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Álvaro Vieira Pinto SETE LIÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO DE ADULTOS

Sete liçoes sobre educação de adultos - Álvaro Vieira Pinto

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Sete liçoes sobre educação de adultos - Álvaro Vieira Pinto

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Álvaro Vieira Pinto

SETE LIÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO DE ADULTOS

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SUMÁRIO

Introdução, 91º tema: Conceito de educação, 292º tema: Forma e conteúdo da educação, 413º tema: As concepções ingênuas e críticas da educação, 594º tema: Educação infantil e educação de adultos, 695º tema: Estudo particular do problema da educação de adultos, 79 6º tema: O problema da alfabetização, 91 7º tema: A formação do educador, 106

INTRODUÇÃO

Meu primeiro contato direto com a obra de Álvaro Vieira Pinto se deu no início de 1972 quando, perambulando por livrarias do centro de São Paulo, encontrei, numa banca de livros com 50% de desconto, a obra Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica (Rio, Paz & Terra, 1969). A leitura do índice me indicava que o texto tratava de assuntos que me interessavam vivamente. Adquiri o livro, certo de ter feito duplamente um bom negócio: comprara um livro valioso e pela metade do preço. Cerca de um mês depois, retornei à mesma livraria e encontrei a mesma obra numa banca de ofertas a 25% do preço de capa.No segundo semestre daquele mesmo ano de 1972, indiquei alguns capítulos do livro como texto de apoio a uma unidade da disciplina "Problemas da Educação I" que comecei a ministrar no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Educação em São Paulo e Piracicaba. A partir daí o livro passou a ser indicado pelos alunos que eram professores em diferentes instituições de ensino superior. A obra voltou a ser comercializada pelo preço normal, acabando por se esgotar. Após relutâncias da Editora, a insistência de pedidos levou-a a lançar a segunda edição.Narro esse episódio porque as vicissitudes da referida obra espelham, de uma certa maneira, as vicissitudes pelas quais passou seu autor. Na verdade, ao que eu saiba, Ciência e existência é o único livro de Vieira Pinto lançado por uma editora comercial. A época em que entrei em

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contato com esse livro eu já dispunha de algumas informações sobre seu autor. Sabia que ele havia sido Diretor do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que havia desempenhado importante papel na mobilização político-social do início da década de 60, que provocara o seu exílio em decorrência do golpe militar de 1964. Conhecia também algumas referências e comentários à sua obra, como por exemplo a de Antônio Paim, para citar uma apreciação desfavorável, e a de Paulo Freire, para citar uma apreciação favorável. Paim, em História das idéias filosóficas no Brasil, a despeito das ressalvas e objeções, resultantes, a meu ver, do fato de que se coloca numa posição filosófico-ideológica oposta àquela em que se situa A. V. Pinto, nem por isso deixa de reconhecer o lugar proeminente que Vieira Pinto ocupa no âmbito do pensamento filosófico brasileiro. Já Paulo Freire, em diversas passagens de Educação como prática da liberdade, registra a influência e ressalta a importância da obra de Álvaro Vieira Pinto, a quem ele chama de "mestre brasileiro".Apesar das informações de que dispunha, persistia em mim uma grande curiosidade a respeito daquele polêmico pensador que era apresentado, na quarta capa do livro Ciência e existência, como sendo, na opinião de muitos, "o primeiro universalmente importante filósofo brasileiro". Quem era ele? Como se tinha tornado filósofo? O que tinha sido feito dele? Onde estaria ele e o que estaria fazendo?A oportunidade para responder a essas indagações surgiu em 1977, quando fui informado que o Professor Álvaro V. Pinto estava morando no Rio de Janeiro. Consegui, então, visitá-lo em companhia de três colegas, a época minhas colaboradoras na Universidade Federal de São Carlos. Essa visita nos causou um forte impacto. Impressionou-nos a determinação com que o professor (assim costumamos chamá-lo) se dedicava a um trabalho intelectual anônimo, solitário, porém sistemático. Eram vários livros cujos manuscritos já estavam prontos, constituindo um considerável número de volumes.Soubemos, então, que o professor Vieira Pinto partiu para o exílio em setembro de 1964. Passou um ano na Iugoslávia, vivendo amargamente a experiência de exilado. Transferiu-se, depois, para o Chile, onde produziu vários trabalhos, entre eles Ciência e existência, publicado no Brasil em 1969, e Sete lições sobre educação de adultos, que só agora temos

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a satisfação de apresentar ao público brasileiro. As saudades do Brasil, contudo, precipitaram sua volta, o que ocorreu em fins de 1968, portanto no período mais negro da ditadura militar, quando desabou sobre o país o famigerado AI-5. V. Pinto se recolheu em seu apartamento, onde se dedicou exclusivamente à incansável tarefa de redigir os manuscritos de um conjunto de obras até agora inéditas.Em julho de 1981 retornei à sua casa, agora munido de um gravador. Minha intenção era colher um depoimento para a “ANDE — Revista da Associação Nacional de Educação". A esta altura a anistia tinha tornado possível a regularização da sua situação. Ele obtivera a aposentadoria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que absorvera a Faculdade Nacional de Filosofia onde Vieira Pinto havia obtido, por concurso, a cadeira de História da Filosofia. As precárias condições de saúde do professor, o cansaço, o pouco tempo de que dispus não permitiram a realização de uma entrevista estruturada, acabada. Considero, porém, importante transcrevê-la tal como foi possível obtê-la, não só pelas informações que contém, mas principalmente porque constitui um documento de quem resistiu de forma peculiar ao arbítrio e sobreviveu a ele. O professor Álvaro e Dona Maria estão lá bem vivos. Ele, revelando um ar de superior indiferença, própria dos intelectuais que atingiram a maturidade, quando afirma que, se tinha alguma contribuição a dar, já a tinha dado. Mas não se furta a discorrer com lucidez e firmeza sobre os temas a respeito dos quais é solicitado a se manifestar. Ela, recordando com entusiasmo seu trabalho no ISEB, do qual foi a primeira funcionária, responsabilizando-se pelos serviços de secretaria. Foi lá que ela conheceu Vieira Pinto, com quem - afirma agora amorosamente - ela implicava porque era quem mais lhe dava trabalho; aparecia freqüentemente com longos manuscritos para ela datilografar. Mas envolve-se com o mesmo entusiasmo nas tarefas do presente, datilografando os manuscritos e se propondo a registrar os "insights" do marido para eventuais publicações posteriores.Segue, pois, a transcrição da entrevista que se desenrolou de maneira informal, sem questões prévias ou roteiro preestabelecido. Não se pretendeu discutir as idéias do autor; o objetivo foi reconstituir, na medida do possível, a sua trajetória intelectual.

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Dermeval Saviani - O senhor poderia falar um pouco sobre sua vida, sua formação intelectual?Álvaro Vieira Pinto - Minha origem é de um rapaz de classe média pobre, que teve necessidade de trabalhar logo cedo. Fui aluno do colégio dos jesuítas, o Santo Inácio no Rio de Janeiro. Naquele tempo, os exames eram feitos no Pedro II, para passar de um ano para outro no colégio. Quando terminei os estudos no Colégio Santo Inácio fiquei um ano disponível, sem poder entrar na faculdade, pois era muito jovem. Tinha decidido estudar medicina. Minha família morou algum tempo em São Paulo onde fiquei um ano, mas sem estudar nada de ciências. Foi um ano importante, porque foi um ano de formação literária e filosófica. Muito moço, com 14 anos, foi quando vim para o Rio de Janeiro, fazer o concurso vestibular para a Faculdade Nacional de Medicina. Passei em penúltimo lugar na turma e depois fui ser um dos primeiros alunos, porque eu não tinha formação nenhuma preparatória para aquele concurso: em São Paulo estudei muito e fiz relações com alguns intelectuais que naquele tempo estavam saindo da agitação do período da Semana de Arte Moderna. Eu já os peguei quando eles se reuniam todas as semanas, todas as noites, todos os dias quase, no café do Largo do Ouvidor, se não me engano, em São Paulo. Segui a carreira médica com muita dificuldade, porque logo depois meu pai teve um fracasso econômico e fiquei sem apoio, tendo que trabalhar para sustentar a família. Perdi minha mãe nesse período e ficamos quatro irmãos. Ficamos sem apoio e sem condições de fazer alguma coisa. Comecei a dar aulas num colégio de freiras, aulas de filosofia, de física, curso primário. Apesar disso ia fazendo aos poucos os meus estudos de medicina muito mal, para terminar o 5º. e 6º. anos e me formar. Quando me formei, tentei fazer Clínica, justamente em São Paulo, em Aparecida, mas não tive sucesso nenhum e não havia a menor condição para isso. Meu consultório era num quarto de hotel. Voltei para o Rio e aqui, com apoio de um amigo que me apresentou ao Álvaro Osório de Almeida, que naquele tempo estava com grande fama, porque estava fazendo pesquisas sobre o câncer, e trabalhos submetendo pacientes a pressões atmosféricas elevadas, com câmaras especiais. Fiquei trabalhando nisso, mas os resultados foram nulos. Assim trabalhei 16 anos, mas já nesse tempo com a minha inclinação filosófica, eu estava dando aulas também na Faculdade de Filosofia, que tinha sido fundada no

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Distrito Federal naquele tempo, mas logo depois essa faculdade fechou e criou-se a Faculdade Nacional de Filosofia, para onde eu passei na qualidade de professor adjunto. Comecei a dar cursos sobre lógica matemática, mas um ano depois veio a guerra, houve a vaga na cadeira de História da Filosofia por causa de uma mudança de professores que saíram porque eram alemães e eu era o único assistente na cadeira de Filosofia, sendo então nomeado professor substituto em História da Filosofia.Saviani — Mas o senhor não tinha feito curso de Filosofia...Vieira Pinto - Não tinha feito nenhum curso de Filosofia, tinha apenas estudado muito, em livros todos eles de orientação tomista evidentemente, porque fiz o curso que havia no Colégio Santo Inácio, com a duração de um ano de Filosofia, coisa que era uma novidade naquela época. Depois de quatro anos na Faculdade Nacional de Filosofia, pude então ir à Europa onde fui estudar na Sorbonne, o tempo suficiente para ver e sentir o ambiente filosófico de Paris.Saviani — Isso foi em que época?Vieira Pinto Isso foi em 1949.Saviani — O senhor ficou quantos anos na França?Vieira Pinto — Na França fiquei quase um ano estudando; aí eu já tinha em mente o tema da minha tese, para defesa da cátedra na Faculdade de Filosofia na volta. Foi a tese sobre a cosmologia de Platão. Dei duas conferências sobre essa tese lá em Paris que foi discutida, muito comentada. Recolhi material e com isso fiz o meu trabalho aqui no Brasil para apresentá-lo na Faculdade. Afinal, fui aprovado e nomeado para a Faculdade de Filosofia. Logo depois terminou o meu trabalho no laboratório de Biologia, porque o laboratório foi transformado em instituição privada, com o que não concordei. Fiquei então na Faculdade como professor, mas aí não mais de Lógica e sim de História da Filosofia, onde permaneci vários anos.Saviani - O seu estudo na Europa foi só na França ou em algum outro país mais?Vieira Pinto Não. Visitei outros países: Itália, Espanha, Portugal, mas estudo só na França.Saviani — E os seus conhecimentos de línguas?

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Vieira Pinto - Bom, isso aí foi um pouco inclinação natural que eu tive sempre pelas línguas e fui aprendendo com a leitura, não tive professor particular, fui aprendendo quase que sozinho, decorando palavras e aprendendo textos, exceto o grego que aprendi com um rapaz ex-seminarista que sabia muito bem o grego e que me deu aulas, uma vez por semana, durante 2 anos.Saviani - No Colégio Santo Inácio o senhor não estudava línguas?Vieira Pinto - Só inglês e francês e foi mesmo a única base que tive, porque eu estudava seriamente e a prova está que só com aquele estudo pude me preparar para o trabalho de leitura e conversação em inglês e francês. O alemão foi por acaso. Estudei sozinho lendo gramáticas e livros de textos. O russo, eu tive por professor um começo de ensino com um velho oficial de marinha, refugiado, que me dava aulas gratuitamente e depois sozinho com dicionários e textos fui aos poucos me desenvolvendo.Saviani — Mais uma coisa sobre as línguas. E o latim o senhor estudou no Colégio Santo Inácio?Vieira Pinto — Sim, o latim estudei no Colégio Santo Inácio. Era um bom estudo.Saviani — O senhor então domina o latim, o grego, o francês, o inglês, o alemão, o russo, o espanhol e o italiano?Vieira Pinto — Sim. Tenho conhecimentos suficientes desses idiomas. Mais tarde aprendi um pouco de sérvio-croata, quando estive no exílio na Iugoslávia, mas isso foi uma coisa efêmera, pois sabia que não precisava mais daquele estudo. Estudei para ler o jornal daquele país para saber as, notícias da nossa terra.Saviani — O senhor fez curso de Matemática?Vieira Pinto - Sim. Fiz o curso de matemática superior, porque tinha um amigo, que depois foi meu colega de faculdade, hoje falecido, que me incentivou para fazer o curso de matemática. Era professor de mecânica superior. Fiz o curso na Universidade do Distrito Federal, que então existia. Mas o curso tinha dois alunos só, eu e um repetente. No meio do ano encerrou-se o curso, pois a escola fechou. As aulas eram dadas em um café. Mas com professores da melhor qualidade, homens de grande valor, 2 ou 3 só. Fiquei num dilema, pois precisava da matemática para entender o problema do raio-X. Como eu usava muito o raio-X no tratamento de doentes e de animais, eu precisava conhecer bem a física corpuscular e daí

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a necessidade que tive de me fazer competente também nessas questões.Saviani - E a Física, o senhor chegou a fazer algum curso regular dentro da própria Medicina?Vieira Pinto - Dentro da Medicina não. O curso de Física foi feito juntamente com o curso de Matemática.Saviani — Então o senhor estudou Matemática e Física na época em que o senhor trabalhava no laboratório? Vieira Pinto — Sim, no laboratório de Biologia. Saviani — O laboratório pertencia ao hospital?Vieira Pinto — Não, não pertencia ao hospital, apenas funcionava lá.Saviani — O senhor era assistente no laboratório e também médico no hospital?Vieira Pinto - O laboratório também era um hospital, porque tínhamos uma parte de pesquisa e outra de enfermaria.Saviani - Paramos quando o senhor, voltando da Europa, assumiu a cadeira de História da Filosofia.Vieira Pinto — Eu já era professor adjunto na Faculdade quando saí com uma licença especial para ir à Europa estudar. Fui, fiquei um tempo, voltei e reassumi a cadeira de História da Filosofia.Saviani — Isto já era 1951?Vieira Pinto — Sim, pois foi em 1951 que fiz o concurso e fui aprovado e nomeado professor catedrático. Saviani — Como professor de História da Filosofia qual era a orientação filosófica que o senhor desenvolvia nos cursos?Vieira Pinto — Era uma orientação exclusivamente pragmática, quer dizer, eu dava o curso seguindo os manuais da filosofia comum, idealista, mas sempre num nível superior e elevado, desenvolvia cronologicamente o pensamento. Porque eram 3 anos de filosofia grega, medieval, moderna e contemporânea. Isso tinha que ser dado em condições precárias, eu não tinha assistente algum. Mais tarde um ex-aluno tornou-se meu assistente, José Américo Pessanha, que dividiu comigo um pouco as atividades. Depois entra outro período, que é o do aparecimento do ISEB, e o convite casual que recebi de Roland Corbisier, para ser professor de Filosofia no ISEB. Isto em 1955. Com a entrada para o ISEB fui mudando aos poucos de orientação, fui tomando uma orientação mais objetivista, menos idealista e deixando de lado toda aquela forma clássica de ensinar

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História da Filosofia, que era puramente repetir o que o outro disse. Passei a fazer uma exposição sobre o autor e depois a crítica, o que me dava oportunidade de alargar mais o meu campo de pensamento, embora sem jamais ter chegado a impor a ninguém qualquer idéia extremista, ou qualquer idéia que julgava tal, que fosse considerada indevida num currículo de Filosofia. Na Faculdade de Filosofia jamais saí da linha puramente ortodoxa do ensino da Filosofia; o que fazia era seguir os autores, naturalmente que se o autor dissesse alguma coisa com a qual eu não concordava tinha que dizer o mesmo, porque a minha obrigação era ensinar, não o que eu pensava, mas o que os outros pensavam. Então eu tinha que repetir, resumir, repetir e depois fazer alguma crítica, mas muito pouco elaborada, porque senão eu perderia muito tempo na crítica e acabava não podendo adiantar a matéria. Saviani — O senhor assumiu a perspectiva existencialista?Vieira Pinto - Realmente, nessa época, como estava numa transição rápida, eu assumi muitas das posições existencialistas que não conhecia até então, e assim tive oportunidade de sentir o que havia de verdade nelas, não apenas no sistema que apresentavam, mas nos conceitos que se podiam aproveitar e procurava formular por mim novas maneiras de expor certas idéias de ordem humanista, de ordem historicista e nacionalista; e acabou sendo o oposto do próprio existencialismo, mas que tinha tirado do existencialismo, no sentido de que via a realidade do homem passando por aquela situação e chegando a outras conclusões. Depois, quando fecharam o ISEB, fui para o exílio.Saviani - Sobre o ISEB, o senhor chegou a tomar conhecimento de alguns estudos posteriores a respeito do ISEB quando estava no exílio?Vieira Pinto - Não, não cheguei.Saviani - Nem do Nelson Werneck Sodré?Vieira Pinto — Não.Saviani — E o exílio na Iugoslávia?Vieira Pinto — Fui para a Iugoslávia e lá fiquei um ano totalmente inativo, sem poder dar aula, pois conhecia muito mal a língua. Depois de um ano fui para o Chile, por sugestão de Paulo Freire. Ele conseguiu arranjar alguma coisa que eu pudesse fazer e de fato recebi convite para fazer conferências, organizadas por professores do Ministério da Educação juntamente com o Paulo Freire.

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Saviani - Esse curso de conferências que o senhor preparou sobre educação em 1966, o senhor se lembra dos itens?Vieira Pinto - Educação, origem, base, finalidade, significado, técnicas, recursos, meios, como a realidade é modificada pela educação, todo problema geral da educação para adultos, para professores que educavam adultos, analfabetos, homens do campo geralmente. Dei conferências também para professores. Eram cursos extras de verão. Saviani — O senhor ficou quanto tempo no Chile?Vieira Pinto — Fiquei quase três anos no Chile, em fins de 68 voltei.Saviani — O trabalho principal que o senhor fez no Chile, foram esses cursos?Vieira Pinto — Esses cursos e ao mesmo tempo também tinha conseguido que um amigo brasileiro que trabalhava no CELADE (Centro Latino-Americano de Demografia) me apresentasse à Diretora que me deu trabalho de tradução de alguns pequenos panfletos. Depois a Diretora resolveu me contratar a fim de escrever um livro sobre Demografia para o CELADE. Eu não sabia o que fazer porque não sabia nada sobre Demografia, mas acabei estudando e escrevi um livro sobre o pensamento crítico em Demografia, que dois anos depois o CELADE mandou editar, mas que não teve entrada no Brasil. Está difundido na América toda, menos no Brasil.Saviani — Foi editado só em espanhol?Vieira Pinto — Sim, só em espanhol.Saviani — E o senhor não tem exemplares desse livro?Vieira Pinto — Tenho ainda dois exemplares. Você já viu o livro?Saviani — Ainda não vi.Vieira Pinto — Escrevi o livro em 8 meses. Considero um livro de grande importância para o meu pensamento; é um livro de grande significação.Saviani - Gostaria de ler esse livro.Vieira Pinto — Tenho apenas 2 exemplares. No CELADE talvez haja ainda outros, deve haver. No México foi muito lido, teve muita repercussão, foi muito procurado. Quando acabei esse livro, no ano seguinte a Diretora do CELADE me deu outro contrato para fazer outro livro. Aí é que eu escrevi o livro sobre Ciência e existência que não interessava ao CELADE publicar. Publiquei-o quando voltei ao Brasil, pela Editora Paz & Terra. E agora fico só com o que tenho guardado para

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publicar, mas é muita coisa! Tenho um livro sobre Tecnologia, que é muito grande, vários volumes para abranger a matéria toda. Tenho pronto um livro sobre a Filosofia Primeira; outro com o título A educação para um país oprimido. Tenho outro sobre os roteiros do curso de Educação de Adultos feito no Chile. Considerações éticas para um povo oprimido, livro sobre a ética que considero de grande valor no meu pensamento, porque não se dá à ética a importância que ela tem e centralizo um grande número de questões em torno de problemas éticos. Daí, desenvolvi um livro que trata exatamente da ética, mas da ética concreta, da ética real, de um País como o nosso, não é ética abstrata dos valores, das teorias, ou noções abstratas do dever, obediência, finalidade, nada disso. A ética real que funciona no mundo. A sociologia do povo subdesenvolvido é outro livro que tenho pronto. Cada livro tem 3 ou 4 volumes. A crítica da existência é outro livro que está guardado, um volume só, incompleto, pois não pude continuar escrevendo o que desejava porque estava cansado.Saviani — Esse foi o último livro?Vieira Pinto — É o último e talvez o primeiro, porque eu comecei escrevendo o texto quando estava na Iugoslávia. Nada de maior a dizer, nada de maior a esperar a não ser que não se percam, que vocês jovens professores cuidem de procurar um dia talvez publicar essas coisas se merecerem.Saviani — Uma questão ainda que desperta alguma curiosidade é sobre aquele seu livro a respeito da Questão da Universidade.Vieira Pinto — Sei, aquele livro foi uma conferência que fiz em Belo Horizonte e depois a diretoria da antiga UNE me pediu para publicar.

