13

Click here to load reader

Sempreviva e a Multiplicacao de Sentidos

Embed Size (px)

DESCRIPTION

analise do romance sempreviva a . callado

Citation preview

  • SEMPREVIVA, DE ANTNIO CALLADO, E A

    MULTIPLICAO DE SENTIDOS*

    Marta Morais da Costa

    Diziam que Callado era o nico britnico nascido em Niteri. Britnico nas suas atitudes, nos seus gostos

    e na elegncia de seu texto. Mas acho que ele era mesmo de uma raa especial de brasileiros,

    hoje tristemente e m extino. outro que vai faltar na barricada.

    Lus Fernando Verssimo, 31 de janeiro de 1997.

    O centro geogrfico do Brasil um gigantesco formigueiro. Nele, a expedio de Fontoura sepulta as esperanas de um pas com sade e sem savas. Quarup exorciza esta incomensurvel frustrao com um aceno luta armada, assumida por Nando ao final da epopia.

    * Gostaria que este trabalho representasse minha homenagem pessoa de Antnio Callado, um intelectual que engrandeceu o pas e me ensinou a diferena entre o que e o que poderia ser o Brasil.

    ** Universidade Federal do Paran.

    Letras, Curitiba, n.47, p. 19-38. 1997. Editora da UFPR 52

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    A leitura da obra fceional de Antonio Callado desfaz a imagem de um eixo da realidade nacional existente numa geografia demarcada e a refaz, prismatizada, em espaos do imaginrio brasileiro. No h menos Brasil em Madona de cedro, em Memrias de Aldeham House, em Concerto carioca do que em Expedio Montaigne, Reflexos do baile ou Sempreviva. Seja como contista, jornalista, romancista ou bigrafo, Antnio Callado continua a falar, sempre, do Brasil, um pas dolorido, uma cicatriz de sonhos desfeitos, uma esperana recoberta pela runa e pela degradao.

    Em sua derradeira entrevista Folha de S. Paulo publicada dois dias antes de sua morte, o escritor, amargo e doente, dizia: "Lutei muito, verdade... E no deu em nada. Hoje, eu realmente no acredito em coisa nenhuma que possa acontecer no Brasil ou aos homens, de um modo geral." Essa descrena, contudo, no postulada em sua obra: ao contrrio, a crena no pas sempre-viva.

    No painel que desenhou com cuidados de muralista e conscincia de homem poltico, Antnio Callado encontra o centro histrico do pas num de seus perodos mais cruis : o da ditadura militar ps-64. O embate ideolgico e blico criou terreno propcio ao amordaamento da liberdade e ao exerccio dos instintos mais baixos do ser humano. Dessa lama social emergem figuras hericas mas destroveis e lutas meritorias fadadas ao desastre, que vo se constituir nas efabulaes de seus romances mais importantes.

    Sempreviva, lanado em 1980, quando a distenso poltica j se fazia sentir, trouxe enquanto literatura uma forma sublimada de julgamento dos anos da impiedosa guerra, ento silenciada, ocorrida ao longo do perodo da ditadura. Nele se fundiram duas perspectivas diferentes de narrao: a realista e a mtica. A narrativa se apresenta com a aparncia de investigao e busca somada a uma histria de vingana. E a perspectiva do discurso realista que retrata situaes que poderiam ter sido reais e que guardam semelhanas com fatos da histria poltico-social brasileira. H uma segunda narrativa, paralela, que trata as situaes romanescas simbolicamente, criando um nvel de analogias - e conseqentemente de interpretao - de sentidos acumulados. O objetivo deste estudo apresentar como se integram essas duas perspectivas em alguns fragmentos do texto.

    Recordando rapidamente a fbula de Sempreviva podemos assim resumi-la: Vasco Soares, o protagonista Quinho, sob o disfarce de membro de uma sociedade internacional de proteo vida selvagem, est encarregado de realizar uma reportagem sobre o onceiro Antero Varjo, nova identidade do

    1 SUZUKI JR, Matinas; STYCER, Maurcio. Antnio Callado chega aos 80 e rev obra. Follia de S. Paulo, 26 jan. 1997.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.55-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    ex-policial e torturador Claudemiro Marques, e sobre sua fazenda, La Pantanera, tambm denominada Ona Sem Roupa, situada na cidade de Corumb, no Mato Grosso.

