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FRANCYNE FRANÇA o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos

Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos

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Francyne França

o vazio em Galáxias, de Haroldo de campos

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIROMAIO 2016

SENTIDOS NO SILÊNCIOo vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos

Francyne França

RIO DE JANEIROMAIO 2016

SENTIDOS NO SILÊNCIOo vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos

Francyne França

Dissertação de Mestrado submetida ao Pro grama de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito necessário à obtenção do título de Mestra em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza

França, Francyne.

Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos / Francyne França. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2016.

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Orientador: Ronaldes de Melo e Souza.Dissertação (mestrado) – Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2016.

1. Galáxias. 2. Haroldo de Campos. 3. Vazio. 4. Mira Schendel. 5. Corpo. 6. Livro de artista. I. Souza, Ronaldes de Melo, orient. II. Título

F814s

RESUMO

FRANÇA, Francyne. Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Com uma proposta de abolição dos limites entre poesia e prosa, Haroldo de Campos nos apresenta cinquenta fragmentos textuais, cada um dos quais compostos por sucessivos im-pulsos narrativos, cujos desfechos, no entanto, jamais se revelam. Em Galáxias, o texto é submetido à ação incessante de uma força desagregadora, que enfraquece os nexos lógi-cos, transformando o fio discursivo em uma trama verbivocovisual. O presente trabalho dedica-se a investigar a produção de sentido a partir desses vazios discursivos, que fazem o pêndulo da linguagem oscilar em direção à concretude das palavras. Com uma ostensiva e aliciadora textura sonora, os efeitos de Galáxias, paradoxalmente, são sentidos no silêncio. Comovendo o leitor pelo que diz, mas também – e sobretudo – pelo que falha em dizer, o texto se converte em coisa a ser experimentada, mais do que apenas compreen dida. Um con-vite à participação, o vazio é o espaço pleno de prováveis, instância extralógica, centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis.

PALAVRAS-CHAVE: Galáxias; Haroldo de Campos; Mira Schendel; Vazio; Livro de artista.

RIO DE JANEIROMAIO 2016

ABSTRACT

FRANÇA, Francyne. Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

With a proposal to abolish the boundaries between poetry and prose, Haroldo de Campos presents fifty textual fragments, each of which consists of successive narrative impulses, whose outcomes, however, are never revealed. In Galáxias, the text is submitted to the unceasing action of a disruptive force that weakens the logical connections, turning the discursive line into a verbivocovisual web. This work investigates the production of meaning out of this discursive emptiness, which makes the pendulum of language swing towards the concreteness of words. With a rich and seductive sound texture, the effects of Galáxias, paradoxically, are felt in the silence. Touching the reader for what it says but also – and especially – by failing to say, the text becomes something to be experienced more than just understood. An invitation to participate, the void is plenty of probabilities, it is the active center of a network of infinite relations.

KEYWORDS: Galáxias; Haroldo de Campos; Mira Schendel; Vazio; Livro de artista.

RIO DE JANEIROMAIO 2016

À minha amada avó, Elizabeth

AGRADECIMENTOS

Nenhuma conquista nos pertence completamente. Todas as nossas realizações

são resultado de uma convergência de circunstâncias, algumas das quais nos colocam em

situação de indiscutível vantagem em relação aos demais. Em meio a algumas dificuldades

e, devo reconhecer, muitos privilégios, apresento, com alegria e orgulho, o produto final de

minha pesquisa, que certamente não teria se realizado se eu não estivesse cercada de pes-

soas verdadeiramente inspiradoras. Meus agradecimentos a RONALDES, pela gentileza

de aceitar ser meu orientador; à querida MALUH, pelo inabalável incentivo à liberdade de

escrita e de pensamento; a ANÉLIA PIETRANI e a MARCELO DINIZ, pela gentileza de

aceitarem participar de minha banca; à MINHA FAMÍLIA, por ser o ponto de partida de

tudo o que a vida se tornou; à querida RAFAELA, pelo frescor de sua amizade, e por me

contaminar com sua serenidade e determinação; às queridas MARIANA e MARYANNE,

pela parceria que se tornou amizade para toda a vida; à querida JU, por ser um sopro de

ternura que chegou e ficou; ao querido ROGÉRIO, companheiro de excessos e de trans-

bordamento; ao querido ARTHUR, que de longe-perto está sempre presente; ao querido

FELIPINHO, pela extravagância lúcida de sua humanidade exata; ao querido MARCUS,

por dar sentido ao silêncio, em suas mínimas e vertiginosas falas; à querida ALICE, pela

canceriana acolhida em tempos difíceis e por sua preciosa amizade; ao querido ANDRÉ,

por fazer do mundo um lugar melhor; à querida LUANDA, minha mais antiga amiga,

pelas dores e delícias de nossa longa jornada; à inigualável REBECA, por ser quem é e por

me ajudar a ser quem sou; ao amado THIAGO, por tudo.

Às vezes parece que estamos no centro da festa No entanto no centro da festa não há ninguém. No centro da festa está o vazio.

Mas no centro do vazio há outra festa.

Roberto Juarroz, Poesia Vertical

SUMáRIO

INTRODUÇÃO10

CAPÍTULO 1Diante de Galáxias:

o objeto gráfico de Mira Schendel e o vazio da linguagem14

CAPÍTULO 2Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias

36

CAPÍTULO 3Uma arquitetura de vazios:

Galáxias na fronteira entre a literatura e as artes plásticas55

CONCLUSÃO79

REFERÊNCIAS83

ANEXOS87

ÍNDICE DE IMAGENS94

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INTRODUÇÃO

O vazio se insere na arte contemporânea como uma lacuna a ser preenchida pelos

particularíssimos sentidos – e sensíveis – do sujeito, elementos estes que se incorporam à

obra, determinando os desdobramentos e a constituição mesma da experiência estética.

Uma tendência cuja origem remonta aos idos do século XVIII – a partir do revolucio-

nário pensamento de Goya, para quem a arte deveria ser uma experiência centrada no

indivíduo –, essa atração pelo vazio se tornou um denominador comum em boa parte das

produções artísticas do século XX, nas quais a participação do sujeito se coloca, então,

como problema fundamental.

Dentro do panorama traçado pelos questionamentos contemporâneos, a arte passa

a ser compreendida não mais como um estatuto a priori e fixo de determinados objetos, mas

como uma experiência de sensibilização fundada pela interação do fruidor com a obra, em

uma instância virtual e vertiginosa – a qual denominarei espaço de fruição –, que se sustenta

enquanto dura esse estado de influência mútua. O que significa dizer que o fenômeno esté-

tico não preexiste, mas nasce da síntese, no espaço-tempo, dos fatos objetivos da obra com

os dados a ela incorporados pelo sujeito.

A noção de experiência estética como operação concriativa foi problematizada

por Haroldo de Campos, pela primeira vez, no pequeno artigo “A obra de arte aberta”,

de 1955. Posteriormente, em 1962, a questão seria novamente colocada em pauta, com

mais fôlego e amplitude, por Umberto Eco, em sua Obra aberta. Mais do que mero acaso,

essa coincidência temática entre os dois estudos independentes reflete a urgência com

que a questão se erguia naquele momento histórico, durante o qual a obra de arte passa a

ser encarada menos como objeto autossuficiente, e mais como “estrutura de uma relação

fruitiva” (ECO, 1991, p. 9).

Nesse contexto, o vazio produz um espaço pleno de prováveis, do qual o sujeito é

convidado a se apropriar, realizando “atos de liberdade consciente” (ECO, 1991, p. 41), que o

colocam no “centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis” (POUSSEUR apud op. cit.).

Justamente no vazio, portanto, instaura-se o chamado espaço de fruição, essa dimensão imate-

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rial na qual o fruidor e a obra se encontram, firmando-se como polos de uma mesma e ambi-

valente realidade. Procedimento fundamental na obra de arte contemporânea, a aproximação

entre o fruidor e a obra através do vazio se observa também em Galáxias.

Com uma proposta de abolição dos limites entre poesia e prosa, o livro de

Haroldo nos apresenta cinquenta fragmentos textuais, organizados em torno do eixo

temático “o livro como viagem e a viagem como livro”. Cada um desses fragmentos é

composto por sucessivos impulsos discursivos, que, tendo o seu sentido lógico constante-

mente esvaziado, jamais se concluem. Esses vazios de sentido – que operam no texto como

procedimento de obstáculo, segundo a denominação proposta por Chklovski – rompem

o equilíbrio estável do signo, fazendo o pêndulo da linguagem vacilar em direção à con-

cretude das palavras. Quer dizer, quando se rompe o fio dessas inconclusas narrativas – as

quais poderíamos classificar como antiestórias –, a produção de sentido se desloca do

conteúdo para a forma da linguagem, passando a interpelar o leitor não apenas como uma

mensagem a ser decodificada, mas também como uma experiência de natureza sensível

pela qual ele é arrebatado.

Corrompida a sua discursividade, a linguagem passa a falar também aos sentidos

do leitor. Trata-se de produzir efeitos que extrapolam a lógica das ideias bem concatenadas;

de expandir o raio de alcance, convertendo o texto em alguma coisa que pode ser experi-

mentada, mais do que apenas compreendida. Um convite à ação do leitor – à fruição autô-

noma e concriativa –, o vazio em Galáxias instaura uma margem de opacidade, de intradu-

zibilidade, dentro da qual o sujeito vive a realidade imediata da linguagem. Uma linguagem

que, como que saltando à vista, revela sentidos que florescem não apenas como informação

intelectual, mas sob a forma do fenômeno a que chamados imagem poética. Vem daí, pois,

a formulação de Haroldo, segundo a qual a obra é uma épica que se resolve numa epifânica.

O presente trabalho, um retrato de minha particularíssima trajetória pelo livro de

Haroldo, é composto por três ensaios que falam sobre o vazio a partir de perspectivas que,

embora distintas, têm como ponto de convergência o enfoque na relação que se estabe-

lece entre o vazio e a participação do leitor, entendido aí como elemento fundamental para

a plena realização dos sentidos de Galáxias. Diante desse propósito, trilhei um percurso

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atravessado por questões da arte contemporânea, da filosofia e da psicanálise, que foram

valiosos para a compreensão da experiência estética como um fenômeno multidimensional.

Em “Diante de Galáxias: o objeto gráfico de Mira Schendel e o vazio da linguagem”,

a espiral de letras que estampa a capa do livro é o ponto de partida para uma reflexão sobre

o vazio como dimensão inextricável da linguagem. A obra de Mira pretende-se uma ima-

gem da inauguração do sentido. Uma imagem da imagem, portanto, procura capturar não

apenas as marcas da expressão, mas o que em torno dessas marcas se mantém inexprimível:

os sentidos que habitam o vazio da linguagem e cujos efeitos se realizam como uma expe-

riência imediata do sujeito. Conferindo existência visual ao silêncio em torno das palavras, a

obra de Mira diz muito sobre a poesia de modo geral, mas em especial sobre a forma como

Haroldo trata a linguagem em seu livro. Em Galáxias, o provável é ativado justamente pelos

espaços vazios que se entremeiam nas espiraladas constelações significantes.

“Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias”, ensaio que dá título à dissertação, é

dedicado à investigação do esvaziamento discursivo como procedimento textual direta-

mente relacionado com a ruptura dos gêneros. A análise de trechos de alguns fragmentos

do livro nos permite ver que a dissolução da fronteira entre poesia e prosa se produz pelo

deslocamento do polo discursivo para o polo material da linguagem. Esvaziado de sentido

lógico, o fio narrativo se transforma em uma trama verbivocovisual, cujos efeitos resultam

do agenciamento de múltiplos componentes – entre os quais, a carga subjetiva do leitor –

dentro da variável temporal. Ficará claro, portanto, que o fenômeno da poesia, para além

de quaisquer paradigmas do gênero, não é um atributo do texto, mas uma experiência de

temporalidade e extralogicidade, que se realiza a partir do contato do sujeito com a obra.

O terceiro ensaio, “Uma arquitetura de vazios: Galáxias na fronteira entre a lite-

ratura e as artes plásticas”, volta-se para o corpo do livro, assinalando, no contraste entre

os elementos impressos em tinta preta e a superfície pálida da folha, a realização gráfica

da ambivalência da linguagem. Expressamente problematizada em algumas passagens do

livro, a relação do texto com o branco da página – entendido aqui como o horizonte silen-

cioso do indizível – é reforçada por certas escolhas editoriais do autor, especialmente pela

intercorrência de páginas vazias entre os fragmentos. Em Galáxias, portanto, o corpo do

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livro não é somente o suporte para os textos, mas uma parte fundamental do projeto. Con-

siderando a categoria contemporânea do livro de artista, modalidade simultaneamente

editorial e plástica, cujos sentidos se firmam ou se reafirmam por sua própria constituição

física, podemos dizer que o vazio – elemento responsável pela ruptura de gêneros no nível

do texto, e que, no nível gráfico, materializa-se pelo branco da página – coloca Galáxias

em situação limítrofe também com as artes plásticas.

O vazio funciona como um elemento que estrutura o texto e que se impõe como

valor conceitual a todos os aspectos do projeto do livro. Conforme foi concebido por

Haroldo, Galáxias é uma obra que se abre para a entrada do leitor, o qual navega pelas lacu-

nas do texto, traçando o seu próprio percurso. Mais do que abolir a fronteira entre a poesia

e a prosa, Galáxias é uma obra de ruptura de limites. O único domínio no qual está inscrito

o livro de Haroldo é o da poesia, um domínio que não se limita a gênero, nem mesmo ao

território textual, mas à experiência do conhecimento imediato, extralógico. Território das

imagens poéticas, o texto galáctico não persegue uma forma, mas assume uma espacialidade

da qual não pode ser dissociado. Objeto integral, o livro de Haroldo, mais que apenas a

experiência das palavras, dá ao leitor a experiência total – o saber e o sabor – de si.

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CAPÍTULO 1

Diante de Galáxias: o objeto gráfico de Mira Schendel e o vazio da linguagem

uma arte de vazios onde a extrema redundância começa a gerar informaçãooriginal uma arte de palavras e de quase palavrasonde o signo gráfico veste e desveste vela e desvelasúbitos valores semânticosuma arte de alfabetos consteladosde letras-abelhas enxameadas ou solitáriasa-b-i(li)-aaonde o dígito desperta seus avataresnum transformismo que visa ao ideograma de si mesmoque força o digital a converter-se em analógicouma arte de linhas que se precipitame se confrontam por mínimos vertiginosos de espaçosem embargo habitados por distâncias insondáveisde anos-luzuma arte onde a cor pode ser o nome da core a figura o comentário da figurapara que entre significante e significadocircule outra vez a surpresauma arte-escriturauma semiótica arte de ícones índices símbolosque deixa no branco da página seu rastro numinosoesta a arte de Mira Schendel.Entrar no planetarium onde suas composiçõesse suspendem desenhos estelarese ouvir o silêncio como um pássaro de avessossobre um ramo de apenasgorjear seus haicais absolutos

Haroldo de CamposPublicado no catálogo da retrospectiva

de Mira Schendel no MAM, em 1966

Uma espiral de letras embaralhadas parece desenrolar-se da mancha escura no

centro da página, a partir de onde se alastra pelo papel branco, como uma nuvem de poeira

tipográfica. Ou, pelo contrário, será essa mancha escura um buraco negro pelo qual, diante

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dos meus olhos, a nebulosa elíptica está sendo devorada? Encaro o objeto gráfi co de Mira

Schendel1 estampado na capa de Galáxias, sem saber ao certo onde se funda e como evolui

– no sentido da dispersão ou da concentração – o movimento cristalizado na fi gura.

Figura 1: detalhe de Sem título (1972), da série Objetos Gráficos, Mira Schendel.

A impressão dúbia me lembra a ilusão de Necker: um cubo aramado em perspec-

tiva isométrica, cuja posição pode ser percebida de duas maneiras distintas e mutuamente

excludentes. Dependendo de como é observado o desenho, a face frontal do objeto – for-

1 Artista plástica nascida na Suíça e radicada no Brasil, onde, entre os anos de 1950 e 1988, produziu toda

a sua obra.

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mado por dois quadrados vazados e pelas quatro linhas que ligam os vértices do primeiro

quadrado aos do segundo – parece estar voltada para o canto inferior esquerdo ou para o

canto superior direito do observador, como mostra a figura a seguir.

Figura 2: Cubo de Necker. Elaborado pela autora.

A associação entre o cubo de Necker e a espiral de Schendel me ocorreu em função

de uma propriedade que identifico nas duas imagens: a capacidade de fundir duas reali-

dades diferentes e incompatíveis em uma só e a mesma coisa. A figura do cubo induz um

fenômeno chamado percepção multiestável, sob efeito do qual o observador interpreta uma

única figura como duas formas diferentes e alternadas. A espiral não induz o mesmo fenô-

meno, nem provoca ou pretende provocar algum tipo de ilusão ótica: sua ambiguidade, de

natureza virtual e não visual, manifesta-se na absoluta incerteza a respeito de uma questão

insolúvel levantada pela imagem: para onde se orienta o movimento da espiral?

Despois de ler um pouco sobre o trabalho de Mira Schendel, descobri que origi-

nalmente a “galáxia gráfica”, que faz parte de uma série de trabalhos da artista intitulada

Objetos Gráficos, não era exposta na parede, como um quadro. A figura – obtida com a

aplicação de tipos transferíveis2 e que fora prensada entre lâminas de acrílico transparente

– ficava suspensa por fios de náilon, que a fixavam no teto do espaço expositivo, em um

2 Também chamada de press type ou dry transfer, a técnica de tipos transferíveis, popular nos anos 1970

e 1980, é um método de impressão pelo qual os caracteres são transferidos de um filme plástico transpa­

rente para a superfície desejada, aplicando­se sobre eles uma pressão de raspagem.

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ponto afastado da parede. A composição, portanto, podia ser vista de todos os ângulos,

oferecendo-se a uma “leitura circular, na qual o texto seria o centro imóvel, e o leitor o

móvel” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58).

Figura 3: registro da exposição O Alfabeto Enfurecido, no Museu Reina Sofía (Madri).

A solução desenvolvida pela artista incorpora uma materialidade unificadora à

obra, descontruindo as noções de frente e trás como coisas distintas, para instituir uma

realidade integral. Expostos como grandes pendentes, os Objetos Gráficos permitem que

a visão do observador percorra cada milímetro de sua superfície, mais ou menos como

um miradouro às avessas, que dá ao visitante não o horizonte, mas a vista de si mesmo.

A partir dessa descoberta, o Objeto gráfico – que até então eu compreendera como uma

figura plana e unilateral – assume caráter espacial e multiperspectivado.

Sabendo, agora, como se estruturava a obra de Mira Schendel, a indecisão a res-

peito do movimento me parece ainda mais aguda. Dentro de uma galeria de arte ima-

ginária, onde, em minha mente, projeta-se a composição com suas lâminas de acrílico,

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vislumbro múltiplas possibilidades. Posicionada em um dos lados da espiral, imagino que

o “alfabeto enfurecido”,3 originado do ponto escuro no centro da imagem, expande-se

em minha direção. Ou que as letras são por ele absorvidas, como que para o epicentro de

um redemoinho. Assumindo agora o lugar do ponto escuro, na origem do movimento,

considero que a espiral poderia, também, estar se expandindo de mim para o lado de lá do

Objeto, o lado oposto àquele em que me encontro. Ou, ainda, convergindo para mim. Por

fim, suponho que uma imensa massa esférica esteja sendo tragada pelo ponto escuro, ou

sendo por ele expelida em todas as direções. Como, afinal, determinar o sentido de uma

trajetória que só existe em potência?

