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Sílvia Maria Azevedo (Org.)

João Antônio: 20 anos sem “o clássico velhaco”

Assis Unesp Câmpus de Assis

2016

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Conselho Editorial

Sílvia Maria Azevedo (Presidente)

Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente)

Álvaro Santos Simões Junior

André Figueiredo Rodrigues

Carlos Camargo Alberts

Carlos Eduardo Mendes Moraes

Cleide Antonia Rapucci

Danilo Saretta Veríssimo

Gustavo Henrique Dionísio

José Luis Bendicho Beired

Lúcia Helena Oliveira Silva

Márcio Roberto Pereira

Maria Luiza Carpi Semeghini

Matheus Nogueira Schwartzmann

Miriam Mendonça M. Andrade

Paulo César Gonçalves

Ronaldo Cardoso Alves

Vânia Aparecida Marques Favato

Secretário

Paulo César de Moraes

Conselho Consultivo

Adilson Odair Citelli (USP)

Antonio Castelo Filho (USP)

Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP)

Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN)

João Ernesto de Carvalho (UNICAMP)

José Luiz Fiorin (USP)

Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP)

Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)

Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

Sandra Margarida Nitrini (USP)

Temístocles Cézar (UFRGS)

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

J557

João Antônio: 20 anos sem “o clássico velhaco” / Sílvia Maria

Azevedo, org. Assis, 2018.

121 p.

Vários autores

ISBN: 978-85-66060-22-5

1. João Antonio, 1937-1996. 2. Literatura brasileira. I.

Azevedo, Sílvia Maria.

CDD 869.909

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SUMÁRIO Apresentação

Sílvia Maria Azevedo.........................................................................................05

Prefácio

Visões do Brasil.................................................................................................08

Da pobreza à miséria: o Brasil segundo João Antônio

Júlio Cezar Bastoni da Silva.............................................................................11

Mário de Andrade e João Antônio, leitores de Graciliano Ramos

Clara Ávila Ornellas..........................................................................................35

De verbos e verbetes: ecos do Vocabulário das ruas na correspondência João

Antônio & Jácomo Mandato

Telma Maciel....................................................................................................56

A trajetória de um bandido em Leão-de chácara

Luciana Cristina Corrêa....................................................................................70

De João Antônio para Ilka Laurito

Sílvia Maria Azevedo........................................................................................91

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APRESENTAÇÃO

No ano em que se comemorou o 20º aniversário da morte de João

Antônio (1937-1996), o Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP)

da UNESP-Assis, que detém a guarda do seu acervo, não poderia deixar de

homenagear o escritor pelo significado altamente expressivo de sua obra.

Além da carreira literária, iniciada em 1963 com a publicação do livro de

contos Malagueta, Perus e Bacanaço, pelo qual ganhou reconhecimento

nacional e internacional, João Antônio foi também jornalista, tendo colaborado

nos principais jornais e revistas do Brasil da segunda metade do século XX,

como Última Hora, Pasquim, Jornal do Brasil, Realidade, Manchete. Traduzido

em várias línguas, alguns de seus contos foram publicados em antologias na

Tchecoslováquia, Espanha, Argentina, Alemanha Ocidental e Venezuela.

Ao longo da vida, João Antônio construiu volumoso acervo, composto de

textos originais, recepção crítica, recortes de jornais e revistas,

correspondência, cartões postais, discos, de modo que hoje, juntamente com a

sua biblioteca, composta de sete mil livros, muitos deles autografados, e

objetos pessoais, o pesquisador pode ter acesso a esta importante fonte de

documentação depositada no CEDAP.

Desde o ano posterior à morte de João Antônio em outubro de 1996, seu

acervo está sob a tutela do Centro, que passou a receber pesquisadores de

todo o Brasil. Pesquisas de Iniciação Científica, Dissertações de Mestrado,

Teses de Doutorado e Pós-Doutorado, grande parte das quais desenvolvidas

junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de Assis, vieram

ampliar a já volumosa fortuna crítica de João Antônio. Eventos e exposições

sobre a obra o escritor foram outras atividades promovidas pelo CEDAP,

contando com grande afluência de alunos, de graduação e pós-graduação,

além de pesquisadores de âmbito nacional.

A realização do “Encontro João Antônio”, em 12 de outubro de 2016, que

contou com a participação de cinco pesquisadores brasileiros, foi uma forma

não apenas de (re)lembrar o ano da morte do escritor, mas também manter

viva e pulsante a obra de João Antônio.

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Júlio César Bastoni da Silva, no texto “Da pobreza à miséria: o Brasil

segundo João Antônio”, teve por objetivo analisar o projeto literário nacionalista

do escritor jornalista e paulistano, com enfoque nos dez últimos anos de sua

trajetória literária, em que ele se mostra pessimista com os rumos do país e

desalentado pela falência da questão da identidade nacional na produção da

intelectualidade brasileira na época.

Em “Mário de Andrade e João Antônio, leitores de Graciliano Ramos”,

Clara Ávila Ornellas investiga a recepção do escritor alagoano à luz da

marginália presente nos exemplares de São Bernardo e Viventes das Alagoas,

que constam na biblioteca de João Antônio, depositada no CEDAP, e Angústia

e Vidas secas, integrantes da biblioteca pessoal de Mário de Andrade, sob a

guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP.

A correspondência entre João Antônio e Jacomo Mandato, na qual o

autor de Malagueta, Perus e Bacanaço recupera procedimentos estilísticos

referentes à linguagem das ruas, tanto na construção do diálogo epistolar,

quanto no emprego de espécie de marginalia, em que os termos aparecem

como verbetes de um dicionários de gíria, é o enfoque do artigo de Telma

Maciel da Silva, “De verbos e verbetes: ecos do Vocabulário das ruas na

correspondência de João Antônio e Jacomo Mandato”.

O conto “Paulinho Perna Torta”, que integra o livro Leão-de-chácara

(1975), está no foco da análise de Luciana Cristina Corrêa, em “A trajetória de

um bandido em Leão-de-chácara”, em que investiga o fenômeno do

banditismo, representado pela personagem protagonista da obra de João

Antônio, a partir dos conceitos desenvolvidos por Eric Hobsbawm.

O último texto da antologia, “De João Antônio para Ilka Laurito”, de

minha autoria, oferece uma seleção de vinte e três cartas, que constam do

Acervo João Antônio, depositado no CEDAP, em que é possível acompanhar

alguns momentos da trajetória profissional de João Antônio, dos anos de

formação como escritor, marcados por angústias, incertezas e reveses, ao

sucesso com a publicação de Malagueta, Perus e Bacanaço, passando por

episódios de sua vida pessoal e finalizando pelo depoimento de desencanto do

jornalista-escritor com os intelectuais de sua geração.

Ao promover o evento “Encontro João Antônio”, o CEDAP mostrou-se

não apenas empenhado em participar na divulgação de um dos mais

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importantes escritores do cânone nacional, como também em cumprir com o

seu papel de importante centro de memória disseminador do conhecimento na

área da literatura brasileira.

Assis, 12 de dezembro de 2017.

Sílvia Maria Azevedo

Supervisora do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa –

Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa

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Prefácio

Visões do Brasil

As obras literárias são atemporais. Podem ser lidas muitos e muitos

anos, séculos ou milênios depois de serem escritas, e permanecerem sendo

apreciadas e fruídas. É uma das características das obras que consideramos

como propriamente literárias a perenidade, e falo isso sabendo dos riscos em

dizê-lo, já que a discussão do que seja ou não literário não consegue chegar

nunca – e provavelmente nem seja mesmo para chegar – a um ponto definitivo.

E falo, ainda, considerando o fato, também amplamente conhecido, de que

determinadas obras não foram consideradas literárias em seu tempo e depois

passaram a sê-lo, e vice-versa.

Apesar de todas essas considerações, não deixamos de nos admirar

com o fato de que obras escritas há tempos continuam sendo lidas e,

evidentemente, ganhando novos e novos sentidos e contornos a cada época

em que se situam seus leitores.

Começo este texto com essas noções porque elas se vinculam

diretamente com o propósito deste livro que ora surge, originado de um evento

ocorrido em torno do marco dos vinte anos da morte do escritor e jornalista

João Antônio, promovido pelo Cedap da Unesp, campus de Assis. A efeméride

se deu em 2016 e, na ocasião, os pesquisadores e professores aqui reunidos

apresentaram suas leituras da obra e da trajetória de João Antônio, lendo-as já

com esse intervalo de, no mínimo, vinte anos (mas que pode ser aumentado

para mais de cinquenta, quando se toma em conta que a primeira obra do

escritor, Malagueta, Perus e Bacanaço, foi publicada em 1963).

O Brasil que habitavam os autores era outro Brasil – mas, por outro lado,

podemos nos perguntar se ele seria ainda o mesmo –, diferente do de 1996,

quando se vivia ainda apenas o segundo ano do Plano Real, com toda a ilusão

que ele trouxe de que o país finalmente entraria nos eixos, com as

privatizações sendo aceleradas ao máximo, consideradas a melhor solução

para nossos males crônicos. E era um Brasil diferente também daquele país

dos anos 1960, por sua vez diferente daquele dos 70 e também do país da

década de 80.

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Ao serem publicados agora, neste início de 2018, depois de mais de um

ano de intensas turbulências políticas e às vésperas de nova eleição

presidencial, pode ser ainda outro o exercício do olhar que tais textos críticos

nos proporcionem. Verdade que eles falam acima de tudo de literatura, essa

nossa paixão visceral. Mas, ao falar dela pela via de João Antônio, não deixam

de dar vazão aos muitos sonhos já sonhados para este nosso ainda tão triste

país, tanto por vê-los na obra do escritor, quanto, por exemplo, ao perseguir

seus rastros como leitor da obra dos escritores que o antecederam, os quais

também projetaram seus sonhos e angústias diante do país.

