53
SIMONE RAIA POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX: O CASO DO ALDEAMENTO INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel e Licenciada no curso de graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Igor Chmyz. Professora Co-Orientadora: Maria Luísa Andreaza. CURITIBA 1999

SIMONE RAIA - Departamento de História · O europeu, como conquistador, dominou o território a ... Ora, se os indígenas estabeleciam alianças e norteavam suas ações de acordo

Embed Size (px)

Citation preview

SIMONE RAIA

POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX: O CASO DO ALDEAMENTO

INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA

Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel e Licenciada no curso de graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Igor Chmyz. Professora Co-Orientadora: Maria Luísa Andreaza.

CURITIBA 1999

SIMONE RAIA

POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX: O CASO DO ALDEAMENTO

INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA

Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel e Licenciada no curso de graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Igor Chmyz. Professora Co-Orientadora: Maria Luísa Andreaza.

CURITIBA 1999

iii

Agradecimentos

Agradeço a orientação do Professo Igor Chmyz,

que tornou possível este trabalho e o apoio dos

amigos Jefferson, Gisele e Márcia Pedro.

iv

SUMÁRIO

1. Introdução 01

2. Indígenas e Europeus no Brasil 03

3. Política Indigenista no Século XIX: O Caso do Aldeamento de

São Pedro de Alcântara 09

3.1 O Aldeamento de São Pedro de Alcântara 17

3.2 O Barão de Antonina e os Aldeamentos 20

3.3 Razões para a Construção do Aldeamento 24

3.4 Aldear Índios no Paraná na Segunda Metade do XIX:

As Novas Reduções ? 25

3.5 Populações 26

3.6 Para dirigir um aldeamento, um frei 30

3.7 A Administração 33

3.8 Trabalho e Catequese X Espoliação e Brinde 34

4. Conclusão 40

5. Anexos 41

6. Fontes 45

7. Referências Bibliográficas 46

v

A conquista da terra, que significa

basicamente tomá-la dos que possuem uma

compleição diferente ou um nariz um pouco

mais achatado que o nosso, não é uma coisa

bonita, se você olhar bem de perto. O que a

redime é apenas a idéia. Uma idéia por

detrás dela; não uma ficção sentimental,

mas uma idéia; e uma crença altruísta na

idéia – algo que você pode erigir, e curvar-

se diante dela, e lhe oferecer um

sacrifício...

Joseph Konrad, Heart of

darkness [O coração das trevas]

1

1. INTRODUÇÃO

Escolhi o aldeamento de São Pedro de Alcântara como objeto de estudo deste trabalho

pela oportunidade que teria de conhecer um pouco mais sobre a história dos índios, ainda tão

pouco estudada, principalmente no Paraná.

A curiosidade de saber como seria um aldeamento levou-me a essa pesquisa. Para nortear

o andamento deste trabalho, foi preciso saber um pouco mais sobre o indígena, esse ser fascinante

e tão pouco conhecido.

Por esse motivo, há sempre a preocupação, no texto que se segue, de situá-lo no contexto

histórico analisado.

O estudo feito o coloca (ao contrário do que comumente se pensa), sempre como senhor

de si mesmo perante seu dominador europeu.

Porque não obstante a obstinação do europeu em subjugá-lo, ele (o índio) procurava

sempre manter sua identidade e cultura.

E, como o conquistador, ainda que forçosamente, se valia dele, ele também se valia

daquele fazendo alianças e negociações conforme lhe convinha.

Para desenvolver o estudo foi preciso analisar a maneira como relacionavam-se

conquistador e conquistado. Esse relacionamento resultou desastroso ao indígena, devido as

consequências que dele advieram.

Uma dessas consequências foi a construção de aldeamentos, nos quais procurava-se reunir

o maio número possível de indígenas, para que ficassem sob as vistas do Estado.

Para permitir ao indígena ser totalmente subjugado, a política indigenista era feita de

modo unilateral, não levando em conta os interesses do índio, beneficiando assim claramente os

conquistadores.

2

Mas é no decorrer do trabalho que esse assunto será melhor esclarecido e detalhado.

3

2.INDÍGENAS E EUROPEUS NO BRASIL

Quando o europeu chegou ao território brasileiro e deparou

com o indígena, teve início toda uma problemática que envolvia o

relacionamento entre ambas as partes.

São bem conhecidas as conseqüências do contato entre europeus

e indígenas. O europeu, como conquistador, dominou o terri tório a

seu modo e submeteu o autóctone sem reconhecer-lhe a cultura e

identidade própria.

Na dinâmica da conquista, para submeter o indígena, o europeu

usou de vários expedientes, desde a guerra e matança

indiscriminada, até a tentativa de fazer com que o outro (o

indígena), assimilasse sua cultura pela imposição da moral do

trabalho e da cristianização pela catequese. Tentava-se isso com os

índios aldeados.

Por essa perspectiva, a empresa dos aldeamentos pode ser

entendida como conseqüência desse relacionamento conquistador-

conquistado e está inserida em todo um processo histórico.

Por isso, para melhor compreensão do assunto, antes de falar

especificamente de aldeamentos, farei um breve comentário, sem

grandes pretensões, apenas para dar uma leve noção da relação

entre europeu e índio.

A relação entre ambos no Brasil é analisada por alguns

estudiosos, que nos dão uma idéia de como tal ocorria. Comecemos

4

com o que diz Manuela Carneiro da Cunha. Para ela o papel que

tem sido delegado aos índios é o de ser apenas instrumento ou

espectador da História. Esta premissa (a de ser apenas testemunha e

não agente de sua história)traz em si a noção de que os ameríndios

não possuem história. Eles teriam entrado nela com a chegada dos

europeus que: ”São os descobridores que inauguram e conferem aos

gentios uma entrada - de serviço - no grande curso da História”1

Segundo a autora, logo após o reconhecimento da humanidade

dos índios (confirmada pelo Papa em 1537), os relatos sobre a

América refletirão mais sobre a história da Europa, de como esta se

percebia, do que qual quer coisa sobre os índios. Esta que aponta os

povos indígenas como vít imas dos europeus e do capitalismo

mercantil. Uma nova visão nascida da Teoria Evolucionista de

meados do século XIX afirma que os indígenas teriam estacionado

na escala evolucionária no que tange a sua organização social .

Seriam pois o retrato “fossilizado” do que outrora fora a sociedade

européia (esta sim com história). E, como estão (ou estavam)

parados no tempo, não há porque recuperar-lhes a história:

“Hoje, por lhes desconhecermos a

história, por ouvirmos falar, sem entender-lhe

o sentido ou alcance(...) e porque nos agrada a

ilusão de sociedades virgens, somos tentados a

1 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma História Indígena In: CUNHA, Manoela C.(org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo :FAPES/SMC e Cia das Let ras , 1992 .

5

pensar que as sociedades indígenas de agora

são imagem do que foi o Brasil pré-

cabralino(...), sua história se reduz

estritamente à sua etnografia”.2

Se para Carneiro da Cunha o indígena ocuparia um lugar apenas de

testemunha de sua própria história, nas palavras de John Manuel Monteiro, o que

acontecia é que os portugueses não compreendiam o índio. Por isso resumiam a

organização social dele (do índio), pelo “Sem Fé, nem Lei, nem Rei”3. Suas

diferenças étnicas não eram devidamente reconhecidas, apontava-se que existiam

os povos tupis (ou tupis-guaranis) e os tapuias (não-tupis). O que desnorteava os

portugueses era o fato de que as similaridades culturais entre os tupis do ponto de

vista linguístico e organizacional não se traduziam em união política. Os tupis

povoavam o litoral da América Portuguesa desde o litoral do Maranhão até a

capitania de São Vicente e viviam em constantes guerras entre si. Conheciam a

agricultura, plantavam milho, feijão, abóbora e especialmente mandioca. Os

portugueses não conseguiram compreender o significado das guerras entre os tupis

e nem o caráter da sua agricultura, embora tentem se beneficiar de ambas.

Mesmo assim, desde o início, os traficantes de pau-brasil e os colonos irão,

através do escambo, adquirir tanto a cooperação do trabalho indígena quanto

mantimentos. Entretanto, logo este comércio se esgotaria, devido a dois motivos

fundamentais: primeiro a saturação do comércio de quinquilharias fez com que os

índios exigissem mercadorias melhores e mais caras (ferragens, armas de fogo

pág.9

6

etc). Segundo, o aumento do número de traficantes provocará maior disputa por

mão de obra e alimentos. E os indígenas regulavam o fornecimento de mão de

obra bem como de alimentos conforme uma dinâmica interna própria, pela qual,

segundo Schwartz “não era preciso explorar toda a força de trabalho e a técnica.

O status não derivava da capacidade econômica.”4 Já que os indígenas

praticavam uma economia de uso e não de troca; esta somente fará sentido dentro

da lógica das sociedades indígenas. As relações estavam vinculadas, em muito, ao

interesse de muitas tribos em estabelecer alianças com os portugueses.

