhecer a sua natureza. As crenas baseadas na experincia so enfrentadas com sucessivas on-das de dvidas, nas quais o andamento meditativo do texto se revela particularmente evidente. O sujeito se desdobra em "eu medltante' e em um "velho eu", e entre essas duas figuras se instaura um insistente dilogo, no qual o eu meditante, que decidiu pr em questo todo o saber do passado, submete ao velho eu, inteiramente imerso nos pr-juzos e resistente a abandon-los, uma srie de razOes para colocar em dvida a confiabilidade do saber que provm dos sentidos. O velho ~J, por sua vez, procura refutar as razes de dvida que ameaam as su'ls certezas, e, a cada onda vitoriosa do ataque do eu meditante, tenta entrincheirar-se numa posio mais recuada, mas que Identifique ainda um nvel de certeza no conhecimento derivado dos sentidos.

    Em primeiro lugar, o meditante invoca a experincia comum dos enganos dos sentidos: os sentidos s vez~s nos enganam, e portanto melhor evitar toda confiana no conhecimento que neles se funda-menta: "'fudo o que recebi at o presente como mais verdadeiro e seg J-ro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos; ora, algumas vezes expe1 i-mentei que tais sentidos eram enganadores, e de prudncia jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram" (p. 18). ('l o entanto, replica o eu velho, o engano dos sentidos poderia limitar-se a coisas intimas e distantes, e no atingir experincias prximas e m3-croscpicas, "por exemplo, que estou aqui, sentado perto do fogo, ves-tido com um roupo, com este papel entre as mos". S os louco.s se enganam sobre esse tipo de experincia. Mas, volta a objetar o medi-tante, para pr em dvida a certeza dessas informaes no necessr'o pensar que somos loucos, basta invocar uma possibilidade muito ma is cotidiana, a do sonho. Tambm os sonhos, s vezes, se apresentam com uma vivacidade e uma clareza tais que impossvel distingui-los, por suas caractersticas Internas, da experincia da vigjla. Portan to, n em sequer as experincias sensveis mais prximas e mais claras tm cond-

    Analise da obra 33

  • es de atestar a existnci~ de algo externo mente. Ora, os juzos baseados na experincia presumem a existncia fora da mente dos en-tes experimentados e a semelhana deles com as percepes, e portanto s so verdadeiros se existe algo fora da mente; por Isso a hiptese do sonho devastadora, porque deixa aberta a possibilidade de que toda a experincia seja uma construo mental e que no exista nada fora do pensamento: se eu sonho, no verdade que "estou aqui, sentado perto do fogo, vestido com um roupo, com este papel entre as mos".

    Contudo, volta a refutar o eu velho, parece que algo independente da mente deva necessariamente existir. Mesmo se toda a experincia sensvel fosse um sonho, de fato, os elementos primeiros da experincia onirica nao podem ser fruto da imaginao. Um pintor pode multo bem criar quadros abstratos ou imaginrios, mas as cores que utiliza para faz-los devem ainda assim ser independentes da sua arte. Assim, se os corpos no existem fora da mente como eu os percebo, se a minha experim:Ia fantasiosa e onrica, ao menos a natureza corprea e a sua extenso, a figura das coisas extensas, a quantidade e grandeza, o n-mero, o lugar, o tempo etc. :!evem ser "verdadeiros'', ou seja, indepen-dentes do sujeito cognoscente, assim como slio verdadeiras, ou seja, tndependentes do artificto do pintor, as cores com as quais Pintado um animal imaginrio. A capacidade destruidora da dvida baseada na hiptese do sonho encontra o seu limite na capacidade de algumas caractersticas primitivas dos corpos externos, que, mesmo na hiptese do sonho, mantm a sua Independncia da atividade da mente - do contrrio, o prprio sonho, como o quadro do pintor, seria impossivel. Nem tudo o que eu pensava ser independentt' da mente se revela, en-fim, puramente subjetivo, conclui, com alvio, o eu velho: ao final do processo de anlise dos dados empricos deparei com elementos no ulteriormente decomponveis, e portanto simples, universais e inde-pendentt!s da atividade mental do sujeito cognoscente. Ora, os elemen-tos primeiros nos quais se pode resumir a experincia sensvel so cons-titudos pelas caractersticas quantitativas dos corpos:

    34

    Ainda que essas coisas gerais, l saber, olhos, uma cabea, mos e outras semelhantes, possam ser imaginrias, preciso confessar todavia que h

    Guia pata a letuta das Meditalles metafi5icas de Descams

    coisa~ ainda mais simples e mais universais, que so verdadeiras e exis-tentes, da mistura das quais, nem mais nem menos que daquela de algu-mas cores verdadeiras, todas essas imagens as coisas que residem em nosso pensamento, sejam verdadeiras e reais, sejam fingidas e fantsti-cas, so formadas. Desse gnero de coisas a natureza corprea em geral e sua extensilo, tambm a figura das coisas extensas, sua quantidade ou gran-deza e seu nmero, bem como o lugar onde esto, o t~po que mede sua durao, e outras coisas semelbantes (p. 19; destaque meu).