Como se vê, trata-se de um intelectual que se caracteriza, praticamente, pelo autodidatismo. Não nos apressemos, entretanto, a ver nesse fato um indicador de uma suposta pouca importância da escola na formação dos intelectuais. Lembremo-nos, conforme está registrado na entrevista, que V. Pinto estudou no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, que era, à época, um dos melhores do Rio de Janeiro, além de ter feito os exames no Colégio Pedro II. É, pois, pelo menos plausível a suposição de que o autodidatismo produziu bons frutos porque se desenvolveu sobre a base de uma sólida formação geral propiciada pela escolarização fundamental. De qualquer forma, não é possível ignorar a importância educacional de

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Álvaro Vieira Pinto. De um lado, porque é um testemunho do modo como eram formados os intelectuais brasileiros até início dos anos 50. De outro lado, porque exerceu importante influência na formação e no trabalho de outros intelectuais. Entretanto, é preciso registrar, além disso, que o professor Álvaro Vieira Pinto se preocupou explicitamente com a questão pedagógica. Essa preocupação fica evidenciada no depoimento obtido pela professora Betty Oliveira, em 13/03/82, cuja transcrição é reproduzida a seguir.

Betty — O senhor poderia resumir a sua visão sobre educação?Vieira Pinto — O caminho que o professor escolheu para aprender foi ensinar. No ato do ensino ele se defronta com as verdadeiras dificuldades, obstáculos reais, concretos, que precisa superar. Nessa situação ele aprende. No meu livro sobre tecnologia trato da teoria da comunicação que contribui para a análise desse processo. Fiz a crítica da cibernética encontrando algumas noções que, se não são originais, precisam ser consideradas fundamentais. Por exemplo: é indispensável o caráter de encontro de consciências no ato da aprendizagem, porque a educação é uma transmissão de uma consciência a outra, de alguma coisa que um já possui e o outro ainda não. A teoria dialética do conhecimento é fundamentalmente cibernética, no sentido dialético da palavra. Não a cibernética empírica que é essa aí que se faz. Não se trata da entrega de um embrulho de uma pessoa para outra, mas de possibilitar uma modificação no modo como essa outra pessoa, que é o aluno, está capacitado para receber embrulhos. Na pedagogia, o princípio é a teoria da recepção do sabido, porque é preciso que se modifique a outra consciência. Isso tem muita importância porque permite estudar a educação do ponto de vista cibernético, não material, como se costuma fazer (quer dizer, só com dados estatísticos, com método e técnicas, etc.), mas avaliando o resultado pela transformação que a educação imprime à consciência do aluno. Se ela não fizer isso, de nada adianta seu esforço. Um dos graves erros na pedagogia alienada é esse. É avaliar o resultado da prática educacional pela devolução do embrulho, sem compreender que isso não é educação. A educação implica uma modificação de personalidade e é por isso que é difícil de se aprender, porque ela modifica a personalidade do educador ao mesmo tempo que vai modificando a do

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aluno. Desse modo, a educação é eminentemente ameaçadora. Ela consiste em abalar a segurança, a firmeza do professor, sua consciência professoral (que teme perder o estabelecido, que é o seu forte no plano da prática empírica) para se flexionar de acordo com as circunstâncias. A resistência do aluno ao aprendizado é um fator de modificação da consciência do educador, e não uma obstinação, uma incompetência. Mostrar e trazer a educação para o domínio da cibernética é uma imposição causada por duas ordens de fatores: 1) as massas educadas cada vez maiores; 2) e ao mesmo tempo a mecanização dos processos pedagógicos. Se o educador não se preparar, não terá condições para introduzir o verdadeiro fator, decisivo, no ato educativo, que é o papel da consciência. Fica prisioneiro do que a cibernética chama de hard-ware (todo o material, toda a parte mecânica, instrumental). É evidente que o professor não pode transmitir flexibilidade ao seu ensino se não a possui ele próprio na sua formação e na sua prática. Não escrevi nenhum livro de pedagogia, embora tenha muitas observações a fazer sobre ela.Betty - Em outra ocasião o senhor falou sobre "pedagogia filosófica". Em que consiste?Vieira Pinto — Para construção de uma pedagogia filosófica é preciso reunir dados ou elementos provenientes de quatro setores do saber: 1) da teoria do pensamento (dialética); 2) da organização dos atos do conhecimento em seus diversos pontos; 3) do estudo fisiológico ideal da psicologia; 4) da teoria do desenvolvimento humano, essencialmente histórico, marcado pelas diferentes culturas e civilizações. Esses aspectos que abordei fazem parte do material para um livro sobre pedagogia que pensei em escrever. A política, a técnica, a ciência, têm que ser consideradas na pedagogia, na teoria da pedagogia, para poder unificar e ao mesmo tempo inspirar a verdade pedagógica nos diversos campos em que ela se desdobra. O grande defeito que encontro nos educadores é principalmente o de procurar uma pedagogia pronta, quando não existe essa pedagogia pronta. E se existisse seria imprestável. A pedagogia nasce (aí teria que se dizer em grego paidos agogos, que é o ato, o verbo paida-gogen, isto é, como é preciso saber, como conduzir a criança à escola) no tempo da escravidão antiga, onde o escravo era o educador que tinha que ser educado com o próprio ato de tratar as crianças que lhe eram confiadas. Atualmente, de uma certa maneira, isso tem que ser

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feito, pelo educador, mas com uma consciência científica. É isso que falta compreender. A educação é um ato intransitive quer dizer, o educador não pode transformar a outrem que não esteja se transformando no próprio trabalho de ensinar. Por isso é que ele, ao ensinar, ele aprende.Betty – O senhor poderia explicitar melhor a sua frase: "A resistência do aluno ao aprendizado é um fator de modificação da consciência do educador e não uma obstinação, uma incompetência"?Vieira Pinto — O que quero dizer é que não há uma rigidez, não há um a priori em educação. É o caso de repetir com Leibniz, quando corrigiu Aristóteles, "exceto a própria educação". Este é o único a priori que existe. Isso serve de aforismo. (Isso corresponde a pequenos enunciados de verdade que o educador emite a propósito de um determinado ponto que serve para condensar o pensamento exposto, de maneira mais geral, na aula ou no livro. O aforismo é sempre uma verdade condensada. Ao mesmo tempo é simbólica. De modo que há o risco das interpretações errôneas. Isto é preciso evitar.)A prática pedagógica é contraditória. É duplamente contraditória porque ela supõe que quem ensina sabe, quando não sabe e quem aprende não sabe, quando, na verdade, sabe. Essa é a contradição da pedagogia. Os erros que o educador comete só criticamente podem ser chamados de erros, e tem que se verificar até que ponto é ele o autor desses erros, É preciso entrar aí toda a teoria de Bacon sobre os eidola (tribus, specus, fori e teatri). Os ídolos são os erros que os homens fazem. Todas essas condições interferem no ato da educação. Têm que ser depuradas. Mas só a dialética consegue. É o que Bacon não podia fazer. Toda a minha idéia consiste em criar uma teoria da educação que não seja teórica, no sentido em que fica desfigurada como teoria, e sim corrigida pela prática da aula, pelo próprio ato de ensinar. E por outro lado que seja uma prática que não se confunda com um mero exercício, porque tem que valer como compreensão teórica. Dessa forma a teoria responde às dúvidas da prática. Sem essas dúvidas não haveria teoria. A teoria seria uma coisa sem maior significado, estéril. Essa relação entre teoria e prática é outro aforismo muito importante. O professor deve praticar a organização crítica de sua aula, em todos os aspectos. Por conseguinte, precisa buscar os fundamentos, os pressupostos para cada coisa que faz e também respostas para todas as objeções. É uma justificativa, um ato de buscar os

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fundamentos, continuamente, do seu fazer. Aí é que entra o papel da teoria da abstração. Um aluno traz consigo todos os problemas que só são dele (enquanto educando) porque ele está se formando. Quero mostrar aqui a identidade de educação e formação. Como ele está se formando, tem aqueles problemas que são dele; porque está se formando para ser ele mesmo e não outra pessoa. Logo, na fase de educação é que se dá a fase de formação. É um crescimento que tem dois aspectos: o aluno cresce como aluno porque aprende e com isso se forma. Quer dizer, o adulto educando é aquele que aprendeu o conjunto de conhecimentos que o formaram. É a noção de formação ligada à de educação.Seria importante agora tratar do aforismo sobre o papel da escola que é uma coisa fundamental, muito complexa, para o qual a filosofia tem muito a contribuir. A escola é o meio que o aluno vai viver como aluno. É preciso aí estudar a relação entre os aspectos peculiares desse meio — a escola — com os demais. A escola representa a sociedade do aluno para o educador crítico, para o qual a sociedade representa a escola do educador. Quer dizer, a escola é um ambiente e, ao mesmo tempo, um processo. E como tal precisa ser entendida dinamicamente.O ato de ensinar apresenta muitos obstáculos. Tudo vai depender de como se considera esses obstáculos. Podem ser de natureza material (falta de dinheiro, por exemplo) ou de outro tipo de natureza, como uma incompreensão de um colega para outro. Isso também são formas de obstáculos. Pode-se dizer que a pedagogia reproduz a sociologia; que não há problema pedagógico que não seja sociológico, e vice-versa. Toda transformação sociológica é fonte de modificações pedagógicas. Eu gostaria de tratar desse assunto unindo ao máximo a sociologia dialética com a pedagogia. É necessário levar também em conta a evolução do conteúdo da ciência.A pedagogia não se torna científica por vontade do pesquisador ou do educador, mas quando as condições da prática social permitem uma determinada explicação do ensino tornar-se científica. A ciência tem sua evolução própria e a pedagogia tem que se adaptar a essa evolução, mas de uma perspectiva crítica que permita estabelecer o jogo de contradições.Existe a ciência que também é uma forma de consciência e tem influência decisiva para construir a representação do objeto ou da atividade. É preciso também dar o máximo valor à noção de finalidade. Não há teoria

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da educação sem teoria da finalidade da educação.É preciso que o êxito de uma determinada atitude pedagógica não se transforme em obstáculo ao prosseguimento do curso da própria educação. Os métodos bem sucedidos, como o do Paulo Freire, podem acabar se tornando um quisto, uma coisa que impede o prosseguimento do seu próprio desenvolvimento.Penso que a afirmação de Vieira Pinto "não escrevi nenhum livro de pedagogia, embora tenha muitas observações a fazer sobre ela", decorre do fato de que as Sete lições sobre educação de adultos foram aulas-conferências que ele proferiu no Chile em 1966. Os textos que escreveu então, ele os redigiu como roteiros das aulas que ministrou. No seu entender, um livro exigiria maior desenvolvimento e aprofundamento. Entretanto, Betty e eu o convencemos a publicar os referidos roteiros na forma original. E isto não apenas pelas importantes contribuições que este pequeno livro contém, e que reputamos ser de grande utilidade para os educadores brasileiros de hoje, mas também como testemunho de um trabalho que vem se desenvolvendo já há muitos anos e que permanece vivo e atuante.Hoje, quando diversos estudos já surgiram reconstituindo o momento histórico em que A. V. Pinto se configurou como um intelectual militante, pode-se fazer reparos a conceitos por ele emitidos e, mesmo, ao conjunto do seu pensamento filosófico. É impossível, porém, não reconhecer a sua importância e a envergadura intelectual de um trabalho desenvolvido em condições bastante adversas.Após as considerações feitas, penso ter ficado claro o sentido da afirmação que fiz no início desta Introdução, quando disse que as vicissitudes da obra Ciência e existência espelham as vicissitudes pelas quais passou seu autor. Com efeito, assim como a referida obra correu o risco de cair no esquecimento, mas se impôs, tornando obrigatória a sua reedição, assim também seu autor, que parecia já ter-se retirado do cenário cultural brasileiro, resistiu e retorna agora através da presente obra.A publicação deste livro é, pois, ao mesmo tempo uma contribuição à cultura brasileira e uma homenagem a um dos intelectuais que mais se empenhou na consolidação da referida cultura.

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A presente Introdução pretendeu trazer alguns subsídios que facilitassem ao leitor situar as Sete lições sobre educação de adultos no contexto da vida e da obra do autor. Espero ter atingido esse objetivo.Dermeval Saviani São Paulo, abril de 1982

1º. TEMA: CONCEITO DE EDUCAÇÃO

Que é a educação?Deixaremos de lado as numerosas definições eruditas, que não vamos mencionar, nem podemos discutir e consideraremos a educação em seus dois significados: restrito e amplo.Em significado restrito, o da pedagogia clássica, convencional, sistematizada, refere-se a educação às fases infantil e juvenil da vida do ser humano. Não se deve, no entanto, reduzi-la a esses limites. Seria um erro lógico, filosófico e sociológico.Em sentido amplo (e autêntico) a educação diz respeito à existência humana em toda a sua duração e em todos os seus aspectos. Desta maneira deve-se justificar lógica e sociologicamente o problema da educação de adultos. Daqui sai a verdadeira definição de educação.A educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua imagem e em função de seus interesses.Por conseqüência, educação é formação (Bildung) do homem pela sociedade, ou seja, o processo pelo qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo no modo de ser social vigente e de conduzi-lo a aceitar e buscar os fins coletivos.

Caráter histórico-antropológico da educação

Partindo da definição exposta, podemos explicitar os caracteres da educação:a) A educação é um processo, portanto é o decorrer de um fenômeno (a formação do homem) no tempo, ou seja, é um fato histórico. Todavia, é histórico em duplo sentido: primeiro, no sentido de que representa a própria história individual de cada ser humano; segundo, no sentido de que está vinculada à fase vivida pela comunidade em sua contínua evolução.

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Sendo um processo, desde logo se vê que não pode ser racionalmente interpretada com os instrumentos da lógica formal, mas somente com as categorias da lógica dialética.b) A educação é um fato existencial. Refere-se ao modo como (por si mesmo e pelas ações exteriores que sofre) o homem se faz ser homem. A educação configura o homem em toda sua realidade. Pode-se dizer (em outra versão da definição) que é o processo pelo qual o homem adquire sua essência (real, social, não metafísica). É o processo constitutivo do ser humano.c) A educação é um fato social. Refere-se à sociedade como um todo. É determinada pelo interesse que move a comunidade a integrar todos os seus membros â forma social vigente (relações econômicas, instituições, usos, ciências, atividades, etc.). É o procedimento pelo qual a sociedade se reproduz a si mesma ao longo de sua duração temporal. Contudo, neste processo de auto-reprodução está contida, desde logo, uma contradição: a sociedade desejaria fazer-se no tempo futuro o mais igual possível a si mesma; porém, a dinâmica da educação atua em sentido oposto, uma vez que engendra necessariamente o progresso social, isto é, a diferenciação do futuro em relação ao presente. Daí deriva o duplo aspecto do fato social da educação: incorporação dos indivíduos ao estado existente (a intenção de perpetuidade, de conservação, de invariabilidade, inércia pedagógica, estabilidade educacional) e progresso, isto é, necessidade de ruptura do equilíbrio presente, de adiantamento, de criação do novo. Esta contradição pertence à própria essência da educação dada sua natureza histórico-antropológica. Por ser contraditória é que a educação é instrumental (no sentido em que a consciência crítica emprega este qualificativo). Quando se verifica a simultaneidade consciente de incorporação e progresso, tem-se a educação em sua forma integrada, isto é, a plena realização da natureza humana.d) A educação é um fenômeno cultural. Não somente os conhecimentos, experiências, usos, crenças, valores, etc. a transmitir ao indivíduo, mas também os métodos utilizados pela totalidade social para exercer sua ação educativa são parte do fundo cultural da comunidade e dependem do grau de seu desenvolvimento. Em outras palavras, a educação é a transmissão integrada da cultura em todos os seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita. O método pedagógico

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é função da cultura existente. O saber é o conjunto dos dados da cultura que se têm tornado socialmente conscientes e que a sociedade é capaz de expressar pela linguagem. Nas sociedades iletradas não existe saber graficamente conservado pela escrita, contudo, há transmissão do saber pela prática social, pela via oral e, portanto, há educação.e) Nas sociedades altamente desenvolvidas, com divisões internas em classes opostas, a educação não pode conectar na formação uniforme de todos os seus membros, porque: por um lado, é excessivo o número de dados a transmitir; e, por outro, não há interesse nem possibilidade e formar indivíduos iguais, mas se busca manter a desigualdade social presente. Por isso, em tais sociedades, a educação pelo saber letrado é sempre privilégio de um grupo ou dá-se, no sentido que se segue:— somente este grupo tem assegurado o direito (real, concreto) de saber (p. ex., alfabetização);— somente membros desse grupo se especializam na tarefa de educar;— somente e se o grupo tem o direito e o poder de legislar sobre a educação, ou seja, de definir aquilo em que deva consistir a educação institucionalizada, escolarizada. É conseqüência, essa minoria unicamente reconhecerá com educação a deste último tipo. Todo o restante do saber não letrado, e as demais formas de cultura que a sociedade transmite a seus outros membros, é considerado incultura e ausência de educação.f) A educação se desenvolve sobre o fundamento do processo econômico da sociedade. Porque é ele que:— determina as possibilidades e as condições de cada fase cultural;— determina a distribuição das probabilidades educacionais na sociedade, em virtude do papel que atribui a cada indivíduo dentro da comunidade;— proporciona os meios materiais para a execução do trabalho educacional, sua extensão e sua profundidade;— dita os fins gerais da educação, que determina em uma dada comunidade serão formados indivíduos de níveis culturais distintos, de acordo com sua posição no trabalho comum (na sociedade fechada, dividida) ou se todos devem ter as mesmas oportunidades e possibilidades de aprender (sociedades democráticas).g) A educação é uma atividade teleológica. A formação do indivíduo sempre visa a um fim. Está sempre "dirigida para". No sentido geral

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esse fim é a conversão do educando em membro útil da comunidade. No sentido restrito, formar, escolar, é a preparação de diferentes tipos de indivíduos para executar as tarefas específicas da vida comunitária (daí a divisão da instrução em graus, em carreiras, etc.). O que determina os fins da educação são os interesses do grupo que detêm o comando social.h) A educação é uma modalidade de trabalho social. Para compreendê-la é necessário utilizar as categorias histórico-antropológicas dialéticas, que definem o conceito de "trabalho". A educação é parte do trabalho social porque:- trata de formar os membros da comunidade para o desempenho de uma função de trabalho no âmbito da atividade total;- o educador é um trabalhador (reconhecido como tal);- no caso especial da educação de adultos, dirige-se a outro trabalhador, a quem tenciona transmitir conhecimentos que lhe permitam elevar-se em sua condição de trabalhador.i) A educação é um fato de ordem consciente. É determinada pelo grau alcançado pela consciência social e objetiva suscitar no educando a consciência de si e do mundo. É a formação da autoconsciência social ao longo do tempo em todos os indivíduos que compõem a comunidade. Parte da inconsciência cultural (educação primitiva, iletrada) e atravessa múltiplas etapas de consciência crescente de si e da realidade objetiva (mediante o saber adquirido, a cultura, a ciência, etc.) até chegar à plena autoconsciência. Esta será a etapa em que todos os indivíduos alcançam igualmente o máximo de consciência crítica de si e de seu mundo permitida pelo estado de adiantamento do processo da realidade (máxima consciência historicamente possível).j) A educação é um processo exponencial, isto é, multiplica-se por si mesma com sua própria realização. Quanto mais educado, mais necessita o homem educar-se e, portanto exige mais educação. Como esta não está jamais acabada, uma vez adquirido o conhecimento existente (educação transmissiva) ingressa-se na fase criadora do saber (educação inventiva).k) A educação é por essência concreta. Pode ser concebida a priori, mas o que a define é sua realização objetiva, concreta. Esta realização depende das situações históricas objetivas, das forças sociais presentes, de seu conflito, dos interesses em causa, da extensão das massas privadas de conhecimento, etc. Por isso, toda discussão abstrata sobre educação

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é inútil e prejudicial, trazendo em seu bojo sempre um estratagema da consciência dominante para justificar-se e deixar de cumprir seus deveres culturais para com o povo.I) A educação é por natureza contraditória, pois implica simultaneamente conservação (dos dados do saber adquirido) e criação, ou seja, crítica, negação e substituição do saber existente. Somente desta maneira é profícua, pois do contrário seria a repetição eterna do saber considerado definitivo e a anulação de toda possibilidade de criação do novo e do progresso da cultura.

