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Sempre considerei um desperdício o fato de as produções textuais realizadas em sala de aula servirem apenas como um meio para se obter uma nota. Apesar

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Sempre considerei um desperdício o fato de as produções

textuais realizadas em sala de aula servirem apenas como um meio

para se obter uma nota. Apesar de alguns textos, talvez a maioria

deles, revelarem essa intenção finalística, ao longo dos anos, como

professor, deparei-me com verdadeiras obras literárias que, em

retorno, recebiam apenas uma nota dez e um comentário elogioso.

Porém, um texto deve ter sempre uma finalidade social. Sem ela, é

algo absolutamente estéril.

O “empurrãozinho” que faltava para, pela primeira vez,

dividir com a comunidade ligada ao Colégio Integral um pouco daquilo

de que nossos alunos são capazes foi uma excelente narrativa criada

por uma aluna da primeira série do Ensino Médio. Tive, sinceramente,

●●● PRÓLOGO ●●●

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vontade de repartir com outras pessoas aquela experiência.

Para concretizar esse projeto, foi necessário definir “as

regras do jogo”: contos de uma página digitada, com tema livre.

O resultado desse impulso inicial mais as limitações

decorrentes das regras do concurso vocês poderão conferir nas

próximas páginas, um misto de técnica e liberdade, um paradoxo que

guia as nossas aulas sobre descrição e narrativa. Se algum ou alguns

desses alunos se tornarão escritores, isso vai depender muito mais da

vocação de cada um do que daquilo que as pessoas chamam de

“talento”.

Aproveitem a leitura!

Mauricio Niwa – Professor de Redação do Ensino Médio do Colégio

Integral no ano de 2013.

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1989. A tão esperada música começou. Exagerado era o

sucesso do tão querido de Valentina. Ela sentiu um frio na barriga, e a

guitarra começou a tocar. E uma mão começou a tocar a mão dela. Era

um menino, com cara de criança, mas barba de gente grande. Enquanto

admirava ele e tentava entender o motivo de sua mão estar na dela,

escutava aquela música, aquela frase que ela tanto queria dizer a

alguém, "amor da minha vida, daqui até a eternidade", e, enquanto ele

olhava pra ela, o menino disse "nossos destinos foram traçados na

maternidade”. Em seguida, disse "Prazer, Pedro". E, no fim da música,

Cazuza disse, pediu, suplicou: todo o amor que houver nessa vida pra

vocês.

E eles simplesmente acataram.

Valentina se definia como uma menina normal, uma

menina qualquer. Com cabelos escuros combinando com os olhos, 05

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ela tinha como intuito apenas fazer alguma coisa com a vida dela.

Pensava em como deveria ser ruim morrer sabendo que a vida dela

nunca havia sido útil, não ser lembrada por um feito monumental, ou

por qualquer feito. Tinha medo de ser esquecida. Tudo o que ela queria

era ter a sorte de um amor tranquilo. Ganhar ou perder, sem engano.

Pedro era o tipo de moço seguro. Sabia quem era, sabia do

que gostava. Ele tinha cara de mau, mas era só cara, aquela barba

conseguia esconder por meio segundo quem ele era. Seu olhar era o

tipo de olhar que mostra o interior, transparece tudo o que há por

dentro. Era um cafajeste, confundia as coxas das moças, inventava

desculpas, provocava brigas, ele era o típico “esse daí não tem jeito”.

Mas ele teve jeito. O seu jeito estava na Valentina, e o dela,

nele.

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Eles eram Eduardo e Mônica do Renato Russo. Eram João e

Maria de Chico Buarque. E se conheceram no show do Cazuza.

Saíram do show, de mãos dadas ainda. Não entendiam, não

queriam, não sabiam como. Naquele momento, eles estavam adorando

aquele amor inventado. E eles adoraram aquele amor inventado por

muito tempo.

Fizeram tudo o que eles queriam. Viajaram e

experimentaram de tudo. Viveram aventuras que valeram a vida toda.

