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Ministrio da Sade
Fundao Oswaldo Cruz
Escola Nacional de Sade Pblica
Mestrado em Sade Pblica
Planejamento e Gesto de Sistemas e Servios de SadeLinha de Pesquisa: Sade Mental
Sofrimento Psquico e Servios de Sade:
cartografia da produo do cuidado em sade mental
na ateno bsica de sade
por
Daniele Pinto da Silveira
Dissertao apresentada como parte dos requisitos para obteno do Ttulo
de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica
Orientadora: Prof. Dr. Ana Luiza Stiebler Vieira
Co-Orientador: Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Rio de Janeiro, agosto de 2003
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Catalogao na fonte
Centro de Informao Cientfica e TecnolgicaBiblioteca Lincoln de Freitas Filho
S587e Silveira, Daniele Pinto daSofrimento Psquico e Servios de Sade: cartografia da produo do
cuidado em sade mental na ateno bsica de sade. / Daniele Pinto da
Silveira. Rio de Janeiro: s.n., 2003.184p., tab.
Orientadores: Vieira, Ana Luiza Stiebler e Amarante, Paulo Duarte de
Carvalho.Dissertao de Mestrado apresentada a Escola Nacional de Sade
Pblica.
1. Sade Mental. 2. Servios Bsicos de Sade. 3. Prtica Profissional.4. Necessidades e Demanda de Servios de Sade.
CDD - 20.ed. - 362.2
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Ministrio da Sade
Fundao Oswaldo CruzEscola Nacional de Sade PblicaMestrado em Sade Pblica
Planejamento e Gesto de Sistemas e Servios de Sade
Linha de Pesquisa: Sade Mental
Sofrimento Psquico e Servios de Sade:
cartografia da produo do cuidado em sade mental
na ateno bsica de sade
por
Daniele Pinto da Silveira
Dissertao apresentada como parte dos requisitos para obteno do Ttulo
de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica
Orientadora: Prof. Dr. Ana Luiza Stiebler Vieira
Co-Orientador: Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Rio de Janeiro, agosto de 2003
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EXAME DE DISSERTAO DE MESTRADO
Sofrimento Psquico e Servios de Sade:
cartografia da produo do cuidado em sade mental
na ateno bsica de sade
por
Daniele Pinto da Silveira
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Professora Doutora Ana Luiza Stiebler Vieira (ENSP/FIOCRUZ)Orientadora
__________________________________________________________Professor Doutor Paulo Duarte de Carvalho Amarante (ENSP/FIOCRUZ)Co-orientador
__________________________________________________________Professor Doutor Benilton Bezerra Jnior (IMS/UERJ)
__________________________________________________________Professora Doutora Maria Helena M. de Mendona (ENSP/FIOCRUZ)
__________________________________________________________Professora Doutora Cludia Mara de Melo Tavares (UFF)
__________________________________________________________Professor Doutor Antenor Amncio Filho (ENSP/FIOCRUZ)
Dissertao defendida e aprovada em: 22/08/2003
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Dedico esta Dissertao a duas pessoas muito queridas e sempre
presentes nesta jornada: minha me e a meu saudoso pai ( in
memorian), pelo amor e pela simplicidade com que me ensinaram a
persistir na busca dos meus ideais... e a transformar meus sonhos em
realidade.
Esta conquista tambm de vocs!
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AGRADECIMENTOS
minha turma de Mestrado, pelo prazer da convivncia com cada um de vocs durante nossa formao:
Germana Reis, Juliano Lima, Carla Caselli, Paulo S, Teresa Cavalcante, Patrcia Sayd, Luiza Victal,
Jussara Brito, Wagner Martins, Ana Brum, Eduardo, Rosa Marluce, Joo Incio e Maria do Carmo;
Aos amigos do Grupo de Estudos Segunda em Questo do LAPS/FIOCRUZ, aliados nas descobertas e
tambm no desejo de trilhar novos caminhos na ateno sade mental no Brasil;
equipe de pesquisa da primeira fase do Projeto de Apoio Reabilitao e Reinsero Social dos
Pacientes Internos nos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico do Estado do Rio de Janeiro, por
termos nos constitudo verdadeiramente num grupo de trabalho que compartilha de um novo aprendizado;
A Geandro, psiclogo e sanitarista da Coordenao da rea de Planejamento 3.1 da Secretaria Municipalde Sade do Rio de Janeiro, por todas as informaes compartilhadas que em muito enriqueceram as
anlises realizadas nesta pesquisa;
A Srgio Pacheco, amigo e confidente, por muitas vezes me emprestar seus ouvidos durante os
momentos delicados desse processo;
Ana Paula Guljor, pelo convite para participar da construo de uma experincia desafiadora em sade
mental e, tambm, por apostar no meu trabalho;
Cladia Mara, pela disponibilidade de rever comigo a Dissertao;
A um casal sensacional: Elisa e Flvio. Elisa, minha prima, mas principalmente minha amiga de todas
as horas, pela ateno e entusiasmo que tornaram minha vida no Rio muito mais leve e prazerosa e a
Flvio, por me auxiliar a transcrever as fitas das entrevistas;
Aos familiares e amigos que deixei em Minas e queles que conquistei aqui no Rio - preciosos encontros
dessa vida. E Gisele, minha irm muito amada e querida; Cladia, Tiago, Cntia, Eduardo e Daniel e demais funcionrios da Escola Nacional de Sade Pblica
da Fundao Oswaldo Cruz, que fazem desta instituio um lugar muito bom de se estar - clima
indispensvel para a boa conduo dos nossos estudos;
Aos funcionrios e aos usurios do Centro de Sade Escola Germano Sinval Faria e, muito especialmente,
Else Gribel, Rita de Cssia, Michael Robson e Creuza - o auxlio de vocs foi de um valor inestimvel,
obrigada por tudo;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelo apoio financeiroconcedido durante todo o perodo do Mestrado, sem o qual no seria possvel ter tornado este sonho
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realidade;
professora Rosalina Koiffman, pela reaproximao to frutfera com a Epidemiologia e pelas
orientaes concedidas durante o processo de coleta dos dados;
professora Maria Helena Mendona, pelas sugestes to pertinentes ao analisar o Projeto desta pesquisana Banca de Qualificao e por aceitar participar de mais este momento de discusso;
Ao professor Benilton Bezerra Jnior, por nos honrar com sua participao na composio desta Banca;
Ao professor, amigo e co-orientador Paulo Amarante, pela riqueza de suas consideraes que nos
instigam a repensar continuamente nossas prticas e por compartilhar conosco suas experincias e
conhecimentos que vem contribuindo, imensamente, para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora
na rea de sade mental;
Ana Luiza Stiebler Vieira, minha orientadora e grande incentivadora no desenvolvimento desta
pesquisa, por acreditar no potencial do meu trabalho, pela acolhida s minhas inquietaes e pela
confiana com que sempre me conduziu durante este percurso.
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Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedao de terra argilosa:
cogitando, tomou um pedao e comeou a lhe dar forma. Enquanto refletia
sobre o que criara, interveio Jpiter. Cuidado pediu-lhe que desse esprito
forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis ento dar
seu nome ao que tinha dado forma, Jpiter proibiu e exigiu que fosse dado
seu nome. Enquanto Cuidado e Jpiter disputavam sobre o nome, surgiu
tambm a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia
fornecido um pedao do seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como
rbitro. Saturno pronunciou a seguinte deciso, aparentemente eqitativa:
Tu, Jpiter, por teres dado o esprito, deves receber na morte o esprito e
tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como porm foi o
Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto
viver.
(Heidegger, 1995)
SUMRIO
RESUMO vii
ABSTRACT viii
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ix
INTRODUO 10
CAPTULO I: CONSTITUIO E EVOLUO DO SABER E DAS PRTICAS
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MDICO-PSIQUITRICAS 16
1.1. Racionalidade Cientfica e Saber Mdico: um resgate histrico 191.2. O Processo de Psiquiatrizao do Sofrimento Psquico 251.3. Entre a Preveno e a Promoo: a sade mental na comunidade 29
CAPTULO II: SADE PBLICA E SADE MENTAL: ATRAVESSAMENTOSEM ANLISE 40
2.1. Sofrimento Psquico e Servios de Sade: oAcolhimento comoprxissubjetivante 502.2. Das Necessidades e Demandas de Sade: encontros e desencontros entreprofissionais e usurios 542.3. Pela Integralidade na Ateno aos Fenmenos de Sade/Doena: escuta dosujeito versusescuta da doena 63
CAPTULO III: METODOLOGIA 68
CAPTULO IV: A ATENO SADE MENTAL NO MUNICPIO DO RIODE JANEIRO 95
4.1. Breve Relato sobre a Reestruturao da Assistncia 964.2. Caractersticas e Peculiaridades da rea de Planejamento 3.1 e o Centrode Sade Escola Germano Sinval Faria 101
CAPTULO V: ACOLHIMENTO, ESCUTA DO SUJEITO E INTEGRALIDADE 108
5.1. Da observao participante 1095.2. Das entrevistas: a fala dos trabalhadores em sade 1145.3. Os registros nos pronturios: o que dizem sobre a produo do cuidado emsade mental 133
CONSIDERAES FINAIS 147
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 156
ANEXOS 167
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RESUMO
Partindo do pressuposto de que a Sade Pblica e a Sade Mental coabitam um
mesmo plano, que vem a ser um plano de interveno tecno-poltica no processo de subjetivao do
sujeito em sofrimento, o presente estudo discute a possibilidade de emergncia de novas relaes entre
aquele que cuida e aquele que cuidado nas estratgias da ateno bsica em sade. Possui como
objetivo principal mapear as modalidades de ateno em sade mental desenvolvidas numa Unidade
Bsica, do municpio do Rio de Janeiro, visando, assim, conhecer o comprometimento e a articulao das
aes desenvolvidas neste mbito com as novas estratgias de cuidado s pessoas em sofrimento psquico,
em consonncia com as proposies da Reforma Psiquitrica. Presume-se que existe a necessidade de
potencializar os espaos de produo da sade na Ateno Bsica como dispositivos de acolhimento
capazes de contribuir para o processo de inverso do modelo de ateno em sade mental, em curso no
Brasil. Procura-se conhecer os modos de cuidado oferecidos pelos profissionais de sade s necessidades
de sade que emergem como sendo problemas de sade mental, elencando alguns eixos de anliseconsiderados como possveis norteadores de uma nova prxis, sejam eles: a noo de acolhimento, de
escuta do sujeito e de integralidade. Esta anlise pautou-se na observao participante, na conduo de
entrevistas semi-estruturadas com alguns profissionais de sade da Unidade e da Estratgia Sade da
Famlia e, tambm, na coleta de informaes dos pronturios, atravs de um instrumento desenvolvido
para tal finalidade. Considera-se que a investigao realizada, que assume a perspectiva de um dos co-
produtores deste cuidado - os trabalhadores em sade -, pde identificar modos de agir em sade mental
na rede bsica em que ainda predominam o modelo biomdico de organizao da ateno sade, a
psiquiatrizao do cuidado em sade mental, a burocratizao do processo de trabalho e o centramento
nas aes intra-muros. A partir desta cartografia da produo do cuidado em sade mental na Ateno
Bsica, indaga-se que outros fazeres podem ser desenhados neste processo de incluso dos cuidados
primrios no campo da Ateno Psicossocial.