Tendo sido publicado em 1963, portanto ainda antes do golpe civil-militar

de 64, Malagueta, Perus e Bacanaço, trazendo para o universo ficcional

brasileiro a figura do malandro, ainda podia fazê-lo de um ponto de vista que

comportava certa esperança. Como disse o professor Flávio Aguiar – em uma

leitura crítica inspirada na concepção de Northrop Frye sintetizada no clássico

Anatomia da crítica –, os personagens dos contos inaugurais de João Antônio

estavam longe do paraíso, mas, por outro lado, também não residiam no

inferno. Antes, podiam ainda ser considerados habitantes do purgatório, esse

“lugar de provação e privação, mas onde ainda não se perderam as medidas

de uma melhor vida”1. Na forma como desvelavam essa figura incômoda da

realidade urbana, o malandro, o marginal, havia ainda uma perspectiva de

abertura, ou seja, de que aquelas realidades ali figuradas não eram

necessárias e eternas, mas apenas circunstanciais.

Entretanto, depois do golpe consumado, e mesmo depois, já na metade

dos anos 70, quando se desenhavam os primeiros passos da distensão depois

transformada em abertura lenta, segura e gradual, foi ficando cada vez mais

difícil manter tal perspectiva, e os personagens do escritor paulistano passaram

a ser moradores do inferno, um inferno cada vez mais distante de certa aura

nostálgica do campo e dos primeiros malandros, aquela figura quase

romântica.

Num livro como Dedo-Duro, por exemplo, de 1982, marca-se a

percepção do enraizamento estrutural dos males do Brasil, de seu caráter

profundo, com a consciência de que o final do regime de exceção, se era

1 Aguiar, Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno, Remate de Males, v. 19, p. 106.

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obviamente necessário, não traria por si só a resolução de tais males

estruturais. O purgatório não era mais viável, estávamos todos condenados,

junto com as personagens do escritor.

Acredito que este livro, que é ademais uma manifestação fundamental

da importância da pesquisa em acervos de escritores, convida a pensar e

repensar sobre estas questões aqui apenas esboçadas, fazendo-nos refletir

sobre as visões do país figuradas nas obras literárias, não de forma direta ou

simplista, mas construídas em sua tessitura ficcional. Estou certa de que será

um proveitoso mergulho.

Marina Ruivo

Professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir),

Campus de Rolim de Moura.

Referência:

AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno. Remate de Males, Campinas, SP, v. 19, p. 105-120, nov. 2012. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636102>. Acesso em: 31 jan. 2018.

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1

Da pobreza à miséria: o Brasil segundo João Antônio

Júlio Cezar Bastoni da Silva

Universidade Federal de São Carlos/FAPESP

João Antônio, para os que o desconhecem, pode ser apresentado como

um autor que não apenas representa o país por meio de sua literatura, mas

que construiu sua obra tendo o referente nacional como pedra de toque. Assim,

muito mais que os clichês que insistem em rondá-lo – marginal, “clássico

velhaco”, cronista do submundo e quejandos –, frutos de uma leitura parcial ou

datada de seu trabalho, João Antônio pode e deve ser colocado ao lado de

autores que se debruçaram sobre as questões brasileiras em suas dimensões

estruturais e conjunturais, amalgamando o registro da vida popular, das

diferentes formas culturais e sociais presentes no país, sempre a partir de um

ponto de vista que se pretende ao rés-do-chão, isto é, uma perspectiva

tendencialmente compartilhada com as classes subalternas brasileiras.

Olhando a base da pirâmide, o retrato trágico do país contempla o espectro de

uma desigualdade social estrutural, manifestada em uma aparente unidade

temática e em uma linguagem que se constrói na recuperação da consciência

de um outro de classe, que passa a ser visto não apenas como objeto, mas

também como fonte da representação. Uma perspectiva dos subalternos,

portanto, é assumida e forjada pela linguagem, o que é muito diferente de um

mero registro de costumes pitorescos ou, ainda, bárbaros, como ainda hoje é

comum na produção cultural brasileira, especialmente quando voltada à

figuração do indivíduo pobre. A identificação, ideologicamente problemática,

entre violência, marginalidade, pobreza e as classes subalternas é posta, pois,

em suspenso, fruto de uma construção que se volta à representação dos

fenômenos sociais brasileiros como elementos próprios a uma situação

concreta; isso quer dizer que João Antônio evita ferichizar a precariedade da

vida dos pobres em imagens estanques, o que serviria – e provavelmente

ainda hoje serve – a um voyeurismo social perverso, fruto do abismo da

desigualdade brasileira e da – invisível? – barreira de classe presente no país.

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A obra de João Antônio, exatamente por conta dessas particularidades e

dos dilemas que ela seguramente traz à construção de uma imagem coerente

das questões nacionais, apresenta em seu próprio percurso um painel da

situação política, social, e dos debates que o país enfrenta na segunda metade

do século XX. Nesse sentido, a caracterização breve, aparentemente

despretensiosa, de um texto de Tania Macêdo sobre o autor, serve mesmo

como uma apresentação eficiente do que podemos chamar de fisionomia geral

da obra e do escritor. Em “João Antônio, esse (des) conhecido”, Macêdo afirma

que o escritor “[...] pode ser definido como um autor que fez uma opção pela

literatura, pelo povo, pelo Brasil. Ler suas obras é conhecer melhor a nossa

face, os nossos valores e também os imensos problemas que enfrentamos.”

(1997, p. 4). João Antônio se ligava, e o declarava constantemente, a uma

tradição literária nacional que se compromissaria não apenas com a produção

literária, mas sobretudo a tornava meio de pensar o país e seus problemas,

tendo como perspectiva uma ligação com o fato social brasileiro, em especial o

dado popular e a perspectiva voltada às classes subalternas. João Antônio,

desse modo, liga-se à literatura de um Graciliano Ramos, de um Mário de

Andrade, de Antônio Fraga, além, é claro, de Lima Barreto, sua eterna

referência ética e estética, e para quem João Antônio dedicou todos os seus

livros. É importante ressaltar, portanto, que além de ser um escritor obcecado

pela forma de seus textos – suas muitas anotações e documentos de pesquisa

da linguagem popular mantidos em seu acervo o confirmam – foi também um

escritor fascinado pelo seu país e pelo seu povo, fazendo deles o assunto

principal de sua obra, como objeto e perspectiva.

João Antônio sempre fora um homem dividido entre a convivência com

as camadas populares, principais personagens de sua obra, e o saber dito

erudito, como especialmente se caracteriza a literatura em um país cujo índice

de letramento sempre foi parco. Sua simpatia, desde o início, foi voltada aos

trabalhadores pobres e aos marginalizados socialmente, aos quais se aproxima

biográfica e literariamente (ORNELLAS, 2011)2, buscando aderir a sua

2 É importante notar que em entrevistas e reconstituições biográficas do autor, a aproximação entre a vida e as opiniões de João Antônio com sua obra é evidente. No caso deste autor, é também elemento de importância para a compreensão de seu momento histórico e a especificidade da literatura que produziu. Nesse sentido, ver, por exemplo, o volume dedicado

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perspectiva na composição de seus textos; ainda, era evidente seu respeito

pelo saber e pela linguagem popular, que reproduzia em seus textos, seja pela

adesão a seu vocabulário e expressões, seja pela emulação ou recriação de

uma sintaxe própria. Nesse sentido, como lembra Antonio Candido, em texto

inicialmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, por ocasião da morte

do escritor, [João Antônio] “[...] faz para as esferas malditas da sociedade o que

Guimarães Rosa fez pelo mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que

parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se

torna uma língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente.”

(CANDIDO, 1996, p. 11).

Desse modo, podemos caracterizar o projeto literário de João Antônio

como um programa voltado às classes subalternas e a seus diferentes meios

de vida, sejam eles o trabalho ou a vida dos pequenos expedientes, o crime e a

marginalidade, bem como os traços culturais dessas camadas. Em sua estreia

em livro, com Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), já estão delineados seus

principais temas e sua maneira de abordá-los: os malandros, o trabalhador

urbano pobre, o marginal, são os temas presentes, em terceira ou com o

frequente uso da primeira pessoa, particularidade que marcaria boa parte de

sua obra. Na mesma década de 1960, ainda trabalharia na redação do Jornal

do Brasil, no Rio de Janeiro, no qual ficaria responsável pela reportagem

cultural e também começaria seus experimentos no chamado conto-

reportagem, que exerceria com maestria quando de seu trabalho na revista

Realidade, do grupo editorial Abril, de São Paulo, sob a direção do jornalista

Paulo Patarra. Jornalismo e ficção não são duas facetas diversas da obra de

João Antônio. Na verdade, ambas se subordinam a um mesmo interesse pelo

fato popular e pela abordagem da vida do povo brasileiro, em suas mais

diversas formas. A partir da década de 1970, quando colabora assiduamente

para a imprensa alternativa, de oposição à ditadura – também chamada por

João Antônio de “imprensa nanica” –, essa característica de sua obra ficaria

mais clara. Nesse período, publica em jornais como Opinião, Crítica,

Movimento, Ex-, Versus e O Pasquim. Entre contos, crônicas e reportagens,

João Antônio atinge, nesta década, seu auge como escritor, chegando a

ao autor na coleção Rebeldes Brasileiros, produzida pela editora Casa Amarela, que edita a revista Caros Amigos (MAGNONI, s. d.).

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ocupar a lista dos livros mais vendidos por diversas semanas, com Leão-de-

chácara, coletânea de contos publicada em 1975. No mesmo ano, vem à luz

Malhação do Judas Carioca, uma seleção de reportagens – ou contos-

reportagem – publicados principalmente na revista Realidade. Nesse livro, está

o texto que pode ser lido como um verdadeiro programa de sua obra, o ensaio

intitulado “Corpo-a-corpo com a vida”.