Valentina finalmente sentia aquilo, aquele era seu feito. Seu feito era

viver com Pedro. Com ele, ela sentia como se tudo o que ela precisava

pro dia nascer feliz era ele do seu lado. Ele já não pensava assim. Pedro

era um espírito livre, e Valentina era o seu porto. Ele mesmo era seu

próprio porto-seguro.

1990. Cazuza falece. A música deles nunca mais tocou. 07

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“Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida.” A

primeira e a última frase de Pedro foram do ídolo de Valentina. Pedro

conseguiu fazer dela a pessoa mais feliz e a mais triste do mundo.

Conseguiu mudá-la de partido, fazendo-a aderir ao coração partido. Às

vezes ela odiava-o por quase um instante. Às vezes pequenas porções

de ilusão eram a dose certa para que ela ficasse bem por um tempo. Na

dose errada, poderia matar a pobre Valentina. O amor deles ninguém

mais inventava. Os dois nunca mais teriam sua hora da sessão coruja...

Só entende quem namora. Agora o mundo inteiro iria dormir, e ela

acordar. “Meus heróis morreram de overdose” cantava ela “e eu serei a

próxima”.

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E se te dissessem que você só tem mais 24horas de vida?

Pra onde iriam seus pensamentos? Você se sentiria um pouco confuso,

certo?

Era assim que estava me sentindo quando a voz fria e

calculista do médico pronunciou as palavras. Ele estava indiferente, já

estava acostumado a falar esse tipo de coisa, não se importava, ganhava

com isso. Agradeci a ele por ter me acompanhado no caso e me

despedi pela última vez.

Saí do consultório meio atordoada, como se tivesse levado

um soco na cara. Vi pessoas impacientes na sala de espera reclamando

sobre atraso, tempo. Foi nesse momento que a minha ficha caiu, 24

horas era tudo o que me restava. Depois de passar pela porta da clínica

decidi ir para o parque e sentei em um banco. Observei as famílias que

estavam fazendo piqueniques com as crianças brincando de pipa. 10

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Pensei em ligar para meu irmão, mas desde a morte de nossos pais só

nos comunicamos uma vez, no Natal passado, quando trocamos votos

de boas festas. Fora isso, nada. Acho que não farei muita falta pra ele.

Tentei lembrar a minha infância, mas não consegui, tudo o que lembrei

foram os últimos anos, que, apesar dos pesares, foram os melhores

anos da minha curta vida. Mas não adiantava mais, pra que serviriam

minhas conquistas materiais?

Fiquei duas horas lá naquele banco só viajando no

pensamento. Precisava fazer algo mais útil... Mas são tantas as coisas

que sempre quis fazer, como um curso de culinária, ler o dicionário

inteiro, pular de paraquedas e tantas outras coisas insignificantes. É

claro que nada disso faria sentido agora, mas o que faria? Peguei meu

celular e disquei para o único número que me veio na cabeça, meu

amigo de tempos, fazia mais de cinco anos que não falava com ele. 11

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Quando ele atendeu, não contei a minha história, só o

chamei para passear, e, como sempre, não me decepcionou. Dez

minutos se passaram e ele já estava ao meu encontro. Fomos tomar um

sorvete e conversamos sobre tudo, e ele conseguiu me fazer rir. Estava

ficando tarde, nos despedimos (nessa hora me segurei pra não chorar)

e agradeci por tudo. Ele ficou meio sem graça e riu. Ele conseguiu tirar

todo o meu pesar de dentro, até me esqueci do que me esperava. E

dezoito horas me restavam ainda. Me recusei a dormir, como muitas

outras coisas que não fariam sentido. Então fiquei pensando onde seria

o lugar perfeito para me despedir desse mundo. Viajei para praia

escutando meus CDs preferidos.

Cheguei ao meu destino. Entrei no mar e senti aquela água

gostosa da madrugada. Não tinha ninguém por perto. Senti-me

solitária, mas no fim é assim, ninguém iria comigo. Lágrimas 12

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escorreram pelo meu rosto. Mas sentia paz. Espero que tudo o que

tenha feito tenha valido a pena. Fechei os olhos, não acordei mais.