    O que o argumento do sonho deixa intacta a estrutura matemti-ca da experina sensvel, e a confirmao de que a hiptese do sonho impotente, neste caso, ao contrrio do que ocorre no caso da crena na exlstnda dos corpos e na semelhana deles com as sensaes, que as operaes da matemtica, com as quais se descrevem as propriedades simples e universais das coisas, permanecem verdadeiras tanto no so-nho como na viglia: "esteja eu acordado ou dormindo, dois e trs jun-tos sempre formaro o nmero cinco e o quadrado nunca ter mais de quatro lados".

    O recuo do eu velho da confiana espontnea na confiabilidade dos sentidos para a ltima trincheira das certezas que se podem obter analisando os dados da experincia sensvel percorreu as etapas de um caminho que o leitor conhece bem, o db conhecimento abstrativo teo-rizado por Toms de Aqui no na esteira de Aristteles. Das caractersticas lndlvtduals de cada corpo percebidas atravs dos sentidos - esta cabea e estas mos - podem-se abstrair as caractersticas gerais dos corpos -a cabea, as mos, a natureza corprea em geral: o ruvel de abstrao em que trabalha a fsica. Da natureza corprea em geral podem-se de-pois separar com o pensamento as puras caractersticas da substnda sujeita a quantidade - a figura, o nmero, a grandeza: o nvel da matemtica. A matemtica, em cuja certeza procura proteger-se o eu velho, portanto a ltima fronteira do saber obtido a partir dos senti-dos, e contudo, nesse nfvel de abstrao, a sensibilidade e o prprio mundo externo so colocados entre parnteses pelo pensamento que se v obrigado a trabalhar com puros conceitos, os da matemtica, preci-samente. Toms de Aquino fala ra de uma "matria inteligvel", sobre a qual a matemtica trabalha, obtida por abstrao da "matria sens-

    Anlise da obra 35

  • I vel" 1 O ltimo refgio do eu velho conflvel pela sua solidez em re-lfio a todos os nveis precedentes do saber obtido a partir dos senti-dos. Se os raciocinios feitos sobre as coisas compostas da nossa expe rincia cotidiana so todos passveis de dvida, e com eler. o so as cincias que se ocupam de entidades compostas, como a fsica, a indu-bitabilidade e a verdade talvez possam ser encontradas nas ci~ncias que se ocupam dos componentes ltimos, no ulteriormente decompon veis, daquela e.
  • der dizer que a cincia matemtica do mundo, indiferente como existncia daquilo de que constitui a cincia, absolutamente certa e indubitvel.

    No entanto, volta a objetar o eu meditante1 subsiste um motivo de dvida pensvel, ainda que sutil, e distante do senso comum, que ameaa at a matemtica, e que exige que se busque o fundamento mesmo dessa certeza: o que aparece verdadeiro mente humana, e de que a mente humana nllo consegue duvidar, poderia aparecer falso a qual-quer outra mente. No obstante o carter no-composto das naturezas descritas pela matemtica, tambm elas poderiam ser aparncias ilus-rias como os corpos compostos que se Julgava existentes, e, nesse caso, at a matemtica poderia ser uma cincia enganosa como podem ser as cindas que se ocupam das coisas compostas. Com uma diferena: en-quanto eu estava lidando com coisas compostas, eu mesmo podia decomp-las, chegando a um nivel mais profundo e "verdadeiro", po-dia decompor o quadro nas suas cores primrias. No entanto, se at os objetos da matemtica fossem aparncia, eu no teria nenhuma possi-bilidade de decompor essa aparncia para reduzi-la a qualquer outra coisa, nem teria portanto a possibilidade de corrigir o erro das cincias que se ocupam daqueles objetos "simples e universais" . Para pr em dvida a matemtica no bastam mais os instrumentos daquele ceticis-mo que, tendo sempre permanecido no interior da razo, esgotou a sua capacidade de colocar em discusso a cincia das coisas materiais ques-tionando a aparncia sensvel. Para excluir que a matemtica no seja apenas aparncia enganosa, devo excluir a hiptese de que as operaes da razo, e portanto todas as proposies necessariamente verdadeiras como as da matemtica, paream pura aparncia a uma outra mente, que goze de um nvel de conhecimento mais profundo em relao ao possudo pela raz.o humana.

    Ora. existe um nico ente que a razo humana julga em condies de ir alm da prpria razo, e aquele que criou a razao, ou seja, Deus. Um Deus onipotente poderia fazer com que nem os corpos compostos nem os objetos da matemtica existam fora da mente, e poderia at mesmo fazer com que as proposies que se ocupam daqueles objetos