PALAVRAS-CHAVE: Sofrimento Psquico, Ateno Bsica em Sade, Modos de Cuidado, Reforma
Psiquitrica.
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ABSTRACT
This study discusses the possibility of new relationships between those who take care of
others and those who are taken care of, considering that Public Health and Mental Care are involved intechno-political intervention in subjectification of people in suffering. Its main purpose is to map mental
health care modalities developed at a Basic Health Unit in the city of Rio de Janeiro, in order to notice the
commitment to and the articulation of the local actions with the new strategies of care to people in mental
suffering according to the propositions of the Psychiatric Reform. It is supposed that it is necessary to
potenciate health production spaces in Basic Attention as a device of user embracement which are able to
contribute to the process of inverting the attention model in Mental Health in Brazil. This research intends
to recognize care modes practiced by health professionals with regard to the needs which are brought up
as mental problems. It also presents some analytical axes which can be considered possible references for
a new praxis: the notions of user embracement, listeningand integrality. The study is based on participant
observation, semi-structured interviews with professionals who work in Health Units and Family Care
Strategy, besides information collected in medical charts, through a personalized tool, conceived for this
purpose. By adopting the perspective of one of the care co-producers - the health workers -, this
investigation was able to identify ways of mental care action in which the biomedicine model in health
care organization, the psychiatrization of care in mental health, the bureaucratization of the processs of
work and activities restricted to the space of the Unit are dominant. Based on this care production in
Mental Health cartography, this dissertation searches for other possible actions in this process of
including primary care in psychosocial attention area.
KEY-WORDS: Mental Suffering; Basic Health Care; Care Modes; Psychiatric Reform.
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LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AP rea de Planejamento em Sade
CAP Coordenao da rea de Planejamento
CAPS Centros de Ateno Psicossocial
CID-10 Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados Sade - 10a
reviso
CSM Coordenao de Sade Mental
CSEGSF Centro de Sade Escola Germano Sinval Faria
DSM-IV Sigla em ingls para Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais 4 edio
ESF Estratgia Sade da Famlia
GMS Gerncia de Sade MentalIQV ndice de Qualidade de Vida
NAPS Ncleos de Ateno Psicossocial
NUDEQ Ncleo de Dependncia Qumica
PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade
PAM Posto de Atendimento Mdico
PSF Programa Sade da Famlia
PS Pronto-Socorro
PU Posto de Urgncia
RA Regio Administrativa
SMS Secretaria Municipal de Sade
SUS Sistema nico de Sade
UBS Unidade Bsica de Sade
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INTRODUO
A presente dissertao descreve e analisa os modos de cuidado e a escutaoferecida pelos profissionais de sade s pessoas em sofrimento psquico que chegam
ateno bsica em sade, tomando para estudo de caso uma unidade de sade no
municpio do Rio de Janeiro: o Centro de Sade Escola Germano Sinval Faria.
Formada em Psicologia pela Universidade Federal de So Joo Del-Rei (UFSJ/MG),
onde conclu a graduao em 1998, iniciei minha primeira experincia em sade pblica como psicloga
na Secretaria Municipal de Sade de Nepomuceno1, municpio ao sul de Minas Gerais. Ao iniciar o meu
trabalho fui lotada num Centro de Sade da SMS, onde at ento no havia nenhuma poltica pblica ou
servio de ateno em sade mental que pudesse prestar atendimento comunidade2. Meu interesse,
ento, pelo tema da trajetria de pessoas com queixas de nervoso - para usar a expresso de Duarte
(1998)3- e de pessoas em grave sofrimento psquico em unidades da rede bsica de sade surgiu desta
experincia, interrompida para que eu pudesse ingressar no Mestrado em Sade Pblica da Escola
Nacional de Sade Pblica/Fundao Oswaldo Cruz.
Iniciar minhas atividades profissionais na Secretaria de Sade do
municpio constituiu-se num novo, mas instigante desafio para mim. Como acontece,
com muitos profissionais de psicologia na rea da sade, fui designada para desenvolver
meu trabalho num Centro de Sade - considerado o mais acessvel pela secretaria de
sade devido principalmente sua posio geogrfica em relao s comunidades mais
distantes4. A sua localizao no territrio justificou que ali fosse estruturado o Servio
de Sade Mental da SMS.
A prtica cotidiana, com as confrontaes e dilemas vivenciados na
Unidade de Sade, comeou a delinear o que hoje , em parte, objeto de estudo desta
Dissertao. Ao assumir o cargo, ainda acreditava ser possvel desenvolver atividades
clnicas sem outras implicaes numa instituio de carter mdico-sanitrio, como o
so os Centros de Sade ingenuidade de iniciante. Porm, nada mais desestabilizador
1A SMS/Nepomuceno pertence Diretoria Regional de Sade de Varginha/MG (DRSV/MG).
2O que havia anteriormente, era apenas o encaminhamento de pessoas que necessitassem de atendimento mdico-psiquitrico de urgncia para hospitais psiquitricos pblicos ou para clnicas particulares conveniadas com o SUS,existentes na regio. Em casos de crianas, por exemplo, era comum o encaminhamento para a APAE do municpionos chamados casos de dficits cognitivos, dentre outros distrbios, identificados, principalmente, pelainstituio escolar.
3
Sobre o estudo etnogrfico do autor sobre o nervoso, ver: Duarte, L.F.D., 1998. Da Vida Nervosa nas ClassesTrabalhadoras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
10
4Nepomuceno um municpio que tem como base da economia local a produo cafeeira. Boa parte dos usurios doCentro de Sade era proveniente de fazendas locais ou de pequenas roas localizadas beira da rodovia.
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do que as incongruncias e impasses surgidos do prprio trabalho. Como era de se
esperar, em pouco tempo, eu havia sentido os efeitos do que se convencionou chamar de
ambulatorizao. Foi ento que decidi tentar buscar outros modos de operacionalizar o
servio, em conjunto com um psiquiatra lotado na mesma Unidade.
Longe de nos aproximarmos da estruturao de uma rede de ateno emsade mental no municpio, procuramos no nosso mbito local questionar o que vinha
acontecendo, buscando maior implicao com o trabalho que desenvolvamos e
tentando romper com um padro de aes que julgvamos ser contraproducente. Em
muitos momentos vivenciei a angstia de estar repetindo um modelo tradicional de
assistncia, to contestado nos meios acadmicos.
O que passou a acontecer trouxe para mim muito mais perguntas do que
respostas. Se conseguamos questionar o funcionamento inicial do que na SMS passou-se a chamar Servio de Sade Mental, buscando desenvolver atividades outras (por
exemplo, mantendo um grupo aberto aos usurios), comeamos tambm a perceber
que determinados aspectos da reestruturao desse tipo de servio em uma Unidade de
Sade, bem como da implementao de outras aes no setor, ultrapassavam em muito
a nossa competncia tcnica e a possibilidade de mudana. Ficava cada vez mais claro
que uma poltica local de sade mental no era prioridade no planejamento das aes de
sade do municpio, naquele momento. Esta conjuntura era agravada pela inexistncia
de outros servios extra-hospitalares locais e pela escassez de profissionais qualificados
em sade mental na regio.
Foram essas vivncias e essas dvidas que me levaram a buscar o curso
de Especializao em Sade Pblica da Universidade do Estado de Minas Gerais, no
ano de 2000. As discusses ampliadas para a esfera da sade pblica e um outro olhar
possibilitado pela problematizao da dimenso poltica existente no trabalho em sade,
aliado percepo das implicaes subjacentes organizao dos servios e aes de
sade a nvel local com novas aes direcionadas ao nvel micropoltico, como por
exemplo o Programa Sade da Famlia, e discusses preliminares sobre a insero de
possveis estratgias de sade mental nesta nova conformao da Ateno Bsica
alimentaram o meu desejo em aprofundar-me nesse debate.
Foi quando, ento, optei por cursar o Mestrado em Sade Pblica na
ENSP/FIOCRUZ, na rea de concentrao em Planejamento e Gesto de Sistemas e
Servios de Sade. Ao longo do Mestrado tenho tido a chance de amadurecer a idia de
que preciso redimensionar os dispositivos de cuidado em sade da Ateno Bsica -
tendo em vista o contexto dos Distritos Sanitrios e tambm o das novas polticas de
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sade mental no Brasil - como espaos legtimos de acolhimentocapazes de contribuir
para o processo de inverso do modelo assistencial e de reestruturao da rede de
ateno em sade mental. Essa a linha norteadora da discusso desta dissertao.
Algumas diretrizes polticas apontam essa direo como, por exemplo, o
plano de aes elaborado em maro de 2001 a partir da Oficina de Incluso das Aesde Sade Mental no Programa Sade da Famlia, que poder ampliar o acesso aos
cuidados da populao de baixa renda, dada a prioridade de alocao dos recursos
conferida ao PSF pelo Ministrio da Sade. Outro momento importante de discusso
dos encaminhamentos tecno-polticos neste setor ocorreu em 2002, por meio da parceria
firmada entre o Departamento de Ateno Bsica do Ministrio da Sade e a Assessoria
Tcnica de Sade Mental, com o objetivo de criar um programa comum de incremento
das aes de sade mental na ateno bsica. Em decorrncia disso, foi realizado emabril do mesmo ano, no municpio do Rio de Janeiro, um Seminrio sobre a
reorganizao de servios e formao de recursos humanos em sade mental para o
trabalho na ateno primria.
Partindo dessas consideraes, o pressuposto deste trabalho que a sade
pblica e a sade mental so atravessadas em sua prtica pela dimenso tecno-poltica,
que incide diretamente sobre o processo de subjetivao dos sujeitos em sofrimento.