Este pequeno escrito de nove páginas é de suma importância para bem

compreender a literatura de João Antônio. É possível classificar esse texto

como um manifesto não apenas estético, mas também ético e político, uma

defesa da temática popular, bem como do compromisso que o escritor ou

intelectual – especialmente em meio periférico – deveria ter com seu país e seu

povo. O tom do texto, certamente, sofre a influência do período da década de

1970 e da fase pela qual se encontra o escritor, firme na defesa de um projeto

popular para o país, em consonância à sua atuação na imprensa alternativa do

momento. É importante lembrar que, a partir de meados da década de 1970, a

repressão da ditadura à imprensa, se não pode ser negada, ao menos

arrefece, e é o período no qual a oposição ao regime fecha uma espécie de

frente política informal, com ramificações nos mais diversos âmbitos, da cultura

à política parlamentar. Assim, ocorre nesse período um processo de

revigoração da cultura nacional-popular que fora abafada pela repressão na

década anterior, embora sob novo feitio, ligado agora à reconstrução do país

pós-“milagre” econômico, com o horizonte não apenas na abertura

democrática, mas na superação das antigas mazelas brasileiras, que o

crescimento da economia não resolvera, antes agravara. “Corpo-a-corpo com a

vida”, assim, era um texto que colocava, de uma só vez, o projeto pessoal do

escritor João Antônio, mas também a demanda por uma literatura e uma

cultura voltada à representação da vida do povo brasileiro, com o propósito de

transformá-la.

Precisamos de uma literatura? Precisamos. Mas de uma arte literária, como de um teatro, de um cinema e de um jornalismo que firam, penetrem, compreendam, exponham, descarnem as nossas áreas de vida. Não será o futebol o nosso maior traço de cultura, o mais nacional e o mais internacional; tão importante quanto o couro brasileiro ou o café of Brazil? A umbanda não será nossa mais eloquente religião, tropical e

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desconcertante, luso-afro-tupiniquim, por excelência, maldita e ingênua, malemolente e terrível, que gosta de sangue e gosta de flores? A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e onde mais existe um espírito comunitário; a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura? [...] O caminho é claro e, também por isso, difícil – sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma. (ANTÔNIO, 1975a, p. 145-146).

Como se vê, o texto demanda um compromisso com o fato popular, que

englobe não apenas a literatura, mas outras artes e também o jornalismo, com

o objetivo de interferir no processo de autoconhecimento e descolonização

cultural brasileiros e, no limite, na própria situação político-social do país.

Desse modo, além de ser um texto que expõe o projeto literário de João

Antônio, também aspira a ser um programa cultural que exigiria a participação

de outras frentes culturais e de outros autores. Isso não é, no entanto,

megalomania ou apenas bravata do autor: há que se considerar que muitos de

seus pares escritores publicavam nos mesmos periódicos da imprensa

alternativa, e eram praticamente unânimes na oposição à ditadura e à

perspectiva voltada às classes subalternas. Exemplo de tal “grupo literário”,

que alguns chamam de Geração 70, é a publicação da coletânea de contos

organizada por João Antônio intitulada Malditos escritores!, em 1977. Além do

próprio João Antônio, a publicação contava com contos de Antonio Torres,

Tânia Faillace, Chico Buarque, Aguinaldo Silva, Wander Piroli, Plínio Marcos,

entre outros. Sintomaticamente, o texto de apresentação, redigido por João

Antônio, continha passagens de “Corpo-a-corpo com a vida”, indicando, assim,

certa comunhão de pressupostos:

De propósito, evitou-se o toque beletrístico, enquanto se fortaleceu o laço de uma linha geral entre todos os autores, cuja força é, de natural, o comprometimento com a coisa claramente popular. Respeitadas as condições de cada autor o resultado ficou mais próximo de uma literatura de aparência amassada, descarnada, inconveniente, fedida. Também por

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isso mais antropológica e menos acadêmica. E brasileira, ainda que desdentada, de pés no chão. Embora tenhamos nitidamente uma barra pesada como resultado literário, este conjunto não desemboca apenas numa literatura raivosa ou vã. Literatura, digamos, de dentro para fora. Seria pouco. Bem pouco como proposta. Conto-reportagem-depoimento, trabalho parajornalístico? Ainda pouco. Aqui há, de propósito, um trançado, uma mistura dosada, conluiada, argamassada de elementos de literatura chamada pura, com elementos de alta voltagem de verificação da realidade popular. Estes escritos cometem (intencionalmente) quase todas as heresias diante de alguns conceitos tradicionais do purismo do fazer literário. O nosso buraco, afinal, é mais embaixo e estamos mais preocupados com as gentes de baixo e seus problemas de sobrevivência. Subsistência, até. (ANTÔNIO, 1977, p. 4).

Na década de 1970, portanto, João Antônio aprofunda o tema popular já

presente em Malagueta, Perus e Bacanaço, destacando, porém, a tonalidade

política, quase militante, pela causa do povo brasileiro, que ainda aparecia

misturada a certo tom lamentoso e nostálgico presente em seu livro de estreia.

Embora não perdesse seu fascínio pelo mundo da marginalidade, os contos e

reportagens de João Antônio neste período atingem um tom mais incisivo na

representação dos problemas que afligem as classes subalternas, com

destaque para a violência, a onipresença da pobreza urbana e a decadência

dos espaços públicos. Como destaca o pesquisador Rodrigo Lacerda (2006),

também será neste período que a obra de João Antônio integrará

progressivamente a literatura ao jornalismo, o que será visível em um conto

como “Dedo-duro”, publicado na coletânea homônima de 1982 – conto

aparecera, pela primeira vez, como matéria da revista Realidade, ainda na

década de 1960. Essa relação entre literatura e jornalismo, se não significa

uma alteração da qualidade estética de seus textos, ao menos ocasionam um

progressivo afastamento da autonomia ficcional, rumo a uma atenção mais

detida sobre o dado factual. Ela, também, marca a flutuação de gêneros que

será comum à obra de João Antônio: contos, crônicas e reportagens por vezes

se confundem em sua construção, dado que suas marcas textuais se

interpenetram. Uma hibridação de gêneros, pode-se dizer.

Se, como dissemos, na década de 1970 a literatura de João Antônio

encontrou seu ápice de reconhecimento público, a década seguinte seria mais

dificultosa. Nas duas coletâneas de contos publicados a partir de 1980, Dedo-

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duro, de 1982, e Abraçado ao meu rancor, de 1986, seu nome já se fizera

como o de um dos grandes escritores brasileiros do período. Prova disso são

os textos de Antonio Candido, Paulo Rónai e Jorge Amado, apresentações e

chancelas ao primeiro livro, e de Alfredo Bosi, no segundo. A recepção crítica

de ambas as obras é também positiva, com destaque para Abraçado ao meu

rancor, objeto de dois estudos definitivos, um de João Luiz Lafetá (2004), outro

de José Paulo Paes (2001). No entanto, o que se percebe nos textos do autor é

um progressivo desencantamento quanto aos destinos nacionais. Se, durante a

militância na imprensa alternativa da década de 1970, a utopia da construção

nacional ainda estava no horizonte, a partir dos livros da década seguinte, em

especial Abraçado ao meu rancor, a lamentação quanto aos destinos dos país

se fazia cada vez mais evidente. Em texto de 1983, publicado em um jornal de

Brasília, João Antônio já manifesta sua descrença quanto ao processo de

redemocratização brasileira. Não bastava o retorno da eleição direta para

presidente; eram necessárias reformas que garantissem a resolução de antigas

mazelas do país, reproduzidas e mesmo agravadas durante o regime militar.

Cito João Antônio:

[...] tenho muitas dúvidas sobre o nosso processo de redemocratização. Aqui existe um atravessamento de classes de uma complexidade enorme. Vejamos, por exemplo, os negros, os pobres, os velhos, as mulheres, os lúmpens. Será que esses elementos estão participando do processo de democratização? Será que realmente existe essa viabilidade? Será que a nossa ditadura não é crônica, desde o começo da República, com espaços de liberalidade aqui e ali? Tudo isso precisa ser refletido para não se repetir uma democracia fraca. (1983, p. 3).

Ou ainda, em entrevista realizada em 1985, sobre o que espera da

chamada Nova República: “Estou pacientemente esperando que seja nova e

que seja república” (PINHEIRO, 1985, s. p.).

João Antônio, que nunca fora um otimista, mas se deixara contagiar pelo

espírito combativo da imprensa na qual militava na década de 1970, relembra,

a partir da década de 1980, a postura desmistificadora que aprendera em Lima

Barreto: para os pobres, não havia solução possível vinda de cima, na forma de

uma concessão do poder às camadas desfavorecidas. Some-se a isso o

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desencantamento com o jornalismo da grande imprensa brasileira ‒ em relação

à qual sempre expôs visão crítica ‒ bem como com os rumos do país, sem

solução à vista, e à própria crise do escritor-narrador que expressa no conto-

confessional “Abraçado ao meu rancor”. Este conto, cujos primeiros trechos

conhecidos, publicados no órgão da imprensa nanica Ex- datam de 1975, sob o

título de “São Paulo: 1950” (1975b), e que aparece muito modificado no livro de

1986, é uma profunda lamentação sobre as mudanças da cidade de São Paulo

e do próprio autor-narrador. Trabalha, portanto, sobre o resultado da

urbanização contraditória ligada à chamada modernização conservadora da

ditadura militar, que progressivamente elimina os espaços públicos e as zonas

de convivência popular, com suas marcas e seus símbolos, tornando-se

espelho de um narrador que lamenta não encontrar, como quando jovem, a

vida popular comunitária que, a despeito da pobreza, ainda seria marca do

cotidiano das classes populares recém-egressas do meio rural. João Luiz

Lafetá classifica acertadamente essa produção de João Antônio como

representativa de uma “estética do rancor”, ligada às ilusões perdidas da

década anterior, sentidas principalmente pela classe média que se engajara

num projeto de país:

É que a brutalidade da exploração capitalista no Brasil parece ter aumentado nos últimos anos, e seu reflexo na esfera ideológica, principalmente entre intelectuais de classe media (escritores, professores, artistas, jornalistas), tende a se polarizar em duas atitudes: a cooptação de um lado, ostentando o brilho do dinheiro justificado pelo elogio da racionalidade, da modernidade, do internacionalismo; o inconformismo do outro, levantando a arma da indignação e do rancor. Se a primeira atitude tem algo de cínico em seu exibicionismo triunfante, a segunda não consegue esconder uma incômoda, desajeitada visão do processo social. E a simplificação das duas acaba prejudicando tanto a política, como o pensamento ou a arte. O problema é geral, não é só de João Antônio. (LAFETÁ, 2004, p. 517).