A mecânica quântica nos diz que um sistema dinâmico existe parcialmente em

todos os seus estados teoricamente possíveis e o ato da observação é o que determina o

seu estado de fato. O objeto desta reflexão, no entanto, é um movimento que se realiza

como virtualidade, de modo que seus desdobramentos podem apenas ser imaginados.

Poderíamos, então, supor que a espiral de letras – como o “anjo de quatro asas que, ao

mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul”4 – se movimenta em

todas as direções?

Inicialmente, minha intenção era fazer um brevíssimo comentário a respeito da

capa de Galáxias, indo além da associação imediata entre a figura e o título do livro. A

ideia era relacionar a espiral de Mira Schendel com o texto de Haroldo de Campos, a

partir de um traço que me pareceu comum a ambos: a tensão como elemento estruturante.

Em linhas gerais, a tensão em Galáxias está relacionada com o trânsito incessante entre

os territórios da prosa e da poesia. Na espiral de Schendel, é um duvidoso movimento

virtual o que situa a figura no entrechoque de duas realidades opostas. A despretensiosa

comparação não seria mais do que um trampolim textual, o impulso que me lançaria ao

3 O Alfabeto Enfurecido é o nome da exposição que reuniu as obras de León Ferrari e Mira Schendel, sob

curadoria do venezuelano Luis Pérez­Oramas. Iniciada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA),

a exposição passou pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia (MNCARS), em Madri, antes de

encerrar o seu percurso em 2010, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre.

4 Imagem é de Borges e aparece no conto “O Aleph”.

19

assunto em torno do qual este meu estudo gira. Contudo, ao investigar um pouco melhor

o contexto sob o qual o Objeto Gráfi co foi produzido, percebi, na obra de Mira, uma série

de outras questões relevantes também em Galáxias, de modo que me parece justifi cável eu

me aventurar um pouco mais nessa digressão.

Creio que uma questão fundamental para a compreensão da “galáxia gráfi ca” diz

respeito ao emprego das letras na construção dessa imagem. Da forma como foram organi-

zados, os caracteres podem ser lidos, mas não formam um texto legível. O que teria, então,

motivado a artista a fazer da linguagem a sua matéria? Para tentar responder a essa pergunta,

eu remonto a um conjunto de trabalhos de Mira, anterior à série de que a espiral faz parte.

Antes de desenvolver os Objetos Gráfi cos, Mira Schendel já adotara a relação entre a imagem

e a palavra como preocupação essencial em seu fazer artístico. Entre 1964 e 1967, a artista

produziu uma série intitulada Monotipias, com aproximadamente duas mil peças, que con-

sistem em sobreposições de fragmentos textuais mais ou menos signifi cativos, produzidos

com tinta a óleo preta sobre o fi níssimo e translúcido papel de arroz japonês.

Figura 4: Sem título (1965), Mira Schendel.

20

A série é resultado de uma tentativa – frustrada, segundo a artista – de surpreen-

der a linguagem no momento de sua origem: “o que me preocupa é captar a passagem da

vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabili-

dade e relativa eternidade” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58). Tratava-se, portanto,

de flagrar e imobilizar o súbito e fugidio momento em que a experiência é capturada por

um significado, unindo, no espaço-tempo, o puro existir e a palavra: “[...] é esta minha

obra a tentativa de imortalizar o fugaz e dar sentido ao efêmero. Para poder fazê-lo, é

óbvio que devo fixar o próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no

caso, para a letra” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58).

Nas Monotipias, Mira Schendel se volta para o que Foucault chamou de duplo empí-

rico-transcendental, isto é, para a natureza ambígua da consciência humana, que se funda

pela articulação de uma “dimensão sempre aberta [...] que ele [o sujeito] não reflete num

cogito” e “o pensamento pelo qual a capta” (FOUCAULT, 2007, p. 445. Grifo do autor). Na

tela formada pelas múltiplas camadas de papel, o contraste da tinta preta com a sua ausência

– acentuada em maior ou menor grau, na matizada transparência do suporte – materializa

essas duas dimensões contrárias e coesas que constituem a nossa apreensão do real.

Como um “eco [visual] que se distancia à medida que as folhas vão se sobre-

pondo” (DIAS, 2009, p. 189), os estilhaços de linguagem, traçados irregulares e borrões

de tinta que compõem as Monotipias revelam-se aos poucos entre as diáfanas camadas,

perfurando com a sua gradativa emergência a palidez do papel em branco. Nesse com-

plexo heterogêneo, o uso de fragmentos linguísticos com diferentes níveis de significação

e das várias nuances de preto – que vão desde a máxima definição à sua extinção completa,

figurando fala, sussurro, balbucio e mutismo imagético – sugerem a reduzida eficiência da

linguagem em relação à totalidade do real. As palavras-imagens de Mira e o silêncio visual

que as engloba espacializam o pensamento e o “que nele, em torno dele, debaixo dele, não

é pensamento” (FOUCAULT, 2007, p. 447).

Sei que se trata, no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela

que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, incomunicável [...]. O reino dos

símbolos, que procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é,

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pelo contrário, antivida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado

de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse fazer coincidir estes dois reinos,

teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo.

(SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58)

Nas Monotipias, a artista explora a potência do espaço em branco, como forma

de dar visibilidade ao invisível. Resultado da sobreposição das folhas de papel de arroz, o

aspecto opalescente e irregular da superfície produz uma ilusão de espessura, que restitui à

realidade – tornada clara pelas palavras – a sua opacidade. Como um nevoeiro, a superfície

do papel dá a ver além, sem invisibilizar o espaço entre. Na articulação desse vazio espesso

com os desenhos, negativo e positivo se constituem mutuamente e são indissociáveis, bem

como a indelimitável experiência do real e o sistema de significação pelo qual o reduzimos

a recortes compreensíveis. A linguagem, portanto, é evocada sob o signo de sua própria

ineficácia e pela ausência de algo que inevitavelmente se perde no ato da representação.

A escolha do papel de arroz como suporte se deve, conforme o relato de Mira,

ao acaso e à curiosidade: “Uma vez ganhei um papel japonês finíssimo aos montes. Deixei

guardado, não sabendo o que eu poderia fazer com aquilo. [...] Me foi dado. ‘Você quer?’,

‘Quero.’” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 60). O material acabou se tornando um

elemento central em sua obra e o impulso para um percurso artístico marcado pelo expe-

rimentalismo do suporte, sempre orientado no sentido da diafaneidade: “a clareza, meu

leitmotiv” (SCHENDEL apud DIAS, 2009, p. 145).

Na série Monotipias, a vista simultânea de múltiplas camadas – graças à translu-

cidez do papel – converte a sobreposição de desenhos em unidade imagética. Nesse sen-

tido, a transparência na obra de Mira está relacionada com a tentativa de expressar uma

totalidade, que incluiria o tempo na representação espacial. A clausura entre os limites da

tela, no entanto, converte o universo fundado pela obra em uma realidade finita, o que é

reforçado pelas sequências lineares de letras que sugerem início meio e fim.

A sequência de letras no papel imita o tempo, sem poder realmente representá-lo.

São simulações do tempo vivido e não captam a vivência do irrecuperável, que

caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e reli-

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dos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo.

(SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58)

Em 1967, Mira Schendel participa da Bienal de São Paulo com a série Objetos

Gráficos, de que faz parte a espiral de letras que deu origem à capa de Galáxias. No que

diz respeito ao suporte, os Objetos Gráficos se incluem no conjunto da obra de Mira como

um aprimoramento das Monotipias. A estrutura que caracteriza a série, formada pelas

já mencionadas placas de acrílico suspensas, afasta os desenhos alfabéticos da parede,

transformando-os em objetos com múltiplas visadas: “esculturas escritas tanto quanto

quadros escritos” (PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 33).

Por volta de 1970, Mira dispensou o uso de folhas de papel de arroz nos objetos grá-

ficos, passando a aplicar as letras decalcáveis diretamente sobre o acrílico. A galáxia gráfica foi

produzida durante essa fase da série. Tratava-se de negar o plano que separa um lado do outro

e, ao mesmo tempo, reforçar o caráter material da linguagem: “a letra, ao formular-se, deve

mostrar o máximo de suas faces, para ser ela mesma” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58).

Estruturado dessa forma, o suporte rompe a relação primordial da tela com a parede e

expande o espaço da obra para o vazio do espaço real. “A hierarquia do olhar”, portanto,

“é quebrada, conduzindo a uma leitura circular e virtual” (MARQUES, 2011, p. 27). Situado

no eixo dessa circunferência invisível, o Objeto Gráfico convida o observador a engajar-se,

com a potência lógica de seu olhar e com o movimento de seu corpo, em uma órbita contem-

plativa, que – para além de mero consumo retiniano da imagem – se constitui, sobretudo,

como interação: a composição é o centro físico e a condição básica para a realização da expe-

riência estética, mas precisa do sujeito para se revelar em toda a sua extensão. Deslocando-se

em torno do Objeto Gráfico, o espectador – tornado partícipe – converte a “obra à primeira

vista passiva e pacífica em autêntico polo emissor de energia” (BRITO, 2005, p. 290).

No espaço de fruição que se funda por esse movimento, a forma como o sujeito

vivencia o tempo é afetada. Como explicou Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da

percepção (2011), o tempo é percebido pelo sujeito em função dos objetos e do espaço.

Por exemplo, a realidade presente é esta: eu, sentada diante do computador, digitando um

23

texto, que vai crescendo diante dos meus olhos à medida que o tempo passa. Em algumas

horas, no entanto, estarei me dedicando a uma nova tarefa e este momento terá se tornado

parte do passado. Porém, este texto não deixará de existir. Nem a mesa sobre a qual o

monitor está apoiado. Da mesma forma, os livros continuarão impondo a sua sólida pre-

sença às prateleiras que os suportam. Tudo, aliás, permanecerá exatamente como agora.

Com exceção do meu corpo, que estará habitando um novo espaço e não mais esta sala:

“o tempo”, diz Merleau-Ponty, “não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me

limitaria a registrar. Ele nasce da minha relação com as coisas. [...] Aquilo que para mim é

passado ou futuro está presente no mundo” (pp. 551-2). O tempo, portanto, é um produto

da consciência. Ele não tem início, meio e fim, e a sua fluidez somente é percebida quando

a perspectiva do sujeito em relação ao espaço muda. A partir do deslocamento em torno

do objeto gráfico, a transitoriedade do tempo é transferida da obra para o fruidor: “o tempo

se lança do símbolo de volta para a vida” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58). Como o

observador que outrora, da margem, constatava a passagem do rio, e agora, conduzido por

um barco, segue o seu fluxo, conforme a imagem de Merleau-Ponty.

Voltando ao nosso ponto de partida, a imagem na capa do livro Galáxias, retomo

agora a questão que todas essas considerações a respeito da obra de Mira se dedicaram

a investigar: para onde se orienta o movimento da espiral? A proposta da obra, como já

está claro, é capturar o momento em que apreendemos, por meio da linguagem, a vivên-

cia imediata. O momento em que a experiência do real é significada, convertendo-se em

símbolo. Mas o que a galáxia gráfica nos diz a esse respeito e, sobretudo, a respeito da obra

de Haroldo de Campos?

De maneira global, podemos dizer que, como queria Mira, a explosão de letras

materializa o momento em que nasce a linguagem, o momento em que um acontecimento

se transforma em signo. Dessa maneira, cristalizado na figura, há um movimento de dentro

para fora, um impulso de expressão que rompe a esfera do subjetivo, convertendo-se, fora do

sujeito, em dado objetivo da linguagem. Coocorrente a essa explosão, no entanto, podemos

supor a existência de uma força centrípeta, que atua da extremidade para o centro, sugerindo

que, devido e simultaneamente ao nascimento do verbo, alguma coisa se extingue.

24

Essa ruptura está relacionada com o duplo impacto da linguagem sobre o real,

ao mesmo tempo ponte e obstáculo entre ele e o sujeito. Como já havia declarado outra

artista em face do mesmo drama, “sem dar uma forma, nada me existe. [...] Só posso

compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo” (LISPECTOR,

2009, p. 12). A linguagem, como evidencia o dilema de G.H., viabiliza a compreensão

do mundo, mas se insere na subjetividade, como uma fenda através da qual o alheio se

infiltra no próprio. Quando digo que sinto amor, tristeza, alegria, saudade, ou mesmo

quando me refiro a “mim”, estou enquadrando experiências absolutamente particulares

em um sistema de significação de uso comum. Como poderia expressar o que sou e o

que sinto um código de origem externa e radicalmente anterior a mim: a palavra de

todos e, portanto, a do outro?

Conforme o que expus anteriormente, uma característica relacionada ao

suporte distingue radicalmente a galáxia gráfica das monotipias e particulariza a obra

mesmo entre os objetos gráficos: a figura não foi produzida sobre papel, mas impressa

entre lâminas acrílicas, de modo que o espaço entre as letras permanece vazio. Com

sua translúcida opacidade, o papel japonês, para além de mero suporte das imagens

tipográficas, corporificava a dimensão irrepresentável da linguagem, problematizando

o caráter imaterial e ao mesmo tempo espesso de sua existência paradoxal. Na galáxia

gráfica, a materialidade da linguagem já não se inscreve sobre o papel e esse indizível

incorpóreo não mais nos é dado por meio de uma representação, mas pelo concreto

vazio que se forma entre os caracteres no interior da estrutura, e que se deixa ver através

da relativa transparência do acrílico: “não a transparência chata do vidro”, e sim “aquela

falsa transparência do sentido explicado” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p.58). Mais

do que apenas capturar as marcas da expressão, o quadro que se forma entre os limites

do objeto gráfico dá a ver o que em torno dessas marcas se mantém inexprimível, a

opacidade residual na clareza do “sentido explicado”.

Na espiral de letras, portanto, suponho haver não apenas a coocorrência de dois

impulsos em direções contrárias – o nascimento de um signo e a interrupção da vivência

imediata –, mas também a articulação de duas realidades que se constituem mutuamente:

25

a linguagem e o rastro de silêncio que se estende por seu caminho. Desse modo, na obra

de Mira estaria paralisado o instante em que a imediaticidade do real se rompe, sendo

invadida pelos símbolos da linguagem e pela matéria não simbolizável em seu entorno.

Como um elemento fantasmático que cerca a realidade concreta, essa matéria não sim-

bolizável não pode ser plenamente compreendida ou explicada – como bem lembrou a

artista –, mas a sua percepção é o que nos dá o sentido pleno da realidade para qual a

linguagem aponta. “Todas as nossas versões do real”, conforme aponta Octavio Paz, em

O arco e a Lira, “não recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representá-lo

ou descrevê-lo”. E continua:

Se vemos uma cadeira, por exemplo, percebemos instantaneamente sua cor,

sua forma, os materiais com que foi construída, etc. A apreensão de todas essas

características dispersas não é obstáculo para que, no mesmo ato, nos seja dado

o significado de cadeira: o de ser um móvel, um utensílio. Mas, se queremos

descrever nossa percepção da cadeira, teremos de ir aos poucos e por partes:

primeiro sua forma, depois sua cor, e assim sucessivamente até chegar ao sig-

nificado. No curso do processo descritivo foi se perdendo pouco a pouco a

totalidade do objeto. A princípio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma

certa espécie de madeira, e finalmente puro significado abstrato: a cadeira é um

objeto que serve para sentar. (PAZ, 1982, p. 132)

A linguagem é uma tentativa sempre ineficiente de simbolizar a realidade. Inca-

pazes de capturá-la em sua integralidade, os símbolos atravessam o real e, tal qual uma

peneira, operam um processo cuja própria natureza é a perda e a redução de alguma coisa

a algo menor. O mundo se nos apresenta como uma realidade complexa, cuja “pluralidade

se unifica instantaneamente no momento da percepção” (PAZ, 1982, p. 131). A cadeira,

tomando emprestado o exemplo de Octavio Paz, é um objeto profundamente arraigado

em nosso imaginário. A palavra que o nomeia, portanto, mais do que apontar para uma

definição – “objeto que serve para sentar” –, remete ao sem fim de qualidades perceptíveis

na experiência com o cotidiano utensílio, e também à relação particular que cada sujeito

estabelece com ele. A palavra “cadeira” pode expressar alívio para uma pessoa exausta e

que anseia por se sentar. Para alguém que não tem os movimentos das pernas, por sua

26

vez, pode ser o símbolo de uma realidade aprisionadora; ou, pelo contrário, representar

a liberdade de se locomover com autonomia. Agora, pensemos em um indivíduo criado

em alguma cultura hipotética na qual as cadeiras não existam. Para ele, a palavra cadeira

ou toda explicação que se dê sobre ela não será capaz de conduzi-lo senão a uma com-

preensão teórica do móvel. Isso porque a realidade integral da cadeira só pode ser expe-

rimentada diante da cadeira e sem qualquer mediação, de modo que a matéria subjetiva

que uma menção a ela pode movimentar – como a sensação de alívio, de aprisionamento

ou de liberdade – não resulta da experiência a partir do objeto em si, mas de um lance

mental – e, portanto, de linguagem – que a sua lembrança suscita.

Temos, portanto, a vivência imediata da cadeira e a vivência da cadeira por meio

da linguagem. Seja a linguagem pela qual o objeto para sentar, de determinado tamanho

e material é descrito para quem não o conhece. Seja a linguagem que nos dá acesso à

lembrança da cadeira e a toda a carga subjetiva em que essa lembrança está imersa. Em

ambos os casos, as experiências são vividas por meio da linguagem: uma linguagem que,

no entanto, não propriamente significa, mas acessa um significado previamente instalado

em nossa mente, e graças ao qual conseguimos reconhecer as coisas que um dia se nos

apresentaram. A realidade figurada pelo vazio na peça de Schendel, ao que me parece, não

se reporta a essa carga subjetiva evocada pela linguagem em sua função referencial, mas à

experiência imediata de um primeiro contato, que a linguagem, em sua potência criadora,

pode deflagrar. Como a própria artista esclarece, sua obra caminha sempre no sentido de

tentar “surpreender a linguagem no momento de sua origem”, de “fixar o próprio instante,

no qual a vivência se derrama para o símbolo”. Trata-se, portanto, como o nome da obra

sugere, de converter a linguagem de meio em objeto capaz de fundar experiências imedia-

tas a partir de si mesmo.

Nesse sentido, creio poder dizer que, considerando a realidade geral de sua com-

plexa estrutura, o objeto gráfico simboliza o acontecimento de linguagem que no universo

da poesia chamamos de imagem:5 um fenômeno desencadeado por certas configurações

5 O termo imagem poética – que diz respeito a um fenômeno da arte em geral, não apenas da poesia –

aqui será usado para designar especificamente a sua realização pelas palavras.

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de palavras cujos sentidos alcançam muito além de seus significados estritos. Sensíveis, e

não apenas compreensíveis, as imagens poéticas provocam experiências de caráter sub-

jetivo e que, portanto, não podem ser plenamente decodificadas. Ou, como costumamos

colocar, são informações que não podem ser ditas em outras palavras. “A imagem faz com

que as palavras percam a sua mobilidade e intermutabilidade” (PAZ, 1982, p. 135), isso

porque os seus sentidos nascem não apenas das marcas da linguagem, mas também – e

sobretudo – do espaço vazio que se forma entre elas, como sugere a obra de Schendel.