    O motivo verdadeiro, contudo, descobrir se e onde poderiam estar enterradas Corina e Vernica, duas guerrilheiras, assassinadas provavelmente pelo ex-policial. Com o auxlio de Jupira Iriarte, com quem se envolve afeti-vamente, em especial porque ela se assemelha com Lucinda, sua amada, morta pelas foras da represso, Quinho responsvel pela morte de Antero ao usar como estratagema embeb-lo em sangue de ona, o que aula os ces da fazenda, que o estraalham.

    Aps cumprir sua misso descobrindo os corpos na fazenda e vingando as moas com a morte de Antero/Claudemiro, Quinho prepara-se para deixar Corumb com Jupira mas avisado por uma carta, vinda de Londres, da real identidade de Juvenal Palhano, amigo de Jupira. Trata-se na verdade do mdico legista Ari Knut, co-responsvel com Claudemiro pela morte de Lucinda nos pores da tortura. Ao procur-lo para vingar-se, encontra-o morto pela picada da cobra Joselina, animal de estimao de Herinha, filha de Jupira, que tentava ela tambm vingar a morte de seu macaco Jurupixuna, torturado pelo mesmo Antero/Claudemiro.

    Quinho, logo em seguida, assassinado por um dos capangas de Antero, que o vigiava a mando de Ari Knut.

    Na construo desse esboo descarnado do romance Sempreviva j sobressaem algumas estratgias narrativas prprias da obra de Antnio Callado: a histria recente da ditadura brasileira, os comportamentos amorosos, a recusa do heri idealizado, entre outras. Existe, porm, um recurso ao imaginrio coletivo e s narrativas simblicas que introduz um tratamento esttico in-comum aos demais romances do autor. Trata-se da superposio de camadas de sentidos, que criam uma espcie de estrato subterrneo que vem seguidamente luz, que se faz visvel no tecido da enunciao e que constituir um procedi-mento de construo basilar na composio da narrativa. O leitor se ver, ento, pressionado ao resgate de mltiplos sentidos, de fatos e de faces como se fosse Quinho, ele tambm, a desenterrar os corpos de Corina e Vernica.

    Sempreviva inicia com o protagonista se preparando para entrar clan-destinamente no Brasil, via Corumb, aps anos de exlio. Mal sabe ele que estar descobrindo o centro geogrfico de sua vida, seu axis mundi. Acompanha-o a memria de Lucinda, seqestrada de sua companhia dentro de um cinema do Rio de Janeiro. Este o primeiro motivo condutor da trama: o filme interrompido que permanece como se fosse um copo suspenso no ar. A procura por Corina e Vernica repete em Quinho a procura de Lucinda, igualmente desaparecida. Enquanto no a reencontrar, o copo permanecer suspenso.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.57-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    A histria vai sendo contada no compasso temporal das aes de Quinho, entremeadas com as lembranas do passado e com as reflexes interiores de todas as personagens. Trata-se de um narrador mltiplo, pois permite a alternn-cia de vrios narradores-personagens que assumem a posio de narrador em fragmentos em primeira pessoa com caracterizao pela fala, sem necessidade de uma outra voz que o identifique. Desta forma, quando Antero Varjo, que se expressa numa variante escatolgica da lngua portuguesa, ocupa a funo de narrador, o leitor facilmente o identifica, sem necessitar de apresentao. Da mesma forma, Juvenal Palhano e sua linguagem metafrico-potica.

    O tempo da narrao acompanha o ritmo das personagens no tempo presente. O passado somente se tornar conhecido homeopticamente, medida que a memria de cada personagem for atuando. como se, sob o leito da histria presente, corresse um rio subterrneo, de guas profundas e em rede-moinho que, com freqncia, irrompe. A ento os tempos se misturam, as personagens se desdobram em faces e nomes, os lugares se aparentam e o passado no se descola do presente.