Historicidade da educação

A historicidade pertence à essência da educação. Não se confunde com a temporalidade (que é o fato de haver tido um passado), porém se define por sua essencial transitividade (o fato de haver futuro). Por isso, a história da educação favorece a compreensão do processo educacional; é indispensável, mas não a esgota. Porque o exercício da tarefa educativa conduz à sua própria modificação, ao desenvolvimento de abertura para o futuro, ao adiantamento do processo como um todo. Por isso, todo "programa de educação" é por natureza, inconcluso e, até se poderia dizer, irrealizável, pois sua própria execução altera a qualidade dos elementos que o compõem (o aluno, o professor, os métodos, as finalidades, etc.) e determina a necessidade de um segundo programa, mais perfeito, mais adiantado. A educação é histórica não porque se executa no tempo, mas porque é um processo de formação do homem para o novo da cultura, do trabalho, de sua autoconsciência. A educação como acontecimento humano é histórica não somente porque cada homem é educado em um determinado momento do tempo histórico geral - aquele em que lhe cabe viver (historicidade extrínseca) — mas porque o processo de sua educação, compreendido como o desenvolvimento de sua existência, é sua própria história pessoal (historicidade intrínseca).

Dependência do conceito de "homem"

A educação é necessariamente intencional. Não se pode pretender formar um homem sem um prévio conceito ideal de homem. Este modelo,

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contudo, é um dado de consciência e, portanto pertence à consciência de alguém; concretamente, de alguém que está num dado tempo, num espaço, em definida posição social. De acordo com a natureza (posição, interesse, fins) da consciência que comanda o processo educacional, tal será o tipo social de educação. Nas formas elementares de consciência (sociedades aristocráticas ou oligárquicas) o grupo dominante acredita que cabe a ele ditar a seu gosto o processo educativo, porque acredita também que o educando é um ser que não possui ainda consciência e por isso necessita recebê-la pela educação. Nas formas superiores de consciência (autoconsciência) o legislador, assim como o educador, sabe que se enfrenta com uma outra consciência e que seu papel consiste em trazê-la ao conhecimento dos interesses gerais da sociedade mediante um permanente diálogo entre consciências. Na forma elementar, ingênua, a educação é considerada como o procedimento de transformação do não-homem em homem. Na forma superior, crítica, a educação se concebe como um diálogo entre dois homens, na verdade entre dois educadores. Daí que a educação seja uma forma particular de responsabilidade da ação entre os homens.

Fundamentos sociais do conceito de educação

Excetuando a etapa primitiva, todos os tipos de sociedade têm produzido um conceito de educação, que naturalmente reflita as peculiaridades de sua estrutura e os interesses de seus grupos dirigentes. Por isso, não é possível conceber em abstraio um "modelo" de educação e pretender levá-lo à prática. A educação real tem sido sempre a educação que era possível em determinada formação histórico-social, dada a etapa em que se encontrava o processo de seu desenvolvimento (qualidade e quantidade das forças de trabalho, adiantamentos técnicos, natureza e fins dos objetos produzidos, etc.). Todo o empenho de uma sociedade subdesenvolvida num esforço de crescimento, como a nossa, deve consistir em desenvolver seus fundamentos materiais para que sobre estes se possa edificar uma educação mais adiantada, que reverterá em maior desenvolvimento destes mesmos fundamentos.

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A educação como fenômeno da cultura

A educação pertence à cultura em dois sentidos:— primeiramente, no sentido de que o mesmo conceito de educação é um dos produtos ideológicos da cultura. Como tal reflete e resume a totalidade cultural que o enuncia;— em segundo lugar, a educação pertence ao campo cultural por ser o processo produtor (e transmissor) da cultura.Por conseqüência a educação é a cultura simultaneamente como feita (porém não como acabada) no educador que a transmite, e como fazendo-se no educando, que a recebe (refazendo-a), por conseguinte, capacitando-se a se tornar o agente da ampliação dela.Esta é uma indicação sumária. Há necessidade de um debate mais amplo sobre o tema da "cultura", sobre as noções ingênuas e críticas de "cultura". O analfabeto não é um ignorante, não é um inculto, mas apenas o portador de formas pré-letradas de cultura (as quais coexistem às vezes com uma nascente consciência crítica de seu estado, de seu papel social, de seu trabalho).

A educação como possibilidade humana

A espécie e a extensão da educação distribuída por uma sociedade a seus membros são função de seu estado de desenvolvimento material e cultural. Este é que determina as possibilidades da educação tanto em qualidade (conteúdo e métodos) como em quantidade (a quem e a quantos será distribuída).Do ponto de vista do indivíduo, as probabilidades de receber educação diferenciada e de recebê-la em determinado grau dependem de sua posição no contexto social, da natureza de seu trabalho e do valor atribuído a este pelos interesses da consciência social dominante.Para que aumentem as possibilidades individuais de educação, e para que se tornem universais, é necessário que mude o ponto de vista dominante sobre o valor do homem na sociedade, o que só ocorrerá pela mudança de

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valoração atribuída ao trabalho. Quando o trabalho manual deixar de ser um estigma e se converter em simples diferenciação do trabalho social geral, a educação institucionalizada perderá o caráter de privilégio e será um direito concretamente igual para todos.Nas sociedades divididas as possibilidades do indivíduo de receber educação institucionalizada dependem:a) do grau de desenvolvimento geral de tal sociedade, que determina a necessidade de incorporação de seus membros a formas superiores de cultura para o fim de executar tipos mais complexos e mais produtivos de trabalho;b) consciência de si, de seus grupos dirigentes, que os conduz a criar seu "modelo" de homem e a nutrir a exigência de incorporação de maior número de indivíduos às formas letradas do saber;c) atribuído a cada indivíduo ou que a cada indivíduo cumpre no todo social, de onde deriva sua capacidade de pressão coletiva (associado a outros da mesma condição) sobre o centro de decisão social, no sentido de que lhes seja distribuída educação em graus sempre mais elevados;d) daí, a importância dos movimentos de educação conjunta de grandes grupos sociais (campanhas de alfabetização) pois determinam o fenômeno histórico da passagem da quantidade à qualidade. De fato, a exigência de muitos (educandos) se converte em exigência de mais e de melhor educação.

A educação como função social permanente

a) A educação é apenas o aspecto prático, ativo, da convivência social. Na sociedade todos educam a todos permanentemente. Como o indivíduo não vive isolado, sua educação é contínua. Mais particularmente, considerando-se apenas a transmissão dos conhecimentos compendiados, a educação também é permanente, pois o grupo dominante tem todo interesse em reproduzir-se nas gerações sucessivas, o que faz transmitindo às novas gerações seu estilo de vida, seu saber, seus hábitos, seus valores, etc. Não existe sociedade sem educação, ainda que nas formas primitivas possa faltar a educação formalizada, institucionalizada (que aí é representada pelos ritos sociais). Por conseqüência, nenhum membro da comunidade é absolutamente ignorante, do contrário não poderia viver.

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b) A sociedade está continuamente equipando seus membros com conhecimentos e atitudes que permitem a sobrevivência do grupo humano. O equívoco das concepções instrumentalistas da educação (J. Dewey, behaviorismo em geral) está em proceder segundo uma perspectiva individualista, acreditando que o motor da educação está no interesse do indivíduo de adaptar-se ao meio social, aprendendo as respostas úteis aos desafios do ambiente, adquirindo o saber como um instrumento que lhe permitirá resolver os problemas criados para si pelas experiências com que haverá de enfrentar-se. Esta é uma concepção que supõe que a sociedade é naturalmente hostil ao homem e que esse terá de preparar-se para defender-se, o que faz por meio da educação (sociedade onde impera a competência desenfreada e a luta de todos contra todos).Na verdade, o motor da educação está no interesse da sociedade em aproveitar para seus fins coletivos (sempre estabelecidos, nas sociedades divididas, pelas camadas dirigentes) a força do trabalho de cada um de seus membros (sua capacidade criadora). Por isso, a educação não é uma conquista do indivíduo (o que seria dar-lhe um fundamento ou princípio subjetivo), mas uma função da sociedade e como tal sempre dependente de seu grau de desenvolvimento. Onde há sociedade há educação: logo, esta é permanente.A educação é um processo histórico de criação do homem para a sociedade e simultaneamente de modificação da sociedade para benefício do homema) O homem é por essência um ser inacabado, pois se constitui a si mesmo ao longo de sua existência social. A sociedade configura todas as experiências individuais do homem, transmite-lhe resumidamente todos os conhecimentos adquiridos no passado do grupo, e recolhe as contribuições que o poder criador de cada indivíduo engendra e que oferece à sua comunidade. Neste sentido, a sociedade cria o homem para si.b) Mas, sendo o homem um ser livre e criador (por suas faculdades intelectuais) de cultura, as criações que produz, as inovações técnicas, artísticas, as idéias originais que descobre são incorporadas à cultura geral do grupo e logo transmitidas a outros indivíduos (da mesma ou das gerações seguintes) que não as descobriram. Vão ser parte da educação desses novos membros da sociedade, e deste modo o saber e a cultura se desenvolvem e a educação se revela como um processo expansivo

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incessante. O homem, educado pela sociedade, modifica esta mesma sociedade como resultado da própria educação que tem recebido dela. Nisso consiste o progresso social, no processo de auto-geração da cultura.c) Verifica-se assim que a sociedade desempenha um papel de mediação entre os homens no processo de criação e transmissão da cultura, no qual consiste a educação. Entre o educador e o educando se interpõe a sociedade, que, de uma parte constitui o educador (e o institucionaliza) para educar, e de outra, pressiona o educando para educar-se. Mas essa transmissão da cultura pela educação, justamente porque supõe a mediação (dialética) da sociedade, na realidade, pelo trabalho concreto dos homens, não é mecânica, e por isso o saber não se comunica inalterado de um indivíduo ao outro. Ao contrário, na passagem de um ao outro, altera-se, torna-se maior pela contribuição da criação intelectual do educador, recebida pela sociedade e considerada por ela como um acréscimo indispensável para ser comunicado ao educando.

2º. TEMA: FORMA E CONTEÚDO DA EDUCAÇÃO

Diferença entre conteúdo e forma da educaçãoa) O que constitui o conteúdo da Educação comporta duas respostas distintas:a.1) Segundo o conceito ingênuo (o mais comum), o conteúdo da Educação está definido pela totalidade dos conhecimentos que se transmitem do professor ao aluno. São as disciplinas, o currículo do curso, aquele que enche as lições e são objeto da aprendizagem,A Pedagogia convencional, oficial (alienada), concentra toda sua atenção na discussão deste conteúdo, com a intenção de o fazer mais adequado mais funcional possível para cada fase da vida do educando, de modo a escolher como assunto a transmitir somente aquele que será desejável para a formação da criança, do adolescente, do universitário. Percebe-se, desde logo, que esta escolha (na qual se resume todo o trabalho dos pedagogos de gabinete) terá que ser ditada pelas concepções (estas mesmas dependentes dos interesses) do pedagogo em relação ao tipo de homem que convém formar mediante a educação.É aqui onde se coloca o grande problema, a divergência (de larga repercussão histórica) entre educação "humanista" e

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educação "tecnológica". O que se decide, com isto, é o conceito que o pedagogo tem da natureza do homem, de seu papel na sociedade, em última análise, do conceito de sociedade para a qual deve preparar o educando. O debate persiste até hoje, agora com marcada preponderância dos defensores da educação "técnica", "educação para o mundo de amanhã", etc.Mostrar o vício de ingenuidade que afeta toda esta discussão: não existe a diferenciação em tela, quando se parte do conceito crítico unitário do "homem" e de sua realidade num mundo em processo de desenvolvimento, com o qual está indissoluvelmente ligado.Porém a origem deste vício está na própria deficiência da noção ingênua de "conteúdo" da educação (tal como acima exposto).É que:Em primeiro lugar, a educação, como temos mostrado, não deve se reduzir à transmissão escolar dos conhecimentos.Em segundo lugar, o conteúdo da educação não está constituído somente pela "matéria" do ensino, por aquilo que se ensina, mas incorpora a totalidade das condições objetivas que concretamente pertencem ao ato educacional; assim, são parte do conteúdo da educação: o professor, o aluno, ambos com todas suas condições sociais e pessoais, as instalações da escola, os livros e materiais didáticos, as condições locais da escola, etc. Não aceitar este ponto de vista, é deliberadamente se colocar à margem do mundo real, e raciocinar sobre uma reduzida e arbitrária abstração (a "matéria" do ensino).Em terceiro lugar, o conteúdo da educação está submetido ao processo em que ela consiste, não se pode considerá-lo como um volume estático, delimitado de conhecimentos como se fora uma carga a ser transportada de um lugar a outro, porém é algo dinâmico, é fundamentalmente histórico por isso não tem contornos definidos, é variável, não se repete e só se realiza parcialmente em cada ato educativo pois cada aluno absorve diferentemente a matéria de ensino distribuída à classe comum.Em quarto lugar, o conteúdo não pode ser considerado desligado da forma. Ora, o conceito ingênuo do "conteúdo" o destaca da "forma" e pretende tratá-lo por si mesmo à parte, valorizá-lo em sua significação e utilidade intrínseca.

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Em conseqüência, vê-se que é necessário alcançar o conceito crítico do conteúdo da educação.a.2) 0 conceito crítico do conteúdo envolve a totalidade do processo educativo, a qual está sempre presente em cada ato pedagógico (em uma lição, por exemplo). Não está constituído somente por "aquilo que" se ensina, mas igualmente por aquilo "que" ensina, "aquilo que" é ensinado, com todo o complexo de suas condições pessoais, pelas circunstâncias reais dentro das quais se desenvolve o processo educacional. Unicamente nos graus mais elementares, a "matéria" do ensino se apresenta com qualidade de fixação e de limitação, ainda que relativa. Ao passar a planos mais elevados do saber, o ensino se torna cada vez mais objeto da compreensão pessoal do professor, do autor de livros de texto, do legislador, etc.O conteúdo da educação — tal como a forma —, tem caráter eminentemente social e, portanto, histórico. É definido para cada fase e para cada situação da evolução de uma comunidade. Por conseguinte, deve atender primordialmente aos interesses da sociedade. Se esta é democrática, os interesses dominantes têm que ser os do povo, e se consideramos um país em esforço de crescimento, tem que ser o de suas populações que anseiam por modificar sua existência.A discussão propriamente pedagógica sobre a conveniência desta ou daquela "matéria" em um currículo escolar não pode se fazer abstratamente, nem estar sujeita aos preconceitos do pedagogo. Deve refletir os objetivos gerais mais prementes da sociedade como um todo, o que significa os interesses das grandes massas e não os de uma elite letrada e afortunada. O conteúdo da educação é "popular" por excelência. Só deixa de sê-lo de fato em condições de alienação cultural (praticamente dominantes nas sociedades subdesenvolvidas).O conteúdo da educação não é um adorno do espírito, mas um "instrumento de realização do homem" dentro de seu ambiente social. Daí a denúncia do exibicionismo cultural, ingenuidades típicas das elites que a si mesmas se denominam "cultas", dos países atrasados.b) O que constitui a forma da Educação?Igualmente duas respostas distintas:b.1) Segundo o conceito ingênuo, a forma da educação são os procedimentos pedagógicos, o método (com todos seus implementos

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técnicos) de acordo com o qual é administrado o ensino. É a maneira de transmitir o conhecimento.Neste aspecto, a forma adquire importância capital na pedagogia corrente, porque neste campo é onde se travam de preferência os debates ociosos que caracterizam a pedagogia ingênua. A forma é entendida aqui como realidade à parte, destacada do conteúdo. Daí a tendência a concentrar a atenção sobre a melhoria dos procedimentos da técnica pe¬dagógica, como se isso representasse o essencial no progresso do ensino.Esta orientação se faz sentir especialmente no que se refere à Educação de Adultos, muito particularmente no problema da alfabetização. O afã (ingênuo) de buscar o "melhor" método de produzir a "melhor" cartilha é típico desta consciência.b.2) Existe, evidentemente, um problema de forma, de método, de transmissão do saber. Porém não deve ser entendido ingenuamente e sim de maneira crítica.Para começar, é necessário compreender que forma e conteúdo são apenas aspectos — distintos, mas unidos — de uma mesma realidade, que é o ato educacional como um todo concretamente indivisível e só analiticamente separável - as partes. Por isso, estão interrelacionados e se condicionam um ao outro. São aspectos e não componentes autônomos.Em segundo lugar, a forma da educação é função de seus fins sociais. Tem que ser em cada caso aquela que se adapta ao conteúdo, isto é, à condição do educando, suas possibilidades imediatas de ascensão cultural, Ê empírica e segue apenas a regra de ser a melhor possível para aquele a quem é dada a educação, no sentido de ser a mais adequada para fazê-lo subir de sua condição humana presente para outra melhor, imediatamente e concretamente possível. A forma da educação tem que ser aquela que permita a grandes camadas da população passarem à etapa imediatamente seguinte em seu processo de desenvolvimento.É inútil decretar, in-abstrato, que a educação escolarizada deve ser obrigatória, universal e gratuita. A sociedade não está capacitada para realizá-la concretamente dessa maneira. A forma da educação, incluindo sua extensão e distribuição, deve tender para esse ideal, porém não se institucionalizar desde agora desse modo, como se já existissem as condições para tanto. Faltando estas, a forma social da educação tem que ser ditada pelo grau de adiantamento do processo de desenvolvimento.

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Relação de interdependência entre forma e conteúdo

Já temos indicado a relação mútua entre estes aspectos da Educação. Esta, como realização concreta em um Processo objetivo, é um todo no qual conteúdo e forma se distinguem e se opõem apenas como fatores. Só se diferenciam pela análise conceitual à luz da qual aparecem como opostos, porém se identificam na constituição de um ato real único.Conteúdo e forma da educação significam mais que a simples coexistência e justaposição dos fatores. Representam uma unidade real, isto é, a dependência recíproca de um ao outro. Assim, o conteúdo determina a forma da educação na qual é ministrada, porém esta por sua vez determina a possibilidade da variação do conteúdo, aumentando-o, em um processo sem fim. A execução formal da transmissão de certo conteúdo instrutivo possibilita a abertura desse mesmo conteúdo para se incluir em algo mais, como adiantamento e progresso do saber.Por isso, o método educacional - em particular, o método de alfabetização — tem que ser definido como dependência de seu conteúdo (e significado) social, ou seja, o elemento humano ao qual vai ser aplicado, de quem o deve executar, dos recursos econômicos existentes, das condições concretas nas quais será levado à prática. Fora disso, é apenas obra imaginativa (cartilhas, campanhas de alfabetização, etc.), é pensamento em abstrato, é projeto no vácuo social.

Quatro questões primordiais:A quem educar? Quem educa? Com que fins? Por que meios?Nestas questões, resume-se todo o processo educacional em sua essencial inter-relação de conteúdo e forma. Todo projeto pedagógico tem que as considerar, compreendendo o seguinte:Constituem uma unidade, são aspectos de uma só totalidade.Não se pode resolver quaisquer delas sem que esta solução influa sobre as demais.A atenção conjunta de todas elas não quer dizer uniformidade, senão, simplesmente reconhecimento de sua interconexão.

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É a sociedade, como fundamento e agente, quem, em última análise, as resolve, em função da consciência de si possui (esta, por sua vez, na dependência de seu estado de desenvolvimento).A questão "A quem educar?" se refere ao lado principal do conteúdo humano da educação (o outro lado é o educador). A resposta a esta pergunta é proporcionada peia sociedade como um todo. A sociedade onde imperam desigualdades nas oportunidades, pela força de seu estado presente de desenvolvimento e de seus interesses, está continuamente procedendo a um julgamento de seus elementos humanos, destinando uns à educação sistematizada, escolarizada, erudita; e outros à educação informal, livre, não letrada.Ainda entre os que recebem educação escolar (e universitária) a distribuição das oportunidades e favores deriva do jogo de influências sociais que fazem uns mais afortunados que outros.A idéia do direito igual para todos de receber educação escolar começa por ser exigência de visionários políticos e sociais e só passa a ser uma demanda da consciência geral quando se dão as condições objetivas que fundamentam esse intento.A exigência de educação para um maior número (e por fim para todos) só chega a ser irresistível quando parte da própria massa que começa a recebê-la. Porque de agora em diante se constitui em fato político. Não é mais o projeto bem intencionado de alguns pedagogos generosos.É necessário distinguir entre o ponto de vista ingênuo e o crítico na resposta a esta pergunta. A consciência ingênua, ainda que não o declare, não deseja que todos sejam instruídos. A consciência crítica, ao contrário, compreende que todos devem ser instruídos e hão de sê-lo. Porém fica no engano de acreditar que possa fazê-lo de imediato, por isso é dócil aos estímulos da realidade. Sabe que só é possível forçar a realidade com auxílio dela mesma, ou seja, que só é possível fazer a educação total do povo pela ação da fração deste que se vai educando. Daí que a consciência crítica seja imediatamente realista, não utópica.À pergunta "Quem educa?" responde-se: a fração ilustrada da sociedade, nas pessoas de seus professores, para tal, devidamente preparados. A função de educar é um atributo da elite social. Deriva de seu status de possuidora do saber e da cultura.