Segundo Lafetá, trata-se de uma resposta típica do período final do

século XX, quando a integração subordinada do país ao capitalismo

globalizado atinge novo nível, que oblitera as utopias anteriores quanto à

construção nacional. O deslocamento de João Antônio neste período tem a ver,

portanto, com a manutenção de sua postura combativa em nome do projeto de

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país, em oposição à cooptação dos intelectuais integrados ao momento. Assim,

ocorre a manutenção de uma postura crítica, cuja forma muda para uma revolta

rancorosa contra as mudanças ocorridas na sociedade, em vez do horizonte

utópico anterior, que estivera sempre latente em sua produção. A obra de João

Antônio, como podemos ver, apresenta uma ligação bastante forte com os

dilemas de seu tempo, em especial com a frustração advinda após a

redemocratização: a chamada Nova República de 1985 não significara uma

mudança substancial nos processos políticos, sociais e econômicos brasileiros;

antes manterá, sob nova forma institucional, antigas contradições sociais que

passaram incólumes ou foram mesmo agravadas pelo crescimento econômico

durante os primeiros anos do regime militar.

É de se perguntar, portanto, porque a produção de João Antônio, em

seus dez últimos anos, não atingiu o reconhecimento de seus livros publicados

até a década de 1970. Como lembra Rodrigo Lacerda, trata-se de um período

no qual “[...] [esvaíra-se] a aliança entre a militância e a intelectualidade de

esquerda, provenientes da classe média, e o chamado ‘povo’, esmagada

primeiro pelos militares, e depois pelas transformações da conjuntura histórico-

ideológica [...]” (2006, p. 444). A permanência, assim, de João Antônio no

mesmo círculo de valores intelectuais dissemina nos seus textos a sensação

de estar fora do lugar e do tempo, de lamentar um passado que, se nunca fora

idílico, teria sido ao menos prenhe de utopias. Nesses últimos dez anos, João

Antônio publica pouca ficção, à exceção do livro de 1991, Um herói sem

paradeiro, que continha dois contos inéditos e outros já publicados em obras

anteriores, e de Guardador (1992), que compilava contos e perfis.3 Sua

produção, nesse período, concentra-se na crônica, disseminada por vários

órgãos da imprensa brasileira; nesse gênero híbrido, entre a ficção e a

informação jornalística, João Antônio livremente tecia comentários sobre a

situação e as mudanças pelas quais passava o país pós-redemocratização, o

que as torna importantes para a avaliação dos anos finais de produção do

autor. Um exemplo é a crônica “Estado da ralé”, publicada no jornal Rio Capital,

em 1992. Nela, o Rio de Janeiro é apresentado como uma espécie de

3 Outras publicações do período, como Sete vezes rua e Dama do Encantado, ambas de 1996, também consistem em coletâneas de contos, crônicas e perfis, já aparecidos em livro ou na imprensa.

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microcosmo do país, cujos males, portanto, não apenas compartilha, mas

representa e projeta:

Se o Rio vai mal, é o Brasil que não vai bem. Além da sua beleza de cidade-mulher, epidérmica, disparadamente uma mulher bonita que não precisa de jóias, disse um de seus cronistas, a cidade de São Sebastião é síntese. Funciona, se preferirem, como um sovaco do corpo brasileiro. O termômetro debaixo do sovaco acusa febre. É o Brasil que está com febre; não isoladamente o Rio de Janeiro. (1992, p. 7).

“Estado da ralé” é, portanto, uma espécie de balanço, pela visão do

escritor, da situação brasileira, a partir da mirada sobre o Rio de Janeiro. Dos

males do momento, fica principalmente patente a decepção com a recente

redemocratização, que não cumpriu as esperanças gestadas quando da

abertura política, destacando os dois males que, a seu ver caracterizam o Rio

de Janeiro e, por extensão, o país: o pauperismo geral e a violência. Tais

males não seriam, portanto, exclusividade da capital carioca, mas

característicos de uma situação nacional:

Fica impossível (...) falar-se em direitos humanos depois que nos cassaram a cidadania, direito primeiro, passando sobre uma constituição nova, recente, ainda fresca, a mais cara, demorada e sofrida da história da chamada república. Tudo em nome de um Brasil novo com um estilo a que xingam de modernizante. Estamos decadentosos no país que é uma pinóia. Já não temos a vergonha de antes, sequer sabemos (ou merecemos) fazer uma revista decente, nós, que já tivemos uma Senhor. Imprensa, universidade, saúde, vida pública, a responsabilidade é nossa. Não querendo parecer acaciano, o país somos nós. (1992, p. 7).

O período de crise entre a redemocratização e os primeiros anos da

década de 1990 aparece como um tempo de mudanças substantivas, todas

aparentemente negativas, em especial porque contrariaram as esperanças

anteriores de construção de um país decente. Trata-se de um sentimento

generalizado entre a intelectualidade brasileira de que havia uma “democracia

traída”, com a continuidade de antigos vícios e, em especial, a manutenção da

desigualdade, que então irrompe em uma sociedade plenamente orientada

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para o capitalismo mundializado. Em João Antônio, a experiência que

transforma em crônica, jornalismo e literatura, é o que determina a sua visão

afetiva sobre os fenômenos brasileiros do momento; assim, a percepção das

mudanças não é fruto da análise fria das estatísticas ou da política, mas da

tentativa de compreender o estado geral do país, partindo da ligação direta que

sempre intentara realizar com as “faixas de vida” nacionais, em especial as

classes subalternas. Assim, João Antônio traduz em texto uma mudança social

perceptível, na qual as utopias e o projeto de nação são postos de lado, o que

lhe causa o tom de desencanto. Cito a crônica “Mendigos e mafueiros”,

publicada em 1995 no jornal Rio Artes:

Agora, tempos piorados. E as nossas cidades nunca souberam esconder o miserê. O que tinha, o que tem de miséria, sempre gritou. Hoje, a miséria desceu o morro e escorreu de algum canto rural e se plantou no asfalto. A rua virou lugar de tumulto e isto não é nenhuma novidade. Os tempos estão brabos e, sem pedir licença, a miséria substituiu a pobreza em plena rua. Feia, suja, ela dá também para atrevida, perturbadora, inconveniente. À noite, se enfia debaixo do que pode, mais se agasalhando do que se escondendo; de dia, mostra a boca desdentada e se arreganha pedindo ou furtando pelas calçadas. São famílias pouco família; as crianças cheiram cola e fumam logo cedo e os mais velhos pedem, roubam, exigem, xingam. Há tropelias, correrias, gritarias e ninguém está brincando de pega-ladrão. (1995, p. 32).

Os “tempos piorados” notados pelo cronista são sintetizados pela

expressão, comum em seus textos, de que a miséria substituiu a pobreza. Esta

expressão condensa a ideia da passagem de uma exclusão social nas cidades

ainda incipiente, fruto de um país, até meados do século XX, majoritariamente

rural, até a explosão da população urbana entre as décadas de 1960 e 1970. A

pobreza do antigo ambiente periférico passa agora a se misturar à vida do

asfalto, um compartilhamento de espaço físico que, no entanto, não esconde a

divisão social de fundo, lastreada na desigualdade já histórica. A questão,

porém, não é apenas a da existência de ambientes precários e da existência da

pobreza, mas de um tipo de pobreza que não mais se enquadra na

sociabilidade antiga, de caráter familiar e rural – à qual se volta de maneira

nostálgica, evocando, em seus textos, lembranças de infância. Assim, em

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“Morro da Geada”, texto memorialístico, datado de 1988, e que abre o livro

Zicartola, afirma o narrador-cronista:

No morro éramos rurais. Batíamos café e amendoim no pilão, fazíamos nossa paçoca e nosso quentão com gengibre, nas festas de junho. Gostávamos da mandioca frita, o aipim, do pinhão assado, do cuscuz paulista que aprendêramos a comer no morro. Nosso curau. [...] Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela miséria dos morros pobres como o da Geada. Tínhamos um par de sapatos para o domingo. Só. A semana tocada de tamancos ou de pés no chão. [...] Nenhum de nós sabia dizer a palavra solidariedade. Mas a casa de outro tio, o nosso tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros, e estou certo que o nosso coração era simples, espichado e melhor. Não desandávamos a reclamar da vida, não nos hostilizávamos feito possessos, tocávamos a pé pra baixo e pra cima e quando um se encontrava com o outro, a gente não dizia: ‘oi!’. A gente se salvava, largo e profundo: – Ô, batuta! (2007, p. 20-22).

A vivência que João Antônio identifica como autêntica é buscada num

passado idílico, no qual, mesmo marcado pela pobreza, havia, segundo o

cronista, a possibilidade de um viver ainda não contaminado pela vida na urbe

moderna. Uma forma de combinação, portanto, da vida rural e a vida de uma

cidade que ainda não formara, de todo, a vivência no anonimato e na

competição brutais.

A situação narrada na pequena crônica intitulada “Sem barulho”,

publicada no Jornal do Brasil, em 1993, certamente um dos últimos textos de

teor ficcional escritos por João Antônio,4 dá conta desse novo aspecto da

miséria brasileira depois do inchaço das metrópoles. O assunto é bastante

simples, e já trabalhado por João Antônio em outras ocasiões: trata-se da

morte de um homem miserável, ocorrida, neste caso, na rodoviária do Rio de

Janeiro. Sua morte não apenas não é notada, como se trataria de um

incômodo ante os olhos bestializados das demais pessoas, para as quais a

vida ou a morte de um pobre são indiferentes.

