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GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁSECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
DIRETRIZES CURRICULARES DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA
EM REVISÃO
CURITIBA2007
2
Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma,e porque assim estanque, estancada;e mais: porque assim estancada, muda e muda porque com nenhuma
comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
(...)O curso de um rio, seu discurso-rio, para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço,em frases curtas, então frase e frase,até a sentença-rio do discurso únicoem que se tem voz a seca ele combate.
João Cabral de Melo Neto
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SUMÁRIO
1 DIMENSÃO HISTÓRICA DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA/
LITERATURA
2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
2.1 PRÁTICAS DISCURSIVAS
2.1.1 Prática da Oralidade2.1.2 Prática da Leitura2.1.3 Prática da escrita
2.2 ANÁLISE LINGÜÍSTICA E AS PRÁTICAS DISCURSIVAS
3 CONTEÚDO ESTRUTURANTE
4 ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS
4.1 A PRÁTICA DA ORALIDADE
4.2 A PRÁTICA DA LEITURA
4.3 A PRÁTICA DA ESCRITA
4.4 ANÁLISE LINGÜÍSTICA
4.5 LITERATURA
4.5.1 Literatura no Ensino Médio
5 AVALIAÇÃO
6 REFERÊNCIAS
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1 DIMENSÃO HISTÓRICA DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA/
LITERATURA
ERRO DE PORTUGUÊS
Quando o português chegouDebaixo duma bruta chuvaVestiu o índio Que pena!Fosse uma manhã de solO índio tinha despidoO português
A cronologia deve ser um truque do calendário para efeitos de computação histórica. Temos todas as nossas idades ao mesmo tempo.
(Mário Quintana)
(Oswald de Andrade)
Como disciplina escolar, a Língua Portuguesa passou a integrar os
currículos escolares brasileiros somente nas últimas décadas do século XIX,
depois de já há muito organizado o sistema de ensino. Contudo, a preocupação
com a formação do professor dessa disciplina teve início apenas nos anos 30 do
século XX.
Levando-se em conta o tempo decorrido desde a chegada, ao Brasil, dos
primeiros conquistadores europeus, podem-se tomar os cento e poucos anos da
disciplina e os quase oitenta de preocupação com a formação dos professores
como fatos recentes. Acrescente-se a isso que a formação da nação brasileira
deve à língua muito da sua identidade. Nesse aspecto, tensionando o uso culto
da língua, emergem, no nível popular, coloquial, práticas de língua que definem
muitos aspectos da tradição que, hoje, correm o risco de desaparecer sob os
influxos da indústria cultural massiva.
Nos primeiros tempos da colônia, resultante do confronto de culturas,
houve um movimento, figurado na parte final do poema de Oswald de Andrade,
presente neste texto como epígrafe: o índio começou por despir o português que,
afastado da metrópole, aprendeu a língua geral de origem tupi, falada em grande
extensão da costa brasileira. O isolamento dos primeiros colonos fez com que
também adquirissem alguns hábitos dos indígenas. Nesse período, não havia
uma educação em moldes institucionais e sim a partir de práticas restritas à
alfabetização, determinadas mais pelo caráter político, social e de organização e
controle de classes do que pelo pedagógico. Nesse momento, o sistema jesuítico
de ensino organizava-se a partir de dois princípios: primeiro uma pedagogia que
por meio da catequese indígena visava a expansão católica e um modelo
econômico de subsistência da comunidade. Segundo, esse sistema objetivava a
formação de elites subordinadas à Metrópole, “favorecendo o modelo de
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sociedade escravocrata e de produção colonial destinada aos interesses do país
colonizador”1.
As primeiras práticas de ensino moldavam-se ao ensino do latim, para os
poucos que tinham acesso a uma escolarização mais prolongada. Estas práticas
visavam, no dizer de Villalta (1997), à construção de uma civilização de
aparências com base em uma educação
claramente reprodutivista, voltada para a perpetuação de uma ordem patriarcal, estamental e colonial. Assim, priorizaram [...] uma não-pedagogia, acionando no cotidiano o aparato repressivo para inculcar a obediência [à fé, ao rei e à lei] (VILLALTA, 1997, p.351).
Em decorrência dos ideais iluministas, cujos princípios racionais estavam
embasados tanto no cartesianismo quanto no empirismo, em meados do século
XVIII, o Marquês de Pombal tornava obrigatório o ensino da Língua Portuguesa
em Portugal e no Brasil. Embora tenha passado a fazer parte dos conteúdos
curriculares, o ensino da Língua Portuguesa continuou a seguir os moldes do
ensino de Latim, o que acabou por gerar a fragmentação deste ensino nas
disciplinas de Gramática, Retórica e Poética. Essa realização tripartite do ensino
de Língua Portuguesa manteve-se até final do século XIX. A formação das elites
continuou nas mãos da Igreja, com seu princípio de educação clássica e
europeizante.
Somente no século XIX, o conteúdo gramatical ganhou a denominação de
Português e, em 1871 foi criado, no Brasil, por decreto imperial, o cargo de
Professor de Português. De acordo com Magda Soares (2001),
a mudança de denominação não significou mudança no objeto e no objetivo dos estudos da língua: a disciplina Português manteve, até os anos 40 do século XX, a tradição da gramática, da retórica e da poética.”
O projeto do movimento romântico brasileiro, formado em sua maioria por
jovens burgueses profundamente influenciados pelas idéias oriundas da Europa,
defendia uma identidade por meio da valorização da língua e cultura brasileira.
Nesse contexto, o latim começa a perder o prestígio e a língua nacional passa a
ser mais valorizada. O processo histórico da ascensão da burguesia capitalista e
o conseqüente declínio do absolutismo não geraram uma repercussão
significativa na estrutura de ensino da língua.
Magda Soares esclarece
1LUZ-FREITAS, Márcia de Souza. E a Língua Portuguesa tornou-se disciplina curricular. consultado no site www.filologia.org.br/revista/33/04 (site consultado 21/06/2007)
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(...) de um lado essa persistência se explica por fatores externos às próprias disciplinas: manteve-se essa tradição (da gramática, da retórica e da poética) porque fundamentalmente continuaram a ser os mesmo aqueles a quem a escola servia: os grupos social e economicamente privilegiados, únicos a ter (sic) acesso à escola; pertencentes a contextos culturais letrados, chegavam às aulas de português já com um razoável domínio do dialeto de prestígio (a chamada “norma padrão culta”), que a escola usava e queria ver usado, e já com práticas sociais de leitura e escrita freqüentes em seu meio social. A função do ensino de português era, assim, fundamentalmente, levar ao conhecimento talvez mesmo apenas o reconhecimento das normas e regras de funcionamento desse dialeto de prestígio: ensino da gramática, isto é, ensino a respeito da língua, e análise de textos literários, para estudos de retórica e poética (SOARES, 2001).
O ensino de Língua Portuguesa manteve a sua característica elitista até
meados do século XX, quando iniciou-se, no Brasil, a partir de 1967, “um
processo de ‘democratização’ do ensino, com a ampliação de vagas, eliminação
dos chamados exames de admissão, entre outros fatores [...].” (FREDERICO &
OSAKABE, 2004, p. 61). Como conseqüência desse processo de
“democratização”, a multiplicação de alunos, as condições escolares e
pedagógicas, as necessidades e as exigências culturais passaram a ser outras
bem diferentes. Faraco destaca que
com a expansão quantitativa da rede escolar, passaram a freqüentar a escola em número significativo falantes de variedades do português muito distantes do modelo tradicionalmente cultivado pela escola. Passou a haver um profundo choque entre modelos e valores escolares e a realidade dos falantes: choque entre a língua da maioria das crianças (e jovens) e o modelo artificial de língua cultuado pela educação da lingüística tradicional; choque entre a fala do professor e a norma escolar; entre a norma escolar e a norma real; entre a fala do professor e a fala dos alunos (FARACO, 1997, p.57).
O ensino de Língua Portuguesa, nesse contexto, não poderia dispensar
propostas pedagógicas que levassem em conta as novas necessidades trazidas
por esses alunos para o espaço escolar, ou seja, a presença de registros
lingüísticos e padrões culturais diferentes dos até então admitidos na escola.
Cabe lembrar que no processo brasileiro de industrialização, iniciado já no
governo de Getúlio Vargas, institucionalizou-se a vinculação da educação com a
industrialização. A Lei 5692/71 ampliaria e aprofundaria esta vinculação ao
dispor que o ensino deveria estar voltado à qualificação para o trabalho. Desse
vínculo decorreu a instituição de uma pedagogia tecnicista que, na Língua
Portuguesa, estava pautada nas teorias da comunicação, com um viés mais
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pragmático e utilitário do que com o aprimoramento das capacidades lingüísticas
do falante.
Com a Lei 5692/71, a disciplina de Português passou a denominar-se, no
primeiro grau, Comunicação e Expressão (nas quatro primeiras séries) e
Comunicação em Língua Portuguesa (nas quatro últimas séries), baseando-se,
principalmente, nos estudos de Jakobson, referentes à teoria da comunicação. Em
decorrência disso, a Gramática deixava de ser o enfoque principal do ensino de
língua e a teoria da comunicação passava a ser o referencial, embora na prática
das salas de aula o normativismo continuasse a ter predominância. Durante a
década de 1970 e até os primeiros anos da década de 1980, o ensino de Língua
Portuguesa passou a se pautar, então, em exercícios estruturais, técnicas de
redação e treinamento de habilidades de leitura.
Nesse período verificou-se uma intensa ampliação de vagas escolares e de
acolhimento a professores advindos de ambientes pouco letrados (SOARES,
2001). Em decorrência de tal política, houve uma multiplicação no número de
alunos, rebaixamento dos salários docentes, o que precarizou ainda mais as
condições de trabalho, de modo que os professores passaram a buscar
alternativas didáticas para facilitar o ensino.
A necessidade de suprir a demanda de vagas lançou para um segundo
plano a formação pedagógica, transferindo a responsabilidade do planejamento
das aulas para o livro didático, produzido industrialmente, como orientador das
atividades. A força e a preponderância do livro didático retiraram do professor a
autonomia e a responsabilidade quanto à sua prática, de modo que foi
desconsiderado seu conhecimento, experiência e senso crítico em função de um
ensino reprodutivista e de uma pedagogia da transmissão.
Com base na estrutura dos livros didáticos, tinha-se um ensino de
Literatura apenas focado na historiografia literária e no trabalho com fragmentos
de textos, em vez dos textos integrais. Para o ensino da Língua Materna,
aplicavam-se exercícios estruturais do tipo preenchimento de lacunas ou
questionários de simples verificação de ocorrência, que desconsideravam as
potencialidades que a interação com o texto propiciaria para a expansão dos
sentidos da leitura. Além disso, os altos índices de evasão e repetência das
classes populares, o arrocho salarial dos professores e a abertura indiscriminada
de faculdades comprometeram ainda mais a qualidade do ensino.
Os estudos lingüísticos, centrados no texto e na interação social das
práticas discursivas, e as novas concepções sobre a aquisição da língua materna
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chegaram ao Brasil em meados da década de setenta e contribuíram para fazer
frente à pedagogia tecnicista, geradora de um ensino baseado na memorização.