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Nas sociedades onde não há oportunidades e o poder econômico se acha concentrado, a função de educar é delegada a um pequeno grupo de indivíduos instruídos e deles se espera que sirvam aos objetivos de tal sociedade. O educador é concebido sempre como um funcionário, um servidor e não como portador de uma consciência. Daí a necessidade de despertar nos educadores o sentimento de dignidade e autonomia, sendo esta concebida não como desligamento do solo social e sim como poder de escolha pessoal, crítica, livre das forças sociais a que se identifica.A preparação do educador é permanente e não se confunde com a aquisição de um tesouro de conhecimentos que lhe cabe transmitir a seus discípulos. É um fato humano que se produz pelo encontro de consciências livres, a dos educadores entre si e os destes com os educandos.O educador deve ser o portador da consciência mais avançada de seu meio (conjuntamente com o filósofo, o sociólogo). Necessita possuir antes de tudo a noção crítica de seu papel, isto é, refletir sobre o significado de sua missão profissional, sobre as circunstâncias que a determinam e a influenciam, e sobre as finalidades de sua ação.A questão "Com que finalidade?" é respondida diversamente de acordo com o ponto de vista do educador ou do legislador.A finalidade da educação está implícita no conteúdo e na forma como é executada. É próprio da consciência crítica fazer clara a finalidade que concebe para o processo educativo, enquanto a consciência ingênua, porque devem muitas vezes proceder de má fé (contra os interesses populares), oculta ou dissimula as finalidades da educação sob os mais diversos e sutis disfarces.A finalidade da educação tem que ser nacional em sua plena significação. Deve visar à transformação da nação, se é atrasada, em país progressista, no mesmo plano das comunidades nacionais mais desenvolvidas.A educação tem que ser popular, por sua origem, por seu fim e por seu conteúdo. O país é atrasado em virtude do modo de vida de suas massas (não de suas elites). Por isso, a transformação da existência do povo é o que constitui a substância da mudança na realidade da nação.Para ser popular, a educação tem que ser uma possibilidade igual para todos, em qualidade e quantidade. Por isso, a alfabetização é apenas o início de um processo educacional que de direito deve sempre visar aos graus mais altos do saber.

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A finalidade da educação não se limita à comunicação do saber formal, científico, técnico, artístico, etc. Esta comunicação é indispensável, está claro, porém o que se intenta por meio dela é a mudança da condição humana do indivíduo que adquire o saber. Por isso, a educação é substantiva, altera o ser do homem. A não ser assim, seria apenas adjetiva, mero ornamento da inteligência. O homem que adquire o saber, passa a ver o mundo e a si mesmo deste outro ponto de vista. Por isso se torna um elemento transformador de seu mundo. Esta é a finalidade essencial da educação. Tal é a razão de que todo movimento educacional tenha conseqüências sociais e políticas.A questão "Por que meios?" se refere fundamentalmente ao método e, acessoriamente, às circunstâncias materiais nas quais se cumpre o processo educacional. Tudo aquilo que influi executivamente no trabalho educacional, deste Ponto de vista é educador.Devemos acentuar a importância das condições materiais (instalações e prédio da escola), em duplo sentido: por seu efeito psicológico e por sua significação sociológica. Neste último sentido, a escola representa a primeira revelação à criança de seu status social (a escola rica, a escola pobre), porque é no edifício escolar que pela primeira vez a criança toma contato com a capacidade da sociedade de atendê-la. A escola é o primeiro "produto" social que está feito exclusivamente para ela.A questão do método é decisiva. Não vamos debatê-la neste momento. Basta assinalar que possui dois aspectos: o técnico e o ideológico. É importante distingui-los bem, pois o educador freqüentemente procura encobrir com roupagens técnicas os interesses que não deseja discutir. Existe, está claro, um problema muito sério de técnica pedagógica, desde a alfabetização até a organização dos currículos universitários, porém o que desejamos advertir é que toda solução técnica de um problema pedagógico contém uma atitude ideológica.Não se deve superestimar a significação do método, como faz a consciência ingênua. Não é admissível considerá-la como a única realidade do processo educacional, até o ponto de admitir que as virtudes de um determinado método podem suprir as deficiências dos demais fatores. Isso seria a artificialização do método.

Caráter ideológico da educação

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Temos ressaltado várias vezes o caráter ideológico da educação. Aqui desejamos apenas deixar explícito que esse caráter, sendo dado pela consciência social, traz a marca de sua origem, isto é, em termos concretos, refere-se à consciência de alguém. É um dos modos do pensar social, porém se expressa pela consciência dos indivíduos que se ocupam desta questão, que são indivíduos vivos, dotados de condições materiais e intelectuais, com interesses confessados e implícitos, com desejos e intenções, etc.A discussão completa deste assunto só pode ser feita depois de se estudar o problema da consciência geral, sua forma coletiva e individual, suas modalidades (ingênua e crítica), etc.Por ora, desejamos estabelecer que não há educação sem idéia da educação. Nas sociedades primitivas, de educação não institucionalizada, esta idéia é inconsciente e se cumpre mediante os ritos sociais. Nas sociedades civilizadas, esta idéia pode continuar implícita ou alcançar o nível da plena consciência (ingênua ou crítica), na mentalidade dos educadores e legisladores educacionais.A idéia da educação (implícita ou explícita) dirige o processo educacional. Por isto é que este tem caráter ideológico. Daqui esta tese fundamental: Não há educação sem teoria da educação (implícita ou explícita).Igualmente, por isso é que constitui um processo social (histórico-antropológico) e não um processo material. São objetivos tanto um como o outro processo, porém as leis, os momentos do primeiro são ditados pela consciência humana, enquanto as leis e fatos do segundo são independentes da consciência do homem.A educação é um fenômeno social total. Para atendê-la é indispensável empregar a categoria de totalidade. Significa que não se pode interpretá-la (nem planejá-la) se não se tem em vista todo o conjunto de valores reais (sociais) que sobre ela influem e dos efeitos gerais que dela resultam sobre os demais aspectos da realidade social. A educação é parte de um conjunto de interações e de interconexões recíprocas e não pode ser dissociada dele, tratada isoladamente. É parte de um todo, porém este todo sendo um processo, só a noção de totalidade permite compreender a inter-relação de cada parte com as demais, pois não se trata de um todo estático, e sim de uma realidade total em movimento, na qual a alteração de qualquer

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elemento influi sobre todos os demais. A noção de totalidade introduz uma nova percepção de fatos sociais, como são as campanhas de alfabetizado e de educação de adultos. Porque coloca estes fatos à luz do princípio de totalidade e mostra como repercutem necessariamente sobre todos os aspectos da sociedade, ao mesmo tempo que as mudanças ocorridas nos demais campos, como efeito daquelas campanhas, revertem sobre a compreensão, a valoração e o curso destas mesmas campanhas.A alienação educacional como característica da atividade pedagógica do país em vias de desenvolvimento.Que é a alienação? Em sua expressão mais geral, filosófica, é um conceito que define a condição de um ser que se encontra privado de sua essência, ou porque se encontre separado dela ou porque ela não se realiza completamente, perfeitamente em tal ser. Este é o aspecto antropológico do conceito de alienação.Em sentido mais restrito, histórico, social, a alienação se refere ao estado do indivíduo, ou da comunidade, que não retira de si mesma, de seus fundamentos objetivos, os motivos, os determinantes (as matrizes) com que constitui sua consciência, e sim os recebe passivamente de fora, de outros indivíduos ou comunidades (para os quais são válidos), e se comporta de acordo com esses motivos e determinantes como se fossem seus. Neste sentido é que o indivíduo ou a comunidade perdem sua essência. O homem perde sua dignidade de ser livre, a sociedade perde suas características de autonomia, de capacidade criadora de si, material e culturalmente. A essência que exibem não é a sua, é emprestada, quase sempre imposta a eles por outro indivíduo ou sociedade mais forte que os submete. Assim, a essência de tais seres está deslocada, eles são estranhos (alheios) a ela, ao que deveriam ser, perdem por isso a condição, a dignidade antropológica, existencial, de sujeitos de si, tornando-se objetos de outro.A consciência alienada não se sente ligada à sua realidade autêntica (a seu ser nacional), à sua condição na sociedade, e sim se comporta como indiferente à sua realidade ou alheio a ela, e se transporta em pensamento a um mundo que não é o seu, ao qual passa a pertencer, adotando suas atitudes, seu estilo de vida, seus valores, etc. É a transferência imaginária do indivíduo para um mundo alheio, no qual vai buscar inspiração para seus atos e suas idéias desprezando o autêntico fundamento de

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sua realidade (que lhe parece pobre, feia, atrasada, suja, enferma, etc.). Pretende modificar sua realidade com o auxílio de idéias e procedimentos que não foram induzidos do seu próprio mundo e sim importados de realidades sociais e culturais alheias.A alienação é um fato social objetivo e se refere à consciência toda (por isso é um fenômeno total). O indivíduo alienado repele totalmente sua inserção em seus fundamentos histórico-nacionais e pretende resolver os problemas de sua sociedade, de seu mundo (em particular o problema da educação) por meio de critérios e métodos que não foram extraídos de sua realidade, e sim recebidos de fora, venerados justamente por ter esta origem. Vê-se assim que a consciência alienada se impermeabiliza à sua realidade objetiva Entre os dados de sua alienação figura evidentemente o desconhecimento da mesma alienação e a repulsa a aceitar esta acusação.A alienação é característica da pedagogia nos países em vias de desenvolvimento. Tratando-se de países economicamente dependentes de um centro poderoso e também culturalmente dependentes desse centro, é natural que sua consciência social comum seja do tipo ingênuo e por isto sua visão de si mesmos e do mundo não se origina de sua realidade, e sim é parte da dominação cultural que recebem dos centros dominantes. Não possuem óptica própria, vendo-se a si mesmos e a toda a realidade com olhos alheios.Somente quando se inicia o processo de tomada de consciência por uma sociedade, surge a possibilidade da denúncia da alienação cultural da qual se encontra imbuída.A pedagogia é naturalmente um dos campos prediletos de exercício da consciência alienada. Os pedagogos desta espécie não buscam extrair de sua realidade as idéias com as quais devem compor sua visão do processo educacional (que teria então por tarefa principal a denúncia e o término da alienação), e sim, aceitam docilmente e sem críticas as fórmulas que lhes são oferecidas ou insufladas pelas áreas culturalmente e economicamente mais adiantadas, porque acreditam ser a última palavra do progresso científico.A possibilidade da implantação das idéias alienadas deriva do prestígio dos centros que as produzem. O pedagogo do país pobre (o intelectual em geral) julga inconscientemente que não está à altura, não tem condições de produzir o saber, a arte, o gosto, o estilo de existência, crendo que isso só

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é patrimônio de nações ricas. E por isso julga que só lhe cabe imitar o que estas produzem, "aproveitando" (como diz) o que de bom e de grande se produz, se descobre e se usa em outras partes. Temos assim os fenômenos do mimetismo e da transplantação cultural, que caracterizam a existência das áreas atrasadas. Num período inicial do desenvolvimento social, estes fenômenos são inevitáveis (e podem então até desempenhar um papel útil). Quando a sociedade adquire suficiente consciência de si, baseada em um já substancial desenvolvimento material, a alienação não mais se justifica e traz o mais nefasto obstáculo à livre expansão da força criadora do povo.

O imperativo da desalienação

Compreende-se, portanto que a principal tarefa do educador dotado de consciência crítica seja o incessante combate a todas as formas de alienação que afetam a sua sociedade, particularmente aquelas que imperam no terreno da educação.Para isso é imprescindível que o educador se converta à sua realidade, seja antes de tudo do seu próprio povo, ou melhor, das camadas populares de sua nação. Aceitar "ser do" país é o primeiro passo para compreender o "ser" do pais. Isso significa que toda a produção cultural estrangeira tem que ser recebida, estudada, assimilada, porém submetida a um exame crítico, de maneira que se conserve aquilo que se revela útil à tarefa nacional, e isso apenas em virtude de razões internas (não por efeito de prestígio). Esta é a fase de assimilação crítica. Por isso se vê que não deve existir (não tem sentido) nenhuma atitude de xenofobia, de nacionalismo cego e estreito.Depois desta conversão à sua própria realidade, a essência do educador se transforma de tal modo que começa a discernir por si mesmo um sem-número de verdades, a criar idéias e lançar-se a iniciativas originais, que antes não seriam possíveis em razão do respeito e da dependência que o paralisavam.Mesmo o conceito de educação mudará. Compreenderá que a educação é antes de tudo prática social, e por isso intransferível (no que tem de essencial) de uma sociedade a outra. Terá que inventar os procedimentos

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técnicos e as concepções diretrizes de sua atividade pedagógica, em função da resposta que dará às quatro questões antes formuladas. Estas serão agora respondidas de modo autêntico, não alienado.Somente a educação não alienada pode servir aos objetivos da sociedade em luta pelo seu desenvolvimento, e pela transformação da vida do homem. E isto pela razão de que se funda nas próprias condições de atraso e de miséria, não as rechaça, e sim as aceita como um dado histórico-antropológico que terá que suprimir. Pelo contrário, se assume a postura alienada, destacando-se de sua base social, o educador passará a construir no abstrato, no vácuo, seu trabalho não teria possibilidade de reverter em proveito de sua sociedade.A busca e a definição de critérios autênticos para a orientação da educação e para o desenvolvimento da cultura numa sociedade em esforço de ascensão históricaA denúncia e a supressão da alienação constituem as condições prévias para o trabalho fecundo no campo da educação. Antes disso, qualquer trabalho educativo só parcialmente, incompletamente se adaptará à realidade e dificilmente contribuirá para transformá-la. Quando o educador se conscientiza do fenômeno da alienação e se liberta dela pela identificação com a essência histórica de seu próprio povo, está capacitado a produzir o correto delineamento da educação.Para isso é necessário buscar e definir critérios autênticos que devem regular seu trabalho. Sabe agora que não poderá recebê-los de fora, pois só tem validade se forem desalienados. Terá então que se voltar para seu país, seu povo e construir (com sua personalidade) a resposta para a realidade que o circunda.Poderá cometer enganos, porém estes não se identificam com a alienação (que é essencial, enquanto os erros nas investigações são acidentais).Terá que se valer da experiência alheia, porém agora com visão crítica e somente disposto a utilizar o que for comum a seu povo e a outro.Em termos gerais, o critério autêntico da educação desalienada é o interesse do povo. Porém como não se pode alterar a existência do homem do povo sem alterar os fundamentos dessa existência, é atuando sobre as condições econômicas do país, sobre as condições sociais do trabalho, que a educação irá adquirindo o caráter de autenticidade, de desalienação que assegurará sua utilidade para o bem do homem.

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Deste modo, o pedagogo dotado de consciência desalienada compreende que terá que se unir aos pensadores e sociólogos de mesma orientação para, num esforço comum, descobrir o procedimento mais conveniente a adotar em sua tarefa específica e de criar um sistema pedagógico adequado, em conteúdo e forma, às necessidades das populações a que se destinam. Somente assim poderá assentar bases culturais fecundas para que sobre elas o trabalho de todo o povo se unifique num esforço consciente de ascensão histórica.

3º. TEMA:AS CONCEPÇÕES INGÊNUA E CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

Noção de consciência: representação mental da realidade exterior, do objeto, do mundo, e representação mental de si, do sujeito, autoconsciência.

A concepção ingênua

A concepção ingênua é aquela que procede de uma consciência ingênua. Portanto, é necessário definir esta:a) Consciência ingênua é aquela que — por motivos que cabe à análise filosófica examinar — não inclui em sua representação da realidade exterior e de si mesma a compreensão das condições e determinantes que a fazem pensar tal como pensa. Não inclui a referência ao mundo objetivo como seu determinante fundamental. Por isso julga-se um ponto de partida absoluto, uma origem incondicional, acredita que suas idéias vêm dela mesma, não provêm da realidade, ou seja, que têm origem em idéias anteriores. Assim, as idéias se originam das idéias. A realidade é apenas recebida ou enquadrada em um sistema de idéias que se cria por si mesmo.b) A consciência ingênua pode refletir sobre si, tomar-se a si mesma como objeto de sua compreensão, porém não chega a ser uma autoconsciência. A simples reflexão sobre si pode ser apenas introspecção, porém não se identifica com a autoconsciência, porque esta só existe quando a percepção do estado presente da consciência (por ela mesma) é acompanhada da idéia clara de todos seus determinantes, vale dizer, da

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totalidade da realidade objetiva que sobre ela influi (o que só ocorre com a consciência crítica).c) A consciência crítica é a representação mental do mundo exterior e de si, acompanhada da clara percepção dos condicionamentos objetivos que a fazem ter tal representação. Inclui necessariamente a referência à objetividade como origem de seu modo de ser, o que implica compreender que o mundo objetivo é uma totalidade dentro da qual se encontra inserida. Refere-se a si mesma sempre necessariamente no espaço e no tempo em que vive. É, pois, por essência, histórica. Concebe-se segundo a categoria de processo, pois está ligada a um mundo objetivo que é um processo e reflete em si esta objetividade nas mesmas condições lógicas que definem um processo.d) A consciência crítica, quando reflete sobre si (sobre seu conteúdo), torna-se verdadeiramente autoconsciência, não pelo simples fato de chegar a ser objeto para si, e sim pelo fato de perceber seu conteúdo acompanhado da representação de seus determinantes objetivos. Estes pertencem ao mundo real, material, histórico, social, nacional, no qual se encontra. A autoconsciência é, portanto uma consciência justificativa de si (em sua forma ou procedimento, em seu conteúdo ou aquilo que percebe em função das condições históricas e sociais de sua realidade, em particular, do grau de desenvolvimento do processo nacional ao qual pertence).

A concepção ingênua da educação

No campo da educação — como em todos os demais — a consciência ingênua é sempre nociva, pois engendra as mais equivocadas idéias, que se traduzem em ações e juízos que não coincidem com a essência do processo real, que não são, pois verdadeiras. Não podem levar à completa e rápida solução dos problemas que considera, e somente se torna uma fonte de equívocos, de desperdício de recursos, de intentos frustrados.Unicamente a título de exemplo, consideraremos a seguir algumas amostras do pensar pedagógico ingênuo:a) O educando como "ignorante" em sentido absoluto. Noção falsa em relação à criança, e muito mais, todavia em relação ao adulto. A educação escolar ou a de adultos sempre toma o educando já como portador de

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um acervo de conhecimentos (por exemplo, a linguagem na criança ou o trabalho no adulto). Estes conhecimentos prévios são o resultado da prática social do homem (criança ou adulto) e de sua formação até o momento em que começar a receber educação institucionalizada. A criança e o adulto vêm à escola já preparados (inclusive para desejar vir à escola) por uma outra escola geral, que é a sociedade, o meio onde vivem.b) O educando como puro "objeto" da educação. É a atitude ingênua mais freqüente: supor que cabe ao educador formar, plasmar o aluno (como se costuma dizer), concebendo-o como massa amorfa à qual compete dar a forma viva, o saber. As concepções alienadas da educação têm precisamente esse caráter de alienação, porque concebem o educando como objeto, e por isso não reconhecem nele a dignidade de sujeito, de consciência autônoma (para si), que só pode ser educada, instruída, em um diálogo esclarecedor e não em uma imposição de idéias, procedimento que parte do suposto de direito de domínio de uma consciência sobre outra.c) A educação como transferência de um conhecimento finito. Esta ingenuidade se refere à noção de conteúdo e forma da educação. Supõe que o professor é apenas o transmissor de uma mensagem definitivamente escrita, de um conjunto de noções, de acordo com determinado método, e que essa mensagem não se modifica com as condições de tempo e lugar, com os interesses do educador e com o mesmo ato de ser transmitida. A principal nocividade desta atitude está em preceituar limites ao processo pedagógico, em dar caráter absoluto às divisões em graus, níveis, carreiras, etc. A educação como dever moral da fração adulta, educada e dirigente da sociedade. Esta ingenuidade é grave, porque converte a educação em ato caritativo e transfere para o plano dos valores éticos (inteiramente alheios a este problema) a essência, o significado e a valoração eminentemente sociais da educação.e) Para a consciência ingênua, a criança ou o adulto a educar são absolutamente "ignorantes". Porém a noção de ignorância é tomada aqui em sentido abstrato, isto é, não é concebida como "ignorância de algo", de algum conhecimento (sempre concreto). Absolutiza-se o conceito de "ignorante" para as classes populares, enquanto se relativiza esse mesmo conceito para as elites (a fim de que os representantes dessa elite possam aparecer como não ignorantes). Vê-se a duplicidade de critérios, que revela o caráter interessado da noção de ignorância: o homem do povo

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é ignorante porque não sabe alguma coisa, enquanto o membro da elite é culto porque sabe alguma coisa. Um indivíduo não pode ignorar assim alguma coisa, que é concretamente sabida por outro. Como, porém, este outro ignora muitas coisas que o primeiro sabe, o caráter da ignorância é sempre relativo. A consciência ingênua necessita absolutizar a ignorância, o que só pode fazer convertendo-a em uma noção irreal.