    Para orientar a operao de leitura, o narrador retorna sistematicamente a motivos e analogias, acrescentando a cada repetio um novo prisma. Desta maneira, a narrativa v surgir sua unidade pela superposio de camadas de sentidos.

    Quinho personagem obsessiva, revelada em seus cacoetes (o olhar dirigido continuamente para a cicatriz na mo esquerda, o gesto de afrouxar o n da gravata imaginria), na persistncia com que a memria recompe as mesmas cenas, na fixidez da inteno de vingana. Cabe a ele, na solido da busca, proceder descoberta e posterior desenterramento dos cadveres de Corina e Vernica. Este episdio divide o romance em duas partes e desvenda o procedimento basilar de sua construo. Sempreviva trata da revelao do que subjaz, do que est oculto por uma camada de mscaras, de enganos, de tempo decorrido, de memria sufocada. Desenterramento significa, portanto, tanto exumar como tirar do esquecimento.

    A viagem de Quinho atravessando a fronteira em Corumb o incio de um processo de reencontro com o Brasil e com o passado, e se transforma no relato de como se pode retomar o filme interrompido, completar a trajetria do copo rumo ao cho, retomar comportamentos e natureza pretritos, entrar na "sinuosa parbola do tempo2". A viagem, portanto, no espacial e sim temporal e psquica. O adentrar em casas significa reviver o passado. La Pantanera

    2 CALLADO, Antnio. Sempreviva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 155. A partir deste momento todas as citaes desta obra sero acompanhadas da abreviatura SV, seguida do nmero da pgina em que est o trecho citado.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.58-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    dividida em aposentos mobiliados como salas de delegacia; a casa de Jupira uma espcie de territrio ancestral em que homens e bichos se irmanam em comportamentos e feies; a casa de Juvenal convida a reviver a infncia e o tempo da juventude ( Juvenal, por sua etimologia latina, remete a juvenil, por isso Quinho o considera um redivivo Tio Lulu). Corumb se transforma em eixo do mundo3 , local onde se processa a passagem inicitica do protagonista, do no-saber ao saber, da vida morte.

    Sem essa camada subterrnea, Sempreviva contaria, de uma perspectiva de romance de enigma somado a uma obra de denncia, a histria da descoberta de um crime (o assassinato sob tortura de duas moas) e do castigo a seus assassinos (Antero Varjo e Ari Knut). Seria um romance em que a violncia, maneira de Rubem Fonseca, comandaria todas as seqncias narrativas e os atos das personagens. A diferena se faz no plano analgico pois, medida em que a narrativa caminha, o leitor toma conscincia de que h outros nveis de sentido sob o primeiro enunciado. Ele convidado a 1er as palavras e as frases num discurso paralelo no evidenciado, cifrado num cdigo que s se d a conhecer em decorrncia de um entrelaamento de sentidos anunciados nos silncios do discurso ou na combinao das metforas do texto.

    Analisando os principais motivos associados4 sobre os quais se assenta o sentido de Sempreviva, falemos primeiramente do motivo do copo suspenso que se projeta alm da interrupo causada pela tortura e morte de Lucinda, se estende pelo exlio de Quinho e acaba por significar o silenciamento e clan-destinidade impostos ao pas e a alguns de seus habitantes:

    O me arrancarem Lucinda dos braos me ps, digamos assim, na romaria, na peregrinao, para reatar, no no plano fsico, lgico, mas no de uma libertao que me exigida, aquele momento que ficou, de uma forma muito literal, no espao, feito um copo que se vai estilhaar no cho mas l no chega, gestos e copos e cpulas sem consumao. (SV, p.72-73)

    O prprio texto esclarece que o escuro do cinema como se fosse uma "missa negra" (Sv, p.235), marcando o carter ritualstico e simblico da metfora da separao. Quinho , portanto, um peregrino que busca dar con-

