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Silvana Maria de Souza Nery
A VIDA COMO ELA É...: O CONTO DIABÓLICA
E SUAS TRANSCODIFICAÇÕES PARA A TELEVISÃO E PARA O
CINEMA
Dissertação apresentada ao curso de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade de Marília para obtenção
do título de mestre.
Área de concentração: Mídia e
Cultura. Linha de pesquisa: A ficção
na mídia.
Sob orientação da Professora Doutora
Elêusis Mirian Camocardi
MARÍLIA
2005
Dedico este trabalho a
minha mãe Leila, a minha
irmã Mônica por toda a
motivação e incentivo.
Em especial, ao meu
marido, Marcelo por viver
intensamente esse
“triângulo amoroso” que foi
desenvolver essa
dissertação de mestrado.
E aos meus queridos
sobrinhos Gustavo, Ana
Beatriz e Carolina.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que de alguma forma colaboraram para a realização deste trabalho,
mas em especial: a Dra Elêusis Miriam Camocardi, pela orientação, atenção,
dedicação e amizade.
Ao Professor Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva, por nos brindar com aulas
maravilhosas.
Aos meus amigos da Unimar Lucimar, Gil e Vera com os quais tive o privilégio de
conviver, apreender e compartilhar sonhos comuns.
A minha amiga e professora Luci , por ter sempre partilhado dos meus esforços nessa
jornada.
Aos meus sogros Carmo e Mariza por toda a colaboração financeira.
RESUMO
A pesquisa propõe-se a identificar múltiplas leituras possíveis a partir de um
texto literário. Para tanto, efetuou-se uma leitura interpretativa do conto Diabólica, e
verificou-se o processo de transcodificação para a televisão e para o cinema,
buscando demonstrar também que a obra de Nelson Rodrigues continua atual na
expressão e na temática. A presente pesquisa utilizou a metodologia da abordagem
comparativa do texto verbal com as adaptações televisiva e cinematográfica,
demonstrados a partir do método hipotético dedutivo. Acreditamos que essa pesquisa
possa interessar aos estudiosos da comunicação, no que se refere às adaptações de
obras literárias para os meios de comunicação de massa em questão. Diabólica
compõe o ciclo de A Vida Como Ela É..., coluna diária do jornal carioca Última
Hora, escrita por Nelson Rodrigues no período de 1951 a 1961, com uma linguagem
enxuta, diálogos ágeis e personagens bem delineadas. Estruturadas inicialmente
como crônicas, mas ficcionalmente como contos, as narrativas giram em torno de
uma das eternas obsessões do escritor: a traição. Na transcodificação para a televisão,
a minissérie A Vida Como Ela É..., foi produzida e veiculada pela Rede Globo, em
1996, registrada em película cinematográfica, e o episódio Diabólica recebeu o título
de O Anjo. O episódio televisivo é fidedigno ao conto, é praticamente o conto “ipsis
literis”. Apresentando um formato de exibição inédito, a minissérie foi inserida
dentro do programa dominical Fantástico; essa inserção, num programa elitista e
conservador, pode ser considerada como uma grande ironia, uma vez que nosso autor
tinha reputação de imoral. No cinema, os episódios de A Vida Como Ela É... ganham
maior força expressiva, porque as personagens adquirem características de seres
humanos reais, uma vez que os atores lhes insuflam alma e sentimentos. O filme
Traição, de 1997, composto pela trilogia O Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro!
retratam as relações amorosas em tramas urbanas do Rio de Janeiro nos anos 50, 70 e
90, demonstrando que a obra de Nelson Rodrigues continua vibrante, provocativa e
moderna, capaz de produzir incessantemente novas leituras.
Palavras-chave – conto, televisão, cinema, adaptação e transcodificação.
ABSTRACT
This research has as main purpose the identification of the possible multiple
readings coming from a literary text. An interpretative reading was done in the short
story written by Nelson Rodrigues, Diabólica and the transcodification process into
the television and movies, aiming, also, the demonstration of Nelson Rodrigues’
updated production, its expression and thematic.This study uses the comparative
methodological approach between the oral text and the cinematographic and
television adaptations, shown through the deductive hypothetical method. It is
believed that this study may call the communication experts’ attention, concerning
on the adaptation of literary productions to the discussed means of mass
communication. Diabólica comprehends the A Vida Como Ela É... cycle, a daily post
of the carioca press Última Hora, written by Nelson Rodrigues from 1951 to 1961,
containing a clear language, dynamic dialogues and very well outlined characters.
Previously structured as chronicles, but fictionally as tales, the narrations go around
the author’s eternal obsession: the betrayal. In the act of transcodification into the
TV, the serial A Vida Como Ela É... was produced and broadcasted by Rede Globo in
1996. Made into film, the episode Diabólica received the title O Anjo. The telly
episode is trustful to the tale. It is presented in a new format of exhibition, the serial
has been shown in the Fantástico; this insertion into a very conservator program can
be considered as a great irony, once the author used to have an immoral reputation.
In the movies, A Vida Como Ela É... episodes gain much more expressivity because
the characters get real human being idiosyncrasy, as the actors play a role putting
into them soul and feelings. The 1997 film, Traição, composed by the trilogy O
Primeiro Pecado, Diabólica and Cachorro! pictures love relations in Rio de Janeiro
urban plot in the 50’s, 70’s and 90’s, demonstrating that Nelson Rodrigues work is
still thrilling, tempting and modern and also able to produce new readings.
Key-words – story, television, cinema, adaptation, transcodification.
LISTA DE FIGURAS PÁGINA
1 Caricatura de Nelson Rodrigues 26
2 Santa Rosa, Ziembinski e Nelson na de estréia de Vestido de Noiva 27
3 Cena da peça Vestido de Noiva 28
4 Vinheta de Abertura da minissérie global A Vida Como Ela É... 73
5 Cena da minissérie global: Dagmar e Geraldo na noite de noivado 75
6 Cena da minissérie global: primeira aparição da personagem Alicinha 75
7 Cena da minissérie global: Alicinha seduzindo Geraldo 77
8 Cena da minissérie global: Geraldo estrangulando Alicinha 77
9 Cartaz promocional do filme Boca de Ouro, 1962 81
10 Cartaz promocional do filme A Falecida, 1965 81
11 Cartaz promocional do filme A Dama do Lotação, 1978 82
12 Cartaz promocional do filme Bonitinha mas ordinária, 1980 82
13 Cartaz promocional do filme Traição, 1997 82
14 Cena do filme:Geraldo com Alicinha morta em seus braços 89
15 Cena do filme: Alicinha primeira aparição, ainda uma criança 91
16 Cena do filme: A angelical Alicinha rodopiando na sala 92
17 Outro angulo da cena descrita acima 92
18 Outro angulo da cena descrita acima 92
19 Outro angulo da cena descrita acima 92
20 Cena do filme: tomada externa da chegada de Geraldo na delegacia 92
21 Cena do filme: tomada interna da chegada de Geraldo na delegacia 92
22 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
23 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
24 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
25 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
26 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
27 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93
28 Cena do filme: festa de noivado de Geraldo e Dagmar 97
29 Cena do filme: a festa de noivado de Geraldo e Dagmar 97
30 Cena do filme que marca a delimitação de tempo 100
31 Cena do filme: outro indício de tempo desfile de fantasias 100
32 Cena do filme: A angelical Alicinha entrando na sala 100
33 Cena: Geraldo acompanhando a entrada de Alicinha com o olhar 100
34 Cena do filme: Dagmar, a mãe e Alicinha conversando 100
35 Cena do filme: o pai beijando a mão de Alicinha 100
36 Cena do filme: Alicinha falando para Geraldo que amanhã sairá de diaba 100
37 Cena do filme: mulher de costas fantasiada de diaba 100
38 Cena da minissérie global: Alicinha, exibindo seu maiô novo 101
39 Cena do filme: segundo desfecho 101
40 Outro momento da cena do segundo desfecho 101
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10
I. A VIDA COMO ELA É...: O LIMIAR ENTRE A CRÔNICA E O CONTO................... 13
1. A CRÔNICA...................................................................................................................... 13
2. O CONTO.......................................................................................................................... 21
2.1 A LINGUAGEM.............................................................................................................. 22
2.2 A TRAMA........................................................................................................................ 24
2.3 TEMPO, MODO E VOZ.................................................................................................. 24
2.4 O COMEÇO E O EPÍLOGO NO CONTO...................................................................... 26
3. A CRÔNICA E O CONTO DE NELSON RODRIGUES................................................. 26
3.1. CRÔNICAS ESPORTIVAS............................................................................................
32
3.2. CRÔNICAS SOCIAIS E COMPORTAMENTAIS........................................................ 33
3.3. CRÔNICAS MEMORIALISTAS................................................................................... 33
4. A VIDA COMO ELA É...: A CRÔNICA QUE VIROU CONTO.................................... 34
5. A VIDA COMO ELA É...: O CONTO DIABÓLICA........................................................ 35
II. DIABÓLICA: DAS TRAGÉDIAS DA ÉPOCA CLÁSSICA ÀS
TRAGÉDIAS DA VIDA CONTEMPORÂNEA .......................................................... 40
1. TRAGÉDIA. TRAGÉDIAS TEBANAS. TRAGÉDIAS RODRIGUEANAS.................. 40
2. ELEMENTOS DO TRÁGICO APLICADOS AO CONTO E SUA
TRANSCODIFICAÇÃO PARA A TV E PARA OCINEMA............................................ 48
3. TRAGÉDIAS CARIOCAS: UMA LINGUAGEM INOVADORA.................................. 57
III. NELSON RODRIGUES E A TELEVISÃO BRASILEIRA ...................................... 60
1. A TELEVISÃO BRASILEIRA.......................................................................................... 60
1.1. A VISÃO RODRIGUEANA SOBRE A TV BRASILEIRA.......................................... 61
1.2. VESTIDO DE NOIVA UM CLÁSSICO DA TELEVISÃO............................................ 69
2. UM BREVE HISTÓRICO DAS MINISSÉRIES GLOBAIS............................................ 70
3. A MINISSÉRIE A VIDA COMO ELA É...: O ANJO......................................................... 73
IV. DA TELEVISÃO AO CINEMA: DE ANJO À DIABÓLICA ..................................... 78
1. TEATRO RODRIGUEANO: INSPIRAÇÃO NO CINEMA............................................ 78
2. AS ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS RODRIGUEANAS................................. 80
3. TRAIÇÃO EM FOCO: DIABÓLICA................................................................................. 82
3.1 ANÁLISE DO DISCURSO IMAGÉTICO...................................................................... 873.1.1. MONTAGEM.............................................................................................................. 873.1.2. FOTOGRAFIA............................................................................................................. 903.1.3. DIREÇÃO.................................................................................................................... 954. A TRANSCODOFICAÇÃO DO CONTO E DO MINIDRAMA
PARA O CINEMA........................................................................................................... 97
CONDIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 103
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 105
ANEXO A - O CONTO DIABÓLICA
ANEXO B - DVD COM OS EPISÓDIOS: O ANJO E DIABÓLICA
I - A VIDA COMO ELA É...: O LIMIAR ENTRE A CRÔNICA E O CONTO
1. Crônica
A palavra “crônica” origina-se do grego chronikós (relativo ao tempo) e do
Latim crhonica. No início da era cristã o vocábulo designava uma lista ou relação de
acontecimentos ordenados cronologicamente. A crônica registrava os eventos sem
aprofundar-se nas causas, situando-se entre os anais e a História.
Consagrou-se depois do século XII, na França, Inglaterra, Portugal e
Espanha, quando se aproximou da História mostrando acentuados traços de ficção
literária. A partir da Renascença o termo “crônica” cedeu vez a “História”. Livre da
conotação histórica, o vocábulo passou a revestir-se do sentido literário, a partir do
século XIX, para finalmente encontrar seu significado jornalístico, como o
conhecemos hoje.
Sobre a palavra “crônica” Paulo Rónai (1971) escreveu:
Para qualquer brasileiro a palavra crônica tem sentido claro einequívoco, embora ainda não dicionarizado: designa umacomposição breve, relacionada com a atualidade, publicada emjornal ou revista. De tal forma esse significado está generalizadoque só mesmo os especialistas em historiografia se lembram deoutro sentido bem mais antigo, o de narração histórica em ordemcronológica. (p.145)
Para José Marques de Melo, no Brasil, a crônica é o relato poético do real,
situada na fronteira entre a informação da atualidade e a narração literária. Um
gênero plenamente definido.
Conforme esclarece Paulo Rónai, no jornalismo mundial a crônica está mais
vinculada ao relato cronológico da narrativa histórica. Sua natureza é controvertida e
varia de país para país. (Cf. apud José Marques de Melo, 1985, p.111). Segundo José
13
Marques de Melo(1985) “Foi com esse sentido de relato histórico que a crônica
chegou ao jornalismo.” (p.111)
Mas é no século XIX, como folhetim, que a crônica surge no jornalismo
brasileiro, publicada junto com pequenos contos, artigos, ensaios breves, poemas em
prosa. Um espaço reservado nos jornais para comentar com os leitores sobre os
acontecimentos da semana. Nomes ilustres foram pouco a pouco transformando o
folhetim, tornando-o um gênero autônomo no jornalismo, transformando-o na
crônica moderna.
Antes de prosseguirmos, convém abrir parêntesis para tecermos algumas
considerações sobre a crônica e a origem e o significado da palavra “folhetim”.
A crônica é um gênero nascido do jornal no começo do século XVIII.
No começo do século XIX, na França, o termo feuilleton designava em
essência o espaço vazio na geografia do jornal, destinado ao entretenimento. Era
sinônimo de rez-de-chaussée (rés-do-chão = rodapé), e de variétés (variedades).
Assim feuilletons eram também os artigos de crítica, crônicas resenhas, etc. No final
de 1830, a palavra ganhou mais um significado, passando a nomear todo e qualquer
romance impresso em feuilletons, ou seja, em partes.
Coube ao contista e dramaturgo Martins Pena a responsabilidade de inaugurar
a crônica folhetinesca seriada no Brasil, oferecendo textos semanais, restritos a
espetáculos líricos, para o rodapé do Jornal do Commercio.
Em 1852, a crônica de folhetim conheceu o sucessor de Martins Pena, o jornalista
Francisco Otaviano de Almeida Rosa, que se dedicou a partir dessa data, até 1854, à
escrita de um conjunto de crônicas de assuntos variados no mesmo rodapé do Jornal
14
do Commercio, inaugurando a chronique divers que encontrou numerosos seguidores
na imprensa brasileira.
Com essa estréia, todo periódico que prezava obter audiência teve que buscar
nomes de jornalistas e escritores para assinar uma coluna do citado gênero. Como
conseqüência, o espaço abriu caminho para os postulantes do universo das letras, que
galgaram ou fortaleceram os degraus rumo à ficção ou a outras formas literárias
através do exercício dessa escrita.
Dos autores de destaque nacional que corresponderam a essa assertiva
listamos José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, França Júnior, Olavo Bilac e
Machado de Assis, entre outros.
Afrânio Coutinho afirma que a crônica adquire personalidade com Machado
de Assis, o qual se consagrou no gênero, contribuindo consideravelmente para a sua
evolução.
A crônica, como gênero consagrou-se no Brasil a partir de 1930, com nomes
como o de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drumond e Ruben Braga.
Este, de certo modo, foi escritor exclusivo desse gênero.
A partir dessa época o desenvolvimento da imprensa assume proporções
empresariais, conduzindo a uma diversificação do seu conteúdo e à ampliação das
seções permanentes, para atender a um leitor mais exigente. Nesse âmbito, a crônica
adquire um lugar especial, sendo o cronista o intérprete das mudanças que ocorrem
na sociedade.
A crônica se ajusta à nossa sensibilidade de todo dia. Retratando a vida, a
crônica serve a vida de perto. Despretensiosa, ela se humaniza e aprofunda seu
significado. Ajuda-nos a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das
15
pessoas, quase sempre com humor. Sua perspectiva não é nobre, nem pomposa, mas
do simples dia-a-dia.
Na sua fórmula moderna, a crônica pode discorrer sobre um fato pequeno,
uma notícia, um toque de humor, uma pitada de poesia e representa o seu encontro
mais puro com a vida real e com seu cúmplice favorito, o leitor. Mas, apesar de sua
leveza e aparente despreocupação, apesar de ser uma espécie de conversa sem maior
conseqüência, a crônica penetra fundo no significado dos atos e sentimentos do
homem, aprofundando a crítica social.
Aprende-se muito enquanto se diverte e os traços simples, graciosos e breves
da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa,
que, divertindo, atrai e faz refletir, amadurecendo nossa visão da realidade. Por meio
de um zigue-zague de aparente conversa fiada, a crônica pode fazer uma constatação
de fatos sociais, econômicos e políticos, com doses de ironia trágica e descrição de
retratos psicológicos.
Apesar de a rapidez ser uma característica da crônica, ela é uma somatória de
pesquisa, seleção e inspiração. Cândido (1979/80) afirma que:
Embora não tenha preconceitos temáticos, a crônica nãoaceita qualquer matéria: dentro de seu campo de ação - o acidental(ou circunstancial episódico) captado quer num flagrante deesquina, quer nas palavras de uma criança ou incidente doméstico -a crônica deve escolher um fato capaz de reunir em si mesmo odisperso conteúdo humano. (p.12)
Só assim ela pode cumprir as finalidades de informar, ensinar, comover edeleitar.
Existem quatro tentativas de classificar a crônica. Luiz Beltrão utiliza o
critério jornalístico, Afrânio Coutinho toma como base a tipologia literária, Massaud
16
Moisés procura uma correspondência com os gêneros literários e Antônio Candido
guia-se pela estrutura narrativa.
Para Luiz Beltrão, as crônicas podem ter duas classificações: quanto à
natureza do tema e quanto ao tratamento.
A natureza do tema leva a três espécies: crônica geral, crônica local e crônica
especializada.
A crônica geral aborda sob uma forma gráfica determinada ou sob uma
epígrafe geral os assuntos mais variados, ocupando espaço fixo no jornal. É
conhecida também como coluna ou seção especial.
A crônica local esta sempre sob a mesma epígrafe em página e coluna fixa,
fala da vida cotidiana da cidade, atuando como um tipo de receptor da opinião da
comunidade onde se insere o jornal. É também chamada urbana ou da cidade.
Exemplo: a coluna A Vida Como Ela É...,escrita por Nelson Rodrigues para o jornal
carioca Última Hora, no período de 1951 a 1961.
A crônica especializada integra a página ou seção determinada, com
apresentação gráfica do texto diferente das demais matérias e focaliza assuntos
referentes a um determinado campo específico, como política, esportes, economia
entre outros. É conhecida também como comentário.
Quanto ao tratamento dado ao tema temos três modalidades: analítica, sentimental e
satírico-humorística.
A analítica é a crônica em que predomina a dialética e a linguagem é sóbria,
elegante e enérgica. Os fatos são expostos com brevidade e analisados com
objetividade. O cronista dirige-se à inteligência ao invés do coração.
17
A crônica sentimental sob esse tema predomina o apelo à sensibilidade do
leitor, a linguagem é vivaz, de ritmo ágil e os fatos apresentam-se a partir de aspectos
pitorescos, líricos, épicos, capazes de comover e influenciar a ação. O cronista apela
para a sensibilidade.
A crônica satírico-humorística apresenta linguagem com duplo sentido,
cheia de ambigüidade com o objetivo de criticar, ridicularizando ou ironizando fatos,
ações, personagens, com a finalidade de advertir e entreter o leitor.
Já Afrânio Coutinho, que toma como base a tipologia literária, define cinco
tipos de crônicas: a narrativa, a metafísica, a poema-em-prosa, a comentário e a de
informação.
A crônica narrativa é uma estória ou episódio próximo do conto
contemporâneo, que não necessita obrigatoriamente de começo, meio e fim.
A crônica metafísica envolve reflexões sobre acontecimentos e pessoas de
cunho mais ou menos filosófico.
A crônica-poema-em-prosa tem conteúdo lírico e expressa os sentimentos
do cronista ante o espetáculo da vida, das paisagens ou de episódios significativos.
A crônica-comentário faz uma crítica de acontecimentos díspares, tomando
o aspecto de “bazar asiático”.
A crônica-informação relata os fatos, fazendo ligeiros comentários
impessoais
Baseado no ponto de vista da ambigüidade do gênero, Massaud Moisés estabelece
dois tipos de crônica: crônica-poema e a crônica-conto.
A crônica-poema é uma prosa emotiva que chega ao verso.
18
A crônica-conto ocorre quando o cronista narra um acontecimento que
provoca sua atenção como se fosse um conto, sendo ele apenas o estoriador.
Exemplo: As crônicas-contos da coluna A Vida Como Ela É... de Nelson Rodrigues.
Já Antônio Cândido propõe uma classificação destacando as diferenças entre
os modernos cronistas brasileiros: crônica-diálogo, crônica narrativa, crônica
exposição poética e crônica biográfica lírica.