A concepção crítica da educação

A concepção crítica da educação procede segundo as categorias que definem o modo crítico de pensar. Particularmente há que mencionar as de: objetividade (caráter social do processo pedagógico), concretidade (caráter vital da educação como transformação do ser do homem), historicidade (a educação como processou e totalidade (a educação como ato social que implica o ambiente íntegro da existência humana, o país, o mundo e todos os fatores culturais e materiais que influem sobre ele).A concepção crítica é a antítese da ingênua. Portanto, repudia os pontos de vista anteriormente expostos, definidores desta última.A concepção crítica é a única que está dotada da verdadeira funcionalidade e utilidade, pois conduz à mudança da situação do homem e da realidade à qual pertence, em virtude de ser a única que é capaz de oferecer o conteúdo e o método mais eficaz para a instrução (alfabetização, escola secundária, universidade) da criança e do adulto, tendo em conta aquelas finalidades.Vejamos alguns aspectos específicos da concepção crítica da educação:1) O educando como sabedor e desconhecedor. O educando evidentemente não sabe aquilo que necessita aprender (por exemplo, ler e escrever), mas nem por isso pode ser considerado como um desconhecedor absoluto.O adulto analfabeto é em verdade um homem culto, no sentido objetivo (não idealista) do conceito de cultura, posto que, se não fosse assim, não poderia sobreviver. Sua instrução formal (alfabetização, escolarização) tem que se fazer sempre partindo da base cultural que possui e que reflita o estado de desconhecimento (material e cultural) da sociedade à qual pertence.Aquilo que desconhece é o que até agora não teve necessidade de aprender. Se tem podido viver até agora como analfabeto é porque as

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condições de sua sociedade não exigiam dele o conhecimento da leitura e da escrita. Em conseqüência, o princípio fundamental de toda campanha de educação de adultos tem que ser o da mudança das condições materiais da existência das populações, para que: 1) por um lado os analfabetos recebam o estímulo (o desafio) necessário para levá-los a buscar o saber letrado (o que de agora em diante vão necessitar); 2) e, por outro lado, o esforço e o dispêndio que a sociedade como um todo faz para instruí-los sejam recompensados, revertendo em benefício dela, pela aplicação social que os recém-alfabetizados vão fazer do saber adquirido.2) O educando é o "sujeito" da educação (nunca o objeto dela). Se necessita da ação do outro, o professor, para se alfabetizar, instruir-se, isso não significa que seja o objeto "sobre o qual" o educador atua, e sim unicamente que é componente indispensável de um processo comum, aquele pelo qual a sociedade como um todo se desenvolve, se educa, se constrói, pela interação de todos os indivíduos.A educação é um diálogo amistoso ("amoroso" — Jaspers) entre dois sujeitos. A rigor, deve-se dizer que a educação não tem objeto, e sim somente objetivo. Existencialmente falando, educar é um verbo intransitivo. É a sociedade que, em sua totalidade, se comporta como agente-paciente do processo educativo. Por conseqüência, a expressão teórica perfeita da natureza histórico-antropológica da educação resume-se nesta expressão: A sociedade educa.As concepções ingênuas da educação rebaixam o educando à condição de "objeto" e o levam a conceber-se a si mesmo como ser passivo, no qual o professor infunde o saber que possui. Este ponto de vista é: 1) moralmente insultante (pois ignora a dignidade própria do homem pelo simples fato de ser homem, não importando se é letrado ou não); 2) antropologicamente errôneo (pois ignora que o aluno é portador de uma cultura, de capacidade de pensar logicamente em função de seu contexto social); 3) psicologicamente esterilizante (pois desanima, inibe e impede os estímulos para a aprendizagem, uma vez que recusa ao alfabetizando sua capacidade de fazer-se instruído por si, como sujeito); 4) pedagogicamente nocivo (pois deixa de aproveitar o saber do analfabeto como ponto de partida para o desenvolvimento de novos conhecimentos).3) A educação consiste em uma nova proporção entre conhecimento e desenvolvimento. Excluída a idéia ingênua de um princípio absoluto

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do saber no indivíduo que se educa (por exemplo, que se alfabetiza), a educação só pode consistir em dotá-lo de novos conhecimentos, que se irão somar ao que já sabe, ou substituir as idéias erradas, ingênuas que possuía. É, portanto um novo balanço do saber, agora em um plano mais alto do processo cultural. Este caráter de proporção entre conhecimento e desconhecimento repete-se em todos os graus da educação, até nos mais altos (o universitário, a investigação mais avançada). A educação é uma aquisição retificadora, corretora do saber (da cultura) tornado inadequado, anacrônico, porque não corresponde mais ao grau de conhecimento de uma sociedade que passa a exigir mais do indivíduo (conquanto saber agora imprestável, não era errado para a etapa anterior, da qual se pretende que o educando se eleve).

Crítica do conceito de "saber"

Para a consciência ingênua, o saber se apresenta como um conjunto de conhecimentos absolutos, abstratos, históricos. É produto do espírito puro, sem relação causal de parte da realidade do mundo, ou somente com uma relação de tipo ocasional ou apriorista. O espírito por si só é capaz, em última análise, de engendrar e de justificar o saber.Para a consciência crítica, o saber é o produto da existência real, objetiva, concreta, material do homem em seu mundo (sendo este concebido como uma totalidade concreta em processo), imprimindo-se em seu espírito sob a forma de idéias ou pensamentos que se concatenam regularmente (isto é, logicamente). Os caracteres do saber, segundo a teoria crítica, são:

Relativo: O que uma cultura entende por saber, em uma de suas fases, deixa de sê-lo em outra fase, ou não o é em outra cultura. Daí a ingenuidade radical do critério da tradição (por exemplo: a teoria heliocêntrica).

Concreto: É sempre aquilo que um determinado indivíduo ou uma sociedade (uma cultura) pode descobrir, conhecer, criar ou imaginar, em função da etapa de seu processo de desenvolvimento, que lhe dá a possibilidade de constituir-se em consciência para si.

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Existencial: No sentido de ser constitutivo da realidade do indivíduo, e não algo adjetivo, externo, agregado por causalidade a seu ser. Como é a imagem do mundo material na consciência, pode-se dizer que o homem é o que sabe. Sendo um processo (temporal), sua etapa mais alta é aquela na qual o homem sabe o que é.

Empírico: Com este qualificativo quer dizer-se que o saber, direta ou indiretamente, deriva da experiência. Recusamos assim qualquer origem inata ou a priori para as idéias. O homem em seu trato multimilenar com a natureza e com os outros homens, na sociedade, vai criando suas idéias e descobrindo as leis de acordo com as quais estas se combinam de maneira verdadeira, válida (isto é, verificável pela experiência, pela prática social).

Racional: O saber é o produto da capacidade racional do homem, de sua razão, que é a faculdade intelectual (exclusiva do ser humano), de criar idéias e de enlaçá-las por procedimentos lógicos (indutivos, dedutivos, analógicos), denominados raciocínios, que se submetem a um critério de verdade. O saber é por natureza, lógico. Porém este atributo não deve ser tomado em sentido absoluto e sim como relativo à etapa do processo social em que vive o indivíduo que enuncia uma proposição. Não existem sociedades prelógicas (como pensavam Durkheim, Lévy-Bruhl) e sim sociedades nas quais, pelo grau de atraso de seu desenvolvimento econômico e de primitivismo de sua estrutura humana, o critério de verdade socialmente utilizada é outro, distinto do nosso e que nos aparece como falso porque não pode se adequar ao conjunto de dados que agora possuímos. O rito popular não é percebido pela sociedade atrasada como ilógico, como folclore (só aparece assim para a consciência da sociedade que superou essa etapa e a olha de fora, como um momento vencido de seu passado — exemplo: o ritual do "angelito" no agro chileno).

Histórico: Porque sendo o saber a manifestação intelectual da consciência, tem a mesma historicidade intrínseca desta. Toda valoração do saber é um dado do próprio saber e por isso é válida unicamente para a fase histórica em que é anunciada. É o saber constituído em cada momento do tempo histórico que engendra os novos conhecimentos. Mas, como estes são a modificação (a negação) do conhecimento anterior, o saber é

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simultaneamente o saber (em sua positividade atual) e é não-saber, como certeza presente de sua inexatidão ou falsidade futura, identificados ambos na mesma unidade.

Não dogmático: Por isso o saber é antidogmático por natureza, pois na essência de sua afirmação de si encontram-se a possibilidade e a necessidade de sua superação (por força de sua própria validez positiva) e a passagem a um conhecimento distinto, mais alto, mais exato (que suprime, e porém incorpora, o saber anterior enquanto etapa necessária de sua gênese). Esta atitude não deve ser confundida com o ceticismo, o probabilismo, o relativismo vulgar. Tem que ser entendida em seu autêntico caráter dialético.

Fecundo: No sentido de que é sempre um conhecimento gerador de outro conhecimento. Com isto, fica excluído o caráter contemplativo, ornamental, não prático do saber. O saber crítico é, assim, sempre transformador da realidade.

4° TEMA:EDUCAÇÃO INFANTIL E EDUCAÇÃO DE ADULTOS

Educação infantil e educação de adultos. Caracteres distintos entre essas duas modalidades da tarefa social geral da educaçãoA educação é uma tarefa social total, em duplo sentido:a) de que nada está isento dela, eb) de que é permanente ao longo de toda a vida do indivíduo.Portanto, o simples fato de ser membro são da comunidade (não um deficiente mental) implica estar sempre em processo de se educar. E isto porque as tarefas (os desafios) que a sociedade requer do indivíduo, durante sua existência, vão mudando de conteúdo e de significado com seu desenvolvimento, orgânico e psicológico, c qual lhe confere em cada etapa de sua vida distintas capacidades de ação e de trabalho. A educação, como temos dito, é o permanente aproveitamento dessas capacidades pelo todo social em seu benefício.3) Deste ponto de vista, a educação infantil e a de adultos se seguem uma a outra sem solução de continuidade no mesmo indivíduo (que

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passa da infância à adolescência e à maturidade) e no conjunto geral dos membros da sociedade. Porém isto só se refere à educação coletiva, difusa, não formal, não escolarizada. Porque quando se considera a educação institucionalizada é necessário distinguir grandes períodos gerais, correspondentes às fases do desenvolvimento individual. Neste segundo aspecto é que a pedagogia corrente a considera predominantemente.4) A capacidade de responder aos estímulos sociais, de criar hábitos de convívio social e de ministrar trabalho útil (para si e para os outros) é inerente ao ser humano por sua simples constituição. O animal só possui a capacidade de responder aos estímulos e de, em consonância, adaptar-se ao seu meio. Com isso consegue sobreviver e se reproduzir. Porém o homem, por sua constituição como ente racional, por sua consciência, tem a capacidade de fazer algo mais, ou seja, de trabalhar.5) Por sua capacidade de trabalhar, o homem modifica a si mesmo (faz a si mesmo homem), cria objetos artificiais e estabelece relações com seus semelhantes em um plano historicamente (evolutivamente) novo: o plano social. Com o progresso e o complicar-se do mundo do trabalho (em nú¬mero e qualidade dos objetos e procedimentos) a capacidade humana, a princípio geral, difusa e inespecializada de trabalhar, vai-se diferenciando e especificando. É fundamental assinalar que a diversificação do trabalho é efeito do trabalho social acumulado (conceito da técnica como "fazer o fato"). Por isso, a proposição mais geral da teoria do desenvolvimento social é a seguinte: é o trabalho que transforma o trabalho (cria as novas formas de trabalho — conceito da técnica como invenção, como o "fazer o novo").6) A sociedade, a partir do ponto em que diferencia e diversifica o trabalho, não pode mais exigir de todos os seus membros a mesma capacidade de trabalho, a execução das mesmas tarefas. Por conseqüência, a educação, como aproveitamento da capacidade geral de trabalho, tem que se tornar especializada, em concordância com a diversificação do trabalho social, a fim de aproveitar a este integralmente, em todos seus tipos e modalidades.7) A distinção entre modalidades e tipos de educação só deriva das diferenças de grau no desenvolvimento fisiológico e psicológico do homem (das idades no curso de sua vida), pela mediação da possibilidade de trabalho que cada fase permite e da estrutura social que determina as

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formas e normas vigentes do trabalho. Na família camponesa ou operária pobre a criança não vai à escola porque sua capacidade de trabalho é prematuramente solicitada socialmente (tempo integral), desde que possui suficiente habilidade de coordenação motora para executar uma tarefa mecânica. E, se vai à escola, a abandona ao fim de um ou dois anos, porque a solicitação de trabalho que já pode oferecer aos 9 ou 10 anos é imperativa, pela razão de que o trabalho que vai executar o semi-analfabeto vale mais, socialmente falando (para as condições miseráveis de vida de sua família, de sua comunidade), que o trabalho que poderia fazer (embora concretamente não tem condições de chegar jamais a fazer) se completasse sua educação na escola.8) A distinção entre a educação escolarizada da criança e a do adulto, e todos os problemas pedagógicos que suscita, tem que se apreciar sempre do ponto de vista das disponibilidades sociais de trabalho, tais como existem em uma determinada comunidade. Só é possível pensar em concreto. Fora daí é tratar o tema em abstrato e permanecer no plano das generalidades, das idealizações.9) Por conseqüência, o que distingue essas modalidades de educação não são seus aspectos pedagógicos específicos (conteúdo e forma, conhecimento e método). Isto é apenas o secundário, estruturado sobre uma realidade de base (e que a reflete), o primário, que é a distribuição das possibilidades sociais de trabalho. Para a criança ir à escola não é um dever (noção idealista, abstrata), e sim primordialmente um poder (que se decide no plano social), É inútil, é uma atitude ingênua fazer apelos morais a famílias para que cumpram com seu dever de mandar as crianças a escola. Tal dever é o reflexo do primário, o poder de mandá-los. Se queremos que em nossa sociedade a ida à escola se torne um dever, é preciso que antecipadamente criemos as condições para que se torne um poder.10) É evidente que os problemas pedagógicos (a matéria a ensinar, os currículos, os métodos) correspondentes a cada faixa etária são distintos. Por isso a alfabetização do adulto é um processo pedagógico qualitativamente distinto da infantil (a não ser assim, cairíamos no erro da infantilização do adulto). Dessa forma, assim como não se pode reduzir o adulto à criança, tampouco se pode reduzir a criança ao adulto. Ora, isto é o que inconscientemente fazem os pedagogos ao proporem métodos

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obtusos, alienados, de alfabetização, de instrução elementar e secundária. A raiz deste equívoco está em que lhes falta a noção do caráter existencial da educação (sempre relativa à existência, isto é, à fase do existir do ser humano), e por isso é que pensam a formação da criança do ponto de vista de sua futura realidade como adulto. Ora, apesar de, como é evidente, a criança se destinar a ser adulto, sua realidade existencial presente é outra. Não é um ser incompleto, mas sim um ser que está atravessando uma fase particular de seu processo vital (como o adulto também).11) O que distingue uma modalidade de educação de outra não é portanto o conteúdo, os métodos, as técnicas de instruir (isto é o secundário, o reflexo) e sim os motivos, os interesses que a sociedade, como um todo, tem quando educa a criança ou o adulto. Este é o fator primário, fundamental.12) Um grande progresso se tem conquistado na história da pedagogia desde quando se estabeleceu o critério genético da educação. Porém este critério pode advir de um ponto de vista ingênuo quando se considera o desenvolvimento psicológico da criança como um dado em si, primitivo, autônomo, independente do processo social objetivo sobre o qual repousa.13) Como o ponto de partida do processo formal da instrução não é a ignorância do educando e sim, ao contrário, aquilo que ele sabe, a diferença de procedimento pedagógico se origina da diferença no acervo cultural que possuem a criança e o adulto no momento em que começam a ser instruídos pela escola. A distinção de idades se traduz pela distinção da experiência acumulada, ou seja, de educação informal (pré-escolar) que a sociedade distribui à criança e ao adulto em razão do desigual período de vida que cada um possui.14) Não é nossa intenção fazer a análise estritamente pedagógica deste problema, nem a discussão da teoria genética da educação. Desejamos unicamente nos conservar no terreno da análise humanista, social, histórico-antropológica.

Breve análise histórica. A educação nas sociedades primitivas: escravista, feudal e moderna

Como não é possível fazer, senão de modo aproximado, um resumo da história da educação, compreendemos por "análise histórica" a simples

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menção de que a educação tem acompanhado o evoluir da espécie humana em sua milenar formação de si mesma pelo trabalho social que, em cada etapa do tempo histórico, tinha capacidade para realizar.Em primeiro lugar, o trabalho começa por formar, por originar, o próprio homem, permitindo-lhe emergir do plano da simples animalidade. Ao atuar sobre o mundo exterior, esse ser se modifica a si mesmo em sua estrutura anatômica e fisiológica, e possibilita o aparecimento das funções intelectuais (que o vão distinguir do animal), em particular a consciência do mundo e de si.A acumulação deste trabalho cria o mundo dos artefatos, a necessidade da conservação das técnicas que se devem transmitir a todos os membros de uma comunidade em idades fisiológicas diferentes e de uma geração a outra. Esta transmissão é a educação em seu significado original social. Em segundo lugar, a posse desta educação é uma exigência vital, isto é, a participação de cada um no trabalho coletivo é condição de sobrevivência pessoal. O lema do cristianismo primitivo "quem não trabalha não come" (São Paulo) traduz em condição mais original "quem não trabalha (isto é, quem não se educa) não existe".

Na sociedade primitiva a educação não é institucionalizada, mas levada a cabo pela comunidade inteira e transmitida de todos para todos, como se segue:a) Consiste primordialmente nas técnicas de subsistência (conquista de alimento, defesa, abrigo, vestuário, etc.).b) Parte essencial dessa educação é o cumprimento dos ritos religiosos (nas sociedades animistas são parte das técnicas de produção e de defesa).c) Ainda nesse estágio cultural, já se manifestam as tendências criadoras, artísticas do homem (atividades lúdicas).d) Como esta etapa é dinâmica (igual a qualquer outra) surgem nela os indivíduos dotados de capacidade de invenção, que, por suas propostas de idéias ou de procedimentos novos, conduzem à modificação da realidade. Assim, essa sociedade engendra em si os momentos de sua própria superação.e) As sociedades primitivas são uma forma de cultura. Como aí os membros recebem educação da coletividade, nelas não há indivíduos incultos.

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f) Contudo, ainda nessas sociedades é possível perceber-se o embrião das futuras diferenciações sociais, e particularmente da raiz da especialização educacional, pois certos personagens (feiticeiros, magos, sacerdotes, etc.) são incumbidos de zelar pelo fiel cumprimento dos costumes, de transmitir às gerações novas as crenças gerais e de executar o cerimonial requerido pelas práticas rituais. São os primeiros pedagogos socialmente reconhecidos, reverenciados e obedecidos. Na sociedade escravista o desenvolvimento do processo social é imensamente maior e se faz à base do trabalho escravo. Representa um progresso em relação à etapa anterior, porém ao mesmo tempo um freio à invenção de técnicas de aproveitamento das forças naturais, pois o braço humano supre toda a demanda social do potencial de trabalho.Sendo uma sociedade na qual se constituem classes distintas, a educação não é mais uniforme. Passa a ser oficialmente reconhecida como educação somente aquela que é cultivada pelos proprietários de escravos; urge então a idéia de que as massas trabalhadoras (ainda os homens livres que nelas se incluam) são incultas.A sociedade escravista produz um tipo de saber adequado a seus interesses. É capaz de importantes descobrimentos e criações no domínio das ciências e principalmente das artes, porém se revela incompetente em desenvolver outros setores, nos quais não vê interesses práticos.É uma sociedade fundada no conceito ético do bem, entendido como ociosidade. A educação visa a preparar o homem para aproveitar seu tempo livre (claro está que tão só os proprietários, as classes dirigentes o possuem). Daí o grande florescimento das letras e das artes nesta sociedade. Este caráter é comprovado pela etimologia da palavra "escola", que significa literalmente em grego "ociosidade".Na sociedade feudal o trabalho escravo é substituído pelo trabalho servil. As possibilidades de incremento do saber são imensamente maiores. Contudo, o desapreço pelo trabalho manual leva ao desinteresse pelo conhecimento da natureza, pois as condições de investigação e descoberta de seus segredos são identificados com o trabalho manual. Somente no final da época feudal é que a sociedade se vai abrindo até uma nova expansão do saber.

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No Ocidente, a sociedade feudal é completamente dominada pela concepção cristã da vida e pela ação ideológica, cultural e política da Igreja Católica. A educação é privilégio da nobreza, deve ser distribuída de acordo com os conceitos da Igreja e exercida pelos sacerdotes. As escolas são anexas aos conventos e catedrais.O período feudal, a Idade Média em sua fase mais alta é rica de esforços intelectuais que prenunciam a época futura, da criação das ciências modernas.Um acontecimento importante desse período na história pedagógica é a fundação das universidades, como centros de cultura teológica, com o fim de defender e conservar a pureza e a uniformidade da dogmática católica. Contudo, é imprescindível assinalar que a Idade Média não foi uma época de estagnação e de imobilidade do pensamento, mas de vivas lutas sociais, políticas, ideológicas. Os interesses objetivos das massas, das nacionalidades em gestação, quase sempre não se expressavam diretamente, mas sim em termos de controvérsias ideológicas, de contendas filosóficas. A sociedade moderna é aquela que se inicia no Ocidente com a desagregação do feudalismo, a ascensão da burguesia, o aparecimento das ciências experimentais, do comércio em escala mundial e da indústria, a princípio baseada na manufatura, depois mecanizada. A sociedade contempo¬rânea se segue como desdobrar necessário da época moderna. Sendo impossível resumir o processo pedagógico deste período, basta mencionar o aparecimento de grandes figuras de pensadores educacionais, que se têm esforçado por levar à prática suas idéias, criando escolas religiosas, públicas ou laicas, nas quais se busca a preparação da criança para as novas exigências sociais.Ao longo desta época a direção geral do desenvolvimento pedagógico se faz no sentido da democratização crescente. Cada vez se compreende mais a necessidade da educação para todo o povo e se efetuam os esforços dos governos para alcançar esse resultado. O êxito realmente obtido é variável segundo as distintas nacionalidades e seus regimes sociais e políticos.Importante é assinalar a atual diferença de nível de desenvolvimento entre as regiões mundiais, que se expressa pela existência de centros econômicos e culturais motores, ativos (metrópoles) e áreas atrasadas, receptoras do saber. Nestas últimas existe hoje a intensa preocupação com os problemas de seu próprio desenvolvimento, da superação de seu atraso

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e da produção de sua autêntica cultura.