Tentarei, assim, formular algumas proposies acerca da possibilidade de emergncia
de novas relaes entre o profissional que produz o cuidado em sade e o sujeito que
demanda atendimento nos espaos da ateno bsica, principalmente, no que diz
respeito aos usurios que chegam sua unidade sanitria de referncia com
necessidades de sade que podem configurar-se como queixas de sofrimento psquico.
Muito pouco tem se produzido acerca das prticaspsidesenvolvidas nas
unidades de sade, local onde muitos profissionais de sade mental atuam e acabam por
se deparar com uma infinidade de empasses, mas tambm com um universo de
possibilidades de ao junto comunidade bastante rico quando explorado.
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Apenas recentemente, alguns autores5vem trazendo tona essa discusso, em grande
parte mobilizados pelas incurses das equipes de Sade da Famlia nas comunidades,
que engendram e agenciam novas abordagens dos fenmenos de sade/doena, novas
relaes entre o usurio e a equipe agora, buscando descentrar-se da figura do mdico.
Essa nova configurao das aes faz emergir novos problemas, novos dilemas queenglobam as dimenses terica e metodolgica de um campo de conhecimento que se
anuncia em construo.
O escopo desta pesquisa - guiado pela indagao de quais so os modos
de cuidado e a escuta oferecida na ateno bsica em sade s necessidades que
emergem como problemas de sade mental concerne exatamente ao trabalho de
cartografar e analisar estas modalidades de ateno e de cuidado disponibilizados pela
rede bsica s pessoas em sofrimento psquico. Esta investigao toma como ponto dereferncia a perspectiva do servio de sade, ou melhor, parte das concepes e dos
modos de ao/interveno dos trabalhadores em sade. Cabe marcar que esta
investigao situa-se neste espao existente entreprofissional e usurio, construdo e
expresso atravs do vetor das prticas em sade co-produzidas por todos os envolvidos
nesse processo. Por isso, a relevncia de cada trabalhador em sade na recepo e no
acolhimento do usurio que chega unidade, uma vez que o processo de produo
coletiva da ao de sade est presente desde o primeiro contato do usurio com o
servio seja ainda na portaria ou no atendimento realizado pela equipe da triagem
at a sua chegada no profissional de sade especializado ou at mesmo no seu
referendamento a outros servios da rede de ateno.
No caso do presente estudo, as inquietaes e as perguntas norteadoras
iniciais foram:
Qual o espao da ateno bsica no atual contexto da reforma psiquitrica
brasileira?
Como podem as Unidades Bsicas de Sade e a Estratgia Sade da Famlia
transformarem-se em dispositivos de ateno capazes de contribuir com a inverso
do modelo assistencial em sade mental, no municpio do Rio de Janeiro?
Quais os atuais modos de cuidado s pessoas em sofrimento psquico no mbito das
aes da ateno bsica em sade?
5Ver por exemplo, os trabalhos de:1. Brda, M. Z., 2001. O Cuidado ao Portador de Transtorno Psquico na Ateno Bsica de Sade. Dissertao deMestrado, Recife: Ncleo de Estudos em Sade Coletiva/Centro de Pesquisa Aggeu Magalhes/Fiocruz.
132.Lancetti, A. (org.), 2001. SadeLoucura 7/Sade Mental e Sade da Famlia. So Paulo: Editora Hucitec. 2 ed.
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Como um estudo de caso, de abordagem qualitativa, pode informar eixos de anlise
e construir caminhos, para pensar aprxisem sade mental na ateno bsica, mais
coerentes com o contexto das novas polticas de sade mental em curso no Brasil?
Esses questionamentos serviram de base para a construo do referencial
terico deste trabalho e para a escolha da metodologia empregada para a execuo dapesquisa.
Para conduzir cada momento desta discusso acerca do cuidado dirigido
ao sujeitoporta-dor (voz)de queixas relacionadas a problemas de sade mental na rede
bsica de sade, a presente dissertao foi sistematizada da seguinte forma:
No primeiro captulo, partindo da premissa de que a racionalidade
psiquitrica mantm uma certa especificidade em relao racionalidade mdica,
realiza-se um resgate da constituio e evoluo desses saberes e procura-se demarcar oquanto alguns paradigmas da racionalidade mdico-psiquitrica moderna permanecem,
ainda hoje, como hegemnicos na prtica dos servios de sade, analisando que
implicaes advm da no modo de cuidar dos usurios numa instituio onde o enfoque
predominantemente mdico.
No segundo captulo, aborda-se a interface produzida pelo encontro da
Sade Mental e da Sade Pblica, mais propriamente, nos servios da ateno bsica
em sade. Foram elencados, para tal debate, alguns eixos de anlise considerados como
possveis norteadores de uma nova prxis neste mbito, sejam eles: a noo de
acolhimento, de escuta do sujeito da experincia e de integralidade.
O terceiro captulo apresenta o referencial metodolgico que guiou a
realizao do trabalho de campo, bem como explicita as tcnicas de anlise de dados
escolhidas para apresentao dos resultados da pesquisa.
No quarto captulo, faz-se um breve relato da reestruturao da
assistncia sade mental, no municpio do Rio de Janeiro, e contextualiza-se o Centro
de Sade Escola Germano Sinval Faria na rea Programtica 3.1 (AP 3.1), onde foi
realizado o estudo de caso.
J no quinto e ltimo captulo, procede-se anlise dos resultados
obtidos fundamentada no referencial terico-metodolgico descrito nos captulos
anteriores e apresenta-se a discusso acerca da configurao das estratgias utilizadas
pela unidade de sade para cuidar dos usurios com queixas de sofrimento psquico.
Essa anlise pautou-se na observao participante na Unidade, para a qual houve a
elaborao de um dirio de campo, em que eram registrados comentrios no apenas das
atividades dos profissionais e tcnicos, mas tambm de comentrios dos prprios
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usurios enquanto aguardavam na sala-de-espera para serem atendidos. Foram tambm
conduzidas entrevistas semi-estruturadas com tcnicos e profissionais de sade da
unidade e, em especial, com os profissionais de sade mental. Alm disso, como uma
estratgia de construo de um panorama geral do padro de atendimentos em sade
mental produzido pelos profissionais de sade e caracterizao da clientela usuria,foram coletadas informaes dos pronturios atravs de um instrumento desenvolvido
para tal finalidade.
Vale salientar que toda a complexidade do tema e tambm o fato de estar
me inserindo muito recentemente nestes debates acerca da Ateno Bsica em Sade -
no contexto tanto das novas polticas pblicas do setor quanto no desenvolvimento das
novas estratgias de cuidado em sade mental, em curso no Brasil - podem imprimir
algumas imprecises e limites neste trabalho, constituindo-o em um olhar ainda emmaturao de minha parte. Ainda assim, considero que este trabalho certamente pode
oferecer um mapeamento de alguns modos de agir em sade mental na ateno bsica e
discutir enfoques e abordagens possveis do sofrimento psquico nesse cenrio,
apontando para a necessidade de se considerar os atores principais dessa problemtica, o
usurio eo profissional de sade, ou, mais precisamente, o encontro entre ambos.
15
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CAPTULO I:
CONSTITUIO E EVOLUO DO SABER E DAS PRTICAS
MDICO-PSIQUITRICAS
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I. CONSTITUIO E EVOLUO DO SABER E DAS
PRTICAS MDICO-PSIQUITRICAS
O primeiro pensamento que me veio mente foique eu tinha um rosto, mos, braos, e toda aestrutura mecnica dos membros que pode servista em um cadver e qual chamei o corpo.
Ren Descartes
O ser humano contemporneo fundamentalmente desterritorializado. Com issoquero dizer que seus territrios etolgicosoriginrios corpo, cl, aldeia, culto,corporao... no esto mais dispostos em um
ponto preciso da terra, mas se incrustam, no
essencial, em universos incorporais. Asubjetividade entrou no reino de um nomadismogeneralizado.
Flix Guattari
Colocar-se perante o desafio de discorrer, ainda que brevemente, sobre o
momento de constituio cientfica dos saberes e das prticas mdico-psiquitricas e
sobre o seu desenvolvimento histrico uma tarefa que se justifica pela importncia queassume neste trabalho os paradigmas da racionalidade mdica e psiquitrica em sua
implicao nos modos de cuidado s pessoas em sofrimento psquico, nos espaos de
produo da sade localizados na ateno bsica.
Inicia-se este trabalho, partindo de uma anlise da conjuntura
epistemolgica que favoreceu o nascimento do saber mdico, enquanto saber cientfico
organizado e sistematizado de acordo com a racionalidade das cincias positivas. Ao
longo deste percurso, procura-se traar e delimitar o momento de corte epistemolgico1
que marca o surgimento da Medicina Moderna como cincia Clnica, em torno dos
ltimos anos do sculo XVIII. Destaca-se, especialmente, a funo discursiva na
transformao do saber e das prticas mdicas no que concerne sua relao com o
corpo do homem, com o conhecimento acerca das doenas e sua relao com o
sofrimento humano.
Ainda no mbito do desenvolvimento das disciplinas mdicas, procura-se
situar o surgimento da psiquiatria como cincia mdica responsvel por descrever,
17
1Trabalha-se com o conceito de corte epistemolgico no sentido da expresso ruptura epistemolgica, consagrada apartir de Gaston Bachelard (La formation de lespirit scientifique, 1964), que se relaciona ao aparecimento de umadescontinuidade epistemolgica e histrica na produo de conhecimentos.
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classificar e tratar as enfermidades mentais - quando ento, tambm, a loucura torna-se
objeto da observao mdica e submetida a seus mtodos.
Portanto, o objetivo aqui proposto focalizar, ainda que em linhas gerais,
os determinantes conceituais, bem como os discursivos, que operaram as mudanas no
quadro epistmico2
das cincias mdico-psiquitricas e o quanto esse saber sobre oprocesso de adoecimento e sobre o sofrimento humano influenciaram e influenciam as
prticas mdico-psiquitricas e a relao estabelecida entre aquele que cuida e aquele
que cuidado - objeto de investigao deste trabalho.
18
2 Esta categoria, quadro epistmico, est sendo utilizada de acordo com a concepo desenvolvida por Piaget &Garcia (1987:234) para descreverem o processo no qual a cada momento histrico e em cada sociedade, predomina
um determinado quadro epistmico, produto de paradigmas sociais e que a origem de um novo paradigmaepistmico.(...) Assim constitudo, o quadro epistmico comea a atuar como uma ideologia que condiciona odesenvolvimento posterior da cincia (...). somente nos momentos de crise, de revolues cientficas, que se d umaruptura com a ideologia cientfica dominante.... [Ver a esse respeito J. Piaget & R. Garcia, Psicognese e histriadas cincias. Lisboa: Dom Quixote, 1987.]