Na crônica-diálogo o cronista e seu interlocutor se revezam trocando pontos
de vista e informações. A crônica-narrativa apresenta alguma estrutura de ficção,
semelhante ao conto. Já a crônica exposição poética é uma divagação sobre um fato
ou personalidade, uma série de associações. A crônica biográfica lírica apresenta
uma narrativa poética da vida de alguém.
Segundo Marques de Melo (1985) não só os teóricos da literatura e do
jornalismo se preocuparam em classificar a crônica; os cronistas também:
Numa série de crônicas sobre as “definições da crônica”,Luis Fernando Veríssino oferece um esquema classificatório,tomando por ponto de referência a qualidade. Ele divide a crônicaem: a)crônica, b) croniqueta, c)cronicão, d) cronicaço. Comoidentificar cada subdivisão? Crônica é qualquer crônica, ou umacrônica qualquer. Croniqueta é o nome científico da crônica curta,como pode parecer. (...) Cronicão é a crônica grande, substanciosa,com parágrafos gordos. (...) Grande crônica é o cronicaço. Ocronicaço é consagrador; seu autor sai na rua e deixa um rastro decochichos - É ele, é ele. (p.118)
Ao longo do tempo a crônica tem informado, comentado e divertido,
buscando uma linguagem leve e descompromissada, afastando-se da lógica
argumentativa ou crítica política para penetrar na poesia. Ela é o relato poético do
real, e isso a torna ambígua e põe a descoberto a briga antiga e mal resolvida que
existe entre literatura e jornalismo.
19
Marques de Melo (1985) afirma que ser a crônica um gênero jornalístico é
ponto pacífico.
Produto do jornal, porque dele depende para a suaexpressão pública, vinculada à atualidade, porque se nutre dosfatos do cotidiano, a crônica preenche as três condições essenciaisde qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade edifusão coletiva. (p.118)
Da mesma forma, Luiz Beltrão afirma que “a crônica é a forma de expressão
do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados
psicológicos pessoais e coletivos.”(p.66)
A crônica se equilibra entre o efêmero do cotidiano e o imortal do fato literário,
ambigüidade que a transforma em um gênero difícil de ser classificado ou analisado,
quer no mundo jornalístico, quer no universo literário.
Segundo Marques de Melo as classificações que aceitam a crônica como
gênero jornalístico, longe de honrá-la, a colocam na rabeira, praticamente
desqualificando-a, pois, depois dela só as cartas do leitor. No domínio da literatura a
classificação não é muito melhor. Quando, em meados do século XX, a crônica
começa a ser vista pelos escritores, ela assume um caráter de relato poético do real,
colocando-se na fronteira entre informação da atualidade e narração literária, e assim
pode se tornar, eventualmente, um gênero híbrido, jornalístico-literário. Como
gênero jornalístico é um comentário, gênero nobre e, como literatura, é poesia e
prosa.
Para Marques de Melo (1987) a crônica foge a todas as regras do jornalismo:
(...) embora lide com informações jornalísticas, se realize numaedição diária e efêmera, utilize a linguagem coloquial. Ela nãoparticipa do ambiente do jornal, escapa do processo de produçãojornalística convencional, independe da formação profissionaltécnica, não obedece às determinações de tempo e espaço típicas,foge das regras de interesse informativo convencionalmenteestabelecidas para o jornalismo. (p.86)
20
Para Beltrão, as fontes utilizadas pelo cronista para realizar seu trabalho são
as idéias que florescem na comunidade; a informação sobre fatos e situações; a
própria notícia; as emoções pessoais.
A crônica deve interpretar o tema utilizando argumentos lógicos, sugestivos e
persuasivos, de modo ordenado e que leve o leitor a aceitar a opinião final.
O aspecto informativo ou noticioso da crônica vem na introdução, onde o
cronista coloca o tema de forma quase sempre sintética (quem, que, quando). O
raciocínio e as idéias vêm na argumentação, desenvolvendo-se numa seqüência
ritmada, o que permite mais liberdade criadora.
O cronista pode utilizar-se de citações, máximas, provérbios, metáforas,
alegorias, sátira (ironia, humor), trocadilhos.
Sobre a fonte, a estrutura e a redação da crônica, Beltrão (1980):
Matiza o texto com o jogo do maravilhoso - que oferece sugestãode quimeras, sonhos, aspirações cristalizadas em riquezas,conquistas, vitórias e feitos extraordinários; com o jogo do comum- extraindo dados do cotidiano, do terra-a-terra, das idéias simplesaceitas por todos; ou com revelações interiores dos própriossentimentos mostrando-se sincero, melancólico, cético,apaixonado, rebelde, indiferente, seguro, de acordo com a tônicareclamada pelo argumento. Deve, ainda, aqui, o cronista prevenir-se contra argumentos contrários ao seu ponto de vista paraantecipá-los e reduzi-los logo. (p.70)
Por fim, na conclusão é emitido o juízo do cronista sobre o tema, que foi tão
bem exposto e debatido, que se torna incontestável, não admitindo desacordo.
Assim a crônica terá alcançado seu propósito quando os efeitos dos seus juízos dão
força às correntes de opinião, conduzindo à ação.
2. O Conto
Seguindo a forma tradicional do gênero conto é um dos gêneros literários da
prosa de ficção. Freqüentemente contam-se a amigos histórias sobre acontecimentos
21
da vida diária. Do mesmo modo, podem-se contar anedotas para fazer um público rir
ou para explicar melhor o que se quer dizer. Tais modalidades de narrativa possuem
um íntimo parentesco com o conto, mas este tem vários elementos que lhe dão
características próprias. Um conto contém uma única célula dramática e apresenta
unidade de tempo, espaço e ação; todos os detalhes que aparecem no conto
desempenham um papel preciso e ampliam seu efeito.
A objetividade é um dos seus ingredientes, mas segundo Massaud Moisés o
conto é uma história completa e fechada. Conter uma única célula dramática significa
um só conflito, uma só ação. Poucas são as personagens em decorrência das unidades
de ação, tempo e lugar. Ainda em conseqüência das unidades que governam a
estrutura do conto, as personagens tendem a ser estáticas, porque são surpreendidas
em tempo de clímax de sua existência. O contista as imobiliza no tempo, no espaço e
na personalidade. Apenas uma faceta do caráter das personagens é apresentada no
conto, devido à sua brevidade. Essas são as características estruturais que
diferenciam o conto de outras espécies narrativas.
Muitas vezes o público ledor menos experiente caracteriza o conto por sua
extensão, dizendo ser este uma forma narrativa menor que o romance e a novela;
contudo, não é só isso que o diferencia das outras formas narrativas. Sendo assim,
podemos dizer que o conto é, do prisma de sua história e de sua essência, a matriz da
novela e do romance.2
2.1. A Linguagem
A linguagem no conto deve ser objetiva e utilizar metáforas de imediata
compreensão para o leitor; despe-se de abstrações e da preocupação com o
2 Massaud Moisés, A Criação Literária . 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1968
22
rebuscamento. Não apresenta segundas intenções e a ações presentes devem
predominar.
O componente mais importante do conto por concentrar em si a
dramaticidade é o clímax do conflito. Os conflitos, os dramas residem na fala das
pessoas, em discurso direto. Como signos de sentimentos, de idéias e emoções, as
palavras podem construir ou destruir. Sem diálogo torna-se impossível qualquer
forma completa de comunicação. Segundo Massaud Moisés “O meio ideal de
comunicação é a palavra, sobretudo na forma de diálogo.” ( 1968, p.102)
O diálogo é a base expressiva do conto: diálogo direto ou discurso direto,
diálogo indireto ou discurso indireto e diálogo (ou monólogo) interior
No conto, predomina o diálogo direto ou discurso direto que permite uma
comunicação imediata entre o leitor e a narrativa. O diálogo indireto ou discurso
indireto é quando o contista resume a fala das personagens em forma narrativa. Se
usado em excesso, o conto falha na sua finalidade.
Já o diálogo ou monólogo interior é aquele que se passa dentro, no mundo
psíquico da personagem; esta fala consigo mesma antes de se dirigir a outrem. Trata-
se de um requintado expediente formal, de complexo e difícil manuseio.
Outros expedientes lingüísticos são a narração e a descrição, que devem
aparecer em quantidade reduzida, proporcional ao diálogo.
O conto não se preocupa em erguer um retrato completo das personagens,
mas centra-se no conflito entre as personagens. O drama mora nas pessoas, não nas
coisas e nem na roupagem. Por isso a descrição e a narração servem para situar o
conflito no tempo, no espaço e para apresentar as personagens com breves
características. É também através da narração que o narrador/focalizador revela sua
23
intrusão. Através do uso da narração apresenta a condensação do tempo, a síntese
dramática. Semanas, meses ou anos são reduzidos a uma ou duas linhas de narração.
Há um corte temporal e espacial para um mais rápido desenvolvimento da trama.
2.2. A Trama
A trama do conto tradicional é linear, objetiva, e a sua cronologia é a do
relógio, de modo que o leitor vê os fatos se sucederem numa continuidade
semelhante à da vida real. O conto, ao começar, já está próximo do epílogo, devido á
sua brevidade, por isso a precipitação domina o conto desde a primeira linha. No
conto, a ação caminha claramente à frente. Todavia, como na vida real, que pretende
espelhar, de um momento para o outro deflagra o estopim e o drama explode
imprevistamente. A grande força do conto consiste no jogo narrativo para prender o
interesse do leitor até o desenlace, que é, regra geral, um enigma.
O final enigmático deve surpreender o leitor, deixar-lhe uma semente de
meditação ou de pasmo perante a nova situação conhecida. A vida continua e o conto
se fecha inseqüente. Casos há em que o enigma vem diluído no decorrer do conto.
Neste caso ele se aproxima da crônica ou corresponde a episódio de romance.
2.3. Tempo, Modo e Voz
A análise do discurso narrativo, segundo Gerard Genette, fundamenta-se,
essencialmente, no estudo das relações entre narrativa e estória, entre narrativa e
narração entre narrativa e diegese. Segundo Suely F.V. Flory “Esta posição leva-o a
propor uma divisão desse campo de estudo, classificando os problemas da narrativa
em três categorias: Tempo, Modo e Voz”. (1993, p.26)
24
Na categoria do Tempo, Gerard Genette observa as relações entre tempo da
estória e tempo do discurso, levando-nos a analisar a narrativa como uma seqüência
temporal dúplice: o tempo dos acontecimentos narrados (diegése) e o tempo da
narrativa ou discurso - um pseudo-tempo tomado como verdadeiro – ou seja, o tempo
do significado e o tempo do significante. Essa distinção não se propõe como divisão,
mas como inter-relacionamento, uma vez que a diegése - universo do discurso das
coisas ou dos acontecimentos - não existe senão no discurso de um narrador (voz),
sendo indissociável dos aspectos estilísticos formais e da própria natureza do
discurso.
As categorias de Modo e Voz envolvem os problemas de focalização (quem
vê?) e de narração (quem narra?) em seus diversos aspectos. Modo engloba a
perspectiva ou ponto de vista (quem vê) mas ainda a distância (distinção entre
“showing” e “telling”).
Pertence à Voz o estatuto do narrador (quem fala?), o problema do tempo da
narração (anterior, ulterior, simultânea e intercalada) e os diferentes “níveis
narrativos” (relação entre narração e narrativa).
As variações com relação à seqüência da disposição da história na narrativa
constituem a Ordem, gerando as anacronias narrativas: analepse (relativa a
eventos passados) e prolepse (relativa a eventos posteriores à narração). Gerard
Genette propõe ainda quatro ritmos narrativos fundamentais: pausa, cena, sumário e
elipse.
A pausa é segmento do discurso sem ação. (No cinema, as panorâmicas
descritivas).
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A cena é a paridade entre a duração narrativa e a duração diegética. Exemplo:
plano seqüência ou cena dialogada, montada campo-contracampo;
O sumário é o resumo do tempo diegético em um tempo narrativo menor,
preparando o efeito da elipse. Elipse é uma omissão narrativa sobre eventos
ocorridos na diegese. As elipses subdividem-se em: explícitas (“Vinte anos
depois...”); e implícitas (lacuna cronológica ou falha na continuidade).
2.4. O Começo e o epílogo no conto
O epílogo do conto é o clímax da história. Enigmático por excelência, deve
surpreender o leitor pelo seu caráter imprevisível. O contista deve estar preocupado
com o começo da história, pois das primeiras linhas depende o desenvolvimento do
conto e o modo como deve terminar.
3. A Crônica e o Conto de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues dramaturgo, romancista e jornalista
foi o mais importante autor do teatro brasileiro no
século XX. Sua vida inteira foi dedicada ao jornalismo
e um dom especial o levava a contar histórias. Foi um
ficcionista perfeito, e, em sua biografia, ele mesmo se auto-analisou: "Sou um
menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci
menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica
de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”
Sua vida pessoal foi marcada pela polêmica e pela tragédia, o que muito
influenciou o seu estilo de escrever. Prova disso foi a morte de seu irmão Roberto
26
assassinado dentro da redação do jornal Crítica por engano, por uma mulher que
desejava matar seu pai, Mário Rodrigues. Anos depois, em uma de suas crônicas,
Nelson Rodrigues afirmou: “Confesso: o meu teatro não seria como é, e nem eu
seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado
até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto”.
Em 1943, Nelson Rodrigues revolucionou os palcos brasileiros com Vestido
de Noiva. A peça foi montada pelo consagrado ator e diretor polonês Zbigniew
Ziembinski, que ao ler o texto disse: “Não conheço nada no teatro mundial que se
pareça com isso”. Na noite de estréia, 2205 espectadores assistiram ao espetáculo, e
a partir de então, Nelson Rodrigues foi considerado pela crítica como o fundador do
moderno teatro brasileiro, apesar de suas peças serem taxadas muitas vezes de
obscenas e imorais. No Brasil, a obra Vestido de Noiva foi a pioneira na liberdade de
expressão no país. O dramaturgo Nelson Rodrigues tornou-se o principal nome
ligado ao movimento expressionista, cujas características marcam a primeira fase de
sua produção.
Santa Rosa, Ziembinski e Nelsonna noite de estréia de Vestido de Noiva
27
Cena da peça Vestido de Noiva
Nelson Rodrigues influenciou a dramaturgia nacional com um estilo
incomparável. Ele é responsável pelas principais obras teatrais brasileiras em 40 anos
de atuação. Inspirou também vários filmes, como Engraçadinha; Perdoa-me por me
traíres; Toda nudez será castigada.
Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson escreveu a coluna diária A Vida
Como Ela É... para o jornal Última Hora. Os textos o consagraram por seu estilo
despojado de romantismo sentimental, refletindo a realidade nua e crua de uma
sociedade obsessiva pela moral e materialista. O adultério, a traição, o incesto e a
morte, temas que inovaram o processo de criação sob uma ótica moderna são
tratados com naturalidade.
Nelson também colaborou em outros jornais com crônicas nas quais
expressava pensamentos que depois ganhariam o vocabulário popular, como a
conhecida frase:”Toda unanimidade é burra” e os ditados: “óbvio ululante”, “ padre
de passeata”, “ freira de minissaia”.
Em 68 anos de vida, Nelson Rodrigues criou seis folhetins, mais de 2000
contos, incontáveis crônicas e um único romance. Não se tornou imortal e não
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ganhou o Nobel de literatura, mas permanece vivo nas páginas e na memória de
todos os que se enveredam na leitura de suas obras.
Apesar de suas maiores realizações pertencerem ao gênero dramático, é
inegável a importância de Nelson Rodrigues para a crônica brasileira, tanto por seu
estilo peculiar, marcado por uma quase inesgotável capacidade de criar frases de
efeito, quanto pelo modo polêmico e iconoclasta com que retratou os costumes do
Brasil urbano, no período compreendido entre as décadas de 1950 e 1970.
Em 1967 nascem as Confissões, publicadas em O Globo, onde manteve uma
coluna diária até sua morte, em 1980. Em Confissões, Nelson escrevia sobre política,
sociologia, e arte, num período conturbado da história brasileira.Foi nessas crônicas
que Nelson cunhou uma série de expressões que sobrevivem até hoje, como “doce
radical”, “óbvio ululante”, “de babar na gravata” entre outras. Já as suas famosas
frases acabaram ingressando numa espécie de memória cultural brasileira por serem
provocantes e até agressivas:
Num adultério, há homens que preferem ser o marido, não o amante. Os
homens adoram ser traídos.
Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor.
Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.
No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.
Aos dezoito anos, o homem não sabe nem como se diz bom-dia a uma
mulher.
O homem devia nascer com trinta anos feitos.
O amigo trai na primeira esquina. Ao passo que o inimigo não trai
nunca. O inimigo é fiel. O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente.
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Toda mulher gosta de apanhar.
O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é
umorçamento.
Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47
anos.
Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém
cumprimentaria ninguém.
Toda unanimidade é burra.
Outra característica marcante de suas crônicas é a apresentação em forma
tradicional de comentários sobre o cotidiano, isto é, como expressão direta das idéias
do escritor a respeito da vida. Ele introduz nelas personagens ficcionais e seres reais,
que coexistem e dialogam entre si ou com o próprio autor de acordo com o assunto
ou a ocasião. Na verdade, arquétipos da sociedade carioca: dondocas, políticos,
maridos traídos, meninas suicidas, milionários, guardadores de automóvel. Outras
personagens eram seus amigos mais chegados ou até mesmo seus desafetos. Entre
elas: o padre de passeata, Otto Lara Resende, Alceu de Amoroso Lima, A Cabra
Vadia, Palhares, a Úlcera e a Grã-Fina das Narinas de Cadáver.
• O Padre de Passeata: Variação do padre de sarau, que cita Marx e
Freud. Para Nelson, ele é geralmente protegido da anfitriã, e é a alma da festa, com
suas frases de efeito. A própria metáfora sugere o deslocamento do padre, do
ambiente sagrado, para a passeata, ambiente profano.
• Otto Lara Resende: Flor de obsessão, o jornalista mineiro era chamado
de o “gênio de uma obra só”. De vez em quando, aparecia na boca de alguém, que
indagava a Nelson: “Leste a coluna do Otto? Um gênio”. Uma vez, o Otto viajou
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para a Europa e, desde então, o Nelson o chamou de “ex-brasileiro”. Este, por sua
vez, quanto mais reclamava para não ser citado, mais aparecia nas crônicas. “Com o
Nelson, só a tiro!”, desabafou. O cronista ensinava: “Existem dois Ottos, um público
e outro, de terreno baldio: e poucos provam do legítimo escocês Otto secretíssimo”.
• Alceu de Amoroso Lima: Líder católico, teria sido indelicado ao falar
com Nelson Rodrigues ao telefone, perguntando ao jornalista: “você aí, nessa
lama...”. O rancor foi tamanho que o “nosso Tristão” virou o exemplo do opiniático
apologista do “poder jovem”. Nas crônicas de Nelson, que o rebatizou com o
pseudônimo de Tristão de Ataúde, ele é o exemplo do moralista mistificador e
demagogo. Reconciliariam-se, tempos depois, pelo menos na frente das câmeras...
• A Cabra Vadia: Sua musa inspiradora. Sempre que o Nelson fazia uma
das suas entrevistas imaginárias, ele conduzia o entrevistado até um terreno baldio, à
meia-noite, onde, durante a conversa, a única testemunha era a cabra vadia, que
ficava num canto, ruminando a paisagem. Acabou virando personagem real, quando
as entrevistas viraram atração de tevê. Tem até a fotografia clássica do dramaturgo,
passando pela rua com a cabra. Na coleira, é claro.
• Palhares: Vil e enganador, o Palhares nasceu nos folhetins do tempo da
Suzana Flag. Corresponde ao mito do cunhado. Conhecido como aquele que “não
respeita nem poste”, tem fixação na mulher do irmão. Seu sonho é agarrar à galega a
bem-amada, num canto da casa. “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o
amor”, diz Palhares, ao interpelar Nelson sob um sol de derreter catedrais.
• A Úlcera: Ela era um elemento fatal na vida de Nelson Rodrigues.
Ninguém foi tão promovido do que a sua úlcera, que era mais um acidente
psicossomático do que propriamente um personagem. Mas ela ganhou vida sob a
31
forma de prosopopéia. A úlcera religiosamente o acordava, às 3 de manhã. “É uma
dor amestrada, que vem sempre na hora certa”, disse ele, numa de suas Confissões.
Para aplacar a dor, ele tinha sempre “um prato de mingau, guardado de véspera”.
Segundo o autor, ela era tratada como uma “gata de luxo”.
• Grã-Fina das Narinas de Cadáver: Mais uma figura da mitologia
rodrigueana. Ao subir o elevador para as cadeiras sociais do Maracanã, ele teria
tropeçado nessa curiosa figura. Alta, altiva. De sua cadeira cativa, a observava de
longe. Era o olhar mais sincero. Sempre que os times entravam em campo, ela
cochichava para alguém, curiosa: “quem é a bola?”.