A dimensão tradicional de ensino da língua cedeu espaço a novos paradigmas,
envolvendo questões de uso, contextuais, valorizando o texto como unidade
fundamental de análise.
No Brasil, essas idéias tomaram corpo, efetivamente, a partir dos anos
1980, com as contribuições teóricas dos pensadores que integraram o Círculo de
Bakhtin. Deve-se a esses teóricos, e principalmente a Bakhtin, o avanço dos
estudos em torno da natureza sociológica da linguagem, ou seja, a língua
configura um espaço de interação entre sujeitos que se constituem por meio
dessa interação. Ela mesma, a língua, constitui-se sobretudo pelo uso e pelos
sujeitos que interagem. Essa concepção diverge das abordagens de cunho
formalista-estruturalista que enfocam o caráter normativo da língua.
Se por um lado as teorias do Círculo de Bakhtin trouxeram alguns
avanços para o ensino de Língua Portuguesa, por outro, não conseguiram, de
imediato, o mesmo espaço no trabalho com a Literatura, pois ainda eram muito
influentes as teorias formalistas que davam ênfase a função referencial da
linguagem em detrimento da função poética e o valor estético da obra literária
(GERALDI, 1997).
Vale lembrar que para dar aos estudos literários um caráter mais
científico, os estruturalistas desconsideravam fatores externos, centrando-se
apenas nos aspectos formais da obra. Para Bakhtin, a literatura não apenas
reflete a realidade, mas também a refrata, ou seja, ela traz um recorte mínimo
desse momento, do “conjunto ideológico do qual ela própria faz parte”. Assim, o
fenômeno literário é tecido simultaneamente de fora (extrinsecamente) e de
dentro (intrinsecamente) (STAM, 2000).
Desde que a preocupação com a formação dos professores emergiu no
campo do ensino, observou-se um movimento que procurava se libertar do
ensino normativo inicial. Embora tenha ocorrido um avanço teórico considerável
nas pesquisas acerca do ensino da língua, com enfoque nas práticas discursivas,
houve uma apropriação, por grande parte dos professores, dos novos conceitos,
sem que isso se refletisse na mudança efetiva de sua prática.
Até meados do século XX, para o ensino da Literatura, vigorou a
predominância do cânone, baseado na Antigüidade Clássica, quando o principal
instrumento do trabalho pedagógico eram as antologias literárias. Até as décadas
de 1960-70, a leitura do texto literário, no ensino primário e ginasial, transmitia a
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norma culta da língua, com base em exercícios gramaticais e estratégias para
incutir valores religiosos, morais e cívicos. Como tentativa de rompimento com
essa prática, a abordagem do texto literário passou a centrar-se numa análise
literária simplificada, a partir de questionários sobre personagens principais e
secundários, tempo e espaço da narrativa.
A partir de 1970, o ensino de Literatura restringiu-se ao então segundo
grau, com abordagens estruturalistas ou historiográficas do texto literário. Na
análise do texto poético, por exemplo, adotava-se o método francês, isto é,
propunha-se a análise do texto conforme as estruturas formais: rimas, escansão
de versos, ritmo, estrofes etc. Cabia ao professor a condução da análise literária
e aos alunos a condição de meros ouvintes. A historiografia literária, que ainda
resiste nas salas de aula, também excluía (e exclui) o aluno de um papel ativo no
processo de leitura, ao colocá-lo em contato com intermináveis listas de autores
e resumos de obras nos quais devem ser encontrados características de época já
estabelecidas, sem nenhum estímulo à reflexão crítica.
Atualmente, os livros didáticos tendem, em grande medida, a perpetuar
essa situação ao priorizar determinados autores para estudos diacrônicos, com
base nos períodos literários, características, biografias, fragmentos de textos.
Essa prática priva o aluno de uma efetiva leitura do texto literário e de um real
exercício do pensamento crítico, devido ao pouco tempo para abranger a extensa
produção literária do século XVI ao século XX.
A busca da superação desse ensino normativo, historiográfico,
recentemente tem alcançado os estudos curriculares e, em particular, os ensinos
de Língua e Literatura, seja pela influência dos pensadores contemporâneos
como Deleuze, Foucault, Derrida e Barthes, seja por meio de novos campos de
saber ou espaços teóricos como a análise do discurso, a sociolingüística, teoria
da enunciação, teorias da leitura, pensamento da desconstrução etc.
A partir de 1980, os estudos lingüísticos mobilizaram os professores para
a discussão e o repensar sobre o ensino da língua materna e para a reflexão
sobre o trabalho realizado nas salas de aula. É dessa época o livro O texto na
sala de aula, de João Wanderley Geraldi, que marcou as discussões sobre o
ensino de Língua Portuguesa no Paraná, incluindo textos de lingüistas como
Carlos Alberto Faraco, Sírio Possenti, Percival Leme Britto e o próprio Geraldi,
presentes até hoje nos estudos e pesquisas sobre a Língua Portuguesa,
Lingüística e ensino da língua materna.
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Essas reflexões e discussões fizeram-se presentes nos programas de
reestruturação do Ensino de 2.º Grau, de 1988 e do Currículo Básico, de 1990,
que já denunciavam “o ensino da língua, cristalizado em viciosas e repetitivas
práticas que se centram no repasse de conteúdos gramaticais” (Paraná/SEED,
1988, p. 2) e valorizavam o direito à educação lingüística.
No mesmo documento, aparece explícito que:
ao vermos esse direito como dimensão da cidadania; ao destacarmos que o sujeito se constitui em meio a (e por meio de) atividades verbais, estamos rejeitando aquelas formas de conceber a linguagem (instituição pronta e acabada, dom da natureza, código) e estamos nos orientando por uma concepção que a toma como um conjunto de práticas interacionais, social e historicamente constituídas e se constituindo. Deixamos de lado concepções que isolam a linguagem e os falantes, que tratam a linguagem como uma coisa, como uma entidade supra-humana e adotamos um ponto de vista que reconhece a linguagem como uma realidade social e histórica, como uma atividade inter-humana. (Paraná/SEED, 1988, p. 4)
Também no que diz respeito ao ensino de Literatura, um documento da
Secretaria de Estado da Educação de 1988, Projeto de conteúdos essenciais do
ensino de 2.° grau, indicava a necessidade de superação da historiografia
literária.
A proposta do Currículo Básico do Paraná, da década de 1990,
fundamentou-se em pressupostos coerentes com a concepção dialógica e social
da linguagem, delineada a partir de Bakhtin e dos integrantes do Círculo de
Bakhtin, para fazer frente ao ensino tradicional. No entanto, na análise de Barreto
(2000, p. 48), a maioria dos currículos do Brasil, ainda que apresentem uma
proposta nessa linha, “ao explicitar um conteúdo gramatical não consegue
traduzi-lo em termos de uma concepção enunciativa ou dos usos da língua, da
competência textual, em situações de comunicação, recaindo assim no estigma
da gramática tradicional, que trabalha com a gramática da frase”.
No caso do Currículo do Paraná, pretendia-se uma prática pedagógica que
enfrentasse o normativismo e o estruturalismo e, na literatura, uma perspectiva
de análise mais aprofundada dos textos, bem como a proposição de textos
significativos e com menos ênfase na conotação moralista. A proposta, ainda
conforme Barreto, já delineava a diferença entre a opção pelo estudo mnemônico
da nomenclatura e a opção pela nomenclatura como ferramenta de compreensão
da prática textual. A fragilidade da proposta aparece quando, na relação dos
conteúdos, ainda seriados, não se explicita, por exemplo, a relação entre os
campos de conhecimento envolvidos na produção escrita de textos, tais como a
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estruturação sintática, a ortografia, os recursos gráfico-visuais, as circunstâncias
de produção, a presença do interlocutor. Outro ponto considerado pela autora é o
fato de aspectos da lingüística textual, fundamentais na estruturação do texto
escrito, recursos coesivos, conectividade seqüencial e estruturação temática,
aparecerem como conteúdos da gramática tradicional.
Nas discussões curriculares sobre o ensino de Língua Portuguesa, os
Parâmetros Curriculares Nacionais, do final da década de 1990, também
fundamentaram a proposta para a disciplina de Língua Portuguesa nas
concepções interacionistas ou discursivas, propondo uma reflexão acerca dos
usos da linguagem oral e escrita. No entanto, até hoje, tendem a diluir a
abordagem dessa concepção com a introdução de conceitos pouco reconhecidos
pelos professores, como por exemplo, habilidades e competências, termos que
desvelam a vinculação do currículo ao mercado de trabalho. Apresentam, assim,
a leitura de forma utilitarista, o ler para subsidiar o que e como escrever, e uma
abordagem meramente conceitual da Literatura no Ensino Fundamental ou,
mesmo, a sua desconsideração no Ensino Médio (SUASSUNA, 1998).
Nessa perspectiva, os fundamentos teóricos que alicerçam a discussão
sobre o ensino de Língua e Literatura requerem novos posicionamentos em
relação às práticas de ensino, seja pela discussão crítica dessas práticas, seja
pelo envolvimento direto dos professores na construção de alternativas.
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2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Pensar o ensino da Língua e da Literatura implica pensar também nas
contradições, nas diferenças e nos paradoxos do quadro complexo da
contemporaneidade. A rapidez das mudanças ocorridas no meio social e a
percepção das inúmeras relações de poder presentes nas teias discursivas que
atravessam o campo social, constituindo-o e, ao mesmo tempo, sendo por ele
constituídas, requerem do professor uma percepção crítica cujo horizonte é a
mudança de posicionamento em sua ação pedagógica.
Assumida ou ditada pelos livros didáticos, a prática de ensino seguiu –
e ainda segue, em alguns contextos – uma concepção de linguagem que não
privilegia, no processo de aquisição e o aprimoramento da língua materna, a
história, o sujeito e o contexto, pautando-se, sobretudo, no repasse de regras e
na mera nomenclatura da gramática tradicional.
Historicamente, o tratamento dado à Literatura, nesses livros, direciona
a uma prática pedagógica, em geral, que priva o aluno do contato com a
integralidade dos textos literários na medida em que propõe a leitura de
resumos, lidos nos fechados limites da historiografia literária e da biografia de
seus autores.
A atitude normativista fundamenta-se em teorias que têm pouco a
dizer sobre a noção de enunciado, de texto como unidade discursiva, porque
trabalham com frases ou palavras isoladas. A ênfase na norma gramatical e na
historiografia literária decorre aí de uma mesma concepção de Língua e
Literatura que tem origem no Renascimento. Tratou-se de um período de
ruptura definitiva entre a escrita e a oralidade e de consagração de uma visão
de literatura baseada no conceito de modelo originado da pedagogia greco-
latina, que buscava moldar o educando a uma realidade ideal (FREDERICO &
OSAKABE, 2004).
As Diretrizes ora propostas seguem por outro caminho porque
consideram o processo dinâmico e histórico dos agentes na interação verbal,
tanto na constituição social da linguagem quanto dos sujeitos que por meio
dela interagem.