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Era uma vez uma dama, decepcionada depois de tanto

procurar por seu ”príncipe encantado”, aquele que deveria tratá-la

como uma verdadeira dama, e ser seu pra sempre, mas só procurou nos

becos errados, se meteu nas piores encrencas em que uma dama

poderia se meter, agiu de maneira deselegante e só acabou

encontrando o “vagabundo”. Por outro lado, o verdadeiro príncipe,

disfarçado de vagabundo, não fez muito diferente, foi atrás de sua dama

no lugar certo, mas acabou só enxergando a dama que um dia o

deixaria desiludido.

Agora os dois, dama e vagabundo, andavam

desesperançados, de coração fragmentado, mas, por uma breve

eventualidade que alguns podem até chamar de destino, cruzam seus

caminhos, sem nem ao menos pressupor que acabariam entrelaçando

os pequenos cacos que haviam sido derrubados ao chão. 15

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Porém ainda eventualmente as lembranças do lamentável

ocorrido antes entre um e outra persistia em se manifestar. Mas nesse

meio tempo que se ajudavam a ultrapassar esse obstáculo, já não

conseguiam mais se subjugar e se perceberam enamorados, entretanto

um romance seria delicado demais para ambos.

E talvez fosse melhor parar de relutar, aceitar a direção que

lhes fora concedida. Ou será que o medo de ambos serem feridos de

novo falaria mais alto? Já que estavam vulneráveis a toda mágoa

novamente.

O tal vagabundo não teve dúvidas, decidiu se aventurar,

jogou fora sua máscara e tomou posse do seu verdadeiro cargo. Agora

como príncipe, estava certo do que queria, estava disposto a lutar pela

dama, que ainda se sentia insegura com toda a situação.

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Mas ele esbanjava habilidade em deixá-la menos incomodada, inquieta.

Esse é apenas o início de um conto que tem muito a ser

analisado, que deixa muitas dúvidas sobre seu desfecho, permitindo

que cada um possa descomedir-se da imaginação para simular um final

desejado.

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Tal como o poder de uma espada que é não tirar vidas, mas

poupá-las, o de um pincel é o de deixar em branco.

Eu estava em meu estúdio, modesto como um berçário e

detalhado com as mais simples trivialidades – eu entre estas. Ficava em

um antigo edifício de Curitiba e era um cômodo pequeno sobre o qual

uma janela grande, circular e translúcida deixava escorrer a luz

recortada das quatro da tarde. À minha frente se prostrava,

monumental como uma estátua em seu plinto: noiva, esposa, irmã,

filha, mãe, musa, melhor amiga, deusa; obra de arte. Fosse qual fosse o

amor que nutri por tal, era puramente platônico. Desenhara-a por

horas, mimara em demasia cada fio de seu curto cabelo dourado, cada

sombra em sua pele, cada traço de seu rosto. O duelo já fatigara e

estava prestes a terminar desferindo minha pincelada final, até que fui

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impedido de o fazer ao chegar em seus olhos que, se pudesse, faria

castanhos. Modigliani apenas pintava as janelas de quem a alma vira.

Como eu podia ousar retratar as de algo, alguém, cujo ãnimã era

essencialmente branco? Ela me fitara sem me ver e rogara por

clemência, coisa a que em nome da virtude, cedi.

Piedoso, larguei-a incompleta. Em suas fossas abissais as quais

não inundei com oceano algum de aquarela cor-de-mel, pude ver

sangrar sem deixar rastros a poesia: “Tende misericórdia e me inacabai,

não obliteres meu cintilante vácuo com estrelas, oh, deixai-me ser bela

por mais tempo.” Tamanha foi a inexpressão de asco e alívio em seu

rosto que, admito, até me comovi. Enfim, nossa almejada anistia.

Elucubrei sobre os recursos naturais que se tornavam escassos,

notando neles o nada que, até muitíssimo pouco atrás, tanto tínhamos

em abundância. 20

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E agora, quanto dele ainda nos sobrara? Sou desses que disfarçam

quando observam uma dama voluptuosa, mas não o pude fazer quando

mirei os olhos de minha criatura, minha coisa, meu quadro vaidoso, e

me perguntei se eu poderia extrair aquele vazio e dele fazer tinta, quem

sabe vendê-lo. Mas não, tamanha riqueza não podia ter preço. Tal

espaço não podia ser maculado com estrelas.