Ora, se os indígenas estabeleciam alianças e norteavam suas ações de acordo

com interesses próprios, eram, de certa forma, agentes de sua história e tinham

seus motivos para aliarem-se aos portugueses, franceses ou holandeses. Do mesmo

modo que os índios se valiam dos europeus nas suas disputas, estes buscavam

aliados indígenas para guerrearem também entre si. Tamoios e tupiniquins no

século XVI, já em guerra, aliaram-se respectivamente a franceses e portugueses. A

política indigenista dos europeus tinha como contrapartida a política indígena e o

resultado será o fracionamento étnico dos mais fracos.

A partir do fracasso do comércio via escambo e do aumento das

necessidades dos colonos (principalmente após a instauração do governo colonial)

os portugueses precisarão de mais mão-de-obra. Dada a recusa dos índios em

trabalhar para os portugueses estes adotaram práticas com intuito de adquirir

escravos. A primeira será a do resgate. Percebendo a grande importância da guerra

nas sociedades indígenas os portugueses decidiram delas aproveitar-se para a

obtenção de mão-de-obra (como já tinham feito na África). Após os combates os

2Ibid. pág. 11 3 Id. ibid. pág.21

7

prisioneiros que ritualisticamente seriam devorados pela tribo eram “resgatados”

pelos portugueses via escambo. Estes prisioneiros seriam usados como escravos na

nascente cultura da cana:

“O período de 1540 a 1570 marcou o

apogeu da escravidão do gentio nos engenhos

do litoral brasileiro em geral, em especial, nos

da Bahia. Em 1545, a capitania de São

Vicente, no sul, possuía seis engenhos e 3000

escravos , dos quais a grande maioria eram

índios.”5

Estas guerras se tornarão catastróficas para os indígenas. Após as guerras

seguiram-se fomes e a desestruturação das aldeias será continuada. De modo que

os indígenas serão mais facilmente seduzidos pelos aldeamentos e pelo trabalho

“livre” junto aos engenhos. A alternativa proposta pelos jesuítas era igualmente

destrutiva para as sociedades indígenas. Isso porque os aldeamentos agrupavam

indivíduos de várias etnias e assim destruíam laços sociais. Simultaneamente os

índios eram educados para viverem como cristãos, ‘‘conceito que incluía não só a

moralidade, mas também os hábitos de trabalho dos europeus”6. Os jesuítas

justificavam os aldeamentos a partir do ponto de vista moral (evangelização e não

4SCHWARTZ, S. B. Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra indígena. In: Segredos Internos. Brasília, Cia das Letras/CNPq, l998. pág. 46 5 SCHWARTZ, S. B. exaurida Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra indígena. In: Segredos Internos. Brasília :Cia das Letras/CNPq , l998. pág. 46

6 SCHWARTZ, S. B.. Op. cit.pág.48-9

8

escravização), os aldeamentos propiciariam fornecimento de uma mão de obra

camponesa para os colonos e, posteriormente, os índios aldeados serviriam como

muralha viva (força militar), contra os índios hostis. Também serão os índios

aldeados a ajudarem nos descimentos de outros indivíduos do sertão e na defesa

contra ataques a engenhos. Novamente a se salientar que o envolvimento dos

índios nessas guerras provinha de sua própria dinâmica histórica, de seus próprios

interesses.

“...foi a consciência de um passado

indígena que forneceu bases para sua ação

perante a situação historicamente nova da

conquista. Destacam-se, aqui, os seguintes

elementos desta dinâmica: o processo de

fragmentação e reconstituição dos grupos

locais, os papéis de liderança desempenhados

pelos chefes e xamãs e, finalmente, a

fundamental importância do complexo

guerreiro na afirmação da identidade histórica

destes grupos.”7

Esta apreciação direciona novamente nossa atenção para o papel de uma

política indígena (historicamente constituída) ante uma política indigenista

9

européia. Antes de mais nada, há de se compreender a participação e interesses dos

índios que, por muito tempo, foram importantes aliados. Estas alianças eram

moldadas por interesses e as nações indígenas ou européias conseguiram fazer

valer os seus conforme as forças em questão.

3.POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉC.XIX : O CASO O ALDEAMENTO

DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA

Para melhor entendermos a questão dos aldeamentos no

Brasil da segunda metade do século XIX, faremos antes, de modo

bastante sucinto, uma análise geral do que foi a polít ica indigenista

nesse período.

Inicialmente é bom salientar que o século XIX foi uma época bastante

turbulenta no que se refere à organização do aparato legal do Brasil. Basta lembrar

que até 1815 o Brasil foi colônia, de 1815 a 1822 Reino Unido e, de 1822 à 1889,

nação soberana sob regime monárquico sendo que, no ano de 1889 torna-se

república. Com tantas mudanças, a política indigenista também sofreu

conseqüências.

Desde 1789 quando se revogou o Diretório Pombalino não se institui

nenhuma política indigenista para o Brasil-colônia ou nação. Prova disso é que

muitos projetos foram enviados às Cortes Gerais Portuguesas, mas nenhum foi

7MONTEIRO, John Manuel. As populações indígenas no litoral brasileiro no século XVI: Transformação e resistência. In: O Brasil às vésperas do mundo moderno. Dias, Jil (org.)

10

aprovado.Com a Independência, alguns desses projetos, reformulados, foram

apresentados à assembléia Constituinte de 1823, (inclusive um de autoria de José

Bonifácio), porém nenhum deles chegou a ser formulado na carta constitucional.

Constar na constituição aliás não alteraria em nada a situação dos índios no

Império, posto que a carta constitucional não será reconhecida por D. Pedro I, que

outorga uma constituição diferente, onde sequer se reconhece a existência do

indígena. Manuela Carneiro da Cunha aponta que a legislação indigenista no

século XIX, principalmente até 1845 é

“flutuante, pontual e, como era de se

esperar, em larga medida subsidiária de uma

política de terras [não havendo uma política

indígenista geral do Império] as Assembléias

Legislativas Provinciais legislaram

cumulativamente com a Assembléia e Governo

Geral”8.

Às Assembléias e Governos Provinciais competia formular leis que seriam

sancionadas pelo poder central. Este tipo de política se refletirá em ações anti-

indígenas em várias províncias, como Goiás e Maranhão, onde se declara guerra

aberta aos índios para que seja possível colonizar suas terras9. Ao hiato na

política indigenista soma-se o da política de terras, o que irá gerar um período de

Lisboa 1992 p.125 8 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.. Política Indigenista no século XlX In: CUNHA, Manoela Op. Citada p.135-138

11

assalto às terras indígenas, principalmente na década de 1830. Mesmo terras de

índios aldeados serão tomadas, situação que vai ocorrer por exemplo na região de

Guarapuava10, onde o Cacique Viri e os seus são expulsos da sesmaria que haviam

recebido em nome das “irrecusáveis provas de lealdade” no combate que davam

às tribos hostis em auxílio aos colonos, tão logo afastaram os “botocudos” – nome

dado aos índios que hostilizavam os pioneiros guarapuavanos.

O debate sobre a questão da posse da terra se deve a revogação da lei de

concessão de sesmarias em 1822 sem que nenhuma lhe substitua até 1850, ou seja

não existiu nenhuma legislação de terras por vinte e oito anos, fato que afetou

diretamente os índios, uma vez que privilegiou-se a comprovação da posse da

terra para que fosse reconhecida a propriedade.

Com a publicação do Decreto 426 (24/07/1845) que trata do “Regulamento

acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Índios”, se estabelece uma

ordenação jurídica para os índios no país. Este decreto possui um caráter

basicamente administrativo, regulamenta detalhadamente a constituição de

aldeamentos, mas pouco se refere a uma política indigenista geral para o Império.

Segundo Manuela Carneiro da Cunha o decreto é o único no Império, tal decreto

possui um caráter de sujeição do índio ao jugo da lei e ao trabalho, ou seja, busca-

se, antes de mais nada, a assimilação do elemento indígena aos padrões culturais

“brancos”. A intenção do governo era transformar os índios em trabalhadores

através da assimilação que estes fariam de nossos costumes (trabalho) e

necessidades (comércio, roupas, etc.), o próprio frei Timotheo de Castelnuovo

adverte da necessidade de criar “nelles alguma ambição de possuir, tirandolhes da

9 KARASCHI, Mary. Catequese e Cativeiro: Política indigenista em Goiás 1780-1889. In: CUNHA, Manoela . Op. Citada

12

indolencia e aphatia natural, preparandolhes assim para a Catiqueze”11. Desse

modo criam-se necessidades como tecidos, por exemplo, que inicialmente são

dados como presentes, e que posteriormente os índios terão que adquirir sozinhos.