Na linguagem, o homem se reconhece humano, interage e troca
experiências, compreende a realidade em que está inserido e o seu papel como
participante da sociedade. A partir desse caráter social da linguagem, Bakhtin e
os teóricos do Círculo de Bakhtin formulam os conceitos de dialogismo e dos
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gêneros discursivos, cujo conhecimento e repercussão suscitaram novos
caminhos para o trabalho pedagógico com a linguagem verbal, demandando uma
nova abordagem para o ensino de Língua:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, para seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais , mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente, é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN 1997, p.279).
A definição de gênero em Bakhtin, compreendendo a mobilidade, a
dinâmica, a fluidez, a imprecisão da linguagem, não aprisiona os textos em
determinadas propriedades formais:
Quando observamos o modo de Bakhtin elaborar suas reflexões, nunca vamos encontrá-lo ocupado em ver o mundo como objetividade calculável e, em conseqüência, em construir um modelo instrumentalizante de uma análise científica. (...) Seu interesse está antes posto numa reflexão ampla que se entrega ao inesgotável da existência, ao sentido da criação estética e do ser e da linguagem. (...) [Ele] não vai ao mundo para tomar-lhe as contas, mas se deixa interpelar pelo fazer estético, pela literatura e pela linguagem (FARACO 2003, p. 38).
O gênero, antes de constituir um conceito, é uma prática social e deve
orientar a ação pedagógica com a língua, privilegiando o contato real do
estudante com a multiplicidade de textos produzidos e que circulam
socialmente. Esse contato com os gêneros, portanto, tem como ponto de
partida a experiência e não o conceito. Essa percepção é fundamental para que
não se caia tão-somente na normatização do gênero, e, conseqüentemente, no
que Rojo (2004, p. 35) define como “pedagogia transmissiva das análises
estruturais e gramaticais”, que dissocia a língua de sua realidade social.
Na concepção adotada por este documento, o texto é visto como lugar
onde os participantes da interação dialógica se constroem e são construídos.
Todo texto é, assim, articulação de discursos, vozes que se materializam, ato
humano, é linguagem em uso efetivo. Acrescente-se a isso que as
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considerações de Bakhtin sobre o lugar da fala trazem para o âmbito da
discursividade as relações sociais.
Para haver reflexão com e sobre a língua é necessário considerar, como
ponto de partida, a dimensão dialógica da linguagem, presente em atividades
que possibilitem, aos alunos e professores, experiências reais de uso da língua
materna. Os conceitos de texto e de leitura não se restringem, aqui, à
linguagem escrita: abrangem, além dos textos escritos e falados, a integração
da linguagem verbal com
as outras linguagens (as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, a publicidade, os quadrinhos, as charges, a multimídia e todas as formas infográficas ou qualquer outro meio linguageiro criado pelo homem), percebendo seu chão comum (são todas práticas sociais, discursivas) e suas especificidades (seu diferentes suportes tecnológicos, seus diferentes modos de composição e de geração de significados) (FARACO, 2002, p.101).
Texto, então, implica não apenas na formalização do discurso oral ou
escrito, mas o evento que abrange o antes, isto é, as condições de produção e
elaboração; e o depois, ou seja, a leitura ou a resposta ativa. O texto ocorre em
interação e, por isso mesmo, não é compreendido apenas nos seus limites
formais (BAKHTIN, 1986).
Assim, temos que um texto não é um objeto fixo num dado momento
no tempo, ele lança seus sentidos no diálogo2 intertextual, ou seja, o texto é
sempre uma atitude responsiva a outros textos, sendo assim, estabelece
relações dialógicas. Na visão de Bakhtin, “mesmo enunciados separados um do
outro no tempo e no espaço e que nada sabem um do outro, se confrontados
no plano de sentido, revelarão relações dialógicas” (FARACO, 2003, p. 63).
Ao considerar apenas os aspectos formais do texto, ignora-se a relação
de interdependência entre locutor/interlocutor, o contexto de produção, bem
como as diversas vozes sociais que constituem tanto o sujeito quanto o texto.
Como defende Barros (2001, p. 24), é na sociedade e para ela que o
texto existe; se reduzido a sua materialidade lingüística, não possibilita relações
dialógicas.
Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material lingüístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição
2 “(...) o dialogo no sentido amplo do termo (“o simpósio universal”), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos) (...)” (FARACO, 2003, p. 67)
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de um sujeito social. Só assim é possível responder (em sentido amplo e não apenas empírico do termo), isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. Em suma, estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de determinada espécie, isto é, relações que geram significado responsivamente a partir do encontro de posições avaliativas (FARACO, 2003, p. 64).
Nesse sentido, pode-se dizer que os nossos enunciados são
heterogêneos, uma vez que emergem da multidão das vozes sociais; Faraco
(2003) destaca que é nessa atmosfera heterogênea que o sujeito vai se
constituindo discursivamente.
Considere-se, ainda, a perspectiva do multiletramento nas práticas a
serem adotadas na disciplina de Língua Portuguesa/Literatura, tendo em vista o
papel de suporte para todo o conhecimento. Multiletramento, aqui, significa que
(...) compreender e produzir textos não se restringe ao trato do verbal (oral ou escrito), mas à capacidade de colocar-se em relação às diversas modalidades de linguagem – oral, escrita, imagem, imagem em movimento, gráficos, infográficos – para delas tirar sentido. Esta é uma das principais dificuldades dos alunos [...] apontada nos diversos exames e avaliações (ROJO, 2004 p. 31).
Diante do exposto, pode-se entender que as práticas da linguagem, como
fenômeno de uma interlocução viva, perpassam todas as áreas do agir humano,
potencializando, na escola, a perspectiva interdisciplinar.
Destaque-se a importância da Literatura para trazer sabor ao saber.
verdadeiramente enciclopédica, faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles. [...] A literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito dos homens (BARTHES, 1989 p.19).
Tendo em vista a concepção de linguagem como discurso que se efetiva
nas diferentes práticas sociais, os objetivos a seguir fundamentam o processo de
ensino:
- empregar a língua oral em diferentes situações de uso, saber adequá-la a
cada contexto e interlocutor, reconhecer as intenções implícitas nos
discursos do cotidiano e propiciar a possibilidade de um posicionamento
diante deles;
- desenvolver o uso da língua escrita em situações discursivas por meio de
práticas sociais que consideram os interlocutores, seus objetivos, o
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assunto tratado, os gêneros e suportes textuais, além do contexto de
produção/leitura;
- refletir sobre os textos produzidos, lidos ou ouvidos, de modo a atualizar o
gênero e tipo de texto, assim como os elementos lingüísticos empregados
na sua organização;
- aprimorar, pelo contato com os textos literários, a capacidade de
pensamento crítico e a sensibilidade estética, bem como propiciar pela
Literatura a constituição de um espaço dialógico que permita a expansão
lúdica da oralidade, da leitura e da escrita;
- reconhecer a importância da norma culta da língua, bem como as outras
variedades lingüísticas, de maneira a propiciar acesso às ferramentas de
expressão e compreensão de processos discursivos, como condição para
tornar o aluno capaz de enfrentar as contradições sociais em que está
inserido e para a afirmação da sua cidadania, como sujeito singular e, ao
mesmo tempo, coletivo.
É importante ressaltar que tais objetivos e as práticas deles decorrentes
supõem um processo longitudinal de ensino e aprendizagem que se inicia na
alfabetização, consolida-se no decurso da vida acadêmica e não se esgota no
período escolar, mas se estende por toda a sua vida.
2.1 PRÁTICAS DISCURSIVAS
No processo de ensino e aprendizagem da língua, assume-se o texto
verbal ― oral ou escrito ― e também as outras linguagens, tendo em vista o
multiletramento, como unidade básica, que se manifesta em enunciações
concretas, cujas formas se estabelecem de modo dinâmico com experiências
reais de uso da língua.
É importante ter claro que quanto maior o contato com a linguagem, na
diversidade textual, mais possibilidades se tem de entender o texto como
material verbal carregado de intenções e de visões de mundo. Para Andrade,
(1995), “o trabalho com o texto surge como possibilidade de mudança, na qual
o professor assume uma postura interlocutiva construindo um projeto mais
arrojado e eficaz para a aprendizagem da língua escrita”.
17
Ressalte-se que as aulas pautadas somente na gramática tradicional
desconsideram a constituição interativa da linguagem. A gramática, assim
ensinada, admite apenas duas alternativas: certo ou errado. Como diz Pécora
(1992, p.44), frente a esse poder legitimado por uma tradição milenar, o aluno
prefere calar-se ou imitar as variantes prestigiadas pela mídia.
A análise lingüística3 amplia esse leque tão restrito da gramática
tradicional e relativiza o que a gramática postula como errado. Sua atuação
perpassa as práticas de oralidade, escrita e leitura, dessa forma, consegue
abranger o dinâmico sistema da linguagem porque não opera de modo estanque.
A análise lingüística possibilita o aluno refletir sobre os “fenômenos gramaticais e
textual-discursivos que perpassam os usos lingüísticos, seja no momento de
ler/escutar, produzir textos ou de refletir sobre esses mesmos usos da língua”,
conforme aponta Mendonça (2006, p. 204).
A ação pedagógica referente à língua(gem), portanto, precisa pautar-se
na interlocução, em atividades planejadas que possibilitem ao aluno não
apenas a leitura e a expressão oral ou escrita, mas, também, reflexão sobre o
uso da linguagem em diferentes situações.
2.1.1 Prática da Oralidade
Tradicionalmente, a escola tem agido como se a escrita fosse a língua,
ou como se todos os que nela ingressam falassem da mesma forma. No
ambiente escolar, a racionalidade se exercita com a escrita, de modo que a
oralidade não era muito valorizada; entretanto, é rica e permite muitas
possibilidades de trabalho a serem pautadas em situações reais de uso da fala
e na produção de discursos nos quais o aluno se constitui como sujeito do
processo interativo.
Se a escola, constitucionalmente, é democrática e garante a
socialização do conhecimento, deve então acolher alunos independentemente
de origem quanto à variação lingüística de que dispõem para sua expressão e
compreensão do mundo. Compete à escola tomar como ponto de partida os
conhecimentos lingüísticos dos alunos, promover situações que os incentivem
a falar, ou seja, fazer uso da variedade de linguagem que eles empregam em
suas relações sociais.
3 Análise lingüística: “termo usado para denominar uma nova perspectiva de reflexão sobre o sistema lingüística e sobre os usos da língua, com vistas ao tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos” (MENDONÇA, 2006 p. 205).
18
Devemos lembrar que a criança, quando chega à escola, já domina a
oralidade, pois cresce ouvindo e falando a língua, seja por meio das cantigas,
das narrativas, dos causos contados no seu grupo social, do diálogo dos
falantes que a cercam ou até mesmo pelo rádio, TV e outras mídias.
Considerando o exposto, o espaço escolar precisa propiciar e promover
atividades que possibilitem ao aluno tornar-se um falante cada vez mais ativo e
competente, capaz de compreender os diferentes discursos e de adequar e
organizar os seus de acordo com as exigências das mais diversas situações
interativas.
Há um mito de que a língua portuguesa possui uma unidade que se
estende por todo o território nacional. Bagno (2003 p.17) afirma que esse mito
“tem sido prejudicial à educação” porque impõe uma norma como se fosse a
única e desconsidera as outras variedades.
