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Identidade profissional e formação acadêmica Ser jornalista no Brasil

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Identidade profissional e formação acadêmica

Ser jornalista no Brasil

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Identidade profissional e formação acadêmica

Fernanda LIma Lopes

Ser jornalista no Brasil

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direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos

produção editorial: AGWM Artes Gráficas

Impressão e acabamento: paULUs

© paULUs – 2013Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)Tel. (11) 5087-3700 • Fax (11) [email protected] • www.paulus.com.br

ISBN 978-85-349-3630-9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lopes, Fernanda Lima Ser jornalista no Brasil : identidade profissional e formação acadêmica / Fernanda Lima Lopes. – são paulo : paulus, 2013.(Coleção Temas de Comunicação)

Bibliografia. ISBN 978-85-349-3630-9

1. Comunicação de massa 2. Imprensa 3. Jornalismo 4. Jornalismo – Brasil – História 5. Jornalismo como profissão I. Título. II. série.

13-04749 CDD-079

Índices para catálogo sistemático: 1. Jornalismo 079

1ª- Edição, 2013

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Índice

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Primeira Parte

ConCEItoS PArA EStudAr A IdEntIdAdE JornALÍStICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

1. Conceitos de identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2. Conceitos de jornalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 2.1. dimensão gnoseológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 2.2. dimensão político-discursiva: o caráter

retórico do jornalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 2.3. dimensão formal-funcional: a atualidade

e a periodicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

Segunda Parte

JornALIStAS no BrASIL: uMA VISão CronoLÓGICA SoBrE EnSIno E ProFISSão . . . . . . . . 47

3. Primórdios do ensino de jornalismo no Brasil . . . 51 3.1. 1908-1947: Primeiras ideias, discussões

e iniciativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3.2. 1947-1962: Momento de profissionalização

do jornalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

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4. Jornalista formado: obrigatoriedade do diploma e formação universitária nas décadas de 1960 a 1980 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

4.1. o diploma se torna obrigatório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 4.2. o curso de comunicação e o jornalismo

como habilitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 4.3. Saberes, valores e fazeres do jornalismo – da

ditadura à democratização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 4.4. discussão sobre o diploma na década

de 1980: polarização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 5. Jornalismo: ensino superior e cenário profissional

na transição do século XX para o XXI . . . . . . . . . . . . . . . . 133 5.1. Posições e opiniões sobre a formação

do jornalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 5.2. Profissão e mercado de trabalho

para o jornalista no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 5.3. Identidade jornalística no mundo

das tecnologias digitais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

Terceira Parte

o JornALIStA ContEMPorÂnEo EM PAutA: AnÁLISE doS dEBAtES do InÍCIo do SÉCuLo XXI SoBrE dIPLoMA E ForMAção unIVErSItÁrIA no BrASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

6. discussões contemporâneas sobre a obrigatoriedade do diploma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

6.1. Estratégias retóricas na disputa judicial sobre o diploma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

6.2. Construção identitária pela exploração retórica do ethos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

7. As primeiras diretrizes curriculares para o curso de jornalismo no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

ALGuMAS PALAVrAS FInAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

rEFErÊnCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255

LIStA dE ABrEVIAturAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

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Introdução

Quem pode ser identificado como jornalista no Brasil, hoje? Certamente aquele homem na televisão, trajado de terno e gravata, com expressão de seriedade, sentado atrás de uma bancada, falando sobre o atentado terrorista do outro lado do mundo. E também aquele outro, igualmente engrava tado, direcionando o microfone e fazendo perguntas ao deputado acusado de corrupção. E ainda aquele amontoado de pes-soas – umas carregando gravadores; outras, câmeras de filmar; outras, máquinas fotográficas superpoderosas – no estádio de futebol, em volta de um técnico que acaba de perder a copa do mundo.

É fácil listá-los entre os que trabalham com jornalismo no rádio, na televisão, nos jornais impressos, nas revistas, nos sites e portais de informação na internet. São repórteres, edito res, redatores, fotógrafos, cinegrafistas, colunistas, chefes de reda-ção, âncoras, produtores... Essa lista é uma resposta media-namente satisfatória à pergunta “quem é jornalista?”, pois, apoiando-se em funções e atividades laborais, reverbera convic-ções hegemonicamente difundidas e socialmente partilhadas acerca da(s) imagem(ns) sustentada(s) por esses indi víduos agrupados sob o rótulo de jornalistas. os exemplos, no entanto, são apenas um reflexo pálido daquilo que o senso comum não teria dificuldade em definir como jornalismo, mas não respondem conceitualmente à pergunta sobre a identi dade do jornalista no Brasil contemporâneo.