Os índios são aldeados também para que cessem suas “correrias” e deixem

de assustar os colonos, fornecendo simultaneamente mão de obra. O caso do

Paraná é bastante representativo nessa questão; ao mesmo tempo que os

presidentes de Província reforçam a necessidade de “desinfestar” o território a fim

de colonizá-lo também apontam o melhor modo de faze-lo: através do ensino da

catequese e do trabalho. Há o consenso de que esses são os dois elementos que

mais sucesso conseguem na civilização do gentio, sendo importante, pois, elucidar

algumas questões quanto ao caráter deste “trabalho” e desta “catequese’’.

Tomando como princípio a questão da “colonização interna”, percebe-se

que o poder central desejava colonizar seu próprio território. Sendo assim pode-se

adotar a visão de Tzevetan Todorov sobre o encontro colonizador-colonizado, na

qual o colonizador pensará que todo colonizado - nesse caso particular os índios –

‘‘são seres completamente humanos,

com os mesmos direitos que ele, e aí

considera-os não somente iguais, mas

idênticos, e este comportamento desemboca no

assimilacionismo, na projeção de seus próprios

valores sobre o outro. Ou então parte da

10 HELM, Cecília Maria Vieira. A integração do Índio na estrutura agrária no Paraná – O caso Kaingáng. Tese de mestrado, UFPR 1974. p. 61 11 Frei Timotheo de Castelnuovo, Diretor da Colonia Indigena de São Pedro de Alcantara em ofício enderaçado ao Ilustrissimo e Excelentissimo Senhor Prezidente de Provincia em 5 de Janeiro de 1857

13

diferença que é imediatamente traduzida em

termos de superioridade e inferioridade [...]

recusa a existência de uma substância humana

realmente outra, que possa não ser meramente

um estado imperfeito de si mesmo.’’12

Assim, na convicção de que o “mundo é um”: é uma só a religião cristã,

uma só civilização, aquela que se sustenta no trabalho, o trabalho induz o índio a

novos costumes, principalmente quando se trata da venda desse trabalho. É notória

a intenção de instituir o indígena como camponês onde este faltasse ou então como

mão de obra. Sendo a escravidão indígena de largo uso, mas ilegal, procura-se

substituir esta pela contratação de trabalhadores índios. No caso do Paraná Cecília

Helm aponta que

“a pobreza dos senhores da terra não

permite a importação de africanos para a

mineração [...] durante o século XVIII e

grande parte do seguinte, nos campos de

Curitiba, e nos campos gerais ‘a fazenda de

criar se tornou a empresa fundamental da

economia paranaense’. Dá informações sobre

a condição de escravos a que foram

12TODOROV, Tzevetan. A Conquista da América: A questão do outro .Martins fontes p.41

14

submetidos os grupos indígenas que habitavam

o litoral e os campos.”13

Na falta de mão de obra escrava africana opta-se por aquela que está mais à

mão e é muito mais barata. É preciso notar, não obstante, que o uso feito dessa

mão de obra indígena possuía diferentes características. Se em áreas de expansão

agrícola se mantinham largos contingentes para a lavoura, em lugares de atividade

pecuária a existência de tribos que possam caçar o gado ou ocupar pastagens não é

tolerada14. Não é gratuita, portanto, a situação de constante conflito ocorrida na

região de expansão criadora de Guarapuava no início do século, que irá causar tal

clamor a ponto do próprio D. João VI declarar guerra aos índios ferozes. Deve-se

lembrar também que após a expulsão destes, mesmo aqueles considerados mansos,

que foram aliados dos criadores, se tornarão incômodos, perdendo inclusive as

terras em que se encontravam.

O caso do aldeamento de São Pedro de Alcântara constitui uma questão

específica, pois ao aldear os indígenas junto a uma Colônia Militar buscava-se o

uso de mão de obra em função do Estado. A instituição da Colônia militar do Jataí

em 1853, bem como a do aldeamento buscavam facilitar a navegação e o

transporte rumo à província do Mato Grosso. Comprova isto o fato de o mesmo

Joaquim Francisco Lopez, encarregado de estudos sobre a construção de estrada

em direção ao Mato Grosso, ter sido também o responsável, sob ordens do Barão

de Antonina, de aldear índios desde 185315.

13 HELM, Cecília Maria Vieira apud Brasil Pinheiro Machado p.43-4 14 KARASCH, Mary op. cit. p.402 15 LOPES, Joaquim Franscisco. Memoria sobre a vereda mais facil da estrada para Matto-Grosso. Typographia de Candido Martins Lopes. Curityba 1871 p.11

15

São Pedro de Alcântara e a colônia militar do Jataí serão parada obrigatória

para quaisquer expedições de sertanistas ou de militares que desejem chegar a

Cuiabá. O aldeamento funcionaria como entreposto, o que favorecia a

oportunidade de comerciar os excedentes produzidos, bem como a incidência de

epidemias entre os aldeados16.

O aldeamento de São Pedro, apesar de suas dificuldades iniciais, como a

falta de instrumentos agrícolas (enxadas, foices, etc.) e carência até de tecidos, irá

florescer, sendo o que mais sucesso obteve, o que se deve muito à administração

de seu diretor.

Seguindo o regulamento de 1845 compreendemos, em primeira instância,

que a administração dos índios deveria ser levada a cabo por leigos, mas na prática

tal não ocorria. Tal fato pode ser debitado a uma série de fatores, desde a falta de

funcionários, à inexistência de pessoas probas o suficiente para a função, como

aponta Manuela Carneiro da Cunha. Outro ponto que ajuda a explicar o fato de o

Frei ter assumido duas funções era a quase inexistência de recursos para os

aldeamentos, bem como a desatenção para com estes por parte da esfera do poder

provincial e central. Devido a isso é bastante significativa a ameaça do Frei em

pedir demissão já em 1856.

Por outro lado a instrução da catequese aos índios como meio de “amansá-

los” ainda era reconhecida como a melhor estratégia. Sendo assim, e fazendo uso

do Padroado Régio, D. Pedro II irá solicitar o envio de capuchinhos para o Brasil.

A contratação de capuchinhos italianos para a catequese dos indígenas era

defendida já em meados de 1830, sob argumentos de que a Ordem dos

16 FRIGO, Adelino, Frei. Memórias de um herói – Frei Timóteo de Castelnuovo. Prefeitura Municipal de Jataizinho – Paraná. 1995. p.24.

16

Capuchinhos e os italianos não estavam envolvidos com nações tradicionalmente

coloniais (França, Holanda, Espanha ou Portugal)17.

Frei Timotheo assume o aldeamento em 06 dezembro de 1854 quando

havia ali aproximadamente mais de 300 índios. Estes ali estavam sob

responsabilidade de um sertanista que obedecia as ordens do Barão de Antonina, o

qual havia doado terras para que fosse construído o aldeamento que irá se chamar

São Pedro de Alcântara.

Deve-se notar que o Frei era diretor dos índios de São Pedro de Alcantara,

título com o qual assinava todos os ofícios remetidos ao Presidente ou ao Vice

Presidente de Província, seus relatos a estes, portanto, estavam condizentes com a

função para a qual havia sido designado. Deve-se lembrar também, para que não

sejamos precipitados, que a questão indígena deixa de ser no século XIX apenas

tema para evangelização, para se tornar uma questão de terras18, isto é, da

usurpação das terras dos índios. Esta situação não deveria ser estranha ao Frei,

principalmente a partir de meados do século XIX quando tal espoliação se acirra.

17 FRIGO, Adelino, Frei. Idem p.9

17

3.1 ALDEAMENTO INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA

Até o presente momento este trabalho tem optado em analisar algo que se

configura como a história dos índios, - não confundir com a visão que eles

possuem de sua própria história, já que não se trata de um trabalho antropológico.

Partindo de preocupações apresentadas por Manuela Carneiro da Cunha, se busca

“compreender os dois lados da moeda”. Busca-se uma compreensão da trajetória

histórica do Brasil Meridional do século XIX, mais precisamente dos índios

aldeados na região que compreende o norte do Paraná, sul do Mato Grosso e

sudeste de São Paulo. Elegeu-se o Aldeamento de São Pedro de Alcântara para se

entender as relações – conflitos e interações - entre populações indígenas e a

política indigenista da segunda metade do XIX.

Antes de falar especificamente do Aldeamento de São Pedro de Alcântara,

é preciso discorrer sobre o processo de ocupação do território, para situar assim o

Aldeamento no contexto histórico da ocupação paranaense .

Maria Ligia Moura Pires, nos informa que a penetração do povoamento no

atual estado do Paraná não se deu devido a cata do ouro em Paranaguá, como quer

parte da historiografia, com mineiros vindo de São Vicente, mas sim por causa da

busca de escravos indígenas:

“A primeira referência à presença

portuguesa no litoral de Paranaguá se dá,

quando em 1585, sob o mando do capitão-mor

18 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política Indigenista no século XlX. In: História dos Índios no Brasil id. ibid. p133

18

de Santos, Jerônimo Leitão, uma bandeira

cativadora de índios [...] foi lançada contra os

“carijó’’ de Paranaguá.” 19

Posteriormente, com a subida da Serra do Mar e a cata do ouro – que só foi

encontrado a posteriori – também ali foi utilizado o trabalho indígena. É digno de

nota o fato de que uma das primeiras expedições provenientes de São Vicente a ter

‘‘subido a serra’’ era de preadores e foi dizimada pelos nativos.