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1.1. Racionalidade Cientfica e Saber Mdico: um resgate histrico
Para abordar o tema do surgimento da medicina contempornea e delinear o
desenvolvimento de suas bases conceituais e de seus princpios epistemolgicos necessrio retroceder a
um perodo bem anterior compreendido entre meados do sculo XVII e fins do sculo XVIII
denominado Idade Clssica e apreender como ocorreu a insero da prtica mdica no espao social.
A medicina dos sculos XVII e XVIII era profundamente centrada no
indivduo, e somente com a reestruturao do espao hospitalar ...a partir de uma
tecnologia que pode ser chamada poltica: a disciplina que h a possibilidade da
medicina instaurar-se como um saber cientfico acerca do indivduo e da populao
(Foucault, 1992:105):
O indivduo e a populao so dados simultaneamente como objetosde saber e alvos de interveno da medicina, graas tecnologia
hospitalar.(...) A medicina que se forma no sculo XVIII tanto umamedicina do indivduo quanto da populao.
(Foucault, 1992 :111)
Esse momento pode ser caracterizado, de acordo com Luz (1988:88),
como o ...incio do processo de ordenao moral das classes sociais que conduzir,
(...), Polcia Mdica3, na Alemanha do sculo XVIII. Essa significativa passagem, na
histria da medicina social, muito bem analisada por Costa (1979), ao descrever o
processo atravs do qual a medicalizao coletiva preventiva ou curativa torna-se
norma mdica e decisopoltica.
Durante o sculo XVIII, perodo em que o esprito do tempo4 era
dominado pela razo Iluminista, a medicina inicia o processo atravs do qual constitui-
se como uma prtica racional de cuidados, organizando-se como clnica e como
medicina social.
A composio da medicina e da tecnologia hospitalar realiza, ento,
conforme Birman (1992:79), a substituio do antigo ideal da salvao pelo moderno
ideal da cura. Antes desse perodo de transio, pode-se considerar que o homem
pertencia ao domnio do sagrado, do divino e, a partir do sculo XIX, o homem torna-se
objeto de escrutnio da cincia coisificado, um ser passvel de estudo o corpo
3
Para uma descrio mais detalhada desse processo, ver Rosen, G., 1979. Da Polcia Mdica Medicina Social.Riode Janeiro: Graal Editora.
19
4 Esse termo est sendo utilizado no sentido do termo alemo Zeitgeist para expressar o esprito filosfico eideolgico predominante de uma poca.
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dessacralizado e passa a ser apenas corpo fsico. Instituiu-se a sade como valor e como
indicador maior da felicidade humana. No entanto, cabe ressaltar que nessa
racionalidade, a concepo de sade implcitadesenvolve-se em oposio de doena,
no sentido de no ser tomada como objeto do saber mdico, que constituir-se-
eminentemente em um saber acerca das entidades patolgicas, tendo-se comotestemunho o advento da patologia clnica. Isso significa dizer que a sade tomada em
sua relao de oposio ao estado mrbido, enquanto negatividade, representando a
ausncia de patologias.
medida que se acompanha as transformaes na prtica da clnica
mdica, estas colocaes parecem ganhar fora, pois como ser observado adiante, a
clnica, que nos primrdios da medicina apresentava-se como arte de curar doentes,
gradualmente torna-se a cincia das doenas, dos desvios e dos distrbios. O espaohospitalar, conseqentemente, reorganizado e medicalizado.
A medicalizao do espao hospitalar proporciona a observao contnua
do doente e o conseqente acompanhamento da evoluo/curso da doena, tornando
exeqvel a observao dos sinais e sintomas do fenmeno patolgico. Pela primeira
vez, existe a possibilidade de fazer prognsticos e realizar comparaes entre grupos de
doentes. Esta nova prtica de lidar com a doena e com o doente instaura uma grande
transformao epistemolgica no saber mdico, que acarreta pelo menos duas
conseqncias estruturantes desta nova racionalidade, produzida nas instituies
mdicas: a objetivaodo corpo humano visto como organismo, sede das doenas, e a
objetivaodo fenmeno mrbido comoentidade patolgica.
Outro elemento, tambm, criador das condies de nascimento de uma nova
racionalidade mdica a redefiniodo estatuto socialdodoente. O enfermo deixa de ser amaldioado
pelo mal que possui e passa a ser sujeito5da sua doena, devendo, portanto, ser tratado e curado atravs
da interveno e dos instrumentos da cincia mdica.
Alm disto, a apropriao do mtodo das cincias naturais pelo saber mdico essencial para garantir medicina o cunho de cincia racional e natural. Isso ocorre com o aparecimento
de uma nova episteme: a experincia. O mtodo naturalista fundamenta-se na observao e na anlise do
fenmeno estudado e, deste modo, a experincia consiste em observar, descrever, comparar e classificar
os objetos de estudo.
Pode-se mencionar como um bom analisadordessa realidade que se configura o sistema
epistmico da medicina do sculo XVIII no qual, como sinalizado por Foucault (1992:107), [o] grande
modelo da inteligibilidade da doena a botnica, a classificao de Lineu. De acordo com Luz
(1988:94-95), a categoria natural presente nas teorizaes mdicas acerca do corpo doente e do
20
5A opo por utilizar o termo sujeito, neste caso, tem o intuito de reiterar a dupla significao que o mesmo podeassumir: a de algum que se coloca como ator de sua prpria existncia e que, simultaneamente, no deixa de estarsujeitado s determinaes histricas, sociolgicas e ideolgicas de seu tempo.
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sofrimento humano produzido pelo adoecer exerce entre outras atribuies a funo de naturalizar
realidades sociais. Ao proferir um discurso naturalista sobre dimenses do socius, o saber mdico insere
tambm implicaes polticas no campo da prtica, contribuindo para processos de ordenao e adaptao
social de grupos e instituies ordem mdica.
Esse intervir ou tratar do corpo doente diferentemente do que seria um cuidar da
pessoa que adoece perpassado permanentemente pelo modelo explicativo do adoecer inerente sconcepes mdico-sanitrias do processo sade/doena:
A questo central a do imaginrio mdico da penetrao einteriorizao do mal no organismo. As categorias de contaminao econtgio, que atravessam o perodo clssico na histria da medicina
(...), bem como as de transmisso e de flagelo (...), so os elementosessenciais do imaginrio da medicina moderna, base da teoria athoje dominante na explicao do processo do adoecimento e da mortehumana.
(Luz, 1988:86, grifos meus)
Com isso, a medicalizao6e as aes tecnocrticas vo adquirindo progressivamente
um maior impacto e significao nas prticas de sade, no apenas no imaginrio da classe mdica, mas
tambm no imaginrio dos grupos sociais e dos sujeitos em sofrimento, que passam a creditar s
intervenes medicamentosas e tecnolgicas opoderde fora curativa ou preventiva das doenas. E essas
aes se do simultaneamente ao nvel da espacializao, quer seja no corpo individual ou no corpo
social, reforando ainda mais os efeitos poltico-ideolgicos que podem desencadear.
Num cenrio de ruptura e descontinuidade epistemolgica - ao nvel da
organizao dos saberes existente em fins do sculo XVIII e incio do XIX, essas
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6 Conforme Castel (1978), o termo medicalizao indica um processo atravs do qual a medicina expandiu seusdomnios sobre um crescente nmero de aspectos da vida social.
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transformaes possibilitaram o nascimento da clnica mdica e, tambm, o da
medicina social.
Mais importante que entender que as mudanas citadas anteriormente
tiveram a funo indiscutvel de redimensionar o sentido e a direo da prtica mdica
em especial no campo da clnica, que mais tarde tornar-se- antomo-clnica comBichat, introduzindo no plano da clnica a prtica da localizao e da eliminao de
doenas perceber o incio de um processo atravs do qual a complexidade7 do
adoecer humano vai sendo ocultada, encoberta e destituda de seu potencial criativo8
pelo reducionismo das categorias nosolgicas e dos conceitos arquetpicos da cincia
mdica moderna. preciso ressaltar que as principais mudanas ocorridas se deram ao
nvel da espacializao e da verbalizao do patolgico. Isso significa dizer, conforme
Foucault (1987:10), que o olhar e a linguagem acerca dos fenmenos mrbidosadquiriram nova estrutura e novo sentido, estabelecendo uma nova aliana entre o que
visvele o que enuncivel:
O olhar no mais redutor, mas fundador do indivduo em suaqualidade irredutvel. E, assim, torna-se possvel organizar em torno
dele uma linguagem racional. O objeto do discurso tambm pode serum sujeito, sem que as figuras da objetividade sejam por issoalteradas. Foi esta reorganizao formal e em profundidade, (...), quecriou a possibilidade de uma experincia clnica: (...) poder-se-,finalmente, pronunciar sobre o indivduo um discurso de estruturacientfica.
(Foucault, 1987:13)
7A noo de complexidadevem sendo desenvolvida por vrios autores H. Atlan (1979), F. Capra (1982), E. Morin(1988), T. Chardin (1989), I. Stengers (1990), dentre outros - entretanto para o prposito aqui empreendido faz-se aopo de sintetiz-lo de acordo com algumas consideraes de I. Stengers (1990:170) que se refere complexidadecomo uma questo de ordem prtica, surgida de um encontroemprico que reporta a um questionamento do poderatribudo aos conceitos. Para um melhor entendimento do uso atribudo idia de complexidadeno presente trabalho,destacam-se dois eixos fundamentais: o de um instrumento potencial de problematizaodas relaes interacionais eo da possibilidade de emergnciado novo, da realidade, tida como em permanente construo. Destaca-se, tambm,que a idia de complexidadepode ser bastante profcua no que tange s discusses sobre a limitao dos modelos dediagnstico-cura vigente no discurso mdico, baseado numa tica fragmentadora que privilegia as especialidades emdetrimento de uma concepo mais integrada do sofrimento e do adoecer humano.