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Minha busca por respostas acerca da identidade de um grupo de agentes sociais que ocupa um lugar privilegiado no ambiente midiático tem raízes em minha própria trajetória como jorna-lista. Quando terminei a faculdade, amigos e parentes faziam brincadeiras, dizendo que, em breve, iriam me ver na televisão! Eu não havia definido exatamente o que faria, mas saí à procura do meu primeiro emprego e de minha autonomia financeira. A realidade brasileira dos primeiros anos do século XXI deixava transparecer algumas consequências negativas da implemen-tação de um modelo econômico neoliberal, como, por exemplo, a informalidade e as altas taxas de desemprego em vários seto-res. Especificamente na área de jornalismo, os meios de comuni-cação tradicionais (principais jornais, rádios e redes de televisão) não pareciam muito interessados em abrir vagas de forma signi-ficativa. ouvia-se dizer de novos campos em mídias menores, como jornais de bairro e rádios comunitárias. Em geral, ofe-reciam muitas chances de aplicar os conhecimentos acadêmi-cos, mas não representavam retornos suficientes para o início de uma vida financeiramente independente. outros espaços bastante disputados eram as assessorias de imprensa, pouco reconhecidas entre os parentes e amigos da jornalista recém--formada, mas bastante promissoras em termos de emprego. As possibilidades de trabalho jornalístico com a internet ainda pareciam ser um campo nebuloso, sem perspectivas rentáveis muito concretas naquele momento, mas, em menos de dez anos, esse cenário já estaria reconfigurado.

outro fator de dificuldade no mercado de trabalho dessa época, e que tenderia a ficar ainda mais evidente, era a enorme concorrência entre os profissionais. Junto comigo, centenas de novos jornalistas concluíam a graduação a cada semestre no Brasil. As cidades grandes, capitais e regiões metropolitanas estavam ficando abarrotadas de profissionais bem-qualificados e cheios de títulos, cursos e aperfeiçoamentos. A busca por um diferencial tornara-se exigência implícita. Em cidades de pequeno e médio porte, poucas organizações possuíam depar-tamentos de comunicação ou algum serviço de assessoria, não oferecendo vagas para jornalistas em seus quadros. A imprensa

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(se houvesse), quase sempre de um único dono ligado a inte-resses políticos, dava emprego a pessoas não formadas, geral-mente apenas com o ensino médio (o antigo 2º- grau), gente “da antiga” ou celebridades regionais, conhecidas apenas em peque-nos círculos sociais das redondezas. Em cidades como essas, apenas um ou outro veículo de comunicação começava a con-tratar jornalistas formados, mantendo, muitas vezes, o salário bastante abaixo do piso da categoria estabelecido pelo sindi-cato. Quem não quisesse aceitar a remuneração, que fosse embora (como eu fiz em uma emissora de tV do interior mineiro, que me ofereceu trabalho de quarenta horas semanais em troca de “experiência” e salário zero). Mesmo diante desse quadro, eu acompanhava a abertura de mais cursos de comuni-cação em faculdades particulares de cidades médias e pequenas.

Em meio às inquietações pessoais e refletindo sobre o pre-sente e o futuro da profissão que eu escolhera, decidi desen-volver uma pesquisa acadêmica sobre o assunto, dedicando-me a abordar mais sistematicamente as observações que eu vinha fazendo nos últimos anos. tal investigação foi desenvolvida ao longo de seis anos1, na Escola de Comunicação da univer-sidade Federal do rio de Janeiro. Ali pude estreitar, em meu próprio trabalho, as relações inseparáveis que são travadas pelo pensar e pelo fazer; busquei engendrar teoria e prática, fazendo-as inter-relacionar e produzir bons frutos tanto para um lado quanto para outro.

Sem prolongar o relato de minha trajetória e escapando de fazer desta introdução uma espécie de autobiografia, ressalto que a descrição de trechos de minha experiência profissional teve como objetivo pintar um quadro sobre a vida de muitos jornalistas contemporâneos a mim, além de ilustrar mudanças de âmbito macrossociológico no que diz respeito ao jorna-lismo no Brasil no início do século XXI.

nesta publicação, que abarca parte dos resultados das pes-quisas que realizei, procuro, acima de tudo, trazer a público o

1. As reflexões deste livro têm como pano de fundo os estudos encadeados por dois grandes projetos acadêmicos: uma dissertação de mestrado (2007) e uma tese de doutorado (2012).