O surto da mineração foi muito curto na região, a ele se segue a chamada

economia dos Campos Gerais. A nova atividade econômica hegemônica

dominante consistia no aluguel da pastagem (invernadas) para as tropas de gado

muar e bovino provenientes de Vacaria que rumavam a feira de Sorocaba. Tratava-

se do Caminho do Viamão. As regiões de campos (de pastagens naturais) foram

logo paulatinamente “ocupadas” – o sentido dado aqui a ocupar ou povoar se

traduz em retirar as terras de forma inequivocamente violenta de seus antigos

donos.

Segundo Brasil Pinheiro Machado, as primeiras posses nas terras dos

Campos Gerais eram originárias de sesmeiros paulistas interessados na

possibilidade de lucro futuro devido ao transporte vacum. Isso resultou na

apropriação “especulativa” das referidas terras20.

Se a apropriação do ponto de vista cartorário das referidas terras ocorreu

sem maiores problemas, o mesmo não se pode dizer do seu uso. Os conflitos com

grupos indígenas eram constantes, como se pode bem atestar na fundação de

19 PIRES, Maria Ligia Moura. p. 41 ibid

19

Guarapuava ou nos constantes ataques, mesmo em áreas mais próximas a

Curitiba, como a Vila do Príncipe (Lapa) ainda no início do século XIX. Não é

gratuita pois a atenção que Brasil Pinheiro Machado chama sobre o uso de força de

trabalho cativo ou sobre a violência com que estes eram aprisionados. Os grupos

indígenas “bravios” eram obstáculo as fazendas pioneiras sob dois aspectos .

Primeiro por ocuparem as terras (i.e., por existirem naqueles locais que poderiam

propiciar lucro sem investimento), segundo pelo fato de atacarem tropas ou

abaterem gado para se alimentarem.

A situação dos índios da região não chega a se configurar em algo

especificamente novo, principalmente em se tratando de uma região de expansão

de pecuária, onde “desinfetar” o território para seu uso comercial possui

características mais explícitas do assassínio de nativos , ao menos se compararmos

a agricultura ou ao extrativismo. O que ocorre é uma ‘‘política’’ diferenciada de

apropriação e colonização das terras indígenas nativas como. Mary Karasch, em

seus estudos sobre a expansão da frente colonial pioneira na agricultura e pecuária

em Goias no século XVIII ira observar que

“Um dado importante dessa política era o fato

dos colonizadores serem agricultores ou criadores do

gado [...] , os agricultores precisavam de muita mão-

de-obra e, assim, desejavam políticas de trabalho

forçado; já os criadores do gado precisavam de pouca

20 MACHADO, Brasil Pinheiro. Formação Histórica. In. Campos Gerais Estruturas Agrárias Altiva Pillati Balhana , Brasil P. Machado et alli. UFPR 1968 pág. 30

20

gente para cuidar do gado e dos cavalos, e viam os

índios apenas como predadores de seus rebanhos”.21

Desnecessário dizer que quaisquer tentativas de resistir a espoliação de

suas terras significava uma declaração formal de guerra.

Nesse contexto, a idéia de reunir indígenas em aldeamentos foi vista como

uma maneira de livrar o território que eles habitavam e foi colocada em prática

pela política indigenista da época. Surge assim, entre outros, o Aldeamento de São

Pedro de Alcântara.

3.2 O BARÃO DE ANTONINA E OS ALDEAMENTOS

Em 1853, aldeamentos do Yvinhema e Varadouro já se encontravam sobre

a direção do Barão de Antonina e sob as responsabilidades do presidente de

província (do Paraná). Estes aldeamentos ficavam na Província do Mato Grosso,

mas eram muito mais próximos a capital paranaense do que daquela

outra província, por conta disto ficavam sob direção do Barão de

Antonina22.

KARASCH, Mar y. “Catequese e Cat iveiro”: Pol í t ica Indigenista em Goiás: 1780-1889 In: História dos Índios no Brasi l . Op. c i t .p .402.

22 VASCONCELOS, Zacarias de Goes. Presidente da Província. Relatório pág.5-6 1855

21

O aparecimento de personagens como João da Silva Machado, futuro

Barão de Antonina, podem ser compreendidos como parte integrante do quadro

supra citado.

João da Silva Machado é uma figura exemplar daqueles pioneiros que,

bons empreendedores, aparecem nas obras apologéticas às elites tradicionais.

Nascido no Rio Grande do Sul em 1782, fará fortuna com as tropas de gado que

viajavam do Rio Grande do Sul a Sorocaba. Torna-se grande conhecedor de boa

parte dos sertões brasileiros, em suas viagens vendendo e comprando gado,

chegará à cidade de Caxias no Maranhão. Além de lucrar com o comércio de

tropas, também se estabelece como “fazendeiro” ao se associar a curitibanos e se

apropriar das pastagens dos campos Gerais. Tanto para os proprietários destas

terras quanto para os tropeiros, os índios eram no mínimo um obstáculo a ser

contornado ou eliminado; “os criadores do gado precisavam de pouca

gente para cuidar do gado e dos cavalos, e viam os índios apenas

como predadores de seus rebanhos.”23

Portanto, não causa espanto o fato de a defesa da nação estar associada ao

“aproveitamento” das terras indígenas e da circunscrição destes em pequenas

parcelas de terras.

Por um lado, arrebanhar índios junto a aldeamento implicava também em

inculcar neles a moral do trabalho, da faina diária, o que gera necessidades e novos

usos e costumes.

23 KARASCH, Mar y. “Catequese e Cat iveiro”: Pol í t ica Indigenista em Goiás: 1780-1889 In : História dos Índios no Brasi l . Op. c i t .p.402

22

“Desde que dediquei-me ao

serviço daí Missoens no Brazil tenho

observado que a melhór maneira de

desenvolve-los eh a lavoura e a

Religião destes tenho feito a base da

minha sistema, [ ..] de pouco a pouco

trabalhar, criando nelles alguma

ambição de possuir, tirandolhes assim

da sua indolencia e aphatia natural,

prepadandolhes assim para a

catiqueze”24 e “espera que este

Aldeamento têm hum futuro

prospero .”25

Pensava-se que aldear transformaria o “selvagem” errante em súdito, se

constituiriam barreiras humanas contra o avanço inimigo, se protegeriam fronteiras

através de alianças e do conhecimento e desenvoltura que os autóctones possuem

em seus territórios e rotas fluviais.26

O barão constantemente se aproveita para fins particulares das verbas que

recebe para “Catequese e Civilização”. Aproveita-se no sentido de desinfestar as

24 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Diretor do aldeamento de São Pedro de Alcântara Relaório ao Pres idente de Província 1856

25CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Diretor do aldeamento de São Pedro de Alcântara Relaório ao Pres idente de Província 1856 26 “O aldeamento de índios obedecia , com efeito, a conveniencias várias[...]. Podia-se assentá-los em rotas fluviais , como a que ligava São Paulo ao Mato Gosso, ou o Paraná ao Mato Grosso, ou como a do Tocantins e do Araguaia ligando Centro-Oeste ao Pará e ao Maranhão. Podiam-se estabelecer aldeamentos em rotas de tropeiros como a que ligava [Paraná] São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.’’p.144

23

regiões onde possuía terras O fato desses elementos se associarem a projetos

particulares do Barão não desabonava suas ações (o barão possuía canaviais na

região do rio Verde e Ivinheima em São Paulo), se encontrava infestada.

“Em 1846, os sertanistas Elliot e

Lopes organizam a expedição dos

campos situados nas margens

ocidentais do rio Tibagi [....]. Baseados

nessa localidade, começam a fazer roça

e ocupar as terras para o barão. [ ....]

O barão de Antonina toma posse dessas

terras Kaingang e mais tarde vai doá-

las ao governo imperial para aí

construir o aldeamento indígena de São

Jerônimo da Serra.’’ 27

Aliás sendo bem provável que o oposto ocorresse, caso conseguisse que os

índios auxiliassem, como no caso de São Pedro de Alcântara, o que facilitou a

entrada de colonos na região . Segundo M. Amoroso será o próprio Barão a

instituir um plano para a construção de aldeamentos conjugados com colônias

militares na região.

27 MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1789-1924). EDUEM Maringá 1994. pág.149-150.

24

3.3. RAZÕES PARA CONSTRUÇÃO DO ALDEAMENTO

Traço agora algumas explanações baseadas em ofícios e outros documentos

de época sobre as razões da fundação do referido aldeamento. Como salienta

Carneiro da Cunha (no que se referiu também Joaquim Francisco Lopez), a função

deste e de outros aldeamentos, como o do Pirapó, será o de facilitar a navegação

fluvial rumo a província de Mato Grosso. Em particular, São Pedro de Alcântara

possuirá a sorte (e o infortúnio, como já foi salientado) de avizinhar-se de uma

Colônia Militar e de um tradicional caminho rumo ao sertão, o que trará epidemias

e também um relativo sucesso se comparado a aldeamentos como São Jerônimo e

Pirapó.