4 A crônica foi publicada no Jornal do Brasil, em setembro de 1993, edição na qual havia um dossiê especial intitulado “A cultura contra a fome”, com a participação de outros escritores e intelectuais, como Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, Fernando Sabino, Darcy Ribeiro e Betinho, entre outros.

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Então, um homem morreu de fome na estação de ônibus. Um brasileiro como tantos, alagoano, pouquinho mais de cinquenta anos de magreza áspera, na Rodoviária do Rio de Janeiro. Um dos molambos da área, dos que costumam baixar cedinho à rodô e acabam, pela presença, velhos conhecidos da indiferença. Passa, sujo, caquerado, pelos funcionários, esbarra nos homens da Polícia Militar, atrapalha o conforto relativo e o bem-estar dos passageiros à espera dos ônibus interestaduais. Cedo. Veio trêmulo, troncho, o saco de farinha imundo e quase vazio às costas. Arriou na poltrona e sofreu quieto, a cabeça bandeou e pendeu um tanto para a esquerda e endureceu. De todo. Ali apagou sem barulho. Tempo correu, alguém se encabulou com aquele corpo imóvel e continuado. Foi tocado. E deram com o morto. Descobriram-se coisas no saco imundo. Um nome na carteira profissional. Inútil, não tinha trabalho ou patrão. Tinha morrido à míngua, só feito Job. Sua sujeira e sua solidão eram de causar nojo. Veio alguém com um saco de lixo, plástico preto. Um outro arranjou, cobriu o corpo da cintura para cima. Nem foi preciso que descruzassem os pés pretos dentro da sandália fuleira. Assim, o morto de fome, ensacado da cintura para cima, já não incomodava. Os outros puderam, em paz, cruzar as pernas, ler, conversar, ir e vir, enquanto esperavam o ônibus. Ele já não perturbava sequer a visão e a pressa da rodoviária, segunda grande do país. Um Raimundo, descobriu a polícia. Com certeza nada ouviu ou soube ao redor da palavra solidariedade. Sujo, só alterava um pouco; depois, morreu de fome sem barulho. Também não fez barulho depois de morto – não teve quem lhe reclamasse o corpo. Raimundo, solteiro ou casado, morreu como nem os cachorros morrem na cidade. Passou. A cidade tem litoral rico e terra tão fecunda forneceria três colheitas todo ano, milho e feijão. A firme Bolsa de Valores do país, a poderosa emissora de televisão, o segundo produtor industrial do Brasil, o Carnaval, maior festa popular do mundo, tem raio laser, computadores magníficos, infalíveis, uma ponte tão bonita e grande atravessa a baía. A cidade com alguns milhões de pessoas, chamada de muito heroica e gentil (1993, p. 7).

A crônica, citada quase integralmente, representa a situação de

anonímia e indiferença que reside na população da grande metrópole,

brutalizada por um dia-a-dia e uma forma de vida que proscrevem a

solidariedade e o reconhecimento do próximo enquanto indivíduo. O texto,

narrado a partir de um distanciamento enviesado, parece refletir o tom de fato

corriqueiro e sem consequências, para o qual a vida de um homem valeria

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menos que a de um animal morto. O efeito de choque, portanto, não está

apenas no fato narrado, mas no distanciamento simulado no qual é expresso,

em consonância à indiferença dos demais personagens quanto à situação, o

que sugere situação brutalizada característica do homem na metrópole.

Tampouco o morto chama a atenção: morre sem barulho, sem despertar

interesse de quem quer que fosse. A ironia final é bastante típica da obra de

João Antônio, de temperamento literário afeito aos contrastes, em especial os

que colocam lado a lado a riqueza e a miséria, sem comunicação possível. O

Rio de Janeiro, rico, fértil e possuidor de riqueza cultural popular, seria o

mesmo ambiente no qual a miséria não apenas ‒ ou exatamente ‒ convive

com a fartura, mas a ela é invisível. É interessante notar que a situação lembra

bastante o conto “Bruaca”, de Dedo-duro, que possui assunto semelhante, ao

narrar a morte solitária do mendigo cambaio que intitula o texto. Neste, porém,

a morte do personagem, sentado em uma cadeira, com “[...] as pernas

cruzadas, os braços estendidos[...]”, “[...] lhe dão a panca de rei.” (2012, p.

389). Nada mais distante do Raimundo de “Sem barulho”: não há mais lugar

para entronizar a pobreza, nos novos tempos. A miséria que substitui a

pobreza, portanto, não é para João Antônio apenas a degradação material das

condições de vida de certas camadas da população brasileira; mas a perda de

certa vivência tradicional, aliás identificada, nessa perspectiva, com a

sociabilidade autêntica nacional, que encontrava guarida nas camadas

populares, no povo brasileiro. A favela carioca, por exemplo, é sempre

destacada por João Antônio como o “[...] lugar onde mais se canta no Rio de

Janeiro. Razão haverá, apesar do miserê.” (1978, p. 25). Nesse sentido, pode-

se perceber em João Antônio a manutenção da mesma posição exercida

durante toda a sua obra no tocante ao empenho por um projeto nacional de

base popular, fato que, do combate mais encarniçado da década de 1970,

passa a adotar tons nostálgicos e lamentosos pela perda da própria identidade

na qual projetava a utopia anterior. O país mudou, e os sonhos foram postos

em suspenso.

A nova face da miséria brasileira seria, pois, para João Antônio, o

caminho de uma desestabilização da identidade nacional. A antiga aliança,

muito comum na intelectualidade brasileira, entre intelectual empenhado e povo

– ainda que ela tenha sempre se tratado mais de horizonte que prática efetiva

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de comunhão de interesses – se esfuma a partir das últimas décadas do século

XX. Após a ditadura militar brasileira, o que resta é o antigo divórcio entre elites

e as classes subalternas, sem que haja mais um pensamento ou política de

vulto relativos à construção nacional que o proponha superar. A década de

1970, auge da trajetória de João Antônio, foi justamente o último suspiro de tal

projeto: desaparecida a oposição dos intelectuais à ditadura, parece se

obliterar, com ela, a própria crença em uma sociedade democrática. A miséria,

pois, estoura em competição, brutalidade urbana, trânsito e trabalho precários;

uma piora do antigo quadro de desigualdade, de novos e indesejados efeitos. A

violência urbana, por exemplo, um dos temas constantes de João Antônio,

ganha novas tintas, num quadro que representa uma absorção pelo próprio

crime da lógica do capitalismo periférico. Como afirma Rodrigo Lacerda:

[...] o submundo que [João Antônio] conhecera na juventude e no início da vida adulta foi se deteriorando, a ponto de provocar nele próprio um dilacerante estranhamento. Os marginais à moda antiga, de sapato e terno brancos, que ele idealizava e nos quais apontara, via literatura, uma graça e uma grandeza antes desconhecidas, foram sendo substituídos pelos criminosos urbanos que conhecemos hoje, impermeáveis a qualquer romantização. O tempo em que criminalidade e boêmia artística conviviam foi acabando, um fosso se abriu entre os dois mundos. (2007, p. 12).

A criminalidade, em seus primeiros textos, expressa por meio da

representação da malandragem urbana, dá lugar, na obra de João Antônio, de

modo progressivo a partir da década de 1970, à criminalidade de novo tipo,

que, a rigor, não apresentará em sua literatura. Embora possa ser notada uma

maior densidade ao trabalhar os marginais urbanos, partindo do cotejo entre

Malagueta, Perus e Bacanaço, até Abraçado ao meu rancor, passando por

Dedo-duro e Leão-de-chácara, João Antônio não abandona de todo o interesse

empático por essa figura do submundo das grandes cidades, fato que impede a

avaliação deste novo tipo de criminalidade, afeito mais ao cálculo empresarial

que à mera sobrevivência, não obstante também produto da mesma situação

de pobreza material. Como lembra Berthold Zilly, João Antônio, por um lado,

desmistifica o malandro, ao tratá-lo como um pobre às voltas com a

sobrevivência – basta lembrar o fracasso dos personagens do conto

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“Malagueta, Perus e Bacanaço”, que terminam a ronda dos bares sem dinheiro,

pedindo “[...] três cafés fiados.” (2012, p. 181). Porém, por outro, ao mesmo

tempo em que empreende a desmistificação, acaba por mitificá-lo, devido à

adesão à figura popular representada (ZILLY, 2000, p. 183) – e, possivelmente,

também por conta da linguagem distante de um realismo cru à Rubem

Fonseca. Embora tenha reconhecido, já na década de 1970, que a ideia de

malandro estaria ligada estreitamente a uma mistificação da vivência das

classes populares brasileiras, não é possível dizer que João Antônio tenha, ao

longo de sua trajetória, se livrado de certa idealização do povo, ao qual

pretendia dedicar sua produção. Chega a afirmar, em meados daquela década,

que

[...] não existe malandro. Embora eu tenha usado isso em ‘Malagueta’ e em ‘Leão-de-chácara’ eu use menos, daqui pra frente vou usar cada vez menos. Realmente, não existe o malandro, existe é o merduncho, entende, que é um pingente urbano, um sobrevivente em péssimas condições. (O (SUB) MUNDO DE JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 17).