Ao apresentar a hegemonia da norma culta, a escola muitas vezes
desconsidera os fatores que geram a imensa diversidade lingüística:
localização geográfica, faixa etária e situação socioeconômica, escolaridade
etc. (POSSENTI,1996). O professor precisa ter clareza de que tanto a norma
padrão quanto as outras variedades, embora apresentem diferenças entre si,
são igualmente lógicas e bem estruturadas.
A Sociolingüística não classifica as diferentes variações lingüísticas
como boas ou ruins, melhores ou piores, primitivas ou elaboradas, pois
constituem sistemas lingüísticos eficazes, falares que atendem a diferentes
propósitos comunicativos, dadas as práticas sociais e os hábitos culturais das
comunidades.
Não se devem tomar as variedades lingüísticas como pretexto para
discriminação social, mas promover o diálogo entre os diferentes falares,
considerando a necessidade de sua escolha, conforme as circunstâncias de
interlocução. Isso não significa valorizar em excesso as variedades lingüísticas
em prejuízo da norma padrão; ao contrário, a sala de aula é o espaço de
apropriação deste conhecimento, porque é o único lugar que possibilita, à
grande maioria dos alunos, contato com a norma culta da língua.
O professor deve planejar e desenvolver um trabalho com a oralidade
que, gradativamente, permita ao aluno conhecer, usar também a variedade
lingüística padrão e entender a necessidade desse uso em determinados
contextos sociais. Como afirma Soares (1991), é função da escola e do
professor trabalhar com o bidialetalismo, preparando o aluno para o emprego
19
da língua padrão, e sabendo que, em situações informais, ele poderá usar o
dialeto que lhe é peculiar.
2.1.2 Prática da Leitura
Nestas Diretrizes, entende-se a leitura como um processo de produção
de sentido que se dá a partir de interações sociais ou relações dialógicas que
acontecem entre leitor/texto/autor.
Kleiman (2000) destaca a importância, na leitura, das experiências, dos
conhecimentos prévios do leitor, que lhe permitem fazer previsões e
inferências sobre o texto. O leitor constrói e não apenas recebe um significado
global para o texto: ele procura pistas formais, formula e reformula hipóteses,
aceita ou rejeita conclusões, usa estratégias baseadas no seu conhecimento
lingüístico e na sua vivência sociocultural, seu conhecimento do mundo.
Assim, um texto leva a outro, mas leva também ao desejo, a uma política
de singularização do leitor que, convocado pelo texto, participa da elaboração
dos significados, confrontando-o com o próprio saber, com a sua experiência
de vida.
É nessa dimensão dialógica, discursiva, aberta a toda sorte de contágio,
que a leitura deve ser experienciada, desde a alfabetização. As categorias
como quem fala e o lugar de onde se fala, tomadas nas teorizações de Bakhtin,
podem ajudar no desvelamento dos sentidos destes textos e das relações de
poder a eles inerentes.
Também a intersecção dos textos midiáticos com os literários, por meio
das transposições que a linguagem cinematográfica, por exemplo, exige,
podem sugerir bons motivos para aprimorar a reflexão e fazer proliferar o
pensamento. Ressalte-se, ainda, a oportunidade que os textos literários dão ao
leitor de escapar do realismo midiático movimentando-os pelo tempo do
imaginário.
O professor pode planejar uma ação pedagógica que permita ao aluno a
leitura de textos para os quais já tenha construído uma competência, como a
de textos mais difíceis, que impliquem o desenvolvimento de novas estratégias
com a devida mediação do professor.
Para Lajolo (1982), a relação que se estabelece no ato de leitura é mais
complexa quanto mais amadurecido estiver o leitor. Dessa forma, o leitor
conseguirá fazer inferências cada vez mais complexas, além de perceber, em
20
se tratando de textos literários, as qualidades estéticas. A leitura de textos
literários não deve se prestar exclusivamente a uma prática utilitarista de
leitura didatizada, a literatura é um excelente meio de contato com a
pluralidade de significações que a língua assume em seu máximo grau de
efeito estético.
2.1.3 Prática da escrita
Em relação à escrita, ressalte-se que as condições em que a produção
acontece determinam o texto: quem escreve, o que, para quem, para que, por
que, quando, onde e como se escreve. Além disso, cada gênero textual tem
suas peculiaridades: a composição, a estrutura e o estilo variam conforme se
produza uma história, um poema, um bilhete, uma receita, um texto de opinião
ou científico, filosófico. Essas e outras composições precisam circular na sala
de aula como experiências reais de uso e não a partir de conceitos e definições
de diferentes modelos de textos.
Por outro lado, é preciso que os alunos se envolvam com os textos que
produzem e assumam a autoria do que escrevem. Para Kramer (1993, p. 83),
“[...] ser autor significa produzir com e para o outro. Somente sendo autor o
aluno interage e penetra na escrita viva e real, feita na história”.
A capacidade de escrita, criatividade e outros fatores comumente
relacionados ao ato de escrever se aprende na prática da escrita, em suas
diferentes modalidades. Isto significa promover o contato do aluno com a
produção escrita de diferentes tipos de textos, a partir das experiências sociais,
tanto singular quanto coletivamente vividas. O que se sugere, sobretudo, é a
noção de uma escrita como formadora de subjetividades, podendo ter um
papel de resistência aos valores prescritos socialmente. Além disso, a
possibilidade da criação, no exercício desta prática, permite ao aluno ampliar o
próprio conceito de gênero discursivo.
O envolvimento do aluno e do professor com a escrita, conforme
entende Pazini (1998), acontece em vários momentos: o da motivação para a
produção do texto; o da reflexão, que deve preceder e acompanhar o processo
de produção; o da revisão, reestruturação e reescrita do texto, que constitui,
também, um produtivo momento de reflexão.
As aulas de Língua Portuguesa/Literatura possibilitam aos alunos a
ampliação do uso das linguagens verbais e não-verbais pelo contato direto com
21
textos dos mais variados gêneros, engendrados pelas necessidades humanas.
A inclusão da diversidade textual deve relacionar os gêneros com as atividades
sociais onde eles se constituem.
Acrescente-se a isso que o fato de a língua(gem) ser o meio e o suporte
de outros conhecimentos torna o professor de Língua Portuguesa um agente
eficaz, propiciador das relações inter e multidisciplinares.
2.2 ANÁLISE LINGÜÍSTICA E AS PRÁTICAS DISCURSIVAS
Antes de vir para a escola, a criança
opera sobre a linguagem, reflete sobre os meios de expressão usados em suas diferentes interações, em função dos interlocutores com quem interage, em função de seus objetivos nesta ação (GERALDI, 1991, p. 189).
Os alunos trazem para a escola um conhecimento prático dos princípios
da linguagem, que interiorizam pelas interações cotidianas, e que usam na
observação das regularidades, similaridades e diferenças dos elementos
lingüísticos empregados em seus discursos.
Ao considerar hipóteses sobre as condições contextuais e estruturais
em que os seus e outros textos são produzidos, oralmente e/ou por escrito, os
alunos realizam atividades epilingüísticas que se configuram como operações
que eles fazem sobre a própria linguagem. Tais atividades incidem sobre
aspectos discursivos, estruturais e gramaticais:
Criadas as condições para atividades interativas efetivas em sala de aula, quer pela produção de textos, quer pela leitura de textos, é no interior destas e a partir destas que a análise lingüística se dá (GERALDI 1991, p.189).
O professor poderá instigar no aluno a percepção da multiplicidade de
usos e funções da língua, o reconhecimento das diferentes possibilidades de
ligações e de construções frasais, a reflexão sobre essas e outras
particularidades lingüísticas observadas no texto, conduzindo-o às atividades
metalingüísticas, à construção gradativa de um saber lingüístico mais
elaborado, a um falar sobre a língua.
O estudo da língua que se ancora no texto, extrapola o tradicional
horizonte da palavra e da frase. Busca-se, na análise lingüística, verificar como
os elementos verbais – os recursos disponíveis da língua –, e os elementos
22
extraverbais – as condições e situação de produção – atuam na construção de
sentido do texto.
Para Soares (1999), a reflexão lingüística deve se voltar para
observação e análise da língua em uso, visando à construção de
conhecimentos sobre o sistema lingüístico, o que inclui morfologia e sintaxe;
variedades da língua portuguesa; os diferentes registros; as relações e
diferenças entre língua oral e língua escrita, quer no nível fonológico-
ortográfico, quer no nível textual e discursivo.
Ressalta-se que os conhecimentos prévios e o grau de desenvolvimento
cognitivo e lingüístico dos alunos devem ser considerados pelo professor, como
ponto de partida, para escolha dos conteúdos e trabalho com os textos.
Quando se assume a língua como interação, em sua dimensão
discursivo-textual, o mais importante é criar oportunidades para o aluno
refletir, construir, considerar hipóteses a partir da leitura e da escrita de
diferentes textos, instância em que pode chegar à compreensão de como a
língua funciona e à decorrente competência textual. O ensino da nomenclatura
gramatical, de definições ou regras a serem construídas, com a mediação do
professor, deve ocorrer somente após o aluno ter realizado a experiência de
interação com o texto.
A prática de análise lingüística constitui um trabalho de reflexão sobre
a organização do texto escrito, um trabalho no qual o aluno percebe o texto
como resultado de opções temáticas e estruturais feitas pelo autor, tendo em
vista o seu interlocutor. Sob essa ótica, o texto deixa de ser pretexto para se
estudar a nomenclatura gramatical e a sua construção passa a ser o objeto do
ensino.
Assim, o trabalho com a gramática deixa de ser visto a partir de
exercícios tradicionais, e passa a implicar que o aluno compreenda o que seja
um bom texto, como é organizado, como os elementos gramaticais ligam
palavras, frases, parágrafos, retomando ou avançando idéias defendidas pelo
autor, além disso, o aluno irá refletir e analisar a adequação do discurso
considerando o destinatário e o contexto de produção e os efeitos de sentidos
provocados por elementos lingüísticos no texto.
Então, o aluno poderá reconhecer a gramática não como um aglomerado
de inadequações explicativas sobre os fatos da língua, mas como um documento
de consulta para dúvidas que temos sobre como agir em relação aos padrões
normativos exigidos pela escrita (CASTRO; FARACO, 1999).
23
3 CONTEÚDO ESTRUTURANTE
Durante muito tempo, o ensino de Língua Portuguesa foi ministrado por
meio de conteúdos legitimados no âmbito de uma classe social influente e pela
tradição acadêmica/escolar.
Estas Diretrizes propõem que o Conteúdo Estruturante em Língua
Portuguesa esteja sob o pilar dos processos discursivos, numa dimensão histórica
e social. Por Conteúdo Estruturante entende-se o conjunto de saberes e
conhecimentos de grande dimensão, os quais identificam e organizam uma
disciplina escolar. A partir deles, advêm os conteúdos específicos, a serem
trabalhados no cotidiano escolar.
Assumindo-se a concepção de linguagem como prática que se efetiva nas
diferentes instâncias sociais, o objeto de estudo da disciplina é a Língua e o
Conteúdo Estruturante, portanto, é o discurso como prática social.