8O estudo desenvolvido por Canguilhem (1966/2002) em O Normal e o Patolgico pode ser considerado um marcono campo das investigaes sobre os processos de sade/doena, tendo imprimido uma nova concepo terico-filosfica do fenmeno de adoecimento humano e tendo resgatado a complexidade dos processos vitais a elesubjacentes. Atravs do conceito de normatividade da vida, Canguilhem (1966/2002: 158-188, grifos meus) pensaa sade como a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentneo, a possibilidade de tolerarinfraes norma habitual e de instituir normas novas em situaes novas, subvertendo desse modo a compreensodo que seja normalidade e patologia. Nessa nova perspectiva, a noo de cura ampliada podendo ser tomada como acapacidade do ser humano criar para si novas normas de vida, s vezes superiores s antigas. Uma filiao terico-conceitual da concepo canguilhemiana pode ser encontrada nos trabalhos de Oliver Sacks (1995), de modo maispontual no livro Um Antroplogo em Marte: sete histrias paradoxais, no qual o autor desenvolve as noes deparadoxo da doena e de potencial criativo da doena. Atravs das histrias clnicas de alguns pacientes, Sacksrevela que ...por vezes [] levado a pensar se no seria necessrio redefinir os conceitos de sade e doena, pararev-los em termos da capacidade do organismo de criar uma nova organizao e ordem, adequada a sua disposio
especial e modificada e a suas necessidades, mais do que em termos de uma norma rigidamente definida. (...) Aoque me parece, quase todos os meus pacientes, quaisquer que sejam os seus problemas, buscam a vida e no
apenas a despeito de suas condies, mas por causa delas e at mesmo com sua ajuda. (Sacks, 1995:16-18, grifosmeus).
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As transformaes observadas no discurso mdico constatam o aparecimento de uma
nova estrutura discursiva referente aos fenmenos patolgicos e relao estabelecida com o doente. A
configurao da linguagem mdica muda no sentido de produzir um discurso racional e articulado entre o
saber mdico e o objeto de seu olhar.
No contexto das sociedades contemporneas, importante considerar as atualizaesocorridas no saber e nas prticas mdicas. Sibila (2002:181) faz um resgate muito apropriado dos
movimentos permanentes de deslocamento realizados no campo da cincia mdica em funo da atual
aliana entre tecnocincia e mercado que incidem nas novas dinmicas de biopoderconferidas pelos
dispositivos dassociedades de controle9e que repercutem em todas as esferas de saber - principalmente
na potncia discursiva da cincia. Em relao ao biopoder, afirma Sibila:
Na genealogia traada por Foucault, o sangue aflora como oobjetivo predileto dos dispositivos de poder nas sociedades desoberania. No perodo prvio industrializao do Ocidente, toda
uma rica simbologia e uma ritualizao especfica homenageavam ofluido vermelho, que corre pelas veias dos homens.(...). J naModernidade o sexo desbancou o sangue e assumiu o papel principalna simbologia e nos rituais abraados pelo biopoder. Agora,
entretanto, toda uma mstica ligada aos genes est emergindo, eparece disposta a converter esses componenetes moleculares dos
organismos humanos nos novos protagonistas do biopoder.
(Sibila, 2002:181, grifos meus)
Alguns autores (por exemplo, Pinheiro apud Camargo Jr., 2001:79) tm apresentado
importantes contribuies a essa discusso ao procurarem analisar os mecanismos de ao constituintes
da racionalidade mdica ocidental contempornea. O ponto central sinalizado a emergncia do que se
denomina Biomedicina, ...a qual realiza na sua prtica diria um esforo sistemtico em objetivar a
doena do sujeito, destacando-a da pessoa enferma. Conforme Sibila (2002:184):
Um dos fenmenos associados a tais processos um certo declnioda psicanlise tradicional, em proveito dos tratamentos ultra-rpidose superefetivos ligados nova gerao de psicofrmacos. Uma sriede drogas surgidas nas ltimas dcadas, de grande sucessopublicitrio, mercadolgico, teraputico e subjetivante em todo o
mundo, constituem bons exemplos dessa transio: Prozac, Lexotan,Valium, Citalopram e Ritalina fazem parte desse grupo. A nova
falange psicofarmacolgica ope-se radicalmente s terapiaspsicanalticas tradicionais, ligadas ao paradigma da interioridadeinerente ao Homo psychologicus, que eram longas e dolorosas pordefinio.
(Sibila, 2002:184, grifos meus)
Expressando tambm essa tendncia do mundo contemporneo a privilegiar solues
rpidas e superficiais, Castel (1995:09) afirma que ...na atualidade se trata mais de obter uma mais-
valia de gozo e eficincia do que um conjunto de conhecimentos das prprias profundezas . Pode-se
observar esse processo no campo do saber psiquitrico na prerrogativa concedida ao arsenal
9Para um aprofundamento neste tema, remeter-se s consideraes de Gilles Deleuze em Controle e Devir; Post-scriptum sobre as sociedades de controle.In: Conversaes(Traduo de Peter Pl Pelbart). Rio de Janeiro: Editora34, 1992/2000.
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medicamentoso da Psiquiatria Biolgica em detrimento de processos de interveno mais longos e
complexos encontrados, por exemplo, na Psiquiatria Dinmica e na Psiquiatria Social e tambm em
detrimento da utilizao do instrumental de outros campos de saber na lida com as questes referentes
sade mental.
Com base nessas reflexes, pretende-se levantar alguns questionamentos sobre o olhar e
a escuta que perpassam as prticas cotidianas nas aes de ateno sade dirigidas s pessoas quebuscam na sua unidade sanitria de referncia cuidados em sade mental. Pressupondo que na relao
entre aquele que trata e aquele que tratado prevalece o discurso sobre a doena, surge a indagao
acerca do discurso sobre o doente. Teria este um lugar no saber e nas prticas mdico-sanitrias da
ateno bsica? Ao falar-se daquele que sofre, daquele que necessita ou demanda cuidados, permite-se
que ele fale de si mesmo, de sua condio? Nesse sentido que esta investigao coloca-se a mapear as
estratgias de ateno e de cuidado em sade mental desenvolvidas pelos profissionais do CSEGSF,
atravs do estudo das prticas discursivas mdico-psiquitricas desenvolvidas nesta unidade da ateno
bsica em sade.
Aps considerar o surgimento da medicina contempornea e o processo de
medicalizao do sofrimento psquico, preciso comentar os paradigmas da instituio psiquitrica.
Assim, revisitar esses paradigmas, a partir deste momento, tem a funo de resgatar, atravs de um olhar
histrico, o que h de institudo nas prticas de cuidado e o que permanece cristalizado nas aes,
direcionando o olhar e a escuta para a doena e suas apresentaes sintomticas, afastando-os
progressivamente do sujeito da experincia.
Colocar-se nesse exerccio de pensamento sobre este momento de construo de novos
cenrios para a ateno psicossocial no Brasil, dadas algumas experincias em curso no mbito da
ateno bsica, cria a possibilidade de novas configuraes na rede assistencial, oferecendo contornosoutros, produtores de novas significaes sobre os fenmenos de adoecimento psquico, em espaos
privilegiados de produo e reproduo do discurso mdico, como tem sido as instituies de sade.
1.2. O Processo de Psiquiatrizao do Sofrimento Psquico
Nesta etapa do trabalho, procura-se explorar a trajetria do saber mdico-
psiquitrico no processo de deslocamento do fenmeno de sofrimento psquico comoalvo dos dispositivos de alienao para alvo dos dispositivos de sade mental10, ao
longo de perodos considerados expressivos e marcadores de transformaes histrico-
conceituais e, tambm, de mudanas representacionais no esquema perceptivo deste
universo.
10 Portocarrero (apud Amarante, 1998:103) quem realiza esta distino entre dispositivos de alienao edispositivos de sade mental.
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O esforo aqui empreendido ser na direo de retomar - a partir de
textos clssicos11sobre esta temtica - o caminho percorrido pela loucura do momento
em que esta experincia concebida apenas como vivncia da diferena, sem no entanto
configurar-se como expresso de morbidade, aos acontecimentos principais que a
conduzem e a mantm no universo das instituies de recluso e, enfim, nas instituiesde reabilitao psicossocial12.
Pretende-se, com esta exposio, identificar e demonstrar que fatores
confluentes foram os grandes possibilitadores da emergncia e da consolidao de uma
nova disciplina mdica a Psiquiatria que, concomitante a outros saberes que
ambicionavam o cunho da cientificidade, carecia de um objeto de estudo observvel e
passvel de investigao congruente aos paradigmas e mtodos da cincia moderna.
Acentua-se que duas disciplinas
13
desempenharam papel preponderanteno destino tomado pela loucura no mundo ocidental, a Psiquiatria e a Psicologia - ambas
muito mais resultado do que causa deste processo de patologizao do mundo psquico.
Na verdade, deve-se logo afirmar que, a despeito destes saberes terem sido os grandes
colaboradores da consolidao de uma Psicopatologia do sofrimento psquico e da sua
legitimao como saber pretensamente cientfico, a grande transformao operada no
universo da loucura se deve, primordialmente, a modificaes na percepo scio-
histrica e no interior das instituies assistenciais.
Destaque concedido ao papel desempenhado pelas instituies de
confinamento, que podem ser identificadas como o espao, o lcusno qual, ao longo
dos trs ltimos sculos, encerra-se e apropria-se do fenmeno da loucura, produzindo
dessa forma o processo de patologizao e medicalizao dos fenmenos de sofrimento
psquico que ainda hoje exerce funo majoritria em grande parte do conhecimento e
do olhar dirigidos aos ditos problemas mentais.
Na anlise foucaultiana sobre a formao das instituies asilares, fica
claro que no se tratavam de instituies mdicas, mas sim de estruturas assistenciais,
de carter semi-jurdico, com poder mximo sobre o louco e, no apenas sobre ele, mas
tambm sobre todas as pessoas marcadas pelo signo da desrazo. A esse fenmeno,
11 As anlises realizadas no campo das prticas e dos saberes acerca da loucura por autores consagrados, comoMichel Foucault, Robert Castel e Roberto Machado, foram as principais fontes selecionadas devido relevncia e aomrito das obras. Outros autores de destacada proeminncia no debate sobre a Reforma Psiquitrica tambmcompem o referencial terico deste trabalho.
12Pitta, A. Reabilitao Psicossocial no Brasil. So Paulo: Hucitec, 2001. 2 edio.
25
13O conceito de disciplinacientfica, na compreenso de Luz (1988:13), refere-se a um tipo especfico de discursoproduzido no mbito da racionalidade cientfica diferente, portanto, do conceito de disciplina ligado concepofoucaultiana de dispositivo disciplinar. Os dois conceitos, entretanto, esto relacionados pois a disciplina cientficapode acarretar efeitos sociais que, tambm, podero ser disciplinares.
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Foucault (2000:45-78) - retomando uma formulao da poca - reserva a designao de
a Grande Internao. A criao desses estabelecimentos, em toda a Europa, era
destinada e ligada em sua origem e em seu sentido primeiro moralizao do espao
social.