A eficiência expressiva de uma língua se sustenta pelo feixe de significados prévios

atrelados a cada significante. Para se expressarem unívoca e inequivocamente, os falantes

dependem desses pontos fixos, os quais, como ferramentas de uso habitual, manejam desa-

percebidamente. “Consultem sua experiência”, propôs o poeta Valéry, “e constatarão que

só compreendemos os outros [...] graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras”

(VALÉRY, 1999, p. 213). No cumprimento do seu dever comunicacional, a linguagem não

é mais do que um instrumento sutil com o qual percorremos a trilha das ideias.

Se examinarmos as leis gerais da percepção, veremos que, uma vez que se

tornam habituais, as ações também se tornam automáticas. Assim, todos os

nossos hábitos se refugiam num meio inconsciente e automático; concordarão

conosco os que conseguem lembrar-se da sensação que tiveram ao segurar pela

primeira vez a caneta na mão ou ao falar pela primeira vez uma língua estran-

geira e conseguem comparar essa sensação com a que experimentamos ao fazer

a mesma coisa pela milésima vez. (CHKLOVSKI, 2013, p. 89)

As imagens poéticas se inserem nesse processo como acontecimentos que rom-

pem o automatismo do uso cotidiano. Dizemos que as imagens atualizam a linguagem,

porque elas nos colocam novamente em contato com o objeto linguagem, não mais

somente com o objeto da linguagem. “Deliciosas e frágeis novidades de um pensamento sem

história”, como as descreveu Bachelard (2010, p. 36), as imagens não referem alguma coisa

exterior ou anterior a elas mesmas, mas fundam – diante de nossos olhos e ouvidos – uma

experiência real e imediata de linguagem.

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E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar

que pedra é pedra, existe o que se chama arte. [...] o procedimento da arte é o

procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em

obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de

percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um

meio de experimentar o devir do objeto, o que é já é “passado” não importa

para a arte. (CHKLOVSKI, 2013, p. 91)

“O objetivo da arte”, segundo o formalista russo Victor Chklovski, “é dar a sen-

sação do objeto como visão e não como reconhecimento”. O objetivo da imagem poética,

portanto, é fazer a linguagem como que “saltar à vista” em sua máxima presentidade,

dando a ver – não a compreender – os sentidos das palavras. “Para ser ela mesma [...] a

letra, ao formular-se, deve mostrar o máximo de suas faces”, disse Mira Schendel, expli-

cando a importância da transparência obtida com o uso do acrílico nos objetos gráficos.

Não entendi muito bem essa colocação de Mira nas primeiras vezes em que a li, mas agora

me parece claro o que ela quis dizer. Quando fala sobre a letra – ou a palavra – “ser ela

mesma” em oposição a “ser outra coisa”, ao que me parece, a artista se refere ao aspecto

fundamental da linguagem poética, que – em oposição à linguagem cotidiana, na qual a

palavra aponta para alguma realidade externa – não diz outra coisa senão a si mesma.

Em ensaio publicado no catálogo da exposição O alfabeto enfurecido, Luis

Pérez-Oramas afirma que os objetos gráficos exploram a “densidade objetal”, a “con-

cretude existencial das palavras”. Tais obras, segundo o poeta venezuelano, são “obstá-

culos, suspensos na nossa frente como campos tanto visuais como legíveis, [...] corpos

a serem decifrados com o corpo” (PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 11). O comentário de

Pérez-Oramas evidencia essa estreita relação entre o acontecimento de linguagem figu-

rado pela obra de Mira e a realidade da poesia, em que as palavras – meio e fim a

que se destinam – interrompem, com a materialidade de seus corpos, o fluxo livre da

linguagem. Operando o que Chklovski denominou como procedimento de obstáculo, a

atividade poética detém a nossa atenção em percursos textuais tortuosos, que nos fazem

perceber o objeto linguagem, para além do conteúdo externo que evoca. Realidades

concretas – elas mesmas e não outra coisa, como queria Mira –, as palavras falam ao

29

intelecto, mas também à sensibilidade. E constituem, verdadeiramente, corpos a serem

decifrados com o corpo.

Suspensas no meio do espaço expositivo, as letras cercadas de silêncio que com-

põem a galáxia gráfica conferem uma existência visual ao procedimento fundamental

da poesia: a inauguração do sentido. Dando a ver o fenômeno da imagem poética – uma

imagem da imagem, portanto –, a peça captura o indizível que, sem concretamente

dizer, as palavras dizem; os múltiplos sentidos que florescem justamente nos espaços

vazios de significado. Este me parece ser o ponto crucial da relação que o objeto gráfico

estabelece com o livro Galáxias. A obra de Mira diz muito sobre a poesia de modo geral,

como acho que consegui demonstrar, mas em especial sobre a forma como Haroldo

trata a linguagem em seu livro.

Galáxias foi publicado pela primeira vez em 1984, pela editora Ex Libris. Antes

disso, no entanto, boa parte dos cinquenta fragmentos que viriam a integrar a versão final

do livro – escrito entre 1963 e 1976 – já havia sido divulgada de maneira episódica em

revistas e suplementos literários do Brasil e de Portugal6. Como exemplo mais relevante,

podemos tomar a revista Invenção, onde trechos de Galáxias foram pela primeira vez

publicados: treze fragmentos no nº 4 (1964) e outros quinze no nº 5 (1966-7). Mais tarde,

quarenta e três fragmentos – o conjunto quase completo da obra, portanto – formariam

uma sessão de Xadrez de Estrelas: Percurso Textual (1976), volume que compila a poesia

produzida por Haroldo de Campos entre 1949 e 1974.

Organizado em torno do eixo temático “o livro como viagem e a viagem como

livro”, Galáxias se alimenta, do ponto de vista semântico, de diversos assuntos relacio-

nados ao tema da viagem, a partir dos quais se articulam pequenas e sucessivas estórias,

cujos desfechos, no entanto, jamais se revelam. “Como arabescos que não se deixam

concluir” (CAMPOS, 1976, p. 91), esses impulsos narrativos sofrem a ação constante

de uma operação de esvaziamento do discurso, que, cortando o fio da estória, detém a

atenção do leitor na linguagem. Acometido pelo efeito de “não-sentido” que o colapso

6 Fragmentos avulsos de Galáxias também foram publicados em Flor do mal, Navilouca, Polem, Código e

Qorpo estranho, no Brasil; e O tempo e o modo do Brasil e revista Nova, em Portugal.

30

discursivo produz, o equilíbrio estável do signo – “nexo ou ligadura estreita e como que

inevitável com o referente” (SARDUY, 1979, p. 119) – se rompe, vacilando em direção

à concretude das palavras. Com o afrouxamento dos nós que atam o significante ao

significado, evidenciam-se os aspectos materiais da linguagem, até então eclipsados por

sua dimensão semântica.

Submetidas ao procedimento de obstáculo descrito por Chklovski, as palavras

extrapolam a condição de mero suporte das ideias, passando a serem percebidas pelo lei-

tor e a relacionarem-se entre si como unidades verbivocovisuais, isto é, objetos dotados

de realidade semântica, sonora e visual. Nessas lacunas de discurso, o texto se organiza

como uma constelação de significantes, estrutura na qual o sentido não se produz pela

concatenação lógica, mas pelo contágio mútuo dos vocábulos. Avizinhadas – não mais

encadeadas –, as palavras significam pelas ideias que carregam, mas também por sua tex-

tura sonora e seu aspecto gráfico. Em Galáxias, como veremos nos próximos capítulos,

as palavras se aproximam por similitude – sobretudo fonológica – e formam um corpo

textual cuja visualidade participa da produção de sentido.

A elusão do discurso, como observa André Sanches Robayna, constitui um

motivo central em Galáxias. Proposto como experiência de abolição dos limites entre a

prosa e a poesia, o texto de Haroldo acumula referências da realidade exterior – “o visto, o

ouvido, o vivido, o lido” (CAMPOS, 2002, p. 695) – para depois descarregá-las, realizando

um vertiginoso ciclo de atração e repulsão, no qual o foco do texto subitamente se trans-

fere do discurso para a linguagem. O constante deslocamento entre os polos discursivo

e material – assunto a ser detalhado ao longo desta dissertação – é a operação textual

pela qual Haroldo persegue o seu propósito de ruptura dos gêneros. Guiado pela imagem

norteadora do “epos sem estória” (CAMPOS, 2010b, p. 271), o poeta combate a ameaça

constante de uma narrativa com a subtração do objeto narrado. Dessa forma, a informa-

ção lógica, em direção à qual as palavras – como flechas – se lançavam, é substituída pela

informação sensível, produzida pelo domínio simultâneo de todos os atributos da palavra

– suas camadas visual, sonora, semântica – e, ainda, da maneira como ela se articula com

as outras palavras.

31

A forma como é tratada a linguagem em Galáxias – herança tanto do movimento

da poesia concreta, quanto de uma “pré-história barroca” (CAMPOS, 2010, p. 270) da

poesia de Haroldo – responde, com meios próprios e em um contexto particular, a ques-

tões que se colocavam de modo geral para a arte. Por um lado, o problema da redução

do suporte a mero fundo de representação, por outro a introdução da percepção sensível

no campo da decodificação abstrata. Com o esvaziamento do discurso em Galáxias, o

caráter objetal é restituído à palavra, que passa a ser percebida como um objeto complexo,

capaz de atingir com um só golpe os ouvidos e os olhos, tanto quanto o intelecto do leitor.

Operando com a materialidade de seu corpo sobre a dimensão sensível do sujeito, essa

linguagem produz sentidos que não podem ser explicados, mas imediatamente vividos.

Uma imagem da imagem, a obra de Mira Schendel é também uma imagem da realidade

textual em Galáxias, no qual o vazio pleno de prováveis é ativado ao redor das espiraladas

constelações significantes. Essa atração pelo vazio, pelos sentidos não simbolizáveis, sus-

cita uma reflexão fundamental no universo da arte contemporânea.

Em “Ativamente o vazio” (1996) – ensaio que traça um paralelo entre a obra de Mira

Schendel e a de outros artistas contemporâneos a partir da noção de vazio –, o crítico de arte

e curador Guy Brett menciona uma série do artista filipino David Medalla chamada Efêmeros.

Uma dentre as obras que compunham essa série era feita de dois palitos de fósforo e duas

folhas, tendo sido chamada pelo seu autor de “balança para pesar a luz do sol e a sombra”:

Neste dispositivo para equalizar dois contrários ele poderia muito bem estar alu-

dindo, maliciosamente, à verdade do pintor, tal como expressa por Goya, que diz

que “na natureza existem apenas a luz do sol e a sombra”. (BRETT, 1996, p. 51).

Antonio Brugada – jovem pintor e amigo de Goya – revelou ao biógrafo Laurent

Matheron, que o pintor da Maja desnuda gostava de zombar da forma como os acadêmi-

cos ensinavam desenho:

“Sempre linhas”, dizia “jamais corpos. Mas, afinal, onde eles encontram essas

linhas na natureza? Quanto a mim eu só vejo nela corpos iluminados e corpos

que não o são, planos que avançam e planos que recuam, relevos e vazios. Meu

32

olho jamais percebe nem lineamentos, nem detalhes. [...] Meu pincel não deve

ver mais [...] do que eu” (MATHERON apud TODOROV, 2011, p.22)

Conforme as afirmações atribuídas pelo amigo a Goya, o pintor não deve retra-

tar o mundo tal como ele é, mas a maneira como ele o vê, transformando a realidade

objetiva pela percepção subjetiva: “a experiência do pintor, e não o mundo em si, cons-

titui o objeto de seu quadro; a experiência do espectador, e não as qualidades materiais

do quadro, é o que garante a qualidade deste” (TODOROV, 2011, p. 22). A possível

alusão ao pintor, apontada por Guy Brett no título da peça de Medalla, diria respeito

a esse caráter subjetivo – e portanto imaterial – da experiência da arte. Segundo o que

nos conta Brett, Medalla dizia que seus efêmeros eram como “metáforas em miniatura

do Vazio” e “não monumentos ou objetos de arte para especulação, consumo ou autoe-

xaltação” (MEDALLA apud BRETT, 1996, p. 51). Ora, entendendo que metáforas são

elementos concretos que exprimem uma abstração, podemos assumir que os efêmeros,

como foram propostos por Medalla, remetem a alguma coisa que, concretamente, não

está ali. A fala do artista filipino reforça que a arte não é um estatuto do objeto, mas “um

processo de sensibilização” (BRETT, 1996, p. 49), que se realiza como uma virtualidade

resultante da interação do sujeito com a obra.

Tomando a arte como uma experiência do indivíduo, a obra e o pensamento de

Goya não apenas abriram uma brecha na tradição pictórica – universo em que represen-

taram, nas palavras de Todorov, uma “revolução coperniciana”–, como anteciparam uma

questão fundamental para as realidades artísticas do século XX. A participação do sujeito

se tornou um denominador comum nas produções de arte contemporânea, tendo moti-

vado essa atração pela noção de vazio nos experimentos de artistas como David Medalla.

Entendido como espaço pleno de prováveis, o vazio se insere nesses trabalhos

como uma lacuna a ser preenchida pelo sujeito, cujos particularíssimos sentidos – e sen-

síveis – incorporar-se-ão à constituição mesma da obra. A noção de vazio como espaço

de fruição é materializada, por exemplo, pelos Penetráveis de Hélio Oiticica, nos quais

o processo de sensibilização de que fala Guy Brett é vivenciado literalmente no interior

33

das instalações labirínticas criadas pelo artista. Em procedimento de certa forma análogo,

ao se deslocar em volta do objeto gráfico de Mira Schendel, o sujeito se insere no campo

virtual formado pelo vazio que vaza do vão entre as placas de acrílico e se expande pelo

espaço real no entorno da obra. No livro de Haroldo, o espaço do sujeito se forma nos

vazios de sentido lógico-discursivo que as constantes interrupções do gesto narrativo pro-

duzem. Marcados por uma descontinuidade arejada, os fragmentos de que se compõem

o livro formam como que um mosaico no qual o leitor é quem dá a liga entre as peças,

determinando o aspecto da figura que se formará, e que – perpetuum mobile – se transfor-

mará a cada nova leitura.

Em “A arte no horizonte do provável”, Haroldo de Campos aponta a “provisorie-

dade do estético” (CAMPOS, 2010a, p. 15. Grifo do autor) como uma das características

fundamentais da arte contemporânea:

Enquanto que, numa estética clássica, a tendência seria considerar o objeto

artístico sub specie aeternitatis, a arte contemporânea, produzida no quadro de

uma civilização eminentemente técnica em constante e vertiginosa transfor-

mação, parece ter incorporado o relativo e o transitório como dimensão mesma

de seu ser. (CAMPOS, 2010a, p. 15)

O autor traça um paralelo entre a tendência artística e a física moderna, que,

opondo-se ao rígido determinismo da física clássica, substitui a noção de certeza pela

noção de probabilidade, introduzida pelo princípio da indeterminação de Heisenberg.

Heisenberg, escrevendo em 1948 sobre “o conceito de teoria conclusa”, observa:

“o que estabelecemos matematicamente só em pequena parte é urn fato obje-

tivo; em sua· maior parte, é uma visão de conjunto sobre possibilidades”. (apud

CAMPOS, 2010a, p. 16)

No artigo “A obra de arte aberta”,7 publicado pela primeira vez no Diário de São

Paulo, em 1955, Haroldo procura delinear “o campo vetorial da arte de nosso tempo”,

7 O artigo foi republicado no livro A teoria da poesia em concreta, cuja primeira edição data de 1965.

34

tendo como eixos radiais as obras de Mallarmé, James Joyce, Ezra Pound e e.e.cummings.

O texto propõe uma obra de arte

que faz da categoria do provisório a sua própria categoria da criação, pondo em

questão, constantemente, a ideia mesma de obra conclusa, instalando o transi-

tório onde, segundo uma perspectiva clássica, vigeria a imutabilidade perfeita

e paradigmal dos objetos eternos” (CAMPOS, 2010a. p. 19).

Coincidentemente, a questão levantada por Haroldo, mais tarde, seria abordada

– e expandida para além da teoria estética – por Umberto Eco, no livro Obra aberta, de

1962. À formulação do conceito de abertura de Haroldo – que sustenta uma recusa da

obra de arte cristalizada, do tipo diamante –, Eco inclui, entre outras coisas, a noção de

estrutura de uma “relação fruitiva com seus receptores” (ECO, 1991, p. 29), segundo a

qual a obra tende a promover “atos de liberdade consciente” (ECO, 1991, p. 41), colocando

o intérprete como “centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele

instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva

os modos definitivos de organização da obra fruída” (POUSSEUR apud ECO, 1991, p. 41).

A obra de arte aberta, completa Eco, “exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque

não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar, num ato de con-

genialidade com o autor” (ECO, 1991, p. 41).

Estruturas abertas, os fragmentos de Galáxias, como afirma o próprio Haroldo,

se enquadram em uma categoria de textos que não são legíveis, mas escritíveis (scriptibles),

segundo a descrição proposta por Roland Barthes. Voltadas para o horizonte do provável, as

galáxias significantes não admitem somente um, mas múltiplos sentidos, os quais, no entanto,

não se realizam senão pela operação da leitura-escritiva: “quanto mais o texto é plural, tanto

menos ele será escrito antes que eu o leia” (BARTHES apud CAMPOS, 2010c, p. 244).

Nesse “livro-areia / escorrendo entre os dedos” (CAMPOS, 2004, fragmento 48),8 o gesto nar-

rativo se perde em lacunas comunicativas nas quais a ilusão do “sentido explicado”, nas pala-

8 Nem as páginas nem os fragmentos de Galáxias estão numerados, de modo que, quando houver a

necessidade, serão referidos de acordo com a posição que ocupam na sequência do livro.

35

vras de Mira Schendel, invariavelmente se converte em enigma. Em espaços de incerteza, onde

a informação semântica clara e inequívoca – como sob a ação de um prisma – se decompõe

em um campo de probabilidades.

A leitura de Galáxias é, pois, uma operação de reinvenção dentro do campo de suas

probabilidades. Posta não como resultado, mas como processo, a obra convida o intérprete a

participar, preenchendo com a matéria de sua própria subjetividade os vazios de sentido que

se lhe apresentam. Nesse processo, portanto, a informação estética não preexiste, mas nasce

da síntese dos fatos objetivos da obra com os dados a ela incorporados pelo sujeito. É na

conjunção dessas duas realidades, a objetiva e a subjetiva, que se forma o espaço de fruição.

Lugar que não é físico e não é fixo, mas virtual e provisório: um campo invisível, que se funda

no “espaço sem palavras de que o livro faz-se” (CAMPOS, 2004, fragmento 31). Oferecendo

ao leitor uma trilha que leva ao vazio da linguagem, Galáxias, como o objeto gráfico em

sua capa, chama a atenção para uma dimensão silenciosa que somente vislumbramos sem

podermos realmente apreender. Ao aceitar o desafio dessa leitura, o sujeito não tem outra

saída, senão participar ativamente da produção dos sentidos, “num ato de congenialidade

com o autor”, como queria Umberto Eco.

36

CAPÍTULO 2

Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias

E até do silêncio, que parece puro vazio, ausência de som, o espírito arranca um mar de significados.