Sábado ensolarado na Rua XV, busco alguém que pareça capaz

de adotar. Avisto um homem beirando os 36, loiro de olhos castanhos.

O chamo e deixo claro que não estou apenas distribuindo um panfleto

qualquer, mas um nada qualquer. Aproxima-se e lhe dou a obra-prima

que deixei de pintar. Surpreende-se, como um anjo ao descobrir em si

mesmo humanidade, que tem sexo e órgãos, que pode sangrar e,

enfim, estou livre.

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Julia é uma mulher tão tranquila, que acaba deixando a

vida passar sem questionamentos, apesar de ter muito a dizer; ela é

uma professora e todo dia sai de casa no mesmo horário, trabalha,

almoça sempre no mesmo restaurante e volta para casa. Já Rodrigo é

um homem de metas, que corre atrás do que acredita e é louco para

sair do Brasil, pois para ele seu país não presta e não tem conserto.

Certa vez, Rodrigo encontra sua velha amiga com quem

começa a conversar:

- Olá, Julia, como você está? Ainda se lembra de mim?

- Oi, eu estou bem. É Rodrigo, né?

- É, eu mesmo... Então, tá a fim de tomar um café?

- É, não sei, hum, pode ser. É, sim, quero.

Ao chegarem ao café, na televisão está passando uma

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reportagem falando de protestos que estão ocorrendo pelo Brasil todo.

Rodrigo começa seu discurso:

- Tá vendo isso? Tem gente que ainda acredita que o Brasil

pode mudar. São um bando de ignorantes.

- Por que você acha que o Brasil não pode mudar e por que

“ignorantes”?

- É simples, o Brasil tem os piores governantes, a pior

educação, os piores profissionais da saúde e uma péssima segurança,

sem falar no povo que decide sair nas ruas, acreditando piedosamente

que vão fazer a diferença, quando na verdade o governo vai dar algo

que eles querem para acalmá-los, para depois continuar roubando e

nos fazendo de trouxas.

- Você não pode estar falando sério. Todos diziam que o

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povo brasileiro era acomodado e ignorante, agora eles finalmente estão

vendo que não é assim. Nós nos levantamos de nossos sofás, cansamos

de ficar quietos, resolvemos ir para as ruas clamar pelos nossos direitos

e mostrar que nós não somos ignorantes, que na verdade nós somos

um povo forte e temos a noção de que podemos fazer a diferença.

- Tá, você acha mesmo que o nosso governo vai mudar, vai

investir na educação, vai se preocupar com a saúde das pessoas?

- Eu sinceramente não sei se vamos conseguir fazer uma

revolução tão grande, o que eu sei é que esse é um caminho muito

longo que o Brasil terá que percorrer e sua força e determinação é que

fará a diferença. O Estado já está assustado, eles realmente não

esperavam uma atitude dessas do povo, porque nós conseguimos

mobilizar todo o Brasil e até as pessoas de outros países estão se

juntando para protestar. 25

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- Eu admito que o governo esteja assustado, mas você acha

mesmo que o Brasil vai para frente com esses protestantes que só

destroem as ruas? Que jeito é esse de pedir por melhorias? Por isso,

acho os EUA um país de primeiro mundo. Eles têm protestos civilizados.

- Você só pode estar louco! Você devia prestar mais

atenção ao que está acontecendo, os protestos estão sendo civilizados,

mas é claro que não dá para impedir os baderneiros de irem. E da onde

que o EUA não têm esses problemas? É claro que lá também tem .

- Tudo bem, você me convenceu, Julia. Não tenho mais

argumentos, mas ainda acho que isso não vai dar em grande coisa.

Bom, tenho que ir, tchau.

- Ótimo, também tenho que ir. Tenho um protesto agora de

que eu quero participar, tchau.

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Quando Julia chega ao protesto, vê tanta gente junta que

não consegue discernir quem é quem, porém avista uma pessoa,

Rodrigo (ela dá um sorrisinho). Afinal, ela conseguiu fazer algo pelo

mundo, mesmo que tenha sido pequeno.