Quando do início da Colônia Militar do Jataí em 1853, lá se encontrava

Joaquim Francisco Lopez, sertanista experiente, com a incumbência de aldear os

índios da margem direita do Ivinheima, que ficava para além do rio Paraná.

Função que exercia sob ordens do senador Barão de Antonina, o qual tinha sob sua

responsabilidade os aldeamentos de Ivinheima e Varadouro das províncias

vizinhas (Mato Grosso e São Paulo), uma vez que estes tinham. maior facilidade

de contato com Curitiba do que com suas respectivas capitais. Visto isso, o Barão

de Antonina manda “convidar” os índios kaiowas e coroados da região da margem

direita do Ivinheima para que venham ao Jataí. Ao que parece os índios estavam

na Colônia Militar quando da chegada do frei, que juntamente com o sertanista

Joaquim Francisco Lopez, iniciará a construção do aldeamento de São Pedro de

25

Alcântara em abril de 1855, o qual será “inaugurado” em agosto do mesmo ano28.

O decreto imperial de 1857 que manda fundar São Pedro de Alcântara, não se

constitui, portanto, em nada mais do que a ratificação de algo que já se encontrava

em efetivo funcionamento.

3.4 ALDEAR ÍNDIOS NO PARANÁ NA SEGUNDA METADE DO

XIX: AS NOVAS REDUÇÕES?

Não obstante a distância de mais de 200 anos que separam as primeiras

tentativas de aldeamentos de indígenas na América do Sul pelos jesuítas, (século

XVI e XVII) e os aldeamentos capuchinhos aqui estudados, pode-se notar que

estes últimos tinham como exemplo idealizado/ideologizado as reduções

jesuíticas. O fato de alguns aldeamentos capuchinhos terem sido erigidos sobre

ruína de antigas missões, apenas vem coadunar este raciocínio.29

Comparações entre capuchinhos e jesuítas estavam presentes no discurso

do poder central, pelo menos no que se refere à Província30

É certo que os objetivos eram diferentes, mas alguns pontos norteadores

ainda continuavam os mesmos. Evocações sobre jesuítas podem ser encontradas

28Frei Timotheo de Castelnuovo idem 5 de Janeiro de 1857 29 BORBA, Telemaco Actualidade Indígena. Typographia e Litographia a vapor Impressora Paranaense . Curitiba,1908 pág.45 O aldeamento indígena de Paranapanema “estava fundada sobre as ruínas da reducção jesuítica de Santo Ignácio.” 30 DIR ÍNDIOS 1855“Não basta confiar no capuchinho, para os reduzir, revelam apenas (devo dizê-lo com franqueza) pouco estudo em tão interessante matéria. [..] Senhores, no modo de proceder , para com os selvagens, devemos tomar por mestres os jesuí tas . ”

26

na documentação Oficial como no fato de alguns aldeamentos serem construídos

sobre as ruínas de missões do Guairá.

3.5 POPULAÇÕES

Inicialmente tentarei caracterizar as populações que habitavam o

aldeamento: índios, africanos e colonos “nacionais”.

Falar sobre índios em São Pedro de Alcântara implica em dividi-los em três

grupos, Frei Timóteo usava critérios para diferenciar o tipo de ligação que cada um

destes grupos possuía com o aldeamento, critérios como

“processo de conversão ao catolicismo,

através de marcadores como a participação

nos rituais católicos (batismo, crisma,

casamento e enterro católico); relacionados

nos registros da administração como

produtores assalariados, beneficiários dos

bens e serviços fornecidos pelo governo.”31

Surgiram as categorias: Índios aldeados, Índios agregados e Índios do

sertão.32

31 AMOROSO, Marta Rosa. Catequese e Evasão: Etnografia do Aldeamento Índigena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutoramento em Antropologia USP 1998 pág. 81 32 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.81

27

Índios aldeados: os índios aldeados eram aqueles que instalavam-se junto

ao aldeamento e nele residiam. Apenas estes eram contados nos censos anuais.

Índios agregados eram os grupos que, embora vinculados ao aldeamento

mantinham um certo afastamento. Algumas tribos estabeleciam-se nas

proximidades de São Pedro de Alcântara mas se recusavam a adotar quaisquer

ritos católicos, afirmando sempre sua identidade, mas por outro lado, participavam

de sua rede de trocas. Como exemplo temos o caso do grupo kaiowá-guarani com

cerca de 200 indivíduos liderados pelo Xamã Cuiabá, que se recusava a abandonar

os sinais distintivos de sua cultura – como o uso do bodoque labial ou a poligamia

– e mantinha relações de troca de produtos extrativistas por sal e ferramentas. Este

grupo manteve-se próximo ao aldeamento desde seu início na década de 1850. O

não abandono dos hábitos ancestrais por parte do Xamã Cuiabá o colocava em

posição diametralmente oposta a outras lideranças, como os caciques Pahi e

Libanio, que abandonaram o bodoque labial após a conversão.

Índios do sertão: categoria na qual se inseriam tribos que visitavam

eventualmente o aldeamento, para efetuarem trocas ou reencontrarem parentes, ou

apenas buscarem brindes. Esta rede de afinidades irá extrapolar os limites do

aldeamento, fazendo com que os acordos estabelecidos no aldeamento de São

Pedro de Alcântara tenham validade também na região de Sete Quedas.33

Quanto aos índios aldeados, é importante salientar que também

mantinham seus padrões culturais tradicionais. A antropóloga Marta Amoroso

aponta que os diverso grupos étnicos que conviviam no aldeamento mantinham-se

em aldeias próximas e não no que usualmente se chamava de “circulo urbano do

aldeamento”:

28

“a Aldeia Kaiowá, localizada ao norte

do aldeamento, tres léguas a correr do rio

Tibagi, a Aldeia Guarani, localizada no norte

da Colônia militar do Jataí, do outro lado do

rio Tibagi; a Aldeia dos Coroado ficava ao sul

do aldeamento, ocupando três léguas da

extensão do rio.”34

Existiam três grupos indígenas, os Kaingang, os Kaiowá e os Guarani.

Kaingangs ou Coroados constituiam o grupo étnico predominante na

região do Tibagi (eram também o maior grupo do Paraná).

“O território ocupado pelos Kaingang

não foi claramente delimitado pelos cronistas.

Encontravam-se espalhados pelo norte do Rio

Grande do Sul, pelos campos de Palmas e

Guarapuava, sertões dos rios Tibagi e Ivaí no

Paraná e penetravam em São Paulo [...] eles

dominavam a costa atlântica de Angra dos

Reis a Cananéia”35

33 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.84 34 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.81 35 PIRES, Maria Lígia Moura. Guarani e Kaingang no Paraná: um estudo de relações intertribais. Tese de mestrado apresentado ao programa de pós-graduação em Antropologia social da UnB. Brasília 1975 p.28.

29

O etnônimo Kaingang servia para identificar os vários grupos Jês que

ocupavam o Brasil Meridional. No caso dos aldeamentos indígenas do XIX o

grupo Kaingang apresentava duas divisões internas que por sua vez subdividiam-

se em dois subgrupos formando, portanto, quatro subgrupos: Kamé, Wonhéty,

Kairu e Votor. Segundo Amoroso essas divisões são essenciais para que se

compreenda a complexa teia de relações constituída em São Pedro de Alcântara e

que em 1870 irá ocasionar conflitos intra-étnicos.

Cabe notar que os Kaingang somente irão adentrar em São Pedro de

Alcântara em 1859, sendo que até então este era habitado apenas por Kaiowás e

Guaranis. A ocasião de sua chegada quase beirou o conflito.

Mesmo vivendo nas proximidades do aldeamento e estabelecendo relações

de dependência mútua com este e com a colônia militar do Jataí, os Kaingang

mantiveram uma sociabilidade própria e também o plantio de produtos exclusivos

para seu consumo, que eram vedados ao comércio externo, como é o caso de um

tipo de milho. “os Coroados utilizavam em suas roças qualidades especiais de

milho diferentes da plantada para fins comerciais no aldeamento.”36

Kaiowá e Guarani

Aqui cabe um esclarecimento, embora ambos os grupos supra citados

pertençam ao tronco Guarani, no período estudado, esses aparecem diferenciados.