As crônicas rodrigueanas podem ser divididas em três categorias temáticas:
Crônicas esportivas, Crônicas sociais e comportamentais e Crônicas memorialistas
3.1 Crônicas Esportivas
A crônica esportiva era, mais precisamente, uma coluna sobre futebol,
intitulada À Sombra das Chuteiras Imortais. A coluna não tratava apenas de esporte,
e seria também uma transição do Nelson Rodrigues dramaturgo para o Nelson
Rodrigues cronista. Isso não quer dizer que ele deixa de ser ele mesmo ao mudar de
estilo: o gênero sempre seria um pretexto para ele voltar sempre aos mesmos temas.
O que interessava realmente a Nelson no futebol nunca foi o esporte em si. O estádio,
os jogadores e a multidão não passavam de um grande cenário, isto é, um pano de
fundo para o que representava, para ele, uma partida de futebol. Isso pode ser
observado no seguinte trecho da coluna À Sombra das Chuteiras Imortais:
Sempre digo, nas minhas crônicas, que a arbitragem normal ehonesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridadeirremediável. Só o juiz gatuno, o juiz larápio dá ao futebol uma
32
dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana. O espetáculodeixa de se resolver em termos especificamente técnicos, táticos eesportivos. Passa a ter uma grandeza específica e terrível. Eis averdade: – o juiz ladrão revolve, no time prejudicando e respectivatorcida, esse fundo de crueldade, de insânia, de ódio existe,adormecido, no mais íntegro dos seres. O mínimo que nos ocorre ébeber-lhe o sangue. (A sombra das Chuteiras Imortais, 1996, p.18)
3.2. Crônicas Sociais e Comportamentais
Durante os anos 60, Nelson Rodrigues assumiu uma posição bastante
controversa em relação ao regime militar. Se nunca o apoiou com vigor, contra as
esquerdas brasileiras dirigiu críticas duríssimas, sempre permeadas, é claro, por um
misto de ironia e coloquialidade que o aproximava do leitor comum e um extremo
saudosismo de um Brasil e de um mundo desaparecido com a modernidade. Essa
postura valeu-lhe o título de “reacionário”. Se como dramaturgo ele era taxado de
“comunista”, agora ele era “O Reacionário”, adjetivo que adotou para sempre. Outra
de suas constantes obsessões era a proliferação dos idiotas e o espaço crescente que
obtinham na mídia:
Durante 40 mil anos, o pateta sabia-se pateta e como tal secomportava. Os melhores pensavam por ele, sentiam por ele,decidiam por ele. Mas em nosso tempo, e só em nosso tempo, osidiotas descobrem que estão em maior número. E, então, investidoda onipotência numérica, quer derrubar tudo. Diz o bom Dr. Alceuque o grande acontecimento do século XX foi a Revolução Russa.Errou. Houve e continua uma outra muito maior, sim, muito maisprofunda: – a Revolução dos Idiotas. (O Reacionário, 1995, p.100)
3.3. Crônicas Memorialistas
Ao longo de toda a crônica notamos uma constante nostalgia e uma saudade
do Rio de Janeiro da época de Machado de Assis, pré-vacina obrigatória. Apesar do
Nelson não ter vivido nesse período, toda sua obra estará marcada pela visão do
33
menino, que em suas próprias palavras “enxerga o mundo através do buraco da
fechadura”.
Em suas confissões e, principalmente, nas memórias de caráter extremamente
pessoal, o resgate da infância é um tema recorrente:
Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada aver com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as mesas ecadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectralde retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eunão os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância nãotem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei umbom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meuprimeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.” (Amenina sem estrela, 1993, p. 15)
Por fim, não seria equivocado acrescentar ainda a essa tipologia da crônica de
Nelson Rodrigues os relatos de A Vida Como Ela É..., que, estruturados inicialmente
como crônicas, mas ficcionalmente como contos, giram em torno de uma das eternas
obsessões do escritor: a traição.
4. A Vida Como Ela É... - A crônica que virou conto
Durante dez anos, no período de 1951 a 1961, Nelson escreveu diariamente
sua coluna A Vida Como Ela É... no jornal Última Hora. A idéia sugerida pelo dono
do jornal, Samuel Weiner, era de que ele criasse uma história fictícia baseada em
algum fato real veiculado no jornal do dia. Nelson seguiu as ordens somente nos dois
primeiros dias. A partir daí, passou a inventar as histórias da coluna. Quando Samuel
Weiner se deu conta, era tarde demais e a coluna A Vida Como Ela É... já era lida em
todo o Rio de Janeiro. Um verdadeiro sucesso, pois a partir dela o nome de Nelson
Rodrigues pulou para a boca do povo. Utilizando uma linguagem enxuta, diálogos
ágeis e as personagens bem delineadas, o assunto era invariavelmente o mesmo:
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traição. Desse tema tão simples e eterno ele escreveu quase duas mil histórias, das
quais destacamos Diabólica, adaptada para o cinema e para a televisão, quase que
simultaneamente.
5. A Vida Como Ela É...: O conto Diabólica
O conto Diabólica, escrito originalmente para a coluna diária A Vida Como
Ela É..., no jornal Última Hora, na década de 50, preserva as características da
crônica narrativa, porque, à medida que o narrador junta os episódios
cronologicamente, ele cria uma expectativa muito grande em torno do instantâneo
revelador.
Diábolica está dividido em sete partes, separadas por subtítulos. Esta
disposição lembra a estrutura dos folhetins. O narrador, que exerce também o papel
de focalizador, detém o domínio da diegese, além de, no discurso da narração,
revelar sua intrusão.
Na sua posição de narrador heterodiegético e onisciente inicia a primeira
parte com a apresentação das personagens, em uma cena de noivado, utilizando a
focalização interna e a visão de dentro.
“Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até à janela,
que se abrira para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária∗, uma espécie de
presságio, suspirou.” (p.132)
grifos nossos
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Observamos no trecho acima a expressão espécie de presságio, lembrando
que presságio é um elemento próprio da tragédia. Na seqüência, o texto segue com
discurso direto, diálogos curtos, frases nominais, curtas e incisivas.Vejamos:
E foi meio vaga:- Caso sério! Caso sério!E Geraldo, baixo e doce:- Por quê?Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:- Estás vendo minha irmã?Estou. (p.132)
No diálogo ou discurso direto - o narrador cede a palavra e o foco de visão às
personagens, fundamental para o desenvolvimento das ações do conto.
(...) Dagmar pergunta: “Bonita não é?”. Geraldo concorda:“Linda!”. Então, pousando a mão no braço do noivo, a pequenacontinua:- Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vaiser uma mulher e tanto.- Um espetáculo!Sorriu, triste:- Um espetáculo, sim! – Pausa e, súbito, tem uma sinceridadeheróica: - Há de ser mais bonita do que eu.(p.132)
Nesse trecho o termo “vai ser uma mulher e tanto” notamos um indício do
que poderá acontecer com a personagem Alicinha, na sua passagem de menina a
mulher.
Até esse momento da narrativa, o narrador introduziu o assunto que é o
“relacionamento fraternal”, e o tema “traição”, com um suposto triângulo amoroso.
Já na segunda parte do conto temos a preparação para o que poderá vir a ser o
clímax, outro índice proléptico, (através dos vocábulos sublinhados: nova e
dissimulada curiosidade - pertubou - espécie de vertigem) e constatamos a presença
intrusa do narrador através do adjunto adverbial de dúvida: “talvez”.
(...) Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina irremediável. No fundo, talvez
imaginasse que ela seria para sempre assim, criança, criança. A observação da noiva o
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apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para Alicinha com uma nova e dissimulada
curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda contida na menina, começava a desabrochar. Esta
constatação o perturbou, deu-lhe uma espécie de vertigem.
Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva foi levá-lo até o portão. Ao ser beijada na
face, disse:
- E não: Alicinha é sagrada para você! (p.133)
Na terceira, quarta e quinta partes há a preparação para o clímax com a
personagem Dagmar revelando aos pais que advertira o noivo sobre sua irmã ser
sagrada para ele, e também o conflito psicológico vivido pela personagem devido ao
ciúme doentio em relação à irmã.
Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-nos-acuda. A
mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-lhe um verdadeiro
sabão:
- Foi um golpe errado. Erradíssimo!- Eu não acho.O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde nãohavia! Despertou a idéia do seu noivo!”.Replicou, segura de si:- Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou,interpelando-a:- E agora, com que cara teu noivo vai olhar para tua irmã? Vocês,mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: umairmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas! E Dagmar obstinada:- Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima,formidável e outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita comcunhado, não! Nunca! (p.133 e 134)
No trecho acima, através das expressões sublinhadas, verifica-se a utilização
da linguagem coloquial. Na expressão Dagmar obstinada, o adjetivo denota a
presença próxima do narrador onisciente, que consegue analisar até o tom de voz da
personagem. No final da quinta parte, temos a assertativa de Geraldo a respeito de
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Alicinha, com uma constatação irônica “– Não há mulher mais bonita que uma
cunhada bonita!” (p.135), que nos faz prever a formação de um triângulo amoroso e
a possível traição.
O clímax acontece na penúltima parte, com o subtítulo Sonsa, quando
Alicinha revela para Geraldo que não é mais criança, aproximando-se dele com
palavras e gestos sensuais.
No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho:“Deixei de ser criança! Já não sou mais criança!”. Isso poderiasignificar pouco ou muito. De qualquer forma, desconcertado, elechegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo demim?”. O pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olharintenso, não de criança, mas de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parecedivertida. E, subitamente, séria, ergueu-se e aproxima-se. Estavamno gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:- Um beijo. (p135)
Nesse trecho a personagem Alicinha, a sonsa, a dissimulada, passa a ter uma
postura mais provocante e sensual, e, mais uma vez, observa-se a onisciência do
narrador focalizador que enxerga até mesmo o que se passa dentro da cabeça da
personagem. Constatamos também outra característica do conto que é a síntese
dramática, com a marcação de tempo condensado.
No parágrafo seguinte, verifica-se a chantagem de Alicinha para conseguir
seu intento. Esse trecho encerra também o alarme para o desfecho e o tema do conto.
Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E oameaçou, segura de si e da própria maldade: “Vou teavisando: se começares com coisa, eu direi a todo mundo quehouve o diabo entre nós!”.Geraldo arriou na cadeira; uivou:- Demônio! Demônio!(p.136)
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Na sétima e última parte, com o título O Beijo, logo no início, temos a síntese
dramática, sem detalhes e pouca narração porque o narrador vai direto para o
desfecho:
(...) Até que, uma tarde, entra numa delegacia; soluçando,anuncia:“Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal, numlugar assim, assim”.(p.136)
O final, nada convencional, totalmente inesperado, demonstra a reação
também inesperada da personagem Dagmar: neurótica, insegura e louca.
(...) Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e obeijou na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada.Debatia-se nos braços dos investigadores.Gritava:- Oh!, graças! Graças!(p.136)
Como a narrativa é muito breve e as ações se sucedem pontual e rapidamente,
o leitor não tem espaço para preencher os vazios do texto e é apanhado de surpresa
pelo desfecho agressivo e até mesmo grotesco.
Diante dessas observações, podemos classificar Diabólica como um conto
realista, em que estão presentes o trágico e o grotesco.
Por isso, é necessário recorrermos a considerações gerais sobre a tragédia, desde a
época clássica até à contemporaneidade.
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II – DIABÓLICA: DAS TRAGÉDIAS DA ÉPOCA CLÁSSICA ÁS
TRAGÉDIAS DA VIDA CONTEMPORÂNEA
1. Tragédia. Tragédias Tebanas. Tragédias Rodrigueanas
Tragédia é um gênero teatral baseado na apresentação, em geral solene, da
trajetória penosa e do destino inexorável de determinado herói ou protagonista. Sua
origem remonta à antiguidade clássica.
Segundo Aristóteles, primeiro teórico da tragédia:
Tragédia é a representação de uma ação elevada, de algumaextensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos osadornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; eque, despertando piedade e temor, tem por resultado a catarsedessas emoções.(Poética - VI, p.26)
A estética de Aristóteles aponta os dois conceitos que definem o gênero: a
mimese, ou imitação da palavra e do gesto, que para ser eficaz deve despertar no
público os sentimentos de terror e piedade, e a catarse, efeito moral e purificador que
proporciona o alívio desses sentimentos.
Na tragédia se expressa o conflito entre a vontade humana, por um lado, e os
desígnios inelutáveis do destino, por outro. A rigor, o termo só se aplica à tragédia
grega ou clássica, cuja origem se confunde com a do próprio teatro, mas por analogia
é tradicionalmente estendido à literatura dramática de várias épocas, em que conflitos
semelhantes são tratados. A tragédia surgiu na Grécia no final do século VI A.C. e
esgotou-se em seu sentido genuíno em menos de cem anos. Assim, quando no século
IV Aristóteles formulou, na Poética, sua teoria da tragédia; o pensamento filosófico
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estava plenamente estabelecido e a tragédia não tinha mais lugar. Sucedeu
historicamente à epopéia e à poesia lírica e se extinguiu com o advento da filosofia.
O momento histórico da tragédia corresponde a um estado particular de
articulação entre o mito e a razão, em que essas categorias entram em conflito e
preparam a vitória final do pensamento. Marca a transição do homem trágico, sujeito
aos caprichos dos deuses, o homem descrito na mitologia e na poesia de Homero,
para o homem dramático (“drama” deriva de uma palavra grega que significa “ação”)
ou homem de ação, cidadão político, descrito por Aristóteles como senhor de sua
vontade e responsável por seus atos. A decisão trágica se dá entre os desígnios dos
deuses e os projetos ou as paixões dos homens. A tragédia, portanto, exprime o
debate entre o passado mitológico e o presente da pólis, ou cidade.
A palavra grega “tragédia” significa “canto do bode” e se refere
possivelmente ao ritual em honra a Dionísio do qual, segundo Aristóteles, o teatro se
originou. Sua fonte é o ditirambo, canto executado por um coro no qual se destaca
um corifeu. O rito a Dionisio, no qual se sacrificava um bode, ligava-se ao culto da
fertilidade e ao ciclo vegetal, e portanto ao ciclo da vida humana, condicionada pela
sombra da morte e do desastre, embora aberta, no rito dionisíaco, à possibilidade de
ressurreição.
As tragédias eram apresentadas ao público nas grandes festas dionisíacas,
festivais realizados em Atenas a partir do século VI a.C. por iniciativa do tirano
Pisístrato. Téspis é tido como o primeiro tragediógrafo, pois a ele se atribui a
dramatização dos ditirambos, poemas narrativos cantados por um coro. O corifeu,
integrante destacado do coro, teria passado a dramatizar os versos que cantava e a
esboçar um diálogo com os demais integrantes.
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Ésquilo, primeiro poeta trágico clássico do qual se conhecem várias obras
completas, manteve o predomínio do coro, mas introduziu um segundo ator além do
Corifeu, o que reforçou a dramatização. Sófocles, no século V, escreveu diálogos
para um terceiro ator que, como os outros dois, podia desempenhar vários papéis
mediante o tradicional recurso das máscaras. A sobriedade e a grandeza das tragédias
de Ésquilo e Sófocles foram atenuadas na obra de Eurípides, o terceiro dos grandes
trágicos clássicos, em favor da maior humanização dos personagens. A partir do
século IV A.C., a tragédia grega, já despojada de sua função catártica, tornou-se
retórica e sobrecarregada, como sucederia mais tarde também com a tragédia
romana, representada por autores como Lívio Andrônico e Sêneca.
As tragédias tebanas, de onde destacamos a trilogia tebana3 composta por três
peças de Sófocles: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, inovaram por deslocar o
movimento das ações para a vontade humana e não mais para as articulações divinas.
Enquanto seu mestre Ésquilo, a quem Sófocles sucedeu no gosto do público
ateniense, apresentava invariavelmente os seus heróis submetidos às leis da
fatalidade, esboçadas por deuses implacáveis, este procurou traçar um cenário
diferente para a ação dos seus personagens. Se bem que os deuses continuassem os
mesmos, o destino dos heróis de Sófocles deriva bem mais do caráter deles do que do
determinismo fatalista. O embate, o conflito, que alimenta o seu drama, é antes de
tudo um choque de personalidades fortes, claramente definidas e assumidas em
quanto tal. Em suma, há sim um poder do além intervindo sistematicamente, mas
isso não retira o espaço da liberdade de ação do homem. Interessa observar que se
destaca entre essas personagens fortes, fortíssima até, a jovem filha de Édipo,
3 SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução e apresentação Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
42
Antígona. Ela, mesmo sendo mulher, considerada inferior para a maioria dos gregos
de então, incorpora os valores altivos e honrados herdados de uma dinastia
aristocrática, a dos Labdácidas, e vai à luta para manter os sagrados princípios da sua
casta.
Édipo Rei, particularmente admirada por Aristóteles em sua “Poética”, esta
obra-prima da tragédia grega, ilustra a impotência humana diante do destino. A
estória começa quando Édipo, príncipe de Corinto, é insultado por um bêbado, que o
acusa de ser filho ilegítimo do Rei Políbio. Embora Políbio procure tranqüilizar
Édipo, o príncipe, perturbado, recorre ao Oráculo de Píton, mais tarde conhecido
como Delfos. O oráculo evita responder à sua dúvida, mas dá a terrível informação
de que Édipo está destinado a matar o pai e casar-se com a mãe. Como Édipo não
tem a menor intenção de deixar que isso aconteça, foge de Corinto e vai para Tebas,
iniciando a tragédia.
Em uma encruzilhada, Édipo depara-se com uma carruagem. À frente vem o
arauto, que lhe ordena rudemente que se afaste e tenta empurrá-lo para fora da
estrada. O príncipe começa uma briga e termina matando todo mundo que nela se
envolve. Para sua desgraça, um dos homens que vinha na carruagem era seu pai
verdadeiro, o rei Laio de Tebas. Após resolver o enigma da esfinge e salvar Tebas
desse flagelo, Édipo é proclamado rei e casa-se com a viúva de Laio, Jocasta, sua
mãe verdadeira. Só depois que uma nova maldição cai sobre Tebas - maldição que
seria afastada apenas quando o assassino de Laio fosse descoberto e expulso - é que
os fatos vêm à tona. Édipo não consegue suportar a verdade e arranca os próprios
olhos.
43
Antes que Édipo tomasse a decisão de fugir da profecia do oráculo, Laio, sua
vítima já tinha cometido o mesmo engano. Apolo havia advertido Laio de que seu
próprio filho o mataria e, quando Édipo nasceu, o rei mandou perfurar com um cravo
um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Mas o menino foi
encontrado por um pastor e levado ao rei Políbio, que o adotou. Essa foi a origem da
confusão de Édipo e foi daí que veio seu nome: “oidípous” significa “pé
inflamado”.
A segunda peça Édipo em Colono, retrata Édipo, velho, cego e errante,
sempre ajudado por Antígona, chega a Colono. O antigo rei de Tebas pede asilo e
direito de sepultura a Teseu, rei de Atenas. Teseu concorda, e Édipo revela que sua
sepultura protegerá a terra contra os inimigos. Creonte tenta levar Édipo de volta,
pois a luta entre Etéocles e Polinice é iminente; Polinice vem pedir a ajuda do pai
contra o irmão. Édipo, defendido por Teseu, recusa-se. Pouco depois um mensageiro
relata seu miraculoso desaparecimento.
A trilogia se completa com Antígona. Logo após a fracassada tentativa dos
Sete Contra Tebas 4, Creonte, rei de Tebas, decreta que os cadáveres dos inimigos da
cidade ficarão insepultos e sem os ritos fúnebres determinados pelo costume. A
penalidade estipulada para quem desobedecer ao decreto é a morte. Polinice, um dos
filhos de Édipo e sobrinho de Creonte, estava entre os atacantes; o decreto de
Creonte, portanto, aplica-se também a ele. Antígona, revoltada com a ordem do tio,
cobre secretamente o corpo do irmão com um pouco de terra e realiza alguns dos
rituais que a religião grega preconizava para os mortos. Descoberta, Antígona
4 Tragédia esquiliana. Após a descoberta do parricídio e do incesto, em Édipo Rei, e depois da morte do reitebano em Édipo em Colono, é que se situa os acontecimentos narrados nesta obra. Polinice, o filho mais velho deÉdipo (e, portanto, o legítimo sucessor ao trono) fora afastado do trono pelo irmão mais novo, Etéocles. Polinicereúne sete generais para atacar as sete portas de Tebas e reaver o que de direito é seu, enquanto Etéocles prepara adefesa da cidade. Ambos terminam por fenecer na guerra, conforme sabe-se na peça Antígona, na qual a filha deÉdipo é castigada por dar túmulo aos seus irmãos.