    38 Guia para a leitura da5 Medicaes meca(lsicas de Descartes

    sejam ilusrias. experincia comum que coisas que para alguns apare-am muito certas paream. enganosas para outros, e assim a um Deus onipotente poderiam aparecer enganosas aquelas operaes matemti-cas das quais nao consigo duvidar. Eu poderia enganar-me todas as vezes que executo operaes matemticas, exatamente como poderia enga-

    nar~me todas as vezes que julgo a realidade externa dos corpos, s que, neste caso, nlio teria nenhum instrumento para co._"\preender a lgica do engano: nao sei o que pode querer dizer 2 + 3 no so 5, enquanto sei muito bem o que significa dizer que os corpos poderiam no existir. E contudo a minha razo, que no pode compreender como 2 + 3 possam no ser igual a 5, capaz de imaginar que para um Deus poderosissimo, criador da minha prpria razo, os nmeros e suas leis paream uma falsa aparncia. Desse modo, um novo argumento ctico, impensado pelo ceticismo clssico, revela-se pensvel e operante. Enquanto essa dvida persiste (e a dvida mais interessante para Descartes, sendo a nica capaz de pr em discussao os fundamentos da su~ cincia), n o se pode dizer que as operaes da matemtica, com as quais no posso no concordar, porque no consigo conceber o contrrio do que demonstro com base nelas, sejam tambm verdadeiras, ou seja, que o indubitvel coincida com a verdade. Enquanto esse motivo de dvida continuar pensvel, a certeza que ocupa a mente diante das proposies analitica-mente verdadeiras ser apenas persuaso psicolgica, e no verdadeira cincia. No entanto, se eu puder convencer-me de que o que aparece indubitvel mente humana no pode aparecer falso a ne:nhuma outra mente, se no puder mais conceber que aquilo que sou impelido irresis-tivelmente a crer verdadeiro aparea falso para outros, ento o indubit-vel poder ser declarado verdadeiro, entao terei alcanado a "certeza mais perfeita"3 , a dncia ser fundamentada como absolutamente ver-dadeira, e no verdadeira apenas para a mente humana.

    A passagem da certeza psicolgica verdade confiada passagem da indubitabllidade de uma proposio impossibilidade de pensar que

    3. Esse o nome que, nas Resposras s segundas objeoes (orlg. lt. p. 136), Descartes , d certeza que colndde com a verdade.

    Anlise da obra 39

  • a mesma proposio possa aparecer falsa para outras mentes. Esta lti-ma dvida motivada por Descartes com uma antiga opinio - vetus opinio - , a de "um Deus que pode tudo, e por quem fui criado e produ-zido assim como sou1' . Esse Deus poderia ter desejado "que eu me enga-ne todas as vezes que fao a adio de dois e de trs, ou que enumero os lados de um quadrado, ou que julgo alguma outra coisa ainda mais fcil " (p. 20). Contudo, as razes para pr em dvida a confiabilidade da razo so mais amplas que a hiptese do Deus poderosssimo, e ge-ralmente dizem respeito ao problema da origem do meu ser. Se a minha natureza fosse fruto no de um Deus onipotente mas do acaso, da cega natureza ou de alguma outra coisa, nem por isso eu0poderia livrar-me da hiptese da falsidade das minhas crenas indubitveis, porque, quanto mais imperfeita a causa da minha natureza, tanto mais provvel que eu me engane. De nenhum modo, portanto, o ateu pode esperar estar isento da dvida sobre a valdade da prpria razo. A dvida contra a qual temos de combater concerne possibilidade de que aquilo de que a razo no consegue duvidar, como as operaes matemticas, seja falso. Como a dvida diz respeito prpria confiabilidade da razo, nenhuma cincia poder ser construda sobre as cinzas da cincia aris-totlica enquanto no se eliminar aquela dvida.

    1.3. Duvidar do indubitvel

    A dvida sobre as proposies analiticamente verdadeiras parece pedir mente humana uma tarefa impossvel: duvidar daquilo de que a mente incapaz de duvidar. No incio da terceira Meditao, e depois na quinta, Descartes esclarecer como possvel duvidar do indubit-vel. Existem proposies to simples e t~o evidentes, como as operaes mais simples da matemtica, que so apreendidas com um nico olhar da mente. No possvel duvidar diretamente delas, mas ainda assim pensvel que sejam falsas, deixando de prestar ateno a cada uma de-las em particular, para pensar na possibilidade de que um Deus podero-sssimo tenha construdo a mente humana de tal modo que ela se enga-ne todas as vezes que d seu assentimento s proposies indubitveis.

    40 Gula para a leituta das Meditaes metafsicas de Descartes

    No consigo duvidar da verdade de 2 + 3 = S enquanto presto atenco nela, mas consigo conceber a proposio "um Deus poderosissimo ~aderia ter-me feito de tal natureza que eu me engane at sobre aquilo que concebo clara e distintamente" (p. 34), ou ento consigo conceber que aquilo que parece verdadeiro para mim aparea falso para u i!'Ia outra mente. Essa possibilidade permnece ao lado da indubitabilidade da propqsio 2 + 3 = 5 e obriga-me a julgar que essa lndubitabilidade apenas um estado psicolgico, insuficiente para garantir que a ele cc r-responda a verdade. A indubitabilidade da evidncia presente no prova suficiente da verdade, enquanto possivel duvidar daquela mes-ma evidncia em outra fOTma.

