12
«Sempre que a ciência faz uma descoberta, o diabo aproveita‑se dela enquanto os anjos deba‑ tem a melhor forma de a usar.» ALAN VALENTINE «Como se mata o medo, pergunto‑me? Como se atinge um espectro em pleno coração, como se corta a sua cabeça espectral, como se aperta o seu pescoço fantasmagórico?» JOSEPH CONRAD

«Sempre que a ciência faz uma descoberta, o diabo ... · — Ron, os outros tipos —, todos dependem de ti. E é agora ou nunca: é a tua última hipótese de corrigir o sucedido

  • Upload
    buibao

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

«Sempre que a ciência faz uma descoberta,o diabo aproveita ‑se dela enquanto os anjos deba‑tem a melhor forma de a usar.»

alan valentine

«Como se mata o medo, pergunto ‑me?Como se atinge um espectro em pleno coração,como se corta a sua cabeça espectral,como se aperta o seu pescoço fantasmagórico?»

joseph conrad

11

PRÓLOGO

Poeira carregada de sangue, estilhaços de destroços e lascas de ossos, fumo tão espesso que não consegue respirar nem ver — talvez tenha cegado. O barulho, tão horrível há momentos, vai esbatendo ‑se até ouvir apenas um tump, tump, tump surdo nos tímpanos que depois se dissolve numa ausência de som, como se o mundo tivesse explodido e ele fosse o único sobrevivente.

O fumo desvanece ‑se.Olha em volta e vê automóveis, autocarros e táxis, vê transeuntes

a caminhar, a falar, a rir, a franzir o sobrolho, uns a fumar cigarros, outros a beber café, ninguém parece preocupado, ninguém corre em busca de abrigo, ninguém chora nem grita.

Encosta ‑se a uma parede para recuperar o fôlego.— Então, amigo, sente ‑se bem?

12

Subitamente, o rosto do homem fica focado, os traços suaves e des‑focados tornam ‑se nítidos e demasiado reais, a meros centímetros do rosto dele, trazendo ‑lhe um vislumbre de algo perdido nos confins da sua memória: outros rostos muito próximos, a estudá ‑lo como se fosse um inseto sob um microscópio.

— Eu? Se me sinto bem? Oh, claro. Claro que sim.O homem olha ‑o fixamente durante um minuto, antes de se afastar,

e ele pensa que talvez fosse uma rasteira, o inimigo disfarçado. Mas con seguiu ser mais esperto e dar a resposta correta ao teste. Sabia que era um teste — é sempre um teste.

Endireita os ombros e toca na mochila, para se certificar de que ainda está no mesmo sítio. Tem um trabalho a fazer, uma missão a desem‑penhar.

A rua citadina estende ‑se diante de si como um reflexo distorcido na sala de espelhos de um parque de diversões, mas a imagem não é mini‑mamente divertida e o calor... o calor é irreal.

Logo depois sente frio. O corpo estremece, percorrido por arrepios, tudo está frio e branco, e um odor a químicos invade ‑lhe o nariz.

«... largura de banda... propranolol... péptido...»As palavras não fazem sentido e desaparecem tão depressa que nem

sequer tem a certeza de as ter ouvido.Uma picada de agulha, a picada de um inseto? Subitamente, ouve

um zumbido e sente uma descarga de eletricidade — no ar ou na cabeça dele? —, e o calor espraia ‑se por baixo da pele dele, escorrendo ‑lhe para as artérias, arrastando consigo uma torrente de imagens surrealistas em Tecnicolor; uma realidade crua substituída por outra, corpos a contor‑cerem ‑se e areia transformada em lama, ensopada em sangue.

Tem de chegar lá, tem de salvar o seu melhor amigo, Ron.Mas Ron está morto. Não vi isso acontecer?Vira ‑se para um lado e depois para o outro, e a imagem muda — areia

substituída por ruas citadinas, dunas que se metamorfoseiam em espirais de fumo.

Vá lá. Tu consegues fazer isto. Tens de concluir a missão. Porque todos — Ron, os outros tipos —, todos dependem de ti. E é agora ou nunca: é a tua última hipótese de corrigir o sucedido.

Aguenta, amigo, estou a chegar.De repente, ouve música, uma guitarra elétrica ruidosa e dedilhada

com violência, aquela canção dos Zevon de que o Ron gostava e que ouvia incessantemente, uma e outra vez — «Lawyers, Guns and Money».