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confronta Creonte com coragem e altivez, e é condenada à morte. Posteriormente, as
profecias de Tirésias amedrontam Creonte e ele recua. O rei ordena a imediata
libertação da moça, mas ao procurá-la descobre que ela, seu filho Hémon e sua
esposa Eurídice haviam se suicidado.
Nelson Rodrigues, desde a sua primeira peça, A mulher sem pecado5, até a
última A Serpente6, suscitou as mais diferentes reações críticas à sua produção:
elogios, críticas, vaias, aplausos, apoio e censura. Por abordar e expor os traumas
morais e sexuais da classe média, quase que exclusivamente a carioca, o autor
tornou-se uma figura polêmica: e a censura, do Estado e da sociedade, condenou seus
textos a um julgamento moral e não os apreciou segundo o seu valor estético. Sendo
assim, a proposta deste capítulo consiste em cruzar o conto Diabólica que compõe o
ciclo da coluna A Vida Como Ela É... – as Tragédias Cariocas, com textos clássicos
da Tragédia Grega, especificamente a Trilogia Tebana, mostrando que os temas
abordados na composição rodrigueana (traição, adultério, e morte violenta),
acompanham a humanidade desde os seus primórdios.
Friedrich Engels, em seu livro A origem da Família, da Propriedade Privada
e do Estado, observa que a estrutura familiar passou por várias transformações até
chegar à chamada família monogâmica. Por se tratar da estrutura fundamental que o
texto rodrigueano aborda, torna-se necessário uma rápida incursão pelos estágios
passados por ela.
A tradição judaico-cristã apresenta a família como uma instituição alicerçada
nos laços de sangue e na relação harmônica entre pai, mãe e filhos. Entretanto, as
mudanças ocorridas ao passar dos séculos provam que esse é um padrão que já não
5 Teatro completo. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. v.16 idem, v.4.
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se sustenta mais, uma vez que há distintas formas de se formar um núcleo familiar
(pais separados e sozinhos, pais separados e com outros/as companheiros/as, casais
homossexuais). Os tipos de família apresentados por Engels são quatro:
consangüínea, punaluana, sindiásmica e monogâmica. Na primeira, todos os homens
e todas as mulheres de uma tribo eram maridos e mulheres em comum, sem divisão
de laços sangüíneos; no segundo tipo, eram maridos e mulheres em comum,
excetuando-se os irmãos e irmãs; na família sindiásmica introduziu-se um elemento
novo: junto à verdadeira mãe foi posto o verdadeiro pai, o matrimônio não era
indissolúvel, mas pressupunha a fidelidade; por fim, a família monogâmica surgiu a
partir do casamento sindiásmico e, ao contrário do que se possa imaginar, a
mudança não se efetuou por exigências morais, mas econômicas e fortemente
alicerçada em uma estruturação repressora.
Assim, se a sociedade é repressora, automaticamente a família também o será.
Torna-se óbvio que qualquer relação existente fora dos padrões consentidos será
objeto de condenação. Quando Nelson Rodrigues expõe as mazelas sexuais da classe
média, o faz através de um ângulo grotesco e trabalha os indivíduos cheios de
cotidiano, linguagem coloquial e vida interior agressiva. A escolha dessa opção
estética fez com que a obra, e o próprio autor sofressem a censura imposta pela
sociedade e pelo Estado.
Michel Foucault, em sua obra Microfísica e Poder, opina que, para o
macropoder se perpetuar é necessário que as suas características sejam reproduzidas
em micropoderes na rotina da vida social. Dentre esses, está incluída a família com
seus traços marcadamente reprodutores do contexto cultural e social. Na obra
rodrigueana, a presença constante de temas controlados pela força moral cria um
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efeito estético de impacto e desencadeia a reação da sociedade e do Estado,
principalmente porque o autor faz da família seu alvo de ataque.
As peças rodrigueanas são registros estéticos da face desagradável que os
seres humanos querem esquecer, pois estão aí para lembrar a efemeridade humana e
mostrar uma visão negativa da vida. Ao contrário da visão clássica da dramaturgia,
que exaltava a razão, o exemplo, o heroísmo e a santidade, o autor revela o
contraditório do ser humano: o amor e o ódio, a carne e a alma, a morte e a vida. Em
A Vida Como Ela É... o relacionamento das personagens é sempre pautado em
emoções fortes e extremadas, os membros da família nutrem entre si sentimentos
antagônicos de raiva, desprezo, ódio, amor e paixão. No conto Diabólica os laços
que unem as personagens Geraldo (fraco, covarde, medroso e assassino), Dagmar
(insegura, neurótica e obstinada) e Alicinha, sua irmã aparentemente ingênua, mas
diabólica na sua essência, não são aqueles esperados pela sociedade; eles escondem
segredos ou melhor, anomalias de conduta, anomalias psíquicas que dificilmente
seriam aceitos com naturalidade. Além disso, o conto apresenta uma tensão
dramática inspirada na atmosfera do adultério e, por isso, foge ao controle dos
códigos morais estabelecidos pela sociedade. Notamos, também, através das
personagens a dialética humana “bem x mal”, “anjo x demônio”, espírito x matéria”
e “essência x aparência”. Outro fator a ser destacado é a força contida nos nomes das
personagens, Dagmar e Geraldo são nomes fortes, em contrapartida, Alicinha é
diminutivo que denota carinho, afetividade, ingenuidade. cruzamento
No relacionando dos textos clássicos da Trilogia Tebana e de um texto
moderno – A Vida Como Ela É...: Diabólica, surgem características que
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proporcionam a análise de aspectos narrados em obras do mesmo gênero, em tempos
distantes entre si, mas que conservam em suas estruturas elementos atemporais.
2. Elementos do Trágico aplicados ao conto e sua transcodificação em TV e
Cinema
Os elementos básicos que compunham a tragédia, na sua estrutura, eram: o
coro, o corifeu, os atores, o prólogo, o párodo, os episódios ou partes, o êxodo ou
epílogo, as catástrofes, as cenas patéticas, agón ou cenas de enfrentamento,
anagnórisis, o presságio, a traição e a morte. Os que se mostram presentes na
transcodificação do conto de Nelson Rodrigues para a TV (O Anjo) e para o cinema
(Diabólica) são:
Coro: composto por doze ou quinze elementos, os coreutas. Após entrarem
na orquestra, a área de dança no teatro, cantam e dançam nesse espaço. Estes
dançarinos-cantores eram em geral homens jovens que estavam a ponto de entrar
para o serviço militar após alguns anos de treinamento. Não eram, portanto,
profissionais do teatro, e daí a importância do tragediógrafo também como ensaiador
do coro, muito embora os atenienses desde crianças fossem ensinados a cantar e
dançar.
O coro trágico quase não participa da ação, limitando-se apenas a comentá-la
e expressando compaixão ou outros sentimentos pelas personagens. No conto, o
papel do coro é exercido pelo narrador que está contando a história como observador,
não tendo participação na intriga como personagem. Mas no seu papel de narrador
heterodiegético (aquele que não participa da narrativa dos acontecimentos) e
onisciente (aquele que conhece tudo) muitas vezes revela a sua intrusão,
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principalmente quando exerce também o papel de focalizador e o foco de visão se
funde com o de narração, e narrador se inclui dentro da cena do conflito, muito
próximo das personagens.
Na adaptação do conto para a TV – com a mudança do título de Diabólica
para O Anjo – o papel do coro da tragédia é desenvolvido “in off”, que é fiel ao texto
original, com acréscimo de algumas expressões para melhor entendimento do
telespectador. Já na adaptação para o cinema não existe a figura do narrador
heterodiegético e onisciente. Como a narrativa é estruturada “a fine”, o protagonista
exerce também o papel de narrador homodiegético e autodiegético (protagonista-
narrador conta a sua história).
Atores: representam deuses ou heróis. São em número muito reduzido. Seu
número sobe para dois e em seguida três, mantendo-se nesse patamar, mas podemos
observar que a estruturação dos diálogos nas tragédias tende a se concentrar em dois
atores apenas, sendo raras as cenas que apresentam um verdadeiro diálogo a três. É
no diálogo entre atores que se concentra quase a totalidade da ação dramática. No
conto os atores equivalem a personagens, que são reduzidas em número: três
personagens principais a formarem um triângulo amoroso e duas secundárias a
cumprirem um papel familiar e social. O mesmo acontece na transcodificação para a
televisão. Até mesmo os nomes das personagens permanecem.
Já na adaptação cinematográfica notamos que algumas personagens foram
acrescentadas, inclusive com direito a diálogos (discursos diretos) e considerações
pessoais a respeito do desfecho.
Na estruturação formal a tragédia contém, como partes principais: prólogo,
párodo, episódios ou partes e o êxodo ou epílogo. Já nas transcodificações, temos:
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Prólogo: É a primeira cena antes da entrada do coro ou antes da primeira
intervenção do coro. Trata-se de uma narrativa preliminar que visava introduzir o
tema. Pode estar ou não presente. Os tipos de Prólogo são: com apenas um ator, na
forma de solilóquio ou monólogo ou com mais de um ator em cena aberta com
diálogo e ação.
No conto, o prólogo equivale à primeira parte ou cena, sem nome, introduzida
pelo narrador e seguida pelos diálogos das personagens principais. De modo fiel
ocorre com a adaptação do conto para o minidrama na televisão. No cinema há uma
nova estruturação, como já foi observado.
Episódios ou Partes: são cenas no palco, entre os cantos corais, sejam
estásimos (cantos e danças do coro na orquestra que separam os episódios) ou
diálogos líricos, em que participa no mínimo um ator. Podiam variar de número e
importância. Além dos atores podem participar figurantes também. O figurante
distingue-se do ator por não possuir falas.
As partes ou episódios no conto são cenas explícitas para o receptor-leitor.
Nas adaptações para a televisão e para o cinema também existem as partes, porém
não explicitadas nem fragmentadas como no conto. Os episódios estão implícitos,
tornando-se verificáveis as estruturas para quem leu o conto, porém imperceptíveis
para o simples espectador.
Êxodo ou epílogo: Inicialmente, como indica o seu nome, era simplesmente a
saída do coro cantando e dançando ao final da peça. Posteriormente, com a
diminuição gradual do papel do coro, passou a ser a última cena depois do último
estásimo e que termina o drama. Poderia haver nesta última cena uma fala final de
um deus que seria o epílogo.
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No conto e no minidrama o epílogo é marcado pela cena de Dagmar, fora de
si, invadindo a delegacia e gritando, ao agarrar o rosto do noivo e beija-lo: Oh!
Graças! Graças! Finalmente! Graças!
Na adaptação para o cinema, o epílogo é um segundo desfecho em relação ao
conto original.
Quando, na delegacia, o pai chama Dagmar de “sem vergonha”, a mãe
interrompe-o e revela que a “sem vergonha” é ela, porque ela tem um amante que é o
verdadeiro pai de Alicinha.
Por sua recorrência, algumas cenas se destacam nas tragédias gregas e são tão
típicas do gênero quanto é uma cena de perseguição em um filme de ação. São elas:
as catástrofes, as cenas patéticas, agón ou cenas de enfrentamento e anagnórisis ou
cenas de reconhecimento, todas presentes na adaptação para a televisão e para o
cinema.
As Catástrofes são cenas de violência, em geral oculta dos olhos da platéia e
narrada posteriormente por um ator.
No conto em estudo as cenas de violência são ocultas, o leitor não toma
conhecimento da violência ocorrida na morte de Alicinha, a não ser que ela foi morta
em algum lugar não identificado por uma punhalada nas costas, através do processo
narrativo, após os acontecimentos. Nas adaptações o local é delimitado: no
minidrama o lugar do homicídio, por estrangulamento, é a casa da vítima; no filme o
local é um “quarto de encontros”, o que atualmente seria um Motel, e a forma de
violência também é o estrangulamento.
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Cenas patéticas: cenas de explicitação de sofrimento, dor, em cena. A cena
patética só aparece na adaptação do conto para o cinema, na revelação do segundo
epílogo.
Agón ou cenas de enfrentamento: cenas onde, por ações ou por palavras
entre personagens, se explicita o conflito trágico no palco.
Existe no conto e nas suas adaptações, quando após o primeiro
relacionamento sexual entre Alicinha e Geraldo, ela o ameça: “Vou te avisando: se
começares com coisa, eu direi a todo mundo que houve o diabo entre nós!”
Anagnórisis ou cenas de reconhecimento: é a passagem da ignorância para
o conhecimento. Uma personagem descobre-se parente, amigo ou inimigo de outro.
Pode ser também a descoberta de algo que se fez ou não. As personagens tomam
consciência de algo, que não é trivial, mas significativo para o seu destino.
Observamos sua existência em ambas as adaptações. No cinema, a revelação da mãe
sobre ter um amante, que é o pai de Alicinha. Na televisão, o momento em que
Dagmar declara sua irmã Alicinha como uma suposta rival. “ – Meu pai, gosto muito
de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade de
irmã bonita com cunhado, não! Nunca!”
Também constituem elementos do trágico o presságio (intuição ou sinal), a
traição e a morte.
O presságio é um fato a partir do qual se supõe que ocorrerá um evento não
relacionado a ele, ou seja, o que se costuma chamar de sinal.
No conto Diabólica, temos o “sinal”, o “presságio” logo no início da
narrativa, conforme podemos observar : “Na noite do pedido oficial, Dagmar, de
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braço como o noivo, foi até a janela, que se abrira para o jardim. Então, com uma
tristeza involuntária, uma espécie de presságio, suspirou”.
Esse “presságio” funciona como índice, para o leitor, de que algum
acontecimento funesto, envolvendo as três personagens principais ocorrerá, é o caso
da traição.
O ato de trair nas suas diferentes formas de manifestação traição pelo poder,
pelo dinheiro, por vingança, ou amorosa, é um ato condenado pela sociedade, no
entanto vem sendo, representado esteticamente há muito tempo, a exemplo da
desobediência bíblica de Adão e Eva. O mundo literário está repleto de criações
estéticas que retratam traições famosas: Oréstia, Ésquilo; Otelo, Shakespeare; Teresa
Raquin, Zola e tantas outras. Os textos literários que abordamos também elaboram a
traição de maneiras distintas. Na trilogia tebana as traições se manifestam mais na
disputa pelo poder, sem rodeios, de forma clara e objetiva; em Diábolica sua
manifestação é subjetiva e dissimulada.
O autor grego aborda a disputa pelo poder como algo propenso ao castigo:
Etéocles e Polinice matam-se; Antígona perde a vida; Creonte perde o filho e a
esposa. Para os gregos a justiça sintetiza o valor moral supremo, a ação de maneira
correta, ou seja, moralmente, significa respeitar a medida de cada um (metron) e
seguir a lei da sociedade (polis). Os filhos de Édipo, após abandonarem o pai à
própria sorte, ao atingirem a maioridade, fazem um acordo de alternância no trono.
Mas Etéocles se recusou a deixar o trono e entregá-lo a seu irmão Polinice. Este
uniu-se com o sogro Adrasto e marchou contra Tebas. Dupla traição: Etéocles não
respeitou o acordo feito com o irmão e Polinice marchou contra seu próprio povo.
Em Nelson Rodrigues as traições são mais de cunho érótico e moral.
53
Com relação às traições de cunho amoroso, na trilogia tebana há somente dois
momentos que podem ser considerados casos de traição por amor, e não
propriamente amorosa: o primeiro, quando Antígona abandona Tebas, sua pátria,
para acompanhar o pai/irmão; o segundo, ao desobedecer às ordens de Creonte e
fazer os ritos funerais do irmão, Polinice. No texto rodrigueano, entretanto, as
traições possuem cunho mais sensual, respondem aos apelos do corpo e transcorrem
dentro de um grupo fechado, uma família reduzida aos seus membros e uma ou outra
pessoa de fora. Em Díabólica, as personagens cometem traições dentro do gueto
familiar - Alicinha a irmã caçula de treze anos trai a irmã, Dagmar, com o futuro
cunhado Geraldo. Isso ocorre tanto no conto como em suas adaptações para a
televisão e para o cinema.
Observamos que o tema traição foi abordado por Sófocles e por Nelson
Rodrigues que tinham entre si mais de dois milênios de distância, porque sua
elaboração estética existe em função da existência humana.
Nessa sucinta elaboração do relacionamento dos textos de Sófocles e Nelson
Rodrigues fizemos uma rápida incursão pelas forças inerentes ao ser humano: ódio,
amor, morte, humilhação e crueldade. Ao analisarmos a demonstração dessas forças
pudemos concluir que a sociedade na época da elaboração do conto – anos 50 - se
posicionou de maneira implacavelmente moral no que se refere aos textos de Nelson
Rodrigues, porque as manifestações do desejo são naturais, mas trabalhar
dialeticamente com a descrição do prazer e da náusea implica em admitir o corpo
como suporte indesejável para a manifestação da vida.
A morte, fenômeno natural inerente ao ser humano, é uma das poucas
certezas que a humanidade possui. Entretanto, faz parte do seu imaginário e da sua
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esperança prolongar o máximo de tempo possível a existência sobre a Terra. Faz
parte da perspectiva humana morrer de forma natural e com idade avançada, pois
lembrar constantemente a efemeridade e a mortalidade é um processo agressivo por
representar a imagem do desconhecido.
Concebida esteticamente de maneiras distintas nos diferentes contextos de
produção, a morte foi trabalhada por Sófocles e por Nelson Rodrigues como o alívio
contra todos os pesadelos da vida. Sófocles trabalhou a morte na perspectiva de
solução aos erros cometidos pelos mortais, contra seus iguais e contra os deuses,
como forma de pagar pela desobediência e rebeldia. Ela surge como a grande
redentora dos males praticados pelos humanos porque não é representada apenas
pelos mortos, mas por todos os que sofrem. Suas penas são diferentes tipos de morte
e elas aparecem fartamente tanto no texto de Sófocles quanto no de Nelson
Rodrigues. Assim, além das mortes físicas temos várias outras representadas pelos
castigos sofridos pelas personagens. Na trilogia tebana, a cegueira de Édipo, o vagar
de Antígona acompanhando o pai/irmão, o desespero de Creonte após a morte do
filho e da esposa. No conto Diabólica o ciúme obsessivo de Dagmar em relação a
sua irmã caçula Alicinha e seu noivo Geraldo. O sentimento de amor e ódio que
Geraldo nutre por Alicinha sua futura cunhada, levando-o ao ápice da loucura. A
solidão de Dagmar ao saber que o noivo matou a irmã e vai ser preso. No filme, a
desunião familiar com a revelação da mãe: a morte da família.
O castigo e a morte, que é uma forma de castigo, são os meios através dos
quais as personagens expiam suas culpas, não como um recurso para dar o fim
inevitável à vida, mas como instrumento de vingança e penalidade, quase sempre de
forma horrível e grotesca. Carrega, portanto, em si a tragédia e são fartos os
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exemplos de castigos e mortes que acontecem na trilogia tebana e em Diabólica .
Nos textos de Sófocles, Laio é assassinado pelo próprio filho, supostamente em
conseqüência da maldição lançada por Pélops por ter tido seu filho, Crisipo, raptado
por Laio que nutria uma paixão mórbida pelo rapaz; Etéocles e Polinice matam-se na
disputa pelo poder; Antígona é condenada a morrer trancada em uma caverna;
Hêmon e Eurídice suicidam-se. No texto de Nelson Rodrigues, Geraldo, não
suportando mais viver o intenso triângulo amoroso e cansado de se render aos
caprichos de sua cunhada e amante Alicinha, a mata e se entrega à polícia. Geraldo e
Dagmar, de certa forma, também morrem para a vida, ele por ter que viver atrás das
grades, ela por ficar imersa em solidão, abandono e frustração.
Por exercer, simultaneamente, fascínio e medo, repulsa e atração, e trazer em
si uma aura de mistério, a morte é um componente essencial da tragédia. As
composições de Sófocles e de Nelson Rodrigues souberam trabalhar com tal tema e,
por isso, os autores receberam o reconhecimento do público. Com recepções
distintas, obviamente, mas sempre lembrados.
O universo rodrigueano, seja no conto, no romance ou no teatro, é trágico
quando o identificamos pelas vicissitudes do desmoronamento moral; é épico, ao
expressar a procura ou a revelação de um sentimento secreto, às vezes íntimo e
monstruoso, às vezes alheio e heróico; mas acima de tudo é um drama lírico, poético,
que talvez não seja melhor compreendido por tratar o autor de desconstruir a nossa
dor, distribuí-la com outros, codificá-la com os mais sofisticados processos
psicológicos identificados em manias, angústias, traumas, revoltas, taras, obsessões.
A construção do herói homem e seus problemas é individual e ao mesmo tempo
universal, porque o leitor / o espectador se vê sintonizado, ao menos parcialmente,
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com os conflitos das personagens. Nas atitudes e ações de cada personagem nos
sentimos também partícipes da dualidade antitética vício x virtude, bem x mal, anjo x
demônio, santo x canalha, conflitos próprios do ser humano. Deste modo, se
resumem as personagens de Nelson Rodrigues: o homem (o pai, o marido, o noivo, o
amante); a mulher (a mãe, a esposa, a filha, a adúltera, a prostituta); o amor (o
pêndulo da fidelidade, suas tentações) e, por trás de tudo, a imensa solidão humana e
a hipocrisia social.