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Me lembro bem daquela manhã. Era terça-feira, inverno,

fazia um frio daqueles de congelar até os pensamentos, apesar do sol

gostoso que brilhava num céu muito azul. De longe, do balcão da

floricultura, eu via a velha mais linda desse mundo. Naquele dia, ela

velava, na capela escura, seu único filho.

Decidi me aproximar. Ela passara a noite sozinha, sentada

ao lado daquele corpo sério, quase mal-humorado; talvez estivesse

precisando de um café. Me demorei cruzando parte do cemitério,

aquele lugar me trazia uma paz única. Não pense que eu gostava de

estar entre os mortos, por favor! É que o cemitério tinha cara de jardim.

Nada de mausoléus nem túmulos à mostra; tudo que se viam eram

lápides, todas iguais e perfeitamente posicionadas umas ao lado das

outras, e todas, sem exceção, enfeitadas com flores coloridas e muito

vivas, alegrando os corpos sem vida que tinham aquele lugar como 29

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sua última morada. Entrei na capela. Logo de cara, dei falta das flores.

Por que aquela mulher não havia levado flores ao rapaz? Fiz o sinal da

cruz à enorme imagem de um Jesus Cristo crucificado que jazia junto à

cabeceira do caixão e ofereci café à senhora dos cabelos muito brancos.

- Vi a senhora de longe, sou dono da floricultura, logo ali. A

senhora quer um café? Pensei que talvez estivesse precisando... Meus

pêsames pelo moço.

- Seus cabelos são quase tão brancos quanto os meus, deixe

disso de "senhora", que Ela está no céu. Agradeço pelo café, mas, por

agora, nada desce. Ele era meu único filho...

- Sinto muito. Acho que a hora do enterro está quase aí. Se

a senhora quiser, eu lhe faço companhia.

- Aceito e agradeço. Vou precisar de flores também... Mas

nada de cores, por favor. Quero rosas brancas. 30

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Me afastei, escolhi as rosas brancas mais bonitas e levei a

ela, que já estava de pé na frente do fundo buraco onde seu filho seria

enterrado.

Por meses, ela visitou o filho religiosamente, todos os dias

pela manhã, perto das nove horas, horário em que ele fora enterrado.

Antes de caminhar até a lápide do rapaz, ela passava pela floricultura,

comprava uma rosa branca e conversávamos um pouco. Esses minutos

na companhia dela se tornaram a alegria dos meus dias. No auge dos

meus quase setenta anos, pela primeira vez eu parecia um adolescente

apaixonado pela menina dos olhos!

Um dia, lá pelo fim da primavera, ela não apareceu.

No dia seguinte, lá estava ela, onde meses antes, era velado

seu filho. Estava serena, pálida, quase sorria dentro do caixão coberto

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por rosas muito brancas. Passei a mão por seus cabelos. Não podia

acreditar.

Depois de algumas lágrimas, uma senhora pequena se

aproximou e me entregou um bilhete. Disse que a irmã já estava doente

há tempos, e que esperava pela morte certa. Tinha lhe falado sobre

mim, e mandou que ela entregasse o tal bilhete depois que estivesse

morta. A tal senhora me contou que a irmã havia tirado a vida do

próprio filho pra não ficar sozinha do lado de lá. Queria ter companhia.

"Espero que você me entenda. Não queria ficar só, levei

meu filho comigo. Me sentia como uma rosa branca, bonita do seu

jeito, mas não exuberante nem vistosa como uma vermelha. Aos seus

olhos, me senti a mais vermelha das rosas. Agora, te espero do outro

lado. Espero que você não se demore."

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Foi o suficiente para mudar o rumo dos meus dias. Como

ela, agora eu esperava pela morte, ansioso. Se o cemitério me trazia

paz, por que a morte não a traria?

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Minha vida toda estive sozinho. A companhia que tenho

são as palavras de minha mãe. Ela nunca fora uma pessoa carinhosa,

não falava muito e, por ter oito filhos, era uma mulher cansada que

parecia desprovida de alma... A única vez que se dirigiu a mim foi para

me dizer:

-Compre três pães.