Alfredo Bosi O ser e o tempo da poesia

Organizados em torno do eixo temático “o livro como viagem e a viagem como

livro”, os cinquenta fragmentos que compõem Galáxias se alimentam de diversos assuntos

caros ao antigo e ilustre tema da viagem. Como nas grandes narrativas marítimas – ou nos

diários de bordo –, o texto passeia por eventos históricos, mitológicos e cotidianos, per-

correndo múltiplos cenários nos quais aventura-se pela cultura, pela arte, pela literatura

e pela linguagem.9 Mas Galáxias não é um livro de viagem. O elemento central de suas

antiestórias não é o objeto do relato, mas o relatar em si. No texto de Haroldo, o material

semântico apenas empresta o seu corpo para uma odisseia cujas peripécias se passam na

linguagem, não fora dela.

“Seduzia-me fazer uma experiência de abolição ou rarefação dos limites entre poesia

e prosa”, revelou o autor, esclarecendo que o livro se desenvolve “no sentido não propriamente

de uma épica (narração), mas de uma epifânica (visão)” (CAMPOS, 2002, p. 42). Como expli-

quei no capítulo anterior, a ruptura de gênero em Galáxias resulta do esvaziamento da lógica

discursiva. Na prosa, segundo a formulação de Octavio Paz, o sentido é “algo como uma flecha

que obriga todas as palavras a apontarem [...] para uma mesma direção” (PAZ, 1982, p. 130).

9 Em “Viajando pelas Galáxias”, o professor de literatura luso­brasileira Kenneth David Jackson nos apre­

senta como que uma cartografia da viagem galáctica, expondo a sequência de cidades e de referências

literárias, artísticas e estéticas que constituem a matéria­prima dos cinquenta fragmentos. O texto foi

publicado no livro Céu acima (incluso entre as referências bibliográficas desta dissertação), organizado

pela crítica literária, tradutora e professora Leda Tenório.

37

Em Galáxias, a trilha dessa flecha não leva a lugar algum: tal qual uma miragem, o enredo sem-

pre desaparece antes que possa ser alcançado. Diante da aparente falta de sentido que se instaura

com a interrupção do gesto narrativo, o leitor acaba sendo acessado pela materialidade mesma

do texto. Quer dizer, quando o objeto do relato é elidido – para usar a expressão proposta por

Andrés Sánchez Robayna (1979) –, também a forma da linguagem passa a produzir sentido,

agindo sobre o leitor, todavia, não como uma mensagem a ser decodificada, mas como um

evento de natureza extralógica. Daí a ser caracterizada pelo autor como uma obra “epifânica”.

Haroldo chamou o primeiro e o último fragmento de Galáxias de formantes,

expressão tomada de empréstimo do músico francês Pierre Boulez, que assim designou as

estruturas de conteúdo fixo e ordenação livre que se integram em suas sonatas: “o intér-

prete, dentro da peça passa a ter possibilidades de escolha [...] mas as possibilidades serão

delimitadas pelo compositor” (CAMPOS, 2010a, p. 20). O elemento formante, portanto,

delimita o raio de ação do sujeito, submetendo a obra de estrutura aberta – “um livro onde

tudo seja fortuito e forçoso” – ao “necessário controle do acaso”. Em Galáxias, estando

fixos no começo e no fim do texto, os formantes “balizam o jogo de páginas móveis, inter-

cambiáveis à leitura” (CAMPOS, 2004, p. 119), demarcando os limites do percurso textual.

O formante inicial não apenas institui o ponto de partida, como ainda fornece

as coordenadas do trajeto pelo qual o leitor acaba de se enveredar. Como um prelúdio, o

trecho antecede e antecipa os traços que determinarão a realidade geral do projeto. As pri-

meiras palavras de Galáxias, “e começo aqui”,10 desferem um golpe no silêncio, fundando a

fala ao mesmo tempo em que dão a ver – “miradouro aléfico” (CAMPOS, 2004, p. 119) – a

imagem do livro inteiro. Um texto no qual os sentidos nascem nas ruínas da estrutura

discursiva, Galáxias é um caminho que leva irremediável e incessantemente ao começo.

O começo, todavia, não é o ponto fixo do qual nos distanciamos à medida que a nossa

jornada pelo texto avança, mas o momento em que se rompe a continuidade das ideias, e a

linguagem, restituída a sua integralidade verbivocovisual, inaugura um sentido para além

do encadeamento lógico das palavras.

10 Os formantes inicial e terminal de Galáxias estão grafados em itálico.

38

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso

e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa

não é a viagem mas o começo da11

O CD isto não é um livro de viagem registra a leitura oral, executada pelo próprio

autor, de alguns dos fragmentos de Galáxias, entre os quais, o formante inicial. Curio-

samente, em sua leitura Haroldo ignora a conjunção aditiva que abre o texto, dizendo

apenas “começo aqui”. A partícula elidida pelo poeta, no entanto, será determinante para

a interpretação que darei à passagem. Pronunciada com o som de /i/ – considerando uma

variante largamente disseminada no Português do Brasil –, a vogal /e/ se encadeia, pela

rima em –i, com a palavra “aqui”. A conjunção que se realiza na partícula átona – repetida

outras cinco vezes ao longo do trecho – estabelece uma imprevista relação não com a

forma análoga que aparecerá logo em seguida, mas com a sílaba tônica da palavra “aqui”.

Conforme o ritmo da oralização que estou propondo – correspondente, na terminologia

musical, ao compasso quaternário –, distribuem-se, pelo trecho, oito acentos com interva-

los de quatro sílabas poéticas, começando pela primeira, como ilustro a seguir:

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso

e aqui me meço

No ritmo do texto, a vogal átona se converte no tempo forte do compasso qua-

ternário, isto é, no elemento de maior destaque dentro do conjunto de quatro sílabas

que ela introduz. Situada no ponto de partida do formante inicial e, portanto, no grau

zero do percurso textual de Galáxias, a batida inaugural marca o momento decisivo em

que se funda o gesto da escritura. Plena de carga simbólica, a diminuta materialidade da

conjunção vocálica rompe o branco da página com a força de um vulcão em erupção,

expelindo “milumaestórias na mínima unha de estória”. Uma imagem da gênese do sen-

11 Os fragmentos completos a que pertencem os trechos analisados neste capítulo podem ser consulta­

dos na seção Anexos desta dissertação.

39

tido e, portanto, da própria imagem poética, este átomo de linguagem dá a ver, em sua

instantânea e fugaz novidade, a única coisa que importa no texto: o começo da viagem.

“O fim é o comêço”, diz uma passagem do mesmo fragmento, na qual a palavra “fim” deve

ser compreendida sob um prisma, do qual se projetam, por um lado, a ideia de finalidade,

ou destinação; por outro, a de extremidade, ou acuidade, o limite entre o ser e o não ser.

Esse começo a um só tempo se anuncia pelo discurso – “e começo aqui” – e se realiza

concretamente pelas palavras, que reiteram o impulso iniciático a cada vez que o acento

silábico se abate sobre o texto e produz uma nova interrupção na continuidade da frase.

Em certo sentido, como afirmou Haroldo,12 Galáxias tem “uma estrutura de estória

detetivesca, já que a intriga é constantemente interrompida, suspensa, e o leitor fica à busca

do ‘quem’ e do ‘quê’ do texto” (CAMPOS, 2010b, p. 272). No trecho em análise, o narrador,

por assim dizer, fixa um ponto de partida: “e começo aqui e meço aqui este começo”. A infor-

mação de caráter semântico, no entanto, não se completa. Assimilado pelo corpo do texto,

o discurso se dilui em um bloco sonoro no qual a ideia abstrata se transforma em realidade

concreta. Fundado sobre uma alternância de sonoridades sibilantes e oclusivas (produzidas,

respectivamente, pela passagem e obstrução do ar), o trecho é marcado por ciclos de dura-

ção e ruptura, que inscrevem o começo e os sucessivos recomeços na materialidade mesma

da linguagem: “este começo e recomeço e remeço e arremesso”. Os constantes cortes a que esses

sons e os seus tons submetem o texto produzem um balanço ondulatório – do tipo onda

contra rocha –, que por sua vez também é violentamente interrompido: antes que o ritmo

se transforme em automatismo, o discurso se reconstitui – “o que importa não é a viagem

mas o começo da” –, paradoxalmente, como força desordenadora, interrompendo o movi-

mento cadenciado em vias de se estabelecer. Aqui a restauração do encadeamento discursivo

promove a subversão de sua própria lógica: ao invés de compartimentalizar, conduzindo o

leitor exclusivamente pela margem abstrata, o texto restitui a integralidade da linguagem,

impedindo que a leitura se reduza a puro deleite sonoro.

12 Em “Do epos ao epifânico (gênese e elaboração das Galáxias)”, entrevista publicada em 06/10/1984, no

Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde (O Estado de S. Paulo), e posteriormente reeditada

para Metalinguagem e outras metas.

40

Uma metafísica instantânea, nas palavras de Bachelard, a poesia opera no domí-

nio da simultaneidade. Lembremos de Igitur ou a loucura de Elbehnon, livro de Mallarmé

no qual a meia-noite não marca mais uma hora no relógio do jovem personagem que dá

título à obra, mas consuma a imagem de um tempo imobilizado, de um instante limítrofe

entre o hoje e o amanhã, no “ponto de junção do seu futuro e do seu passado já idênti-

cos” (MALLARMÉ, 1990, p. 75). Em A lógica do sentido, Deleuze confronta duas leituras

mutuamente exclusivas do tempo, o Cronos e o Aion: “um é cíclico, mede o movimento

dos corpos e depende da matéria que o limita e preenche; e o outro é pura linha reta na

superfície, incorporal, ilimitado, forma vazia do tempo, independente de toda matéria”

(DELEUZE, 2011, p. 65). Cronos, portanto, é o tempo do relógio, o tempo que é determi-

nado pelo movimento da terra e que rege os ciclos do universo físico, transformando dia

em noite e noite em dia; primavera em verão, em outono, em inverno, e novamente em

primavera. Aion, por sua vez, é o tempo subjetivo que cada indivíduo carrega consigo, um

tempo “incorporal que se desenrolou, tornou-se autônomo desembaraçando-se de sua

matéria” (DELEUZE, 2011, p. 65). Sucessivo, o tempo cronológico se repete regularmente:

os minutos nas horas, as horas no dia, os dias na semana e assim por diante. O tempo aiô-

nico, pura linha reta, conforme o descreveu Deleuze, é um tempo irrecuperável, “fugindo

nos dois sentidos ao mesmo tempo do passado e do futuro” (DELEUZE, 2011, p. 65).

passadoaion

futuro

O Aion é o acontecimento puro, o momento de uma absoluta particularidade que

Deleuze chama de haecceity, ou em português, hecceidade. De origem latina (haec, que sig-

nifica isto), a expressão designa a espaciotemporalidade inerente a todo evento, algo como

“aquiagoridade”. Trata-se, retomando o assunto do primeiro capítulo, do fenômeno que

Mira Schendel se propôs a capturar, o preciso momento em que uma experiência imediata

encontra abrigo na linguagem: “não perguntaremos, pois, qual o sentido de um aconteci-

41

mento: o acontecimento é o próprio sentido” (DELEUZE, 2011, p. 23). Segundo a tempora-

lidade do Cronos, a meia-noite – notação que indica determinada posição do sol em relação

à terra – se repetirá diária e indefinidamente pela eternidade. A meia-noite de Mallarmé,

uma realidade aiônica, uma hecceidade, jamais realizar-se-á uma segunda vez. Ao descer as

escadas em direção à cripta de seus antepassados, Igitur – personagem nomeado pela con-

junção latina que expressa justamente o sentido de conclusão – penetra neste preciso ponto,

onde, fugindo do passado e do futuro, o tempo se encerra. A esse tempo interrompido,

cuja duração não mais é dada pelos ponteiros do relógio – “horas vazias, puramente negati-

vas” (MALLARMÉ, 1990, p. 57) –, Bachelard propôs chamar de “vertical, para distingui-lo

de um tempo que foge horizontalmente” (BACHELARD, 2010, p. 94). O filósofo francês,

aliás, dedica um longo ensaio ao estudo dessa atômica unidade temporal: trata-se do livro

A intuição do instante, em cujo capítulo final – “Instante poético e instante metafísico” – ele

relaciona a temporalidade à experiência poética:

É para construir um instante complexo, para atar, nesse instante, simulta-

neidades numerosas, que o poeta destrói a continuidade simples do tempo

encadeado. Em todo poema verdadeiro, podem-se, então, encontrar os ele-

mentos de um tempo interrompido, de um tempo que não segue a medida

(BACHELARD, 2010, p. 94).

Com o reagrupamento das camadas da linguagem no primeiro fragmento de

Galáxias, as noções de começo e recomeço extrapolam o horizonte do puramente dis-

cursivo e assumem a condição de verdadeiros fenômenos sensoriais: compreensíveis e ao

mesmo tempo sensíveis pelo leitor. Não apenas uma informação lógica comunicada pelas

palavras, mas uma hecceidade – para usar a expressão deleuziana –, os sentidos do texto,

de natureza estética e não semântica, resultam da articulação dos significantes com os seus

significados. Esses sentidos, embora até certo ponto previstos pelo autor – “necessário

controle do acaso” –, somente se realizam na presença do leitor, em uma instância que se

funda quando a oposição entre o sujeito e a obra se transforma em ambivalência. Radi-

calmente privada de um lugar fixo, essa instância – que no primeiro capítulo chamei de

42

espaço de fruição – se sustenta em equilíbrio instável, do tipo que só é alcançado em movi-

mento, como o que se produz pelo malabarista: “alguém que administra três objetos onde só

cabem dois. Nesse caso, tem que introduzir o conceito de tempo. Na verdade, o malabarista

é aquele que encontra o lugar no tempo” (MEIRELES apud MAIA, 2009, p. 72-3). Um sutil

ato de malabarismo,13 o texto de Haroldo equilibra o material e o imaterial da linguagem

– dimensão em que se inclui a carga subjetiva do leitor –, reunindo múltiplas e sucessivas

realidades no espaço de um tempo único, imobilizado. “Enquanto o tempo da prosódia

é horizontal”, diz Bachelard, “o tempo da poesia é vertical” (BACHELARD, 2010, p. 94),

porque dura não em continuidade, mas em intensidade: “a meta é a verticalidade, a pro-

fundidade ou a altura” (BACHELARD, 2010, p. 94). Libertos da progressão cronológica,

os sentidos do poema, portanto, habitam o território do Aion, realidade entretempos, ou

extratempórea, da qual o tempo é abolido.

Creio que a esta altura já não é mais possível fazer suspense a respeito do meu

argumento sobre “passatempos e matatempos”, cujo – digamos assim – apelido14 levanta

sugestivamente a questão da temporalidade sobre a qual venho falando. O fragmento,

conforme a breve explicação de Haroldo no texto elaborado para isto não é um livro de

viagem, “é uma fábula de ‘busca’, miniaturizada. Em lugar de talismã, aqui o objeto da

demanda é o próprio ser do conto, o ‘quem’ da narração”. Tudo o que se passa no texto, diz

ele, “concorre para o clima de demanda infinita, busca sem termo [...] empreendida por

uma criança perdida na floresta” (CAMPOS, 2004, p.120):

meuminino começou sua gesta cirandejo no bosque deu com a bela endormida

belabela me diga uma estória de vida mas a bela endormida de silêncio

endormia e ninguém lhe contava essa estória se havia meuminino disparte

para um reino entrefosco que o rei morto era posto e o rei posto era morto

mas ninguém lhe contava essa estória

13 Tomei emprestada a expressão que dá nome a uma entrevista concedida ao crítico de arte Ronaldo

Brito pelo artista plástico Cildo Meireles, que usa a figura do malabarista como metáfora de seu conceito­

­síntese de território.

14 Os fragmentos de Galáxias não estão nomeados, de modo que aqui serão referidos pelas palavras

que os introduzem, assim como foi feito no índice que lista os fragmentos de acordo com a ordem em que

aparecem no livro (e que corresponde à cronologia de produção dos textos).

43

No ensaio “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua”, Haroldo propõe uma lei-

tura psicanalítica do fragmento – extensível à compreensão da obra como um todo –, a partir

da qual associa o conceito de texto “escritível” de Barthes, sobre o qual eu tratei no primeiro

capítulo, com a noção lacaniana de desejo do Outro. Elemento fundamental da teoria psica-

nalítica de Lacan, o grande Outro – em oposição ao pequeno outro, isto é, o outro indivíduo,

as outras pessoas – diz respeito, em poucas palavras, a uma alteridade de natureza coletiva

que inevitavelmente se infiltra no sujeito por meio da linguagem, determinando desde a sua

identidade até as camadas mais profundas de sua realidade psíquica. Na teoria lacaniana, a

noção de desejo é considerada a partir do trinômio necessidade-demanda-desejo. Da ordem

do orgânico, a necessidade parte do corpo – necessidade de ar, necessidade de água, neces-

sidade de comida etc. – e é originalmente deflagrada pela

falta radical que resulta da saída do ventre materno. A criança, desde o nasci-

mento, perdeu seu complemento anatômico, sua falta é um vazio, um buraco,

uma “hiância” [...] Desde a seção do cordão umbilical, desde que é arrancada

da placenta, às membranas internas da mãe [primeira manifestação do grande

Outro a que o indivíduo é submetido], a criança recém-nascida se encontra

separada de uma parte de si mesma. (FAGES, 1977, p. 42)

Essa necessidade primordial, de natureza fisiológica, deixa de ser natural quando,

transformando-se em demanda, passa a habitar o território dos sentidos. A demanda é

a forma como a necessidade – articulada pelo simbólico – se endereça ao Outro, desde

o choro do bebê até a expressão verbal. Trata-se do meio pelo qual a necessidade de um

indivíduo se faz reconhecer pelos demais e por ele mesmo. No processo de simboliza-

ção, a linguagem – reciclando aqui uma comparação que usei para falar sobre o caráter

redutor da atribuição de significado – opera como uma peneira, capturando apenas em

parte o objeto da necessidade. O desejo “nasce [dessa] defasagem entre a necessidade e a

demanda” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991, p. 114). Resíduo de linguagem que não se

converteu em signo, o desejo é a carência, jamais satisfeita, de reconhecimento pelo Outro.

Por isso, a famosa postulação de Lacan, “o desejo do homem é o desejo do Outro”:

44

Referindo-se a Hegel, a fórmula se explicita: “O desejo mesmo do homem se

constitui sob o signo da mediação, é desejo de fazer reconhecer seu desejo.