3. Tragédias Cariocas: Uma Linguagem Inovadora
Segundo a jornalista Cristina Brandão as tragédias cariocas, ora denominadas
tragédias de costumes (Perdoa-me por me Traíres), ora divina comédia (Os Sete
Gatinhos), ora obsessão (Toda Nudez Será Castigada), ora simplesmente peça (A
Serpente) retratam os conflitos cotidianos do Rio de Janeiro. Nelson Rodrigues
passou a escrevê-las em razão da familiaridade cada vez maior com os temas
explorados, com o sucesso na imprensa, com a coluna A Vida Como Ela É... em que
narrava uma história em forma de conto ou crônica do dia-a-dia da sociedade carioca
dos anos 50, na maioria envolvendo o seu tema favorito: traição e adultério. Nessas
histórias experimentava personagens que mais tarde desenvolvia no seu teatro (A
Falecida, Boca de Ouro ou Beijo no Asfalto). Os contos audaciosos de A Vida Como
Ela É... popularizavam Nelson Rodrigues, pois a coluna do jornal Última Hora era
lida até por passageiros nos habituais lotações. Diríamos que a ficção jornalística
fundamentaria, de certa forma, suas tragédias cariocas iniciadas em 1953.
57
Nelson Rodrigues estava criando um teatro inovador, com uma linguagem
coloquial e uma estética popular que chegou a surpreender os críticos, como afirma
Sabato Magaldi:
Formado na estética da sobriedade européia, eu não admitia osextravasamentos. Para mim, de mau gosto. Custei a incorporar osexcessos tropicais. Hoje estou convencido de que o melodramáticodos textos rodrigueanos corresponde à permanência de umaestética popular que vai da oratória e da frase feita, à chanchada.Aliás, Nelson jamais repudiou o mau gosto(...) Por meio dalinguagem límpida, sucinta, vibrátil e da capacidade de expor osdesvãos menos confessáveis de suas personagens, Nelson abriucaminho para todos os dramaturgos surgidos nas últimasdécadas.... (1992, p.16)
Assim como Martins Pena, França Junior, Arthur Azevedo, e Oswald de
Andrade, contribuíram para a inovação teatral do século XX, Nelson Rodrigues é
também unanimente considerado um desbravador, pelo conjunto de sua obra, pois
renovou a dramaturgia brasileira. Retomando incessantemente os mesmos temas, ele
traçou um painel da classe média burguesa, e lidou com vários planos de cena,
inaugurando a simultaneidade temporal e de ação no teatro brasileiro, imprimindo
técnicas variadas de corte e ritmo. Sobre esse aspecto Sábato Magaldi comenta:
Quando nossas peças, em geral, se passavam nas sala de visitas,numa reminiscência empobrecedora do teatro de costumes, Vestidode Noiva veio rasgar a superfície da consciência para apreender osprocessos do subconsciente, incorporando por fim a dramartugianacional os modernos padrões de ficção.(Apud Campedelli, 1995,p.24)
Além de interseccionar tempos diferentes, mesclando o presente com o
passado e ainda explorando o passado remoto, valendo-se de séries de “flashbacks”,
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que tornaram as montagens de suas peças bastante ricas, Nelson Rodrigues utilizou a
multiplicidade de ações, em diferentes espaços.
A exploração do inconsciente também foi incorporada à sua dramaturgia. O
seu teatro trabalha o conteúdo mais primitivo e comum aos homens: o conteúdo
impulsivo. Conforme explica Maria Helena Pires Martins:
O universo que daí resulta só pode ser patológico, uma vez que oego não encontra caminhos aceitáveis para a satisfação do id e queseus personagens se fixam em determinadas etapas dodesenvolvimento da personalidade, sem conseguir elaborá-las ouultrapassa-las. Cria, pois, um teatro extremamente desagradável,que trata dos desejos inconscientes, dos conflitos não resolvidos,enfim do nosso eu mais profundo. (Apud Campedelli, 1995, p.24)
Nelson Rodrigues também criou personagens sempre muito radicais e
contundentes. Seus tipos são quase caricaturas, isto é, são quase sempre exploradas a
partir de uma qualidade, ou uma virtude, ou de um defeito. Nesse sentido, tornam-se
personagens exemplares, na medida em que são criadas para enfatizar alguma coisa.
Em suas tragédias cariocas, Nelson Rodrigues revela um estilo vigoroso, com
frases curtas, incisivas, incorpora o diálogo rápido e direto, uma linguagem que não
era corrente na dramaturgia da época. A fala curta, incisiva, colhida da realidade
trazia para o teatro a espontaneidade das ruas, derrotando o gosto filosofante e de
conceitos, próprios da construção verbal do teatro tradicional. Ao escrever sobre o
teatro de Nelson Rodrigues, Pompeu de Souza salienta que a autenticidade do
dramaturgo reside na captacão da fala comum, que lhe permitiu: “Compor obras tão
altas, no mais nobre dos gêneros teatrais - a tragédia - com as formas lingüísticas,
muitas vezes, as mais plebéias e, contudo, de uma beleza não raro incomparável”.(
1992, p. 65).
59
Nelson Rodrigues passou a ser admirado por apresentar na sua linguagem
sutilezas de ironia lançadas contra uma sociedade hipócrita e corrupta, sofredora e
pobre, com toda a gama de miséria morais.
A ruptura com a tradição teatral e suas inovações levaram Nelson Rodrigues a
merecer que seus escritos fossem adaptados para a televisão brasileira.
60
III - NELSON RODRIGUES E A TELEVISÃO BRASILEIRA
1. A Televisão Brasileira
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE (2001),
dos 5.506 municípios brasileiros, 93% não possuem sala de cinema, 85% não têm
museus e teatros e 25% não possuem nem bibliotecas. Por outro lado, o Brasil conta
com canais de televisão que cobrem cerca de 98% do território nacional e
aproximadamente 145 milhões de telespectadores. Sendo assim, não é difícil
presumir que a televisão reina absoluta no acesso à cultura, lazer e informação de
grande parte da população brasileira.
Em primeiro lugar, porque a televisão atinge 145 milhões de brasileiros,
muitos dos quais têm nela a sua única fonte de informação, lazer e cultura, atuando
no processo de formação desses indivíduos na medida em que os informa, seja
quando os diverte ou não. Em segundo, observamos a televisão como uma vitrine na
qual a sociedade pode se ver, assim como o cinema, a literatura, o teatro ou a arte de
um modo geral. Neste sentido, pode ser importante nos determos um pouco mais
neste ponto, que considera haver uma relação direta entre a literatura, o cinema, a
arte em geral, os programas televisivos e a sociedade.
Assim como a literatura pode levar-nos a pensar sobre a sociedade, a
televisão também tem essa capacidade. Podemos afirmar que ela traz elementos para
pensar as relações sociais, pois através dela vêem-se representados traços que as
caracterizam, como a cordialidade, o jeitinho brasileiro, a valorização do corpo, as
paixões pelo carnaval e pelo futebol, entre outros aspectos, que ressaltam a inserção
de seus produtores numa teia de relações sociais que caracterizam o país, e a
internalização de valores que acabam aparecendo na elaboração dos programas.
60
O sociólogo Bourdieu (1996, 1997) defende o estudo das relações entre a
produção cultural e a sociedade, não somente na obra As regras da Arte, como
também em Sobre a televisão. No campo sociológico os programas televisivos
podem ser considerados produto cultural, só que com especificidades próprias, entre
as quais destacamos a possibilidade de um maior alcance de público. Observamos,
com essas considerações de Bourdieu, que existe relação intrínseca entre produção,
veículo de comunicação, produto e público consumidor.
1.1. A visão rodrigueana sobre a TV brasileira
Para Nelson Rodrigues, a unanimidade contra a TV não era burra – era irreal
e hipócrita. Certas coisas, segundo ele, um grã-fino só ousaria revelar num terreno
baldio, à luz dos archotes, na presença solitária de uma cabra vadia. Outras não diria
jamais, mesmo em solo seguro. Por exemplo: o grã-fino que assistia as novelas O
Direito de nascer, Sheik de Agadir, Os Irmãos Coragem, que não perdia um
programa de Dercy Gonçalves, do Chacrinha, do Raul Longras, só admitiria que
gostava de televisão ao médium, depois de morto (Cf. Rodrigues,1996, p.234). A
condição social de “pequeno burguês” – “sem nenhum laivo de grã-finismo” ou
“pose de intelectual” (Nelson gostava de apresentar-se como um intuitivo) – lhe
dava, em contrapartida, “descaro bastante” para confessar de peito aberto não só que
assistia à televisão brasileira, como gostava dela, com todo o seu tão característico e
discutido mau gosto (Rodrigues, 1996, p. 225).
Na década de 70, os leitores de O Globo se espantaram, decerto, ao ver a
firmeza com que Nelson Rodrigues interpelou o líder da cruzada por uma televisão
mais virtuosa – o ministro da Comunicação Hygino Corsetti ventilara a hipótese de
61
cassar a concessão das emissoras que insistissem com o “sensacionalismo” e a
“baixaria”. O cronista classificou de “uma selva de equívocos” o pronunciamento de
sua excelência sobre a programação das emissoras brasileiras. Como de hábito,
Nelson abusou do sarcasmo para desacreditar seu adversário: a verdade inapelável e
fatal – insinuou – era que o “Sr. ministro” só pudera iluminar a todos com uma
“minuciosa análise reflexiva sobre as nossas TVS (sic)”, porque, no fundo, fazia
parte dos oito milhões de brasileiros que passavam os dias e as noites diante da
telinha; era, entre quatro paredes, um telespectador atento, fanático, “dos que vêem
novela, e tanto as vê que acha algumas de uma extensão fatigante” (Cf. Rodrigues,
1996, p.232).
Mas, o que queriam, afinal, os aguçados opositores da televisão brasileira?
questionava Nelson Rodrigues. Uma TV anti-público, igualzinha à Rádio MEC,
solitária, despovoada, abandonada à própria sorte? “Se há uma emissora que precisa
de uma média de Aristóteles, Goethe, Marx, é exatamente essa”, ponderou o cronista.
“Mas, para isso, para que cheguemos a um nível tão desejável, temos que esperar uns
três milhões de anos. Daí para mais. Enquanto o mundo esteja nivelado por baixo,
seremos fervorosos telespectadores.” (Rodrigues, 1996, 233).
O nosso autor costumava afirmar que nossa televisão era o espelho de nosso
povo:
A pior televisão do mundo é a inglesa com aquela maniacultural. A TV tem que ser feita para as massas e as massas sãoburras e têm mau gosto e não têm nada que ver com a grande arte,com a grande música, com a grande pintura. Se ela é feita para asmassas tem que ter o nível das massas. Evidentemente, você nãovai investir bilhões numa TV para que o Proust diga: ‘Está ótimo.Tem bom gosto’.7 (Rodrigues, 1996, p.234)
7 (“Eu sou um ex-covarde”, entrevista, Veja, 04/06/1969, 5; consultar, também, Rodrigues, s/d, p.119;Rodrigues, [13/9/1971] 1996, p.233); “De rainhas loucas, bem-amados, irmãos coragem, etc, etc.”,Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p. 20).
62
Aos “radicais” que, seguindo o ministro Hygino Corsetti, repetiam a ladainha
“Precisamos mudar a televisão”, Nelson rebatia que mais correto e inteligente seria
“mudar o povo”: “Em vez de fazer severas restrições à TV, sua excelência devia
endereçá-las ao povo. E, então, chegaríamos a essa contingência realmente
constrangedora: substituir um povo por outro povo.” (Cf. Rodrigues, 1996, p.234).
Quando já fazia parte da história da televisão brasileira, Nelson Rodrigues se
manifestou, de forma enfática, em sua defesa. Das declarações anteriores,
depreendemos que ele estava solidamente convicto de que o veículo que conhecia tão
bem era – e deveria ser – um reflexo do gosto popular, das preferências da massa
ignara. Ao contrário do ministro Hygino Corsetti e de tantas outras autoridades
governamentais e intelectuais, ele não via problema algum, inclusive, em utilizar o
Ibope como sismógrafo dos anseios da audiência: “(...) Essas pesquisas são
imprescindíveis. Eu diria mesmo que o pior cego é o que não vê a utilidade de tais
pesquisas. (Foi, naturalmente, um lapso de sua excelência)” (Rodrigues, 1996,
p.233).
Quando o assunto era televisão, Nelson se indispunha, pois, com gente de
todas as divisões ideológicas. Sua perspectiva crítica diferia das posições tradicionais
a respeito do papel e da influência da mídia moderna. Em linhas gerais, enquanto a
direita credita às falhas morais e ao congenial (mau) gosto do vulgo o baixo nível da
cultura de massa (enxergando na mesma, não raro, um perigo às estruturas
tradicionais de autoridade, um ultraje à família, um estímulo à irresponsabilidade no
lar e no trabalho), a esquerda atribui esse baixo nível às duras condições de vida e
trabalho na sociedade capitalista e ao empenho da elite para domesticar uma
população potencialmente insubmissa, explorando seu desejo natural por recreação,
63
com o intuito de mantê-la indiferente aos destinos da sociedade, preservando, assim,
o status quo.
Nelson Rodrigues concordava que a televisão brasileira era de um mau gosto
profundo, reflexo, por sua vez, do mau gosto da multidão insensível ou refratária à
Cultura; não via, porém, nenhum mal nisso – seja do ponto de vista moral, político
ou estético. Ele reagiu, com veemência, por exemplo, contra a “ditadura do Juizado
de Menores” que escorraçara as novelas do horário nobre para as onze horas da noite.
Do ponto de vista psicológico – argumentou – era uma asneira imaginar que os
folhetins pudessem produzir “uma geração de perigosíssimos gangsters juvenis”.
Pelo contrário: o efeito catártico lhes conferia o salutar papel de higienizador mental.
Do ponto de vista estético, ironizou que chegava a ser “sublime” a idéia de impor o
bom gosto “a pauladas”. O pior é que os “assassinos da telenovela” estavam apenas
começando a agir; como uma coisa puxa a outra, não tardaria para que as marchas e
os sambas fossem igualmente expulsos do horário nobre (Cf. Rodrigues, 1996, p.47-
48).
Do ponto de vista político, Nelson atribuía à dificuldade de respeitar e
compreender o gosto popular (Chacrinha, escola de samba, Fla-Flu, sexo) uma das
principais razões do fracasso das esquerdas no Brasil, mais solitárias, mais insuladas
do que um Robinson Crusoé sem radinho de pilha (Cf. Rodrigues, 1993, p. 120).
Leitor de Ponson du Terrail, Eugène Sue, Michel Zevaco, Xavier de
Montepin, Alexandre Dumas pai; autor de Meu destino é pecar, Escravas do amor,
entre outros folhetins assinados com o pseudônimo de Suzana Flag ou Myrna,
Nelson Rodrigues não manifestava grande entusiasmo pela modernização da
telenovela empreendida (a contragosto ou não) por Dias Gomes e outros autores com
64
ambições revolucionárias no plano político e/ou estético. No seu entender, a televisão
(como, de resto, toda a indústria cultural) era sinônimo de diversão, passatempo,
fortes emoções e é só. A missão da telenovela não era expor as chagas do país,
conscientizar politicamente as massas, mas entreter a santa e abnegada audiência.
Novela progressista era, na sua avaliação, um oxímoro – tratava-se de um gênero de
índole conservadora, que funcionava como válvula de escape para a sensaboria
cotidiana e para as tensões sociais: “A novela é sobretudo uma fuga. Como a
realidade é muito insatisfatória, a novela representa o sonho cotidiano para muita
gente. É um repouso.” (“De rainhas loucas, bem-amados, irmãos coragem, etc, etc”,
Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p.20). Tampouco cabia à TV mediar a alta cultura
para o grande público: a intenção de importar o modelo cultural europeu
(notabilizado pela televisão pública britânica) não era apenas precipitada;
representava uma traição a certo instinto de nacionalidade expresso pelas emissoras
brasileiras – com suas vulgaridades sublimes, com sua lealdade a formas narrativas e
espetaculares de comprovado apelo popular, no correr dos séculos, sobretudo na
América Latina (“Telenovela é uma epidemia nacional”, Veja, 07/05/1969, p.29; “Eu
sou um ex-covarde”, Veja, 04/06/1969, 5; “De rainhas loucas, bem-amados, irmãos
coragem, etc, etc.”, Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p. 20).
Atuando como advogado de Chacrinha, no caso do “Seu Sete da Lira”, o
nosso autor repisou a denúncia das imposturas intelectuais que norteavam a crítica
televisiva: “Aristóteles havia de achar uma graça infinita no nosso Abelardo
Barbosa. Claro, porque ele não precisa fingir inteligência.” (Rodrigues, 1996,
p.235). Nelson Rodrigues não foi o primeiro nem o único a conduzir Chacrinha ao
trono. Como é de conhecimento geral, “o velho palhaço” foi eleito um dos gurus do
65
tropicalismo, movimento artístico e comportamental que eclodiu no eixo Rio/São
Paulo em 1967, capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Antes deles, outro
intelectual da velha guarda, como Nelson, não escondera sua admiração pelo
comunicador. Em 02 de abril de 1966, a Manchete promoveu, dentro da série
Diálogos Impossíveis, o encontro entre Chacrinha e Rubem Braga – “homens de
mundos aparentemente diferentes”, mas “escravos ambos do povo”. A conversação,
a princípio difícil de se estabelecer, acabou esticando-se por horas a fio na cobertura
do “sabiá da crônica”, em Ipanema. Uma conversa longa e franca a respeito de temas
variados, mas em que prevaleceu a rasgação-de-seda e a troca de idéias acerca da
arte de cativar o gosto popular. (Cf. Rodrigues, 1996, p.236).
Será mera coincidência que os elogios à Chacrinha tenham partido de homens
de letras que se notabilizaram por sua atuação em gêneros não auráticos, cuja
expansão está ligada ao aparecimento dos meios de comunicação de massa? Decerto
que não. “Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e
ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e
pela manhã a desmancha, e vai”, meditou Rubem Braga, a respeito de seu ofício
([1951] 1978a, p.153). A consciência da própria efemeridade, a humildade de abrir
as portas do isolamento criativo para atender os anseios explícitos ou tácitos do
leitor, seu freguês, positivamente deixavam o cronista mais sensível, em alguma
medida, à preocupação e à habilidade dos profissionais de TV para afinar-se com as
flutuações do Ibope.
No caso específico de Braga, os pronunciamentos favoráveis à TV não eram
apenas fruto do entendimento e da solidariedade. Segundo o biógrafo José Castello
66
(1996, p.152-154), o cronista era um daqueles telespectadores fanáticos a que se
referia Nelson Rodrigues.
Acostumado aos holofotes, Nelson Rodrigues também visitou Chacrinha, na
TV Globo. Aceitou o prêmio de maior cronista esportivo de jornal, com o ar de quem
recebe um Nobel. Ficou pasmo com a multidão no estúdio: duas mil pessoas num
espaço que daria para quinhentas. E como Chacrinha era amado, ferozmente amado!
E isso levava Nelson a lamentar: “Nunca ninguém me deu, na vida real, tamanha
sensação de onipotência. Se mandasse o auditório atear fogo às vestes como uma
namorada suburbana (ou um monge budista), seria um fogaréu unânime.”
(Rodrigues, 1993, p.105). Alheias ao clamor nacional contra o milionário ordenado
do apresentador, as macacas-de-auditório sabiam reconhecer nele o “artista
maravilhoso”, “formidável”, “um gênio” no seu métier.
Vale lembrar que Nelson Rodrigues nem sempre era tão positivo na defesa
das predileções e do julgamento da audiência. Todo o discurso a favor do relativismo
cultural – “há uns trezentos bons gostos” (Rodrigues 1996, p.235) – e da necessidade
de auscultar e acatar o gosto do público caía por terra quando o assunto era o Teatro.
Este, no seu ponto de vista, permanecia indigno de ostentar a condição de grande
arte justamente por não pressupor uma concepção imaculada e uma fruição solitária,
reverente, análoga à do romance e à do soneto, tendo de submeter-se aos caprichos
da platéia (Cf.Rodrigues, 1993, p.156-157)8 Amargurado, o dramaturgo sonhava com
uma representação utópica, para cadeiras vazias: “Só seria autor, atriz ou ator,
aquele que tivesse disposto a trabalhar para ninguém. (...) Comecei a achar que
também as igrejas vazias são as mais belas. O que comprometia e debilitava a fé
eram os fiéis.” (Rodrigues, 1993, p.157).