    Se para duvidar das proposies mais simples necessr'io pensar nelas indiretamente, sob a frmula geral "idias claras e distintas" , pa"a duvidar dos raciodnios complexos e das demonstraes sufidente ter sob os olhos as concluses daquelas demonstraes, sem mais prestar ateno cadeia demonstrativa, 1nesmo lembrando de ter a seu temo realizado corretamente o processo demonstrativo. Nesse caso, a men'e no impelida irresistivelmente ao assentimento, como ocorria diante das proposies simples, e portanto possvel pensar que um Deus onipotente saiba que a soma dos trs ngulos internos de um trngu_o no igual a 180, mas crie na minha mente um assentimento irresist-vel proposio que aquela igualdade afirma. Em ambos os casos. preciso desviar a ateno da evidncia atual para que a dvida seja p~ icologicamente possvel, e contudo da verdade da prpria evidncia atual que se duvida.

    Para ser entendida, a dvida sobre a evidncia atual exige distin-guir dois nveis de dvida: a psicolgica (o ato efetivo do duvidar) e a normativa (a existncia de motivos vlidos para duvidar). A presena da segunda compatvel com a Impossibilidade da primeira. Assim, psicologicamente impossvel duvidar que 2 + 3 no sejam S, ou que os trs ngulos internos de um tringulo sejam iguais a duas retas, en-quanto realizo a demonstrao, e no entanto existe uma razo para pensar que todas as idias claras e distintas (inclusive 2 + 3 = S) e zs concluses das demonstraes efetuadas corretamente poderiam ser

    Anlse da obra 4 1

  • falsas. Ora, essa razo nao eliminada pelo fato de 9ue1 diante de cada proposio to simples que pode ser apreendida com um s olhar ou de toda a cadeia demonstrativa, no consigo pens-las falsas . Por isso, a indubitahilidade que acompanha a presena ao olhar da mente de cada proposio simples e de toda a cadeia demonstrativa no pode ser acei-ta como ~inal da verdade delas.

    Com a hiptese de um !'eus poderosssimo que poderia ter conde-nado a mente humana ao engano incorrigvel, chegou-se ao nvel de dvida mais profundo, o que comanda o compromisso metafsico da cincia cartesiana, e obriga a se ocupar da existncia e da veracidade de Deus. De agora em diante, a dvida cartesiana no ter mais afinidade alguma com o ceticismo clssico. Quando muito, entra em jogo aqui a potencialidade ctica do cristianismo. De fato, o cristianismo havia intro-duzido a idia de uma potncia divina infinita, da qual tudo depende: um Deus onipotente poderia manipular a experincia cotidiana, fazer ver objetos inexistentes, ordenar que seja justo aquilo que a conscin-cia percebe como pecado, e assim por diante. Sob as feies de um Deus onipotente, o cristianismo pusera em cena um personagem que podia transformar em realidade todas as hipteses mais ousadas do ceticismo, e at super-las, concedendo a Deus o poder de fazer aparecer necessa-riamente verdadeiro o falso.

    Ora, como sabemos, Descartes levara extremamente a srio as con-seqncias da infinita potncia divina, a ponto de tEOrizar, contra toda a tradio, que as essncias da matemtica eram fruto da livre criao divina. Deus, de acordo com Descartes, "foi to livre para fazer com que no fosse verdadeiro que terias as linhas que vila do centro circunfe-rncia sejam iguah quanto para no criar o mundo"4 No interior .dessa teoria abria-se a possibilidade de motivar de modo inteiramente indito a dvida sobre a matemtica: Deus poderia mudar as essncias da mate-mtica, deixando contudo inalteradas as idias e assim tomando falso o que antt-s era verdadeiro. No entanto, no texto das Meditaes, assim como nas outras exposies orgnicas da metafsica, o silncio sobre

    4. Carta a Merrenne, 27 de maio de 1630, AT 1, p. 152.

    42 Gula para a leltwa das MtditaDe.s meCQ{i.sicas d( Descart~s

    aquela doutrina rigoroso. Esse silncio plenamente compreensvel luz do que sabemos da estrutura dessa obra. A d~ida e a aventura do duvidar envolvem um homem que se alimenta da cultura do passado, que aspira "a se tomar Descartes", mas que ainda nao o , e portanto a dvida sobre a matemtica no poderia ser justificada com doutrinas inditas e absolutamente inovadoras, como a doutrina cartesiana da livre criao das verdades eternas. Em vez disso, para duvidar da mate-mtica, invocar-se- uma "antiga opinio", familiar ao eu velho, a de um Deus que pode tudo, uma opinio que afunda suas razes nas lem-branas das discusses escolsticas sobre a potentia Dei, particularmente desenvolvidas em mbito occamista. Nesse contexto, de fato, se atribu-ra a D~us no a capaddade de tomar falso o verdadeiro, mas de fazer com que mente humana aquilo que falso aparea necessariamente verdadeiro. Pelas costas de Descartes, um autor que ele conhecia bem, Francisco Surez, havia voltado a essa reflexo perguntando-se como era possvel elevar a indubitabllidade a critrio da verdade, a partir do momento em que Deus, usando da sua potncia infinita, poderia criar um assentimento necessrio e insupervel ao falso5