Tem por objeto um desejo, o desejo do outro, no sentido de que o homem não

tem objeto que se constitua por seu desejo sem alguma mediação” [...] O que o

homem deseja é que o outro o deseje: ele quer ser aquilo que falta ao outro, ser

a causa do desejo do outro. (FAGES, 1977, p. 45)

Domínio do grande Outro, o desejo, portanto, é uma dialética incessante do eu

com o outro que em mim habita. Após essas considerações, podemos agora tentar enten-

der melhor a relação que se estabelece entre o conceito lacaniano de desejo do Outro e

“passatempos e matatempos”. Com uma estrutura de conto de fadas – “nada mais aliciador

para um leitor ávido por estórias”, como bem observou Marília Garcia15 –, o fragmento é

o signo de um desejo insaciado. Na esteira das aventuras do “miniminino” em busca de

uma estória, o texto percorre a trilha de uma série de clássicos da literatura universal e

suas célebres personagens. A primeira delas Xerazade, ou Sherezada, como quis Haroldo

– lendária rainha persa e narradora de As Mil e Uma Noites –, evoca a imagem da narrativa

infinita, capaz de converter uma noite em mil, ou um instante em eternidade:

passatempos e matatempos eu mentoscuro pervago por este minuscoleante

instante de minutos instando alguém e instado além para contecontear uma

estória scherezada minha fada quantos fados há em cada nada nuga meada

noves fora fada scherezada scherezada uma estória milnoitescontada

Uma narrativa – “eu mentoscuro pervago” – começa a se desdobrar, sendo rapi-

damente interrompida pela inserção de uma estrutura digressiva, que suspende o anda-

mento da estória, instaurando uma realidade na qual o instante fica detido e os ponteiros

do relógio, imobilizados: “minuscoleante instante de minutos instando alguém e instado

além”. A interrupção do tempo, no nível do discurso também se produz no corpo da lin-

guagem. Nesse instante estanque, pulsam os múltiplos movimentos vocabulares contidos

15 A escritora produziu um artigo intitulado “Superfície e enigma nas Galáxias de Haroldo de Campos”,

que foi publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 47, n. 1, pp. 193­209, jan./jun. 2007.

45

na pétrea figura da palavra “minuscoleante”. Minúsculo-minuscolear-minuscoleante: de

nome a verbo e, novamente, a nome, as marcas das vertiginosas metamorfoses se velam e

ao mesmo tempo revelam pela micrológica estrutura. Uma recusa à progressão do tempo,

a palavra minuscoleante se estende não apenas pela eternidade de seu particípio presente,

mas também pelo espaço-tempo do instante vizinho – “minuscoleante instante” –, sobre

o qual se projeta, como um eco. Recusando-se a findar, o minuscoleante instante converte

os minutos em fenômenos instantâneos e o instante, em evento duradouro. Tornado ação

e ao mesmo tempo agente, o fenômeno atrai a atenção do leitor e o conduz para o domínio

aiônico que se funda pelas palavras: “instando alguém e instado além”.

Vale a pena observar a formação de um jogo de espelhos, no qual a duração e a rup-

tura do tempo, evocadas pelas primeiras palavras do trecho – “passatempos e matatempos” –,

se projetam em estruturas textuais narrativa – “eu mentoscuro pervago” – e antinarrativa –

“este minuscoleante / instante de minutos instando alguém e instado além”, nas quais o

tempo se dissolve e se detém, respectivamente.

Tal qual As mil e uma noites, “passatempos e matatempos” – e, conforme veremos

mais adiante, o livro Galáxias como um todo – ostenta uma estrutura de narrativas engas-

tadas (TODOROV). Esperamos ansiosamente pelo desfecho, mas uma estória leva a outra

estória, que leva a outra estória, que leva a outra estória: de Sherezada à Bela Adormecida,

da Bela Adormecida ao país das maravilhas, então à Dânae e ao cisne mallarmaico. Perse-

guindo, como o rei Xariar, uma conclusão que jamais se nos apresentará, tropeçamos nos

súbitos desvios de rota, que se inserem no texto, como alçapões pelos quais a narrativa

desaba, levando consigo a esperança de que se satisfaça o nosso desejo de estória.

Galáxias, como definiu Haroldo, é um gesto épico que se resolve numa epifâ-

nica. “Na epifania”, explica o autor, “a visão prevalece sobre a ação. Quero dizer que o

narrar – o gesto narrativo próprio da prosa – deixou-se levar de roldão pela prolifera-

ção de imagens” (CAMPOS: 1984, p. 25). A narrativa conduz ao reino do imaginário,

tendo como desfecho uma informação extralógica, realizada pela atuação concriativa

do leitor-escritor – “você também vira objeto do jogo” –, que se infiltra no texto através

das lacunas instauradas pela elusão do discurso (ROBAYNA). Considerando a teoria

46

lacaniana, podemos dizer que a falta do objeto narrativo produz uma necessidade que

jamais se transforma em demanda. Irreconhecíveis sob o ponto de vista puramente

racional, os sentidos do texto – fenômenos em puro estado de latência – se consumam

pelo desejo do leitor, grande Outro de cujo subjetivo material o texto se alimenta: “no

que o significante primordial é puro não-senso, ele se torna portador da infinitização do

valor do sujeito” (LACAN apud CAMPOS, 2010c, p. 244).

Quando o discurso silencia, portanto, a materialidade da linguagem se põe a falar.

Produzindo sentidos que resultam do que as palavras dizem e, sobretudo do que falham em

dizer, o texto reanima uma instância da linguagem que Lacan chamou de lalangue, ou, na

tradução de Haroldo, “lalíngua”: trata-se de “uma língua enfatizada, uma língua tensionada

pela ‘função poética’, uma língua que ‘serve a coisas inteiramente diversas da comunicação’”

(CAMPOS, 2010c, p. 243). Recorrendo a uma cunhagem de seu poema “Ciropédia ou a edu-

cação do príncipe” (1952), Haroldo apelida a lalangue lacaniana de “idiomaterno”. Na abre-

viada realidade da imagem evocada pelo poeta, relacionam-se a afetuosidade e a integrali-

dade da figura materna – lembremos que, em sua vida intrauterina, o sujeito está carnalmente

ligado ao corpo da mãe – com a “lalíngua”, uma língua cuja mensagem verbivocovisual “nos

‘afeta’ com ‘efeitos’ que são ‘afetos’” (CAMPOS, 2010C, p. 243). A “lalíngua”, eu diria, tomando

emprestado o título do poema de Augusto de Campos,16 são os “sentidos sentidos”.

Dotado de uma materialidade que não se deixa ignorar, o corpo do texto se ergue

como um sólido obstáculo – “corpo a ser decifrado com o corpo” –, reclamando a presença

corporal do sujeito diante dele. Um livro para ser lido em voz alta, como recomendou o

próprio Haroldo, Galáxias ostenta uma aliciadora e irrecusável textura sonora, que induz

o leitor ao gesto oral. Para além de simples declamação, a vocalização do livro não ape-

nas estimula o sentido da audição, como também promove a experiência táctil, dimensão

textual totalmente negligenciada na leitura somente com os olhos. No livro de Haroldo, a

“afreudisíaca lalíngua” lacaniana se nos oferece na matéria da linguagem, a qual – como

G.H. diante da barata – somos impelidos a experimentar:

16 Da série de mesmo nome, publicada na coletânea Viva Vaia (1979).

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vela e revela que cala e descala aquela goma de palavras aquela aromada

domada mordida mascada moída pasta de palavras como alguém mordendo a

língua como alguém travando a língua como alguém dosando e adoçando

tremendo e contendo e prevendo e contando e sofrendo e sofreando a

língua a mordida língua doendo dentro de um beijo de palavras um sopro

um bafo uma aura um aroma de palavras

A referida passagem pertence a “sasamegoto”, sétimo fragmento do livro. Sasame-

goto é o título daquele que é considerado o mais importante e representativo tratado poé-

tico do período medieval no Japão17, escrito em 1473 pelo poeta-monge Shinkei. Segundo

os comentários de Esperanza Ramirez-Christensen – responsável pela versão em língua

inglesa do livro, que leva o sugestivo título Murmured conversations Sasamegoto –, o tra-

tado de Shinkei institui uma estética na qual a reflexão e os sentimentos se situam acima

do mero jogo de linguagem. “Uma palavra japonesa que significa literalmente ‘coisa de

palavras’” (BARBOSA, 2011, sem paginação), sasamegoto em Galáxias aponta para essa

dimensão erótica, sensorial da linguagem:

sasamegoto a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhada

marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar

ou musselina e sasamegoto sachet mascado na língua whispering

[...]

primavera haru same ya chove palavras maceradas como goma de mascar

resina e açúcar nas papilas coisa de fala sacarinando dançarinando

nos lábios aflorados nos entrelábios nos entreflorlábios farfalhando

fala farinando fala sim mas agora bashô não buson bashô seishi sob

a chuva sonho de sensitivas o tempo todo pensando nessa imagem todo

“O som do signo”, disse Alfredo Bosi, “guarda, na sua aérea e ondulante maté-

ria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo” (2000, p.52).

17 Segundo a informação que consta no site da Stanford University Press, disponível no seguinte endereço

virtual: http://www.sup.org/books/title/?id=5893

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“sasamegoto” evoca essa presença física, sensual, da boca humana, pela qual os sons das

palavras viajam, no curso de sua realização. O fragmento é o signo de uma tentativa incan-

sável – empreendida por toda a extensão de Galáxias – de tornar real a utopia descrita por

Roland Barthes, em O rumor da língua (2004):

E a língua, pode rumorejar? Falada, ela permanece, parece, condenada ao bal-

bucio; escrita, ao silêncio e à distinção dos signos: de qualquer modo, fica ainda

demasiado sentido para que a linguagem realize um gozo que seria próprio à

sua matéria. Mas o que é impossível não é inconcebível: o rumor da língua

forma uma utopia. Que utopia? A de uma música do sentido; com isso quero

dizer que em seu estado utópico a língua seria ampliada, eu diria mesmo des-

naturada, até formar uma imensa trama sonora em que o aparelho semântico

se acharia irrealizado; o significante fônico, métrico, vocal, se desfraldaria em

toda a sua suntuosidade, sem que jamais dele se despegasse um signo [...] mas

também – e aí está o mais difícil – sem que o sentido seja brutalmente dispen-

sado, dogmaticamente excluído, castrado. (p. 95, grifos do autor)

“Ruído surdo e confuso” é uma das acepções da palavra “rumor”, segundo o

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. No trecho de “sasamegoto” destacado, a ideia

é suscitada, no plano do significado, pela aglomeração de palavras do mesmo campo

semântico: “marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar

ou musselina”. No plano do significante, o rumor se alastra pelo texto através de uma

espécie de chiado produzido pela elocução de estruturas fonéticas marcadamente sibilan-

tes. O caráter sensualista do fragmento se radicaliza, ainda, pela alternância de fonemas

consonantais articulados lateralmente – molhada, murmulho, borbulha etc. – e dos múl-

tiplos erres, em seus registros fricativo e vibrante – entrelábios, farfalhando etc. –, cuja

articulação impõe à língua uma verdadeira ginástica.

No ensaio “The fourth dimension of a poem” (2012), Meyer Howard Abrams nos

lembra de que o uso da linguagem envolve também uma ação corporal, a qual, delibera-

damente ou não, é explorada pelos poetas em suas produções. Conforme detalha o autor,

quatro dimensões contribuem conjuntamente para o efeito global produzido pela leitura

de um poema:

49

Uma dimensão é o seu aspecto visual, que sinaliza que você deve ler o texto

impresso como um poema, não como prosa; e que também oferece pistas

visuais como o andamento, pausas, paradas e a entonação de sua leitura. Uma

segunda dimensão são os sons das palavras quando lidas em voz alta; ou, se

elas são lidas silenciosamente, os sons como eles são imaginados pelo leitor.

Uma terceira, e de longe a mais importante dimensão, é o sentido das palavras

que você lê ou ouve. A quarta dimensão – quase totalmente negligenciada nas

discussões sobre poesia – é a atividade de enunciar a grande variedade de sons

da fala que constituem as palavras de um poema.18 (p. 2, tradução livre)

A quarta dimensão diz respeito, portanto, à elocução do poema; ao meio físico

através do qual ele se realiza: não o texto escrito ou impresso – com o qual comumente é

confundido – mas a articulação dos sons pela voz humana. Abrams salienta a importância

de atentar para essa quarta dimensão, que muitas vezes passa despercebida no uso habi-

tual da linguagem. Um poema se realiza plenamente, segundo ele, somente através das

sensações de movimento, forma e toque que sentimos no ato de sua oralização:

Uma importante vantagem de ler um poema em voz alta é “reencarná-lo”, enfa-

tizando a palpabilidade de seu meio material. E isso é importante porque as

ações orais que dão corpo às palavras de um poema, mesmo quando se mantêm

abaixo do nível da consciência, podem servir, em intricadas e diversas formas,

para confirmar, aumentar e interagir com os sentidos e os sentimentos que as

palavras transmitem.19 (p. 3, tradução livre)

18 Trecho original:

One dimension is its visible aspect, which signals that you are to read the printed text

as a poem, not as prose, and also offers visual cues as to the pace, pauses, stops and

intonation of your reading. A second dimension is the sounds of the words when they

are read aloud; or if they are read silently, the sounds as they are imagined by the

reader. A third, and by far the most important dimension, is the meaning of the words

that you read or hear. The fourth dimension – one that is almost totally neglected in

discussion of poetry – is the activity of enunciating the great variety of speech-sounds

that constitute the words of a poem.

19 Trecho original:

An important advantage of reading a poem aloud is that to do so helps to reembody it,

by emphasizing the palpability of its material medium. And that is important, because

the oral actions that body forth the words of a poem, even when they remain below the

level of awareness, may serve, in intricate and diverse ways to interact with, confirm,

and enhance the meanings and feelings that the words convey.

50

No artigo “Escrever com a boca” (2008), Laura Erber observa, a respeito da obra

do poeta francês Ghérasim Luca, que a oralização é uma forma “de agir sobre a palavra,

a voz funcionando aí como um instrumento de operação sobre a língua, vocalizar é um

gesto que abre, que desfigura, que subverte a sucessividade do escrito” (p. 2). A afirmação

de Erber se mostra pertinente também para compreender o impacto da oralização no livro

de Haroldo, em que a passagem do escrito à performance vocal constitui verdadeiramente

uma forma de o leitor possuir o texto e de ser por ele possuído, satisfazendo o desejo mútuo

e insaciável de um pelo Outro. Trata-se, como propôs a escritora, de escrever também com

a boca os sentidos da obra, de preencher os seus vazios não apenas com o conteúdo etéreo

da imaginação, mas também com a sólida resistência do corpo:

Pedagogicamente, no sentido lato do termo, [...] um poema exige, para ser

apreendido concretamente e por todo o corpo, que a voz humana o habite.

E que ela se torne “manducação da palavra”, como dizia Marcel Jousse.

(JEAN, 1999, p. 159)

Não estou aqui defendendo a oralização como único caminho possível, ou como

a forma correta de acessar os sentidos de Galáxias, mas colocando em pauta essa natureza

violentamente sonora, diante da qual a leitura em voz alta produz efeitos bastante distintos

da leitura silenciosa. “Assim”, como colocou Gérard Genette, “não nos faltará apreciar, com

os ouvidos e com a leitura muda, as sonoridades de um poema, tal como um músico expe-

riente pode apreciar uma sinfonia apenas com o estudo de sua partitura” (apud op, cit.).

Trata-se, no entanto, de duas experiências radicalmente diferentes. A leitura em voz alta de

certa forma dissolve o limite que separa o leitor e a obra, projetando um campo virtual onde

as palavras e as ideias e o corpo e a mente se reúnem em uma ação simultânea.

Como demonstrei no capítulo anterior, a arte contemporânea situou o sujeito no

centro da experiência estética, não com uma atitude subjetivante, ou psicologizante, mas a

partir de uma tendência articulada com o que Hal Foster chamou de “retorno do real”. A

expressão não sugere uma representação da realidade segundo os paradigmas do realismo

51

novecentista, mas uma experiência do real, como proposto dentro da teoria lacaniana.

“O real que, segundo Foster, retorna na arte contemporânea”, explica a psicanalista Tania Rivera,

é o oposto da realidade mimética construída de forma ilusionista. [...] não se

trata mais da realidade como janela para o mundo, dada por e para um olho

fixo. Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo

último das coisas. (2013, pp. 20-1)

Para o que nos interessa, o real de Lacan deve ser compreendido como um

evento subjetivo arrebatador e, sobretudo, uma experiência não simbolizável. Efeitos – ou

melhor, afetos – que acometem o sujeito, mas escapam à significação, e, portanto, à sua

compreensão. O real produz uma ruptura traumática, “entre a percepção e a consciência

de um indivíduo tocado por uma imagem” (FOSTER, 1996, p. 166). Em A câmara clara

(1984), Roland Barthes distingue em dois níveis as vivências que experimenta diante de

certas fotografias: o studium, uma forma de apreciação lúcida, consciente, dos atributos de

tais imagens; e o punctum, uma experiência que ele não busca, mas pela qual é atingido:

O studium está, em definitivo, sempre codificado, o punctum não [...]. [Seu]

efeito é seguro, mas nao é situável, não encontra seu signo, seu nome; é certeiro

e no entanto aterrissa em uma zona vaga de mim mesmo; é agudo e sufocado,

grita em silêncio. Curiosa contradição: é urn raio que flutua. (p. 83)

O punctum, conforme a descrição barthesiana, refere um sentimento de conhe-

cimento destituído de compreensão, uma sensação irrepresentável que o sujeito experi-

menta no seu encontro – ou desencontro, como afirmou sugestivamente Hal Foster – com

o real. Uma espécie de elo virtual que se forma pela interação com a obra, o punctum,

acrescenta Barthes, é “um suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela

(p. 85, grifos do autor).

Na primeira parte desta dissertação, mencionei o exemplo dos Penetráveis de

Hélio Oiticica para ilustrar a tendência da arte contemporânea de apagar a fronteira entre

52

o fruidor e a obra. Postura que se observa também nos Objetos Gráficos de Mira Schendel

e, claro, em Galáxias, conforme eu já havia assinalado. Convém destacar que, mais do que

simplesmente uma aproximação, essas obras promovem, entre o sujeito e o objeto, uma

experiência de assimilação de um pelo outro, produzindo uma “confusão entre o dentro e

o fora” (FOSTER, 1996, p. 167).

O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho soberano capaz

de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descen-

trado, não coincide mais com um centro de organização da representação. O

sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou

suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou

e deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Contudo, uma

vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, ele volta

de fora da representação como corpo real – o que reconfigura suas relações

consigo próprio, com o objeto e com o espaço. (RIVERA, 2013, p. 21)

Os múltiplos e isolados elementos que se mobilizam durante a realização da

leitura em voz alta – o texto, no qual subsiste, em última instância, a voz do próprio

autor; e o leitor, com a sua consciência e o seus órgãos – aderem uns aos outros, for-

mando uma singularidade complexa, que não é propriedade de um sujeito, mas uma

circunstância de natureza aiônica, isto é, um evento resultante do agenciamento de

todos esses componentes dentro da variável temporal. Em Caosmose (2012), Guattari

observa que “em certos contextos sociais e semiológicos, a subjetividade se individua:

uma pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações de

alteridade” (p. 19). Em situações como a leitura de um poema em voz alta, pelo contrá-

rio, a subjetividade se faz coletiva, “derivando de uma lógica dos afetos mais do que de

uma lógica de conjuntos bem circunscritos” (p. 19).

O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais senhor em sua própria casa”. Talvez

ele nem tenha mais casa, uma vez que o inconsciente o desaloja, faz de seu íntimo

o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que

é radicalmente singular, e no entanto vem de fora. (RIVERA, 2013, p. 23)

53

Se com a leitura silenciosa o indivíduo se infiltra na obra através dos sentidos por

ele atribuídos ao texto, com a leitura em voz alta, ele é também invadido por uma porção

de si mesmo até então alienada. “Não há”, como diz Tania Rivera, “coincidência entre eu

e meu corpo. Isso é o que a linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos

‘tenho um corpo’, mais do que ‘sou um corpo’” (op. cit.). A performance vocal do texto res-

ponde, segundo Paul Zumthor, ao desejo de restituir essa “unidade perdida” (2014, p. 66)

entre consciência e corpo. Na leitura em voz alta, o leitor extrapola a condição de obser-

vador isento diante de um objeto externo, para tornar-se parte integrante dessa instância

ao mesmo tempo particular e coletiva – não apenas por seu caráter intersubjetivo, mas

também pela “assimilação” da dimensão corporal, percebida pelo sujeito como alteridade –,

que se forma pela interação com o texto. Restituída, no ato performático, a materialidade

humana, reconfigura-se também a relação do sujeito consigo mesmo, passando ele a ocu-

par o espaço fruitivo com a sua existência integral, ou, conforme a formulação de Rivera,

como um corpo real.