E assim o fiz. Fui até a mercearia e comprei três pães para

mamãe. Eu só tinha seis anos...

Na volta para casa estava mais feliz do que nunca. Talvez

mamãe me desse um beijo por ter comprado pães para ela. Foi então

que vi, na frente de meus olhos, a pipa mais linda que jamais vira. Sem

pensar duas vezes, saí correndo atrás dela com meus sapatos quase

sem sola pela estrada de barro. O vento soprava a pipa cada vez mais

longe, o saco de pão escorregava de minhas mãos. 35

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A pipa prendeu em uma árvore muito alta, na qual eu e meus irmãos

subíamos depois da missa da igreja ali pertinho.

Olhei para cima, e uma gota de água caiu bem no meio de

meu nariz. Aquela foi a primeira de muitas, o céu começou a chorar.

Espantado, olhei para o saco de pão que se derretia, e, aos tropeços,

corri o máximo que pude pela lama que não tinha fim até chegar em

casa. Percebi os pães úmidos, notei uma vela acesa no quarto de minha

mãe, o que não era muito comum... Já anoitecia e, chorando assustado,

já sentindo a cinta de meu pai me espancando, entrei em casa.

Escutei minhas irmãs chorando e soluçando... Perguntei

então o que havia ocorrido. Elas me fitaram e abaixaram a cabeça: “Vá

até o quarto de mamãe e faça silêncio”. Com o coração apertado, subi

as escadas e fui cabisbaixo até a porta do quarto. Bati três vezes. Meu

pai abriu... Na cama pude ver minha mãe, tão fria, tão triste e tão 36

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sozinha, agora sem alma nenhuma. Aproximei-me e segurei a sua mão,

dei um beijo nela, que fechou os olhos marejados, fazendo assim duas

lágrimas uniformes escorrerem por sua face angelical. Ela nunca disse

que me amara, isso agora não me importa também, alguns dizem que

isso me afeta... Alguns, como as paredes, os fantasmas de minha

própria consciência.

Falo sozinho pois não tenho ninguém. Minha alma se divide

em muitas, me contam histórias, tentam me fazer esquecer da minha...

Mas o que sei, e sempre será desta forma, são três pães em cima da

mesa da cozinha todos os dias. Eu nunca os como, não sei para quem

são... Eles ficam ali me encarando, me julgando, me destruindo. Eles

ficam ali me encarando, me julgando, me destruindo. Nunca pensei em

comê-los. Nunca pensei em deixar de comprá-los. Há 65 anos eles estão

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sempre comigo, faça chuva ou faça sol, sempre secos, assim como eu,

sem amor, sem carinho, sem mãe. Depois de sua morte, voltei até a

árvore onde a pipa havia ficado presa e a guardei. Na missa de sétimo

dia, levei a pipa até o alto da mesma árvore e a soltei. Podia ouvir o

badalar dos sinos levando mamãe para um lugar melhor. A pipa voou

alto e eu nunca mais a vi.

Esta noite escrevo essa história, que tanto já mudou por eu

tanto duvidar, porque já estou velho e nada vai me impedir de logo

morrer.

Tive um sonho esta noite, estava chovendo e ouvi um

barulho na janela do quarto, lá estava a mais bela pipa. Eu a recolhi e,

assim que a toquei, ouvi uma voz atrás de mim me dizer: - sabia que

você era capaz, meu filho, muito obrigada.

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A fumaça complementava da mais bela forma o aposento.

O cheiro do cigarro assolava as narinas da pequena como de costume.

A vitrola rodava.

Um som tão leve quanto o cantar dos pássaros, que há

muito não mais ouvia. As notas, uma por uma, tom por tom, em um

ritmo típico de Paris. Via sua curta vida passar.

Cada momento.

Lembrava-se dos parques em que costumava brincar, seus

jardins coloridos por flores.

A vitrola rodava.

Cada nota uma lembrança.

Uma lágrima.

E na pausa sentia. Aquelas pausas nas quais se prende a

respiração. 40

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O cheiro do cigarro some por um instante.

