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cultura 3 2 SEGUNDA-FEIRA, 20 MAIO 1996 O próximo livro de José Cardoso Pires ualquer coisa noves fora, nada Ana Sousa Dias É um daqueles conversadores imparáveis, que en- gatilham histórias umas nas outras. É nesse turbi- lhão que fala dos oito dias em que viveu amputado de memória , descobrindo que esta é a coi sa mai s sagrada que uma pessoa tem. Ri-se desses dias es- tranho s, quando sentia sem sentir e sabia verda- de s o evident es como esta: " Qualquer coi sa noves fora, nada." J osé Cardoso Pires está a es- crever um novo livro que espera ter pronto para editar em Novembro. Num processo com- plicado de narração, ele procura contar os oito dias em que viveu num mundo sem memória nem §entimento.§, dependente de um mim)sculo coágulo de sangue. E a história, real e decerto ficcionada q.b., do acidente vas- cular cerebral que o escritor so- freu em 12 de Janeiro do ano pas- sado e do qual recuperou rápida e Mas é uma fu'Sfõna contada a duas vozes, num desdobramento provo- cado pela perda parcial da memória: o escritor si- tua-se entre o "eu" que sabe tudo e o "ele" que se perdeu, numa es- trat.égia de complica- do equihbrio. Coll!o explicou ao PU- BLICO: "Está a ser mui- to dificil escreveres-· te livro. Porque uma parte em que sou eu, de facto, a contar o que me lembro de ter fei- to. E uma outra parte em que eu conto o que fiz mas de que não me lembro, coisas que alguém me contou. Arranjei uma solu- ção. A certa altura, desdobro o sujeito em dois: eu e o outro, 'ele'. 'Ele' é o tal tipo que não tem me- ria 'Eu' sou eu com as infor- mações que tenho de fora Eu descrevo 'ele', falo dele como se fosse uma segunda persona- gem." Porque na verdade "ele" não é o J osé Cardoso Pires capaz de contar hist.órias amigável e inter- minavelmente, mas alguém am- putado da memória, alguém que não sabe como se chama, que co- nhece as pessoas mas não sabe atribuir-lhes nomes, que tem par companheiros de quarto dóis ho- mens de que apenas percebe, nos primeiros dias, contornos de sombras. "Estou a descrever um outro tipo e ao mesmo tempo to- mo a responsabilidade de mim mesmo: isto é verdade porque se passou comigo, mas 'ele' neste momento está a fazer isto. Como se fosse assim: identificar e desi- dentificar." ''Como te chamas?" "Ele" está no hospital, a per- der a memória a passo acelerado, porque um coágulo de sangue se alojou "na zona nobre do cére- bro". Começou por sentir-se mal, em casa, mal como nunca antes se sentira E per- guntou à mulher: "Como te cha- mas?" Alarmada, ela que foi en- não vale nada. O que é giro é apa- fermeira toda a vida, responde: recer aquilo que eu senti, mesmo "Edite. E tu? "Parece-me que é ascoisasmaisaldrabadas,menos Cardoso Pires". Mas já está verdadeiras, mais falsead;is, longe. mais ignorantes de tudo isso. E a Vão para o hospital e é diag- visão de um tipo que teve uma nosticado um acidente vascular experiência e que, por acaso, não cerebral. Um coágulo entope um sabe nada de médicos nem de vaso no cérebro e impede a irri- medicina, nem quer saber. Mas é gação. Horas depois, o risco de . "uma coisa lixada. Porque o pro- morte cerebral é elevadíssimo, blema para mim é a memória - mas na noite segufute, Ôtrata- "cientificamente,nãoé-maspa- mento resulta: o coágÚlo oomeça ta mim é a memó ria. Um tipo a desfazer- se, a circulaçã o é re- perde a memória e d epois não sa - posta. ler nem escrever. Não fala Desinteressado e-indiferen- Contaram-me que eu começava te, "ele" move-se · com· todô o à vontade, porque nenhum centro tEtminava a frase com uma pala- motor penteia- vi 1i com consoantes. No en- se com a escova de.dent.