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amadurecimento de reflexões sobre a temática dos jornalistas brasileiros da contemporaneidade. Editar um volume cons-truído a partir do conteúdo de dois trabalhos acadêmicos foi uma opção que permitiu articular um fio condutor comum, além de estratégia que possibilitou costurar ideias que foram aprimoradas nesse percurso. depois de releituras e revisões, optei por dividir este livro em três partes: a primeira, de cunho mais teórico, que vai trabalhar com os conceitos de jornalismo e de identidade; a segunda, que obedece a uma ordem crono-lógica de processos envolvendo o ensino de jornalismo e a pro-fissionalização dessa atividade no Brasil; e a última, que trata de questões relativas à formação do jornalista na primeira década do século XXI, incluindo a polêmica sobre a obrigato-riedade do diploma de jornalismo.

o eixo do ensino tem figurado como mote temático para pesquisas empíricas que venho realizando no meu percurso acadêmico2. Imagens, representações, sentidos, crenças acerca dos traços identitários do jornalista reverberaram nas vozes de diferentes atores sociais que se envolvem em debates sobre esse teor. Com efeito, tanto diploma quanto o próprio curso superior estão cercados de instabilidades no que diz respeito à força deles na construção da identidade dos jornalistas bra-sileiros. Este livro demonstra que, ao longo da história da imprensa no país, esses dois elementos foram postos em xeque durante situações de questionamento, reformas educacionais e curriculares, investidas políticas e jurídicas em torno deles; enfim, momentos que refletem oscilações no poder simbólico de ambos nos processos identitários desse grupo.

É curioso notar que, ao contrário de algumas profissões tradicionais como as de médico, advogado, engenheiro, as prerrogativas profissionais do bacharel em jornalismo estão constantemente sob tensão, sendo insistentemente problema-tizadas. tal observação levou, então, às seguintes reflexões:

2. minha pesquisa de doutorado focalizou tanto a polêmica do diploma de jorna-lista quanto a proposta das primeiras diretrizes curriculares específicas para o curso de jornalismo. Já a investigação do mestrado analisou materiais recolhidos para as discussões sobre Conselho Federal de Jornalismo.

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por que a formação acadêmica do jornalista é tão questionada? ora, de modo geral, em qualquer área de saber ou atividade profissional um diplomado é mais bem visto e tem mais credi- bilidade que um técnico. Aquele que cola grau recebe um título, um do cumento proveniente de uma instituição, a qual reconhece e atesta que ele passou por uma formação capaz de lhe dar competência para atuar na profissão escolhida. o diploma e o curso superior têm, portanto, uma reconhecida autoridade. Entretanto, no caso do jornalismo, o questiona-mento sobre a necessidade (ou não) da posse de um diploma para exercer o ofício, bem como o teor da formação para esse profissional são assuntos extremamente controversos. É intri-gante pensar que o mesmo tipo de polêmica não ocorre em outros campos profissionais para os quais a formação superior é tida como essencial. Mas, afinal, por que isso sucede? Qual o sentido dessa discussão? Quais são os fatores e motivos que fazem com que o debate tenha se configurado de uma dada maneira e não de outra?

Em países como França, Inglaterra, Portugal e Estados uni-dos, não obstante se embasem em modelos diferentes de jorna-lismo, o diploma para o exercício profissional não é exigido, embora as universidades possuam cursos de jornalismo e par-ticipem de discussões sobre essa formação acadêmica. Quais são, então, as diferenças do Brasil para esses países? o que torna a questão do diploma e do curso superior tão pronun-ciada no cenário nacional? Que fatores contribuem para que esse conflito seja tão intenso e insistente? E mais especifi-camente: quais foram as formas assumidas pelo debate no país desde o início do século XX até o começo do XXI? o que, em cada época, contribuiu para que o ensino do jornalismo tenha suscitado tanta polêmica? Em suma: por que e como a ques-tão do diploma e do curso superior de jornalismo constitui um problema no Brasil?