    3 EL1ADE, Mircea. Mito e realidade. So Paulo: Perspectiva, 1972. 4 TOMACHEVSKI, B. Temtica. In: EIKHEMBAUM, B. e outros. Teoria da literatura:

    formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 169-204.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.59-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    tinuidade ao movimento do copo, reconstituir o hiato e vingar a morte da mulher amada, e, de maneira sublimada, reencontrar Lucinda, cujo nome em sua etimologia remete a luz e a iluminada. Do escuro para a claridade, estabelece-se neste momento a relao entre o movimento do copo e a metfora do olhar que implica outra correspondncia, a da passagem do no-saber ao saber 5 . Sua peregrinao se assemelha indispensvel purgao de Delfino em A madona de cedro6, estgio necessrio para que se possa consumar a indispensvel ordem do mundo.

    Uma das maneiras com que a linguagem literria de Sempreviva mani-festa a ligao entre o real e o mtico a multiplicao de formas da metfora dos olhos, com todo seu squito de imagens visuais ou objetos que os prolon-gam, como o binculo, o pincen e a mquina fotogrfica. Este motivo, por sua repetio, se converte em smbolo: "O smbolo vale por sua reiterao. E este emprego repetido que lhe permite dizer outra coisa do que aquela que ele diz e de confirmar este dito. E esta repetio tambm que constitui o ndice e prova de uma emerso do inconsciente."7

    O primeiro momento de impacto o do relato da primeira visita a La Pantanera, quando Quinho registra com o olho da cmera o que encontrou na fazenda de Antero Varjo:

    Eu fingi que tinha esquecido a mquina grande para poder ir fotografando com a outra, de bolso, o que valesse documentar, e quase me perco, abalado, estonteado, entre as onas meio esfoladas, como se estivessem se despindo na hora da morte, onas nuas, sem roupa, como diz o povo, seminuas e semimortas, feito uma, a mais comovente, uma oncinha, que eu acho que mal tinha trocado os dentes de leite, que no mostrava nem furo de bala, s mesmo aquele pico mnimo de faca, de zagaia, no plo sedoso da garganta, como se a oncinha tivesse comeado a se desabotoar antes de ir para a cama, antes de fechar a janela por onde ia entrar o assassino. A, no momento em que j estava ouvindo bem perto o tal de Dianuel rangendo e rinchando, eu, com medo de perder a oportunidade, meti a cmara na cara mesmo da oncinha e quando o olho da mquina piscou diante do

    5 CHAU, Marilena."Janela da alma, espelho do mundo." In: NOVAES, Adauto e outros. O olhar. 3. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 31-64.

    6 CALLADO, Antnio. A madona de Cedro. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 7 "Le symbole ne vaut que par sa ritration. C'est cet emploi rpt qui lui permet de

    dire autre chose que ce qu'il dit et de confirmer ce dire. C'est cette rptition aussi qui constitue lindice et le gage d'une mergence de l'inconscient." (GALLIOT, Jean le. Psichanalyse et langages littraires: thorie et pratique. Paris: Ed. Fernand Nathan, 1977. p. 75. Traduo minha.)

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.60-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    olho dela, que eu achava e jurava que j era um olho bao, de vidro, sem mais lustro nenhum, a saltou da pupila dela aquela chispa que talvez no fosse mais vida mesmo, vida-vida, como que se h de saber, mas que eu garanto que era uma fasca de medo, de bicho morrendo no s aos poucos como de medo, e fiquei pensando, sabe, no pster medonho, esse, do olho apa-vorado do bicho... (SV, p. 50)

    No se trata, como a prpria Jupira diz a seguir, de fotos descompromis-sadas com os objetivos de Quinho de descobrir Knut e as moas torturadas. Na verdade, esses olhos amedrontados so os de Violeta e Corina, os de Jurupixuna, os das demais vtimas do onceiro. Os olhos dos torturados polticos. Denunciam a maldade em estado puro, o contato das vtimas com o profundo Mal, que Claudemiro, nome derivado de Cludio, que significa "coxo", no por acaso um dos codinomes do Diabo. So os olhos de Jupira ao enfrentar o lacrau, o olhar de Knut no momento da revelao de sua identidade - olhos de lagartixa a atrair a mariposa Jupira.