Trata-se, nesta entrevista de 1975, de um período no qual seu projeto

literário dá uma guinada em favor da integração entre jornalismo e literatura,

intensificando a sua proposta de representação da realidade em nome de um

empenho para a figuração dos problemas brasileiros, na forma de protesto –

questões levantadas no ensaio-manifesto “Corpo-a-corpo com a vida”. Mesmo

assim, haverá manutenção de determinadas posições pelo autor, como a

valorização do povo brasileiro e sua filiação a um projeto nacional sustentado

pela literatura, o que, frente à debacle dos anos 1980 em diante, determina, em

certo sentido, o seu progressivo afastamento do meio literário e o aparente

esgotamento de sua veia ficcional. O escritor, depois de 1986, ano de

Abraçado ao meu rancor, se concentrará sobretudo na crônica, na retomada

dos perfis de personagens brasileiras ‒ os quais sempre produziu em sua

trajetória nos periódicos, desde a década de 1960 ‒ e, enfim, na reedição de

seus textos, muitos já aparecidos na imprensa ou mesmo em livro. Trata-se de

uma perceptível inadequação frente à nova realidade do país, o que o motiva a

procurar novas formas de intervenção e de continuidade de sua produção. A

ficção de João Antônio parece ser avessa à nova realidade brasileira: seus

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antigos personagens mudaram de figura e o espaço da cidade, agora inóspito e

intolerável, torna-se estranho ao seu feitio de narrador-andejo. Em suma, a

ilusão que sustentara a identidade nacional e o projeto de país parece perder a

força, e a força da literatura de João Antônio parece suplantada por outros tipos

de narrativas, que já abrem espaço para a estetização da violência e do caos

urbano brasileiro.

Em algumas crônicas da década de 1990, João Antônio apresenta o

novo tipo de crime urbano como um dos elementos-chave da degradação

urbana no final do século. Em "Rio: a arrepiante república da violência”,

publicado em 1994, o autor liga a nova criminalidade à situação social do país,

do qual a cidade do Rio de Janeiro seria apenas um microcosmo, ponto de

confluência e de maior exposição desta mudança na sociedade brasileira:

A violência está solta nas ruas, nos sinais de trânsito, ao pé dos morros e lá em cima mais ainda. A violência está dentro das conduções coletivas a partir do modo como se dirige uma condução coletiva no Rio de Janeiro. A violência começa no chão, onde, em pleno Centro da cidade, o calçamento de pedrinhas portuguesas vai esburacado por completo. Com ou sem inflação (visível) de dois dígitos, a luta brava da cidade segue com violência. A violência pula para as primeiras páginas dos jornais, grita nas revistas, se expõe no quadrilátero iluminado das televisões e chega às capas dos livros. A violência não é do Rio: é do país. Brasília, Recife, Porto Alegre, Salvador, São Paulo... a violência se repete. Tanto e a tal ponto que falar de violência, sem análise, já é uma violência. A pura e simples exposição da violência já é violência. Polícia corrupta e ladrões ou traficantes se confundem numa espécie de exposição pública de um novo ‘poder’: a violência. Todos ou quase todos os nossos conhecidos, amigos e parentes já foram assaltados ou nós mesmos o fomos. E nos morros a situação piora, há barricadas para se entrar. Entrar ou não, dependendo das ordens do chefe do tráfico de drogas do morro. Um poder paralelo estabelece os regulamentos: é preciso obedecê-lo, pois, sem o seu aval, não se sobe o morro. E, menos ainda, se desce. (1994a, s. p.).

A nova forma de violência na sociedade brasileira, para João Antônio,

estaria ligada a uma situação mais fundamental, que é a brutalização dos

costumes como um todo. Trata-se, assim, não apenas de novas formas de

crime, mas partes do mesmo fenômeno de um país no qual, em suas palavras,

a miséria substituiu a pobreza: a nova criminalidade é tão filha dos novos

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tempos quanto a negação dos direitos de cidadania, a pressão econômica, o

desrespeito com o espaço público, etc. No caso da criminalidade, porém, outro

fator chama a atenção do cronista, que é a particularidade das facções

criminais, grupos armados que substituem o Estado e fazem justiça e negócios

a seu próprio arbítrio. A mesma crônica discorre sobre o Comando Vermelho,

facção criminosa carioca, cujo despontar se liga ao período da última ditadura

e, no presente, faz “[...] parelha com a impunidade, [com o] inchaço da

superpopulação e [...] na barriga de uma crise econômica.” (1994, s. p.).

Estamos distantes, como se vê, do pequeno marginal urbano de um conto

como “Frio”, do livro de estreia de João Antônio; o tráfico, em fins do século,

possui outra dinâmica, a qual João Antônio não pôde expressar em ficção,

deixando para a forma mais aberta da crônica sua mirada sobre este dado da

sociedade brasileira. O Comando Vermelho, assim,

[...] saltou para o cinema e a tevê, mostrando num arreganho a muita gente o que a nossa sociedade não quer ver e cuspiu os resultados de um sistema social e penitenciário ultrapassado ainda mais depois da estupidez da ditadura de 1964. Comando Vermelho e outros comandos mais sujos que ele não passam de filhotes monstruosos de uma sociedade e da brutalidade de uma ditadura com uma repressão que humilhou e deformou todos os valores. Dentro das cadeias, ainda pior. Ditaduras têm apetite para lotar presídios, misturando condenados com gente sem culpa formada. E em nome de uma ordem e de um ismo qualquer que só não é humanismo. Os adjetivos ou cognatos que se queiram jogar à ousadia dos comandos caem por terra. Afinal, o Rio, como o país, não é goyesco, dantesco ou buñuelesco. É nacional, original e arrepiante. [...] Difícil, pois, julgar o bicho ou o tal CV que fatura bilhões por ano, mapeia o domínio de mais de três dezenas de morros, apronta ousadias cinematográficas e tem um lema aparentemente sarcástico ou debochado – Paz, Justiça e Liberdade – sempre presente nas suas cartas e comunicação. Três palavras de peso e valor tão incomparáveis com o nosso estado de miséria. (1994a, s. p.).

João Antônio, portanto, liga o fenômeno da nova criminalidade,

corporificada em facções, à própria atuação de um Estado autoritário, cujos

vícios ainda determinam sua ineficácia em lidar com a violência urbana – à

parte sua sanha punitiva. Se, por um lado, a criminalidade oprime o cidadão, o

país também é sangrado pelo “ex-primeiríssimo escalão”, o que a crônica

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sustenta enumerando escândalos de corrupção que marcaram o início dos

anos 1990 no Brasil. Isto é, João Antônio entende e retrata o Brasil em suas

crônicas em uma perspectiva que se quer totalizante: violência generalizada,

desigualdade, inchaço urbano e um Estado corrupto e ineficaz são fenômenos

diversos de um mesmo estado de precariedade. Trata-se, esse momento, de

uma situação difícil para a produção de João Antônio: é um período de sua

trajetória no qual ele escreve pouca ficção à sua antiga maneira, como os

contos que o consagraram como escritor, voltando-se para a crônica, que lhe

permite abordar aberta e criticamente os problemas que identifica no país. Se

na década de 1970 deu bastante ênfase à reportagem, que dialoga e mesmo

passa a colonizar sua produção ficcional posterior, nos últimos anos de sua

produção, permanecendo nos periódicos, dá maior ênfase à crônica. Talvez

essa seja uma saída que o escritor tenha vislumbrado, ante uma possível

incapacidade de lidar com a nova situação social brasileira nos moldes com os

quais operava. “Abraçado ao meu rancor”, conto e livro, parecem ser os últimos

respiros do ficcionista, que, perdendo o contato com um Brasil que já não é

seu, procura outras linguagens por meio das quais tenta dar vazão à sua

perspectiva crítica.

Essa dimensão da obra de João Antônio, porém, expõe os mesmos

parâmetros pelos quais entende a sociedade brasileira e sua cultura, isto é, as

concepções que possui sobre o seu tão valorizado povo. Além da angústia com

a situação precária das classes subalternas, volta também, em fins de sua

obra, à crítica ao poder político, mantendo, de certo modo, a linha de seus

escritos da década de 1970. O que importa e é interessante em partes pouco

conhecidas de sua trajetória, como o é a sua produção da década de 1990, é o

caráter visceral de um acompanhamento da realidade brasileira que veio

exercendo em múltiplas formas. A ficção parece ter ficado em segundo plano,

afora breves lampejos, o que torna o caso ainda mais digno de ser

compreendido, na forma de uma espécie tragédia em seu projeto literário –

tragédia que é, de qualquer modo, a do próprio país ao qual se devotou.

Nesse sentido, uma de suas crônicas da década de 1990 é uma mistura

de agonia e utopia na construção de um país que ainda não encontrara seu

termo, uma sociedade moderna e democrática e mais igualitária; trata-se da

crônica publicada no Jornal do Brasil, em 1994, intitulada “Em janeiro

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sonhamos” (1994b). Nela, uma resposta a uma pergunta proposta pelo diário

frente à eleição de Fernando Henrique Cardoso,5 segundo presidente eleito

pelo voto popular desde a redemocratização pós-ditadura – o primeiro,

Fernando Collor, havia sido impedido pelo Congresso –, João Antônio traça

uma espécie de irônica utopia sobre o acontecimento, destacando as

possibilidades sempre perdidas de redenção social do país, que sabia não

estarem certamente sendo gestadas pelo futuro governo a assumir em janeiro

do ano seguinte. Trata-se de um texto de ilusões perdidas, antes mesmo do

acontecimento futuro, dada a perene sensação de déjà vu no tocante à

insolubilidade dos problemas sociais brasileiros, no que tange à atuação do

Estado.

Vamos dizer. No país das seis letras diferentes surgirá... Já que estamos no terreno do imponderável, é possível que se levante uma bandeira alta e de abrangência nacional, tendo a inscrição: NENHUMA MISÉRIA SERÁ BELA. Seria possível se não tivéssemos um governo de eminências pardas ou traidores vitoriosos. Então, se diria que só os preguiçosos não colaborariam. Assim. Nenhuma ansiedade, desesperança ou tensão baixarão sobre nós. E como o nosso país esteja pronto a voltar a crescer, excelerá. Também aí seremos exagerados, como sempre. Faz parte do nosso tipo de esplendor. E cresceremos sem aparar arestas. (...) Varreremos do mapa, num golpe, todo o Absolutismo do Estado. A partir de primeiro de janeiro de 1995, com um emendão só, o governo há de ser um instrumento da sociedade ou, melhormente, um organismo que resolverá os problemas. E não, como até agora, um criador de problemas e de nós dramáticos. Para além de não equacionar as questões sociais, sequer resolve as dele. Nesse emendão único resolveremos, logo no primeiro mês, a reforma agrária. O que não fizemos em cem anos de república, faremos num mês. As cidades se desincharão, multidões tornarão ao campo e a Favela da Rocinha, exemplo maior, ficará tão desabrigada a ponto de motivar o reflorestamento, de toda a área e recompor aquela faixa da Mata Atlântica, hoje careca e espetada de barracos e de alguma alvenaria. A chave, tão simples, atingirá o genial: o estado vai arrecadar direito. E os ricos passarão a pagar impostos, sem falcatruas, e sobretudo os atrasados. Assim, num golpe de mão, teremos

5 O outro texto deste inquérito – “Que tipo de exercício literário a eleição de Fernando Henrique Cardoso é capaz de inspirar?” – é de João Gilberto Noll, intitulado “O confronto silencioso”.