8 Ver, também, Rodrigues [16/05/1968] 1993, p.247; Rodrigues, [18/03/1971] 1995, p.190).
67
Não há dúvida de que a hostilidade de Nelson Rodrigues contra as “duzentas
senhoras gordas comedoras de pipocas” da platéia teatral era, em larga medida, uma
resposta à recepção escandalizada ou pouca atenciosa às suas peças. Por ironia do
destino, no exato instante em que ele redigia suas crônicas, memórias e confissões, a
televisão brasileira incrementava as mudanças que visavam a atender nem tanto o
“bom-gosto-sem-tostão-dos-intelectuais” (Rodrigues, 1996, p.235), as plataformas
políticas mais ambiciosas dos artistas de esquerda, mas o bom-gosto do público de
classe média freqüentador displicente e desconceituado de teatro e consumidor (não
só) de pipocas (constituindo-se, por conseqüência, num agente importantíssimo para
a efetivação do projeto desenvolvimentista do governo militar e das emissoras de
TV). Em outras palavras: após muito alvoroço, muita palpitação, prevaleceu, em
detrimento dos discursos mais extremados que apregoavam a TV progressista ou a
TV cultural sob a interferência direta do Estado, a saída honrosa e conciliatória
daqueles que propugnavam por uma TV comercial, voltada para a informação e para
o entretenimento mais prudente e pudico – sem baixarias, cafajestadas, histerias e
outras concessões à gente sem classe.
1.2. Vestido de Noiva um clássico da televisão
No início dos anos 70, a TV Cultura flertava com o teleteatro e iniciou em
1974, o seu Teatro 2, com a estimulante presença de diretores como Fernando Faro,
Antônio Abujamra, Cassiano Gabus Mendes e Antunes Filho. A idéia inicial era a de
realizarem adaptações de textos literários para a TV e estava fundamentada em
orientação de cunho cultural, que de resto, já era a orientação geral da TV Educativa
68
. Pensava-se em levar ao conhecimento do público obras culturalmente importantes
graças ao seu valor artístico, e sobretudo pelo fato de arrancar do esquecimento
textos fundamentais do teatro brasileiro e levá-los a público numeroso.
Dentre esses tesouros gravados em videoteipe, que em 1977 somavam
aproximadamente oitenta telepeças, poucas coisas restaram, nos arquivos da TV
Cultura e tornaram-se inviáveis para a retransmissão devido às limitações técnicas. O
único teleteatro possível foi, felizmente, o Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues,
adaptado e dirigido por Antunes Filho, e que foi ao ar no dia 28 de dezembro de
1974, para comemorar o aniversário da encenação revolucionária da peça que alterou
radicalmente todos os conceitos e formas do teatro brasileiro. Assim, Antunes Filho
conseguiu realizar o momento mais sério e criativo que a televisão já teve, tornando
Vestido de Noiva uma espécie de clássico.
As possibilidades dos textos dramáticos adaptados para a televisão são
múltiplas. desde o texto de partida ao veículo de chegada , ou seja, a tradução
intersemiótica de uma obra pode gerar um re-criador, um teledramaturgo que
ofereça, à grande audiência de TV, uma oportunidade única de ver uma grande obra
dramática . O teatro, até então, restrito a uma platéia reduzida, seria ampliado para
um público numeroso através do teleteatro. O teatro representa, na televisão, um
papel que não deve ser negligenciado, pois todo um público só verá o teatro sob a
forma de uma retransmissão, de uma gravação ou de um teleteatro.
Ao reportarmo-nos à televisão feita nos anos 70, acreditamos estar diante de
uma experiência histórica de teleteatro. Antunes Filho fez para a televisão brasileira
uma nova leitura da obra rodrigueana e, com ela, atingiu momentos antológicos na
69
carreira dos nossos teleteatros, conseguindo realizar um dos momentos mais sérios e
criativos que a ficção já teve no Brasil.
Experiências similares chegam, com freqüência, à nossa pequena tela. É o
caso, por exemplo, da série Contos da Meia Noite, exibida desde março de 2004 pela
TV Cultura. Trata-se da leitura de obras de autores da literatura nacional a partir de
padrões cenográficos e interpretações inusitadas. Esses programas, com duração
curta, são experiências que provam a função respeitável esperada da televisão
brasileira. São modestas contribuições no sentido de se introduzir o público leigo no
campo da produção literária, a qual, se observarmos bem, vem resistindo ao longo
dessas seis décadas da implantação de emissoras de televisão no Brasil, desde os
remotos teleteatros dos anos 50 até às minisséries reproduzidas a partir de obras de
autores nacionais.
A qualidade em televisão passa, sem dúvida, pela difusão ampla de obras
universais que vêm sendo transmitidas desde os tempos das suntuosas e caras
“adaptações” de clássicos da literatura ou do teatro.
2. Um breve histórico das minisséries globais
Para um maior entendimento sobre a possibilidade de haver um sistema de
relações entre uma cultura erudita e outra de massa no conjunto das produções
realizadas pela emissora de televisão, tornou-se importante o conhecimento a
respeito da produção de todas as minisséries produzidas pela TV Globo que foram
inspiradas em textos literários feitos até então.
De acordo com os dados coletados através de pesquisas, foi em meados da
década de 80 que a Rede Globo inaugurou esse novo formato de programa – as
70
minisséries. Semelhante às novelas, só que mais curtas, geralmente suas produções
demandam custos muito altos. Elas são exibidas depois das 22 horas, e é nesse
horário que a emissora investe em novas tecnologias, como por exemplo, o uso da
filmagem em película (recurso de filmagem cinematográfica). Ao todo, já foram
produzidas oitenta e sete minisséries.
Vale ressaltar que das minisséries produzidas de 1984 até janeiro de 2005,
trinta e três foram feitas tendo por base textos literários, a maioria de autores do
século XX. Importa observar que entre os autores mais adaptados encontram-se
alguns considerados como clássicos da nossa literatura contemporânea.
Jorge Amado, com o qual a Rede Globo mais trabalhou, teve quatro obras
adaptadas: Tenda dos Milagres, produzida em 1985; Tereza Batista, feito pela
emissora em 1990; Dona Flor e seus dois maridos, exibida em 1998 e Pastores da
Noite em 2002. O segundo escritor mais adaptado foi Nelson Rodrigues, com três
trabalhos: Meu destino é pecar, que foi a segunda minissérie adaptada pelo canal de
televisão, em 1984; Engraçadinha, feita em 1995 e A Vida Como Ela É..., em 1996,
com quarenta episódios exibidos no programa dominical Fantástico. Os outros dois
autores nacionais mais de uma vez adaptados são: Érico Veríssimo com O Tempo e o
Vento em 1985 e Incidente em Antares no ano de 1994 e Dias Gomes, com O
Pagador de Promessas em 1988, que anteriormente havia sido adaptado para o
cinema, e Decadência, exibida em 1995.
Com exceção do argentino Mempo Giardinelli, que teve a obra Luna Caliente
resgatada e transformada em minissérie em dezembro de 1999, e de Eça de Queirós,
autor português duas vezes adaptado – primeiro, com O Primo Basílio em 1988, e
em 2001 com Os Maias - as outras vinte e oito produções foram baseadas em autores
71
brasileiros. De certa forma é possível perceber que há uma preferência por títulos
nacionais e autores conhecidos do grande público. Além deste fato, dos vinte e um
autores adaptados, dez são imortais da Academia Brasileira de Letras.
Depois de levantar esses dados a respeito das minisséries, percebemos que a
presença do gênero melodramático nessa indústria de contar histórias, na qual se
especializou a Rede Globo de Televisão, sempre foi significativamente enfatizado.
No entanto, parece evidente que, diferente das telenovelas que abordam
preferencialmente contextos muito próximos do cotidiano, as minisséries são a
especialização de uma nova forma de recontar a história do nosso país. Ao se
apropriar de autores que, de certa forma, retratam a realidade nacional através de
seus livros, a emissora vem ao longo desses vinte e um anos proporcionando ao
grande público relembrar alguns momentos históricos da nossa sociedade. Houve,
desde o início, uma tendência em reproduzir nas narrativas um clima capaz de
mobilizar os telespectadores, criando uma atmosfera de realismo convincente, que de
alguma forma se utiliza de dramas individuais para retratar os contextos nacionais.
Outro aspecto a ser considerado é que, mesmo em casos de fracasso de
audiência, como ocorreu com a minissérie Os Maias, problemas de produção não
impediram a grande vendagem de alguns livros adaptados. Reconhecemos que a
dramaturgia televisiva inspirada na literatura tem o mérito de movimentar as
livrarias. No mês em que a minissérie Agosto foi exibida, no ano de 1993, o livro de
Rubem Fonseca teve mais de trinta mil exemplares vendidos. No caso do romance
Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, lançado em 1992, foram vendidos
cinco mil exemplares até maio de 94, quando a minissérie estreou. Durante o
programa, a vendagem dobrou. O sucesso da minissérie A Muralha impulsionou a
72
venda dos livros, mais de 18 mil exemplares do romance de Dinah Silveira, que há
muito estava fora de catálogo, foram comprados no mês de janeiro em 2000. Outro
exemplo desta influência marcante é que as produções da Rede Globo exercem sobre
o mercado editorial está relacionado ao sucesso repentino em torno do livro A Casa
das Sete Mulheres, da autora Letícia Wierzchowski. Lançado em abril de 2002,
tinham sido vendidos, até a estréia da minissérie, treze mil exemplares. Após chegar
à TV, ultrapassaram os trinta mil em três semanas.
3. A minissérie a Vida Como Ela É...: O Anjo
Nelson Rodrigues sempre provocou controvérsias e
polêmicas com suas histórias obsessivas e fortes, de estilo
contundente. Os episódios de Vida Como Ela É... foram
baseados nos contos que Nelson publicou por anos na
imprensa carioca. São adaptações assinadas pelo roteirista
Euclydes Marinho e pelo diretor Daniel Filho. Vinheta de abertura da minissérie
A atmosfera dos anos 50, típica das histórias de Nelson, está presente na minissérie,
que foi registrada em película cinematográfica, apresentada no período de maio a
dezembro de 1996 pela TV Globo. Como em um grupo de teatro de repertório,
alguns atores e atrizes participam da maioria das histórias. Foram adaptados 40
contos (O Monstro, A Divina Comédia, Quem Morre Descansa, O Grande Viúvo, O
Gagá, O Homem Fiel, A Grande Pequena, O Decote, O Casal de Três, O Anjo -cujo
título original é Diabólica e também foi adaptada posteriormente para o cinema,
Gastrite, O Bonitão, Uma Senhora Honesta, Covardia, O Único Beijo, Fruto do
Amor, Marido Fiel, Viúva Alegre, Enciumada, Cheque de Amor, O Pediatra,
73
Delicado, Vontade de Amar, A Esbofeteada, A Futura Sogra, O Homem Que Não
Conhecia o Amor, Fome de Beijos, Sem Caráter, O Sacrilégio, Pai Por Dinheiro,
Terezinha, A Curiosa, Amor Mercenário, A Desprezada, Boa Menina, Em Casa e na
Rua, A Dama do Lotação - adaptada também para o cinema em 1978, O Padrinho,
Pacto de Amor e A Grande Mulher), transformados em quarenta episódios, de doze
minutos cada, exibidos no programa de variedades Fantástico que vai ao ar
semanalmente. Vale ressaltar que esta forma de exibição de uma minissérie também
foi inovadora.
Analisando a adaptação de A Vida Como Ela É..., notamos que os contos
contêm os elementos centrais que a ficção televisional almeja, como narrativas
intrincadas de acontecimentos, o melodrama. Já em relação à adaptação de obras
literárias para o meio televisivo, Hélio Guimarães (2003) propõe que este é um
espaço de grande debate e complexidade. A adaptação envolve diversos elementos
como co-autoria, fidedignidade, identificação entre público e produto televisivo,
atualização de obras etc.
Após abordarmos uma breve descrição da minissérie A Vida Como Ela É...
baseadas em textos literários adaptados para a televisão, passaremos a analisar um
caso concreto, o conto Diabólica que na TV recebeu o título de O Anjo.
Em nome de uma adaptação fidedigna, este episódio da minissérie foi
praticamente o conto ipsis literis, mas não conseguiu transferir a “atmosfera do texto
rodrigueano” para a narrativa televisiva. As personagens são dotadas de uma “certa
leveza”, incomum, uma vez que, Nelson Rodrigues gostava de abusar de suas
74
características tanto psicológicas como físicas. Observamos também que os recursos
que poderiam enriquecer a narrativa foram pouco explorados, tais como, vários
planos de cena, a exploração do inconsciente das personagens, flashback entre
outros.
Cenas da minissérie: Geraldo e Dagmar na noite de noivado, ao lado a irmã Alicinha.
Entretanto, ressaltamos que os episódios da minissérie A Vida Como Ela É...,
inseridos no programa Fantástico, representam “o momento de descanso” para o
telespectador, isto é, funcionam na TV como a crônica funciona no jornal. Na
televisão, a narrativa de Nelson Rodrigues passa a ser crônica, enquanto no cinema
vai ser conto. O contexto do filme é ele mesmo, por isso o trágico fica mais evidente.
Talvez seja essa a razão porque na televisão ocorra maior superficialidade.
Segundo Hélio Guimarães(2003), a busca quase obsessiva pela adaptação
fidedigna da obra – que deveria ser apenas “transportada” para a televisão – esquece
uma dimensão constitutiva da própria experiência literária, que é a existência de
múltiplas leituras possíveis, para além das figuras platônicas de uma “essência” ou de
um sentido verdadeiro do texto. Logo, as adaptações de obras da literatura para a
televisão que se prendem por demasia à suposta fidelidade ao texto escrito – como
uma espécie de reverência ao sagrado cultural – correm sempre o risco de
incompreensões e inadequações em virtude da transposição mecânica de um veículo
a outro, realizada sem a devida atenção aos seus padrões internos.
A adaptação do conto Diabólica9, realizada por Euclydes Marinho, é uma
interpretação possível dentre tantas outras, além do que a obra literária quando passa
9 Diabólica é o título original do conto escrito por Nelson Rodrigues, porém na adaptação para a TVrecebeu o título de O Anjo.
75
para o meio televisivo torna-se um novo produto cultural. Como todo produto
cultural, essa nova obra – veiculada em um meio de comunicação de massa –
também apresenta uma pluralidade de interpretações, haja vista a heterogeneidade da
recepção, podendo ser, portanto, tão crítica, bela e criativa quanto a obra que a
originou.
O argumento de Guimarães com relação às especificidades do meio
televisivo é procedente e relevante. Nesse sentido, faz-se necessário explicitar quais
são estas especificidades e o que seria o “padrão televisivo”.de funcionamento do
campo televisivo e seus efeitos. A lógica de produção televisiva, promove, de acordo
com o autor, uma grande pressão pelo que é extraordinário, uma homogeneização da
produção e uma falta de autonomia para seus produtores. Outro efeito ocasionado
pelo índice de audiência é a pressão pela urgência, pela rapidez, pela velocidade.
Esta pressão pelo comercial impõe-se também em outros campos por influência da
televisão, principalmente no campo artístico pela lista de best-sellers.
Ainda sobre o padrão televisivo e sua lógica de funcionamento, Sodré e
Paiva (2002) explicam que a televisão massiva caracteriza-se, desde o início, por um
ethos de praça pública onde o grotesco é a categoria estética dominante, responsável
pelo formato popularesco. O grotesco associa-se ao disforme, ao desvio da norma em
relação a costumes ou convenções culturais. Esta categoria possui relação estreita
com o que Bourdieu chama de extra-ordinário e provoca como reações típicas o riso
cruel, o horror, o espanto e a repulsa. Nesse sentido, podemos afirmar que O Anjo,
assim como todos os outros contos que compõem a minissérie, são perfeitos,
adequados para a televisão.
76
Segundo Hans Robert Jauss (1993), toda modalidade cultural desenvolve
um horizonte de expectativas para seus receptores, formada a partir de todo um
conjunto de padrões que servem como referência para a recusa ou a absorção de uma
nova obra. A absorção se dá a partir da adequação da nova obra com o horizonte de
expectativas do receptor. Sendo assim, é possível que o público realmente tenha se
identificado com a produção estética, a narrativa, a linguagem de O Anjo e que
Nelson Rodrigues tenha se tornado uma unanimidade nas noites de domingo de1996.
Cena da minissérie: Alicinha seduzindo Geraldo Cena da minissérie: Geraldo estrangulando.Alicinha.
77
IV – DA TELEVISÃO AO CINEMA: DE ANJO A DIABÓLICA
1- O teatro rodrigueano: inspiração no cinema
Mais de uma vez Nelson afirmou que distinguiam em sua obra as “as ações
simultâneas em tempos diferentes”, técnica lançada em Vestido de Noiva quando
utiliza os planos da realidade, da memória e da alucinação. Essa flexibilidade de
linguagem é atribuída à influência do cinema :
O realismo cinematográfico, sobretudo depois que se passou a falarna tela, absorveu o diálogo espontâneo, natural, cotidiano semprejuízo dos avanços dos cortes, das elipses dos flashbacks. Ocinema tornou-se admirável escola de uma novas linguagemficcional. Por que não incorpora-la ao palco? Acredito que agrande liberdade da técnica dramatúrgica de Nelson tenha nascidona observação de espectador cinematográfico . Se a Sétima Artenão teve pudor de assenhorar-se de procedimentos teatrais, arecíproca não mereceria condenação. (MAGALDI, 1992. p.43)
Podemos admitir que Nelson Rodrigues, estimulado pela linguagem do
cinema, modificou a composição tradicional da peça que observava a apresentação, o
desenvolvimento e o desfecho do tema, em escala cronológica. Retomando o
exemplo de Vestido de Noiva, uma mulher morta assiste ao próprio velório e diz do
próprio cadáver: “Gente morta como fica”. Apesar de morta em 1905, contracena
com uma noiva de 1943, Alaíde, cuja desagregação da mente permite tal disparate.
A dramaturgia rodrigueana tornou o palco mais flexível, menos
sobrecarregado. Nelson Rodrigues, na sua inclinação natural para a vanguarda, deu o
ponto de partida com o Vestido de Noiva: um plano da realidade preenchido por
poucas e rápidas cenas que vão do atropelamento à morte de Alaíde, passando pelos
ruídos próprios do ambiente como a sirene da ambulância, a notícia transmitida na
redação de um jornal, a sala em que os médicos operam a vítima.Simultaneamente, o
78
espectador começa a assistir às cenas que introduzem os planos da memória e
alucinação. Os diálogos tornam-se projeções da mente da protagonista em coma. O
autor trabalha com cenas curtas ligadas como por assim dizer, as fades in ou fades
out (clareamento/ escurecimento da imagem que indica o início ou o término de uma
cena ou seqüência) desligando as luzes que iluminam o palco entre uma cena e outra.
Trata-se, portanto, de um dramaturgo de índole cinematográfica, criando situações
que já contêm em si, seqüências de sugestões de roteiros.
Outro elemento da linguagem cinematográfica que vemos no teatro de Nelson
Rodrigues é a sua pontuação, ou seja, a passagem instantânea de um plano a outro
que constitui o corte que quebra a narrativa ou a passagem de um enquadramento a
outro que , no seu teatro, assemelha-se à técnica cinematográfica . (Exemplo pode ser
visto no texto da peça Vestido de Noiva, In: Teatro Completo de Nelson Rodrigues -
peças psicológicas. Nova Fronteira, 1981 p. 157,158). O fechamento (fade out) que é
o escurecimento da tomada até o desaparecimento total da imagem e a abertura (fade
in) procedimento contrário fundam-se, isto é, há combinação dos dois elementos.
Enquanto um desaparece, o outro toma simultaneamente seu lugar. O fechamento
corresponde a uma espécie de ponto final, a abertura equivale a um novo parágrafo e
a fusão corresponde às reticências.
Por fim, diríamos também que a pontuação teatral de Nelson Rodrigues dada
a diversidade de cenas curtas , mudanças de planos, ritmos e seqüências, assemelha-
se à linguagem cinematográfica.
Os recursos técnicos tomados do cinema estão presentes em quase toda a sua
obra. Nelson joga com os planos, fusões e ritmo das seqüências com a segurança de
um verdadeiro cineasta, como diria Pompeu de Souza .
79
O biógrafo de Nelson Rodrigues, Ruy Castro acredita que o autor deveria ter
assistido a um filme do final do Expressionismo Alemão11. Trata-se de Varieté, que
passou no Rio em 1926, e atraiu um público numeroso, no Centro e na Tijuca. O
filme tinha todos os recursos do gênero alemão como o claro-escuro, a câmera olho ,
a cenografia muito abstrata, a atmosfera de alucinação e a morbidez. Nelson citaria
Varieté em entrevista a José Lino Grunewald, como um dos seus filmes favoritos que
assistira aos catorze anos.