    Trata-se de um saber intraduzvel em palavras, um brilho que a vtima registra e perpetua. So os olhos que Jupira evita ver, rejeio expressa numa transferncia sinestsica muito significativa : "os olhos que ela tinha medo de ver nas mos de Quinho talvez o tivessem assombrado tanto por serem, pare-cerem ou simplesmente lembrarem as circunstncias da morte, ou do cinema, ou da mesa de mrmore, ou..." (SV, p. 69-70).

    O olhar de Juvenal se estende ao pincen, objeto mgico, contaminado pelo poeta das estrelas, Olavo Bilac, seu primeiro dono. Suas lentes refletem estrelas, mas s no momento em que Juvenal, retomando a identidade de Ari Knut, trama a priso de Quinho:

    (...) to emocionado que, num instante em que Ari Knut, num floreio quase de esgrimista, ergueu nos ares o pincen, ele viu, como nos contos de assombros e magias, que as lentes piscavam e pulsavam de estrelas como um cu de serenata. (SV, p. 253)

    novamente o brilho do Mal associado morte, apesar do tom encan-tatrio do discurso do narrador.

    Novo sentido, nesta mesma isotopia, pode ser documentado na asso-ciao com os olhos da serpente e de Herinha. A menina tem "o castanho-mel dos seus olhos, que interrogam os olhinhos das serpentes, mnimos, incapazes

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.61-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    de retribuir a claridade dos olhos dela" (SV, p. 127). Herinha personifica a comunho entre o ser humano e a natureza, unio que lhe permite assumir seu papel de protetora (Hera etimolgicamente significa "a forte, a protetora") no momento em que o equilbrio de seu habitat se v ameaado. E ela quem leva a Juvenal Palhano a chapeleira contendo a serpente que o mata. Quando ela chega casa dele descrita como "clara mensageira, luminosos olhos um tantinho luminosos demais, fatais que seriam um dia, se j no eram" (SV, p. 278).

    A luz, os olhos e a fatalidade novamente se apresentam conjugados. A descrio dessa chegada feita pela voz de Palhano que interpreta a fatalidade num sentido ertico, pois acredita estar recebendo de presente o canrio Ventu-rino, conduzido na chapeleira. O canrio era objeto de prazer para Juvenal que acreditava ser seu canto superior ao de Caruso. O ex-torturador impusera como preo vida de Jupira a entrega do canrio que pertencia a sua filha e que se constitua, com a cascavel Joselina e o macaco Jurupixuna, animais amados pela menina. Entregar Verdurino era morrer um pouco. Por isso Herinha coloca a serpente na chapeleira e a entrega a Juvenal. Ela a mensageira da morte: o leitor sabe disso, a personagem no, e por isso morre. Para o leitor, portanto, a palavra "fatalidade" na frase que descreve a chegada da menina carrega um sentido mortal, ainda mais que o motivo dos olhos precedentemente j se haviam associado ao Mal e morte.

    A serpente, por sua vez, no apenas um motivo associado ao desenlace da ao, um animal mtico. O narrador atribui a ela dois ofcios ancestrais. O primeiro o de simbolizar o tempo e a vida, sentido aclarado pelo texto: "sem sequer olhar de novo a sala onde o relgio-de-armrio parecia no mais descas-car o tempo como uma laranja, numa roda, numa cobra enrolada em si mesma, perigosa e finita: ia de novo em frente, marchando adiante, avante e arriba." (S V, p. 284).