Relações entre as diferentes classes de educação e o desenvolvimento econômico-cultural de cada fase histórica.

Pode-se dizer que a lei principal geral que se deduz da exposição da história da educação é esta: a educação em cada fase da evolução histórica é sempre um produto cultural da sociedade, reflete os interesses nela dominantes, o que (para as sociedades onde há diversas classes) significa: preponderantemente os interesses daqueles que têm a direção da comunidade.O tipo de homem que cada espécie de educação visa a formar é variável com a respectiva constituição social. Neste sentido pode-se agregar uma segunda lei da educação: o tipo de homem que cada sociedade deseja formar é aquele que serve para desenvolver ao máximo as potencialidades econômicas e culturais, dessa forma social.Como toda sociedade, de qualquer qualidade, não é imóvel, uma vez que está sempre em processo, as realizações materiais e culturais que produz alteram seu conteúdo, ou seja, operam no sentido de esgotá-la, de fazê-la superar-se, isto é, passar a ser outra. Assim, pode-se enunciar uma terceira lei da educação: a educação é em sua essência contraditória, porque, visando a conservar a sociedade que a distribui, é levada a modificá-la e por fim conduz à sua supressão e substituição por outra forma social mais adiantada.

A multidimensão do processo educativo

Com este termo indica-se o fato de que tanto na educação infantil e juvenil como na de adultos, jamais se obtém um conteúdo único e restrito (compartimento) do saber. A necessidade de proporcionar um determinado conteúdo de saber obriga a ampliar a área da educação além daquela intencionada. A educação é por natureza difusa, isto é, rompe, transcende todo limite que lhe seja imposto e se diversifica em ramos colaterais.O saber adquirido, sendo simultaneamente a consciência do não-saber restante, leva o pensamento a prosseguir no movimento histórico, é

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constantemente reveladora de possibilidades de melhores condições de existência e de novos e mais perfeitos conhecimentos em múltiplas direções. Daí o caráter exponencial (já referido) da educação.Por conseqüência, deve-se admitir que a educação, tanto a infantil como a de adultos, não tem contornos definidos (a não ser aproximados). Por essência é um processo de desdobramento do ser humano e da cultura imprevisível em seu curso, e que, apesar de possuir pontos de inflexão e de parada (épocas de crises e de obscurantismo), segue em sua marcha geral um caminho indefinidamente progressista no sentido da criação de melhores condições de vida e de maior expansão da cultura.

5º. TEMA:ESTUDO PARTICULAR DO PROBLEMA DA EDUCAÇÃO

DE ADULTOS

A realidade social do adulto. Sua qualidade de trabalhador e o conjunto de conhecimentos básicos que pressupõe o adulto é o membro da sociedade ao qual cabe a produção social, a direção da sociedade e a reprodução da espécie.Existencialmente, o adulto é o homem na fase mais rica de sua existência, mais plena de possibilidades. Por isso, é o ser humano no qual melhor se verifica seu caráter de trabalhador. O trabalho expressa e define a essência do homem em todas as fases de sua vida (da infância à velhice), mas é no período adulto que melhor se compreende seu significado como fator constitutivo da natureza humana.O homem é produto de seu trabalho (Sartre: o garçom se faz ser garçom). Mas como este trabalho se incorpora ao trabalho social geral, que configura a etapa vigente da sociedade, reverte em forma social, quer dizer, como trabalho aplicado a construir a sociedade tal como se encontra, ao próprio executante, sob a forma de condicionamentos sociais, de salários, de valores, de instituições, de idéias dominantes, etc.O adulto é, por conseguinte, um trabalhador trabalhado. Por um lado, só subsiste se efetua trabalho, mas, por outro lado, só pode fazê-lo nas condições oferecidas pela sociedade onde se encontra, que determina as possibilidades e circunstâncias materiais, econômicas, culturais de seu

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trabalho, ou seja, que neste sentido trabalha sobre ele.Mas o segundo aspecto não significa passividade, não significa que o homem adulto seja "nosso objeto" da vontade social geral, difusa, impessoal. Porque essa vontade é uma soma de liberdades (de vontades livres) entre as quais se conta a do próprio trabalhador ativo, sobre o qual atua, de retorno, a vontade geral.Os adultos, a quem cabe a direção da sociedade, exercem esta função como trabalho. É ação política (no sentido sociológico) porque, em última análise, determina o regime de trabalho geral e suas modificações. A influência sobre a superestrutura social (o direito, a legislação, as instituições, etc.) é apenas a modalidade de mediação pela qual a parte social dirigente configura e modifica o regime geral de trabalho.A participação cada vez mais ativa das massas — incluindo grande número de analfabetos —, no processo político de uma sociedade, expande a consciência do trabalhador e lhe ensina por que e como — ainda que analfabeto — deve caber a ele uma participação mais ativa na vontade geral.Nesse sentido, sua situação de analfabeto ou de semi-analfabeto não representa um obstáculo à consciência de seu papel (seu dever) social. A falta de educação formal não é sentida pelo trabalhador adulto como uma deficiência aniquiladora, quando a outra educação — a que é recebida por sua participação na realidade social, mediante o trabalho — proporciona os fundamentos para a participação política, a atuação do indivíduo em seu meio. E a prova é que estes são indivíduos que exercem importante papel como representantes da consciência comum em sua sociedade, chegando até a serem líderes de movimentos sociais.Por isso é que, na medida em que a sociedade se vai desenvolvendo, a necessidade da educação de adultos se torna mais imperiosa. É porque em verdade eles já estão atuando como educados, apenas não em forma alfabetizada, escolarizada. A sociedade se apressa em educá-los não para criar uma participação, já existente, mas para permitir que esta se faça em níveis culturais mais altos e mais identificados com os estandartes da área dirigente, cumprindo o que julga um dever moral, quando em verdade não passa de uma exigência econômica.Como biologicamente cabe ao adulto a reprodução da espécie, é a ele que cabe o cuidado com a prole. Tem que educá-la, o que

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primordialmente significa cuidar para que seus filhos aprendam a ler e a escrever, freqüentando a escola. Mas, já sabemos que esta necessidade está mediada pelas exigências materiais de subsistência da família, determinadas, por sua vez, pelas condições de desenvolvimento da sociedade. Daí que o problema da educação infantil seja visto como dependente da consciência dos pais, a qual por sua vez depende das circunstâncias materiais da existência da família.A educação do adulto não pode ser conseguida separada da educação da criança, porque o adulto não desejará se alfabetizar se não considera necessário saber ao menos tanto quanto seus filhos.Mas, universalmente, a escolarização infantil não se pode fazer sem a simultânea campanha de alfabetização e educação dos adultos. É uma tese errônea e cruel admitir que se deve condenar os adultos à condição perpétua de iletrados e concentrar os recursos da sociedade na alfabetização da criança, mais barata e de maior rendimento futuro. Deixando de lado o vergonhoso desprezo moral pela dignidade do homem que esta tese encerra, ela é: sociologicamente falsa, pois o adulto rende muito mais depois de alfabetizado; e pedagogicamente errônea, pois não se pode fazer uma correta escolarização da infância em um meio no qual os adultos, os chefes de família não compreendem sua importância. Entretanto, só a compreenderão na prática, alfabetizando-se eles mesmos. A educação dos adultos é, assim, uma condição necessária para o avanço do processo educacional nas gerações infantis e juvenis.O menosprezo pela educação dos adultos, a atitude de condená-los definitivamente ao analfabetismo (de parte de sua profunda imoralidade) incide no erro sociológico de supor que o adulto é culpado de sua própria ignorância. Não reconhece que o adulto não é voluntariamente analfabeto, não se faz analfabeto, senão que é feito como tal pela sociedade, com fundamento nas condições, de sua existência.A educação de adultos não é uma parte complementar, extraordinária do esforço que a sociedade aplica em educação (supondo-se que o dever próprio da sociedade é educar a infância). É parte integrante desse esforço, parte essencial, que tem obrigatoriamente que ser executada paralelamente com a outra, pois do contrário esta última não terá o rendimento que dela se espera. Não é um esforço marginal, residual, de educação, mas um setor necessário do desempenho pedagógico geral, ao qual a comunidade se

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deve lançar.

O educando adulto e seu papel como membro pensante e atuante em sua comunidade

O educador de adultos tem que admitir sempre que os indivíduos com os quais atua são homens normais e realmente cidadãos úteis. Tem de considerar o educando não como um ser marginalizado, um caso de anomalia social, mas, ao contrário, como um produto normal da sociedade em que vive.O estado de ignorância relativa no qual se encontra é um índice social. Revela apenas as condições exteriores da existência humana e os efeitos destas circunstâncias sobre o ser do homem. Não significa que se trate de indivíduos mal dotados, de preguiçosos, de rebeldes aos estímulos coletivos, em suma, de atrasados.O educador tem de considerar o educando como um ser pensante. É um portador de idéias e um produtor de idéias, dotado freqüentemente de alta capacidade intelectual, que se revela espontaneamente em sua conversação, em sua crítica aos fatos, e em sua literatura oral. O que ocorre é que em presença do erudito arrogante, "culto" (o "doutor") o analfabeto se sente inferiorizado e seu comportamento se torna retraído. Mas, se o educador possui uma consciência verdadeiramente crítica, que não pretende se sobrepor ao educando adulto, e sim se identifica com ele e utiliza um método adequado (em essência catártico), o analfabeto revela uma capacidade de apreensão e uma agudeza de vistas que o equiparam à média dos indivíduos de sua idade em melhores condições.O educando adulto é antes de tudo um membro atuante da sociedade. Não apenas por ser um trabalhador, e sim pelo conjunto de ações que exerce sobre um círculo de existência. O adulto analfabeto é um elemento freqüentemente de alta influência na comunidade. Por isso é que se faz tão imperioso e lucrativo instruí-lo.As camadas iletradas da população tendem a ser mais homogêneas pelas próprias condições de pobreza em que vivem. Mas nelas se destacam sempre (para elas) as personalidades que sobressaem, que dão forma expressa ao pensamento comum e por isso se tornam os líderes nos quais a massa se reconhece.

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A educação de adultos visa a atuar sobre as massas para que estas, pela elevação de seu padrão de cultura, produzam representantes mais capacitados para influir social mente. Seria atitude ingênua acreditar que basta instruir os elementos mais destacados, supondo que estes irão depois modificar a massa. Em verdade, o caminho assinalado pela consciência crítica é o oposto. Não é o homem que se eleva que eleva consigo o mundo, e sim o mundo que se eleva que eleva consigo o homem.

O que é que o adulto ignora?

A pergunta se refere ao adulto em condições primárias de cultura, particularmente ao adulto analfabeto. Porque, como já dissemos, o que cada adulto culto — mesmo o mais culto — ignora é infinito.É evidente que ignora os conhecimentos que definem o padrão médio do saber de sua sociedade em seu tempo. Isto é o que o define em sua condição de iletrado.Todavia o que realmente é significativo é que ignora as causas de sua condição de atraso cultural e de pobreza. Como a compreensão destas causas é matéria ideológica, não compete ao educador transferir mecanicamente para o educando adulto suas próprias concepções a este respeito, do contrário não somente estaria violando os direitos de liberdade de pensamento de um ser humano, como também praticaria um ato inútil, pois criaria uma cópia de si mesmo, julgando, apenas por vê-la em outro, que representaria um outro real. Em verdade, estaria iluminando-se com o simples reflexo de si mesmo em um espelho.Assim, o que compete ao educador é praticar um método crítico de educação de adultos que dê ao aluno a oportunidade de alcançar a consciência crítica instruída de si e de seu mundo. Nestas condições ele descobrirá as causas de seu atraso cultural e material e as exprimirá segundo o grau de consciência máxima possível em sua situação.Não importa que esta expressão esteja abaixo da compreensão crítica do educador. Este, se é verdadeiramente crítico, deverá compreender que de nada lhe vale dar ao outro uma explicação ideológica mais clara, mais exata e verdadeira, porque o aluno adulto não a entenderia e em qualquer caso não poderia atuar utilmente em sua sociedade com uma consciência mais avançada que aquela que lhe é permitida por sua própria reflexão.

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Do contrário passaria a ter uma atuação em falso, motivada por uma consciência de empréstimo.Por tudo isso, a ação do educador tem de consistir em encaminhar o educando adulto a criar por si mesmo sua consciência crítica, passando de cada grau ao seguinte, até equiparar-se à consciência do professor e eventualmente superá-la.

O que é que se necessita aprender?

Esta pergunta está em parte respondida pela resposta à pergunta anterior.É evidente que se necessita aprender os elementos básicos do saber letrado, as primeiras letras, a escrita, os rudimentos da matemática, mas este saber, ainda que fundamental e indispensável, só vale por seu significado instrumental, por aquilo que possibilita ao educando para chegar a saber. É o saber para chegar a saber, para o mais saber. Por conseqüência, é preciso que a sociedade tenha preparado todo o elenco de oportunidades de saber para ser adquirido pelo alfabetizando depois de terminada sua alfabetização. Do contrário, a simples alfabetização é um jogo sem finalidade, um luxo social que não recompensa a comunidade dos elevados custos que apresenta.Em conseqüência, ao ensinar as primeiras letras ao adulto, a sociedade estará abrindo as portas para suas exigências educacionais futuras. E não somente é compelida a satisfazê-las, e, portanto deve desde agora preparar-se para isso, mas unicamente assim adquire sentido o intento atual da educação de adultos. Se assim não fosse, a sociedade estaria se empenhando num enorme esforço para nada, pois o ato de ler ou escrever, em si mesmo, constitui uma habilidade lúdica, um jogo de decifração, um reconhecimento de sinais gráficos arbitrários, e só ganha valor pelo conteúdo de saber real que permite adquirir.O que o adulto precisa aprender é, em princípio, a totalidade do saber existente em seu tempo. A este respeito, sua perspectiva cultural não difere, de direito, daquela da criança. Unicamente, de fato (pelo menor tempo de vida restante, pelos "afazeres" de trabalho, por sua condição social não imediatamente modificada), suas possibilidades de alcançar níveis mais altos de conhecimento são com freqüência limitadas.

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Como lhe ensinar?

O problema do método é capital na educação de adultos. Nesta fase é um problema muito mais difícil que na instrução infantil, porque se trata de instruir pessoas já dotadas de uma consciência formada — ainda que quase sempre ingênua — com hábitos de vida e situação de trabalho que não podem ser arbitrariamente modificados. As características fundamentais que devem satisfazer o método são as seguintes:Deve ser tal que desperte no adulto a consciência da necessidade de instruir-se e de alfabetizar-se. Isso só pode ocorrer se simultaneamente e mais amplamente desperta nele a consciência crítica de sua realidade total como ser humano, o faz compreender o mundo onde vive, seu país — com as peculiaridades da etapa histórica na qual se encontra — sua região, desperta nele a noção clara de sua participação na sociedade pelo trabalho que executa, dos direitos que possui e dos deveres para com seus iguais.Deve partir dos elementos que compõem a realidade autêntica do educando, seu mundo de trabalho, suas relações sociais, suas crenças, valores, gostos artísticos, gíria, etc. Assim, por exemplo, a aprendizagem dos elementos originais da leitura tem que partir de palavras motivadoras que são aquelas dotadas de conteúdo semântico imediatamente percebido pelo aluno, que se destacam como expressão de sua relação direta e contínua com a realidade na qual vive. O método não pode ser imposto ao aluno, e sim criado por ele no convívio do trabalho educativo com o educador. Assim, as próprias palavras motivadoras pelas quais inicia sua aprendizagem da leitura e da escrita não podem ser determinadas pelo professor, mas devem ser proporcionadas mediante uma técnica pedagógica especial pelo próprio alfabetizando.O mesmo raciocínio é válido para as etapas posteriores do processo educacional, depois da alfabetização. O conteúdo da instrução não deve ser imposto e sim proposto pelo professor como adequado às etapas do processo de autoconsciência crescente do aluno, e justificado como o saber corrente (nos diversos ramos das ciências) pelas possibilidades que oferece de domínio da natureza, de contribuição para melhorar as condições de vida do homem.

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O equívoco da infantilização do adulto, concebido como um "atrasado"

A concepção ingênua do processo de educação de adultos deriva do que se pode chamar uma "visão regressiva". Considera o adulto analfabeto como uma criança que cessou de desenvolver-se culturalmente. Por isso, procura aplicar-lhe os mesmos métodos de ensino e até utiliza as mesmas cartilhas que servem para a infância. Supõe que a educação (alfabetização de adultos) consiste na "retomada do crescimento" mental de um ser humano que, culturalmente, estacionou na fase infantil. O adulto é considerado, assim, um "atrasado".Esta concepção, além de falsa e ingênua, é inadequada porque:- deixa de encarar o adulto como um sabedor;- ignora que o desenvolvimento fundamental do homem é de natureza social, faz-se pelo trabalho, e que o desenvolvimento não pára pelo fato de o indivíduo permanecer analfabeto.- ignora o processo de evolução de suas faculdades cerebrais.- não reconhece o adulto iletrado como membro atuante e pensante de sua comunidade, na qual de nenhuma maneira é julgado um "atrasado" e onde, ao contrário, pode até desenvolver uma personalidade de vanguarda.

Esta concepção conduz aos mais graves erros pedagógicos pela aplicação ao adulto de métodos impróprios e pela recusa em aceitar os métodos de educação integradores do homem em sua comunidade, quer dizer, aqueles que lhe fazem compreendê-la e modificá-la, nos quais o conhecimento da leitura e da escrita se faz pelo alargamento e aprofundamento da consciência crítica do homem frente à sua realidade.

O não reconhecimento do caráter relativo de sua ignorância e das causas sociais que a explicam

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Este é ainda um traço característico da consciência pedagógica ingênua. As conseqüências deste comportamento são nocivas, pois impedem desde o primeiro momento a correta consideração do problema da educação de adultos.Já dissemos que o educador ingênuo recusa ver no educando analfabeto adulto um sabedor. Classifica o analfabetismo entre os "males" sociais. Isto significa que dá caráter patológico ao que em realidade é a expressão de um modo de ser do homem. Esse modo de ser é perfeitamente normal e explicável pelas condições sociais da existência do indivíduo. O defeito desta concepção está em que converte a educação em terapêutica.Ora, pensando assim, o educador se desvia por caminhos completamente errôneos, passa ater uma visão idealista e antropocêntrica do processo pedagógico e jamais se encontrará com a verdadeira realidade que se oculta por trás do fato do analfabetismo dos adultos. Cada vez acentuará mais sua ingenuidade, afastando-se da autêntica compreensão do fenômeno.Os erros fundamentais desta atitude consistem em:1) Partir da suposição de ignorância num indivíduo no qual, em verdade, há considerável acervo de saber.2) Explicar a realidade do iletrado segundo causas abstratas, segundo conceitos imaginários e totalmente inadequados, deixando assim de buscar suas raízes objetivas no processo social no qual o indivíduo, efetivamente, se encontra inserido.3) Apresentar como recursos, para solucionar o problema social do analfabetismo, métodos de alfabetização e de educação que são de baixo rendimento e elevado custo, além de não conduzir ao esclarecimento da consciência do indivíduo, mas unicamente, no melhor dos casos, conseguem dotá-los da habilidade de saber ler e escrever, que permanece para eles sem finalidade.4) Despertar uma atitude geral de alarme social em face da gravidade do problema do analfabetismo, o que é um meio seguro de fazê-lo incompreendido em suas verdadeiras causas objetivas. Em lugar de reconhecer no analfabetismo um índice natural da etapa em que se encontra o processo de desenvolvimento nacional, apresenta-o como uma anormalidade, uma monstruosidade que é preciso "combater", "erradicar". Estas expressões, freqüentes na oratória dos promotores de campanhas

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de alfabetização, demonstram bem que os pedagogos desta estirpe concebem o analfabetismo como um "mal", uma "enfermidade", uma "endemia", uma "erva daninha", ou seja, que o vêem como algo não natural no corpo da sociedade. Assim, enquanto este for o pensamento dominante não há possibilidade de que o educador ou o legislador entre pela correta via de resolução do problema do analfabetismo, que é de fato uma deficiência culturalmente grave, mas que nada tem de sociologicamente anormal.