Talvez o momento mais precioso. Longo, quem sabe essa

pausa seja, de tal forma, inexistente, por perder-se em seu próprio

silêncio.

Vida, a vitrola continua a rodar.

Tudo passa rápido demais, um turbilhão de pensamentos,

todos atados pelas notas.

Ligaduras.

A vitrola para.

O forte aroma de cigarro toma seu espaço novamente,

formando formosos desenhos nas estantes, aquelas, completadas com

livros que nunca foram lidos.

A pequenina finalmente volta a si.

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Uma saudade imensa apossa-se de seu pequenino corpo.

Apossa-se de tal maneira que seu sorriso nada mais é do

que apenas a saudade de ser.

Ser quem ela realmente é.

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Travis havia falhado. O vermelho das suas mãos estava

escondido pela lua. Este vermelho debochava de sua cara por ali ficar,

sujo com a heroína e a AIDS de sua vítima. Esta também fazia sua

contribuição, utilizando-se de morfina e senso de humor.

Seu filho, fecundado havia dois meses, precisava ter

responsabilidade e consciência dos seus atos. E Travis, como um bom

pai, buscava limpar a casa antes da visita de seu filho ao mundo,

tentando se livrar da escória que contamina a sociedade.

Um flash ocorreu e estava em casa. Talvez sua mãe devesse

tê-lo chamado de Tyler. O vermelho brilhou quando a porta do

banheiro foi aberta, revelando também um pote de Tylenol vazio e uma

brisa de fusão d’água. Ao sentir o salgado gosto das lágrimas da

barriguda que da porta surgira, percebeu que ele não fora uma boa

faxineira. 44

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Com seu cérebro ativo, uma memória de doze horas

lembra-se do drogado, Renton, falando que seu agressor era mais sujo

que o próprio. Talvez Renton estivesse certo e Tyler merecesse morrer.

O rapaz, entretanto, não deixava de se preocupar com seu

filho. Não queria que ele sentisse a mesma dor do pai. Para tentar ser

perdoado de seus pecados, pensou. Era raro o momento em que isso

ocorria, por mais que ele se considerasse um gênio. Seu cérebro

escreveu, inconscientemente, “Rod”, no chão, com seu sangue.

Meses se passaram. A barriga estava grande, e o jogador de

futebol parecia treinar muito. Seus chutes sempre acertavam o mesmo

lugar. Incomodada, a mãe fechou seus olhos...

Vermelho. Não o mesmo que vira no banheiro; era um

vermelho que estava vivo. Um vermelho bem quente, que ardia mais

que uma afta. O prédio formava, em vermelho vivo, um “V”. 45

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A mulher sabia que este era o “V” da vingança de Renton.

Deus poderia ouvir sete bilhões de pessoas distintas, mas o

desejo puro de um pai a falecer se destacou na multidão, e a sua prece

fora ouvida parcialmente. Rod nunca sentiu dor na vida, é verdade, mas

Deus não percebeu a relação entre “Dor” e “Rod”. O que o pai desejava

era nada mais que seu filho sentisse o oposto da dor: a felicidade.

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Quando ela partiu, o futuro era lindo. Tudo era promessa,

crescimento e possibilidade. Ela sonhava com aquele curso há anos. Era

pouco tempo, a internet nos permitia falar todos os dias. Ia praticar sua

dança em palcos grandes como lagos e bailar como a estrela que

realmente era.

Seria somente por um ano. Alguém a vira dançando,

ganhara uma bolsa, faria um curso. Depois voltaria.

Eu não queria. Não queria a distância dos seus encantos.

Chorei, mas aguentei. Compus canções tristes, segurei, até que não

pude mais. Não quis esperar que a vida me obrigasse a acompanhá-la.

Fiz por onde, busquei uma maneira, fiz das tripas coração para ir

encontrá-la. Vendi meu talento e minha alma para comprar a minha

passagem e passei o último mês com ela. Juntos, eu poderia cantá-la,

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convencê-la a voltar comigo à nossa casa e à nossa vida.