    A esta imagem da serpente, pertencente mitologia universal, Callado acrescenta um segundo mrito, que a aproxima, metaficcionalmente, do con-tador de histrias:

    Joselina era uma cobra costureira e sbia, que (enquanto choca-lhava se estojos de agulhas, as almofadas de alfinetes de ca-becinha) aguardava que Herinha deixasse cair na cesta de costura os retalhos que tinha juntado de conversa de gente grande e -zs! - num segundo Joselina tinha entendido e armado o desenho que contava a histria que, embora feita de remendos coloridos, diferentes entre si, era completa, como uma roupa de arlequim

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.62-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antonia Callado

    (...) os panos de Joselina iam contar a Herinha a histria feita de todas as histrias. (Sv, p. 147-8)

    Esta sbia costureira, esta Parca em forma animal, representa o tempo e a Histria, que, como sabemos, so indissociveis. A cascavel Joselina, metfora do contador de histrias, pode ser lida numa perspectiva mtica, retomando a imagem do que subjaz, da "terra dentro da terra" (SV, p. 165), base da narrativa de Sempreviva. Como a serpente, o narrador deste romance tambm costura retalhos coloridos - monlogos, dilogos e narrao - expressos nos mais diferentes registros da lngua, em tempos que se alternam, em imagens e motivos que retornam insistentemente, para, num caleidoscpio ficcional, envolver o leitor, encant-lo, como o olhar da serpente encanta o passarinho, porque conhece a histria do mundo e dos homens.

    Quando se d a morte de Antero Varjo, devorado pelos ces por ele mesmo ensinados a estraalhar qualquer organismo banhado em sangue de ona, o texto de Sempreviva desvenda novamente seus subterrneos. Desta feita, mostrando sua simetria com narrativas primordiais.

    A morte do onceiro contada em formato coletivo como a se constituir em mais um retalho para o tapete vivo das histrias:

    (...) vindas das ruas, as vozes das criadas, das comadres, dos entregadores, dos marujos e vaqueiros de gua doce (...) reunidas e reforadas pela voz atvica e sapiente, medida em redondilhas para ficar mais fcil de decorar, dos poetas repentistas, dos violeiros, esse imenso coral de cordel, ocupado em vestir de palavras e nutrir de lendas e narrativas auxiliares a fbula que acabava de nascer ali mesmo, em fazenda da regio, num prespio talvez sinistro (...) (SV, p. 288)

    O ttulo do romance Sempreviva aponta, por esta razo, para duas direes interpretativas. Lucinda eterna na lembrana de Quinho que, ao morrer, "teve tempo de ver o copo que afinal se estilhaava no cho. E desta vez ele guardou para sempre, na sua, sem solt-la, a mo de Lucinda, e guardou ela prpria, toda ela, Lucinda perene, perptua, imortal, sempreviva." (SV, p. 289). O romance seria, nesta linha de raciocnio, a narrativa de uma amor eterno, de um encontro amoroso retardado pela violncia da represso e que s se realiza alm da morte.

    Mais forte que a civilizada gravata que o sufocava mesmo sem existir, mais forte do que a cicatriz-tatuagem que o enlaava com o tempo pretrito de

    Letras, Curitiba, n.47, p.55-67. 1997. Editora da UFPR 63

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    caador de pssaros - convertido no presente em caador de homens - era a imagem onipresente de Lucinda. Mesmo Jupira (em tupi, "alimento") s signi-fica alguma coisa para ele porque lembra a amada morta. Ela representa a concretude em que se enlaa, a contraparte carnal daquela que j no . Ao sonhar com a viagem de volta Europa, Quinho tem, lado a lado no avio, Jupira e Lucinda, inseparveis porque iguais. Estar com Jupira recuperar Lucinda em memria.

    Mas a prpria narrativa, ao fundir o real e o mtico, se inscreve como a histria nascida da necessidade do ser humano explicar o Bem e o Mal, atravs da linguagem narrativa, semelhana do que fazem os mitos morais. 8

    Na obra de Callado, a natureza tem papel preponderante em algumas narrativas, como se pode observar em Expedio Montaigne e Concerto carioca. Em Sempreviva, ela alia-se ao poltico para criar o tempo do castigo dos criminosos, da punio, do Juzo. A natureza, representada pela serpente Joselina e pelos cachorros, se encarrega de fazer cumprir o princpio da justia, que corria o risco de no se concretizar por incapacidade dos homens. Esta integrao entre a natureza e os homens responsvel pela leitura mtica que se pode realizar desse romance, de vez que procura estabelecer uma sociedade definida a partir de um comportamento prprio de sociedades ancestrais. Neste sentido, convm recordar que o espao dominado por Herinha e habitado por seus bichos - com os quais conversa e trata como se fossem pessoas - ela denomina Pai, ou seja, fica implcita nesta denominao a idia de origem, de ancestral idade.