36 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.125

30

Assim sendo, o grupo Kaiowá (Cayoá para o século XIX) torna-se um grupo, ao

passo que o grupo Ñandevá (também Guarani) será chamado simplesmente de

Guarani nos aldeamentos do norte do Paraná. Um terceiro grupo do tronco

Guarani, os Mbyá eram assim chamados nos aldeamentos de Guaranis do

Paraguai, isso porque haviam se retirado daquele país quando da proximidade do

conflito.37

Kaiowás: seu território no período colonial brasileiro abrangia a região ao

“norte dos rios Apa e Dourados ao sul a Serra de Maracajú e os afluentes do rio

Jejui; a oeste a serra de Amambaí’’38

Ñandevá: população guarani que em meados do século passado vivia no

extremo sul de Mato Grosso e na região de Bauru, de onde teria saído o grupo que

conviveu com Curt Numuendaju.39

Os Kaiowá foram os únicos a permanecerem propriamente no aldeamento,

sendo que os outros dois grupos (Guarani e Kaingang) permaneceram nas

categorias de “índios do sertão” ou “índios agregados”. Os Kaiowás estarão

registrado também como diaristas ou funcionários em São Pedro de Alcântara, irão

trabalhar também no plantio e lavoura de cana para o comércio de açúcar com a

colônia militar do Jataí.

3.6 PARA DIRIGIR O ALDEAMENTO, UM FREI

37FRANCA, Arthur Martins. “Frei Timotheo de Castelnovo”. Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes N 1/5 1934 Quando chegou em 1855 o Frei afirma que os indígenas iam para a aldeia fugindo do Paraguai. Pág. 208 38 AMOROSO, Marta Rosa. Pág. 127

31

Lendo algumas notas biográficas (bastante apologéticas) do frei Timóteo

passamos a melhor compreender os liames entre a História tradicional e a

ideologia de destruição do “outro”, indígena. Nas cartas do frei pouco se fez para

compreender o índio, o frei parece nunca sair do “centro urbano” do aldeamento.

Diferente de seu irmão de ordem, frei Cemitili, ou de outros funcionários como

Telêmaco Borba e Joaquim Francisco Lopes, não produz quaisquer análises menos

vagas dos índios.

Suas observações fluem desde o início de seu trabalho até sua morte, no

sentido de afirmar primeiro a potencialidade, depois a bestialidade de seus

prosélitos.

“Não tem duvida que desta nação de

Indigenas podesi esperar algum proveito mas

não jajá; e por ora não podem ser senão um

censo passivo”40.[1856] “Achei nos índios uma

intranponível barreira na falta de inteligência para

aprender, uma intranponível instinto para seu modo

de viverem, e na desconfiança nêles de serem por nós

um dia sacrificados.”[Memorial Testamentário] 41

39

NIMUENDAYÚ, Curt. “Apontamento sobre os Guarani” trad. e notas de Egon Schaden. Revista do Museu Paulista vol. VIII nova série. São Paulo 1954, p.9-59 40 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relatór io ao Presidente de Província 1856 v.08 ap .0032

32

Esta sendo uma imagem provavelmente já concebida no Rio de Janeiro ou

na Europa: selvagem, bruto, inimigo do trabalho e pagão.

O frei Timóteo, i.e., o homem que viria a ser frei nasceu em Gênova 1823

e entrou na ordem com 18 anos, desembarcou no Rio de Janeiro em 185142 veio

para o Brasil em janeiro de 1851, tendo ficado na capital do país até agosto de

1852, quando foi transferido para São Paulo, onde se torna pároco. É enviado para

os sertões do Paraná em agosto de 1855 e oficia a missa inaugural do Aldeamento

Indígena de São Pedro de Alcân0tara. O frei permanecerá no aldeamento até seu

óbito em 1895, exceto pelo período entre 1873 –1878, quando será Telêmaco

Borba diretor do aldeamento.

A vinda desse capuchinho para o Brasil imperial foi resultado da política

indigenista do Império, a qual pode ser compreendida como um belo rumo à

definitiva laicização da questão indígena. Após o cunho radical da política

indigenista pombalina que expulsou os jesuítas, o retorno do frei se configuraria

como um arremedo da história passada. Deve se ressaltar que o Estado fazia uso

do expediente do padroado, sendo que os freis capuchinhos ficavam sujeitos à sua

administração, bem como dependentes deste para seu soldo.43

Os freis dependiam do estado para suas necessidades básicas, era o Estado

que definia o local de atuação do missionário, do qual este somente poderia

ausentar-se com autorização prévia, e também era ao Estado que eles deveriam

responder por suas atividades não eclesiásticas. Ao que parece, frei Timóteo não

41 MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1789-1924). EDUEM Maringá 1994. Pág. 181 apud. FREI Casimiro M. de Orleans. Pai dos Coroados Tipografia Max Roesner .Curitiba 1957 42 FRANCA, Arthur Martins. “Frei Timotheo de Castelnovo”. Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes N 1/5 1934 p. 204

33

irá sentir-se muito desconfortável nessa posição – a não ser quando lhes atrasavam

o pagamento.

3.7 A ADMINISTRAÇÃO

Outro ponto importante na análise de Marta Amoroso é o fato de a

administração dos aldeamentos estarem sujeitos a uma hierarquia militar. Nem

mesmo os aldeamentos administrados pelos capuchinhos escapava a esta regra.44

O caso dos Estados da fronteira sulina representavam bem essa política ). De modo

que não se deve estranhar a adoção por parte dos índios destas instituições a partir

de uma significação própria. Nimuendaju irá relatar que alguns chefes indígenas se

dirigiam a São Paulo a fim de obterem suas patentes de “capitão”.

A instituição dos aldeamentos indígenas, sua hierarquia militarizada devem

ser compreendidas historicamente. Pensar em história consiste em enquadrar os

acontecimentos dentro de complexas teias de relações que são tão mais imbricadas

quanto mais se aproxima o olhar.

Se de um lado, analisando de maneira mais global, a instituição de

aldeamentos e colônias militares nas fronteiras com o Paraguai pode ser melhor

compreendidas à luz das disputas do Prata envolvendo até o imperialismo inglês,

também existem questões que concernem à própria formação do Estado brasileiro.

43 CUNHA, Manuela Carneiro. Política Indigenista no século XlX. In: História dos Índios no Brasil “Os capuchinhos italianos ficam inteiramente a serviço do governo, que os distribui segundo seus próprios.”p.140-141 44

AMOROSO. Marta Rosa .“No Paraná a missão capuchinha nascia junto a Colônias Militares [...] e apoiava-se nos destacamentos para estabelecer-se em campo, reunir os índios e conter conflitos.” Nestes aldeamento os frei capuchinhos recebiam soldo de capelães militares. p.31

34

Este procurava agilizar suas vias de comunicação com o interior, situação comum

a qualquer país recém formado, pois anteriormente voltava-se para metrópole.

Outra questões relevantes dizem respeito a ingerência da hierarquia militar dentro

dos aldeamentos, acontecimento que não é estranho aos países recém

descolonizados. Estes possuíam nos quadros militares um dos poucos parâmetros

para sua organização interna, visto que nesses novos países o exército é um dos

poucos órgãos que resiste com a retirada dos quadros burocráticos da antiga

metrópole.

A partir disto é bem conhecido o fato destes se autoproclamarem os

maiores e mais legítimos defensores da pátria (contra perigos externos ou

internos).

3.8 TRABALHO E CATEQUESE X ESPOLIAÇÃO E BRINDE

A política indigenista no Império brasileiro no século XIX possuía como

principal diretriz a apropriação das terras de seus legítimos donos, para isso

procurava retirar os índios de suas terras e colocá-los sob tutela dos diretores de

aldeamentos, inculcá-los dos ideais do trabalho e da religião para que eles se

tornassem também súditos do Império..

O frei, diretor de São Pedro de Alcântara e sertanistas, aldeadores são

unânimes em apontar que boas perspectivas se apresentavam “Não tem duvida

35

que desta nação de Indigenas podesi esperar algum proveito mas

não jaja; e por ora não podem ser senão um censo passivo”45.

Os índios deveriam ser atraídos para os aldeamentos através da distribuição

de brindes (facas, tesouras, espelhos, etc.) com o estabelecimento de tribos nos

aldeamentos os índios seriam instruídos nos “místeres” do trabalho, fariam roças

para venderem excedentes e para a subsistência do aldeamento. Através da venda

desses excedentes os índios passariam a adquirir os brindes e também a ter outras

necessidades .

Está implícito nessa ideologia a tentativa de se destruir a base cultural do

modo de viver do indígena, isto é, sua relação com a terra. Se a noção de

territorialidade era destruída, também era implodida a ligação com a natureza e

abria-se espaço para que uma nova mentalidade fosse constituída. Se até então o

status não decorria das posses econômicas, a coisificação da terra destruiria

também parte da coesão social, da ligação com a natureza e com a divindade. A

percepção de que tudo constituísse um sistema onde abalar-se um dos pontos faria

com que todo ele ruísse poderia não estar claro para todos, mas sob o ponto de

vista pragmático, rondava as políticas do “colonialismo interno”.