No campo estético, o teatro rodrigueano tem toda a influência do
Expressionismo onde seu gigantismo conduz, freqüentemente, à disformidade, à falta
de medida, aos procedimentos paroxistas. A deformação da realidade superficial,
visível a olho nu, em proveito do descortinamento de uma realidade mais profunda,
interior, é vista através de uma lente que a transforma, amplia e a deforma. No
campo da concepção criadora a arte de Nelson Rodrigues é quase integralmente
instintiva e adota recursos e propostas não só cinematográficos mas incorpora todas
as artes que auxiliam na composição da “ilusão teatral”.
2. As adaptações Cinematográficas Rodrigueanas
O filme Traição(1997) marcou a volta de Nelson Rodrigues aos cinemas
depois de quinze anos de ausência - o último longa-metragem baseado em sua obra
foi Perdoa-me por me traíres, de Braz Chediak em 1983. Pode-se dizer que um dos
aspectos revolucionários da dramaturgia de Nelson Rodrigues foi ter rompido com os
paradigmas da linguagem teatral de seu tempo, empregando, em peças como Vestido
11O Expressionismo Alemão é uma das mais importantes vertentes das vanguardas européias, no iníciodo século XX, sendo marcado pela valorização da subjetividade na produção artística. Em detrimento de outrosmovimentos mais regidos pelo racionalismo, o expressionismo buscava retratar estados primitivos. Fonte: SHULAMITH, Berh. Expressionismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
80
de Noiva e Anjo Negro, elementos de linguagem que tinham um íntimo parentesco
com o cinema, como os flashbacks e outros recursos visuais e sonoros, que
produziram uma atmosfera fantástica e onírica até então inédita nos palcos, como
vimos anteriormente. Não é de se estranhar, portanto, que sua obra tenha cativado
diversos cineastas brasileiros ao longo dos anos. Os filmes de longa-metragem
baseados na obra de Nelson Rodrigues em ordem cronológica são: 1952 - O meu
destino é pecar - direção de Manuel Peluffo, 1962 - Boca de Ouro - direção Nelson
Pereira dos Santos, 1963 - Bonitinha mas Ordinária – direção Bill Davis,
pseudônimo de J.P. de Carvalho, 1964 - Asfalto Selvagem direção J.B. Tanko, 1965 -
O beijo – direção Flávio Tambellini e a A falecida – direção Leon Hirszman, 1966 -
Engraçadinha depois dos 30 direção J.B. Tanko, 1973 - Toda nudez será castigada
direção Arnaldo Jabor, 1975 - O casamento- direção Arnaldo Jabor, 1978 -A dama
do lotação direção Neville de Almeida, 1980 - Os sete gatinhos direção Neville de
Almeida, O beijo no asfalto direção Bruno Barreto e Bonitinha mas ordinária ou
Otto Lara Resende, de Braz Chediak, 1981 - Álbum de família - Uma história
devassa direção Braz Chediak e Engraçadinha com direção de Haroldo Marinho,
1983 - Perdoa-me por me traíres - direção Braz Chediak.
81
Cartaz: Boca de Ouro, 1962 Cartaz: A Falecida, 1965
Cartaz: A Dama do Lotação, 1978 Cartaz: Bonitinha mas Ordinária, 1980
3. Traição em foco: Diabólica
O filme Traição mostra que a obra de Nelson Rodrigues continua vibrante,
provocativa e moderna. Por isso mesmo, como todos os clássicos, ela é capaz de
produzir incessantemente novas leituras. É o que mostram as visões ousadas e
originais das três histórias que compõem o filme Traição: O Primeiro Pecado,
Diabólica e Cachorro! A trilogia retrata as relações amorosas em tramas urbanas do
Rio de Janeiro nos anos 50, 70 e 90.
82
Cartaz do filme Traição, 1997
O filme concilia a liberdade na adaptação do universo de Nelson com a
fidelidade às marcas registradas do autor que revolucionou nossa dramaturgia,
abalando os alicerces morais da família brasileira: a caracterização inimitável de
tipos sociais, a obsessão exasperada pelo adultério, o senso de humor incomum e a
utilização das personagens como cobaias de experiências de transgressão. Co-
produzido pela Conspiração Filmes, Globosat e Ravina Produções, Traição tem a
produção assinada por Flávio R. Tambellini, Leonardo Monteiro de Barros e Pedro
Buarque de Hollanda. Os três episódios O Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro!
mostram que, também nas crônicas/contos que publicou diariamente no jornal
Última Hora nos anos 50, Nelson Rodrigues fazia da hipocrisia moral e das
convenções sociais o seu alvo preferido, criando personagens rigorosamente
modernas para o seu tempo e permanentemente atuais, como a versão carioca de
Lolita12, interpretada pela atriz Ludmila Dayer em Diabólica com direção de Cláudio
Torres.
Sobre a escolha do conto Diabólica, o diretor Claudio Torres afirma:
A minha intenção foi mostrar o lado fantástico de NelsonRodrigues, o clima surreal que está presente, por exemplo, na peçaVestido de Noiva. E também no texto de Diabólica, que envolveum triângulo amoroso e uma morte. Um aspecto que me interessounesta crônica é que a Alicinha é uma personagem recorrente naobra do Nelson, que tinha uma verdadeira obsessão por ninfetas de13 anos, como mostram Engraçadinha e Bonitinha mas ordinária.É uma visão nada hipócrita do sexo, pois mostra que umaadolescente pode se comportar como uma mulher. Minha
12 Lolita é um romance em língua inglesa de autoria do escritor russo Vladimir Nabokov(1899-1977) publicadopela primeira vez em 1955. O romance é narrado em primeira pessoa pela protagonista, o professor de poesiafrancesa Humbert Humbert, que se apaixona por uma menina de 12 anos, chamada Dolores. O professor apelidaDolores de Lolita. Foram realizadas duas versões cinematográficas do romance: a primeira, de 1962, feita porStanley Kubrick e a outra em 1997 dirigida por Adrian Lyne.O livro deu origem a duas gírias de natureza sexual:lolita e ninfeta, significando meninas menores de idade ou adolescente sexualmente atraentes e/ou precoces.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/lolita
83
preocupação foi que a história fosse filmada de uma forma não-vulgar.13
Com uma linguagem própria o cinema se firmou como a arte do século XX –
a arte do homem moderno. Nenhum meio artístico, atualmente, reflete tão claramente
esse homem e sua compreensão estética de ver o mundo, como já considerava Walter
Benjamin:
Mas nada revela mais claramente as violentas tensões do nossotempo que o fato de que essa dominante tátil prevalece no própriouniverso da ótica. É justamente o que acontece no cinema, atravésdo choque de suas seqüências de imagens. O cinema se revelaassim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente maisimportante daquela ciência da percepção que os gregos chamavamde estética (1996, p. 194).
Da estrutura teatral à representação literária, o cinema buscou bases para a
criação de uma linguagem visual nunca antes confrontada com o espectador
contemporâneo: a linguagem do movimento. David Griffith14 e Sergei Eisenstein15
contribuíram para a formação da linguagem cinematográfica, já demonstrando o que
caracterizaria o futuro da teoria da sétima arte: um conflito de idéias quanto à
representação e interpretação de sua imagem cinematográfica artística e o comercial.
13 Depoimento extraído do site www.uol.com.br/fernandamontenegro/traição.htm14 O americano David Griffith (1875-1948), é considerado o criador da linguagem cinematográfica. Foi oprimeiro a utilizar dramaticamente o close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Em1915, com Nascimento de uma Nação, realiza o primeiro longa-metragem americano, tido como a base da criaçãoda indústria cinematográfica de Hollywood. Com Intolerância, de 1916, faz uma ousada experiência, commontagens e histórias paralelas. A montagem paralela, isto é, a alternância de duas ou mais linhas de ação, e o“last minute rescue” (salvamento de último minuto) que são duas formas de construir o suspense. O travelling éoutra das inovações introduzidas por ele. Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/david_griffith.
15 Sergei Mikhailovich Eisenstein é um dos nomes fundamentais na consolidação da linguagem das imagens emmovimento. Com 26 anos fez A Greve, mostrando que arte e política podiam andar juntas. Aos 27, OEncouraçado Potemkin. Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/sergei_mihailovich_eisentein
84
Mas essa linguagem, apesar de estabelecida, nunca se revelou como totalitária
em suas formas de apresentação. Da Nouvelle Vague16 aos Blockbusters americanos,
a linguagem passava por alterações estéticas que logo eram assimiladas.
Na década de noventa, vários estilos cinematográficos alteraram a maneira de
apresentação das películas desde os movimentos como os independentes e o Dogma
9517 até a estranha e reducionista concepção “cinema de países”.
Porém, todos esses movimentos são claramente exemplos da evolução de
meios estéticos já apresentados pela linguagem cinematográfica, não apresentando,
portanto, recursos estilísticos tão diferenciados ou influenciados por outras áreas,
com exceção talvez do Dogma 95.
A modernidade da imagem cinematográfica é reflexo de um processo
histórico em que a arte tenta se renovar em releituras de seus próprios conceitos e
criação de outros. A diversidade estilística característica do cinema comercial dos
anos noventa retrata uma geração multimídia de novos profissionais e espectadores
que acabaram por alterar os rumos da cinematografia contemporânea.
No Brasil, isso se evidenciou com a atuação de profissionais tanto no meio
televisivo quanto no cinema. Nos anos oitenta despontaram os principais atuantes do
cinema da década de noventa, com a grande maioria dos profissionais com
experiência televisiva em produções independentes, que se constituíam claramente
16 Nouvelle Vague foi um movimento artístico do cinema francês que se insere no movimento contestatáriopróprio dos anos sessenta. As características mais marcantes desse estilo são a intransigência com os moldesnarrativos do cinema estabelecido, através do amoralismo, próprio desta geração, presente nos diálogos e numamontagem inesperada, original, sem concessões à linearidade narrativa. Fonte:http://pt. wikipedia.org/wiki/nouvelle_vague
17 O Dogma 95 é um movimento cinematográfico internacional lançado a partir de um manifesto publicado em13 de março de 1995 em Copenhague, na Dinamarca. Os autores foram dois cineastas dinamarqueses, ThomasVinterberg e Lars von Trier. O manifesto visa a criação de um cinema mais realista e menos comercial. Trata-sede um ato de resgate do cinema como feito antes da exploração industrial.Fonte: http://pt. wikipedia.org/wiki/dogma_95
85
como manifestações do desejo de se fazer cinema, e, neste caso, dentro da própria
televisão.
Com a chamada “retomada” do cinema brasileiro, grande parte desses
diretores, que haviam migrado para a televisão, voltam a atuar no cinema junto com
novos diretores, trazendo consigo a experiência videográfica. Ao mesmo tempo
produtoras de publicidade, como O2 Filmes e Conspiração Filmes (co-produtora do
filme Traição) começam a entrar no mercado cinematográfico, atuando com
produções influenciadas pelo passado multimídia de seus profissionais: é a chamada
estética publicitária.
O filme Traição, e na trilogia especificamente o conto Diabólica, reúne a
maioria dos elementos para se fazer uma análise da modernidade visual do cinema
comercial da atualidade. Além de seus recursos narrativos (roteiro), “flashbacks”,
ironia e violência (temas caros ao cinema independente, precursor desta estética) e
profissionais da área publicitária, Diabólica possui um discurso imagético que
poderia ser analisado dentro de um tripé: montagem, fotografia e direção.
Lévi-Strauss em sua obra O Pensamento Selvagem reafirmava a importância
de se reduzir a um ponto de reflexão (a obra – neste caso, a imagem de Diabólica)
para não se equivocar e desviar o olhar crítico para o autor ou para a realidade. Daí
sairia a consciência estética: “Colocar a obra no centro da reflexão... corresponde
intimamente às tendências mais fortes do desenvolvimento teórico atual”
(MERQUIOR, 1975, p.26)
Mas por que essa necessidade excessiva de se excluir a estória contada e a
realidade que a permeia? Porque o centro de estudo da estética repousa
acentuadamente na imagem. Além disso, no cinema esta ainda se apresenta na forma
86
de linguagem, com suas características próprias, excluindo o conteúdo que nela é
abordado. Sobre o discurso imagético que foge à diegese e ao fílmico, Christian Metz
assevera: “Mas no meio desta totalidade, há um núcleo mais específico ainda, e que,
contrariamente aos outros elementos constitutivos do universo fílmico, não existe
isoladamente em outras artes: o discurso imagético” (1977, p.76)
A diegese, a voz e a focalização (mediação) e a recepção fílmicas são
possibilidades que só podem ser compreendidas se analisadas dentro de um contexto.
O filme dentro do filme. “Pois o fílmico é diferente do filme: o fílmico está para o
filme como o romanesco está para o romance – posso escrever romanescamente,
sem nunca escrever um romance”. (BARTHES, 1990, p.58)
3.1 Análise do discurso imagético
3.1.1. Montagem
Uma proposta tradicional de montagem no cinema é, entre tantas outras,
ordenar as cenas para facilitar a compreensão do que é narrado e utilizar de recursos
visuais para transpor as dificuldades narrativas do roteiro.
A escola cinematográfica russa, com Eisenstein, Koulechov entre outros, foi
pioneira em teorizar a montagem enquanto uma técnica narrativa essencialmente
cinematográfica. Juntos a David Griffith, que havia posto em prática a essência da
montagem e da linguagem (focos e enquadramentos), esses cineastas formam a
frente do cinema clássico.
O cinema do pós-guerra irá seguir a concepção de montagem tradicional,
apresentando, porém, diversificações em sua evolução. O neo-realismo, por exemplo,
irá buscar a fidelidade entre roteiro e realidade, o que será visto através de uma
87
montagem simples e seqüencial, em que os conflitos e a estória transcorrem
naturalmente, sem nem mesmo abusar ou utilizar recursos estilísticos de montagem.
Já o Nouvelle Vague18, constituindo-se um movimento de vanguarda, apresentará
uma montagem fragmentada, que busca desconstruir a narrativa através de inversões
de tempo e truncagem do ciclo narrativo.
A “pós-modernidade” cinematográfica, em que se inclui Diabólica, será uma
composição de tudo o que já foi apresentado dentro de uma estética visual que tem
como regra fundamental a noção de ritmo narrativo. Não apenas o ritmo da
seqüência das imagens, mas de cada cena propriamente dita. O cuidado em se montar
as cenas dentro de uma estética visual que acaba por refletir o espectador moderno.
O cinema tradicional encontrava na montagem o meio de tornar o roteiro
inteligível para o espectador. O cinema comercial ultrapassou esse patamar. Agora
ele se utilizada montagem como uma forma de reestruturar o material captado para
trabalhar cada momento do roteiro à sua maneira. Então, aquele momento que na
escrita não parecia tão importante, na sala de montagem pode se transformar na cena
clássica de um filme. Para se tornar clássica, é necessário que a cena não somente
fique gravada na mente do espectador mas adquira perenidade e universalidade.
Em Diabólica uma seqüência que pode trazer à tona essa discussão é
exatamente a imagem-marca do filme em que o narrador é mostrado no momento
auge do roteiro: Geraldo entrando na delegacia em uma noite chuvosa e nevoenta
com Alicinha (sua futura cunhada) morta em seus braços. Desde o primeiro
momento, o espectador já possui em mente o que virá pela frente.
18 idem p.84
88
Cena do filme: Geraldo com Alicinha morta nos braços
Outro recurso utilizado que demonstra a preocupação em fazer com que
transpareça o pensamento criador por trás das imagens são os momentos em que
Geraldo narrador – homodiegético - começa a rememorar os acontecimentos numa
atmosfera surreal, totalmente rodrigueana. Em discurso analéptico ele conta ao
delegado a trágica sucessão de acontecimentos que o levou a estar ali naquele
momento. Alice (Lolita), de treze anos, iniciara, durante a festa de noivado da irmã,
um diabólico jogo de sedução com o futuro cunhado, levando a ciumenta Dagmar à
loucura e expondo o lado podre de uma família aparentemente exemplar.
Num primeiro momento da festa de noivado a personagem Alicinha ainda é
vista como uma criança; angelical e ingênua a câmera cinematográfica movimenta-se
próxima á personagem, envolvendo-a inteiramente. Christian Metz já analisava a
possibilidade de: “(...) injetar na ‘irrealidade’ da imagem a realidade do
movimento e, assim, atualizar o imaginário a um grau nunca dantes alcançado”
(1977, p.28)
Dentro das categorias narrativas genettianas Modo (perto-longe) e
Ordem(presente-passado) e da montagem, o filme apresenta uma estrutura que
explica a narração.
89
Jean Mitry apresentou a síntese mais precisa, dentre os teóricos, para as
primeiras aparições desses processos de linguagem fílmica no cinema primitivo.
Porém, Christian Metz, em 1973, resumiria no seu ensaio sobre a semiótica na sétima
arte, que, apesar de toda história e aplicabilidade desses recursos, nada poderia ainda
firmar o cinema como língua, senão como linguagem.
A montagem é a referência para a concepção da modernidade visual do
mundo cinematográfico atual. As possibilidades de programas cada vez melhores
para a finalização da montagem, assim como a digitalização, tornam o cinema ainda
mais flexível possibilitando o surgimento de recursos nunca antes previstos.
Atualmente, a destreza de se montar um filme decorre não apenas da intenção
criadora do diretor, mas também da percepção da obra pelo espectador. Notamos que
os recursos tecnológicos estão transformando a maneira de compor visualmente um
filme. Talvez por isso, os filmes se tornam cada vez mais fragmentados em suas
narrativas. Na tentativa de mostrar “a vida como ela é” e de revelar o homem a si
mesmo, a montagem aparece fragmentada, pois é fruto da imaginação criativa e
cheia de originalidade do diretor. Dentro desse círculo de influências, a montagem da
pós-modernidade subverteu seus valores e acabou por se transformar em uma técnica
de desconstrução. Sobre esse aspecto Roland Barthes afirma:“(...) o problema atual
não é destruir a narrativa, mas sim confundi-la: a tarefa de hoje consistiria em
dissociar a subversão da destruição” (1990, p.58)
3.1.2 Fotografia
A história da fotografia cinematográfica se confunde com a evolução da
linguagem e dos modelos de cinema. No seu nascimento, o cinema preocupava-se
90
em estabelecer-se como uma linguagem através da formação de uma decupagem
clássica, e o papel da fotografia era apenas o de obtê-la, isto é, através do
posicionamento de câmera e o corte. Não havia grandes princípios para se trabalhar a
imagem.
Talvez possamos encarar o Expressionismo alemão19 como o marco de uma
nova percepção fotográfica do cinema. O jogo de luzes casadas com enquadramentos
estranhos, cenografia estilizada e a busca por uma criação de imagens diferentes e
exóticas refletiam a necessidade de se interferir na realidade da imagem transposta
para a película. Já o Technicolor foi a maneira de o cinema americano tentar
conquistar o espectador através de imagens artificiais, com uma paleta de cores
exageradas. Porém esses exercícios visuais possibilitaram uma inquietação por parte
da técnica cinematográfica, que passaria a buscar um aperfeiçoamento na maneira de
se trabalhar a imagem em película, assim como na hora de sua captação.
A cena em que Alicinha é apresentada ao espectador e a cena em que rodopia
vestida de anjo demonstra a ordem do cinema moderno de criar imagens apuradas
que ficam marcadas no imaginário do espectador.
Cena do filme: Alicinha é apresentada ao espectador como uma criança
19 idem p 80.
91
Cenas do filme: A angelical Alicinha rodopiando na sala
.
Até mesmo cenas que apresentam certo hiper-realismo através de uma grande
definição de imagem como a iluminação das cenas à noite (Geraldo entrando na
delegacia com Alicinha morta nos braços – vide imagens abaixo) e o super closeup
nas cenas em que Alicinha fala ao ouvido de Geraldo que já não é mais criança, a
cena da fumaça saindo pelas narinas de Geraldo durante o seu depoimento na
delegacia.
Cenas do filme: Geraldo chegando na delegacia com Alicinha morta em seus braços
92
As cenas em que Alicinha grunhe, baba e grita, não ficam muito distantes do
filme O Exorcista20 - transformando-se, num piscar de olhos, de garota angelical em
verdadeiro demônio. Nessas cenas reconhecemos há demonstração de um certo
exagero em termos de fantasia, de realismo fantástico. (Vide cenas abaixo)
Essas cenas rompem com a linearidade narrativa, diferenciando-se das outras
exatamente por que ultrapassa os limites do real, e, através de ações dissimuladas,
atinge agressivamente o imaginário do espectador.