    As razOes de dvida que o eu velho est disposto a levar em conside-rao tambm provm da cultura do passado, e, como as crenas que so derrubadas por seus golpes, no so plenamente fundamentadas na razo. Obscuras e confusas so as crenas de que se duvida - no limite, at a matemtica, cuja verdadeira natureza ainda no se conhece -, como confusas so as razes de dvida que so opostas a elas. Isso particularmente importante pata a razo de dvida mais radical, a cons-tituda pelo Deus infinitamente poderoso.~ importante que a hiptese de um Deus que poderia ter criado a mente humana constitutivamente ilusria aflore de uma vetus opinio, e no seja uma idia clara e distinta, porque, como veremos, essa dvida poder ser eliminada precisamente com a obteno de uma idia cla.ra e distinta de l>eus6 A estratgia de

    S. F. SuARU, Disputationts Metaphysicae, Dlsp. IX, 11, Vil. 6. Cf. o que Descartes escreve a Buitendijck, AT IV, p. 64: "ao Deus claramente

    conhecido, n:lo s nao llclto, ma.~ nem sequer poss(vel que a mente humana atribua

    Anlise da obra 43

  • Descartes para demonstrar a falsidade da hiptese de um engano incor-rigvel da razo, e, portanto, para garantir a passagem do indubitvel ao verdadeiro, consistir de fato na tentativa de demonstrar que a hiptese de um Deus poderosssimo que tenha condenado a mente hu.nana ao engano s concebvel enquanto sustentada por uma idia obscura e confusa de Deus. Quando se atingir uma idia clara e distinta de Deus, a proposio "um Deus poderosssimo poderia ter-me feito de tal natu-reza que eu me engane at sobre aquilo que concebo clara e distintamen-te" aparecer contraditria, e portanto inconcebvel, e as idia~ claras e distintas no sero, sob nenhum aspecto e por nenhum motivo, dubit-veis. Ter-se- atingido ento a certeza mais perfeita" e fundado a cin-da perfeita, ao abrigo de toda objeo ctica. Aquele que j possusse uma Idia clara e distinta de Deus j teria excludo, desde o inido, a hiptese de que Deus use o seu poder para fazer com que o falso parea verdadeiro, urna vez que Deus lhe apareceria no s infinitamente po-deroso mas tambm verdadeiro. No entanto, predso chegar agora~ esse resultado a partir das idias obscuras, das opinies do senso co-mum, em sintonia com o objetivo de persuadir meditando. Ter tomado um caminho to longo para eliminar a razo de dvida em relao ao Deus enganador nao ter sido um procedimento intil, p01que, .ao pas-sar do conhecimento confuso de Deus ao conhecimento distinto, ou-tras noes sero esclarecidas, em primeiro lugar a que diz respeito natureza da mente; mas tambm a filosofia da matemtica mudar de alvo, do aristotelismo inicial concepo platonizante exposta na quin-ta Meditao. Assim, o itinerrio meditativo levar adiante o projeto de fundar a certeza da.taz.o juntamente com a construo da nova cincia.

    Mas voltemos ao eu meditante: as opinies at agora postas em dvida so altamente provveis, e sua prpria probabilidade as imporia de novo mente, assim que ela desviasse a ateno das razes invoca-das para justificar a negao dEias. O eu velho est sempre espreita,

    algo falso( ... ). Mas aos falsos deuses( ... ] construidos pelo erro da mente humana l:l e tambm ao verdadeiro Deus conhecido apenas confusamente [ ... ), bom ou num atribuir por hiptese algo falso, dependendo de o fim para o qual se tiver construido essa hiptese ser bom ou ruim'' (destaque meu).

    44 Gula para a leitura das Mtditaes mtlaflsicas de Descartes

    apoiado no poder do costume ao qual a mente tende a voltar para en . contrar descanso, esgotada pelo esforo de afastar de si todas as crena ; nas quais por tanto tempo depositou sua confiana. Para poder mante a epoch sobre todas as crenas precedent~s. o meditJrtte introduz agon a hiptese de uma divindade "menor", de um gni0 maligno "no me -nos astuto e enganador que poderoso, que empregou toda a sua inc.s . tria em enganar-me''. O gnio mzligno resume todos os motivos prece dentes de dvida sobre a existncia de qualquer coisa fora da mente exime, portanto, de lembr-los um a um: "Pensarei que o cu, o a~. ' terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores no passarr de iluses e enganos de que se serve para surpreender minha creduli j a de. Considerarei a mim mesmo como no tendo mos, nem olhos, n~rr carne, nem sangue, como no tendo nenhum sentido, mas crendo "al samente ter todas essas coisas" (p. 22). Trata-se de um artiffdo metodo lgico, de uma personificao do conjunto dos argumentos cticos ~rr uma figura menos inquietadora e menos sujeita a objees teolgica do que o Deus onipotente, e portanto mais facilmente pensvel. Df. resto, at Surez, depois de ter susdtado a dvida de que um Deus cni potente tome inevitvel o assentimento ao falso, introduzira uma hi ptese menos comprometedora, a de um "anjo mau", ou seja, de Jn demnio7 O gnio maligno evocado por Descartes, servindo de com:ra peso tendncia espontnea a entrar no mbito das crenas habitu'l-5 concordar em continuar a busca ao abrigo das tentaes das anti~a opinies. E assim o esprito, usa.rtelo da sua liberdade, poder supor ''qm no existem todas as coisas, da existncia das quais tem ele a meno dvida" (p. 13), e, neste vazio, poder comear a busca do fw1damentc indubitvel da cincia.