Os sertanistas aldeadores, os freis capuchinhos, as autoridades, todos

sabiam que a tarefa a que se propunham era árdua, com muitos obstáculos e cujo

fruto só poderia ser colhido a longo prazo O Frei reconhecia que os índios teriam

inclinações morais para o trabalho, mas que isso demora. O mesmo se dá com

Telêmaco Borba em Actualidades Indígenas, quando se refere aos Kaingang e aos

Guaranis e às propensões morais deles e suas roças. Uns são desconfiados. Outros

45 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relaório ao Pres idente de Província 1856 v.08 ap .0032

36

são mais leais, uns plantam e guardam e outros apenas plantam e vivem das

colheitas dos produtos, não armazenando-os.

Disto resulta que os Kaiowás (Cayoás ou Caiguás) serão os que mais

facilmente se adaptarão ao aldeamento (e este às suas necessidades), sendo eles

que chegarão antes na Colônia do Jataí e constituirão um posto indígena. Já os

Kaingang se manterão mais à distância.

Os Kaiowás fazem parte do grupo étnico guarani e o conhecimento que

possuíam da agricultura era notório, desde Cabeza de Vaca, passando pelos

bandeirantes e chegando até o interesse dos aldeamentos no XIX

A aproximação dos Kaiowás, Kaingangs e guaranis em direção aos

aldeamentos deve ser compreendida dentro da própria lógica interna desses povos.

Se, por um lado os diretores de aldeamento, capuchinhos e sertanistas aldeadores

apontavam que estes para lá se dirigiam em busca da proteção do Barão, também

reconheciam que os maiores gastos do aldeamento se deviam à distribuição de

brindes. Reconheciam também que os índios quando pressionados ou contrariados

facilmente abandonavam os aldeamentos.46

As tribos que permaneciam no Jataí beneficiavam-se ao máximo do

aldeamento, o que muito indignava o Frei

“sem a lavoura que

consiga traz a abundancia de

generos alimenticios nada de

46 Nimuendayú, Curt. “Frei Timóteo[ . . .] aconselhava os Guarani a t rabalharem,[ . . .] Entretanto os Guarani[ . .] não quer iam viver à manei ra que ele propunha, não quer iam tomar café ou comer carne de gado. ‘Para que ? Então havemos de

37

permanente se faz com estes

selvagens, poque e somente com

um commodo e fácil sustento que

pode induzilos a deixar a vida

errante.”47

O frei também não conseguia manter o controle sobre os índios. Os

Kaiowás, por exemplo, irão fazer petição junto ao governador provincial em 1877,

no sentido de possuírem seu próprio engenho e alambique, solapando o controle –

e, por conseguinte a autoridade – do frei. Se é certo que havia roçados do

aldeamento, para este revertiam e administrados pelo frei, também é certo que a

subsistência dos índios era garantida por cultivos próprios, alimentos vinculados a

seu modo tradicional de vida. Como foi notado por vários etnógrafos, uma das

maiores preocupações com o modo tradicional de vida situava-se na alimentação:

não ingerir carne de gado é importante. Tanto Kaingangs quanto Kaiowás faziam

uso desse expediente (re)afirmando sua identidade, o caso dos Kaiowás e coroados

que plantavam um tipo diferente de milho e não comercializavam é bastante

significativo sobre o grau de diferenciação existente.

Outra maneira de os índios aldeados apropriarem-se da estrutura do

aldeamento dentro de sua própria lógica estava evidente no fato destes receberem

visitas e visitarem seus aliados e parentes. Os índios mantinham afastados do

“centro urbano” do aldeamento em seus próprios toldos, onde mantinham seu

modo de vida tradicional.

morrer aqui de tanto t rabalhar?’ . Uma noi te ret i raram-se às escondidas e foram reuni r-se aos Guaianã do Rio Verde ’ ’ Ib ib .p .15 -17

38

Nestes locais o Frei tinha pouco acesso, visto que eram distantes do

aldeamento. Os índios ficavam fora de sua vigilância, alguns toldos poderiam ser

alcançados apenas com auxílio de outros índios ou funcionários do aldeamento,

como por exemplo o toldo Guarani que ficava do outro lado do rio a quatro léguas

de distância.

Também é digno de nota que as trocas efetuadas pelos índios do

aldeamento com as outra tribos que os visitavam, se davam, entre outras coisas,

por objetos que eram parte do modo tradicional do modo de vestir e agir48. Não é

muito improvável que os índio aldeados e agregados funcionassem como

“mascates” ou intermediários entre os índios do sertão e os brindes fornecidos pelo

aldeamento. É correto supor que tribos rivais não se aproximariam do aldeamento

ou ao menos teriam dificuldades para faze-lo. Primeiro, porque muitos empecilhos

poderiam ser interpostos para alguma permanência, mesmo que curta, ou para o

recebimento dos brindes. Segundo porque o frei tinha fornecido além de facões,

armas de fogo aos índios do aldeamento, o que traria desvantagem em caso de

conflito.

Conflito aliás, que eclodiu na década de 1870 quando os Guaranis

chegaram de forma intempestiva ao aldeamento. Eles tiveram literalmente que

forçar a sua entrada. Os Guarani atacaram as roças dos Kaiowás ( mas não do

aldeamento); do conflito não resultaram mortes, já que essas atraíram a repressão

do destacamento do Jataí. Mesmo assim, um destacamento de 12 praças

permanecerá em São Pedro de Alcântara por um ano para garantir a convivência

pacífica entre os diferentes grupos indígenas.

47CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relaório ao Pres idente de Província

39

A partir da década de 1870, o aldeamento configura-se como um

microcosmos de relações intertribais. Os espaços estavam bem delimitados e sua

violação não raramente redundava em conflitos com mortes. Os conflitos eram

evitados pela ação do Frei associado com os militares (além, é claro, do próprio

senso de territorialidade e política dos índios). Parceria que não ocorreu em São

Jerônimo, onde um conflito generalizado causará dezenas de mortes contribuindo

para o fim do aldeamento.

Se alguns grupos ou etnias poderiam ter problemas para aproximarem-se

dos aldeamentos, por outro lado, os índios aldeados teciam acordos em São Pedro

de Alcântara que tinham validade em regiões mais distantes. Evidenciando que a

situação de permanência junto ao poder colonial não tinha como contrapartida o

abandono da “geopolítica” indígena; afinal, alianças são feitas para estabelecer ou

sedimentar a paz, ou como preparo para guerras futuras.

Uma teia de relações ligava os índios aldeados e os nacionais, mas isso não

implicava diretamente que os índios de São Pedro auxiliassem os nacionais em

seus conflitos. A contrapartida mais comum que aparece nas fontes etnográficas

era o apoio dado aos sertanistas – como na expedição fluvial que Telêmaco Borba

fez à região das Sete Quedas contando com o auxílio do filho do cacique Libânio

como guia e intérprete – ou como remadores dos “trens bélicos” quando da Guerra

do Paraguai.49

48 LOVATO, Leda A. A contribuição de Franz Keller à etnografia do Paraná. In. Boletim do Museu do Índio n.1 , Rio de Janeiro 1974 p.21

40

4. CONCLUSÃO

Nem sempre a tentativa de submeter o indígena deu certo.

No caso do aldeamento de São Pedro de Alcântara, o fato de aldear-se os índios não os

fizeram assimilar a cultura européia.

Esse aldeamento reuniu indígenas de diversos grupos étnicos, mas eles guardaram certa

distância entre si e mantiveram suas diferenças, sua cultura e identidade próprias.

Mesmo no aldeamento, os índios continuavam a viver de maneira própria, abandonando-o

se sentissem lesados de alguma maneira.

É importante dizer que, se o aldeamento objetivava aproveitar o índio de diversas formas,

o índio também não se mantinha passivo, aproveitando-se, por sua vez, dos recursos que o

aldeamento oferecia.

Ao fim deste trabalho é válido dizer que, no seu relacionamento com o

conquistador, o indígena brasileiro foi, embora na situação de dominado, agente de sua

própria história.

49 BORBA, Telemaco BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Typographia e Litographia a apor Impressora Paranaense . Curitiba,1908 pág. 149

41

5. ANEXOS:

1. Ofício endereçado ao Presidente da Província do Paraná, escrito por Francisco Ferreira

da Rocha Loures, Curitiba, 1856

“A par dos esforços, que fazemos em prol da colonização, convém,

senhores não nos esquecermos desses milheiros de selvagens, que,

habitando os nossos sertões, partilham a sorte das fera, e são mais hostis

que ellas. Segundo cálculos, que não estão muito longe da verdade, orça-se

em 10.000 o número de selvagens contidos no território incueto de nossa

província.

No estado de embrutecimento, em que vivem, são entes perfeitamente inúteis, quando não

se tornam prejudicados.

Não basta confiar no capuchinho, para os reduzir, revelam apenas (devo dizê-lo

com franqueza) pouco estudo em tão interessante matéria.

Não basta confiar no capuchinho, que, encarando a questão pelo lado

puramente eclesiástico, entende satisfeita a sua missão, quando tem

explicado, em linguagem initelligivel, a metaphysica do evangelho,

pregando a estes espíritos rudes, as vantagens do jejum e da castidade.