Vale esclarecer as implicações que esse termo – discurso – assume nestas
Diretrizes. Na sua origem, o termo significa curso, percurso, correr por,
movimento. Isso indica que a posição frente aos conceitos fixos, imutáveis, deve
ser diferenciada. A língua não é algo pronto, à disposição dos falantes. Portanto,
o discurso não pode ser definido somente como mensagem ou reduzido a um
esquema composto de papéis fixos: emissor, receptor, código, referente e
mensagem. O discurso é muito mais; é efeito de sentidos entre interlocutores,
não é individual, ou seja, não é um fim em si mesmo, mas tem sua gênese
sempre numa atitude responsiva a outros textos (BAKHTIN, 1996).
Os discursos jamais são concebidos dissociados de uma realidade material,
são formados por diferentes vozes que, por sua vez, representam ideologias
muitas vezes contraditórias, opostas, justificadas pelo seu uso em diferentes
esferas sociais (BARROS,2001).
Se a definição de Conteúdo Estruturante o identifica com os campos de
estudo de uma disciplina escolar, entende-se, nestas Diretrizes, a disciplina de
Língua Portuguesa/Literatura como um campo de ação, em que se concretizam
práticas de uso real da língua materna. Esta delimitação do campo contrapõe-se
a duas práticas: a primeira é a tradicional que, conforme já se mencionou,
determinava o estudo de regras gramaticais como centro e objetivo maior do
trabalho com a língua. A segunda se refere à abordagens conceituais e
24
metodológicas que diluíram o trabalho com a língua materna numa concepção
de linguagem como instrumento de comunicação sem reconhecer a
historicidade do sujeito e as determinações sócio-históricas da linguagem.
No que se refere à Literatura, pouca atenção tem sido dada a essa prática
na sala de aula, prevalecendo, dessa forma, o texto literário como pretexto para
exercícios gramaticais e interpretações de cunho moralista; além disso, muitas
vezes, a obra literária é apresentada ao aluno de forma fragmentada, cuja maior
preocupação é apontar características de estilos de época.
No contexto das práticas discursivas, estarão presentes os conceitos
oriundos da Lingüística, Sociolingüística, Semiótica, Pragmática, Estudos
Literários, Semântica, Morfologia, Sintaxe, Fonologia, Análise do Discurso,
Gramáticas: normativa, descritiva, de usos, entre outros, de modo a contribuir
com o aprimoramento da competência lingüístico-discursiva dos estudantes.
25
4 ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS
Na sala de aula e nos outros espaços de encontro com os alunos, os
professores de Língua Portuguesa e Literatura têm o papel de aprimorar as
possibilidades do domínio discursivo na oralidade, na leitura e na escrita, para
que compreendam e interfiram nas relações de poder, em relação ao
pensamento e às práticas de linguagem, imprescindíveis ao convívio social. Isso
significa desvelar as cristalizações de verdade na língua, possibilitando aos
educandos o entendimento do poder configurado pelas diferentes práticas
discursivos-sociais quanto a sua emancipação e autonomia em relação a essas
práticas.
A realização desse objetivo está fundamentada na concepção de
linguagem explicitada nos fundamentos teóricos destas Diretrizes. Definir e
assumir uma concepção é essencial, haja vista a necessidade cotidiana de se
tomarem decisões sobre a metodologia do trabalho a ser realizado.
Trabalhar a Língua Materna com os estudantes significa estabelecer
parceria em sala de aula, dar-lhes voz, escutar o que têm a dizer, em
experiências de uso concreto da língua. Não é a simples ocupação da “sala-de-
aula” que a torna espaço privilegiado de interação e aprendizado. O constante
diálogo e sua análise representam possibilidade concreta de ir além do
autoritarismo e da apatia nessas relações. Sob uma perspectiva mais generosa,
valorizar o ambiente escolar é também reconhecê-lo como espaço fértil para
construir racionalidades mais solidárias e combater intolerâncias e qualquer tipo
de preconceito.
As aulas de Língua Portuguesa e Literatura devem tornar o estudante
capaz de inserir-se nas diversas esferas da atividade social e,
conseqüentemente, apto a buscar vagas no ensino superior e a conquistar
espaços no mundo do trabalho.
4.1 A PRÁTICA DA ORALIDADE
Na prática da oralidade, estas Diretrizes consideram que as variantes
lingüísticas são legítimas formas de expressão. Em especial, a de grupos sociais
historicamente marginalizados em relação à centralidade ocupada pela norma
padrão, pelo poder da fala culta. A prática da oralidade, ao contrário do que julga
26
o senso comum, realiza-se por meio de operações lingüísticas complexas,
relacionadas a recursos expressivos como a entonação, por exemplo.
Tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio, as possibilidades de
trabalho com a oralidade são ricas e apontam diferentes caminhos, como
apresentação de temas variados:
histórias de família,
da comunidade,
um filme,
um livro;
depoimentos sobre situações significativas vivenciadas pelo aluno ou
pessoas do seu convívio;
debates, seminários, júris-simulados e outras atividades que possibilitem o
desenvolvimento da argumentação;
transmissão de informações;
troca de opiniões;
contação de histórias;
declamação de poemas;
representação teatral;
relatos de experiência;
confronto e comparação entre a fala e a escrita, de modo a constatar suas
similaridades e diferenças.
Além disso, pode-se analisar a linguagem em uso de outras esferas sociais
como:
em programas televisivos (jornais, novelas, propagandas);
em programas radiofônicos;
no discurso do poder em suas diferentes instâncias;
no discurso público;
no discurso privado, enfim, nas mais diversas realizações do discurso oral.
No que concerne à literatura oral, valoriza-se a potência dos textos
literários como Arte, os quais produzem oportunidade de considerar seus
estatutos, sua dimensão estética e suas forças políticas particulares.
A comparação entre as estratégias específicas da oralidade e as da escrita
compõe a tarefa de ensinar os alunos a se sentirem bem para expressarem suas
idéias com segurança e fluência.
27
A prática da oralidade no ensino deve oferecer condições ao aluno de falar
com fluência em situações formais, adequar a linguagem conforme as
circunstâncias (interlocutores, assunto, intenções), aproveitar os imensos
recursos expressivos da língua e, principalmente, praticar e aprender a
convivência democrática, tanto pelo livre direito à expressão quanto pelo
reconhecimento do mesmo direito ao outro (FARACO, 1988).
O trabalho com essa prática também deve levar em conta as similaridades
e diferenças entre a fala e a escrita. É relevante destacar “os pontos formais e
funcionais em que os textos orais e escritos são diferentes.” (ANTUNES, 2003, p.
101)
4.2 A PRÁTICA DA LEITURA
Na concepção de linguagem assumida por estas Diretrizes, a leitura é vista
como co-produtora de sentidos. O leitor, nesse contexto, ganha o mesmo
estatuto do autor e do texto.
Tal ótica concebe a leitura como instauradora de diálogos, propiciando diferentes formas de ver, de avaliar o mundo e de (re) reconhecer o outro. Considera, também, o ato de ler uma transação entre a competência do leitor e a competência que o texto postula. (ECO, 1993). Entende, em decorrência, que embora o autor movimente recursos expressivos, na tentativa de interagir com o leitor, a efetivação da leitura depende de fatores lingüísticos e não-lingüísticos: o texto é uma potencialidade significativa, mas necessita da mobilização do universo de conhecimento do outro - o leitor - para ser atualizado (PERFEITO, 2005, p. 54-55).
A leitura compreende o contato do aluno com uma ampla variedade de
textos produzidos numa igualmente ampla variedade de práticas sociais. Trata-se
de propiciar o desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno a
perceber o sujeito presente nos textos e, ainda, a uma atitude responsiva diante
deles.
Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes
práticas sociais notícias, crônicas, piadas, poemas, artigos científicos, ensaios,―
reportagens, propagandas, informações, charges, romances, contos etc. ,―
percebendo em cada texto a presença de um sujeito, de uma intenção.
A construção dos significados de um texto é de responsabilidade do autor
e do leitor e, dependendo da esfera social e do gênero discursivo, as
possibilidades de leitura são restritas. Por exemplo, um poema permite uma
28
ampla variedade de leituras, já uma bula de remédio não possibilita tal liberdade
de interpretação por parte do leitor. Um leitor pode, inclusive, ler e interpretar
um texto para o qual ele não era o interlocutor originário.
A leitura não pode ocorrer somente a partir dos livros didáticos. O
professor pode propor uma infinidade de textos, a fim de desenvolver a
subjetividade do aluno, deve considerar, também, a preferência e a opinião dele
ao selecioná-los.
Ainda no que se refere ao trabalho com a literatura, há que se considerar a
necessidade da escolha de métodos que orientarão o estudo. O conhecimento de
teorias literárias pelo professor deve ser realimentado com freqüência, para
definir melhor o alcance e a abordagem com a qual se dará o estudo.
No processo de leitura, a escola não pode deixar de lado as linguagens
não-verbais. A leitura de imagens como: fotos, cartazes, propagandas, imagens
digitais e virtuais, figuras que povoam com intensidade crescente nosso universo
cotidiano, deve contemplar o multiletramento mencionado na fundamentação
teórica destas Diretrizes.
Destaca-se que a perspectiva do multiletramento demanda atenção maior
do professor quanto aos textos midiáticos aos quais, pela TV, pelo rádio e outros
meios virtuais, os alunos têm maior acesso que aos textos oferecidos na escola.
Essa demanda tem sido respondida pelos professores com posições que vão
desde a negação do texto midiático até a sua aceitação sem critério ou sem a
necessária crítica.
Sabe-se das pressões uniformizadoras, em geral voltadas para o consumo
ou para a não-reflexão sobre problemas estéticos ou sociais, exercidas pelas
mídias. Essa pressão deve ser desvelada com atividades de leitura crítica, que
possibilitem ao estudante a análise dos recursos empregados pelos textos
midiáticos.
Em consonância com a concepção sociointeracionista da linguagem,
pode-se destacar dos estudos de Bakhtin sobre a literatura, a enunciação, o
dialogismo e o conceito de heteroglossia, ou seja, as intenções que permeiam
as diferentes vozes presentes na obra literária e que revelam interesses e
ideologias do grupo ou dos diversos grupos sociais nela representados.
Bakhtin escreveu menos sobre poesia do que escreveu sobre prosa
romanesca. Conforme analisa Tezza (2003, p. 218), o teórico russo
coerentemente coloca “o discurso poético como expressão literária cuja relação
entre consciências sociais se processa de modo diferente daquela que
29
acontece na prosa romanesca.” Ainda de acordo com o autor, a poesia
apresenta uma relação dialógica menos intensa, isto é, se na prosa romanesca
há uma “orquestra de vozes, de centros de valor”, a poesia é uma linguagem
mais centralizadora, pois “requer uma uniformidade de todos os discursos, sua
redução a um denominador comum” (TEZZA 2003, p.241).
Esse aspecto singular da poesia não deve ser ignorado pelo professor.
Outro aspecto fundamental a ser considerado nas estratégias de leitura é
possibilitar ao aluno “percepção e reconhecimento – mesmo que
inconscientemente – dos elementos de linguagem que o texto manipula”
(LAJOLO 2001, p. 45).
Assim, o trabalho com a literatura permite que o aluno perceba seu
papel na interação com o texto, porque este carrega em si ideologias, mas
somente a partir da visão de mundo de quem o lê é possível estabelecer
relações que venham aceitar ou refutar os valores ali presentes.