    2. Existncia e natureza do eu

    De acordo com as intenes enunciadas no ttulo, a segunda Medi tao prope-se demonstrar qual a natureza da mente humana e om

    7. F. SuARu, J)ispurationes Metaplrysicae. Oisp. IX, 11, VIL

    Anlise da obra ~

  • ela mais fcil de ser conhetiJa do que os corpos: Da natureza do esp-rito humano e de que ele mais fcil de conhecer do que o corpo. Surpreen-dentemente, o titulo esconde aquele que talvez o mais clebre argu mento cartesiano, ou seja, a conquista da primeira certeza, a da prpria existncia, popularizada na frmula cogito, ergo sum, o cogito, como se costuma abreviar. Por outro lado, o ttulo evidencia aquelas partes da Meditao que constituem a base para a refutailo do empirismo e, por-tanto, para a possibilidade da nova cincia, ou melhor, a autonomia do conhecimento da mente em relao ao conhecimento dos corpos. A segunda Meditao deve ser tida como urna espcie de construo estra-tificada em torno da problemtica da cincia moderna. A primeira ver-dade, a da exiStncia do eu, poe as bases para a absoluta certeza dessa dnda. A lnvestigailo sobre a natureza do eu e sobre a possibilidade de conhec-la Independentemente do conhecimento dos corpos, por sua vez, estabelece as bases para a refutao do empirismo. Enfim, no in te rlor desses dois niveis de aproximailo da fundamentao da cincia, Descartes comea a construir o prprio contedo da fsica, fornecendo os primeiros elementos de conhecimento da natureza dos corpos.

    A segunda Meditao idealmente dividida em trs partes: na pri-meira, obtm-se a primeira c.-.;teza, a da existncia do eu; na segunda, indaga-se sobre a nature.za do eu; na terceira, demonstra-se que a mente conhecida mais facilmente que o corpo.

    2. 1. A existncia do eu

    A dvida, portanto, colocou entre parnteses a existncia de qual-quer outra coisa, at mesmo do corpo do meditante, suspendendo em um provisrio juizo de falsidade todas as crenas do velho eu. Nesta epoch universal, o eu, antes de se conformar em admitir que nada no mundo pode ser afirmado como certo, busca uma proposio indubit-vel, que, como a alavanca de Arquirnedes, constitua o eixo para a cons-truo do edifcio das certezas indubitveis, demonstrando-se capaz de resistir s razes de dvida que o prprio medltante levantou contra as opinies do passado. Ao final de uma densa interrogao do eu medi-

    46 Gui~ p~ra a leitura das Medirnes metafisicas de Descartes

    tante consigo mesmo, esta proposio ser encontrada na proposio "eu sou, eu existo".

    Eu ento, pelo menos, no sou algo? Mas j neguei que tivesse algum sentido ou algum corpo. Existo, no obstante, pois o que resulta disso? Sou de tal forma dependente do corpo e dos sentidos que no posso existir sem eles? Mas persuadi-me de que mio havia absolutamente nada no mundo, de que no havia nenhum cu, nenhuma terra, nenhum espitlto, nenhum corpo; ento no me persuadi tambm de que eu no existia? Decerto olo, eu existia sem dvida, se me persuadi ou se somen-te pensei algo. Mas h um no sei qual enganador muito potente e mui-to astuto, que emprega toda a sua indstria em enganar-me sempre. Nao h dvida, entlo, de que eu sou, se ele me engana; e que me engane o quanto quiser, jamais poder fazer com que eu no seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, aps ter pensado bem nisso e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, preciso enfim concluir e ter por constante que esta proposio, Eu sou, eu existo, necessaria-mente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo no meu espirtto (p. 24).

    A proposio "eu sou, eu existo" capaz de resistir a todas as dvi-das, a partir do momento em que a existncia do eu condiao da d-vida (''eu existia sem dvida, se me persuadi ou se somente pensei algo") e do engano ("n!o h dvida, ent!o, de que eu sou, se ele me engana"), e portanto a hiptese de que eu seja enganado a atesta, em vez de tom-la duvidosa. O privilgio da proposio que afirma a existncia do eu determinado pela impossibilidade de encontrar uma premissa enuncia-da na primeira pessoa do singular pela qual ela nao seja confirmada: a existncia est implicada, e no excluda, at mesmo pelo pensamento de ser enganado. No cogito atingiu-se pela primeira vez a coincidnda entre ndubitabilidade psicolgica e indubitabilldade normativa: ne-nhum motivo de dvida pode abalar a certeza da proposio "eu exis-to", se sou eu a pens-la.