és. "Ele" tanto, eu andava bem disposto. ri por dentro, indulgente, das Sorria, fazia assim [encolhia os perguntastontasqueosmédicos ombros], dizia 'deixa lá', e não lhe dirigem: se lhe apontam um acabavaafrase." relógio - e fazem-no vezes sem E o homem insiste: "Eu era conta, e fazem-no todos os médi: dócil, muito bem disposto. Evi- cos que o visitam - responde, dentemente quem não tem me- cordial, que é um fato de banho, e mória não tem capacidade de fica a pensar por dentro que es- responder. Não equaciona Foi tão a tratá-lo como um garoto, que eu aprendi que a memória é quegenteestranha a coisa mais sagrada que uma "Ele" fixa com intensidade pessoa tem." os olhos dos homens que apare- Tinha uma atitude passiva, cem no quarto, e dos homens em tolerante, eu não tinha a mais especial porque já reparou num pequena impressão de que aqui- pormenor curioso: os homens lo era uma coisa grave. Sabia que choram quando olham para ele. aquilo não estava bom, que era Agora é Cardoso Pires a ex- uma crise e tal. Aceitava com cal- plicar, passado um ano e meio: ma e sem a menor angústia, qua- "Aquilo não me impressionava, se desinteresse, as minhas inca- porque havia uma frieza total, pacidades. Eu pegava num jor- não tinha por nin- nal, olhava, queria ler, via logo à guêm. AS pessoas chegavam, eu primeira abordagem que não estava porreiro com eles, como conseguia, punha de parte e fica- uma pessoa estranha que eu te- va porreiro." nho que tratar bem. Sabia que ti- quando eu começo a me- nha relações, por fim já tinha a lhorar é que eu começo a pen- percepção que era um acto de sar mas é outra coisa: eu estou a amizade terem-me visitado, ha- caminharparaaloucuraEissoé via ali qualquer coisa que me era que me começa a absorver, quan- grata Mas quem eu vi a chorar do "aquilo começa a abrir. Mas, é foram três homens. Nenhuma engraçado, sentia-me num mun- mulher, nem a minha mulher do de trevas brancas, aquele hos- nem as minhas filhas, chorou à pital era tota1mente branco." - minha frente. Mas lembro-me ...- Passou então a aperceber-se perfeitamente do Manuel Bri- de que vivia entre dois outros ho- to, da Galeria 111, agarrado a mens, doentes como ele, queespe- um lenço e eu a ver as lágri- ravam vez para ser operados. E mas." foi uma revelação: de um lado, o "Ele" está também a pas- senhor Delfim, empreiteiro, que sear no corredor do hospital e sabia perfeitamente que Cardoso uma palavra escrita sobre Pires era escritor porque tinha uma porta. Estranha ver ali comprado uma vez um livro cha- - que raio - caracteres cirí- mado "O J;:>elfim". Do outro lado, licos, então aqui coisas es- o senhor Alvaro, comerciante da critas em russo, pensa. Per- Nazaré. Fizeram-lhe boa compa- gunta à mulher o que diz nhia, ao ponto de o escritor dizer aquele letreiro. "BANHOS", agora,aindaariràsgargalhadas: responde ela que o que Aquilo era uma tourada, os dois "ele" vê, distintamente, são o tinham piada aos pontapés. O B e o N ao contrário, e portan- Solnado e o Herman José ao to cada vez que ali passa daquilo perdiam. Era um carna- distintamente a palavra rus- val. Dois homens que estão para sa, esquecido do que a mu- ser operados aos miolos e não pá- lher lhe leu. ram de dizer piadas, da maior "E d' il" uera oc Para a escrita do livro, Jo- Cardoso Pires não quer a ajuda nem as explicações de nenhum médico, nem mesmo dos que de mais perto o acom- panharam. "Porque o livro pode ter piada se for escrito por um tipo analfabeto do seu tratados médicos perfeitos, a esse nível o livro crueldade, um ao outro." Feitas as contas ao que acon- teceu nesses oito dias, Cardoso Pires guarda a estranheza de um mundo sem memória. sem au- gústia, sem nomes. E por falar em contãS, agora "ele" está ares- ponder a uma médica que lhe pergunta: "Onze menos nove quantos são?" E "ele": "Nada". "Nada?!" E "ele", com um sorri- so: "Qualquer coisa noves fora, nada.'_ '• --