A investigação acerca dos processos de construção de iden-tidades profissionais é um caminho promissor na busca de respostas para tais perguntas. no Brasil, um fenômeno cru-cial para se entender a produção de sentidos para as relações

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trabalhistas e para os próprios trabalhadores é o corporati-vismo, profundamente marcado pela trajetória da interven-ção do Estado nas relações sociais de trabalho (Boschi, 1991; Castro, 1991; Santos, 1994). neste livro, ficará em evidência que as entidades de classe dos jornalistas, desde que nasceram, esti veram imersas nas discussões sobre educação especializada para essa categoria profissional. Além disso, os vínculos associa-tivos contribuíram para que, em alguns momentos, determi-nadas posturas e discursos diante das questões do diploma e do ensino estivessem atreladas a outros processos de cons-trução identitária. nesse sentido, a noção de corporativismo, ainda que não seja tratada diretamente, vai permanecer subja-cente ao presente esforço em observar atores, discursos e con-textos que ajudem a explicar por que o jornalista brasileiro acabou se forjando de determinado modo e não de outro.

Além dos sindicatos, muitos outros atores sociais ajudam a constituir a identidade do jornalista. Sendo o diploma um mecanismo de autoridade que confere às universidades e à comunidade acadêmica o poder de definir perfis ao formar os jornalistas, entram em tensão outros grupos – do mercado de trabalho, do poder público, dos empresários da mídia; enfim, outros atores sociais – que também querem ter algum poder e acesso à construção de um profissional com um capital simbólico tão importante na sociedade.

Em relação ao diploma, durante os quarenta anos compreen-didos entre 1969 e 2009, a lei brasileira definiu que apenas os graduados em jornalismo poderiam exercer o ofício de jornalista. o mecanismo legal investiu, pois, o diploma de significativo peso na definição de quem podia ou não ser reconhecido como membro daquele grupo. Contudo, à parte a força da lei, muitos continuaram a considerar que diploma não era decisivo para a identificação dos jornalistas, ou seja, o decreto 972/69 firmou momentaneamente uma das estacas na borda da fronteira, mas não apagou nem conteve a polêmica. Assim, mais uma vez os questionamentos surgem: por que a necessidade do diploma traz tanta controvérsia quando se trata dos jornalistas enquanto isso não sucede com algumas outras categorias profissionais?

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Acredita-se que isso sucede porque, em primeiro lugar, a medicina e as engenharias, profissões das áreas de biológicas e exatas respectivamente, estão amplamente ancoradas em uma tradição cientificista que prima pela valorização dos cálculos, dos números, das estatísticas, dos experimentos comprovados em laboratório. Já o jornalismo, discursa sobre o cotidiano do mundo e, vivenciado no cotidiano do público, não apresenta essa aura científica. Para grande número de pessoas é difícil enxergar o jornalismo como uma ciência, porque ele, ainda que trate de temas científicos ou de fatos distantes, está perto das pessoas e promove um jeito aparentemente simples de aproxi-mação com a realidade.

não obstante essa característica que faz o jornalismo soar como não científico, há um grupo de pesquisadores empe-nhado em demonstrar que existe especificidade científica do conhecimento jornalístico. tal posição não encontra consenso na comunidade acadêmica nem no senso comum. os que acreditam nisso fazem um esforço ferrenho para defender sua posição. um dos maiores desafios para se sustentar a ideia da cientificidade do jornalismo repousa sobre o fato de que a comunicação, duplamente ferramenta e produto do trabalho do jornalista, é inerente ao ser humano. A princípio, ninguém precisa fazer um curso para ser capaz de se comunicar ou de fazer um relato sobre o que viu ou ouviu. É nessa linha de racio-cínio que se desenvolve o argumento dos que dizem que não é preciso diploma para se exercer o jornalismo. Estes acre-ditam que uma pessoa bem informada, culta, que lê muito e tem habilidade com a escrita tem qualidades suficientes para exercer a profissão.

A discussão sobre os argumentos favoráveis ou contrários ao diploma é longa, cheia de pesos e contrapesos. Ela perpassa toda a história da formação universitária do jornalista, tendo apresentado, ao longo do tempo, uma vasta gama de argu-mentos, posicionamentos, interesses, envolvimento de atores sociais, movimentações estratégicas, deslocamentos de opiniões. Como se verá ao longo deste livro, sobretudo na segunda parte, desde o alvorecer das ideias de se criar escolas de jornalismo

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existe uma disputa entre os favoráveis à formação superior específica e aqueles que creem que o jornalista não se faz nos bancos da escola, mas sim no ofício diário. tudo isso será desen-volvido aos poucos e a apresentação sistemática das disputas será retomada em outra oportunidade. Por ora, o que se pre-tende mostrar é que, em face de atividades profissionais como a medicina e a engenharia, a crença na cientificidade ou no monopólio de saberes associado à posse do diploma é, para o jornalismo, uma questão problemática e controversa.