    Nas Meditaes, a primeira proposio indubitvel eu sou, eu exis-to, ao contrrio da formulao que se tomou clebre, penso, logo existo, que Descartes havia utilizado no Discurso do mtodo, e que voltar a utilizar nos Prlncfpios da filosofia. A frmula das Meditaes pe em se-gundo plano o pensar, para inferir diretamente da dvida a existncia

    Anlise da obra 47

  • do eu. Na verdade, a dependnda da certeza de existir do pensamento logo restabeledda por Descartes: o enunciado Ego sum, ego e;~isto verdadeiro "todas as vezes que( ... ] o concebo no meu esprito'=? "Eu sou, eu existo, isso certo; mas por quanto tempo? Na verdade, por tanto tempo quanto penso." Em relao a esse ponto, Descartes ser depois muito daro na resposta s objees de Gassendi. Gassendi no v a necessidade de pr o pensamento como condio para atingir a certeza da prpria existncia, que ao contrrio seria igualmente atestada por qualquer atividade do eu. O cogito, sum poderia ser substitudo, por exemplo, por um "passeio, logo existo". Descartes negar resolutamen-te essa possibilidade. De fato, no posso ter certeza de realizar a ao de caminhar (poderia estar sonhando, por exemplo), e portanto no pode-ria nem sequer ter certeza da conseqncia que Gassendl gostaria de extrair da, ou seja, que eu existo: "no seria boa esta inferncia: passeio, logo sou, a no ser na medida em que o conhecimento interior que tenho dela um pensamento, e essa concluso s tem certeza dele, no do movimento do corpo; o qual algumas vezes pode ser falso, como nos nossos sonhos, em que temos a impresso de passear; certo que do fato de eu pensar que estou passeando posso muito bem inferir a exis-tncia do meu esprito, que tem esse pensamento, mas no a cto meu corpo, que passeia" (Risposte alie quinte obiezioni, p. 340). A partir dessa resposta, evidente que, segundo Descartes, o pensamento a nica atividade que atesta de maneira indubitvel a existncia do eu, e tam-bm que em toda atividade do eu est implicado o pensamento: a exis-tncia do eu indubitvel se extrada do pensamento de passear, por-que a premissa, neste caso, indubitvel, e no foi extrada da atividade de passear, porque possvel duvidar da verdade dessa premissa. At a dvida de ser enganados atesta a existncia do eu, porque a dvida tambm um pensamento, e jamais possvel duvidar do prprio pen sarnento. O contedo dos pensamentos (ou melhor, como veremos, dos juzos) pode ser inteiramente falso, mas a certeza do fato d.e que eu penso no pode ser falsa.

    A argumentao com que Descartes reivindica a indubitabllldade da prpria existncia assemelha-se a um clssico argumento de prova

    48 Gula para a leitura das Meditaes metafsicas de Oescanes

    da validade dos primeiros princpios. Os primeiros princpios. prec sa mente porque so tais, no podem ser demonstrados, no oodem se . derivados de outra coisa. Assim, se por acaso algum os ne~asse, nc seria possvel convenc-lo do seu erro com uma demonstrao u .

    . ;n, possibilidade para obrig-lo a aceitar a validade dos princpios que elr. nega consiste, ento, em mostrar como a prpria negao deles imp' ic; a sua confirmao. Aristteles havia utilizado um radocnio desse t pc -uma prova por confutao dt~ tese do adversrio- para defender necessidade do princpio de no-contradio. A verificao do alcanc< do cogito, sum mesmo na hiptese do engano lembra muito esse proce-dimento: em vez de penso, logo sou, poderia dizer penso que no e.xirto mas igualmente eu deveria concluir que devo existir, se penso no e~is tir. A existncia do eu verificada tambm pela sua negao, se el.:J. realizada pelo prprio sujeito pensante.

    O prprio procedimento com que a proposio penso, ex fstc ( comprovada parece, portanto, remeter sua indemonstrablidacte, coe-rentemente com a sua funo de princpio primeiro sobre o qual d(.VE alicerar-se todo o edifcio da clnda. Mas Descartes ter a oportunida de de esclarecer mais o seu pensamento em relao a esse ponto, d iscu-tindo-o com os seus objetares.

    De fato, ele se preocupou, em primeiro lugar, em refutar a hiptese de que a existncia do eu seria a concluso de um silogismo, do qual ''eu penso" constituiria a premissa menor e o princpio "todo aquelE que pensa ou existe", a premissa maior. Se fosse assim, a proposic penso, logo sou no seria a primeira proposio certa, uma vez que de-penderia de uma proposio mais geral que serviria de premissa. E!sa objeo pretende que a proposio cogito, sum seja a concluso de um silogismo do tipo:

    Tudo o que pensa existe; Eu penso; Portanto eu existo.

    Mas Descartes sempre negou que as cojsas sejam assim~ ''quando nos damos conta de que somos coisas pensantes, esta uma noo pri-meira, que no obtida de nenhum silogismo; e quando algum d~z :

    Anlise da obra

  • Penso, Joso sou, ou existo, no deduz a sua exist~cia a partir do seu pensamento devido a um silogismo, mas como coisa conhecida por si a v com uma simples intuio da mente" (Risposte alie seconde obiezioni, p. 132-133; destaque meu). No entanto, Descartes admitiu que, segun-do a concatenao lgica, o princpio geral "para pensar necess~;io existir" precede a verdade da proposio penso, sou: "quando disse que esta proposio: Eu penso, logo sou, a primeira e a mais certa que se apresenta a quem conduz os seus pensamentos por ordem, nem por isso neguei que seria preciso saber primeiro [ ... ] que para pensar pre-ciso ser"11 E com isso Descartes parece afirmar duas teses Incompatveis: que o cogito o primeiro princpio, e que todavia ele depende de um outro princpio.