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usineiros pobres no nordeste e nenhum excesso cosmético no balanço dos bancos do sul. Efeito em espiral. Esse, só o começo. (1994b, p. 1).

Trata-se de uma utopia pelo avesso, denunciada pelo uso de uma

amarga ironia durante todo o texto. A solução de todos os problemas nacionais

pela volta da democracia não é mais algo factível depois de quase dez anos de

permanência de antigos vícios e de velhos problemas do país. A eleição de um

novo presidente, que motiva a renovação das esperanças, é pensada

amargamente, com o texto se colocando de antemão como sabedor do novo

fracasso a vir. Os exageros, assim, na solução de todos os problemas do país

por meio de um “emendão”, é parte de uma estratégia crítica do cronista, que

se coloca contra um pretenso caráter saneador do Estado – a contrapelo,

sugere que toda ação do Estado apenas aumenta a distância entre ele e a

sociedade, em vez de a diminuir. O poder político, assim, é pensado por João

Antônio como parte integrante, certamente o maior, de toda uma série de

problemas nacionais, que vão da miséria ao crescimento desordenado das

cidades, da ausência de solidariedade social à criminalidade onipresente. São

novos tempos, nos quais ocorrem um misto de permanência dos problemas e

perda progressiva das antigas vantagens que distinguia enquanto

particularidades positivas nacionais; um tempo, em suma, que não é mais seu.

Nesses tempos sombrios, contudo, ainda mantém um tênue fio de esperança

que expressa, na produção da última década de sua trajetória, na farta

utilização de uma citação de um trecho de crônica de Machado de Assis: “O

país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é

caricato e burlesco.” (1994b, p. 12). O povo, assim, e não os governos, o poder

ou as elites nacionais, permanece como o guardião de certa possibilidade de

regeneração brasileira, a despeito da situação de precariedade presente.6

6 Em uma de suas últimas entrevistas, João Antônio afirma, em resposta à “[...] ideia neoliberal de que a pobreza é mera inadaptação”: “Eu acho que a grande incompetência está nos governos, e não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo. Ninguém gosta de ser camelô, ninguém gosta de ser contrabandista. Ninguém gosta de fazer trottoir, porque não é fácil viver neste tipo de marginalidade. Estas pessoas fazem isso porque nossos governos, junto com nossas sociedades, não foram capazes de dar condições de educação a esse pessoal. Se nós não formos capazes de fazer uma reforma agrária, se deixamos que a nossa pólis inchasse, se permitimos que o Rio de Janeiro tivesse mais de 300 favelas, não venham os senhores economistas dizer que esse povo é incompetente. Incompetentes são eles.” (CORDOVIL, 1996, s. p.).

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João Antônio, a despeito de todos os males pelos quais o Brasil passava

na década de 1990, ainda sustenta a crença em uma possibilidade de

reconstrução, dadas as particularidades identitárias que valoriza no país –

todas elas, de caráter popular, ligadas ao andar de baixo. Trata-se da força

motriz de seu programa literário, uma relação com o projeto nacional que teima

em não abandonar. Assim, se em sua obra tardia podem ser flagradas alguma

lamentação e certa postura agônica em relação ao presente, a nostalgia de um

espaço e de uma utopia perdidas no processo da modernização conservadora

brasileira, não é também possível esquecer seu interesse empático pelas

classes populares, o respeito pelas figuras culturais de tope do país, a crença

na possibilidade de construção de uma nova sociedade, a partir de suas

peculiaridades de base. João Antônio é, assim, um dos últimos representantes

intelectuais cuja obra é devotada a pensar o país na perspectiva de uma

formação nacional, que parece abortada nos últimos anos do século XX, fato

pelo qual muito provavelmente lhe foi cobrado certo degredo do meio cultural

do momento. João Antônio já não pertencia àquele tempo, mas morrera

acreditando que “somos capazes de uma alegria ainda única no planeta Terra”,

e, também, que “[...] o Sol não demora a voltar.” (1991, p, 50).

Setembro de 2016

Nota: Esse texto teve por motivo a palestra homônima apresentada no Encontro João Antônio, promovido pelo Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da UNESP-Assis, e visava oferecer um panorama do projeto literário do autor, em especial o painel do país que, através de sua produção, se desenha. Nesse sentido, agradeço ao CEDAP pelo convite para a apresentação, além da receptividade e valioso auxílio nas pesquisas que venho desenvolvendo no Fundo João Antônio sobre a obra do autor. Agradeço, ainda, à pesquisadora Clara Ávila Ornellas que, provavelmente sem o saber, ofereceu em conversas informais muito do que está aqui presente, em especial por ter chamado a atenção sobre a importância dos textos tardios do escritor, aqui destacados.

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2

Mário de Andrade e João Antônio, leitores de Graciliano Ramos

Clara Ávila Ornellas

Universidade Estadual Paulista/Assis

Na pesquisa de pós-doutorado, intitulada “Do leitor ao escritor: estudo

sobre a marginália de João Antônio”, desenvolvida na UNESP-Assis/FAPESP,

no período de 2009 a 2011, e sob a supervisão da professora Ana Maria

Domingues de Oliveira, estudou-se três obras pertencentes à biblioteca

pessoal do escritor João Antônio, localizada no CEDAP/UNESP-Assis, a saber:

São Bernardo, de Graciliano Ramos, Noturno da Lapa, de Luís Martins e “O

simples coronel Madureira”, de Marques Rebelo.

Focalizou-se principalmente três diferentes manifestações do

leitor/escritor: admiração (São Bernardo), oposição (Noturno da Lapa) e

intervenção (“O simples coronel Madureira”). Entre outros aspectos, atentou-se

para as possíveis interações entre a marginália de João Antônio, realizada na

intimidade de sua condição de leitor, com suas entrevistas para imprensa,

quando assume socialmente sua condição de escritor. Verificou-se, por

exemplo, em que medida as suas manifestações de leituras coincidem ou não

com as suas falas para a imprensa.

Se a admiração confessa por Graciliano Ramos apresenta-se de

maneira frequente em suas entrevistas, observou-se que semelhante

posicionamento também se manifesta em sua leitura de São Bernardo. Por

outro lado, constatou-se que o desagrado evidente registrado em sua

marginália na obra Noturno da Lapa se evidencia nas entrevistas em razão do

seu silenciamento sobre Luís Martins. Em termos da produção de Marques

Rebelo, que o leitor tanto admira quanto critica em sua marginália, verificou-se

uma recepção positiva em suas falas para a imprensa, embora de maneira

mais reservada e menos frequente da que ocorre a respeito de Graciliano

Ramos.

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Além do estudo exaustivo da marginália em si, a pesquisa desdobrou-se

em outras três abordagens: “Leitores em evidência dialógica”, que tratou da

interação entre os pontos de vista de Mário de Andrade e João Antônio em

relação às produções de Luís Martins, Graciliano Ramos e Marques Rebelo,

“Uma memória apesar de si mesmo”, na qual foram depreendidos elementos

de correlações entre a poética de Noel Rosa e a produção do autor paulistano

e, por fim, “Dois Paulos”, tópico dedicado ao levantamento de semelhanças e

diferenças entre São Bernardo e “Paulinho Perna Torta”, de João Antônio.

O enfoque do presente artigo centra-se em parte dos resultados

desenvolvidos no segmento intitulado “Leitores em evidência dialógica”,

particularmente no que se refere às manifestações de leitura de Mário de

Andrade em relação à escrita de Graciliano Ramos e suas correlações com

aspectos da recepção de João Antônio enquanto leitor de São Bernardo.

Leitores em evidência dialógica

Durante a pesquisa, graças ao acesso à dissertação de Neusa Simões,

Estudando a marginália: Mário de Andrade e a ficção brasileira: 1920-1944

(1980), constatou-se semelhanças importantes entre as apreensões de leituras

de João Antônio e Mário de Andrade. Embora eles tenham sido escritores

pertencentes a diferentes décadas do século XX, manifestaram-se

proximamente em relação às escritas de Luís Martins, Marques Rebelo e

Graciliano Ramos – atentando-se aqui particularmente às anotações de leituras

relativas ao autor alagoano.

A respeito de Graciliano Ramos, João Antônio realizou 110 anotações

de leitura em São Bernardo assim subdividas: 31 de cunho ortográfico, 76

registros sob a forma de sublinhas ou traços verticais às margens esquerda

e/ou direita, sem manuscritos, e 3 ocorrências de notas marginais7.

Considerou-se sua postura como de admiração levando-se em conta suas

assertivas sempre positivas ou até mesmo efusivas em relação ao escritor

alagoano presentes em entrevistas. Dessa maneira, pôde-se inferir que suas

1 A análise mais detalhada deste segmento da pesquisa foi publicada em texto anterior: ORNELLAS, Clara. “Diálogos de João Antônio com a escrita de Graciliano Ramos”. In: PRETOV, Petar; SOUSA, Pedro; SAMARTIN, Roberto; FEIJÓ, Elias. (Org.). Avanços em literatura e cultura brasileiras: Século XX. Vol. 1. Santiago de Compostela-Faro: Através Editora, 2012, vol. 1, p. 63-81.