Essa abordagem de ensino pode contemplar diferentes gêneros
textuais, assim como diferentes meios de comunicação, televisão, cinema,
teatro, uma vez que pretende um leitor capaz de desvendar posicionamentos
ideológicos que se fazem presentes no meio social e cultural que o cerca.
A produção de significados, que implica uma relação dinâmica entre
autor/leitor e entre aluno/professor, de forma compartilhada, é uma prática ativa,
crítica e transformadora, que possibilita abarcar diferentes tipos de textos e
gêneros textuais: textos lúdicos, jornalísticos, informativos, didáticos, científicos,
literários, entre tantos que povoam o cotidiano.
As atividades de leitura devem considerar a formação do leitor e isso
implica não apenas considerar diferentes leituras de mundo, experiências de vida
e, conseqüentemente, diferentes leituras, mas também o diálogo dos estudantes
com o texto e não sobre o texto, dirigido pelo professor.
A formação de leitores contará com atividades que contemplem as linhas
que tecem a leitura, que Yunes (1995) aponta que sejam:
- Memória: o ato de ler, quando pede a atitude responsiva do leitor, suscita
suas memórias, que guardam seus sonhos, suas opiniões, sua visão de
mundo. O ato de ler convoca o leitor ao ato de pensar;
- Intersubjetividade: o ato de leitura é interação não apenas do leitor com o
texto, mas com as vozes presentes nos textos, marcas do uso que os
falantes fazem da língua, discursos que atravessam os textos e os leitores;
30
- Interpretação: a leitura não acontece no vazio. O encontro de
subjetividades e memórias resulta na interpretação. As perguntas de
interpretação de textos, que tradicionalmente dirigimos aos alunos, buscam
desvendar um possível mistério do texto e esquecem do mistério do leitor;
- Fruição: o ato de ler não se esgota ao final da leitura e das sensações. A
leitura permanece. E nisso o prazer que ela proporciona difere do prazer
que se esgota rapidamente. Ela decorre de “uma percepção mista de
necessidade e prazer [...]” (YUNES, 1995, p.194);
- Intertextualidade: o ato de ler envolve resposta a muitos textos, em
diferentes linguagens, que antes do ato de leitura permeiam o mundo e
criam uma rede de referências e recriações: palavras, sons, cores, imagens,
versos, ritmos, títulos, gestos, vozes etc. No ato de ler, a memória recupera
intertextualidades.
Além disso, o trabalho com a leitura implica reconhecer a incompletude
dos processos discursivos, os vazios que eles apresentam implícitos,―
pressupostos, subentendidos que devem ser preenchidos pelo leitor.―
4.3 A PRÁTICA DA ESCRITA
O exercício da escrita, nestas Diretrizes, leva em conta a relação entre o
uso e o aprendizado da língua, sob a premissa de que o texto é um elo de
interação social e os gêneros discursivos são construções coletivas. Assim, a
escrita é entendida como formadora de subjetividades.
O reconhecimento das relações de poder no discurso potencializa, na
escrita, a possibilidade de resistência a determinados valores socioculturais.
Esses valores afastam a linguagem escrita do universo de vida dos usuários,
como se ela fosse um processo à parte, externo aos falantes, que, nessa
perspectiva, não constroem a língua, mas aprendem o que os outros criaram.
O domínio da escrita não é inato nem uma dádiva restrita a um pequeno
número de sujeitos. Pensar que fosse assim implica distanciá-la dos alunos.
Quando a escrita é supervalorizada e descontextualizada, torna-se mero exercício
para preencher o tempo.
Não é objetivo primordial da escola formar escritores como Machado de
Assis ou Clarice Lispector. Contudo, o aluno precisa compreender o
funcionamento de um texto escrito, que é diferente do texto oral. Depois de
31
internalizar essas diferenças, pode amadurecer na produção de textos, cuja
intenção é provocar uma ação no mundo.
As maneiras de propor atividades com a escrita interferem de modo
significativo nos resultados alcançados. Diante de uma folha repleta de linhas a
serem preenchidas sobre um tema, os alunos podem recorrer somente ao que
Pécora (1983 p. 68) chama de “estratégias de preenchimento”.
A prática da escrita requer que tanto o professor quanto o aluno planejem
o que será produzido; em seguida escrevam a primeira versão sobre a proposta
apresentada e, então, revisem, reestruturem e reescrevam esse texto. Se for
preciso, tais atividades devem ser retomadas, analisadas e avaliadas durante
esse trabalho. É bom lembrar que essas etapas são interdependentes e
intercomplementares.
Por meio desse processo, em que vivencia a prática de planejar, escrever,
revisar e reescrever seus textos, o aluno perceberá que a reformulação da escrita
não é motivo para constrangimento. Não caracteriza uma produção que esteja
“errada” e, sim, que é possível escrever textos que reflitam melhor seus pontos
de vista, suas fantasias e sua criatividade, pela troca de uma palavra por outra,
de um sinal de pontuação por outro, do acréscimo ou da exclusão de uma idéia
etc.
O refazer textual pode ocorrer de forma individual ou em grupo,
considerando a intenção e as circunstâncias da produção e não a mera
“higienização” do texto do aluno, para atender apenas aos recursos exigidos
pela gramática. O refazer textual deve ser, portanto, atividade fundamentada na
adequação do texto às exigências circunstanciais de sua produção.
A reescrita deve valorizar o esforço daquele que escreve, desconfia, rasga
e reescreve, tantas vezes quanto julgar necessárias, até que o texto lhe pareça
bom para atender à intenção e claro para o outro que o lerá.
Quando há uma proposta de produção escrita, é necessário saber quem
será o leitor deste texto. Tal consideração é aspecto muito importante nestas
Diretrizes.
Para dar oportunidade de socializar a experiência da produção textual e o
ato de compartilhá-la, recomenda-se que os textos dos alunos sejam afixados no
mural da escola, por meio de rodízio. Também se torna interessante reunir os
diversos textos em uma coletânea, ou publicando-os no jornal da escola, por
exemplo. Dessa forma, além de se recuperar o caráter interlocutivo da
32
linguagem, amplia-se a constituição dos autores dos diferentes textos e de seus
possíveis leitores em sujeitos do fazer lingüístico.
Quanto aos gêneros previstos para a prática da produção de texto, podem ser
trabalhados, dentre outros:
relatos (histórias de vida);
bilhetes, cartas, cartazes, avisos (textos pragmáticos);
poemas, contos e crônicas (textos literários);
notícias, editoriais, cartas de leitor e entrevistas (textos de imprensa);
relatórios, resumos de artigo e verbetes de enciclopédia (textos de
divulgação científica).
Assim, essa prática orientará não apenas a produção de textos
significativos como incentivará a prática da leitura.
LAJOLO (1982, p. 60) defende que “as atividades que visem à produção de
texto sejam (também) fundadas numa concepção que privilegie não o texto
redigido, mas o ato de redigir”. Escrita é, antes de tudo, ação, experiência.
Na concepção de linguagem destas Diretrizes, a prática da escrita constitui
uma ação com a linguagem:
[...]ao produzir um texto, o aluno procura no seu universo referencial os recursos lingüísticos e os demais recursos necessários para atender à intenção. Avaliando o produto, ele sabe se pode manter o universo referencial como até então constituído (atualizando-o), ou se deve modificá-lo, ou ainda ampliá-lo (PIVOVAR, 1999, p. 54).
A ação com a língua escrita deve valorizar a experiência lingüística do
estudante em situações específicas. É através de práticas de escrita, leitura e
oralidade que se aprende a norma padrão. Durante a produção de textos, o
estudante aumenta seu universo referencial e aprimora sua competência de
escrita.
Ao analisar seu texto conforme as intenções e as condições de sua
produção, o aluno adquire a necessária autonomia para avaliá-lo. Na experiência
com a escrita, o aluno apreende as exigências dessa manifestação lingüística, o
sistema de organização próprio da escrita, diferente da oralidade, da
organização da fala.
É desejável que as atividades com a escrita se realizem de modo
interlocutivo, que elas possam relacionar o dizer escrito às circunstâncias de sua
produção. Isso implica o produtor do texto assumir-se como locutor, conforme
33
propõe GERALDI (1991) e, dessa forma, ter o que dizer; razão para dizer; como
dizer, interlocutores para quem dizer.
A função do professor de Língua Portuguesa e Literatura é ajudar seus
alunos a ampliarem seu domínio de uso das linguagens verbais e não-verbais
pelo contato direto com textos de variados gêneros, orais ou escritos.
É necessário que a inclusão da diversidade textual possa relacionar os
gêneros com as atividades sociais em que eles se constituem. O fato de a Língua
ser o meio e o suporte de outros conhecimentos torna o professor de Língua
Portuguesa agente de alavancamento das relações inter e multidisciplinares.
4.4 ANÁLISE LINGÜÍSTICA
Nestas Diretrizes, propõe-se formar usuários competentes da língua, de
modo que, pela fala, escrita e leitura, exercitem a linguagem de forma
consistente e flexível, adaptando-se a diferentes situações de uso. Não é possível
atender a esse objetivo se o ensino privilegiar uma única forma de análise dos
fenômenos lingüísticos. Sabe-se das dificuldades enfrentadas pelo professor, nas
aulas de Língua Portuguesa, ao deparar-se com situações em que é
imprescindível trabalhar também com conceitos de gramática.
Partindo desse pressuposto, faz-se necessário deter-se um pouco nas
diferentes formas de entender as estruturas de uma língua e,
conseqüentemente, as gramáticas que procuram sistematizá-la. Diante de tantos
conceitos contraditórios, Possenti (1999) procura simplificar a definição de
gramática a partir da noção de conjunto de regras: as que devem ser seguidas;
as que são seguidas e as regras que o falante domina. A partir dessas noções, o
autor apresenta três tipos básicos de gramática mais diretamente ligadas às
questões pedagógicas.
a) A gramática normativa considera a língua uma série de regras que devem ser
seguidas e obedecidas. O domínio dessas regras pode dar a ilusão de que o
falante emprega a variedade padrão. Esse tipo de gramática dá muita
importância à forma escrita, atribuindo-lhe representação mais culta da
língua. Por conta disso, considera que a fala precisa basear-se nas estruturas
que regem a escrita. A gramática normativa está presente nos compêndios
gramaticais e em muitos livros didáticos.
34
b) A gramática descritiva, como conjunto de regras que são seguidas, não se
atém unicamente na modalidade escrita ou padrão, mas à descrição das
variantes lingüísticas a partir do seu uso. A gramática descritiva dá
preferência à manifestação oral da língua. Essa característica garante a essa
gramática maior mobilidade, ao contrário da normativa que, presa à escrita, é
mais resistente às inovações da língua.
c) A gramática internalizada é o conjunto de regras dominadas pelo falante tanto
em nível fonético como sintático e semântico, possibilitando entendimento
entre os falantes de uma mesma língua.
Vale explicitar a noção de erro na concepção de cada uma das três
gramáticas apresentadas. Enquanto a gramática normativa toma como erro
qualquer transgressão a suas regras, as outras o relativizam. O erro estaria
menos relacionado à transgressão que à adequação e aceitação numa variante
lingüística (BAGNO, 2003).