    Acompanhando no mesmo diapaso essa fuso do real e do mtico, pode-se verificar como o escritor cria homologas entre a forma expressiva e a inteno da narrativa mtica.

    Assim como as personagens mudam de pele ao adotar nomes diferentes e disfarces, tentando estabelecer rupturas no fluxo da histria e do tempo, assim tambm a linguagem abandona a construo frasal em ordem direta, revolu-cionando-a, rompendo nexos causais, usando a frase caudalosa, interrompida freqentemente por anacolutos, oraes intercaladas e uma virgulao extre-mada. Pela mesma razo as imagens se acumulam e entranam e, muitas vezes, surgidas da percepo dos sentidos, precipitam-se na sinestesia, mostrando uma realidade embaralhada, de correspondncias, sensorial, at mesmo barroca:

    8 GALLIOT, op. cit. p. 84. O autor divide a mitologia e m cinco conjuntos: os mitos tcognicos ( relatam a origem e a histria dos deuses), os mitos cosmognicos (se referem criao do mundo), os mitos etiolgicos (sobre a origem dos seres e das coisas), os mitos escatolgicos (evocam o futuro e o fim do mundo) e, finalmente, os mitos morais, concernentes luta entre o Bem e o Mal.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.64-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    "Recortada por abundante pontuao, a linguagem traz ao centro de luz seqn-cias locucionais, frases intercaladas, abrindo-se em flor, cheia de pontas, aquecida pela comparao e o simile".9

    Exemplos j podem ter sido observados nas citaes do romance feitas anteriormente. Acrescentemos, porm, algumas outras: "silncio mido das entranhas da pedra" (SV, p. 185) ; "a cristaleira, achacada, reumtica, se plangia em suspiros e ai-jesuses, mal a casa se aquietava, queixando-se do peso dos vidros e porcelanas em cima das prateleiras, lamentando-se dos batoques de pau em suas articulaes e juntas" (SV, p. 198); "a camisa de Quinho tinha manchas de sangue (...) que tornavam concreta, vermelha, rubra, a histria contada (...) ali estava escarate, a prova provada, e, por assim dizer, vernica da histria, a camisa." (S V, p. 203); "os homens, em disciplinada exaltao, fabricando a exata ambrosia, o rigoroso manjar que arredonda os seios e os quadris daquela que tira seu sustento de nossa harmonia, de nossa ordem [a personagem est se referindo ao surgimento da lenda a respeito da morte de Varjo]." (SV, p. 214).

    As sinestesias se multiplicam por todo o texto de Sempreviva, criando uma linguagem narrativa que se aproxima da poesia e que difere amplamente dos demais romances de Callado, cumprindo uma funo que ModestCarone define muito bem ao tratar da poesia de Georg Trakl:

    ...as sinestesias do poeta tm a funo de intensificar a vitalidade metafrica do discurso, uma vez que o contraste entre um tipo de impresso e aquelme que dado por outro rgo sensorial no pode passar despercebido, movendo o leitor a uma contem-plao reflexiva simultnea ao longo de duas (ou mais) avenidas de sentido. "Essa desordem rudimentar dos modos de per-cepo" encontra eco na quebra sistemtica das ligaes lgicas da linguagem; e, atravs desse procedimento reiterado, o poeta vislumbra (e faz vislumbrar) a possibilidade de se conquistarem novas "provncias da percepo".10

    Sensorialismo e sensualismo compem os dois planos da linguagem esttica do romance, produzindo imagens poticas que concretizam uma reali-dade psquica, comportamental e ideolgica primitiva. E como se as perso-