6º. TEMA: O PROBLEMA DA ALFABETIZAÇÃO

O analfabeto como indivíduo que não necessita ler

Para se discutir corretamente o problema da educação e chegar a conclusões capazes de orientar sua solução, é preciso que se tome um ponto de partida justo e verdadeiro. Este só pode ser o ponto de vista humanista, não idealista. Conseqüentemente, é necessário partir do analfabeto como ser humano e não do analfabetismo, que é um conceito abstrato. Partir do fato real, concreto, existencial, que é o homem adulto analfabeto e considerar como secundário, derivado, o aspecto sociológico de tal fato, o analfabetismo. O analfabeto é uma realidade humana, enquanto o analfabetismo é uma realidade sociológica.O passo imediato consiste em chegar à definição autêntica do analfabeto: para encontrá-la é necessário superar a definição espontânea, vulgar e, por isso, ingênua, que concebe o analfabeto tão-somente como o indivíduo que não sabe ler. Esta é uma definição literal, etimológica e por isso óbvia, mas imprópria para a análise filosófica que desejamos empreender. É imprópria porque não apreende a essência da realidade concreta do homem analfabeto.Limita-se a referir-se ao fato bruto, acidental de um indivíduo que não sabe ler, mas não contém nenhuma referência ao ser próprio de tal indivíduo, ser este que explica (isto é, que contém as causas de) sua realidade de iletrado.A definição autêntica parte da existência concreta do analfabeto, ou seja, da sua realidade como ente humano em um mundo circunstante, em

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uma sociedade que vive determinado momento histórico, no conjunto de relações que mantém com seus semelhantes. Ora, o mais importante dos aspectos, nos quais se manifesta sua relação com os demais homens, é seu trabalho. Porque, de acordo com a natureza concreta do trabalho que desempenha, está designada a ele uma posição na sociedade (e não o inverso).Por conseguinte, o analfabeto, em sua essência, não é aquele que não sabe ler, sim aquele que, por suas condições concretas de existência, não necessita ler. Esta é sua definição real. É a exposição de sua essência, porque não apresenta o fato de ser iletrado como um acidente, mas como algo original, essencial, que tem que ser assim, dada sua condição de vida, fundamentalmente de trabalho. Porque se assim não fosse, se necessitasse saber ler para sobreviver, ou bem saberia (e então não haveria o problema) ou então simplesmente não existiria.O conceito de "necessitar saber" ou "não necessitar saber" vem da origem, do íntimo do ser considerado em sua plena realidade, enquanto o de "saber" e "não-saber" (como fatos empíricos) coloca-se na superfície do ser humano, é um acidente social, além de ser impossível definir com rigor absoluto os limites entre o "saber" e o "não-saber" (daí que não há uma fronteira exata entre o alfabetizado e o analfabeto). Porque o "necessitar" é uma coisa que ou é satisfeita (se é exigência interior) ou, se não é, não permite ao indivíduo subsistir como tal ente (por exemplo: as necessidades biológicas). O "necessitar" ao qual se referem a leitura e a escrita é de caráter social (uma vez que tem por fundamento o trabalho).A leitura e a escrita são primordialmente dois dos recursos a que o indivíduo recorre para a execução de um trabalho que não pode ser feito sem esse conhecimento. Por conseguinte, o conhecimento da leitura e da escrita é uma característica do trabalho. Sua valoração só pode ser feita tomando em consideração o nível de trabalho que cada indivíduo executa na sociedade.Pode-se dizer que é o trabalho que alfabetiza ou analfabetiza o homem, segundo exija dele o conhecimento das letras, ou seja, de tal espécie que o dispense de conhecê-las. Como, porém, o trabalho, por sintetizar o conjunto de relações sociais às quais o homem está sujeito, toca a essência do homem, a definição do analfabeto (definição autêntica) tem que ser estabelecida em termos de necessidade ou não de saber ler, e de nenhum

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modo pelo fato exterior do simples desconhecimento.Esta é a razão pela qual não tem sentido dizer que a criança (que, por sua idade, está isenta de trabalho) ou o indígena de uma tribo primitiva, na qual não há nenhuma espécie de trabalho que exija o conhecimento das letras, são analfabetos.

Concepções ingênuas relativas ao analfabetismo

A consciência ingênua é fértil em atitudes referentes ao analfabetismo. Algumas delas se referem às causas, outras ao significado do analfabetismo. Não é possível indicá-las todas, mas somente algumas.a) No que diz respeito às causas, refere sempre o analfabetismo a um vício de formação individual, pelo qual é responsável o próprio analfabeto ou sua família, jamais a sociedade como um todo. E quando menciona a sociedade, a entende como um simples meio ambiente, como uma realidade puramente física, sem conseqüências existenciais. E assim que as causas podem ser:1) o descuido da família em educar seus filhos, os vícios e o mau ambiente moral em que nasce a criança.2) a indolência, a preguiça do indivíduo.3) a incapacidade de adaptação ao meio, a rebeldia aos bons hábitos.4) o baixo nível intelectual da criança.5) as más inclinações da criança que determinam a evasão da escola.6) as condições desfavoráveis do meio físico, especialmente a distância da casa à escola.7) o desinteresse dos governos em criar escolas para todos.8) a pobreza familiar, entendida como fato isolado do conceito de classe social.

b) No que se refere às atitudes que cultiva com relação ao analfabetismo, já temos indicado que o considera como um "mal", uma "enfermidade" social, e tem por ele enorme desprezo, porque o considera como incultura, como uma mancha na face do país. As elites intelectuais com freqüência preferem desinteressar-se do problema, que pessoalmente não lhes diz respeito, considerando-o como um resíduo de um passado de ignorância, do qual individualmente se liberaram.

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c) Para "combater" ou "erradicar" o analfabetismo, o que propõem é a ação governamental levada a cabo por meio de "campanhas", que a consciência ingênua concebe sempre de forma inadequada. Já temos dito que não deve haver "campanhas" contra o analfabetismo (que partem do conceito de analfabeto como o "inimigo" ou o "infiel"), mas deveria haver apenas a ação normal, constante e intensa do poder público para dar instrução aos iletrados, dentro de um programa de governo que começaria por atuar sobre as causas sociais do analfabetismo, as quais se resumem no grau de atraso do desenvolvimento econômico da sociedade e a ausência de real soberania nacional. A não ser assim, a ação governamental só tendo um valor paliativo, quando não simbólico, é meramente sintomática e não etiológica. Vai alfabetizar mal (e inutilmente) analfabetos que terão depois filhos analfabetos.d) Uma das atitudes importantes da consciência ingênua está em acreditar que o analfabetismo é uma questão individual, quase se diria de foro íntimo. Dirige-se ao analfabeto com incitações morais e atitudes reprobatórias e primitivas, para acentuar a parte de culpa que lhe compete por encontrar-se em seu estado. Apega-se à postura de que cabe ao próprio analfabeto demonstrar suficiente interesse para aprender a ler e conseguir os meios para tanto. Os partidários desta concepção educacional se opõem á ação do poder público e são naturalmente defensores da escola privada.e) Outro grupo que igualmente se desinteressa do problema do analfabetismo é o daqueles que julgam que uma sociedade, uma nação, só vale pelas elites culturais que produz. A ignorância das massas é apenas um peso morto, uma carga que impede o desenvolvimento do trabalho superior, mas ao mesmo tempo permite ter mão-de-obra mais barata. Este ponto de vista quase nunca é confessado em público, mas existe e orienta a política prática de muitas autoridades. Costumam citar como exemplo as sociedades escravistas, onde a ignorância das massas era total e onde, apesar disso, produziram-se brilhantes obras de cultura na ciência, nas letras e nas artes.

Discussão sobre o valor dos índices de analfabetismo e das estatísticas educacionais em geral

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Da questão anterior passa se à interpretação dos índices educacionais, de seu valor efetivo, de seu significado. Especialmente merece ser discutido o que se refere à taxa de analfabetismo numa área ou nação. Neste ponto, como sempre, é preciso distinguir o comportamento da consciência ingênua do comportamento da consciência crítica.A consciência ingênua tem a este respeito duas atitudes antagônicas entre si. Ou se recusa a dar qualquer valor a estes índices, considerando-os números frios, que nada significam com relação ao progresso real da sociedade (a prova está em que países atrasados exibem grandes cidades, vida culta, etc.); ou é tomada de violenta inquietação, de indignado furor, de sagrada cólera contra o estado de coisas que tais índices revelam. Não é necessário dizer que, neste segundo caso, por sua ingenuidade essencial, cai nas explicações e atitudes antes referidas.A atitude de desdém admite que os índices são mera manipulação aritmética e só interessam aos técnicos. A sociedade pode ser culta e brilhante com 50%, com 30% ou com 10% de analfabetos. Além disso, o que importa ao homem é viver feliz e isso não depende de que seja ou não analfabeto. Por conseqüência, os elevados índices de analfabetismo não inquietam essa consciência. Acredita que serão reduzidos por um processo espontâneo, sem dúvida, muito lento, ou seja, que "com o tempo" a nação alcançará a extinção do analfabetismo do povo.A atitude de indignação conduz a consciência ingênua a reclamar o que chama de "medidas imediatas" contra o mal. Não sabe certamente que fazer, mas exige que se faça com urgência algo que ponha fim a essa "vergonha nacional". Curioso é que se junta a esta atitude uma visível desconfiança na ação do governo para educar aos adultos analfabetos.A consciência crítica procede de outra maneira. Não recusa o valor dos índices educacionais, o que seria absurdo, mas os submete a uma análise crítica com o fim de apreender seu verdadeiro significado.Sabe que estes índices são produzidos por pesquisas e publicados por organizações educacionais, em sua maioria, formadas de pessoas providas de uma consciência ingênua com relação às questões sociais. Tais índices não trazem qualquer indicação de seu verdadeiro conteúdo social, são apresentados quase sempre como dados puros dos problemas pedagógicos e, por isso, ainda que se admita que são verídicos (muitas vezes nem isso são), necessitam ser interpretados, isto é, colocados no contexto social a

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que se referem e explicados à luz da análise crítica dessa realidade. Isto só pode ser realizado pelo sociólogo ou pedagogo dotado de consciência crítica.Os dados estatísticos educacionais têm um valor sempre relativo a seu contexto e por isso não permitem, senão aproximadamente, o emprego do método comparativo. Porque, sendo dados numéricos, quantitativos, trazem em si uma contradição, que é a de referir-se a fatos sociais, por essência qualitativos (a qualidade da sociedade correspondente). Como estes não podem ser comparados diretamente, mas somente interpretados em função do processo histórico geral e do desenvolvimento, de cada entidade nacional, verifica-se que o exame comparativo das estatísticas educacionais (como, aliás o das estatísticas vitais) só recebem seu verda¬deiro significado à luz de uma análise que não é só numérica, e sim sociológica, histórica, dialética.A consciência crítica se comporta, pois de uma maneira que não é nem de rejeição nem de aceitação incondicional. Não rejeita, porque sabe que a estatística tem um valor positivo, legítimo e muito útil. Porém não permanece no simples plano de quantidade, mas traduz todo dado numérico em expressões qualitativas. O que os índices, curvas e gráficos revelam, são essencialmente fatos sociais, que, como tais, só podem ser entendidos em profundidade quando são relacionados com seu significado humano. Daí, a rejeição ao excessivo tecnicismo das análises estatísticas. As correlações primordiais, elementares, são válidas e úteis, pois são de imediata tradução existencial. Porém, a partir delas, os técnicos elaboram uma arquitetura aritmética e analítica, com a qual perdem todo o contato com a realidade humana e social. Como isso lhes parece ser a última palavra de sua ciência, estas estatísticas deixam de ter qualquer valor real para o sociólogo e o pedagogo. A razão dessa lamentável conclusão está em que a estatística pretende então valer por si, e esquece seu significado legítimo de simples índice de uma situação histórica complexa (o índice pretende substituir o fato).

Noção crítica da alfabetização

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A simbolização do pensamento como atividade natural do homem. Já tivemos ocasião de assinalar os caracteres distintos de um método crítico de alfabetização de adultos. O ponto que mais sobressai é aquele que não se limita a considerar que se trata de um mero processo de transmissão de uma técnica particular (a de ler e escrever), mas sim considera que se trata de produzir uma mudança na consciência do educando, mudança na qual o conhecimento da leitura é apenas um dos elementos.Por isso, o método crítico visa a constituir no educando uma consciência crítica de si e de sua realidade, e admite que, como elemento, como parte dessa consciência, surge espontaneamente a compreensão da necessidade de alcançar um plano mais elevado do saber, o plano letrado.Dessa forma, o sujeito da alfabetização é o próprio analfabeto. Ao contrário de ser objeto da ação do educador, é o próprio sujeito de sua transformação pessoal.A contribuição do educador consiste em possuir uma técnica adequada para proporcionar os elementos da linguagem escrita, mas de forma tal, que estes representem a realidade do alfabetizando e sejam reconhecidos por ele como tais.O primeiro passo, para a constituição da autoconsciência crítica do trabalhador, da qual decorre necessariamente a aquisição da linguagem escrita, está em fazê-lo tornar-se observador consciente de sua realidade; destacar-se dela para refletir sobre ela, deixando de ser apenas participante inconsciente dela (e por isso incapaz de discuti-la). Tecnicamente, esse resultado é alcançado mediante a apresentação ao educando adulto de imagens de seu próprio meio de vida, de seus costumes, suas crenças, práticas sociais, atitudes de seu grupo, etc. Com isso, o alfabetizando se torna espectador e pode discutir sua realidade, o que significa abrir o caminho para o começo da reflexão crítica, do surgimento de sua autoconsciência.A alfabetização decorre como conseqüência imediata da visão da realidade, associando-se a imagem da palavra à imagem de uma situação concreta. Posteriormente, a decomposição da palavra em seus elementos fonéticos e a recomposição destes em outras palavras se faz sem nenhuma dificuldade e é um produto da criação intelectual do próprio educando (e não uma sugestão externa que lhe é imposta pelo professor).

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O fundamento humanista e dialético do método crítico está em que a simbolização do pensamento é uma atividade natural do homem. Não precisa aprendê-la (porque jamais o pensamento existe recluso na cabeça do indivíduo adulto normal), apenas necessita convencionar socialmente os símbolos que convém adotar. Nas sociedades letradas estes símbolos já são estabelecidos por convenção tradicional, de maneira que o alfabetizando os encontra prontos e só tem que tomar conhecimento deles.Em todas as fases de seu desenvolvimento cultural o homem tem simbolizado seu pensamento, reproduzindo-o em imagens a princípio figurativas das próprias coisas (pictogramas), depois das idéias das coisas (ideogramas) e, por fim, em fase mais adiantada, descobre a utilidade de representar graficamente a expressão oral (o nome) das coisas (fonogramas).Nessa terceira etapa é que se chega à fase alfabética (que também sofreu uma longa evolução).As sociedades primitivas, como todas as demais, possuem seu sistema de simbolização do pensamento, em função da necessidade de conservar e transmitir os conhecimentos sociais no tempo e no espaço de homem a homem, sem confiar unicamente na faculdade imprecisa e insegura da memória. O mesmo se verifica com a realização de operações numéricas simples (por exemplo: os "quipus" das populações incaicas). Na medida em que a sociedade evolui, cresce a quantidade de conhecimentos que devem ser transmitidos. Isto vai obrigar a que se torne cada vez maior o volume de símbolos particulares a serem conhecidos e memorizados. A partir de um certo número este processo se torna impraticável e surgem então outras formas de representação, até chegar à silábica e à alfabética.O importante é compreender que o analfabeto adulto atual, ao qual nos dirigimos, vive numa sociedade letrada e por isso suas exigências culturais implícitas são as da linguagem alfabética, que é a de seu meio. Basta, portanto, retirá-lo das condições inferiores de existência em que vive e fazê-lo compreender sua realidade para que imediatamente incorpore o saber letrado como elemento natural da consciência crítica que começa a produzir para si.Apesar de ser ajudado pelo professor, este processo é endógeno, é um fenômeno de conversão da consciência pela apropriação de uma realidade que é a do homem, mas que lhe permanecia oculta ou pela qual não se

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interessava. O papel do professor é apenas incentivador, estimulador de uma reação que se passa toda ela no íntimo da consciência do alfabetizando (aspecto socrático do método).O professor tem apenas a função de comunicar ao aluno adulto, quais são os símbolos de uso corrente na sociedade, para que o aluno se utilize deles a fim de satisfazer as novas exigências de sua consciência recém-criada (a não ser assim, se cada um inventasse o sistema de símbolos que precisa possuir, haveria confusão geral e a comunicação social se tornaria impossível).Sua particular importância nas fases superiores, letradas e da cultura. As fases superiores da cultura se caracterizam pelo saber letrado. Este não é causa da ciência mais rica e sim efeito dela (ainda que como instrumento de facilidade de comunicação reverte sobre a ciência existente como fator estimulante). É porque o saber socialmente acumulado se tornou tão grande que não pode ser mais conservado pela memória individual, que surge a necessidade de conservá-lo em forma material (pintura, caracteres cuneiformes, hieróglifos, alfabetos, etc.), a fim de serem transmitidos de um indivíduo a outro. Com isso a sociedade alcança um grau superior de sua evolução e se constitui como sociedade letrada.A escrita como resposta social específica em face da necessidade de conservação de determinadas formas do saber para a comunidade. O aprendizado da escrita, como resposta social específica em face da necessidade de conservar determinadas formas de saber útil para a comunidade, não se distingue existencialmente do aprendizado da leitura. Uma e outra atividade são aspectos da mesma função intelectual de simbolização, que é própria do homem. O aprendizado da escrita se faz pelo método crítico, com a mesma facilidade que o da leitura e simultaneamente, pois se trata do verso e reverso da mesma atividade humana. Escreve-se porque se lê e se lê porque se escreve, e uma e outra coisa se faz porque se pensa. Neste sentido, o trabalho do educador consiste apenas em introduzir o educando no conhecimento do sistema vigente de convenções gráficas usado pela sociedade e relativo ao idioma habitual.A transmissão do saber pelas vias não letradas (oral, pictográfica, etc.). A transmissão do saber pelas vias não letradas supõe o prévio conhecimento da linguagem falada. Para conhecê-lo basta ao indivíduo adulto ser

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normal.A linguagem falada não é aprendida na escola e sim no desenvolvimento social do ser humano. Ela é sem dúvida o fundamento de todo o conhecimento e por isso pode-se dizer que o analfabetismo a rigor não existe, pois o homem (normal) é sempre capaz de expressar em sons falados seu pensamento. O que necessita é apenas progredir até o ponto em que se torne para ele uma necessidade também expressar por meios gráficos seu pensamento, mas esta necessidade deriva sempre da primeira.Assim, pode-se dizer que o homem lê e escreve porque fala. Ao falar já está usando o sistema social básico de comunicação. Só lhe falta passar da palavra falada à palavra escrita, o que decorre sempre de suas necessidades materiais.O adulto se torna analfabeto porque as condições materiais de sua existência lhe permitem sobreviver dessa forma com um mínimo de conhecimentos, o mínimo aprendido pela aprendizagem oral, que se identifica com a própria convivência social. Daí que não há para ele a necessidade de escola.Assim sendo, não se abre para o adulto analfabeto o campo da cultura letrada, e por isso sua atividade cultural (a qual nunca está ausente, do contrário não seria um ser adulto normalmente desenvolvido) se expande sob a forma de literatura oral (poesia e música popular, os "cantadores de feira", narrativas e recitativos, etc.).

Para que, a quem e como alfabetizar?

A questão fundamental do método. A sociedade empreende a alfabetização de adultos fundamentalmente para poder integrá-los num nível superior de produção. Já temos dito que não se trata de dever moral, de obras de caridade, e sim de uma imperiosa exigência social.A sociedade precisa educar seus adultos, desde que alcance um nível de desenvolvimento que torne incompatível a existência de segmentos marginalizados em seu seio, que podem aumentar a força de trabalho geral se forem convertidos em trabalhadores letrados num nível alto de conhecimento.

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A finalidade da alfabetização de adultos, o que leva a sociedade a empreendê-la, é a necessidade de aumentar o rendimento de sua produção. Quando o trabalhador não tem possibilidade de render mais (em virtude do baixo nível da produção) pode permanecer analfabeto, porque ainda neste estado proporciona todo o trabalho que dele a sociedade pode obter (dado o nível inferior geral). Porém, quando se deflagra o processo de desenvolvimento, as exigências de trabalho se tornam quantitativa e qualitativamente mais elevadas e surge então a necessidade de aproveitar melhor o potencial de trabalho individual. Ora, aquelas possibilidades são tais que não podem ser mais realizadas a não ser por trabalhadores capacitados no exercício da leitura e da escrita.A educação de adultos, sua alfabetização, se torna assim uma necessidade generalizada. Alcança a todos, homens e mulheres. Anteriormente, a solicitação social da alfabetização se dirigia apenas a grupo social extremamente restrito (em princípio os letrados, os escribas, os sacerdotes, mais tarde toda a aristocracia), pois bastava que esses poucos indivíduos soubessem ler e escrever para haver transmissão do escasso saber existente (Idade Média) e para o desempenho das funções administrativas exigidas pela organização relativamente elementar dessa sociedade. Por isso, verificava-se o caso de que tanto muitos reis como os camponeses eram analfabetos.Uma lei geral do desenvolvimento educacional é esta: a sociedade nunca desperdiça seus recursos educacionais (econômicos e pessoais), apenas proporciona educação nos estritos limites de suas necessidades objetivas. Não educa ninguém que não precise educar. Por isso, se hoje em dia em todos os países em desenvolvimento se faz sentir a iniciativa do poder público, que promove e comanda o esforço de alfabetização do povo, é porque a sociedade agora precisa que os atuais analfabetos possam ler e que os indivíduos de escassa instrução adquiram outros conhecimentos técnicos e profissionais.A questão do procedimento, a seguir para a mais rápida promoção do indivíduo ao plano do saber letrado é regulada pela sociedade de acordo com as intenções da direção da comunidade. A pedagogia não é ciência pura. Em virtude de suas múltiplas implicações políticas e sociais, está sempre submetida a um critério geral, a normas que transcendem do campo científico e derivam de um centro de poder que dita a política

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educacional.Por isso, a escolha do método de alfabetização (e da educação de adultos em geral), por mais que seja uma questão fundamental, da qual decorre o êxito ou não do esforço social da alfabetização, não é ditada por razões puramente pedagógicas, uma vez que está sujeita a estímulos sociais.