Agora vejo claramente que, quando eu cheguei, ela brilhava

diferente. No momento, pensei que era alegria de me ver e tristeza por

estar acabando o seu tempo naquela cidade. Alice era só um fantasma,

mas eu achava que era uma ninfa.

Mesmo fantasma, resolveu me acompanhar no caminho de

volta à vida.

Aproveitamos, nos despedimos da vida lá, empacotamos a

casa. Ela me contou tudo o que vivera, as aulas, as pessoas que

conhecera. Tinha novos amigos que levaria para o resto da vida. Eu

estava realmente feliz por tudo aquilo. Ela se sentia feliz, e eu também,

porque era cego e só olhava para frente. Era uma experiência boa, e eu

não via nenhuma razão para impedi-la disso.

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Só olhei para trás uma vez. Se tivesse feito mais vezes, teria

visto que ela olhava para trás o tempo todo. Durante aquele mês, na

fuga do inferno, estávamos lutando. Eu, contra o tempo que nos

prendia ali, ela com a balança que pendia, ora por mim, ora por sua

nova vida.

Quando olhei para trás, tudo era sal, nada mais era doce e

não havia mais volta.

Eu era condenado a voltar até conseguir redimir o pecado

de me achar mais importante que todo o resto.

Ela ficou lá naquela cidade infernal, com todo o resto. Eu

fiquei com o vazio.

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Eu tenho pensado sobre certas coisas ultimamente. Coisas.

Coisas são só coisas quando são limitadas a serem elas, que podem ser

tantas. Coitadas, são um vazio na sua abrangência. São tantos tópicos

extensos e minuciosos! É como uma coceira no céu da boca, um ponto

pequeno, mas parece-nos imenso quando precisa ser aliviado. Ou como

um campo de flores. No seu território grandioso, minhas necessidades

estão nos detalhes de cada pétala. A consciência desses pensamentos

surgiu-me no carro, com a minha janela entreaberta e meus cabelos

dançando ao som do vento.

O vento soprava em minha face. Qualquer tipo ranzinza

pediria para que o vidro fosse fechado, vento gelado traz resfriado,

rinite, catapora, conjuntivite, osteoporose e faz mal. Eu, na minha

velhice precoce (ou chatice aguda, porque nem todo idoso é velho),

percebi que aquele vento era bom, e o seu carinho me transformou 52

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em moleca. Pela duração daquele instante, eu era menina, bela, numa

cena de cinema, apaixonada por sabe-lá-quem-ou-o-quê. Eu era

inexistente. O colo da brisa me envolveu em um útero do qual eu não

queria sair, mas, ao mesmo tempo, não tinha essa ideia, eu só queria

sentir. Só sabia que era bom. Fechei os olhos, a visão tapava-me a

sensação. Não havia sons, ou cheiros, ou imagens, ou gostos, era

apenas o intocável tato do vento acariciando os meus cabelos e

beijando as minhas pálpebras. Alguns minutos flutuando em uma

atmosfera neutra acabaram. Eu voltei a ser uma velha, mais nova.

Veio-me que as coisas, que o amor, que o ódio, que a

alegria, que a tristeza, que a riqueza, que a pobreza, que a população,

que o governo, que os velhos, que as crianças, que o colorido, que o

preto-e-branco, e que tudo o mais, são, seja na sua insignificância ou na

sua magnitude, coisinhas. E cada uma dessas coisinhas, são flores 53

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e espinhos. E acho que nosso viver é um campo de flores com espinhos.

Veja a grande imensidão, que de longe é tão uniforme, tão igual e

alienada. Agora, veja também as minúcias, que tornam essa imensidão

tão única como só ela é. Pode ser bonita e pode ser triste. E pode ser

tudo mais. Todas as coisinhas, nem más, nem boas, nem erradas, nem

certas, formam o conjunto. São o campo. Nós somos o campo. Assim

como nós somos o vento, como eu fui a menina e de como sou a velha-

nova. Vale a pena correr no campo para ser pego no colo. Para você,

pode ser rolar e sentir a terra brincando com a sua pele. Essa é a graça,

ter o seu próprio campo.

Posso ter sido tola. Ultimamente a vida tem sido uma

coceira no céu da boca.

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