A loucura, progressivamente, inicia um processo de identificao com aexperincia da morte, representando simbolicamente a fragmentao do corpo em vida,
e mais que isso, significando a morte socialda pessoa em grave sofrimento psquico.
Produz-se, desse modo, o registro da loucura no imaginrio social, vinculado a uma
concepo crtica excludente e tutelar. Essa concepo mantm-se ainda presente na
cultura institucional de muitos servios de sade, que sem conseguir romper com
antigas concepes reproduzem e perpetuam essa lgica manicomial.
Vale lembrar que a medicina construiu as bases do seu arcabouoterico-cientfico sobre a loucura pautada num saber classificatrio ou taxonmico de
uma teoria geral da doena. No entanto, esse empreendimento para incorporar o
desconhecido e complexo fenmeno da loucura ao corpo do saber mdico no se deu
sem grandes esforos e conflitos.
Machado (1988:67-68) aponta na racionalidade mdica clssica a
pretenso de identificar a loucura comopatologia. Entretanto, tal pretenso parece no
ter se sustentado na observao dos loucos e de suas expresses sintomticas, mas no
modelo de Histria Natural da Doena - importado das cincias naturais. O referido
modelo caracteriza-se por ser um conhecimento eminentemente classificatrio, que
encontra no sintoma a verdade e a essncia da doena. Todavia, como incorporar tal
saber, desprovido de conhecimento emprico sistematizado mas pleno de categorias
morais, medicina clssica reconhecidamente positivista? O resultado foi a
sistematizao de um conjunto de estruturas muito mais imagsticas do que reais que
constituram o pensamento mdico acerca da loucura naquele perodo.
H que se pontuar que o deslocamento da experincia da loucura como
categoria de desrazopara categoria de doena mentalfoi primeiramente institucional,
antes de ser terico. O asilo a priorida psiquiatria possibilitou o nascimento da
disciplina psiquitrica no corpo da cincia mdica e lhe forneceu os fundamentos sobre
os quais foram erigidos suas concepes tericas, seus modelos de tratamento e,
fundamentalmente, seu objeto de investigao, a doena mental.
Logo, o asilo torna-se instncia de julgamento e correo, e o mdico
encarregado mais de um controle tico que de uma interveno teraputica. A loucura
encerra-se, assim, de modo irrefutvel sob a jurisdio da racionalidade mdica
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cientfica. Tcnicas de controle social e de estratgia mdica misturam-se e do o tom
da confuso estabelecida entre a percepo/concepo da loucura e o
tratamento/prticas a ela designados.
Em Doena Mental e Psicologia, Foucault (1989:81) afirma que a
Reforma14
iniciada por Pinel na Frana suscita o processo que permitiu psiquiatriainstaurar-se definitivamente como cincia mdica positiva, alm de conferir nova
aparncia s instituies da Grande Internao. Nesta etapa, o tratamento do louco
rompe o aprisionamento fsico15 mas reconstitui o aprisionamento moral. Os
fundamentos da Tecnologia Pineliana podem ser sintetizados basicamente em dois
princpios importados da Botnica e das Cincias Naturais: o isolamento e a
classificao. Pode-se considerar o atual arranjo nosogrfico do saber psiquitrico
contemporneo uma atualizao depurada das primeiras categorias criadas nesteperodo, a partir dos princpios alienistas.
A nosografia psiquitrica funda, ento, a legitimao do conhecimento
mdico acerca das experincias de sofrimento psquico, porm sem deter uma
explicao eloqente do que significa a loucura enquanto experincia da doena mental.
A mudana mais marcante, desencadeada pelo esfacelamento da
categoria de desrazo esua substituio pelo conceito de alienao mental, reside nesta
reestruturao interna das instituies asilares que ganharam a significao intrnseca de
instncias de tratamento. Em outras palavras, este movimento traduz-se no
aparecimento equivocado certamente da hospitalizao e do isolamento como tendo
per si um sentido curativo. Como foi visto, o isolamento era a principal medida
teraputica designada por esta Medicina Mental que se ergueu sobre os muros do asilo
psiquitrico.
Essa reforma da instituio asilar e de seus dispositivos disciplinares ou,
melhor dizendo, esse aggiornamento - para utilizar o conceito desenvolvido por
Castel16, no sentido de adornar com os conhecimentos e os instrumentos do saber
mdico-psiquitrico velhas frmulas de intervir no mundo da loucura - faz ressurgir as
14 O termo Reforma utilizado neste trabalho para designar uma reorganizao negociada do aparato asilar,diferentemente do termo Revoluo concebido como corte, ruptura em relao ao modelo assistencial anterior.
15De acordo com Foucault (1989:82), no ano de 1793, Pinel liberta os acorrentados que ainda se encontravam noHospital de Bictre. O ato de Pinel, documentado como este fato histrico, parece ter rompido com algumasrepresses fsicas inflingidas aos internos, porm restaurou toda a associao moral existente no campo da loucura,aprisionando o louco num sistema de Tratamentos Morais.
16 O autor desenvolve o conceito de aggiornamento para referir-se ao processo de atualizao da psiquiatria e metamorfose do dispositivo de controle social, que segundo Amarante (2000:41) vai da poltica de confinamentodos loucos at moderna promoo da sanidade menta .
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mesmas prticas segregadoras e tutelares, porm revestidas de nova significao moral,
demarcando o que pode ser designado como a Primeira Reforma do Aparelho
Psiquitrico17.
Para Castel (1978:55), este processo de medicalizao da loucura no
significou simplesmente a apropriao desta pelo olharmdico. O mais relevante queatravs das instituies mdicas a medicalizao do sofrimento psquico delineou um
novo lugar jurdico, social e civil para o louco: o de alienado mental.
Esse percurso realizado para a inscrio da loucura no saber mdico
moderno pode ser descrito sucintamente da seguinte maneira, conforme a anlise
foucaultiana (1989:87), na modernidade, atravs das cincias humanas, aceitando a
loucura como alienao, a patologizaram e a elevaram ao status de doena mental.
Mais uma vez, sensato reafirmar que na base de todas estas mudanasperceptivas acerca da loucura, no campo das prticas e dos saberes mdico-
psiquitricos, encontra-se o papel absolutamente indispensvel representado pela
disciplinarizao e reorganizao das instituies de recluso. no seu interior e a partir
do seu reordenamento que, paulatinamente, foi produzida uma nova espacializao e
verbalizao acerca da loucura, quando lhe foi conferida um lugar especfico e restrito
o hospital psiquitrico bem como uma nomeao medicalizada doena mental.
A seguir apresentam-se as tentativas posteriores de reformas da instituio
psiquitrica e de seus recursos teraputicos, em decorrncia das crises sucedidas em seu modelo
tradicional de interveno.
1.3. Entre a Preveno e a Promoo: a sade mental na comunidade
Se anteriormente, durante o perodo da Reforma Pineliana, o hospital era
considerado o lcus de tratamento da alienao mental, atravs do isolamento e do
tratamento moral; no perodo do Ps-Guerra estabelecido um paradoxo quando se
descortina o avesso da Tecnologia Pineliana: o hospital psiquitrico passa a ser
responsabilizado pelo agravamento da doena mental.
Para Birman & Costa (apud Amarante, 2000:21), exatamente no
contexto da crise do paradigma psiquitrico que vo sendo construdas as novas
experincias e as novas propostas de interveno no mbito da Psiquiatria. Para eles, a
psiquiatria clssica entra num processo de falncia de seus dispositivos terico-prticos
17 Enfatiza-se o termo empregado Aparelho Psiquitrico, fazendo uma meno concepo desenvolvida porAlthusser em seu trabalho Ideologia e Aparelhos Ideolgicos do Estado, do qual pode-se inferir que as instituies
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a partir do momento em que se instaura uma transformao radical no seu objeto e,
tambm, uma ruptura epistemolgica do saber psiquitrico: o foco da interveno do
psiquiatra deixa de ser o tratamento da doena mentalpara constituir-se na promoo da
sade mental.
Como conseqncia desta mudana epistemolgica, tambm, ocorreramtransformaes no discurso psiquitrico e nas suas estruturas assistenciais. Birman &
Costa (1994:41-45) identificam na histria da psiquiatria dois grandes momentos em
que o seu arcabouo terico-assistencial redimensionado.
Primeiramente, os autores apontam para o desenvolvimento de um
processo de crtica ineficincia da instituio asilar, que conduz ao resgate da funo
curativa do manicmio atravs da reforma da instituio psiquitrica. Este perodo
marcado pelas grandes Reformas Asilares iniciadas com as experincias dasComunidades Teraputicas (Inglaterra) e com o movimento de Psicoterapia
Institucional (Frana) - nas quais a lgica do tratamento baseia-se, respectivamente, no
conceito de reeducao social ou aprendizagem ao vivo (pedagogia social) e na
concepo de que a doena est na instituio e, portanto, a instituio como corpo
vivoquem dever ser tratada.
J num segundo momento, ainda segundo Birman & Costa (1994:41-45),
o que se observa a ampliao do dispositivo psiquitrico para as comunidades, para o
espao pblico, tendo como meta a preveno e a promoo da sade mental. Parece
haver uma superao das reformas restritas ao espao hospitalar, entretanto
acompanhada de uma projeo difusa da teraputica e do saber psiquitrico para o corpo
social fato este que traz consigo implicaes polticas e ideolgicas bastante
problemticas no campo da assistncia. Representam este movimento de reforma do
modelo psiquitrico, a Psiquiatria Comunitria ou Preventiva nos E.U.A. e a Psiquiatria
de Setor na Frana.
As mesmas condies que estruturam o surgimento e a consolidao da
Psiquiatria Institucional que tornam propcio o projeto da Psiquiatria de Setor e da
Psiquiatria Comunitria. Em ambas, a estratgia utilizada visa a promoo da sade
mental entendida como processo de adaptao social18.
Considera-se necessrio ressaltar alguns elementos essenciais
indispensveis nas anlises posteriores acerca da atual estruturao das polticas de
ateno em sade mental decorrentes do projeto de setorizao do hospital e da
psiquitricas tambm tomariam parte. [ ver Althusser, L., 1970]
29
18De acordo com Birman & Costa (1994:44) A. Meyer o primeiro formulador do conceito de enfermidade mentalcomo desadaptao social, ou seja, como reao a uma situao ambiental conflitiva.