O prosseguimento da obra educacional nos graus superiores (Secundário, Universitário)

A educação é processo contínuo e permanente no indivíduo. Não pode ser contida dentro de limites pré-fixados. Em virtude do caráter criador do saber, que todo saber possui, o homem que adquire conhecimentos é levado naturalmente a desejar ir mais além daquilo que lhe é ensinado.a) Desta forma, a promulgação de programas de educação de adultos é arbitrária e só tem finalidade utilitária. Em princípio, não há limites.b) Na prática os limites são fixados pelas possibilidades de acesso aos graus superiores que a sociedade oferece. Numa primeira fase a sociedade não pode sequer alfabetizar a seus adultos. Depois, em virtude de seu desenvolvimento, consegue alfabetizar a muitos, mais tarde a todos. Nessas condições mais adiantadas chega a um grau no qual já pode tomar grande parte dos alfabetizados e levá-los aos estudos secundários. Enfim, quando alcança um elevado grau de desenvolvimento, está apta a dar educação superior a todos que a desejarem. c) Importante é compreender que todo esforço social de alfabetização dá em resultado a criação de um exército de reivindicantes de maior educação. É um resultado normal, mas que significa a criação de novos e mais graves problemas educacionais para o futuro. Os dirigentes políticos do país devem estar atentos para este efeito de seus propósitos, ao desenvolver a educação de adultos, pois quanto mais educação se dá ao indivíduo mais exigente este se torna, e isto porque: 1) ou encontra na sociedade os meios de aplicar em trabalho mais qualificado seus novos conhecimentos, e com isso desejará alcançar mais tarde níveis mais altos de saber e de trabalho (fazendo-se reivindicante); 2) ou não encontra essa possibilidade e se torna um reivindicante ainda mais veemente contra o meio que não lhe permite desenvolver os conhecimentos que agora adquiriu. De toda maneira é sempre um reivindicante.

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7º. TEMA: A FORMAÇÃO DO EDUCADOR

Pergunta essencial: "Quem educa o educador?"

O problema da formação do educador é estudado nesse tema somente do ponto de vista antropológico-sociológico, e não em seus aspectos técnicos, pedagógicos. O problema da formação do educador, especialmente o educador de adultos, é da mais alta importância. Tem que ser um dos pontos contemplados em todo programa de expansão pedagógica. Para tratar do assunto, se não queremos cair nas ingenuidades habituais, que são também origem de grandes dispêndios sociais contraproducentes, devemos examiná-lo pelo enfoque da consciência crítica.Já dissemos que existem dois processos educacionais em curso na consciência social. A consciência ingênua considera como educação nada mais do que o primeiro, e acredita que o esforço principal da educação deve consistir em retirar o aluno, e principalmente o aluno que se prepara para ser professor, das influências do meio e capacitá-lo somente para a instrução técnica, para o desempenho de suas funções. O ponto de vista da consciência crítica é o oposto. Sabe que não haverá verdadeira função do professor senão mediante a intensificação das influências sociais e a compreensão cada vez mais clara que o educador tenha de que sua atividade é eminentemente social, influi sobre os acontecimentos em curso no seu meio e só pode ser valiosa se ele admite ser conscientemente participante desses acontecimentos.A educação formalizada é um dos processos pelos quais a sociedade se configura, mas não é, como pensa a pedagogia ingênua, o único que a configura. Todos os processos configuradores da sociedade estão em estreita relação recíproca e se influenciam mutuamente. Deste modo, a educação só alcança os resultados que o conjunto dos demais processos lhe permite obter.A pergunta fundamental, da qual deve partir toda discussão do problema da formação do professor, é esta: "quem educa o educador?". A consciência ingênua não sente a necessidade de suscitar esta pergunta, porque lhe parece óbvio que quem educa o educador é outro educador, que

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o prepara para sua missão. Não percebe que tal resposta não tem sentido, pois é imediata uma nova interrogação: "quem educa a este educador que agora está educando o outro?". Vê-se, portanto, que a primeira resposta não faz senão estabelecer uma cadeia regressiva de educadores ao infinito, e por isso é uma simples petição de princípio, sem valor lógico.A resposta correta é a que mostra o papel da sociedade como educadora do educador. Em última análise, é sempre a sociedade que dita a concepção que cada educador tem do seu papel, do modo de executá-lo, das finali¬dades de sua ação, tudo isso de acordo com a posição que o próprio educador ocupa na sociedade. A noção de posição está tomada aqui no sentido histórico-dialético amplo e indica por isso não só os fundamentos materiais da realidade social do educador, mas igualmente o conjunto de suas idéias em todos os terrenos, e muito particularmente no da própria educação.A sociedade está sempre delegando a alguns de seus membros a função de educar os jovens e adultos. Essa delegação significa que a sociedade deseja ver compendiados e transmitidos regularmente às novas gerações os conhecimentos que lhe são úteis, que expressam seu grau de avanço cultural e de domínio das forças da natureza, dentro de uma determinada ordem de relações produtivas. A educação escolar, da infância ou de adultos, é, portanto a formalização da educação espontânea (dada pela consciência social), enriquecida dos conteúdos de saber, que os sábios e os artistas dessa sociedade têm produzido ou adquirido. Deve-se entender como a ordenação do saber e não como passagem a um plano de vida social distinto. Por isso continua a possuir a mesma significação humana e social.Claro está que tecnicamente a formação do professor é um procedimento complexo de dotação de saber e de preparação para sua conveniente transmissão a outros jovens ou adultos. Mas, em essência, este procedimento é apenas a condensação, a convergência, das influências que a sociedade exerce sobre seus membros, e que deseja exercer de maneira cada vez mais organizada.O educador deva compreender que a fonte de sua aprendizagem, de sua formação, é sempre a sociedade. Mas esta atua de dois modos: um, indiretamente, mas que aparece ao educando (futuro educador) como direto (pois é aquele que sente como ação imediata): é o educador, do qual

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recebe ordenadamente os conhecimentos. E outro, diretamente, ainda que apareça ao educando (futuro educador) como indireto, pois não o sente como pressão imediatamente perceptível: é a consciência, em geral, com o meio natural e humano no qual se encontra o homem e do qual recebe os estímulos, os desafios, os problemas que o educam em sua consciência de educador.Importância da etapa de desenvolvimento econômico e cultural da sociedade como determinante das possibilidades quantitativas e qualitativas da educação e de sua distribuição entre os membros da comunidade.Se a sociedade é o verdadeiro educador do educador, sua ação se exerce sempre concretamente, isto é, no tempo histórico, no momento pelo qual está passando seu processo de desenvolvimento. Por isso, em cada etapa do desenvolvimento social, o conteúdo e a forma da educação que a sociedade dá a seus membros vão mudando de acordo com os interesses gerais de tal momento.Do feiticeiro da tribo ao pedagogo grego, ao escriba romano, ao clérigo medieval, ao mestre e ao professor universitário de hoje, a genealogia social é a mesma. A constituição da figura do educador, seu status profissional e sua valorização social são efeitos das diferentes etapas pelas quais passa o processo histórico. O nível médio de formação do professorado é um reflexo do nível médio do desenvolvimento social.Em épocas de aceleração do processo social observa-se freqüentemente com plena nitidez, o descompasso entre a consciência (e respectiva formação profissional) do educador e as exigências impostas pelo curso dos acontecimentos no momento. Esse atraso se explica porque a maioria dos educadores foram preparados pela consciência precedente, para servir a seus objetivos, dentro da realidade então existente. Com a rápida mudança desta, o reajuste da consciência de muitos pedagogos não se faz imediatamente, sem ocasionais conflitos. Grande parte dos educadores representa, nesse momento, de maneira geral, um fator de inércia. Nestas condições seu papel se torna pouco rentável ou francamente negativo, reacionário, por não poder se adaptar às novas exigências da realidade.Isso ocorre porque falta a esses professores a noção crítica de seu papel. Sua preparação tem sido realizada para uma função regular num suposto ambiente estável. Quando, no entanto, a realidade, por força de sua natural

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mobilidade, vai-se alterando, essa espécie de educadores não se revela capaz de acompanhar a marcha das transformações.Por isso é necessário que hoje em dia, quando somos capazes de perceber este fato, preparemos os educadores para se converterem em forças atuantes do desenvolvimento econômico e cultural da sociedade. Enquanto se encontrar com relativa freqüência entre os educadores um conceito ingênuo de si mesmos, da educação e da realidade nacional em geral, eles poderão ser homens respeitados e dotados de consideráveis conhecimentos, mas não estarão à altura de seu papel na sociedade, que se esforça por produzir um salto histórico no caminho do progresso.A etapa história vivida pela sociedade determina:1) a formação do educador.2) as possibilidades quantitativas da educação, ou seja, o número de membros da sociedade aos quais pode ser distribuída, em seus diversos graus.3) as possibilidades qualitativas da educação, ou seja, o conteúdo e a forma do saber que é dado aos alunos em todos os graus do ensino.4) a distribuição do ensino escolarizado entre os membros da comunidade, desde o grau zero (o analfabetismo) até as modalidades avançadas de investigação científica, de especialização técnica, de instrução universitária.As possibilidades quantitativas e qualitativas da educação dependem da etapa do desenvolvimento geral, porque a sociedade dirigida por setores minoritários nunca educa maior número de indivíduos, nem lhes distribui mais instrução que a necessária para que cumpram as tarefas objetivas que lhes impõe. Em conseqüência, somente a mudança de fase e a passagem a uma situação de maior desenvolvimento, com a correspondente criação de maiores e mais complexas exigências, levam a sociedade em uma curta etapa a incrementar quantitativamente e qualitativamente o processo educacional formalizado.A distribuição das oportunidades educativas formais entre os membros jovens da sociedade, como igualmente a convocação dos adultos para se incorporarem ao processo cultural, mediante o conhecimento da leitura e da escrita, é regido pelo mesmo mecanismo de satisfação das exigências sociais. Essa distribuição, refletida nos índices estatísticos pedagógicos, possui uma segunda significação, que é a essencial, a verdadeira, pois

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revela o grau de avanço do desenvolvimento da comunidade. Os índices têm assim dupla significação: por um lado indicam um fenômeno (o aparente), a situação educacional considerada enquanto tal; por outro lado, manifestam uma essência (a realidade), a fase do desenvolvimento social e político do país.A oportunidade que cada indivíduo, jovem ou adulto, tem de figurar numa das faixas de distribuição educacional lhe está designada por sua posição na sociedade, ou seja, objetivamente falando, por seus determinantes materiais e culturais. Por conseguinte, para que cada vez maior número de indivíduos encontre oportunidade de se educar é preciso que o contexto social se desenvolva, pois o atual estado só oferece, obviamente, o conjunto de oportunidades presente.Necessidade da capacitação sempre eficiente do educador para o cumprimento de sua tarefa social. Sua indispensável vinculação ao povo.A sociedade educa o educador num processo sem fim e de complexidade crescente. Já dissemos que o saber tem caráter exponencial e isso não somente na existência histórica coletiva senão também na formação pessoal do educador.A qualidade técnica e profissional do educador está sempre submetida ao controle social pelos dispositivos legais que lhe atribuem este grau, asseguram-lhe o exercício da docência e lhe proporcionam meios de constante aperfeiçoamento. Mas, este é apenas o aspecto externo, o condicionamento coletivo que o determina em sua condição de educador e lhe dá os recursos para se tornar um profissional cada vez mais competente. Contudo, há outro controle, e este é o que realmente importa: o que é exercido pela própria consciência do educador.Neste segundo sentido compete ao professor, além de incrementar seus conhecimentos e atualizá-los, esforçar-se por praticar os métodos mais adequados em seu ensino, proceder a uma análise de sua própria realidade pessoal como educador, examinar com autoconsciência crítica sua conduta e seu desempenho, com a intenção de ver se está cumprindo aquilo que sua consciência crítica da realidade nacional lhe assinala como sua correta atividade.A capacitação crescente do educador se faz, assim, por duas vias: a via externa, representada por cursos de aperfeiçoamento, seminários, leitura de periódicos especializados, etc.; e a via interior, que é a indagação à

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qual cada professor se submete, relativa ao cumprimento de seu papel social. Uma forma em que se pratica com grande eficiência esta análise é o debate coletivo, a crítica recíproca, a permuta de pontos de vista, para que os educadores conheçam as opiniões de seus colegas sobre os problemas comuns, as sugestões que outros fazem e se aproveitam das conclusões destes debates.A condição para este constante aperfeiçoamento do educador não é somente a sensibilidade aos estímulos intelectuais, mas é, sobretudo a consciência de sua natureza inconclusa como sabedor. Não são tanto os negligentes, mas principalmente os auto-suficientes os que estacionam no caminho de sua formação profissional. Julgar que sabem todo o necessário, considerar que seu papel na educação elementar nada mais exige deles, é uma noção que paralisa a consciência do educador e o torna inapto para progredir. Porque o progresso não consiste na aquisição de novos dados de saber, mas muito mais na aquisição da consciência de sua realidade como servidor social, de seu papel como interlocutor necessário no diálogo educacional. Esta consciência não tem limites em seu progresso, pois muda com o curso do processo objetivo, que é interminável.O educador tem, portanto, que acompanhar o movimento da realidade. A forma de vida pessoal mais perfeita na qual pode realizar este intento é permanecer em constante vinculação com o povo. Ao educador dotado de consciência ingênua por muitas maneiras lhe acontece se distanciar do povo; assim, por exemplo, quando se julga alguém a quem a cultura transformou em personalidade distinta da do homem do povo, ou quando acredita que sua função, como professor consiste em impor (em sobrepor) o saber ao aluno inculto. Encontramos neste comportamento um vicio que destaca o professor do conjunto daqueles a quem ensina, dando-lhe a falsa idéia de ser uma pessoa de qualidade diferente, superior.O educador necessita compreender a natureza necessariamente culta do povo para sentir-se desejoso de unir-se às massas de seu país. Precisa compreender que o povo é a matriz de toda cultura, e que o saber, como conceito ou lei que reflete ou apreende um aspecto da realidade, não é em si mesmo cultura, senão que se torna tal quando representa um produto da consciência geral. A cultura é por definição uma totalidade e por isso é sempre possuída pelo povo como unidade social. O conhecimento

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de um fato ou de uma lei da realidade, depois de enunciado, torna-se objeto de apreensão universal, mas em sua origem é sempre produto de um particular estado social, é criação de alguém que pertence a tal povo, em tal etapa de seu processo e não pode ser concebido destacado desta referência à sua raiz histórica. Depois de enunciado, o saber se torna igualmente produto da cultura, porque o processo de sua divulgação e apropriação por outro contexto social (nacional) que não o produziu expressa ainda o estado da realidade deste último contexto. E como esta realidade é sempre uma totalidade, o saber aí criado ou aprendido de fora tem conexões com todos os demais aspectos dessa realidade e a expressa por seus condicionamentos recíprocos.Como o contexto social se define primordialmente pela situação vivida pelo povo como um todo, o educador, para poder ser um homem autenticamente culto, tem que estar ligado às origens da única espécie de cultura que lhe é acessível: a sua. Sendo esta representada pelo povo como totalidade, o educador só será de fato culto e só desempenhará com proveito suas funções se se conservar fiel às inspirações de seu povo, concretamente, das massas trabalhadoras de seu país.Por isso, é sempre uma atitude ingênua considerar a formação do educando, e seu constante aperfeiçoamento exclusivamente técnico, como simples treinamento individual. É, ao contrário, o progresso de sua consciência crítica, de si e de seu mundo, que lhe dá a certeza de ser cada vez mais competente em seu ofício e mais culto como intelectual, pois cada vez se acerca mais das origens legítimas da cultura.O educador como sabedor-ignorante, como ser em permanente processo de aprender para ensinar.A qualidade de culto adquirida pelo educador lhe dá a noção de ser incompleto, inacabado, sabedor que ignora muito mais do que sabe. Seu valor positivo está em que tem consciência desse fato e se comporta em consonância com ele, não buscando negá-lo, ocultá-lo ou disfarçá-lo.É evidente que o educador tem um avanço na escala de conhecimentos sobre o educando, mas isso não significa necessariamente maior consciência da realidade. O saber material possuído não se identifica ainda com o exercício social do saber, que é sempre produtivo de novo e original saber. Para o educador ingênuo o saber é concebido como algo que deve ser transmitido como um volume de mão em mão.

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Mas o saber só se converte em instrumento de cultura quando é ele mesmo fecundo, ou seja, incorpora na consciência daquele que o possui a compreensão de sua origem, e se destina a frutificar em novas obras de cultura.O educando, por suposição, está privado do saber que vai adquirir, mas não da consciência de sua situação, de julgamento de si e da qualidade do professor que lhe dará a instrução (ainda quando tal consciência não seja clara). Deste modo pode ser mais culto que seu professor. Compete a este ser capaz de reconhecer tal possibilidade, de julgá-la normal e se beneficiar dela pelo encontro com a consciência do aluno.

A reciprocidade da relação educacional: o educando como educador.

Conceito crítico da educação como diálogo entre os educadores. A relação educacional é essencialmente recíproca, é uma troca de experiências, um diálogo. O educador ingênuo não reconhece no aluno sua qualidade de sujeito e por isso julga ser o único sujeito do ato pedagógico. Com isso corrompe e deixa incompreendido tudo o que é essencial a este ato: o encontro de consciências.Essa tese não é apenas teórica e somente utilizável na esfera da filosofia da educação. É, antes, uma concepção de conseqüências diretamente práticas. Porque se o educador a admite, seu comportamento em relação ao aluno, especialmente ao adulto, torna-se inteiramente diverso do que se julgasse que sua função se resume a executar um solilóquio instrutivo. Altera-se a perspectiva do processo pedagógico e o professor, em conseqüência, passará a adotar métodos de ensino que são ditados pelo reconhecimento de que sua atividade oferece dados do saber, mas que estes, enquanto tais, não são a própria cultura, porém elementos da cultura.O educando, por seu lado, sendo reconhecido como sujeito se comporta como tal. Sente sua relação com o professor como de cooperação num ato comum. Não se concebe mais como o participante passivo da operação educacional. Pode dar expansão a seus estímulos interiores de auto¬mação, ao mesmo tempo em que se sente atuante sobre o processo social pelo fato de estar se alfabetizando, instruindo-se.

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Na situação oposta, o adulto analfabeto se sente como objeto da solicitude social, que busca "salvá-lo" das "trevas" da ignorância. Por isso, sua atitude é a de um indivíduo que se julga meramente receptivo e que acredita só ter que receber uma dádiva, uma mercê da sociedade, sem poder influir em nada sobre ela. Mas, se adquire a consciência crítica de seu estado no diálogo com a consciência crítica do educador, verifica que está mudando sua sociedade, sua realidade, a essência de seu país pelo fato de estar mudando a si mesmo. Em lugar de estar sendo preparado para a sociedade, está, ao contrário, preparando a sociedade para si.De fato, a sociedade na qual um indivíduo se alfabetiza ou se instrui em grau mais elevado já não é a mesma que anteriormente. Se o educador dá ao aluno adulto a certeza de que parte dele mesmo, como sujeito, a aquisição do saber, a concepção do mundo que o educando produz será necessariamente crítica.O educador crítico deverá dar a compreender ao aluno que se está educando da mesma maneira que ele (o educador) se educou. Porque, para a consciência ingênua do aluno o professor é um ser diferente, portador de um dom celeste inexplicável. Isso ocorre porque não é levado pelo educador a refletir sobre o processo de educação que criou o próprio educador. Se se faz este esclarecimento, o aluno não sentirá nenhuma inferioridade, pois verifica que está simplesmente refletindo aquela aprendizagem que já aconteceu a outro, e que deu a este último a capacidade de educador. Deste modo, o educando se reconhece como um educador potencial, ou melhor, compreende que está sendo educado não como ignorante, como permanente educando, mas como possível educador, e de fato já em ação, a iniciar por sua mudança.O importante é deixar claramente estabelecida essa tese fundamental da teoria pedagógica crítica: no processo de educação não há uma desigualdade essencial entre dois seres, mas um encontro amistoso pelo qual um e outro se educam reciprocamente.