Para além do embate sobre o diploma, as discussões estão amplificadas no que concerne à formação escolar dos jornalis-tas, de um modo geral. Existe um vigoroso e perene ânimo para se opinar sobre o que seria bom para a edu cação desses trabalhadores de viés mais intelectual. A tensão entre teoria e prática – e eventuais acirramentos de um antagonismo que não deveria existir – é o ponto nevrálgico que perpassa toda a história do ensino de jornalismo no Brasil. de maneira abran-gente e rápida, é aceitável afirmar que, embora haja diversas nuances e complexidades, os conflitos revelam uma tensão entre as correntes que tendem a valorizar uma formação mais humanística, filosófica e abrangente e as que dão mais ênfase aos fazeres jornalísticos, privilegiando o ensino das práticas e mesmo teorizando sobre elas.

tanto na polêmica do diploma quanto nos debates sobre o curso superior existe uma variedade de posicionamentos, além de diferentes atores sociais que opinam sobre os aspectos par-ticulares concernentes a cada um deles. Sem esquecer que muitos critérios concorrem para o reconhecimento da atividade de jornalismo – e, consequentemente, dos jornalistas – no país, esses dois momentos foram escolhidos para serem privilegia-dos neste livro. Ambos representam balizadores relevantes para a construção de certa imagem para o jornalista brasileiro (às vezes fragilizados por questionamentos). Mas, mais do que isso, diploma e ensino superior são instâncias que consegui-ram aglomerar, em diferentes circunstâncias, discussões frutí-feras acerca dessa mesma identidade. Exatamente por isso é que se apresentaram como ricos campos de análise das tensões e

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movimentos que não se restringiram às temáticas do “canudo” e da formação universitária, mas que abarcaram variados senti-dos que rodeiam e perpassam a identidade do jornalista brasi-leiro. Em virtude disso, podem ser considerados mais arena do que atores nas lutas em torno dos sentidos para os jornalistas e, em grande medida, para a própria atividade jornalística no país.

É válido pontuar que a dimensão conflituosa não torna o diploma e o curso superior objetos de estudo menos nobres quando se tem em vista uma pesquisa sobre identidade. Pelo contrário, tal como mostra George Simmel (1964), o conflito deve ser tomado positivamente pelo pesquisador cujas preo-cupações se voltam para os modos como um grupo constitui suas fronteiras. Assim, considera-se que são extremamente estimulantes à investigação as situações em que os sentidos que permeiam a identidade desse profissional estão em disputa. Como se verá desenvolvido nos capítulos, há momentos em que a constante tensão dá lugar a embates mais acirrados, seja por força de fatos históricos, seja por influência de atores sociais. nesses momentos, ficam mais evidentes os valores, represen-tações, memórias e outros elementos de construção identitária, o que é oportuno para a pesquisa e análise.

não é demais colocar em destaque o fato de que, embora haja uma clara opção pelo eixo da formação nesta reflexão crí-tica sobre a identidade do jornalista brasileiro, âmbitos além do educacional estão invariavelmente envolvidos na constru-ção de saberes e conhecimentos em jornalismo. Mesmo que a coluna vertebral do texto deste livro seja o ensino, vale deixar claro que tal opção metodológica não exclui, de modo algum, o âmbito dos fazeres, que pode se relacionar à empresa jorna-lística tradicional (televisão, rádio, jornal, revistas etc.) ou a qualquer espaço, até mesmo virtual, em que aparece algum tipo de atuação jornalística. também considera o âmbito em que os jornalistas se organizam, por exemplo, suas associações de classes, incluindo, para efeito de análise mais sistemática, sindicatos tanto patronais como de empregados. Abarca, ainda, uma esfera mais ampla, que é a própria sociedade. É impres-cindível que se considerem alguns atores desse espaço onde os

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produtos jornalísticos circulam e, ao mesmo tempo, onde o jornalista se relaciona com suas fontes e com outros atores sociais com quem estabelece vínculos de poder.

É preciso fazer outro esclarecimento vital para que as refle-xões deste trabalho sejam compreendidas de modo amplo, pois assim foram elaboradas. Mesmo tratando de temas polêmicos, como os casos da obrigatoriedade do diploma e das diretrizes curriculares para o curso de jornalismo, as pesquisas que emba- sam esta publicação nunca se destinaram a tomar partido nos debates. Isso porque aprofundar a discussão sobre diploma e curso superior tendo em vista a investigação da identidade jornalística não significa enveredar pela argumentação que defenda ou ataque pontos de vista, mas mostrar como, por que, por quem, com que propósitos, sob que condições são cons-truídas as diferentes e variadas opiniões sobre a formação do jornalista no Brasil.