SEGUNDA-FEIRA, 20 MAIO 1996 O próximo livro de José Cardoso …hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/... · 2018. 10. 30. · cultura 3 2 SEGUNDA-FEIRA, 20 MAIO 1996 O próximo

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cultura 3 2 SEGUNDA-FEIRA, 20 MAIO 1996

O próximo livro de José Cardoso Pires

ualquer coisa noves fora, nada Ana Sousa Dias

É um daqueles conversadores imparáveis, que en-

gatilham histórias umas nas outras. É nesse turbi­

lhão que fala dos oito dias em que viveu amputado

de memória, descobrindo que esta é a coisa mais

sagrada que uma pessoa tem. Ri-se desses dias es-

tranhos, quando sentia sem sentir e sabia verda-

des tão evidentes como

esta: "Qualquer

coisa noves

fora, nada."

J osé Cardoso Pires está a es-crever um novo livro que

espera ter pronto para editar em Novembro. Num processo com­plicado de narração, ele procura contar os oito dias em que viveu num mundo sem memória nem §entimento.§, dependente de um mim)sculo coágulo de sangue.

E a história, real e decerto ficcionada q.b., do acidente vas­cular cerebral que o escritor so­freu em 12 de Janeiro do ano pas­sado e do qual recuperou rápida e inesperadam~te. Mas é uma fu'Sfõna contada a duas vozes,

num desdobramento provo­cado pela perda parcial da

memória: o escritor si­tua-se entre o "eu" que sabe tudo e o "ele" que se perdeu, numa es­trat.égia de complica­do equihbrio. Coll!o explicou ao PU­BLICO:

"Está a ser mui­to dificil escreveres-· te livro. Porque há uma parte em que sou eu, de facto, a contar o que me lembro de ter fei-

to. E há uma outra parte em que eu conto o que fiz mas de que não me lembro, coisas que alguém me contou. Arranjei uma solu­ção. A certa altura, desdobro o sujeito em dois: eu e o outro, 'ele'. 'Ele' é o tal tipo que não tem me­mória 'Eu' sou eu com as infor­mações que tenho cá de fora Eu descrevo 'ele', falo dele como se fosse uma segunda persona­gem."

Porque na verdade "ele" não é o José Cardoso Pires capaz de contar hist.órias amigável e inter­minavelmente, mas alguém am­putado da memória, alguém que não sabe como se chama, que co­nhece as pessoas mas não sabe atribuir-lhes nomes, que tem par companheiros de quarto dóis ho­mens de que apenas percebe, nos primeiros dias, contornos de sombras. "Estou a descrever um outro tipo e ao mesmo tempo to­mo a responsabilidade de mim mesmo: isto é verdade porque se passou comigo, mas 'ele' neste momento está a fazer isto. Como se fosse assim: identificar e desi­dentificar."

''Como te chamas?" "Ele" está no hospital, a per­

der a memória a passo acelerado, porque um coágulo de sangue se alojou "na zona nobre do cére­bro". Começou por sentir-se mal,

em casa, mal como nunca antes se sentira E per­

guntou à mulher: "Como te cha-

mas?" Alarmada, ela que foi en- não vale nada. O que é giro é apa­fermeira toda a vida, responde: recer aquilo que eu senti, mesmo "Edite. E tu? "Parece-me que é ascoisasmaisaldrabadas,menos Cardoso Pires". Mas já está verdadeiras, mais falsead;is, longe. mais ignorantes de tudo isso. E a

Vão para o hospital e é diag- visão de um tipo que teve uma nosticado um acidente vascular experiência e que, por acaso, não cerebral. Um coágulo entope um sabe nada de médicos nem de vaso no cérebro e impede a irri- medicina, nem quer saber. Mas é gação. Horas depois, o risco de . " uma coisa lixada. Porque o pro­morte cerebral é elevadíssimo, • blema para mim é a memória -mas na noite segufute, Ôtrata- "cientificamente,nãoé-maspa­mento resulta: o coágÚlo oomeça ta mim é a memória. Um tipo a desfazer-se, a circulação é re- perde a memória e depois não sa­posta. ~ ler nem escrever. Não fala