Dessa forma, quanto mais variado for o contato do aluno com diferentes
tipos e gêneros textuais (orais e escritos), mais fácil será assimilar as
regularidades que determinam o uso da norma padrão. Assim, um texto se faz a
partir de elementos como organização, unidade, coerência, coesão, clareza,
dentre outros.
O aluno precisa, então, ampliar sua capacidade discursiva em atividades
de uso da língua, de maneira a compreender outras exigências de adequação da
linguagem como, por exemplo: argumentação, situacionalidade,
intertextualidade, informatividade, referenciação, concordância, regência,
formalidade e informalidade.
A questão não é se o professor pode ou não trabalhar a gramática
normativa com seus alunos, mas, em que medida ela dá conta da complexidade
do texto, uma vez que se restringe aos limites da oração. Considerando a
interlocução como ponto de partida para o trabalho com o texto, os conteúdos
gramaticais devem ser estudados a partir de seus aspectos funcionais na
constituição da unidade de sentido dos enunciados. Daí a importância de
considerar não somente a gramática normativa, mas também outras, como a
descritiva e a internalizada no processo de ensino de Língua Portuguesa.
Cabe ao professor planejar e desenvolver atividades que possibilitem aos
alunos a reflexão sobre seu próprio texto – tais como atividades de revisão, de
35
reestruturação ou refacção, de análise coletiva de um texto selecionado – e sobre
outros textos, de diversos gêneros que circulam no contexto escolar e extra-
escolar. O estudo do texto e da sua organização sintático-semântica permite ao
professor explorar as categorias gramaticais, conforme cada texto em análise.
Mas, nesse estudo, o que vale não é a categoria em si: é a função que ela
desempenha para os sentidos do texto. Como afirma Antunes, “mesmo quando
se está fazendo a análise lingüística de categorias gramaticais, o objeto de
estudo é o texto” (ANTUNES, 2003, p. 121).
Para além do contato com diferentes textos, o professor propiciará que o
aluno expresse sua análise por meio dos diferentes gêneros, considerada sua
criatividade. Antes desta etapa, no nível oral e escrito, está a interpretação que
faz proliferar o pensamento, que abre a possibilidade do aluno jogar, criar,
atualizar os gêneros.
Não faz sentido, portanto, que o professor engesse seu trabalho com base
em grandes seqüências de conteúdos gramaticais. Definida a intenção para o
trabalho com a Língua Portuguesa, o aluno também pode passar a fazer
demandas, elaborar perguntas, considerar hipóteses, questionar-se.
Os professores, portanto, farão ver aos alunos que a escola é o espaço
onde ele pode errar para, a partir dessa consciência, sob uma dinâmica de
tentativas, acertos, inferências, comparações, deduções, construa o aprendizado
do fato lingüístico.
Levar em conta o erro e a dúvida como elementos constitutivos do
processo de trabalho em análise lingüística deve ter por efeito propiciar que o
aluno se capacite a construir metáforas, a transformar conceitos, a ser afirmativo
de seus valores e compreensivo dos valores do outro, concordando ou não com
tais diferenças, porém, discernindo-as para que possa fazer as próprias escolhas.
4.5 LITERATURA
Na Educação Básica torna-se relevante que as aulas de literatura não
sejam meramente a escolha de uma prática utilitária de leitura ou que o texto
literário sirva como pretexto para outras questões de ensino, que não a literatura
como instituição autônoma, auto-referencial.
A Literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida
social, assim compreende-se que ela
36
é criada dentro de um contexto; numa determinada língua, dentro de um determinado país e numa determinada época, onde se pensa de uma certa maneira; portanto, ela carrega em si as marcas desse contexto (SILVA, 2003, p.123).
Vale lembrar que a obra literária não está ancorada, fixa no contexto
original de sua produção, a relação dialógica entre leitor, texto e autor, de
diferentes épocas, acaba por atualizá-la, o que revela “um sintoma de que está
viva”, destaca Zilberman (1989, p. 33).
Não raro, o livro didático, as fichas de leitura, as propostas de trabalho (via
encarte nas obras de literatura) apresentam propostas que escolarizam o texto
literário e que privilegiam questões alheias à especificidade desse gênero ou lhe
conferem um tratamento meramente formal. Com isso, há um esvaziamento da
complexidade da obra literária, seja no aspecto das diversas vozes presentes no
texto da temática ou da própria forma.
Para que se evite essa prática pedagógica, é fundamental que o professor
tenha claro o que pretende com o ensino da literatura, qual a concepção de
literatura que quer privilegiar e que tipo de leitor quer formar.
Há muitas teorias que discutem sobre a necessidade de formar um leitor
crítico e os currículos de ensino confirmam esse objetivo. Mais que isso, porém,
espera-se formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com
condições de reconhecer nas aulas de literatura um envolvimento de
subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio de uma
interação que está presente no ato de ler. De fato, trata-se da relação entre o
leitor e a obra e nela a representação de mundo do autor que se confronta com a
representação de mundo do leitor, no ato ao mesmo tempo solitário e dialógico
da leitura. Com isso, pode-se dizer que a obra também constitui-se no momento
da recepção. Aquele que lê amplia seu universo, mas amplia também o universo
da obra a partir da sua experiência cultural.
É desafio do professor, portanto, compartilhar a experiência da interação
entre a obra e o leitor, como sujeito ativo capaz de refletir sobre o que leu, emitir
juízos e, principalmente, ampliar seus horizontes de expectativa em relação à
obra lida. Assim concebida a leitura da obra literária, propõe-se que se pense o
ensino da literatura a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção4.
4 Zappone (2003, p. 140) referente à Estética da Recepção “o valor estético de um texto é medido pela recepção inicial do público que o compara com outras obras já lidas, percebe-lhe as singularidades e adquire novo parâmetro para avaliação de obras futuras (elabora um novo horizonte de expectativas)."
37
Os pressupostos teóricos dessa perspectiva de ensino buscam resgatar o
leitor de sua “passividade” e do papel marginal que lhe era conferido no bojo dos
estudos literários. Ao se dar um novo estatuto ao leitor, o objetivo é o de
valorizar as três instâncias que envolvem a literatura (a tríade a que já se
referiu).
Ao valorizar a leitura e a fruição, sem perder de vista a dimensão histórica
da obra, a Estética da Recepção questiona as concepções de caráter mais
imanente, ou seja, as que se pautam apenas no plano formal, desconsiderando o
viés contextual. Por outro lado, essa linha de abordagem do texto literário não
fica cativa de uma perspectiva exclusivamente historicista ou sociológica, o que
seria conceber a literatura como um simples reflexo da realidade.
A idéia central da Estética da Recepção é a de que nenhuma obra, por
mais canônica que seja, possa ficar incólume às determinações históricas, às
condições de recepção a que é exposta com o passar do tempo. Toda obra, desse
modo, está sujeita ao horizonte de expectativas de um público. Portanto, a obra é
valorizada tendo em vista o modo como é recebida pelos leitores das diferentes
épocas em que é fruída. Dessa maneira, supera-se a idéia de que uma obra
esteja vinculada apenas ao seu contexto original.
Feitas essas considerações, é importante pensar em que sentido a Estética
da Recepção pode servir como suporte teórico para construir uma reflexão válida
no que concerne à literatura. Levando em conta o importante papel do leitor e a
sua formação, torna-se imprescindível pensar estratégias que sirvam para
despertar o interesse pela leitura entre as crianças e os adolescentes.
Sugere-se que o professor privilegie, num primeiro momento, a leitura-
fruição do texto literário como meio de desenvolver o gosto e o hábito pela
leitura e, na medida que o aluno amplie seu repertório de conhecimento de
obras, o professor lhes incentive a capacidade crítica sobre as leituras feitas a
partir da socialização destas em sala de aula.
Os pressupostos teóricos e metodológicos da Estética da Recepção
embasam o trabalho com a Literatura tanto no Ensino Fundamental quanto no
Médio. No Fundamental, tem-se como objetivo a formação de um leitor maduro,
crítico, nesse sentido, as estratégias pautadas na Estética da Recepção
consideram que o leitor possui um horizonte limitado de leitura, mas que pode
ampliar-se continuamente, alargando suas fronteiras. Esses limites advém de seu
círculo social e das diversas vozes que o compõem (discurso religioso, filosófico,
científico, jurídico, estético, etc).
38
De posse dessas diferentes vozes, o leitor tenta encaixar o texto literário
dentro de seu horizonte de valores, porém, a obra pode “confirmar ou perturbar
esse horizonte, em termos das expectativas do leitor, que o percebe o julga por
tudo que já conhece e aceita” (BORDINI. AGUIAR, 1993, p. 87). Desta forma,
quanto mais distante o texto for do universo do leitor, mais modificará e ampliará
seu horizonte de expectativas.
No Ensino Médio, pressupõe-se que o aluno-leitor já conquistou um nível
de maturidade de leitura que o permite estabelecer relações intertextuais mais
autônomas. Por esse motivo, sugere-se uma perspectiva no trato com o texto
literário que se soma à Estética da Recepção: a perspectiva rizomática5.
Esta designação se refere ao rizoma, espécie de raiz que se prolonga
horizontalmente, como por exemplo o gengibre de origem asiática, muito
conhecido. Nos textos de Deleuze & Guatari (1995), o rizoma se contrapõe à
árvore que, com sua verticalidade, constitui metáfora da autoridade
inquestionável, do dogma, da tradição não-reflexiva, dele reprodutora. O rizoma
sugere mobilidade que leva à libertação do pensamento em relação à linha do
tempo, o que permite valorizar a elaboração de mapas de leituras mais do que
imobilizá-las na história.
Conforme explicam os autores,
cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas (Deleuze, 1995, p.15).6
Para operar na perspectiva rizomática, um professor de Literatura deverá
ser contínuo leitor e capaz de selecionar os textos com os quais trabalhará. Terá
como critérios não a linearidade da historiografia nem a adaptabilidade do texto
ou tema à linguagem dos alunos, porque isso subestimaria suas capacidades
cognitivas.
O professor também deixará de levar em conta a facilidade do texto e
levará aos estudantes propostas que ampliem relações de leitura conforme a
metáfora do rizoma. Estimulará associações entre um ponto e outro e
estabelecerá suas conexões a partir dos textos apresentados pelos alunos, da
autoria deles ou não.
5 - De acordo com as considerações teóricas de Deleuze e Guatari presentes em Mil platôs.6 Vale ressaltar que este encaminhamento faz um recorte muito preciso desses referidos autores visando o trabalho específico em Literatura.
39
Ao trabalhar com os textos selecionados, o professor instigará relações
entre eles e o contexto presente. Terá sempre em vista o presente da leitura e as
múltiplas possibilidades de construção do significado a partir desse instante que
carrega em si alguma magia. Há quem diga que ler um texto é escrevê-lo, que a
sua escritura se concretiza no instante da leitura. Quando o professor remontar
ao contexto de produção da obra – não confundir com sua historiografia linear –,
será para questionar os critérios de verdade históricos que dogmatizam e
empobrecem a análise literária. 7
Se a condição de contínuo leitor permite ao professor selecionar textos da
literatura nacional e universal a serem trabalhados, qualifica-o também como
sujeito capaz de fazer proliferar o pensamento pela multiplicidade de relações
possíveis.