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comunidade, implementado a partir da Psiquiatria de Setor. A poltica de setor
representou uma importante contribuio francesa organizao dos servios na
comunidade. Pode-se dizer que a tentativa de integrar o espao hospitalar e a
comunidade favoreceu um pouco o rompimento das estratgias assistenciais baseadas
no projeto da Psicoterapia Institucional centrado no hospital psiquitrico. SegundoAmarante (1994:35), a partir desta nova poltica de setorizao da assistncia, diversos
servios foram concebidos para tratar o paciente psiquitrico no seu meio social. O
territriosurge como elemento nuclear organizador das aes de preveno, tratamento
e ps-cura das doenas mentais. Todavia, para Rotelli,
... a experincia francesa de setor no apenas no pde ir alm dohospital psiquitrico porque ela, de alguma forma, conciliava ohospital psiquitrico com os servios externos e no fazia nenhumtipo de transformao cultural em relao psiquiatria.
(Rotelli apudAmarante, 1994:36)
Desta maneira, tambm no entendimento de Amarante, a prtica da iniciativa francesa
no alcanou os resultados desejados por vrias razes, ressaltando-se aqui a ...resistncia oposta por
grupos de intelectuais que a interpretam como extenso da abrangncia poltica e ideolgica da
psiquiatria...(Amarante, 1994:35).
Sendo o espao pblico o novo lcusda ao e do saber psiquitricos,
progressivamente, a Psiquiatria ramifica e estende suas tcnicas para o corpo
comunitrio, por meio de uma abordagem prioritariamente preventiva da doena mental.
Esto implcitos nesta nova estrutura terica-assistencial conceitos incorporados da
Sade Pblica, destacando-se o conceito deHistria Natural da Enfermidade de Clark
& Leavell e o conceito de risco.
Nesse sentido, a relao estabelecida entre sade/doena mental expressa sob o signo da
adaptao/desadaptao social reinscreve no saber e nas prticas mdico-psiquitricas uma concepo
naturalizadade normal/anormal no universo do sofrimento psquico. Parece insurgir, a partir desta novanorma psiquitrica,a existncia imaginria de um padroesperado e desejado de comportamento, bem
como de meios adequados de vivenciar e expressar a sade ou o sofrimento psquico. E, nesse contexto
que se desenvolve tambm o conceito de crise,no bojo do modelo proposto pela Psiquiatria Preventiva19.
Pela tica desse novo enfoque, a doena mental pode e deve ser prevenida, e a
Psiquiatria torna-se o instrumento mais apropriado para evitar que um acmulo sucessivo de crises
conduza enfermidade (Birman & Costa, 1994:56).
Novamente, na histria do saber psiquitrico antigos conceitos e ideais so retomados,
agora expressos na atualizao da noo de profilaxia - presente na tecnologia alienista - a partir do ideal
19Em relao ao tema, ver Caplan, G., 1980.Princpios de Psiquiatria Preventiva. Rio de Janeiro: Zahar Editora.
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da preveno e da promoo da sade mental. Mais do que com a noo de tratar/curar defronta-se com a
idia de promover a sade mental novo alicerce do saber psiquitrico e de prevenir possveis
desequilbrios nessa sade, atravs de intervenes correlatas ao seu nvel de constituio. Refere-se ao
estabelecimento da assistncia psiquitrica calcada em novos parmetros que pressupem, alm das aes
de preveno secundria e terciria parte do antigo sistema curativo , as aes de preveno primria.
Essas ltimas constituem-se num modo de produo da assistncia em sade mental paradoxal einconsistente em relao racionalidade psiquitrica da qual deriva e se coloca a servio.
Essa concepo de preveno em sade mental requer muita reflexo em torno dos
efeitos tecno-polticos que pode produzir. Quanto a esse aspecto, Birman & Costa lembram o fato de que
... todos os espaos sociais tornam-se passveis de adoecer, e so potencialmente objeto da
psiquiatrizao da Comunidade... (1994:60), levantando assim questes essenciais relacionadas ao
poderatribudo instncia psiquitrica, ao conhecimento e aos modelos peculiares desenvolvidos por ela
para lidar com o sofrimento psquico.
Em certa medida, pode-se dizer que a reforma preventivista apresenta-se como uma
contraposio ao processo de excluso social dos indivduos em sofrimento mental. Porm, o modelo
asilar acaba sendo retroalimentado pelo circuito inaugurado pela Psiquiatria Preventiva.
Dada essa conjuntura, tcito pensar que as propostas preventivistas
prepararam o caminho para os modelos assistenciais de desinstitucionalizao nos
E.U.A. movimento este representado, na verdade, por um conjunto de medidas de
desospitalizao20.
Em decorrncia deste processo, iniciado a partir das experincias da Psiquiatria
Comunitria ou Preventiva, surge a tendncia de reduzir a permanncia e de evitar o ingresso de pacientes
em hospitais psiquitricos, propiciando deste modo a instaurao de dispositivos alternativos
hospitalizao.
H que se lembrar, entretanto, que as medidas implementadas pelos programas de
preveno no produziram a resposta teraputica esperada. O resultado mais visvel foi um aumento
significativo da demanda ambulatorial, atravs da absoro
de uma nova clientela para os tratamentos psie a manuteno dostatus quono universo hospitalar, visto
que essa populao atendida nos servios extra-hospitalares no era composta em sua maioria por
egressos asilares, que a princpio seriam os alvos dessas novas aes dirigidas a transferir os internos para
os novos servios.
20 desejvel, desde j, estabelecer uma diferenciao clara entre os conceitos de desinstitucionalizao edesospitalizao no mbito do que se convencionou denominar Reforma Psiquitrica. Prefere-se marcar tal distino,a partir de algumas consideraes de Rotelli, De Leonardis & Mauri (1990:33) que indicam a desinstitucionalizaocomo processo social complexo, transformador das relaes de poder entre pacientes e instituies; ao contrrio, dapoltica de desospitalizao ocorrida sobretudo nos EUA e em alguns pases da Europa, conduzida de forma aracionalizar os recursos, atravs da reduo gradativa do nmero de leitos nos hospitais psiquitricos, sem que issoimplicasse uma transformao paradigmtica na lgica assistencial. A ttulo de conferir ao termo sua verdadeiradimenso, segue a citao: ...a desinstitucionalizao sobretudo um trabalho teraputico, voltado para areconstituio das pessoas, enquanto pessoas que sofrem, como sujeitos. Talvez no se resolva por hora, no se
cure agora, mas no entanto seguramente se cuida. Depois de ter descartado a soluo-cura se descobriu quecuidar significa ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do
paciente e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana, que alimenta esse sofrimento.(Rotelli, De Leonardis & Mauri, 1990:33)
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Dadas essas circunstncias, no contexto das polticas de promoo sade21constata-se
o aparecimento de uma normatizao ou padronizao de estilos de vida saudveis atravs da
formulao de novas polticas pblicas de sade, no cenrio internacional. Se, por um lado isso demarca
positivamente a ampliao do conceito de sade, por outro polemiza a difuso da existncia de estilos de
viver saudveis que garantiriam ao sujeito promessas como a da longevidade, da jovialidade, enfim, de
uma srie de valores da sociedade contempornea, que se apresentam como desejveis e alcanveis, casose desenvolvam hbitos socialmente reconhecidos e atestados pelo saber mdico como benficos ao bem-
estar geral da pessoa (como por exemplo, dietas saudveis, exerccios regulares, atividades de lazer
freqentes, dentre outras sutilezas do bem viver).
A mesma expectativa parece consolidar-se em relao sade mental das pessoas e das
comunidades. Um determinado padro de atitudes e comportamentos normatizados esperado. A noo
de risco e de crise compem os fundamentos terico-assistenciais das aes em sade mental
desenvolvidas na ateno bsica territrio privilegiado das aes de promoo e preveno em sade
pblica.
De um certo modo, essas consideraes sinalizam tambm um determinado controle
exercido pela sociedade contempornea, que pode ser designado como controle informacionalmas que
remete paralelamente para um outro tipo de controle h muito conhecido h que se lembrar que a
Medicina Social o desempenhou com muita propriedade , o controle sobre os corpos dos indivduos e
da coletividade enquanto corpo social.
Problematizando ainda mais essa questo, faz-se apenas uma breve referncia Deleuze
(1992/2000:220), no sentido em que este utiliza o termo sociedades de controle - j mencionado
anteriormente -, para ressaltar possveis efeitos micropolticos deste processo de refinamento do ideal
preventivista. Ao reportar essa dimenso do modelo assistencial da Psiquiatria Comunitria sopertinentes as consideraes de Passos & Benevides (2001:94) quando colocam em discusso os
conceitos foucaultianos de biopoder e biopoltica, que giram em torno do eixo poder-vida:
...se, na sociedade disciplinar,(...), o exerccio do poder se faziasobre corpos individuados submetidos a moldagens ortopdicas oucorretivas, contemporaneamente as relaes de poder incidem sobreo prprio processo da vida. O biopoder se caracteriza por uma novaaposta das polticas e das estratgias econmicas na vida e,sobretudo, no viver. O que precisamos entender essa relao deimanncia do biopoder, que exige um reequacionamento das formas
de luta e de intervenes clnico-polticas, quaisquer que sejam elas.
(Passos & Benevides, 2001:94, grifos meus)
As repercusses dos modos-de-vida ou estilos de vida saudveis na esfera da produo
do saber e das prticas psiquitricas ganham consistncia com a predominncia/pregnncia da Psiquiatria
32
21A Conferncia de Alma Ata, realizada no ano de 1978, selou as aes de promoo sade no mbito da ateno
primria como a estratgia central em sade pblica destinada ao enfrentamento dos problemas de sade dos pasessubdesenvolvidos. De acordo com Buss (2002:50), promover a sade algo distinto de prevenir os agravos ou detrat-los. De acordo com a Carta de Otawa (1986), a promoo da sade pode ser definida como o processo decapacitao da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e sade, incluindo uma maior
participao no controle deste processo.
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Biolgica22na rea da assistncia sade. A Psiquiatria Biolgica ramifica-se e desenvolve-se a partir das
concepes mais tradicionais da racionalidade cientfica moderna, baseando-se nas velhas solues
doena-cura e na sua lgica dicotmica normal/anormal, atualizada e ampliada no conceito de desvio
como transtorno.
Quanto influncia da racionalidade mdica moderna na esfera dos
modelos de assistncia sade, Mattos (2001:49) afirma reconhecer uma distino
fundamental na experincia do sujeito que recebe cuidados preventivos e curativos em
sade. Para os fins deste estudo, o foco recai nas atividades preventivas da rede bsica
de sade, que no so derivadas diretamente da experincia individual de sofrimento e
so profundamente distintas das experincias assistenciais curativas, essas diretamente
demandadas pelo usurio.