Outros são os meios, a que devemos recorrer, para colher bons frutos das

nossas tentativas, em favor das tribos, que jazem no mais lamentável estado

de degradação. Senhores, no modo de proceder, para com os selvagens,

devemos tomar por mestres os jesuítas. Elles marcharão sempre com tino,

42

na resolução desse problema, que interessava, de mui perto, a glória da

sua ordem.”

*A redução dos selvagens depende de três condições essenciais:

conquista, catechese e civilização.

A primeira é uma questão de polícia; a segunda o predicado da

religião; a terceira resultado da industria.

Pela primeira questão, isto é. , pela conquista, que devemos tomar a

iniciativa, neste importante objecto. Não penseis, senhores, que a palavra

conquista, na acepção em que a tomo, envolve a idéia dessas bandeiras

sangüinárias, que, mais uma vez, tem levado a devastação ao meio dos

nossos sertões.

Eu quero, certamente, a intervenção da força armada; mas quero-a

empregado com intelligencia e mais como meio de defesa, que de ataque.

Se, pois, uma numerosa escolta penetrasse os nossos sertões, e fosse em

procura dos alojamentos dos selvagens, e, longe de lhes fazer a menor

aggressão, os mimoseasse com utensís e ornamentos, procedendo, para com

elles, de modo a lhes captar a confiança, posso assegurar que, dentro de

cinco anos estariam, amansados todos os selvagens, que hoje prejudicam as

nossas fazendas.

Foi justamente o que aconteceu em Guarapuava, por ocasião da

expedição de 1809, e mais tarde em Palmas, onde o cacique Virí , e outros,

se submeterão completamente, e nos tem, desde então, dado irrecusáveis

provas de lealdade e dedicação.

43

Convém utilizar estas forças, que vivem dispersadas pelos desertos,

procurando addicioná-las a população civilisada, que cobre uma pequena

parte de nosso território.

Parece que áquelles, que lanção uma vista d’olhos superficial sobre

nossa statisticie moral, que os povos da raça tupí, tão numerosos outr’ora,

desaparecerão da superficie do Brazil, sob pressão dos vício e da miséria,

é esse, pôrem, um erro, que não parti lharão aqueles que conhecerem a

questão pelo lado da sciencia.

A presença da raça caucasicia tende certamente a extinguir todas as

mais raças, em que se divide a especie humana; mas é pelo cruzamento que

se deve operar esse phenomeno provincial, como já entre nós se pode

observar, tanto a respeito da raça ethiopicia, de que futuramente não

haverá um só em nossa população.

Assim, pois, senhores, todos os nossos esforços nesse sentido, não

podem ter senão um resultado benéfico. Como homens de religião,

cumprimos com o dever que nos impões o evangelho, chamando a grey

chrestã esses infelizes que jazem imersos nas trevas o gentilismo; como

políticos temos de proporcionar ao nosso paiz todos os meios de

incremento, que nos oferece a própria natureza.

Submetendo a vossa illustrada consideração as minhas idéias sobre os

meios de melhorar a sorte dos nossos selvagens, devo entretanto expor-vos

o estado que se achão, não só a directoria geral dos índios, como as aldéas

que lhe são subordinadas .”

44

2. Ofício de Frei Timóteo de Castelnuovo ao Presidente de Província ,

agosto de 1856

“estes Indigenas são um gentio muito docil , sebem medrosos e

cobardes e não inimigos do trabalho, sebem requerem vestuario, e sostento1

, a sua vida e a caça e por consequencia a vadiação2 , mas preferem o

trabalho a vadiação tendo que comer. São de natureza muito intl igentes e

espertos, sebem estremamente desconfiados, faltalhe, porém ainda a

ambição. Não tem duvida que desta nação de Indigenas podesi esperar

algum proveito mas não jaja3; e por ora não podem ser senão um censo

passivo”.

3. Ofício de Frei Timóteo de Castelnuovo Diretor [de índios ao] Ilm.

e Exm. Snr Prezidente da Província do Paraná. 9/Janeiro/1857.

“Desde que dediquei-me ao serviço daí Missoens no Brazil tenho

observado que a melhór maneira de desenvolve-los e a lavoura e a Religião

destes tenho feito a base da minha sistema, sem a lavoura que consiga traz a

abundancia de generos alimenticios nada de permanente se faz com estes

selvagens, poque e somente com um commodo e fácil sustento que pode

induzilos a deixar a vida errante[..] de pouco a pouco trabalhar, criando

nelles alguma ambição de possuir, tirandolhes assim da sua indolencia e

aphatia natural , prepadandolhes assim para a catiqueze’.

45

6.FONTES

1 BORBA, Telemaco. Actualidade indígena. Curitiba : Typographia e Litographia a vapor

Imprensa

Paranaense, 1908

2 CASTELNUOVO, Frei Timóteo de. Ofício ao Presidente da Província v. 08 ap. 0032, 1856

3 _____________________________ Ofício [ de índios ao] Ilmo e Exm. Snr. Prezidente

da Província do Paraná. 9 de janeiro de 1857

4 FRANCO, Arthur Martins . Frei Timóteo de Catelnuovo. Revista do Circulo de Estudo

Bandeirante, vol. 1/5, 1934

5 FRIGO, Frei Adelino. Memórias de um herói - Frei Timóteo de Castelnuovo. Jataizinho:

Prefeitura Municipal , 1995

6 LOPES, Joaquim Francisco. Memória sobre a vereda mais fácil da estrada para

Mattogrosso Typographia de Candido Martins Lopes. Curityba 1871

7 LOURES, Franciscoco Ferreira da Rocha. Oficio endereçado ao Presidente da

Província do Paraná Henrique de Beaurepaire Rohan. Curityba : Typographia

Paranaense Candido Martins Lopes, 1856

8 NIMUEDAYÚ, Curt. “Apontamento sobre os Guarani” Curt Nimuedayú, , tradução e notas

de Egon Schaden. Revista do Museu Paulista. volume VIII (nova série). São Paulo 1995

9 NUÑEZ Cabeza de Vaca, Don Alvar Nuñez. Comentários. Curitiba : Coleção Farol do

Saber, Prefeitura Municipal de Curitiba 1995

46

7 . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMOROSO, Marta Rosa . Catequese e Evasão : Etnografia do Aldeamento indígena

de São Pedro de Alcântara, Paraná 1855-1895. Tese de Doutoramento em

Antropologia , USP, 1998

CARNEIRO DA CUNHA, Manoela . Introdução a História Indígena In CARNEIRO

DA CUNHA, Manuela (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo :

FAPESP/SMC e Cia das Letras, 1992

CARVALHO, Silvia M. Schmuziger. Chaco : Encruzilhada de povos e " melting pot"

cultural- suas relações com a bacia do Paraná e o sul mato-grossense. In

CUNHA CARNEIRO, Manoela da. História dos Índios no Brasil. São Paulo :

FAPESP/SMC e Companhia das Letras, 1992

HELM, Cecília Maria Vieira. A integração do Índio na estrutura agrária no Paraná

– O caso Kaingáng. Tese de mestrado, UFPR 1974

KARASCHI, Mary. Catequese e Cativeiro: Política indigenista em Goiás 1780-1889. In:

CUNHA CARNEIRO, Manoela (org. ) História dos Índios no Brasil. São Paulo

: FAPESP/SMC e Cia das Letras, 1992

47

MONTEIRO, John Manuel. As populações indígenas no litoral brasileiro no século

XVI: Transformação e resistência. In: DIAS, Jil (org.) O Brasil as vésperas do

mundo moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos

Descobrimentos Portugueses, 1992

__________, John Manuel Os Guarani e a história do Brasil Meridional:

séculos XVI-XVII” . In: CUNHA CARNEIRO, Manoela (org. ) História dos

Índios no Brasil. São Paulo : FAPESP/SMC e Cia das Letras, 1992

__________, John Manuel. O sertanismo e a criação de uma força de trabalho. In:

MONTEIRO, John M. Negros da Terra: Índios e bandeirantes e as origens de

São Paulo. Companhia. das Letras 1995

PIRES, Maria Ligia Moura. “Guarani e Kaingang no Paraná: um estudo de relações

intertribais. Tese de mestrado ao programa de pós-graduação em Antropologia

Social. UnB 1975.

SCHWARTZ, Stuart B. Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra

indígena.” In: SCHWARTZ S. B. Segredos Internos. São Paulo/Brasília:

Companhia das Letras/ CNPq. Brasília l988.

____________, Stuart B. “Primeira escravidão: do indígena ao africano” In:

SCHWARTZ, S. B. Segredos Internos. São Paulo/Brasília: Companhia das

Letras/ CNPq. Brasília l988.

48

___________, Stuart B. “Juízes, jesuítas e índios” Burocracia e sociedade no Brasil

colonial São Paulo: Perspectiva, 1979

TODOROV, Tzevetan. A Conquista da América: A questão do outro .Martins fontes