Dissolvendo o limite entre o sujeito e ele mesmo, a leitura em voz alta desempe-

nha um papel importante também na transposição da fronteira entre poesia e prosa. Como

demonstrei ao longo deste capítulo, em Galáxias, o foco de atenção do leitor se movimenta

incessantemente do polo discursivo para o polo material da linguagem. Com uma sólida e

ostensiva textura sonora, os efeitos produzidos pelo ruidoso texto de Haroldo, paradoxal-

mente, são sentidos no silêncio. A dissolução do objeto narrado dissolve a compreensão

lógica das ideias em uma trama de sensações e sentimentos irreconhecíveis e irrepresentá-

veis – motivo pelo qual Hal Foster fala não em encontro, mas em desencontro com o real –,

que acometem o sujeito na dimensão silenciosa de sua plena existência. Não se trata, pois,

de povoar a mente com conteúdos abstratos, mas de preencher o ser por completo com a

mais pura realidade de si, com “a subjetividade absoluta”, aquela que “só é atingida em um

estado, um esforço de silêncio” (BARTHES, 1984, p. 84).

Muitas vezes compreendida dentro dos limites de certa configuração formal –

determinada pelo uso de uma dicção e um formato predeterminados –, a poesia, contudo,

não é um atributo de determinada forma ou objeto, mas uma experiência efêmera de extra-

54

logicidade, que se realiza a partir do contato do sujeito com a obra. Trata-se de uma configu-

ração que faz a linguagem – aí, em seu sentido lato, podendo ser um texto ou qualquer outra

plataforma expressiva – “gerar mais prazer do que informação” (2014, p. 64), como formu-

lou Paul Zumthor. Dentro desse contexto, a leitura em voz alta intensifica e complexifica a

tensão extralógica – elemento chave do acontecimento estético – na experiência com o texto.

Pela análise dos fragmentos pudemos ver que, com o esvaziamento do sentido

lógico, o fio narrativo se transforma em uma trama verbivocovisual, cujos efeitos se pro-

duzem pelo agenciamento de múltiplos componentes – entre os quais, a carga subjetiva

do leitor – dentro da variável temporal. Está claro, portanto, que o fenômeno da poesia,

para além de quaisquer paradigmas do gênero, não é um atributo do texto, mas uma expe-

riência de temporalidade e extralogicidade, que se realiza a partir do contato do sujeito

com a obra. Em Galáxias, um trabalho concreto mobiliza o texto no sentido de romper

o equilíbrio estável do signo, para que a percepção do leitor se estenda à materialidade

da linguagem, de modo que as palavras falem não apenas ao intelecto, mas aos olhos,

aos ouvidos, à língua e aos órgãos. Convertida de referência a experiência, a linguagem

é capaz de produzir efeitos que extrapolam o significado das palavras, para se realizarem

como as incompreensíveis “alegrias ligeiras” pelas quais somos arrebatados. A dissolução

da prosa em poesia ocorre quando as mesmas palavras que ouvimos e usamos todos os

dias são organizadas de modo a produzirem novos sentidos – ferramentas usadas para

construir novas ferramentas –, que se nos revelam como momentâneos vislumbres de uma

dimensão inapreensível da linguagem, desse “silêncio que trava por detrás das palavras”.

55

CAPÍTULO 3

Uma arquitetura de vazios: Galáxias na fronteira entre a literatura e as artes plásticas

Lugar onde se fazo que já foi feito,

branco da página,soma de todos os textos,

foi-se o tempoquando, escrevendo,

era precisouma folha isenta

Nenhuma páginajamais foi limpa.

Mesmo a mais Saara,ártica, significa.

Nunca houve isso,uma página em branco.

No fundo, todas gritam,pálidas de tanto.

Paulo Leminksi, “plena pausa”

A trama textual de Galáxias é composta por sucessivos impulsos narrativos, que,

dissipando-se em profusões de imagens, jamais se concluem. Como mosaicos, os textos

que integram a obra são formados pela reunião de pequenos cacos de discurso e consti-

tuem, eles mesmos, peças no grande mosaico que se compõe pelo quadro geral do livro.

Não à toa, esses textos são referidos pelo autor como fragmentos.

Durante os vinte e um anos que se passaram entre a escrita do primeiro frag-

mento, em 1963, e a publicação da edição completa, em 1984, trechos de Galáxias foram

eventualmente sendo incluídos em revistas e suplementos literários do Brasil e de Portugal.

A publicação episódica sinalizava, de antemão, o caráter fragmentário – acentuado e cons-

56

titutivo, no nível do texto –, que orientou a realização da obra desde a sua concepção até o

projeto gráfico do livro.

Em “O livro como objeto”, Michel Butor destaca a importância do aspecto assu-

mido pelo corpo do texto – ou “mancha gráfica”, na terminologia editorial – como ele-

mento significativo para a percepção do leitor:

A página vista em bloco, antes mesmo que tenhamos decifrado qualquer de

suas palavras, nos impressiona como figura determinada: retângulo maciço

ou recortado em parágrafos, esclarecido ou não por títulos, fluxo de versos,

estrofes regulares [...]. O texto se oferece imediatamente como compacto ou

arejado, amorfo, regular ou irregular. (BUTOR, 1974, p. 227)

Radicalizada em casos como o dos caligramas de Apollinaire e dos poemas

concretos – nos quais o bloco de texto muitas vezes reproduzia um desenho reconhe-

cível –, a figura formada pela mancha gráfica é determinante para o reconhecimento

mesmo dos formatos tradicionais. Parece claro que o leitor reage à diferença, por exem-

plo, entre um texto escrito em linha contínua e um texto escrito em versos, o qual lê

num tom muito diferente do habitual, como observou Howard Nemerov. “Se, para testar

esta definição”, escreveu o poeta, “mostramos às pessoas poemas impressos [em linha

contínua], na maioria das vezes constatamos que leem o resultado como prosa, simples-

mente porque parece prosa” (NEMEROV, 1994, p. 236).

Com uma organização bastante peculiar, a estrutura do texto de Galáxias

está situada em algum lugar entre a linha contínua e o verso. Justificado à esquerda

e com a margem direita livre, o texto é composto por longas linhas de comprimentos

variáveis, que, como os seus impulsos narrativos, perdem a força – ou o fôlego – antes

de alcançar, na extremidade oposta, o ponto de chegada. E, embora não forme um

desenho propriamente dito, o modo como o bloco de texto se afigura horizontalmente

guarda alguma semelhança com a forma da onda, quando abruptamente convertida

em espuma na areia na praia.

57

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremessoe aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importanão é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrevermil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura paracomeçar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por issorecomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever éo futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginasou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginasmesmam ensimesmam onde o � m é o comêço onde escrever sobre o escreveré não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelodescomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito eforçoso um livro onde tudo seja não esteja seja um umbigodomundolivroum umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livroo ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começoe volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livroé o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livroe cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdoda palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livrotodo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o � mcomêçocomeça e � na recomeça e re� na se a� na o � m no funil docomeço afunila o começo no fuzil do � m no � m do � m recomeça orecomeço re� na o re� no do � m e onde � na começa e se apressa eregressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória porisso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me descontaou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que podeser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo dependeda glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnadade nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necase nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res enenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser totaltudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombroe aqui me meço e começo e me projeto eco do começo eco do eco de umcomêço em eco no soco de um comêço em eco no oco eco de um socono osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou emnenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrásou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começorés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me comenão me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo sóconheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagemonde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilhaonde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigíliaé cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descantoa fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala

Figura 5: intervenção no formante inicial de Galáxias. Elaborado pela autora.

58

É interessante observar que o texto não se divide em parágrafos e não apresenta

nenhum sinal de pontuação. Trata-se, ao que me parece, de realizar visualmente uma

falta de hierarquia que é própria de estruturas textuais como a de Galáxias, na qual o

processo de produção de sentido é operado não por encadeamento sintático, mas por

contágio verbivocovisual. No texto de Haroldo, as palavras estão avizinhadas e – como

as letras do alfabeto, na espiral estampada da capa do livro – se espacializam como uma

constelação. Distribuídas pelo papel como pontos luminosos, essas unidades linguísticas

elevam “a página à potência do céu estrelado” (CAMPOS, 1997, p. 259).

Sem título, sem o uso de letra maiúscula no início da trilha textual e sem qual-

quer indicação gráfica de sua conclusão ao final, cada um dos fragmentos se nos apre-

senta não como um percurso completo – com início, meio e fim –, mas como o recorte

de uma viagem em progresso, o que fica particularmente flagrante no formante inicial,

pelo uso da conjunção “e” no ponto de partida do fragmento, que é também o ponto de

partida do livro. Configurado dessa forma, o texto assume a aparência de um continuum

verbal, que é interrompido somente quando o leitor vira a página, e os jatos de lingua-

gem – ou explosões, para recuperar a relação com a imagem da capa – são subitamente

consumidos pelo completo vazio na página seguinte: distribuídos ao longo de cem pági-

nas, os cinquenta fragmentos ocupam apenas as páginas ímpares, o que significa dizer

que o verso de cada texto foi mantido em branco. Uma imagem que se produz tanto

na particularidade da linha quanto na totalidade da mancha gráfica, essa dissolução

súbita da linguagem fica irreversivelmente inscrita nesses momentos antissonoros que

separam um fragmento do outro.

No corpo fragmentado de Galáxias, os acontecimentos verbais – encadeados com

os seus reversos silenciosos – se distendem e se dissipam, marcando um ritmo binário,

determinado pelo avanço do texto e sua abrupta interrupção. Em uma dialética de impulso

e contra-impulso de linguagem, a página em branco – “entre-espaço onde o vazio inscreve

sua insígnia” (fragmento 35) – sugere uma reorientação do movimento para o outro polo do

mesmo gesto: “a dobra que se desprega e se prega de sua / dobra mas se dobra e desdobra

como um duplo da obra” (fragmento 31). Como uma tomada de fôlego para o próximo

59

sopro de palavras, essas figuras de silêncio – análogas às pausas em uma partitura musical –

não sinalizam um momento de relaxamento, mas, pelo contrário, de máxima tensão. Nada

e ao mesmo tempo tudo, espaço vazio “pleno de prováveis” (fragmento 35), o silêncio em

Galáxias guarda a potência de uma ação em vias de acontecer.

Aliada a outras medidas editoriais, como a falta de índice e de numeração nas

páginas, a página em branco entre os fragmentos marca a autonomia da unidade textual

e o caráter fragmentário previstos no projeto original, que substituía a encadernação tra-

dicional, com o miolo costurado, pela publicação em folhas soltas e livremente intercam-

biáveis pelo leitor (com exceção dos formantes inicial e terminal, que fixariam o ponto de

partida e de chegada do percurso textual).

No ensaio Un trotapaginas en el vacío (1987), Jacobo Sefamí aponta o texto como

a unidade de Galáxias. No meu modo de ver – e considerando o projeto gráfico original –,

o livro de Haroldo não se estrutura em textos, como afirmou o crítico mexicano, mas em

folhas, tomadas por palavras, de um lado, e pelo vazio, de outro. Para além de mero suporte,

a superfície da página opera como elemento estrutural. No verso da folha, assinala a des-

continuidade dos fragmentos e o contraponto da linguagem, materializando “o silêncio que

/ trava por detrás das palavras”. Articulado com a tinta preta na frente, o branco da página

dá forma às palavras e matéria ao vazio que as circunscreve. O contraste do papel com os

elementos gráficos confere existência visual à natureza ambivalente da linguagem, levada à

radicalidade pela estrutura do livro:

branco a córnea branca do nada que é o tudo estagnado e a fábrica de

letras dactiloletras como um lodo assomado mas por baixo é o calado

do branco não tocado que as letras dactilonegam negram sonegam

e por que escrever por que render o branco como turnos de negro e o negro

com turnos de branco esse diurnoturno rodízio de vazio e

pleno de cala e fala de fala e falha

(fragmento 31)

O espaço de fruição na obra de Haroldo está ligado ao aproveitamento do espaço

negativo da linguagem. O texto se oferece como um campo de probabilidades – “tendo por

60

medida o infinito da linguagem” (2010c, p. 244) – nos vazios de sentido que se instauram

quando a clareza significativa é interrompida. Quer dizer, aquilo que as palavras dizem

só em pequena parte está expresso textualmente. Nesse horizonte, o branco da página em

relação aos elementos gráficos, encarna esse espaço múltiplo e indefinido do silêncio com

o qual a palavra está inextricavelmente articulada:

o que mais vejo aqui neste papel é o vazio do papel se redobrando escorpião

de palavras que se reprega sobre si mesmo e a cárie escancárie que faz

quando as palavras vazam de seu vazio o escorpião tem uma unha aguda de

palavras e seu pontaço ferra o silêncio unha o silêncio uno unho escrever

sobre o não escrever e quando este vazio mais se densa e dança e tensa

seus arabescos entre escrito e excrito tremendo a treliça de avessos

branco excremento de aranhas supressas suspensas silêncio onde o eu se

mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando filipêndula de texto extexto

por isso escrevo rescrevo cravo no vazio os grifos desse texto os garfos

as garras e da fábula só fica o finar da fábula o finir da fábula o

finíssono da que em vazio transvasa o que mais vejo aqui é o papel que

escalpo a polpa das palavras do papel que expalpo os brancos palpos do

telaranha papel que desses fios se tece dos fios das aranhas surpresas

sorrelfas supressas pois assim é o silêncio e da mais mínima margem

da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da palavra

o silêncio golfa o silêncio glória o silêncio gala e o vazio restaura

(fragmento 31)

O corpo do livro, portanto, não é somente um suporte para os textos, mas uma

parte fundamental do projeto. A articulação dos blocos textuais com o vazio de linguagem

que se alastra pela superfície do papel branco se relaciona profundamente com uma questão

fundamental no livro: a produção de sentido no espaço vazio entre as palavras. Com uma

plasticidade que não é estetizante, mas, pelo contrário, estrutural, essa dimensão visual se

comporta como um elemento de composição dotado de forte carga simbólica, no qual se

realiza materialmente a liberdade de agenciamento que rege a dinâmica textual.

A preocupação com a dimensão concreta do texto excede a questão da materia-

lidade da linguagem. Também o livro, com seus traços objetais, passa a ser pensado como

61

parte integrante da obra. Alinhado com uma tendência que fl oresceu com o modernismo

nas artes plásticas, Haroldo explora o potencial signifi cativo do suporte, problematizando

a distinção entre o espaço de representação e a forma-signo. Para além de mero anteparo

sobre o qual o texto é acomodado, a superfície da página suscita questionamentos e se

articula com o texto para fundar novos sentidos.

Conforme expus nos capítulos anteriores, o texto de Galáxias está situado na

fronteira entre poesia e prosa. A interpenetração dos gêneros textuais está diretamente

relacionada com as lacunas que se abrem no texto, como resultado do esvaziamento do

discurso. Em sua dimensão material, que se realiza na arquitetura do livro pelo branco da

página, a fi gura do vazio coloca Galáxias em situação limítrofe também com o livro de

artista, categoria da arte contemporânea que tem como grande protótipo a Caixa Verde

(1934), de Duchamp, na qual está abrigada a documentação do processo construtivo da

obra O Grande Vidro ou A noiva despida por seus celibatários, mesmo.

Figura 5: Caixa Verde (1934), de Marcel Duchamp.

62

Cabe aqui esclarecer que um livro de artista não é um livro de arte. Este, não

mais que um livro comum que se ocupa do tema “arte”. O livro de artista tampouco

se confunde com os chamados livres d’artistes, termo que grafado em francês designa

as edições de luxo – comumente identificadas como “livros de mesa” –, cujo valor é

essencialmente decorativo. Também não se trata dos trabalhos artesanais produzidos no

campo da encadernação, os quais são considerados dentro da categoria “arte do livro”.

Mas o que, então, é o livro de artista?

A resposta curta para essa pergunta é “livro tornado objeto de arte”, ou, segundo

a formulação de Clive Phillpot, “livro feito ou concebido por um artista”. Como tais defini-

ções pouco ou nada esclarecem a respeito das implicações impostas pelo termo, precisarei

me deter um pouco mais no assunto para entender o que é a categoria. A conceituação

de livro de artista é bastante problemática e está fortemente relacionada com a delimita-

ção no tempo histórico, como explica Paulo Silveira, nas quarenta páginas que dedicou à

tarefa, no livro A página violada (2008):

As evidências demonstram que podemos retroceder no tempo quase indefi-

nidamente em busca da origem do livro de artista. É um fato: a Caixa verde,

de Marcel Duchamp, é um claro livro de artista (ou, mais especificamente,

livro-objeto). Assim como também o são os livros de William Blake, publi-

cados entre 1788 e 1821, ou qualquer dos cadernos de Leonardo da Vinci,

executados no século 15 e começo do 16. Retroaplicar conceitos nos permite

ir até onde quisermos. Porém é no final do século 20 que o entendimento da

autonomia desse tipo de obra de arte é legitimado. Principalmente a partir

dos anos 60. (p. 30)

Embora suas raízes estejam cravadas em um passado bastante remoto, o livro de

artista passou a ser entendido como uma categoria da arte – e problematizado como tal –

somente no século passado. Um campo relativamente recente e pouco explorado, portanto,

é ainda objeto de muitas divergências, tanto no que diz respeito à sua origem, como em rela-

ção à conceituação e à delineação de seus limites. Para este estudo, interessa o que Silveira

chamou de “sentido lato”, segundo o qual “o livro de artista é um filo, um tronco formal”

(SILVEIRA, 2012, p.52), em toda a sua liberdade, com múltiplas e heterogêneas manifesta-

63

ções possíveis. Dessa forma, adotarei uma visão amplificada, levando em consideração o que

há de fundamental no fenômeno, sem me ancorar em limites paradigmáticos.

Duas questões levantadas pelo autor me parecem elementos-chave para com-

preender o que é o livro de artista: de um lado, a concepção de página como elemento

expressivo; de outro, a transgressão dos princípios canônicos que determinam a forma

como o objeto livro se apresenta.

A análise plástica da obra pode ser elaborada através da constatação da página

como suporte ou como matéria de trabalho plasmável, mesmo quando a

página não existe de fato (ou seja, não existe fisicamente). Entendo, também,

que o artista se apropria daquele que considero o mais significativo objeto

cultural ocidental [...] e preexistente nas suas formas e nos seus dogmas.

(SILVEIRA, 2008, p. 21. Meu grifo)

Figura 6: La prose du Transsiberien et de la petite Jehanne de France (1913), Sonia Delaunay.