Ismail Xavier, em sua obra O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a
Transparência, reflete também sobre o momento da captação das imagens como
definidor da ilusão que será criada:
20 O Exorcista é um filme realizado por William Friedkin, inspirado em um livro de terror homônimo, escritopelo William Peter Blatty. O filme foi estreado dia 22 de setembro de 1973. Talvez o mais reputado dos filmes dedrama/terror, cuja temática, relacionada com a possessão demoníaca de uma rapariga de 12 anos, causou choqueentre as platéias mundiais. Contudo, tal não impediu o seu sucesso junto do público e da crítica, tendo recebido10 nomeações para o Oscar e vencido em 2 categorias: Melhor Argumento Adaptado e Som.Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/the_exorcist
93
Para a eficiência de tal ilusionismo, é preciso que os truquesaplicados aos fatos que se passam diante da câmera colaborem coma objetividade essencial do registro cinematográfico, compondoum mundo imaginário inserido num espaço à imagem do real(1984, p.71)
Estes truques podem, na verdade, possuir várias funções. Desde facilitar a
visualização de uma imagem com um jogo de luz, como criar outra com o mesmo
jogo. Da mesma forma, na pós-produção, os recursos serão utilizados dentro da
perspectiva do criador. Em Diabólica possibilitou que a fotografia fosse trabalhada
para criar o discurso imagético do filme. Mas sobre a invenção técnica, Étienne
Souriau já advertia que esta não poderia solucionar um problema de arte, senão
colocá-lo. Por isso, muitas vezes assistimos a filmes que tentam se engendrar na
imagem pós-moderna mas acabam caindo no ridículo cinematográfico: a pretensão
de ser artístico. Até mesmo porque a Pós Modernidade não é um selo de qualidade
para as obras no cinema, mas uma evolução histórica da representação
cinematográfica da arte.
A fotografia utiliza-se desses elementos ilusionistas exatamente para criar
uma identidade para o discurso fílmico. O filme não ocorre em função da fotografia,
mas sim o contrário. A união da fotografia com a montagem pensada previamente
criam o universo imagético de Diabólica perante o espectador (o universo real). Ora
buscando um ilusionismo, o surrealismo ora o hiper-realismo, essa estética trabalha
continuamente com o espectador. Isso une a imagem ao movimento, criando uma
semiótica própria para a película. Segundo José Merquior ( 1975):
As intervenções humanas, com as quais despontam algunselementos de uma semiótica própria, só intervêm ao nível daconotação – sic – (iluminação, incidência angular, efeitos defotógrafos)... No cinema, em contrapartida, toda uma semiologiada denotação é possível e necessária, pois um filme é feito comvárias fotografias. (p.26)
94
3.1.3. Direção
A maioria dos comerciais de televisão são filmados em 35 mm, como no
cinema, devido à qualidade de imagem, mas são realizados e montados através de
uma concepção videoeletrônica da televisão. Enquanto a linguagem cinematográfica
é compostas por 24 fotogramas por segundo, a linguagem videográfica é derivada da
leitura das linhas de varredura e da junção dos pixels que compõem a imagem
eletrônica. Da mesma forma, o fotograma apresenta uma relação de tamanho 3x5,
enquanto a imagem videográfica mede 3x4.
Os diretores de publicidade (Lembremo-nos de que o diretor de Diabólica,
Cláudio Torres, é famoso por dirigir filmes publicitários e video-clips.) precisam
conviver sempre com essa necessidade de utilizar um meio artístico (35mm) para
desenvolver um trabalho massificado. Muitos até mesmo enveredam para a vídeo-
arte como forma de mostrar a criatividade do veículo televisivo enquanto linguagem.
Já outros se voltam para o cinema, levando a técnica videográfica, alterando as
concepções tradicionais de filmagem cinematográfica. Segundo Candido Almeida:
“video-arte (...) representa a capacidade de manipulação da tecnologia pelo agente
criador, a necessidade e angústia pelo domínio do novo” (1988, p.87)
Nesse panorama, o cinema é influenciado por todos os lados, seja por causa
dos profissionais que volta e meia passam pela experiência videográfica, ou devido
às novas tecnologias que provocam fusão cada vez maior das duas linguagens.
Essa aproximação com o vídeo não será vista apenas na rapidez da
montagem, mas também na constante alteração lógica da direção na hora de captar as
imagens que a configuram dentro de uma modernidade visual.
95
A utilização de imagens desfocadas e granuladas em certas passagens (veja-se
a cena da Alicinha se auto-flagelando) demonstra uma constante parceria de efeitos
que traduzem o aspecto retratado, da mesma forma que desperta o espectador do
contexto normalizado. Arlindo Machado já constatara isso quando afirma que: “(...)
os sistemas de baixa definição aguçam a imaginação e exigem maior grau de
participação do público.” ( 1995, p.61)
A direção do filme é voltada para uma tentativa “pós-moderna” de criar
fragmentos originais de cenas. Talvez por isso a relação publicitária de ver e rever as
imagens de um comercial na produção, mas com a oposição gritante dos trinta
segundos comuns ao cinema publicitário para os cento e vinte minutos do filme.
Vários momentos retratam claramente essa criação da câmera buscando a
diferenciação da leitura clássica. Uma delas é a tentativa de sempre posicionar a
câmera de modo a diversificar a imagem, gravando-a em um universo original.
Diabólica mescla a narratividade clássica através de planos comuns, com a
câmera na mão e a quebra temporal característico do cinema de vanguarda, fundindo
o que a análise estética do cinema busca, certas vezes, dividir. Segundo José
Merquior (1975):
Usam freqüentemente o plano-seqüência lá onde (sic) ospartidários da montagem teriam desmembrado e reconstruído;recorrem ao que se chama, por falta de melhor expressão, a câmerana mão lá onde (sic) as sintaxes tradicionais distinguem otravelling para frente, para trás, a panorâmica horizontal, a vertical,etc.(p.26)
No filme, o momento em que Geraldo relembra o dia de seu noivado traz uma
reformulação do uso da câmera na mão. A cena dá a sensação de que o espectador
está filmando, participando da cena, com uma música envolvente. É a câmera na mão
revisada pela pós-modernidade: a câmera na mão em função do ritmo narrativo.
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Cenas do noivado de Dagmar e Geraldo
A direção de Diabólica é um tópico da possibilidade de um cinema moderno
cada vez mais videográfico em que a imagem é manipulada e revisada antes de sua
exibição. Antecedendo à captação, a direção já elabora um storyboard da imagem
“pós-moderna” que o filme pode ter, comunicando-se, assim, com o espectador atual,
que busca um cinema que o retrate a si mesmo e ao universo que o forma. Para
Raymond Bellour:
(...) é no cinema moderno e na era do vídeo que o vínculo seestreita, explode e se acelera, com pontos de cruzamento de umaextrema violência – o vídeo que estende o cinema com risco dedissolvê-lo em uma generalidade que não possui número nemnome na classificação das artes” (apud PARENTE, 1993, p.222)
4 - A transcodificação do conto e do minidrama para o cinema
Como observamos no capítulo anterior, a adaptação para a televisão foi muito
fiel ao conto. Salientamos, mais uma vez, que em nome de uma adaptação fidedigna,
o episódio foi praticamente o conto ipsis literis, e a única grande mudança foi no
título de Diabólica para O Anjo. Outro fator importante a ser destacado é que, na
televisão, o intuito maior era o de divulgar a obra de Nelson Rodrigues, e não o seu
97
valor estético. Já no cinema temos a “personificação” estética da obra, com uma
adaptação vibrante bem aos moldes do universo rodrigueano.
Como já dissemos, a estrutura cronológica do conto foi mantida na TV,
algumas alterações foram feitas para melhor contextualização. No cinema, porém, o
filme inicia-se “a fine” com a personagem protagonista Geraldo (narrador
homodiegético e autodiegético) relatando os acontecimentos, através de flashbacks, o
que possibilita a exploração do passado remoto vivido pela personagem, dando
ritmo, movimento à narrativa. Notamos também que, à medida em que são inseridos
os flashbacks, o clima de suspense da trama vai-se intensificando. Porém esse
recurso não foi utilizado em nenhum momento na adaptação do conto para a
televisão.
O fundo musical, para criar um clima, ora de festa, ora de suspense, e os
efeitos sonoros, tais como os ruídos de um relógio marcador de tempo e o som de um
piano de brinquedo, provocam uma atmosfera de agressividade e suspense no
telespectador, ao mesmo tempo em que se intersecciona com uma atmosfera
sombria; esses elementos comparecem na transcodificação da narrativa impressa para
a cinematográfica. Ainda com relação à música, destacamos a cena com o fundo
musical infantil “Borboleta pequenina...”, pois nesse momento o espectador tem a
impressão de que a “introdução da música” está dialogando com certa ironia, com a
personagem Geraldo - Olá, senhor sapo!- como num conto de fadas, em que o
príncipe está transformado em sapo e necessita de alguém para desencantá-lo.
Também aparece na adaptação cinematográfica um objeto que tem a função
de confirmar a traição: é um cordão com um crucifixo presenteado por Dagmar a
Geraldo para sua proteção, e que deveria ser-lhe devolvido na hora do casamento.
98
Mas o cordão com o crucifixo serviu para auxiliar o enforcamento de Alicinha e foi
devolvido para Dagmar na Delegacia, após o crime. Esse objeto e as situações que o
rodeiam não constam da estrutura do conto
.No conto e no minidrama não há delimitação de tempo e espaço mas na
adaptação para o cinema ele é bem delimitado em várias situações, como por
exemplo, a cena em que o delegado pergunta a Geraldo se ele sabe que dia é hoje.
Outro momento é quando através de um flashback, Geraldo revive um certo dia, em
que estava na casa de Dagmar, assistindo televisão cenas de um desfile de fantasias
carnavalescas com o futuro sogro e, Alicinha surge na sala fantasiada de anjo.
Conversa rapidamente com a mãe e Dagmar, que estão entretidas com os
preparativos para o casamento, aproxima-se do pai, que lhe beija a mão e oferece
dinheiro para ir ao baile de carnaval. Em seguida aproxima-se de Geraldo e fala ao
seu ouvido “Amanhã vou sair de diaba”. A cena recebe um corte e o espectador é
surpreendido com a imagem de uma mulher loira de costas fantasiada de diaba. Tudo
leva a crer que é Alicinha, mas à medida em que a câmera se aproxima, notamos que
não é ela.
Em vez de diaba, vemos a Alicinha vestida de anjo. Essa cena não aparece
dessa forma no conto e no minidrama: em descrição igual em ambos, ela aparece na
sala exibindo o seu corpo adolescente num novo maiô, provocando Geraldo.
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Cena: close no marcador (data). Cena: close na tv com o desfile de fantasias.
Cena: Alicinha entrando na sala Geraldo acompanhando Alicinha com os olhos
Cena: Alicinha, a mãe e a irmã Dagmar Cena: Alicinha com o pai
Cena: Alicinha falando que amanhã irá sair de diaba Cena: mulher no bar, fantasiada de diaba
100
Cena da minissérie: A personagem Alicinha exibindo seu maiô infernal
Em relação ao conto, a narrativa cinematográfica se inicia, como já dissemos,
“a fine”. Porém apresenta, como acréscimo, um outro final, um segundo desfecho,
com revelações novas que não constam da estrutura do conto.
Cenas do filme: “segundo desfecho” a mãe revela ter um amante e queAlicinha é fruto desse relacionamento
101
Segundo Thais Flores Nogueira Diniz (2003) hoje a relação entre literatura e
cinema tem se mostrado como um estudo híbrido, bidirecional, “transtextual”, onde a
abordagem depende de cada obra. Para tanto, esse estudo se faz sem preconceitos
pela imbricação de habilidades de um no outro, sem a preocupação, o “valor” ou
“status” do “original”, podendo ter características narratológica, autoral ou genérica,
e sem a preocupação com os conceitos de fidelidade, originalidade, entre outros.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Vida Como Ela É..., coluna diária escrita por Nelson Rodrigues, para o
jornal carioca Última Hora, na década de 50, popularizou o autor, mas não o livrou
do estigma de imoral. As narrativas foram estruturadas inicialmente como crônicas,
mas ficcionalmente devem ser consideradas contos porque, ao desenvolver o tema
traição (favorito em Nelson Rodrigues) apresentam ação dramática, personagens bem
elaboradas, tempo e espaço delimitados.
Na análise do conto Diabólica, foi possível verificar que o conto preserva
algumas características da crônica narrativa, à medida que o narrador junta os
episódios cronologicamente, criando expectativa em torno do instantâneo revelador.
Constatamos assim, que o escritor é um ficcionista no território da crônica
As peças gregas da trilogia tebana de Sófocles - Édipo Rei, Édipo em Colono
e Antígona foram selecionadas por apresentarem inovação quando deslocam o
movimento das ações para a vontade humana e não mais para as articulações divinas,
e para demonstrar a eternidade dos temas traição, adultério e morte.
Os episódios A Vida Como Ela É..., foram adaptações assinadas pelo
roteirista Euclydes Marinho e pelo diretor Daniel Filho. A atmosfera dos anos 50,
típica das histórias de Nelson Rodrigues, está presente na minissérie, que foi
registrada em película cinematográfica. O conto Diabólica recebeu na TV o título
irônico de O Anjo, em nome de uma adaptação fidedigna. Analisando a minissérie A
Vida Como Ela É..., percebemos a inovação por trazer para o horário nobre da
família brasileira, a questão do psicologismo na TV. Os contos são narrativas
psicológicas que desnudam a alma humana, apresentando as dicotomias bem x mal,
amor x ódio, apresentando ao telespectador as cenas grotescas cobertas “com o
103
manto diáfano de fantasia”, mas utilizando, porém, o jogo de esconde-esconde do
homem consigo mesmo.
Já a adaptação cinematográfica: Traição (1997) composta pela trilogia: O
Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro! demonstra que a obra de Nelson Rodrigues
continua vibrante, provocativa e moderna. Cláudio Torres, o diretor de Diabólica,
proporcionou ao público uma releitura surpreendente do conto surpreendente.
Inspirada nas convenções do cinema suspense, Diabólica não pode ser considerada
uma adaptação fidedigna da obra de Nelson Rodrigues, mas é fiel às marcas
registradas do autor: traição, adultério e morte. Em uma atmosfera totalmente
rodrigueana, o filme apresenta personagens bem delineadas, utilizadas como
espelhos de experiências de transgressão moral.
104
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109
DIABÓLICA
Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até a janela,
que se abrira para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária, uma espécie de
presságio, suspirou. E foi meio vaga:
- Caso sério! Caso sério!
E Geraldo, baixo e doce:
- Por quê?
Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:
- Estás vendo minha irmã?
- Estou.
Durante alguns momentos, olharam, em silêncio, a pequena Alicinha, de treze
anos, que, na ocasião, apanhava uma flor no jarro, para dar não sei a quem. Dagmar
pergunta: “Bonita não é?”. Geraldo concorda: “Linda!”. Então, pousando a mão no
braço do noivo, a pequena continua:
- Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vai ser uma
mulher e tanto.
- Um espetáculo!
Sorriu, triste:
- Um espetáculo, sim! – Pausa e, súbito, tem uma sinceridade heróica: - Há de
ser mais bonita do que eu.
Geraldo interrompeu: “Protesto!”
Foi quase grosseira:
- Não me põe máscara, não! Eu tenho espelho, ouviu? Agora, que sou tua
noiva, quero te dizer o seguinte.
- Fala.
E ela:
- Você é homem e eu sei que esse negócio de homem fiel é bobagem. Mas
toma nota: se você tiver que me trair, que não seja nem com vizinha, nem com
amiga, nem com parente. Você percebeu?
Surpreso e divertido, exclama:
- Você é de morte, hein?
As Irmãs
Havia entre as duas irmãs uma diferença de quatro anos; Dagmar tinha
dezessete. Alicinha treze. Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina
irremediável. No fundo, talvez imaginasse que ela seria para sempre assim, criança,
criança. A observação da noiva o apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para
Alicinha com uma nova e dissimulada curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda
contida na menina, começava a desabrochar. Esta constatação o perturbou, deu-lhe
uma espécie de vertigem.
Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva veio levá-lo até o portão. Ao
ser beijada na face, disse:
- E não esqueça: Alicinha é sagrada para você!
Era demais. Doeu-se e protestou:
- Mas que palpite é esse? Que idéia você faz de mim? Sabes que assim você
até me ofende?
Cruzou os braços, irredutível:
- Ofendo por quê? Os homens não são uns falsos?
- Eu, não!
Ela replicou, veemente:
- Você é como os outros. A mesma coisa, compreendeu?
Família
Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-
nos-acuda. A mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-
lhe um verdadeiro sabão:
- Foi um golpe errado. Erradíssimo!
- Eu não acho.
O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde não havia!
Despertou a idéia do seu noivo!”.
Replicou, segura de si:
- Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.
O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou, interpelando-a:
- E agora, com que cara teu noivo vaio olhar para tua irmã?
Vocês, mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está
acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas!
E Dagmar obstinada:
- Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e
outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita com cunhado, não! Nunca!
Ciúmes Doentios
Num instante, criou-se o caso no seio da família. Não houve duas opiniões.
Segundo todo mundo, aquilo não era normal, não podia ser normal. Um dos grandes
argumentos foi a idade de Alicinha: “Como pode ? Como pode?”. O pai, mascando o
charuto, argumentava; “Que você desconfie de todo mundo, até do poste, vá lá! Acho
que uma mulher deve defender com unhas e dentes o seu homem. Mas irmã é outra
coisa! Irmã é diferente!”.
Na sua tristeza, ela replicava; “O que eu não sou é burra!”. E o pai: “Nem sua
irmã, nem seu noivo merecem isso!”. Por fim, já se falava, abertamente, em caso.
Um primo da pequena, que era pediatra, sugeriu:
- Por que é que não levas fulana a um psiquiatra?
Ela acabou indo, vencida pelo cansaço da própria vontade. Lá, o psiquiatra,
depois de um interrogatório medonho, chegou à seguinte conclusão: “O negócio é
extrair os dentes!”. O pai da pequena caiu das nuvens. Chorou, amargamente, o
dinheiro da consulta:
- Mas que animal! Que palhaço! - E, jocoso, criava o problema: - Isso é
psiquiatra ou dentista?
Mas o fato é que, pouco a pouco, sem sentir e sem querer, Dagmar foi se
deixando dominar pela pressão da família. O próprio noivo colaborou nesse sentido.
Era hábil:
- Você não precisa ter medo de mulher nenhuma. Pra mim, não existe no
mundo mulher mais bonita do que você. Palavra de honra!
O Maiô
Só quem não se dava por achada e parecia ignorar o disse-que-me-disse era a
própria Alicinha. Tratava a irmã e o cunhado com a mesma naturalidade. E era tão
sem maldade, tão inocente, que, certa vez, comprou um maiô fabulosíssimo e
apareceu com ele na sala, diante de Dagmar e do Geraldo. Foi uma situação pânica.
Por um momento, o embasbacado cunhado não soube o que dizer, o que pensar.
Empalidecera e ...Girando como um modelo profissional, Alicinha perguntava:
- Que tal ?
Por uma fração de segundo, Dagmar pensou em explodir. Mas convencera-se
de que precisava reeducar-se; dominou o próprio impulso. Com o máximo de
naturalidade, admitiu: “Bonito!”. O atônito, o ofuscado, o desgovernado Geraldo
gemeu: “Infernal!”. Mas quando deixou a casa da noiva, nesse dia, ia numa
impressão profunda. Mais tarde, no bilhar, com uns amigos, fez o seguinte jogo de
palavras:
- Não há mulher mais bonita que uma cunhada bonita!
Sonsa
No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho: “Deixei de ser criança!
Já não sou mais criança!”. Isso poderia significar pouco ou muito. De qualquer
forma, desconcertado, ele chegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai
procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo de mim?”. O
pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olhar intenso, não de criança, mas
de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parece divertida. E, subitamente, séria, ergueu-se e
aproxima-se. Estavam no gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:
- Um beijo.
Lívido, obedeceu. Roçou, de leve, a face da pequena. Ela insistiu: “Isso não é
beijo. Quero um beijo de verdade”. Geraldo levanta-se. Recua apavorado, como se
aquela garota representasse uma ameaça hedionda. Numa espécie de soluço, diz: “Eu
amo minha noiva! Amo tua irmã!”. E ela, diante dele: “Só um!”. Petrificado, deixou-
se beijar uma vez, muitas vezes. E não podia compreender a determinação
implacável de uma menina de treze anos.
Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E o ameaçou, segura de si e
da própria maldade: “Vou te avisando: se começares com coisa, eu direi a todo
mundo que houve o diabo entre nós!”.Geraldo arriou na cadeira; uivou:
- Demônio! Demônio!
O Beijo
Foi, desde então, um escravo da menina. E, coisa interessante: ao mesmo
tempo que se sentia atraído, tinha-lhe ódio. Sentia nela uma precocidade hedionda. E,
por outro lado, era um fraco, um indefeso, um derrotado. Até que, uma tarde, entra
numa delegacia; soluçando, anuncia: “Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal,
num lugar assim, assim”.
Ainda prestava declarações quando Dagmar invade a delegacia. Passara pelo
lugar em que Alicinha fora assassinada; vira a irmã, de bruços, com o cabo do punhal
emergindo das costas. Então, fora de si, correu para delegacia. E houve uma cena que
ninguém pôde prever. Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e o beijou
na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada. Debatia-se nos braços dos
investigadores.
Gritava:
- Oh, graças! Graças!