    9 COSTA, dison Jos da . Qiiarup: tronco e narrativa. Curitiba: Editora da UFPR., p. 98, 1988.

    10 CARONE NETTO, Modesto. Metfora e montagem: um estudo sobre a poesia de Ocorg Trakl. So Paulo: Perspectiva, p. 87. 1974. Grifo do autor.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.65-67. 1997. Editora da UFPR

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    nagens estivessem merc de seus instintos de amor, dio, agressividade, morte e preservao, independentes da civilizao. Corumb se torna uma espao "sem lei, sem dono, sem d" (SV, p. 256), como o cachorro Molambo, executor da justia no corpo de Claudemiro Marques.

    Sempreviva uma narrativa que procura ir ao encontro do mito e Antnio Callado buscou concretizar na linguagem essa metamorfose. Recorrendo no-vamente a Modesto Carone, podemos nos servir de sua pertinente anlise e atribu-la a Sempreviva :

    ...as plantas, os animais, a vida inorgnica, as estaes, e as figuras que participam da montagem como elementos descon-tnuos, so entidades emancipadas pela fragmentao, e nas combinaes metafricas traklianas elas so tratadas exatamente como ns as experimentamos originariamente, ou seja, desamar-radas dos contextos em que se haviam imobilizado e com isso remetidas ao seu flutuante enigma germinal. Isso significa que, recuperadas ao uso e ao desgaste, elas podem, agora, acionar no corpo verbal do poema a fora vital mgica que em latncia possuem dentro de ns, da nossa subjetividade profundamente familiarizada com elas, pois so as primeiras ofertas da criao e as primeiras lembranas da humanidade. 11

    A aproximao com o mito no retira do romance

    O comprometimento das personagens com o ideal de emanci-pao nacional e popular (...) A tarefa vingadora que se atribui ao protagonista est voltada para a punio daqueles que des-truram, em 1964, o mundo que a partir da libertao e da afirmao do homem era gerado. Castigando os policiais respon-sveis pela morte de Lucinda, Quinho quer restabelecer o tempo que ento se desenvolvia - tempo inicial, de inveno e nas-cimento.12

    A conjuno dessas duas espcies narrativas acaba por construir um texto que se expande a cada gesto de leitura exercido, sem deixar de vigorar como um

    11 CARONE NETO, op. cit., p. 96. 12 COSTA, op. cit., p. 130.

    56 Letras, Curitiba, n.47, p.55-67. 1997. Editora da UFPR 67

  • COSTA. M. M. Sempreviva, Je Antnio Callado

    relato poltico sobre o perodo de violncia e impunidade que dominou o Brasil nos anos ditatoriais.

    RESUMO

    Anlise dos componentes narrativos de Sempreviva, de Antonio Callado sob a perspectiva mtico-potica. Procura-se demonstrar como os sentidos se multiplicam com a anlise de alguns motivos e smbolos presentes no romance.

    Palavra-chave: Antnio Callado; Sempreviva, de Antnio Callado; anlise literria.

    RESUME

    Ce texte est une analyse des lments narratifs de Sempreviva, de Antonio Callado dans une perspective mito-potique. On y essaye de dmontrer comme le sens s'amplifie partir de l'analyse de quelques motifs et quelques symboles qui composent le roman.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CALLADO, Antonio. Madona de cedro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. . Sempreviva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

    CARONE NETTO, Modesto. Metfora e montagem. So Paulo: Perspectiva, 1974. COSTA, dison Jos da. Quarup: tronco e narrativa. Curitiba: Editora da UFPR., 1988. EICKENBAUM, B. Teoria da literatura; formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. GALLIOT, Jean Le. Psychanalyse et langages littraires. Paris: Fernand Nathan, 1977. NOVAES, Adauto (org.) O olhar. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. SUZUKI Jr., Matinas; STYCER, Mauricio. Antnio Callado chega aos 80 e rev obra.

    Folha de S. Paulo, 26 jan. 1997.

    Letras, Curitiba, n.47, p.55-67. 1997. Editora da UFPR 67