Uma obra simultaneamente plástica e editorial, o livro de artista é, portanto, uma

criação artística que se realiza pela apropriação e experimentação do objeto livro – ori-

ginalmente tido como um espaço de domínio exclusivo do texto20 – e a sua inserção na

20 Sabemos que livros com imagens também estão plenamente acolhidos pelo formato tradicional. Aqui,

o significado de texto pode ser expandido para alguma coisa como mensagem, ou informação (que pode

ser de natureza visual) para a qual o livro seria apenas um veículo.

64

arte contemporânea. Segundo a artista, escritora, criadora de livros de artista e professora

universitária americana Johanna Drucker, o livro de artista “interroga a forma conceitual

ou material do livro como parte de sua intenção, interesses temáticos ou atividades de

produção” (apud SILVEIRA, p. 37. Meu grifo). Sob essa perspectiva, podemos entender

o livro de artista como aquele em que os sentidos da obra se firmam ou se reafirmam por

sua própria constituição física. Ou, como formulou Julio Plaza:

O ‘livro de artista’ é criado como um objeto de design, visto que o autor se preo-

cupa tanto com o ‘conteúdo’ quanto com a forma e faz desta uma ‘forma-signifi-

cante’. Enquanto o autor de textos tem uma atitude passiva em relação ao livro, o

artista de livros tem uma atitude ativa, já que ele é responsável pelo processo total

de produção, porque não cria na dicotomia ‘continente – conteúdo’, ‘significante

– significado’. (PLAZA, 1982, n. p.)

É importante assinalar que a poesia concreta ofereceu uma contribuição impor-

tante nesse seguimento, tendo precedido os livros de artista com os seus poemas-objeto,

produções nas quais a imagem gráfico-espacial já passa a ser privilegiada como forma.

Enfatizando a presença de elementos visuais,

a poesia concreta revaloriza a palavra como estrutura significante essencial,

colocando-a num espaço específico concebido como agente estrutural – o

espaço gráfico – [o que] leva a um novo tipo de interação, de identidade entre

“forma” e “conteúdo” (FABRIS; COSTA, 1985, p. 3)

Responsável por colocar em pauta o aproveitamento da materialidade criadora

no âmbito da literatura nacional, a poesia concreta também alcançou relevância interna-

cional, tendo circulado com desenvoltura pelos mercados livreiros de outros idiomas e

participado de importantes salões retrospectivos e bienais. A ave de Wlademir Dias-Pino,

por exemplo, um dos mais relevantes e pouco conhecidos livros de artista editados no país

e anterior a muitas das obras mestras da categoria, foi resultado das obras formadoras do

movimento da poesia concreta, como salienta Paulo Silveira:

65

É um volume composto por páginas mais ou menos transparentes, brancas

ou coloridas, que permitem entrever diagramas, letras e vocábulos, propondo

uma leitura dependente do gesto de folhear o livro. Raramente descrito e com

a quase totalidade de seus exemplares desaparecida, A ave sofreu, por muito

tempo, um injusto esquecimento, pouco a pouco em reparação. (2002, p. 7)

Figura 7: Trechos de A ave (1956), Wlademir Dias Pino.

De um modo geral, no entanto, a infl uência do movimento da poesia concreta,

será “mais refl exa do que efetiva”, como lembram as pesquisadoras, críticas e curadoras

de arte Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa, uma vez que “suas realizações não

66

requerem necessariamente o suporte livro” (op. cit.). Para as autoras de Tendências do livro

de artista no Brasil (1985), os livros-poemas dos neoconcretos – nos quais os elementos

plásticos e os elementos gráficos são igualmente determinantes – seriam acontecimen-

tos mais decisivos: radicalizados em sua plasticidade, esses livros “requerem o ‘manuseio

expressivo’ por parte do leitor como condição de existência” (op. cit.), estando mais pró-

ximos da categoria do livro de artista, tal como costuma se apresentar nas artes plásticas.

Figura 8: Não (1959), Ferreira Gullar.

Indicando ao mesmo tempo o nome de uma categoria artística e um dos pro-

dutos dessa categoria, o termo livro de artista abriga, sob o seu amplo arco conceitual,

também o livro-objeto, além de outras formas “assemelhadas, relacionadas ou mesmo

remotamente referentes ao livro” (SILVEIRA, 2002, p. 1). Os livros objetos são obras que

67

subvertem drasticamente o formato clássico. Em geral, são peças únicas, de fisicalidade

escultórica, bem ao “agrado das galerias de arte e dos museus, guardando o apelo fetichista

das obras artísticas tradicionais” (p. 5). Comumente pressupõem a dissolução completa de

seu caráter bibliófilo. Trata-se de uma modalidade que “transpassa, ultrapassa a lineari-

dade da escrita e o modelo do livro convencional. Não há alfabetização, código de lingua-

gem escrita, o que existe é uma linguagem puramente experimental” (ANDRIOLLI apud

TERSARIOLLI, 2008, p. 35).

Figura 9: Como imprimir sombras (2012), Waltercio Caldas.

Para alguns, o livro-objeto é o verdadeiro livro de artista (uma ideia sem fundamen-

tação, segundo a opinião de Paulo Silveira). Para outros, como a especialista Moeglin-Delcroix,

68

essas peças pertencem ao universo da escultura: “um livro que não se pode abrir, como ocorre

frequentemente como o livro-objeto, parece-me uma contradição e efetivamente uma mons-

truosidade” (apud SILVEIRA, 2001, p. 284).

Figura 10: Pense-Bête (1964), Marcel Broodthaers.

Figura 11: Broodthaers #2 (2010), Buzz Spector.

69

Dentro da categoria livro de artista, como se vê, a forma segundo a qual o artista

realiza a subversão do suporte, equilibra-se em algum ponto entre a preservação do for-

mato tradicional e a sua negação, conforme assinala Silveira: ternura e injúria21 “podem

compartilhar a mesma obra, gerando tensão plástica na página” (SILVEIRA, 2008, p. 21).

Em Galáxias, a estrutura material se mantém inviolada. O livro, de um modo geral,

parece conservar-se integralmente conforme às regras consagradas do formato. Ainda

assim, na superfície intacta de suas páginas, ocorre uma ruptura que não é de natureza

física, mas conceitual. O branco da página – expressamente problematizado no texto –

materializa a dimensão silenciosa na qual os seus sentidos extralógicos – suas epifanias – se

realizam. Sem que haja qualquer violação de sua integridade física, a página assume um

significado radicalmente novo, convertendo-se em elemento constitutivo da obra, não

apenas o seu suporte.

Embora à primeira vista pareça pertencer exclusivamente ao universo da leitura,

Galáxias é uma “obra entendida no seu todo, conteúdo e contenedor” (SILVEIRA, 2002,

p. 4), o que verdadeiramente a aproxima da categoria livro de artista. Em seu caráter ina-

cabado, o livro de Haroldo busca concretizar o sonho mallarmaico de

dar forma a um livro integral, um livro múltiplo que já contivesse potencial-

mente todos os livros possíveis; ou talvez uma máquina poética, que fizesse

21 Em A página violada, Paulo Silveira usa a dicotomia ternura­injúria para representar os sentimentos

de proteção ou de agravo, polos entre os quais se movimenta a ação dos criadores de livros de artistas:

Ternura é o gesto de preservação às conformações tradicionais, assim como

aos valores institucionais do livro. É amor à forma livro, manifestada pelo zelo

a essa forma, pela manutenção de sua tradição (de sua forma instituída), pela

defesa de sua permanência perante as novas mídias ou pela preservação

da leitura sequencial da palavra escrita. É carinho pela crença na palavra

impressa. É o aceite e a dependência do fetiche.

Injúria é o agravo ao livro. É a tentativa de sua negação. É o comentário ao

suporte pela sua subversão e afronta. É o comprometimento da verdade e/ou

verossimilhança, ou o uso dessa em detrimento daquela. Injúria implica per­

versão. É dano físico porque presume e tenta violar a permanência temporal

do livro. É dano moral porque presume e tenta violar o seu legado de lei e

verdade. É o esforço de ataque ao fetiche. (p. 28)

70

proliferar poemas inumeráveis; ou ainda um gerador de textos, impulsionado

por um movimento próprio, no qual as palavras e frases pudessem emergir, aglu-

tinar-se, combinar-se em arranjos precisos, para depois desfazer-se, atomizar-se

em busca de novas combinações. (MACHADO apud LIMA, 2011, pp. 12-3)

Um e ao mesmo tempo todos os livros, o Livre de Mallarmé seria um processo

infinito, sem começo e sem fim, de fazer-se e refazer-se, apontando continuamente para as

suas possibilidades ainda não realizadas. Em Galáxias, o branco – ou “cor da luz”, como é

chamado, devido à propriedade de refletir todos os raios luminosos, sem absorver nenhum

deles – é o signo visual de sua perpétua mobilidade e da infinitude proposta por Mallarmé,

demarcando um espaço que não é passivo, mas de alta voltagem poética. A leitura – sobre-

tudo dos formatos narrativos – nos habitua a considerar como nulo o tempo de passagem

entre as ocorrências textuais. No livro de Haroldo, no entanto, “cada pausa serpeia um viés

de possíveis em / cada nesga murmura um pleno de prováveis”. Em contraste com a tinta

negra, a superfície da página forma a contextura das palavras, emoldura a mancha gráfica

e cobre o verso do texto com o silêncio de sua vacuidade. Em uma obra cujos sentidos se

produzem no silêncio, o branco da página dá à vista a vastidão de sua realidade potencial.

Havia, por parte de Haroldo, uma intenção declarada de extrapolar os limites

do puramente literário, em especial, se consideramos as diretrizes do projeto original,

segundo o qual, a obra se realizaria como um livro-objeto:

Imaginei de início, [...] um multilivro manipulável como uma escultura ciné-

tica... Hoje penso diferente. O livro de folhas soltas não convida o leitor à lei-

tura, ao manuseio. É belo como projeto gráfico, mas inibitório como prática de

leitura. (CAMPOS, 2010b, p. 273)

Tratava-se, portanto, de explorar o potencial expressivo da dimensão material do

livro, de envolver também os seus afetos na percepção de sua leitura. Seguindo o conselho

de Guimarães Rosa – “não dificulte o difícil...” –, Haroldo, então, decidiu privilegiar a boa

leiturabilidade,22 concentrando-se na extralogicidade intratextual, isto é, na imagética vir-

22 Em linguagem gráfica, o termo diz respeito ao grau de esforço despendido pelo leitor no ato da leitura. Não deve ser confundido com legibilidade, conceito relacionado à capacidade de distinção entre as letras de que o texto é composto.

71

tual e não retiniana que nasce no interior do aparato linguístico. Está claro que em Galáxias

predomina a função textual. Fará sentido, ainda assim, estabelecer uma aproximação entre a

obra de Haroldo e a categoria do livro de artista? Paulo Silveira afirma que sim:

Qualquer pesquisador terá o direito de classificar como livro de artista tanto

obras que sequer tenham tido, originalmente, essa intenção de seus autores,

como obras que tenham nascido direcionadas exclusivamente para o campo

literário. Livros com textos ou tipografias experimentais, por exemplo, podem,

perfeitamente, ser sequestrados da literatura e “sofrer” nossa análise crítica a

partir de sua construção verbo-visual e sob o ponto de vista das artes plásticas.

(SILVEIRA, 2002, p. 7)

A problematização do branco da página e a plasticidade expressiva dos blocos

textuais me parecem evidências suficientes para apontar, no mínimo, um flerte entre

Galáxias e o universo do livro de artista. A categoria bibliomórfica da arte contempo-

rânea está situada em um espaço interdisciplinar que Silveira chamou de intermidial,

ou seja, um território de interpenetração dos – inseparáveis, segundo ele – mundos da

comunicação23 e da arte:

É impossível falarmos de autonomia da comunicação em relação à arte. Os

pressupostos estilísticos do trabalho criador, os legados histórico e cultural, as

considerações estéticas, o gosto, as técnicas e as ferramentas estão no corpo das

mídias, construindo-as, dando-lhes forma. O movimento oposto de influências

também ocorre, mas não é tão evidente, já que a criação artística é inequi-

vocamente mais autônoma, podendo até mesmo reivindicar seu extremado e

controverso direito à incomunicabilidade. (SILVEIRA, 2002, p. 2)

Um fenômeno de hibridização típico de nosso tempo, esse espaço intermidial

é resultado do aproveitamento de veículos já existentes, com vistas ao desenvolvimento

de novas linguagens ou à complexificação de linguagens já consolidadas. Sem dúvida

uma manifestação sob influência do trânsito entre mídias, Galáxias se apropria – mesmo

que em um nível predominantemente conceitual – de recursos usualmente associados

23 Aqui, a palavra comunicação deve ser entendida em seu sentido lato, de transmissão de informação.

72

ao universo plástico, como a carga simbólica dos elementos cromáticos e as implicações

da relação entre figura e fundo. Inseminada de conceitos da arte, a obra subverte a forma

tradicional do livro, impactando também no universo da arte, por levantar a questão do

limite entre uma coisa e a outra.

Certa vez, uma amiga – por sinal, bastante familiarizada com a noção de livro

de artista – me relatou que, ao folhear pela primeira vez o volume recém-adquirido de

Galáxias e se deparar com as páginas em branco entre os fragmentos, pensou estar diante

de um problema técnico, um erro de impressão. A amiga em questão não era profunda

conhecedora do trabalho de Haroldo de Campos, mas certamente não ignorava o experi-

mentalismo pelo qual o poeta é famoso. Contudo, a inesperada transgressão estrutural do

livro – inegável e ao mesmo tempo discreta, se comparada com o grau de radicalização a

que chegam certos livros de artista – acabou induzindo a leitora desavisada a essa falha de

percepção. O anedótico episódio me levou a refletir sobre por que uma leitora habituada

à desconstrução da forma tradicional do livro não identificou, em Galáxias, a intenciona-

lidade daqueles desvios formais.

A resposta para essa pergunta me parece estar relacionada com a noção de des-

locamento, problematizada por Duchamp, na instituição do ready made: o objeto comum

que, inserido no espaço museológico, “é elevado ao estado de dignidade de uma obra de

arte pela mera escolha de um artista” (DUCHAMP apud OBALK, 2000). Em Galáxias, o

deslocamento no sentido inverso – de procedimentos do universo das artes visuais, para

fora de seu território – desorienta o olhar do sujeito. “Exposto” na prateleira de uma livraria

e não na galeria de arte, o livro interpelou a personagem de meu pequeno relato com um

estranhamento pelo qual ela esperava ser acometida no nível do texto, não do “suporte”.

Na década de 1960 – período em que, como vimos anteriormente, a categoria

contemporânea do livro de artista foi reconhecida como uma forma de arte autônoma –,

também florescia no meio artístico uma preocupação com os locais tradicionais dedica-

dos à exposição das obras de arte. Levados por uma vontade de ultrapassar fronteiras, os

artistas passaram a refletir sobre instituições como os museus e as galerias de arte, ques-

tionando suas superestruturas, a partir da problemática do acesso e do distanciamento.

73

O desenvolvimento de propostas como o Museu Imaginário, de André Malraux, e o Museu

Portátil (de que faz parte a Caixa Verde), de Duchamp, reflete esse interesse em sair do

espaço institucionalizado, em virtude do qual o artista se põe

a pensar no espaço “além do cubo branco”. Ele irá buscar esse espaço em outros

locais como o das publicações eventuais ou periódicas, e principalmente, no

livro de artista. O livro vai desempenhar o papel de lugar que substitui as pare-

des da galeria, como espaço de “apresentação pública” e disseminador de arte

para um público mais abrangente. (PANEK., 2005, p. 1)

O livro de artista deve, portanto, ser considerado em sua relação com essa

demanda de democratização do acesso à arte: “o livro de artista ‘mesmo’, repito, tem a

consciência de ser veículo. Ou melhor, ‘também’ veículo, já que antes de mais nada é um

projeto artístico inteiro” (SILVEIRA, 2002, p. 6). Dessa forma, os livros passam a desem-

penhar o papel de verdadeiras galerias móveis, carregando consigo, aonde forem, uma

exposição de si mesmos. Nesse sentido, poderíamos dizer que Galáxias realiza a função

veiculativa do livro de artista, na medida em que – ocupando um ambiente mercadológico –

se coloca para o público também como uma obra plástica, cujos efeitos atingem os olhos

e a mente do leitor, antes mesmo que o texto seja decifrado.

Caminhando no sentido inverso, o artista plástico Antonio Dias, começou a desen-

volver, no início da década de 1970, o projeto de um livro-obra24 baseado em Galáxias:

Ele [imaginou] um livro-escultura, percorrido de acidentes tácteis e visuais,

com base em paginas das Galáxias. Cheguei a ver a maquete do projeto, em

Milão, há alguns anos. Conversamos novamente a respeito o ano passado, eu,

ele, mais o Nasser. (CAMPOS, 2010b, p. 277)

O projeto do livro-obra só seria concretizado em 2015, doze anos após a morte

de Haroldo. Como em um jogo de espelhos, o livro Galáxias é realocado no terreno da

24 O termo bookwork foi internacionalmente difundido, gerando no brasil a denominação “livro­obra”,

antes bastante utilizado, agora já em desuso. A expressão em inglês passou a ser empregada para os

trabalhos desenvolvidos no campo da encadernação.

74

arte contemporânea, cujos códigos o autor havia, em primeiro lugar, deslocado para o

universo literário. Com uma tiragem de noventa e três exemplares em grande formato –

79 x 7 x 44 cm –, a obra consiste em um estojo de fibra de vidro, que abriga dez caixas de

madeira, pelas quais estão distribuídos trinta e dois objetos.

Figura 12: livro-obra Galáxias (2015). Estojo aberto com dez caixas de madeira e tampa.

75

Placas de estações ferroviárias e bilhetes de trem; imagens do universo pop, ou

que remetem a fatos históricos, à cultura oriental, a questões da arte, e mais: variados itens

compõem esses objetos, entre os quais também se incluem alguns dos textos publicados

em Galáxias.

Figura 13: conteúdo das caixas do livro-obra Galáxias (2015), Antonio Dias.

Galáxias e o livro-obra são realidades híbridas, nas quais linguagem e plastici-

dade se articulam de formas múltiplas e desiguais para atingir o sujeito. Na obra original

de Haroldo há uma indubitável primazia da dimensão textual. A obra de Antonio Dias,

76

por sua vez, radicaliza o aspecto plástico, convidando à leitura não somente dos fragmen-

tos textuais reeditados, mas de um apanhado de materiais visuais, que se relacionam de

maneira mais ou menos explícita com o livro de Haroldo. Recuperando o eixo temático

“o livro como viagem e a viagem como livro”, a peça de Antonio Dias, como uma caixa

de suvenires, guarda as imagens – visuais e virtuais – do particularíssimo percurso do

artista por Galáxias. Esse percurso é resultado da articulação de sua matéria subjetiva com

os dados objetivos do texto e atravessa os vazios que estão simbolizados pelo branco da

página, espaço que o leitor é convidado a ocupar, de modo a escrever a sua própria estória.

Figura 14: conteúdo das caixas do livro-obra Galáxias (2015), Antonio Dias.

Com seus blocos textuais curiosamente diagramados e com o verso dos textos

em branco, a estrutura de Galáxias não chega a violar brutalmente a forma tradicional do

livro. Como assinalei mais cedo neste texto, a maior injúria perpetrada contra o objeto

não é de natureza física. Operando no conceito mesmo de página, Haroldo questiona

77

o apagamento do corpo do livro no território primordialmente bibliófilo da literatura,

em que a página é geralmente relegada à função de mero suporte passivo das palavras.