13

A paisagem fica virada de pernas para o ar, como um jogo de vídeo de mundos alternados: primeiro uma selva de betão, depois uma sala branca e fria; agora tudo coberto de nuvens cinzentas carregadas e cha‑mas vermelho ‑vivas; explosões, mais sangue, osso e cinzas e, vindos de algures, das profundezas deste caos, gritos lancinantes e choros como queixumes abafados. Mas ele está do lado de fora, a ver ‑se entrar dire‑tamente para o centro daquilo. E, apesar de sentir as chamas na pele e o fumo nos pulmões, não sente absolutamente nenhum medo — a pró pria noção de medo é um mistério.

Tem de chegar lá. Tem de contar a história dele. É essa a missão, é isso que tem de fazer para corrigir o sucedido.

15

1

O tenente Bill Guthrie espalhou as fotografias do local do crime em cima da secretária. — Talvez isto ajude.

Não percebia como poderia ajudar. A vítima parecia um pedaço de carvão.

Olhei de relance para o rosto redondo do tenente do Bronx, para o cabelo esparso que lhe cobria a testa alta e cheia de manchas que imploravam a opinião de um dermatologista.

— E também temos isto. — Guthrie segurou o crânio com o braço estendido, contemplando ‑o como se estivesse prestes a recitar o soli‑lóquio de Hamlet, e, embora não me parecesse algo que um tenente da Divisão de Homicídios do Bronx conseguisse fazer, também não era uma coisa impossível, pois conhecia polícias que já tinham lido Proust e outros que sabiam de cor as letras de todos os musicais da Broad way.

O crânio tinha dois orifícios na arcada supraciliar, ou seja, na testa. Guthrie enfiou o dedo num deles e depois no outro.

— Foram as balas que o mataram. Só o queimaram para encobrir o crime — disse Guthrie, rodando o crânio para o inspecionar.

— Parece muito limpo. Um banho de ácido? — perguntei.— Acho que sim — respondeu. — Isso é a segunda fase, certo?

Ouvi dizer que, na primeira, atiram o cadáver aos insetos, para que retirem a carne que ainda está presa aos ossos. Não sabia disso. Tu sabias?

Sabia, mas não gostava de pensar no assunto.— Então, Rodriguez, achas que consegues?Há muito tempo que não fazia a reconstituição de um rosto, mas

tinha estudado antropologia e arte forenses no curso que fizera em Quantico há quase oito anos. E há pouco tempo fizera um curso de reciclagem sobre análise do perfil osteológico — a identificação

16

de víti mas a partir dos ossos, dos dentes e de mais o que quer que fosse que restasse delas — na Universidade de Fordham, aqui em Nova Iorque. Além disso, ao longo dos últimos cinco anos, e a título parti‑cular, dedicara ‑me ao estudo da antropologia forense, em especial no que respeita ao crânio e à forma como este molda o rosto. O tema despertou o meu interesse depois de ter feito uma visita à «quinta dos cadáveres», em Knoxville, no Tennessee. Não posso dizer que me tenha agradado ver — ou cheirar — os cadáveres em decomposição espalhados pelo Campo da Morte, como lhe chamava o seu funda‑dor, Bill Bass, mas aprendi imenso sobre o corpo humano, por dentro e por fora.

Tirei o crânio das mãos de Guthrie e observei ‑o, constatando que metade dos dentes tinha desaparecido ou estavam partidos, o que difi‑cultava ainda mais a minha tarefa. Creio que uma parte de mim estivera à espera desta oportunidade.

Comecei a fazer uma lista mental dos materiais de que iria pre‑cisar: barro de modelagem à base de óleo, ferramentas de esculpir, cola de cimento, algodão, zaragatoas, lixa, rede metálica, globos oculares — próteses, caso o Departamento de Polícia me reembol‑sasse as despesas, porque eram caras — ou olhos de boneca — caso não me reem bolsassem.

Observei as órbitas e, por momentos, vislumbrei um brilho azul. Talvez a minha imaginação me estivesse a pregar partidas, mas decidi que os olhos seriam dessa cor.

Guthrie folheou algumas páginas do processo. — Como já disse, não há maneira de identificar a nossa vítima desconhecida. O aparta‑mento onde foi transformado num pedaço de carvão era arrendado ao mês, o dinheiro da renda era enviado para a caixa postal de uma agência imobiliária e as impressões digitais ficaram completamente car bonizadas.

— Pobre tipo. Que faria?— Estás a referir ‑te ao emprego ou ao motivo que levou a que o

matassem? — perguntou Guthrie, encolhendo os ombros. — Vá ‑se lá saber... mas, seja como for, o Rauder quer um rela tório com‑ pleto.