    Um primeiro caminho para conciliar as afirmaes opostas de Des-cartes passa pela distino entre o mtodo analtico e o mtodo sintti-co. A descoberta da prpria existncia segue o percurso usual da desco-berta de toda verdade. Para encontrar a verdade, explicar Descartes a Gassendi, " preciso comear pelas noes particulares, para ir atrs das gerais, embora se possa tambm, reciprocamente, depois de ter encon-trado as gerais, deduzir delas outras particulares. Assim, quando se en-sinam a uma criana os elementos da geometria, s ser possvel fazer com que ela entenda que 'quando de duas quantidades iguais se tiram partes iguais os restos so iguais' ou que 'o todo maior que as partes' se se mostrar a ela exemplos de casos particulares" (Risposte alie quinte obiezioni, p. 372). Que o bolo maior que a fatia verdadeiro porque vale o princpio ".o todo maior que a parte", no entanto a criana pode ignorar o principio e ainda assim conhecer claramente a sua exem-, plificao. A partir desta, poder facilmente chegar ao conhecimento certo do principio. Assim, segundo a ordem da descoberta, penso, logo sou conhecido primeiro e Independentemente do princpio geral "para pensar necessrio existir'' que, quando muilo, dele deriva.

    , portanto, em primeiro lugar, a lgica do mtodo analtico que exclui a interpretao silogstica do cogito. Mas seria redutivo limitar-se

    8. Cf. l'rncrpio.s da filosofia, I, 10 (OF 111, pp. 25-26).

    50 Gula para a leitura das MedltaOes metafsicas dr. Descartes

    a invocar o mtodo analitlco para justificar a autonomia do cogito, sum a partir do princpio geral"para pensar necessrio existir". Um escla-recimento elucidativo, nesse sentido, est numa carta a Clerselier: "a palavra princpio pode ser tomada em diversos sentidos: uma coisa buscar uma noo comum que seja todara e to geral a ponto de poder servir como princpio para provar a existncia de todos os entes[ ... ] que sero con hecidos em seguida, e outra coisa buscar um Ser, cuja exis-tncia nos seja mais conhecida que a de alguns outros, de modo que ela nos possa servir como prindpio para conheclos [ ... ]. [Nesse) sentido, o primeiro princpio que a nossa Alma existe, porque no h nada cuja existncia nos seja mais conhecda"9

    Se ulizasse o princpio "para pensar necessrio existir" como premissa para demonstrar a existncia do eu, a existncia do eu seria deduzida dela como a existncia de qualquer outro ente, como a de Pedro num silogismo deste tipo:

    Para pensar necessrlo existir; Pedro pensa; Portanto Pedro existe.

    Nesse silogismo, pode-se duvidar da premissa menor, ou seja, do fato de que Pedro pense, e, portanto, pode-se duvidar de que Pedro exista. Em contrapartida, quando o silogismo diz respeito prpria existncia, impossvel duvidar da concluso "eu existo", porque esta depende da premissa menor "eu penso", da qual impossvel duvidar. Contudo, se nos deslocamos para a premissa menor, para o "eu penso", a deduo da prpria existncia no predsa mais da premissa "para pensar preciso existir", porque a existncia intuda imediatamente, sem que nenhum raciocnio seja mais necessrio. A premissa maior, no caso da existncia do eu, no pode explicar o carter indubitvel da prpria existnda, e o que o explica, ou seja, a premissa menor, toma Intil a premissa maior porque por si s atesta, ao sujeito pensante, a prpria existncia. A reduo elo cogito, sum a silogismo possvel, na

    9. Carta a CleneUer, junho ou julho de 1646, AT IV, p. 444.

    An llse da obra 51

  • ordem lgica, porque o princpio "para pensar necessrio existir" est implicado na proposio "se penso, existo", como na proposio "se Pedro pensa, Pedro existe" e, uma vez reduzido a silogismo, o cogito segue o princpio "para pensar n~cessrio existlr". No entanto, a dis-posio em forma silogstica induz em erro porque esconde a peculiari-dade do princpio cartesiano: a de ter identificado uma existncia mais certa que a de qualquer outro ente, e essa maior certeza seria mascara-da, em vez de ser exibida, se a proposio penso, existo fosse aeduzida a partir do princpio geral"para pensar necessrio existir". A indubita-bilidade da existncia do eu, de fato, obtida com procedimentos no repetveis para outros entes existentes.

    O jovem Descartes se manifestara com muita dureza em relao aos d ialticos que confiam a busca da verdade s regras da inferncia: "para que aparea mais evidente que a arte de raciocinar no contribui absolutamente nada para o conhecimento das verdades, deve-se obser-var que os dialticos no podem formar com habilidade nenhum silo-gismo que conclua o verdadeiro se antes no t iverem o contedo dele, ou seja, se no tiverem conhecido J antes aquela verdade que nele deduzida. Da se evidencia que, mediante tal procedimento, eles mes-mos no vm a conhecer nada de novo, e que portanto a dialtica comum em tudo e por tudo intil para quem deseja indagar a verda-de das coisas'11o. O que particularmente evidente no caso da existn da do eu. O silogismo

    o Para pensar ~ ne