Convém que ele demonstre aos alunos o trabalho literário existente por
trás dos textos para que se desfaça o mito que os escritores são pessoas que
possuem um talento inato, um dom.
O professor, no exercício da função, não ficará preso somente à linha do
tempo da historiografia, que é apenas um dos métodos de entrada no texto
literário, talvez o mais antigo. Utilizará,também, diversas correntes da crítica
literária mais eficazes no trato com a literatura tais como, os estudos filosóficos e
sociológicos, a Estética da Recepção, a análise do discurso, a psicanálise, entre
tantos outros que podem enriquecer o entendimento da obra literária.
Detenha-se o olhar no poema Erro de português, epígrafe destas
Diretrizes. Numa abordagem linear, o professor apresentaria o contexto histórico
do poema de Oswald de Andrade, o resumo de uma ou outra obra do autor do
modernismo pátrio, bem como uma lista das demais obras do escritor paulista.
Os alunos procurariam no texto apenas um feixe de características de estilo de
época previamente determinados.
Em aula, numa perspectiva rizomática, o poema em questão constituiria
parceria com textos do que se chama Literatura de Informação (Quinhentismo),
com o romance Quarup, de Antônio Callado (Modernismo) e com os textos
informativos extraídos dos jornais cotidianos que, em ano recente, em letras
garrafais MASSACRE noticiaram a morte, pelos índios, de doze garimpeiros― ―
7 Agindo desta maneira os professores de Língua Portuguesa e Literatura estão também em consonância com os professores de História que, no texto de sua disciplina também percebem que o estudo do passado a partir das problematizações do presente é um método que viabiliza a possibilidade de compreensões alternativas em relação a determinados conteúdos, pois podem detectar as descontinuidades, transformações e permanências presentes na articulação entre o processo histórico e os acontecimentos.
40
que invadiram a sua reserva, um campo textual de reflexão sobre uma história
viva que ainda não acabou de acontecer.
Partindo da realidade cotidiana, esta reflexão possibilitaria desvelar as
facetas de poder e de hegemonia discursiva, permitindo a um tempo entender
melhor as práticas históricas de nossa identidade latino-americana. Isso constitui
um planejamento aberto a um contágio intertextual. E se a leitura do texto de
Oswald possibilita a algum aluno lembrar da Baby do Brasil com sua música Dia
de Índio, o professor mostrará, também, O Descobrimento do Brasil, de Villa
Lobos, e Madeira que cupim não rói, de Antônio Nóbrega e Wilson Freire,
enveredando o curso da aula para contribuições da música indígena à música
popular e erudita nacional. O texto, assim, invoca outros temas, outros gêneros;
hipertextos e virtualidades.
Ao se deter com os alunos na interpretação dos textos selecionados, o
professor saberá que, em Literatura, interpretação não se reduz a uma questão
de verdade ou falsidade, mas a uma contínua construção de consistência
argumentativa na ordem do discurso proliferação do pensamento.―
Pensadas desta maneira, embora tenham um curso planejado pelo
professor, as aulas de Literatura estarão sujeitas a ajustes atendendo às
necessidades e sugestões dos alunos, de modo a incorporar suas idéias e as
relações textuais por eles estabelecidas.
Assim, a aula partirá do(s) texto(s) selecionados pelo professor que
colocará o aluno em face de obras literárias integrais em vez de resumos ou
sinopses. Aceitará os textos sugeridos pelos alunos como ponto de lançamento
para a leitura de outros, num contínuo texto-puxa-texto que leve à reflexão, ao
aprimoramento do pensar e a um aperfeiçoamento no manejo que ele terá de
suas habilidades de falante, leitor e escritor. Pode enriquecer este trabalho a
lembrança de um filme, de uma música, de outras leituras relacionadas, mesmo
a de fatos vividos ou a produção do próprio aluno. Convém que o professor
reserve, no espaço de suas aulas, toda semana, um tempo para a leitura.
Para Garcia (2005), a Literatura resulta o que precisa ser redefinido na
escola: a Literatura no ensino pode ser somente um corpo expansivo, não-
orgânico, aberto aos acontecimentos a que os processos de leitura não cessam
de forçá-la. Se não for assim, o que há é o fechamento do campo da leitura pela
via do enquadramento do texto lido a meros esquemas classificatórios, de
natureza estrutural (gramática dos gêneros) ou temporal (estilos de época). O
trabalho com a Literatura em sala de aula permite uma interação em torno do
41
objeto estético que, mais que o agenciamento de instâncias de controle, abre-se
para espaço incontrolável da linguagem.
Para o ensino de Literatura, estas Diretrizes não indicam, não selecionam
obras ou épocas a serem trabalhadas, contudo, respeita o planejamento a ser
construído pelos professores, na escola. As aulas de Literatura requerem, de
acordo com essa concepção, que o repertório de leitura do professor esteja em
contínua ampliação.
Então, ao selecionar os textos literários para apresentar aos alunos, o
professor terá oportunidade de relacioná-los por meio das combinações
suscitadas por seu percurso de leitura. A Literatura será um elemento fixo na
composição com outros elementos móveis que o professor determinará por si e
pelas necessidades que perceber na interação dos alunos com os textos
literários.
Numa relação exemplificativa, temos: Literatura e Arte; Literatura e
Biologia; Literatura e...(qualquer das disciplinas com tradição curricular no Ensino
Fundamental e Médio); Literatura e Antropologia; Literatura e Religião; Literatura
e Psicanálise; entre tantas.
O trabalho com a Literatura potencializa uma prática diferenciada com os
conteúdos estruturantes da Língua Portuguesa (oralidade, leitura e escrita) e
constitui forte influxo capaz de fazer aprimorar o pensamento trazendo sabor ao
saber.
Por fim, o professor de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino
Fundamental e Médio será capaz de se valer de todos meios de que dispõe para
propiciar que os alunos façam suas próprias escolhas ante as oportunidades que
a vida colocar à sua frente.
42
5 AVALIAÇÃO
Em uma concepção tradicional que ainda prevalece em muitas escolas, a
avaliação da aprendizagem é vivenciada como o processo do toma-lá-dá-cá. Ou
seja, o aluno precisa devolver ao professor o que dele recebeu e, de preferência,
exatamente como recebeu.
Todavia, é imprescindível que a avaliação seja contínua e dê prioridade à
qualidade e ao processo de aprendizagem, ao desempenho do aluno ao longo do
ano letivo. A Lei 9394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
destaca a chamada avaliação formativa, vista como mais adequada ao dia-a-dia
da sala de aula e como grande avanço em relação à avaliação tradicional,
denominada somativa ou classificatória.
Realizada geralmente ao final de um programa ou de um determinado
período, a avaliação somativa era usada para definir uma nota ou estabelecer um
conceito. Não se quer dizer com isso que ela deva ser excluída do sistema
escolar, mas que as duas formas de avaliação – a formativa e a somativa –
servem para diferentes finalidades. Por isso, em lugar de apenas avaliar por meio
de provas, o professor pode usar a observação diária e instrumentos variados,
selecionados de acordo com cada conteúdo e/ou objetivo.
A avaliação formativa considera que os alunos possuem ritmos e
processos de aprendizagem diferentes e, por ser contínua e diagnóstica, aponta
dificuldades, possibilitando que a intervenção pedagógica aconteça a todo
tempo. Informa o professor e o aluno acerca do ponto em que se encontram,
ajuda-os a refletir. Faz o professor procurar caminhos para que todos os alunos
aprendam e participem mais das aulas.
Sob esta perspectiva, estas Diretrizes recomendam:
a) Oralidade: será avaliada em função da adequação do discurso/texto aos
diferentes interlocutores e situações. Num seminário, num debate, numa
troca informal de idéias, numa entrevista, num relato de história, as
exigências de adequação da fala são diferentes e isso deve ser considerado
numa análise da produção oral. Assim, o professor verificará a participação do
aluno nos diálogos, relatos e discussões, a clareza que ele mostra ao expor
suas idéias, a fluência da sua fala, o seu desembaraço, a argumentação que
apresenta ao defender seus pontos de vista. O aluno também deve se
posicionar como avaliador de textos orais com os quais convive, como:
43
noticiários, discursos políticos, programas televisivos etc. e de suas próprias
falas, mais ou menos formais, tendo em vista o resultado esperado.
b) Leitura: ao ser avaliada, deve-se considerar as estratégias que os estudantes
empregaram em seu decorrer, a compreensão do texto lido, o sentido
construído, sua reflexão e sua resposta ao texto. Não é demais lembrar que a
avaliação deve considerar as diferenças de leituras de mundo e o repertório
de experiências dos alunos. O professor pode propor questões abertas,
discussões, debates e outras atividades que lhe permitam avaliar a reflexão
que o aluno faz a partir do texto.
c) Escrita: é preciso ver o texto do aluno como uma fase do processo de
produção, nunca como produto final. O que determina a adequação do texto
escrito são as circunstâncias de sua produção e o resultado dessa ação. É a
partir daí que o texto escrito será avaliado nos seus aspectos textuais e
gramaticais. Tal como na oralidade, o aluno deve se posicionar como avaliador
tanto dos textos que o rodeiam quanto de seu próprio.
Como é no texto – fala e escrita – que a língua se manifesta em todos os
seus aspectos discursivos, textuais, ortográficos e gramaticais, os elementos
lingüísticos usados nas produções dos alunos precisam ser avaliados sob uma
prática reflexiva e contextualizada que lhes possibilite compreender esses
elementos no interior do texto. Uma vez entendidos, os alunos podem incluí-los
em outras operações lingüísticas, de reestrutura do texto, inclusive.
Com o uso da língua oral e escrita em práticas sociais, os alunos são
avaliados continuamente em termos desse uso, pois efetuam operações com a
linguagem e refletem sobre as diferentes possibilidades de uso da língua, o que
lhes permite o aperfeiçoamento lingüístico constante, o letramento.
O trabalho com a língua oral e escrita supõe uma formação inicial e
continuada que possibilita ao professor estabelecer as devidas articulações entre
teoria e prática, na condição de sujeito que usa o estudo e a reflexão como
alicerces para sua ação pedagógica e que, simultaneamente, parte dessa ação
para o sempre necessário aprofundamento teórico.
As Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa e Literatura para o Ensino
Fundamental e Médio da Rede Estadual de Educação serão mais bem-sucedidas
com a participação pró-ativa do professor que compreende seu valor como
44
transformador da realidade. Isso significa compreender as concepções de
linguagem que assumem a língua como interação, como discurso. Também
implica conhecer o sistema de escrita para orientar com segurança os alunos no
processo de aprendizagem.
Engajado com as questões de seu tempo, tal professor respeitará as
diferenças e promoverá uma ação pedagógica de qualidade a todos os alunos,
tanto para derrubar mitos que sustentam o pensamento único, padrões
preestabelecidos e conceitos tradicionalmente aceitos, como para construir
relações sociais mais generosas e includentes.
45
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BAGNO, Marcos. A norma oculta – língua e poder na sociedade. São Paulo: Parábola, 2003
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