Expressamente problematizado no texto, o espaço em branco assume, na obra de Haroldo,

relevância conceitual e plástica devido à perspectiva oferecida pelo próprio texto:

o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos

acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham

num fluxo contínuo (fragmento 35)

O significado desse branco se particulariza pelo caráter essencialmente aberto

da obra, cujos sentidos não são dados soberanamente pelo seu autor, mas também pelo

leitor. Constantemente convidado a exercer sua autonomia, o sujeito desenha a sua trilha

deslocando-se pelos espaços negativos que se lhe oferecem. O branco na arquitetura de

Galáxias não só demarca o lugar destinado ao outro, como também assinala uma falta

primordial em virtude da qual os efeitos da obra se produzem. O título deste capítulo,

“Uma arquitetura de vazios”, se refere justamente a esse componente fundamental e fugaz

do livro, cuja construção não se realiza apenas como ocupação, mas como projeção de

espaços negativos nos vazios com os quais se articula a sua estrutura. Dotados da volatili-

dade de um tempo imobilizado, esses espaços não permitem a permanência, mas exigem

transformação incessante e movimento perene.

A aproximação com a categoria do livro de artista se deveu, portanto, ao trabalho

consciente que determina integralmente a obra de Haroldo. Para além de quaisquer restri-

ções de caráter paradigmático, o livro de artista é, afinal, aquele em que o corpo material

da obra se coloca como um terreno fértil para o florescimento de sentidos compreensíveis

e sensíveis – como afetos – pelo “leitor”. A respeito de Galáxias pertencer ou não à cate-

goria da arte contemporânea, importa apenas compreender que o livro de Haroldo se

pretende ruptura de limites. O único domínio no qual está inscrito o livro de Haroldo é o

da poesia, um domínio que não se limita a gênero, nem mesmo ao território textual, mas

à experiência do conhecimento imediato, extralógico. Território das imagens poéticas, o

78

texto galáctico não persegue uma forma, mas assume uma espacialidade da qual não pode

ser dissociado. Objeto integral, o livro de Haroldo, mais que apenas a experiência das

palavras, dá ao leitor a experiência total – o saber e o sabor – de si.

79

CONCLUSÃO

A razão pela qual me senti tão fortemente impelida a começar minha leitura de

Galáxias pela capa, inicialmente, não me estava muito clara. O primeiro contato que tive

com a obra se deu através da edição publicada pela Editora 34, com a tão referida espiral

de letras na capa. Talvez por esse motivo, a marcante figura de Mira Schendel tenha ficado

tão profundamente arraigada na memória que tenho de Galáxias, tendo se tornado parte

integrante – e, portanto, indissociável – do livro como eu o concebo. O plano, que origi-

nalmente era dedicar ao assunto dois ou três parágrafos, foi se flexibilizando à medida que

a reflexão ganhava corpo. Sem saber ao certo o destino a que esse percurso me conduziria,

permiti que a espiral de Mira se alastrasse pelo texto e fosse tomando conta de cinco, dez,

quinze páginas, até me dar conta de que ela se impusera como eixo temático do primeiro

capítulo quase inteiro.

Pensar sobre o objeto gráfico de Mira me levou também a pensar sobre ques-

tões relacionadas à linguagem, à arte e à poesia. Durante esse trajeto, comprovei o que

desde o princípio já suspeitava: para muito além de uma referência superficial ao título,

o objeto gráfico estampado na capa de Galáxias, tal qual um prefácio, exprime uma ver-

dadeira declaração sobre o livro de Haroldo. As duas obras se tangenciam em diversos

pontos, mas, em especial, por explorarem o vazio como espaço de produção de sentido,

convertendo-o em um lugar onde nós, seus fruidores, somos convidados a entrar. Certa

vez, li um texto25 no qual o artista visual Waltercio Caldas26 dizia que livros são “ambientes

propícios para visitação e resistem, ou respondem, às atividades físicas e imaginárias do

leitor” (CALDAS, 2012, p. 190). A observação do artista destaca a autonomia do leitor

diante do livro, encarado não como mero suporte material de textos, mas como território

de experiências deflagradas pelas múltiplas maneiras possíveis de articulá-lo. Estruturado

25 O texto em questão foi publicado pela revista Serrote #10, como verbete da seção “Alfabeto Serrote”.

26 Artista brasileiro contemporâneo, cuja obra, composta por objetos, esculturas, desenhos, instalações, com­

preende uma vasta produção de livros de artista, categoria abordada no terceiro capítulo desta dissertação.

80

de maneira atípica, o livro de Haroldo de Campos convida não apenas a percorrer a trilha

do texto impresso, mas a desbravar a extensão do seu corpo, com a atitude a que nos

encoraja Waltercio Caldas.

A capa é o primeiro dado a que temos acesso quando tomamos um livro em

nossas mãos. Curiosamente, a atenção que damos a ela costuma se resumir ao momento

em que elegemos um volume na prateleira da livraria. Em alguns casos, chegamos até

mesmo a comprar o livro, seduzidos pelos atrativos de seu invólucro, mas em geral não

o percebemos como parte integrante do todo. Embora seja o ponto de partida lógico no

trajeto do leitor, a capa quase sempre passa despercebida durante o processo de fruição

literária. Dessa forma, começar o estudo de um livro pela capa – pelo começo, portanto –

constitui, paradoxalmente, uma espécie de subversão da ordem habitual das coisas. Após

ter tropeçado e avançado sobre as questões que se ergueram ao longo da pesquisa, percebi

que a decisão de falar sobre a capa, mais do que responder ao meu desejo de cometer

um pequeno ato de ousadia, fora guiada pela vontade de exercer a minha autonomia de

leitora-escritora e ocupar, com a matéria de mim mesma, esse espaço do livro que, de

fato, é destinado à minha ocupação. Pois, se aprendi alguma coisa ao longo de todas essas

páginas, é que a experiência estética é resultado de uma equação na qual também eu – o

sujeito diante da obra – me incluo como uma variável.

Por todo o longo tempo em que refleti sobre a capa, tive dúvidas sobre a legitimi-

dade de dedicar uma considerável parcela de minha dissertação ao estudo de um objeto

aparentemente lateral, sobretudo por fazê-lo de forma tão personalista. Mas lembremos:

um aspecto fundamental da obra de arte aberta, conforme o pensamento compartilhado

por Haroldo e Umberto Eco, é a sua natureza inconclusa e relativa, cujos efeitos – possíveis

e incertos –, apenas sob a ação de outro, realizam-se plenamente. Trata-se de uma realidade

na qual o rigor científico não só não é obrigatório, como também não me parece pertinente.

“Um livro de viagem em que o leitor seja a viagem”, Galáxias não pede distanciamento,

pelo contrário, convida ao intercurso. E à apropriação. Em entrevista concedida ao Jornal da

Tarde por ocasião da publicação do livro, Haroldo diz que “um texto também constrói o seu

futuro leitor. [...] à medida que vai cindindo o seu sujeito, abolindo o seu autor, ele se encon-

81

tra e se perfaz no outro” (CAMPOS, 2010b, p. 277). Em harmonia com a fala do poeta e sem

qualquer pretensão de imparcialidade, portanto, esclareço que este estudo nasceu de minhas

particularíssimas impressões do livro, das coisas que vi, ouvi, li e vivi por aí. Tendo refletido

minha visão de mundo, tornou-se também um reflexo de mim. Tudo o que enxergamos no

outro, afinal, não passa senão de uma projeção de nós mesmos?

Embora não estivesse previsto no projeto original desta pesquisa, o estudo do

vazio, considerado em sua relação com a produção de sentido em Galáxias, mostrou-se

um tópico relevante, justamente quando me pus a pensar sobre a espiral de Mira. Quando

decidi investir na imagem da capa, já não havia tempo para voltar atrás, caso essa inves-

tigação não me levasse a nada. A aposta, no entanto, valeu a pena. Embora à primeira

vista parecesse um desvio, o objeto gráfico acabou por fornecer os meios necessários para

que, curiosamente, eu me mantivesse no caminho planejado. A ideia original – estudar

Galáxias do ponto de vista de seus efeitos sensíveis, em especial, daqueles produzidos pela

sua textura sonora – não só foi preservada, como se enriqueceu com o florescimento de

questões como o vazio e o espaço do sujeito, reflexões fundamentais para o desenvolvi-

mento do projeto e que foram impulsionadas pelo estudo da capa.

A relevância desta dissertação deve ser avaliada não somente por seus resultados,

mas também – e sobretudo – pela forma final que este texto assume: a imagem de um

processo, com as suas incoerências e imprecisões. Longe de ter esgotado o assunto que me

propus investigar, encerro tendo aberto tantas ou mais lacunas quantas consegui comple-

tar. O trabalho que ora apresento, como deve ser a viagem por Galáxias, não mostra um

percurso completo – com início, meio e fim –, mas a figura final de algo que foi se desen-

volvendo até que uma ruptura cessasse a sua expansão. Em certa ocasião, conversando

com Fayga Ostrower, o filósofo José Américo Mota Pessanha explicou que a expressão

moira, comumente associada à ideia de destino, tem o seu sentido originalmente espacial,

e designa o território que uma pessoa pode ocupar:

É o sentido do espaço próprio [...]. Quando estende sua vida até o fim, ela

como que abriu no espaço tudo o que podia ser. Por isso, numa segunda

acepção da palavra, o “destino” fica sendo ligado ao “fim”; a pessoa chega ao

82

seu limite, ao seu fim, que se identifica com a morte. Só com a morte é que o

espaço da vida mostrou-se todo qual era. A vida é a conquista de um espaço

que vai se ampliando e que com a morte ganha sua configuração final. Então,

moira, destino, é aquele mapeamento, a sesmaria, o lote que cada um ocupou.

(PESSANHA apud OSTROWER, 2013, p. 27)

Esta dissertação é como a moira da minha pesquisa: o desenho final de um texto

que, tendo nascido do encontro fortuito com o objeto gráfico de Mira Schendel, cresceu

livremente – quase a despeito do projeto –, até que não mais. Perdida nessa rede de rela-

ções inesgotáveis que encontra abrigo nos vazios do livro, muitas voltas e reviravoltas per-

mearam o processo da escrita. Agora, tendo desenhado o meu próprio mapa por Galáxias,

deixo aos outros essa figura, que sem, no entanto, estar completa, dou por encerrada aqui.

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REFERÊNCIAS

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ANEXOS

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ANEXO 1: FORMANTE INICIAL

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremessoe aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importanão é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrevermil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura paracomeçar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por issorecomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever éo futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginasou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginasmesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escreveré não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelodescomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito eforçoso um livro onde tudo seja não esteja seja um umbigodomundolivroum umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livroo ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começoe volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livroé o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livroe cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdoda palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livrotodo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fimcomêçocomeça e fina recomeça e refina se afina o fim no funil docomeço afunila o começo no fuzil do fim no fim do fim recomeça orecomeço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa eregressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória porisso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me descontaou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que podeser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo dependeda glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnadade nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necase nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res enenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser totaltudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombroe aqui me meço e começo e me projeto eco do começo eco do eco de umcomêço em eco no soco de um comêço em eco no oco eco de um socono osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em

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nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrásou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começorés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me comenão me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo sóconheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagemonde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilhaonde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigíliaé cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descantoa fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala

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ANEXO 2: FRAGMENTO 7

sasamegoto a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhadamarulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitarou musselina e sasamegoto sachet mascado na língua whispering aqueladona companheira de carruagem diria buson ou bashô buson enquanto aprimavera haru same ya chove palavras maceradas como goma de mascarresina e açúcar nas papilas coisa de fala sacarinando dançarinandonos lábios aflorados nos entrelábios nos entreflorlábios farfalhandofala farinando fala sim mas agora bashô não buson bashô seishi soba chuva sonho de sensitivas o tempo todo pensando nessa imagem todocomo as dormideiras no seu sono de chuva samidare um outro mês o quintoe contra a chuva a chuveirante chuva de maio hikari teu escudo de luztemplo de ouro onde aquela dona onde aquela fala hikari dô a luz curvacomo lâmina de ouro o ouro curvo como lâmina de luz palio paládiocontra as chuvas de maio e o trem correndo o trem disparado num tubode neve êmbolos embalados num túnel luva de neve em rolantes reversaspistas de neve o tiro do trem na neve o murro do trem na neve como umfuro de silvos de sibilos de apitos que onde o trem parar será aqueladona que onde o trem calhar será aquela dona que onde a neve neva ondea noite noita onde o fim fina será aquela dona seu suave titil tatibitatetitubeando seu rolarrulho arrôlo seu tíbio tímido turturinando trêmolode murmúrio de marulho de murmulho de gorjeio de trauteios de psiusde psilos de bilros de trilos aquela fala de fios daquela dona nem quea neve neve nem que a noite noite nem que o fim fine será lá onde otrem parar o disparado tendão do trem cortando neve do trem furando nevefurfurando neve que ela vai estar por estar primavinda primavera quea neve não gela primícia primavera no seu halo de espera a mera a veraa víride visão verna da primavera aquela fala que falha e farfalha quevela e revela que cala e descala aquela goma de palavras aquela aromadadomada mordida mascada moída pasta de palavras como alguém mordendo alíngua como alguém travando a língua como alguém dosando e adoçandotremendo e contendo e prevendo e contando e sofrendo e sofreando alíngua a mordida língua doendo dentro de um beijo de palavras um soproum bafo uma aura um aroma de palavras apenas uma dona contra o biombode papel dum leque imaginário sussurrando coisas monogatari estórias de

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papel num leque o oval azul subindo como uma lua tsuki aoi tsuki masahoj quer dizer também olá ou alô adeus numa outra parte onde a neve nevae o moldau congela onde a neve calva e o moldava alva goldene stadtcristas cimos cimalhas de ouro contra a neve flüsternd a voz daqueladona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpode névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estalacomo um elástico na neve no dedo de luva branca da neve como o livrose escreve nesse pasmado branco disparo de trem cortando rente cortandoem frente sempremente entressemprementenfrente a dona sasame daquela fala

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ANEXO 3: FRAGMENTO 47

passatempos e matatempos eu mentoscuro pervago por este minuscoleanteinstante de minutos instando alguém e instado além para contecontear umaestória scherezada minha fada quantos fados há em cada nada nuga meadanoves fora fada scherezada scherezada uma estória milnoitescontadaentão o miniminino adentrou turlumbando a noitrévia forresta e um dragodragoneou-lhe a turgimano com setifauces furnávidas e grotantro cavurnosomeuminino quer-saber o desfio da formesta o desvio da furnesta só dragãodragoneante sabe a chave da festa e o dragão dorme a sesta entãoquãomeuminino começou sua gesta cirandejo no bosque deu com a bela endormidabelabela me diga uma estória de vida mas a bela endormida de silêncioendormia e ninguém lhe contava essa estória se havia meuminino dispartepara um reino entrefosco que o rei morto era posto e o rei posto era mortomas ninguém lhe contava essa estória desvinda meuminino é soposto a umaprova de fogo devadear pelo bosque forestear pelo rio trás da testa-de-ossoque há no fundo do poço no fundo catafundo catafalco desse poço uma testade-morto meuminino transfunda adeus no calabouço mas a testa não contaa estória do seu poço se houve ou se não houve se foi moça ou foi moçoum cisne de outravez lhe aparece no sonho e pro cisnepaís o leva num revôomeuminino pergunta ao cisne pelo conto este canta seu canto de cisnee cisnencanta-se dona sol no-que-espera sua chuva de ouro deslumbrameuminino fechada em sua torre dânae princesa incuba coroada de garoame conta esse teu conto pluvial de como o ouro num flúvio de poeirairrigou teu tesouro mas a de ouro princesa fechou-se auriconfusae o menino seguiu no empós do contoconto seguiu de ceca a meca e demusa a medusa todo de ponto em branco todo de branco em pontoscherezada minha fada isto não leva a nada princesa-minha-princesaque estória malencontrada quanto veio quanta volta quanta voluta voladame busque este verossímil que faz o vero da fala e em fado transforma afada este símil sibilino bicho-azougue serpilino machofêmea do destinoe em fala transforma o fado esse bicho malinmaligno vermicego peixepalavraonde o canto conta o canto onde o porquê não diz como onde o ovo buscano ovo o seu oval rebrilhoso onde o fogo virou água a água um corpogazoso onde o nu desfaz seu nó e a noz se neva de nada uma fada conta umconto que é seu canto de finada mas ninguém nemnunca umzinho pode saber

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de tal fada seu conto onde começa nesse mesmo onde acaba sua alma não tempalma sua palma é uma água encantada vai minino meuminino desmaginar essamaga é um trabalho fatigoso uma pena celerada você cava milhas adentro esai no poço onde cava você trabalha trezentos e recolhe um trecentavo trocadiamantes milheiros por um carvão mascavado quem sabe nesse carvão estejao pó-diamantário a madre-dos-diamantes morgana do lapidário e o meninofoi e a lenda não conta do seu fadário se voltou ou não voltou se desse irnão se volta a lenda fechada em copas não-diz desdiz só dá voltas

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ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1 (p. 17)Mira SchendelSem título, da série Objetos Gráficos, 1972Tipos transferíveis, entre placas de acrílico fosco transparente, 95 x 95 x 1 cmColeção Clara Sancovsky, São Paulo

Fonte: PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 133

Figura 2 (p. 18)Cubo de Necker (elaborado pela autora)

Figura 3 (p.19)Registro da exposição O alfabeto enfurecido, no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS), 24/11/2009-01/03/2010

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Figura 4 (p. 22)Mira SchendelSem título, 1965Óleo sob papel de arroz, 47 x 23 cm [cada trabalho]Coleção Sandra e William Ling, Porto Alegre

Fonte: DIAS, 2009, p. 196

Figura 5 (p. 71)Marcel DuchampA noiva despida por seus celibatários, mesmo (Caixa verde), 1934Papel cartão, placa colorida, 94 litografias, fototipia e tinta sobre papel

Disponível em: http://www.sothebys.com/content/dam/stb/lots/N09/N09496/459N0949 6_85PT3.jpg. Acesso em 23/04/2016

Figura 6 (p. 73)

Sonia Delaunay & Blaise CendrarsLa prose du Transsiberien et de la petite Jehanne de France, 1913

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Figura 7 (p. 75)Wlademir Dias PinoA ave, 1956

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Figura 8 (p. 75)Ferreira GullarNão, 1959

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Figura 9 (p. 77)Waltercio CaldasComo imprimir sombras, 2012Acrílico moldado e gravado, 23 x 32 x 5 cm

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Figura 11 (p. 78)Buzz SpectorBroodthaers #2, 2010Gesso preto sobre livro

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Figura 12 (p. 85)Antonio DiasGaláxias, 2015Acrílico, MDF, foam, plástico, tecido, algodão com diversos tipos de impressão79 x 7 x 44 cm

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Figura 13 (p. 86)Antonio DiasGaláxias, 2015Acrílico, MDF, foam, plástico, tecido, algodão com diversos tipos de impressão79 x 7 x 44 cm

Disponível em: https://www.carbonogaleria.com.br/obra/galaxias-434 Acesso em 23/04/2016

Figura 14 (p. 87)Antonio DiasGaláxias, 2015Acrílico, MDF, foam, plástico, tecido, algodão com diversos tipos de impressão79 x 7 x 44 cm

Disponível em: https://www.carbonogaleria.com.br/obra/galaxias-434 Acesso em 23/04/2016