Exatamente por no serem solicitadas por quem busca por cuidados, as
prticas de diagnstico ou de interveno precoce devem ser exercidas com muitacautela. Pode-se, inclusive dizer que tais aes tipificam o processo de medicalizao,
uma vez que atravs desse movimento o saber mdico recomenda hbitos, dita
comportamentos desejveis e, sutilmente, estende seus poderes vida privada das
pessoas.
Como exemplificao extrema do referido processo, Sibila tece as
seguintes consideraes:
Os exames genticos pr-sintomticos esto sendo usados naavaliao subjetiva, como uma previso fivel com toda a garantiae a legitimidade do saber cientfico das potencialidades e dos riscos
que as pessoas podem apresentar no futuro. Configurando gentiposde suscetibilidade, tais testes constituem um poderoso instrumento decontrole em termos de biopoder, cujo uso estende-se cada vez mais...
(Sibila, 2002:193, grifos meus)
A concretude e a legitimidade do saber da Psiquiatria Biolgica melhor visualizada
atravs dos Manuais de Diagnstico produzidos pelas comunidades cientficas internacionais como ocaso do CID-10 e do DSM-IV, este ltimo elaborado pela Associao de Psiquiatria Americana/APA. O
modelo de classificao do adoecimento psquico presente nestes manuais no rompe com os
paradigmas da Psiquiatria tradicional, apenas opera uma modulao dos mesmos ao fragmentar, ou
melhor, decompor em segmentos cada vez menores as grandes categorias molares da Psiquiatria Clssica.
O que ocorre, nesse processo um refinamento, um aprimoramento das categorias diagnsticas
22 Leal (1999:04) pontua uma diferenciao da psiquiatria biolgica do final do sculo XX e da psiquiatriaclssica, no considerando que a primeira possa ser uma variao da segunda. Para ela, [a] psiquiatria biolgica,ao contrrio da psiquiatria clssica, no toma como objeto de seu conhecimento, em nenhum momento, a questo da
subjetividade. Sequer apresenta qualquer disponibilidade ou preocupao em compreender a loucura para alm desua dimenso estritamente orgnica.(...) As qualidades morais dos indivduos no so tematizadas pela psiquiatria
biolgica. (...) O substrato orgnico deixa de ser uma via para a transcendncia do sujeito, ele um fim em simesmo, uma mera descrio das alteraes passveis de ocorrerem no corpo daquele considerado louco .
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existentes, possibilitando a captura e o enquadramento do sofrimento em qualquer um daqueles
diagnsticos. Tudo torna-se passvel de ser classificado como distrbio, transtornonesta nova nosologia
psiquitrica, que em sntese pode ser denominada de uma nosologia dos estilos de vida.
No se pode deixar de dizer e evidenciar que essa problematizao reflete tambm um
processo ainda mais sutil do que o da psiquiatrizao da vida no qual o controle se d
fundamentalmente pelo frmaco -, mas trata-se sobretudo de umapsicologizaodos problemas sociais ecotidianos que passa a justificar intervenes/controles os mais variados no que se poderia chamar de
drama ntimo do sujeito. Essas intervenes podem at mesmo se efetivar atravs do prprio sujeito
num dispositivo de auto-controle, impulsionado, por exemplo por manuais de auto-ajuda
disseminados, principalmente, por algumas abordagens da Psicologia do Ego norte-americana. A anlise
deste processo, produzida por Aguiar (2002:142), explicita muito bem os efeitos da psiquiatrizao da
vida na sociedade contempornea:
...o discurso da Psiquiatria Biolgica vem sendo fortementeveiculado nos meios de comunicao, atingindo todo o tecido socialnuma produo massificada de subjetividades. Cada vez mais, aspessoas incorporam o vocabulrio neurocientfico ao modo como
experimentam a vida, traduzindo seus prprios sentimentos, suasmotivaes, seus desejos, seu carter, seus corpos e pensamentos em
termos como baixa da serotonina, recada da depresso,alterao da dose do antidepressivo, etc. Trata-se da veiculaomiditica de um discurso que produz subjetividades medicalizadas.
(Aguiar, 2002:142)
No contexto da emergncia da indstria psicofarmacolgia e em meio a vastas
transformaes polticas e culturais, surge na dcada de 6023, o movimento da antipsiquiatria na
Inglaterra, distinguindo-se dos demais por ser a primeira tentativa de romper com o paradigma
psiquitrico institudo e com todas as formas de subordinao e excluso derivadas do saber e das prticas
mdico-psiquiticas no campo da loucura.Apesar de procurar dirigir um novo olhar experincia de
sofrimento psquico conferindo-lhe uma significao relacional e no mdica - e iniciar um processo de
desconstruo dos conceitos e teraputicas designadas pela psiquiatria clssica, a antipsiquiatria acaba por
contribuir com a experincia que realmente constituir-se- numa verdadeira ruptura do modelo
psiquitrico (tradicional e reformado) e da cultura manicomial. Refere-se experincia da Psiquiatria
Italiana, iniciada em Gorizia, durante os anos 60, que ir inaugurar o surgimento de uma nova percepoe uma nova prtica comprometida com a inveno de novos fazeres no campo da ateno psicossocial.
A reforma psiquitrica italiana, desencadeada por Franco Basaglia, em decorrncia de
seu trabalho no manicmio de Gorizia, caracterizou-se inicialmente por ser um movimento de
humanizao e transformao do hospital psiquitrico. Em seguida, essa experincia assume uma outra
dimenso e consolida-se como desconstruo das foras e dos dispositivos institucionais do manicmio,
outorgados e representados pelas noes de tutela, excluso e periculosidade, criadas e assimiladas pelo
tecido social.
Como afirma Basaglia (apud Desviat, 1999:43), esta movimentao inicial constituiu
uma estratgia de mudana da comunidade teraputica, etapa provisria que deve ser negada, de
34
23Neste trabalho, todas as dcadas citadas referem-se ao sculo XX.
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maneira a que a ao possa ser levada para fora, para a prpria sociedade, onde funcionam os
mecanismos originrios de marginalizao do doente mental.
Assim, ocorre o processo de superao da simples humanizao do espao hospitalar,
impulsionando a experincia de Gorizia, depois estendida a Trieste, para um lugar de negao da
realidade psiquitrica. Um no contundente decretado ao manicmio, aliado toda uma crtica s
instituies de violncia e marginalizao. As instituies totais na significao utilizada por Goffmann(1961/2001)24 so questionadas em seus paradigmas, tornando o movimento uma experincia tambm
de carter poltico.
O grande marco da transformao do modelo assistencial italiano a chegada de
Basaglia a Trieste. Para DellAcqua (1992:44), esse o momento em que se materializa a desmontagem
do aparelho manicomial e se reinventa novos lugares e formas de lidar com o sofrimento psquico:
A experincia de Trieste levou destruio do manicmio, ao fim daviolncia e do aparato da instituio psiquitrica tradicional,
demonstrando que era possvel a constituio de um circuito deatendimento que, ao mesmo tempo que oferecia e produzia cuidados,
oferecesse e produzisse novas formas de sociabilidade e desubjetividade aos que necessitassem da assistncia psiquitrica.
(DellAcqua, apudRotelli, 1992:44)
Parece importante indicar que o cerne de toda essa discusso iniciada na Itlia no
pretendeu desqualificar a necessidade de uma proposta teraputica para aqueles que dela precisassem; a
instituio negada no significa a suspenso da construo de novas estratgias de ao no trato com o
fenmeno da loucura e sim indica outros campos possveis de interveno no espao social:
A originalidade do modelo triestino talvez esteja exatamente no fatode ter percorrido, alm das cooptaes ideolgicas (...), a evidnciados comportamentos e a responsabilidade das decises naqueleespao impreciso que est entre o abstrato reconhecimento dosdireitos do doente e a possibilidade efetiva ao seu poder de vida na
cidade.(Basaglia & Gallio, 1991:47)
O discurso antiinstitucional basagliano que tem por fio condutor o processo de
desinstitucionalizao - enquanto desconstruo do paradigma psiquitrico doena-cura - no se propea negar a doena mental enquanto existncia-sofrimento, mas sim apontar para a negao . ..de
definies abstratas de uma doena, da codificao das formas, da classificao dos sintomas...
(Basaglia apud Amarante, 1996:78). Enfim, posta em questo est a objetivao do sujeito em seu
sofrimento.
A expresso colocar entre parnteses25 a doena mental, na verdade, convoca a
inverter a operao realizada pelo saber psiquitrico, em sua tradio mais nefasta, de criar as condies
24
Para maiores informaes acerca desse conceito, reportar-se ao trabalho do autor: Manicmios, Prises eConventos, Editora Perspectiva, 1961/2001.
35
25Essa noo colocar entre parnteses, ou para usar o termo husserliano poch, deriva de alguns pressupostosda Filosofia Fenomenolgica. Tal expresso difundiu-se no campo da Reforma Psiquitrica a partir da experinciabasagliana e de suas produes tericas.
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que designaram ao fenmeno do sofrimento psquico ostatus de doena mental. Para Amarante (1996:78)
este processo:
...diz respeito individuao da pessoa doente, isto , a um ocupar-se,no s da doena mental como conceito psiquitrico que tem sido
questionado tanto no aspecto mais propriamente cientfico, quanto na sua
funo ideolgica - , e sim, pelo contrrio, a um ocupar-se de tudo aquiloque se construiu em torno da doena. A poch da doena mental surgeda necessidade, precedente a qualquer classificao, de poder voltar asvistas para o doente.
(Amarante, 1996:78)A Psiquiatria Democrtica Italiana, partindo da experincia das Comunidades
Teraputicas, manteve alguns pontos em comum com esse modelo e com a Psiquiatria de Setor francesa,
dos quais se evidencia, pelos propsitos deste trabalho, o princpio de democratizao das relaes e a
idia de territorialidade.
Essa reconquista do espao da cidade como espao privilegiado de pactuao social o
desafio que emerge da convocao do movimento de Reforma Psiquitrica, tendo em vista que no
apenas no contexto dos novos servios de ateno psicossocial que esse resgate ir se dar. Esses
espaos devem ser compreendidos como estratgias agenciadoras de novos vnculos ou de novas
significaes na rede de contratualidadedo sujeito em seu existir.
Compreende-se que os espaos de produo da sade existentes na ateno bsica do
sistema pblico de sade esto inseridos de modo privilegiado nas