Desinteressado e-indiferen- Contaram-me que eu começava te, "ele" move-se ·com·todô o à a~ntardizerumacoisaedepois vontade, porque nenhum centro tEtminava a frase com uma pala­motor foi- atingido~~as penteia- vi1i só com consoantes. No en­se com a escova de.dent.és. "Ele" tanto, eu andava bem disposto. ri por dentro, indulgente, das Sorria, fazia assim [encolhia os perguntastontasqueosmédicos ombros], dizia 'deixa lá', e não lhe dirigem: se lhe apontam um acabavaafrase." relógio - e fazem-no vezes sem E o homem insiste: "Eu era conta, e fazem-no todos os médi: dócil, muito bem disposto. Evi­cos que o visitam - responde, dentemente quem não tem me­cordial, que é um fato de banho, e mória não tem capacidade de fica a pensar lá por dentro que es- responder. Não equaciona Foi aí tão a tratá-lo como um garoto, que eu aprendi que a memória é quegenteestranha a coisa mais sagrada que uma

"Ele" fixa com intensidade pessoa tem." os olhos dos homens que apare- Tinha uma atitude passiva, cem no quarto, e dos homens em tolerante, eu não tinha a mais especial porque já reparou num pequena impressão de que aqui­pormenor curioso: só os homens lo era uma coisa grave. Sabia que choram quando olham para ele. aquilo não estava bom, que era

Agora é Cardoso Pires a ex- uma crise e tal. Aceitava com cal­plicar, passado um ano e meio: ma e sem a menor angústia, qua­"Aquilo não me impressionava, se desinteresse, as minhas inca­porque havia uma frieza total, pacidades. Eu pegava num jor­não tinha afectividad~ por nin- nal, olhava, queria ler, via logo à guêm. AS pessoas chegavam, eu primeira abordagem que não estava porreiro com eles, como conseguia, punha de parte e fica­uma pessoa estranha que eu te- va porreiro." nho que tratar bem. Sabia que ti- Só quando eu começo a me­nha relações, por fim já tinha a lhorar aí é que eu começo a pen­percepção que era um acto de sar mas é outra coisa: eu estou a amizade terem-me visitado, ha- caminharparaaloucuraEissoé via ali qualquer coisa que me era que me começa a absorver, quan­grata Mas quem eu vi a chorar do "aquilo começa a abrir. Mas, é foram três homens. Nenhuma engraçado, sentia-me num mun­mulher, nem a minha mulher do de trevas brancas, aquele hos­nem as minhas filhas, chorou à pital era tota1mente branco." -minha frente. Mas lembro-me ...- Passou então a aperceber-se perfeitamente do Manuel Bri- de que vivia entre dois outros ho­to, da Galeria 111, agarrado a mens, doentes como ele, queespe­um lenço e eu a ver as lágri- ravam vez para ser operados. E mas." foi uma revelação: de um lado, o

"Ele" está também a pas- senhor Delfim, empreiteiro, que sear no corredor do hospital e sabia perfeitamente que Cardoso vê uma palavra escrita sobre Pires era escritor porque tinha uma porta. Estranha ver ali comprado uma vez um livro cha­- que raio - caracteres cirí- mado "O J;:>elfim". Do outro lado, licos, então há aqui coisas es- o senhor Alvaro, comerciante da critas em russo, pensa. Per- Nazaré. Fizeram-lhe boa compa­gunta à mulher o que diz nhia, ao ponto de o escritor dizer aquele letreiro. "BANHOS", agora,aindaariràsgargalhadas: responde ela Só que o que Aquilo era uma tourada, os dois "ele" vê, distintamente, são o tinham piada aos pontapés. O B e o N ao contrário, e portan- Solnado e o Herman José ao pé to cada vez que ali passa vê daquilo perdiam. Era um carna­distintamente a palavra rus- val. Dois homens que estão para sa, já esquecido do que a mu- ser operados aos miolos e não pá­lher lhe leu. ram de dizer piadas, da maior

"E d' il" uera oc Para a escrita do livro, Jo­

sé Cardoso Pires não quer a ajuda nem as explicações de nenhum médico, nem mesmo dos que de mais perto o acom­panharam. "Porque o livro só pode ter piada se for escrito por um tipo analfabeto do seu ~Há tratados médicos perfeitos, a esse nível o livro

crueldade, um ao outro." Feitas as contas ao que acon­

teceu nesses oito dias, Cardoso Pires guarda a estranheza de um mundo sem memória. sem au­gústia, sem nomes. E por falar em contãS, agora "ele" está ares­ponder a uma médica que lhe pergunta: "Onze menos nove quantos são?" E "ele": "Nada". "Nada?!" E "ele", com um sorri­so: "Qualquer coisa noves fora, nada.'_'•--