Mickey Rauder era o chefe de Operações. Era agente da Polícia desde sempre e, há muitos anos, trabalhara com o meu pai na Di‑visão de Narcóticos. Tinha ‑me pedido que ajudasse o Guthrie neste caso e eu tinha concordado, porque, sempre que estava com

17

Rauder, ele falava no meu pai e eu ficava tão atrapalhado que con‑cordava com tudo o que ele me pedisse.

— Se o Rauder quer que uma vítima desconhecida seja um caso prioritário, então assim seja — disse Guthrie. — E estou ‑te grato por me ajudares, Rodriguez.

— E os outros moradores do prédio, não há ninguém que possa ter conhecido o tipo?

— Só havia mais um inquilino, uma senhora de idade que morava no segundo andar, mas não sobreviveu ao incêndio.

— Então o teu incendiário é responsável por dois assassínios.Guthrie anuiu. — O edifício ia ser demolido, o terreno foi com‑

prado por um construtor qualquer que tencionava lá construir um arranha ‑céus.

— Um incêndio é uma boa maneira de alguém se livrar dos inqui‑linos de um edifício — disse eu.

— Pois é, mas o construtor está limpo. Ao que parece, tem boa reputação — disse Guthrie. E depois acrescentou: — Ouve, o Rauder contou ‑me que trabalhou com o teu pai.

— Eeh, sim... é verdade.

Surgiu ‑me no pensamento uma imagem do meu pai, caído na rua, morto.

— Bem, o médico legista está à minha espera — disse. — Tem mais informações sobre a vítima que podem ser úteis. — Usei aquela des‑culpa para me pôr a andar, pois não queria ter de ficar ali a falar sobre o meu pai.

18

Guthrie enfiou o crânio num saco de papel pardo e entregou ‑mo como se estivesse a entregar ‑me o almoço.

O médico legista andava na casa dos quarenta, tinha olhos tristes e pele macilenta. O crachá de identificação, com o nome Baumgarten, Adam, estava manchado de sangue. Estava a comer uma san duíche de atum e ofereceu ‑me metade, mas foi ‑me fácil recusar por causa do fedor do formol e dos cadáveres estendidos nas mesas de autóp sias.

Baumgarten trocou a sanduíche de atum por um relatório e disse: — Já tens as informações gerais, não é? Caucasiano, do sexo mas‑culino, cinquenta e poucos anos, pouco menos de um metro e oi tenta.

— Mediste o fémur para determinar a altura? — perguntei.O médico legista levantou os olhos, avaliando ‑me. — Estou a ver

que te tens dedicado ao estudo da antropologia forense. Nem todos os artis tas forenses sabem isso. — Virou uma página do processo da autópsia. — O peso também tem de ser ajustado. Com base na autóp‑sia, pesava apro ximadamente oitenta quilos, mas tens de ter em conta que uma grande quantidade de carne e músculo ficou carbonizada. Eu diria que pesava mais dez a quinze quilos, pelo menos, por isso era para o pesadote.

Fiz uma anotação mental: o rosto da vítima teria de mostrar o peso nos músculos masseteres do maxilar inferior e no músculo platisma do pescoço.

— Não fui eu que realizei a autópsia — disse Baumgarten —, caso contrário teria referido isso no relatório. A vítima foi autopsiada pela doutora Abbott, que entretanto se aposentou e se mudou para Las Vegas com o marido. Não estou a dizer mal da doutora Abbott, a Megan é uma excelente médica, mas como se tratava de uma vítima desco nhecida não deu grande importância ao caso na altura... — Virou outra página. — Resumindo, diria que estamos perante um homem com cerca de cinquenta anos, com excesso de peso e com as artérias gravemente esclerosadas, que não era propriamente um exemplo de saúde.

— Sobretudo depois de alguém lhe ter deitado fogo — retorqui. — Sem dúvida alguma.

— Tens razão — aquiesceu Baumgar ten. — Havia vestígios de gás de isqueiro em alguns dos pedaços de roupa que escaparam ao fogo. — Fe chou o relatório e analisou o crânio que eu lhe trouxera. — É uma pena que tenha perdido os dentes.

19

— Pensas que vale a pena mostrá ‑lo a um dentista forense, a um odontologista? — perguntei.

— Já o fiz — respondeu. — Mas está demasiado destruído para per mitir uma identificação.

Voltei a reparar na glabela, a saliência do osso frontal, e nas arestas pla nas das órbitas superiores, que confirmavam tratar ‑se de um crânio masculino.

— Traumatismo causado por im pacto a alta velocidade — pros‑seguiu Baumgarten, dando umas pancadi nhas nos orifícios provocados pelas balas.