Como lembra Pierre Bourdieu (1996), o conhecimento socio-lógico alerta sobre o fato de que não há gratuidade ou arbitra-riedade naquilo que os agentes sociais realizam, isto é, seus atos, suas condutas têm uma razão de ser. Assim, quando um pesquisador se propõe a entender a identidade de um agente social, deve cuidar de investigar razões, interesses e motivações que estão para além daquilo que é tornado explícito nas falas ou nas formas óbvias de apresentação de si. Para isso, deve exercer um esforço analítico que seja capaz de superar a situação de illusio presente nos jogos sociais, ou seja, posicionar-se de modo que não caia na tentação de assumir um compromisso com a causa pleiteada pelo indivíduo ou grupo em questão, mas detec-tar os modos e situações em que ações, interações e dizeres operam na construção das fronteiras identitárias.

A proposta de revisão das diretrizes curriculares, em 2008, e a elaboração delas em 2009, bem como o fim da obrigato-riedade do diploma de jornalista, em 2009, são definições con-cretas para o campo jornalístico e também para os jornalistas. A complexidade da teia em que se emaranham tais fenômenos abrange jogos de poder e interações entre diferentes agentes sociais, os quais estão permeados de imagens, entendimentos,

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crenças, posturas, aproximações e distanciamentos em relação ao universo jornalístico já objetivados e naturalizados por esses mesmos jogos de poder e interações sociais. Ao mesmo tempo, novos entendimentos, crenças, posturas, sentidos vão sendo produzidos e negociados no momento da interação e nas dinâ-micas das relações de poder que estão em jogo.

os jogos sociais, segundo Bourdieu (1996), abrigam os par-ticipantes, e estes, na medida em que estão completamente imersos no jogo, crendo na importância e na validade daquele jogo e seguindo as regras sem contestá-las, estão vivenciando a illusio, que nada mais é que essa ausência de questionamento. numa situação de illusio nada soa estranho, tudo parece muito evidente, e a coerência das atitudes, das estratégias, reside em funcionar em consonância com as regras do jogo. Assim, os habitantes da “Jornalistolândia” estão convencidos dos papéis que representam, das bandeiras que levantam, das causas que defendem, ainda que se posicionem em polos contrários no embate de opiniões.

no esforço metodológico de olhar para os discursos dos atores sociais em disputa na questão do diploma de jornalista, a percepção dos gestos e falas movidos por interesses cons-cientes deve vir acompanhada do cuidado em perceber aquilo que está para além do cálculo racional, ou seja, aquilo que está dissolvido na illusio, mas que também funciona como moti-vador das estratégias dos agentes. E, nesse movimento, certa-mente a preocupação histórica, que busca conexões contex-tuais e causais, dá sua contribuição teórica e metodológica para que congruências e permanências, bem como rupturas e transformações graduais, sejam compreendidas.

Como se sabe, esses agentes sociais ocupam um lugar privi-legiado no ambiente midiático. A mídia, por sua vez, em todas as manifestações discursivas, tecnológicas, exerce um papel central de organização e significação social no mundo contem -porâneo. no Brasil e no mundo, já não se pode dissociar a vida das cidades e grande parte das formas de relacionamento humano dos meios de comunicação (tradicionais e novos). É o quarto bios, organização da sociedade em que as relações

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estão configuradas com base em tecnointerações e sob a força propulsora e dominadora do mercado (Sodré, 2002).

Este livro aborda temáticas que são caras ao campo da comu-nicação. Ao expor partes de pesquisas realizadas sobre esse agente específico – o jornalista –, também abrange processos comunicativos mais amplos. Sabemos que o jornalista possui um poder de fala que, de algum modo, lhe foi outorgado. o discurso que ele faz circular nos meios de comunicação e na sociedade está autorizado a ocupar o lugar que tem; e, mais do que isso, é esperado dos jornalistas que eles produzam esse mesmo discurso. Ao estudar a identidade do jornalista brasi-leiro contemporâneo, o presente texto também acaba promo-vendo, em algum momento, reflexões acerca dos processos de produção, troca, circulação simbólica no espaço social e das mudanças culturais encabeçadas pelas transformações nos sistemas comunicativos. nesse sentido, entender quem são os jornalistas também ajuda a compreender o que eles fazem, como eles fazem e que significado esse fazer possui para a socie-dade em que vivemos.