— Do osso frontal para o occipital, certo?— Exatamente, as balas entraram pela testa e saíram pela nuca.Devolveu ‑me o crânio e estendi a mão para o relatório da autópsia.— Desculpa — disse, detendo ‑me. — Não posso permitir que leves

o relatório a menos que tenhas uma autorização por escrito.— Mas foi o Guthrie que me mandou vir cá. Isso não chega?— Não. Preciso da autorização por escrito. Peço desculpa, mas

cumpro sempre as normas de procedimento.Dois paramédicos entraram com um saco de cadáveres, Baumgarten

indicou ‑lhes que o pousassem na mesa de autópsias em aço que estava livre e depois atirou ‑se novamente à sanduíche de atum.

Apanhei o metro para Canal Street e passei uma hora a gastar o salário de uma semana na Pearl Paint, a maior loja de material artístico do mundo.

Quando regressei a casa, um apartamento no Bairro de Hell’s Kit‑chen, fui direitinho à minha zona de trabalho — dois estiradores compridos encostados a uma parede, que formavam um tampo corrido com aproximadamente quatro metros — por cima da qual afixara os esquiços mais recentes que desenhara para a Polícia, uma espécie de «galeria dos mais procurados», bem como estudos de rostos que dese‑nhara para manter a mão e o olho treinados, algo necessário na minha profissão.

Tirei os materiais do saco: uma armação, barro, arame, ferramentas para esculpir madeira e metal, um rolo de amassar em plástico, um calibrador para fazer medições, lixa e um par de olhos de boneca, azuis. Depois fui buscar alguns dos livros que fora adquirindo ao longo dos anos: Osteologia Humana, de William Bass, que o autor autografara pessoalmente na «quinta dos cadáveres»; um livro da auto‑

20

ria de um curador do Departamento de Antropologia do Instituto Smithsonian; dois volumes dedicados ao estudo dos ossos; um livro sobre a identificação de restos do esqueleto humano; um outro da autoria de um bioarqueólogo; e uma obra ilustrada em dois volumes sobre a anatomia facial. Já os lera todos, alguns deles mais do que uma vez.

Por baixo da minha mesa de trabalho, empilhados a todo o com‑primento, havia resmas de livros antigos, os meus cadernos de esquis‑sos dos últimos sete anos, artigos de jornal relacionados com criminologia, ciência forense e atos de violência, bem como todos os cadernos de apontamentos das aulas de ciência forense que frequen‑tara em Quantico, muitos deles já poeirentos e com os cantos desfei‑tos. Ao olhar para aquilo ocorreu ‑me que podia acabar como aqueles irmãos loucos, os Collyer, que tinham sido encontrados mortos no seu apartamento de Nova Iorque, rodeados de toneladas de lixo. Mas, de cada vez que prometia a mim mesmo que iria deitar tudo fora, apercebia ‑me de que, no meio do caos, havia sempre alguma coisa que me fazia falta.

21

Exatamente como aconteceu agora, quando desenterrei o meu velho caderno de apontamentos da disciplina de reconstituição facial e me senti feliz por tê ‑lo guardado. Embora tivesse anotado a explicação de todo o procedimento e feito uma lista dos passos necessários, foram os apontamentos que tirara en quanto procedia à reconstituição que fizeram com que tudo me voltasse à memória.

Comecei pelo primeiro passo: cortar pequenos cilindros de bor‑racha e colá ‑los no crânio para assinalar a profundidade do tecido facial. Trabalhei lenta e cuidadosamente, pensando na espessura dos

músculos e da carne e no excesso de peso da minha vítima desco‑nhecida.

Em seguida medi a distância que vai da córnea à margem late‑ral, apli quei um pouco de cola de cimento e colei os globos oculares nas órbitas do crânio, certificando‑‑me de que estavam firmemente fixados no osso lacrimal e na cavi‑dade ocular.

Embora não fossem olhos verda‑deiros, cumpriam a função e davam à reconstituição um aspeto vivo que não existira antes.

Depois amassei um bocado de barro com o rolo, cortei ‑o em tiras de largura uniforme e apli quei ‑as no crânio da vítima desconhecida.

Estava a entrar no processo e come cei a utilizar as tiras de barro como se fossem de carne.

Comecei a pensar no homem, na vítima desconhecida, e passaram ‑me pela cabeça várias perguntas corri‑queiras: onde nascera, onde cres‑cera? Era como no início de uma relação.

Alisei o barro em redor dos olhos, primeiro com uma ferramenta e

22

depois com as pontas dos dedos, e senti um arrepio. Ainda não se for‑mara um rosto e nada era identificável, mas senti uma presença, como se algo exterior a mim estivesse a guiar ‑me as mãos.