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manifestações diante desta escrita poderia lembrar uma proximidade da

relação entre um “discípulo” para com seu “mestre”, sempre salvaguardando as

particularidades de cada um deles. Torna-se interessante também identificar as

características de leitura de outras obras de Graciliano Ramos presentes na

biblioteca do autor de Dedo-Duro.

Se a marginália de João Antônio em São Bernardo se caracteriza

principalmente pelo registro de sublinhas, não é diferente ao que ocorre no

volume de Viventes das Alagoas (1962) pertencente à sua biblioteca. Neste, há

um grande número de sublinhas que diferem da primeira apenas por

compreender longos trechos de passagens demarcadas. Além disso, existe

também marginália apensa8. Essencialmente, São Bernardo e Viventes das

Alagoas: quadros e costumes do Nordeste são as duas obras de Graciliano

Ramos pertencentes a João Antônio mais representativas em termos de

marginália. E ambas se caracterizam pelo viés da admiração silenciosa.

Em termos quantitativos, observa-se a presença de registros em outras

obras do autor alagoano, porém, secundariamente em relação às duas

principais. Destacam-se Alexandre e outros Heróis (1971), Insônia (1953) e

Vidas Secas (s/d) com alguma marginália apensa ou manuscritos de correção

ortográfica. Além de outras produções de Graciliano Ramos sem qualquer tipo

de registro: Infância (1953), Memórias do Cárcere (1954), Memórias do

cárcere, 4º volume, (1954) e Vidas Secas (1953). Há ainda uma coletânea de

contos de vários autores – Coleção Para Gostar de Ler (Editora Ática,1983) –,

incluindo o escritor alagoano, que possui uma marginália. Por último, é

necessário atentar para a existência de coletânea de correspondência

(Graciliano Ramos – Cartas, 1983), biografia (Graciliano Ramos – Coleção

Literatura Comentada, Abril Cultural, 1981) e seleta de ensaios (Homenagem a

Graciliano Ramos, 1943). Nesta última, há uma sublinha e uma marginália

apensa. Nas duas primeiras constata-se a existência de marginália apensa. Na

biografia há manuscritos de cunho ortográfico.

8A expressão marginália apensa é aqui empregada conforme define Telê Ancona Lopez: “O termo marginália, emprestado do latim, designa o conjunto das notas que os leitores introduzem nas margens e entrelinhas das páginas, no verso das capas ou nas folhas de guarda dos livros ou em periódicos sobre os quais se inclinam, anotações as quais, muitas vezes, se prolongam em folhas manuscritas, recortes de jornais ou revistas, postos no interior dos volumes. Na marginália apensa, como a denomino”. (LOPEZ, 2007, p. 33).

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Esses títulos atestam e reiteram o inegável interesse de João Antônio

pela obra de Graciliano Ramos. Considerando que, desde a adolescência, ele

nutriu paixão pela escrita do autor alagoano, observar a presença desses livros

em sua biblioteca permite constatar que sua admiração perpetuou-se até o fim

de sua vida. A presença de obras não ficcionais atesta também o propósito de

tomar conhecimento de produções críticas relacionadas ao escritor.

É interessante atentar que as obras mais representativas em termos de

marginália, São Bernardo e Viventes das Alagoas, são de gêneros diferentes. A

primeira de cunho ficcional e a segunda de crônicas e ensaios publicados na

revista Cultura Política, entre 1941 e 1944, além de dois relatórios da época em

que o autor alagoano foi prefeito em Palmeira dos Índios. Embora a presença

de técnicas literárias se faça[m] presente[s] nessas crônicas, ressalta-se seu

caráter mais vinculado ao jornalismo. Como o próprio subtítulo indica,Viventes

das Alagoas apresenta panorama dos costumes e da cultura nordestina,

enfatizando as peculiaridades do imaginário desta sociedade em termos

políticos, sociais e humanos.

Permite-se depreender dois campos específicos de interesse de João

Antônio em relação à produção de Graciliano Ramos. No caso de São

Bernardo, verifica-se a presença de marginália voltada ao levantamento de

palavras e expressões caras à linguagem do sertanejo, bem como o enfoque a

elementos de elaboração literária, como construção de personagem e

desenvolvimento temático. Para além da questão do universo de carpintaria

literária, latente nos registros de João Antônio, a apreensão da substância

humana e da visão de mundo que compõem o homem do nordeste sobressai

como elemento incontestável no olhar que ele dirige ao romance. Viventes das

Alagoas, obra póstuma do autor alagoano, incide justamente numa abordagem

mais fincada na representação da cultura nordestina com suas características,

problemas e entraves sociais e políticos.

Dessa maneira, compreende-se como agente modalizador da marginália

de João Antônio a captação e fidedignidade empreitadas por Graciliano na

construção de sua focalização do Nordeste. A vivacidade que o nordestino

assume em sua escrita, pode-se dizer, é a maior responsável pelas

manifestações do leitor/escritor paulistano. Não é o nordestino “de Graciliano

Ramos” que assoma em sua escrita, mas o nordestino real, com todas as suas

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ingerências de comportamento e pensamento. Nas “trilhas” de seu “mestre”, o

autor paulistano trouxe para seu espaço estético o malandro dos grandes

centros urbanos também com as suas peculiaridades linguísticas e

comportamentais. Ao trabalhar em função de eximir-se, o máximo possível, de

instituir uma visão limitada ao seu próprio ponto de vista sobre os personagens

que focaliza, ele conquistou a longevidade de suas criações estéticas. Tão

atuais continuam sendo os malandros representados em sua obra quanto os

sertanejos compostos pelo autor alagoano.

A presença de obras de Graciliano Ramos na biblioteca pessoal de

Mário de Andrade, integrante do acervo da Biblioteca IEB-USP, abrange cinco

títulos: Cahetés (1933), Angústia (1936), Vidas Secas (1938 – dois exemplares)

e A terra dos meninos pelados (1939). Certamente, não fosse a morte

prematura do leitor/escritor no ano de 1945, outros títulos estariam presentes,

devido à sua admiração pela escrita do autor alagoano. Isso se confirma nas

duas obras que possuem marginália, Angústia e um dos exemplares de Vidas

Secas. Na primeira, observam-se três ocorrências de levantamento de palavras

e expressões, além de um registro de correção ortográfica. Em Vidas Secas,

constata-se o mesmo tipo de interesse, incluindo pontos de exclamação que

explicitam de forma mais direta a admiração do leitor/escritor.

De uma maneira geral, essas manifestações de Mário de Andrade

incidem em manifestações positivas que permitem depreender recepções

diferentes da proeminência de seus registros efetuados no romance Fazenda:

drama da decadência do café (1940), de Luís Martins9, principalmente no que

tange à ausência de posicionamentos críticos negativos em termos formais e

composicionais. Embora se encontrem no exemplar lido pelo leitor/escritor

sinais sem manuscritos, a perspectiva central da recepção de Fazenda centra-

se no viés de oposição.

No caso dos dois romances de Graciliano Ramos representativos em

termos de marginália, a característica principal se localiza no levantamento de

palavras ou expressões e no emprego de exclamações. O silêncio do

leitor/escritor diante do autor alagoano em contrapartida com suas colocações

9A análise mais detalhada deste segmento da pesquisa foi publicada em texto anterior: ORNELLAS, Clara.“Mário de Andrade e João Antônio: companheiros de marginália”. Revista USP, São Paulo, v. 1, p. 136-146, 2013.

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mais prolongadas presentes na produção de Luís Martins repercute pontos de

vista de Mário de Andrade que permitem entrever possibilidades do lugar

desses autores em relação à sua concepção estética.

Se diante da escrita do escritor carioca localizam-se contestações de

ordem composicional e temática que impedem uma identificação entre leitor e

obra, logo, indiciam-se elementos de sua visão artística sobre o que não é

fazer literário, no caso de seu contato com a elaboração de Graciliano Ramos

essas questões não vêm à tona em razão da diferença estética qualitativa por

ele observada. O fato de silenciar-se diante da elaboração do autor alagoano

demonstra uma transposição de problemas básicos de criação, encaminhando

o fluxo de leitura para manifestações contidas relativas principalmente à

aquisição de conhecimento linguístico do universo da cultura nordestina e

mesmo à captação de momentos onde assomam admiração pelo viés

contundente da escrita de Graciliano Ramos. Assim, depreendem-se dois tipos

de exercícios de carpintaria literária diferentes.

Na marginália em Fazenda, sua concepção artística pode ser entrevista

pelo viés de negação somada aos manuscritos em que trata de questões

relativas aos seus pontos de vista sobre como se deve engendrar a arte

literária – construção de personagem, verossimilhança temática e outros. Nos

registros encontrados nos romances do autor alagoano, o silêncio quase

completo de sua recepção assoma como aspecto revelador de predileção

fundamentada em elementos diversos aos encontrados na recepção de

Fazenda como boa condução temática, assim como enredo criteriosamente

elaborado.

Dessa maneira, detecta-se na recepção de Mário de Andrade a

proeminência de um silêncio responsivo de teor positivo. Para Bakhtin (1992, p.

290), o silêncio ante determinado discurso atesta uma postura de resposta,

ainda que não permeada pela instância verbal explícita. Tendo em vista que o

homem é essencialmente social, sua existência em determinada comunidade já

atesta uma condição dialógica, seja pela formação discursiva da qual faz parte,

seja pela contraposição a alguma outra instância social com a qual discorda.

Os estudos de tipos de utilização do discurso do “outro”, encetados pelo

pensador russo, atestam que tanto se pode utilizar diretamente a referência a

outros enunciados para elaborar determinada tendência discursiva, em

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concordância ou discordância, quanto se pode diluir essa “presença” por meio

do apagamento de referências diretas. No que abrange os atos de leituras de

Mário de Andrade em relação a Graciliano Ramos, verifica-se postura similar

compreendida em ação de concordância “explicitada” via silêncio. É evidente

que nem todo silêncio responsivo envolve necessariamente um posicionamento

de concordância. Porém, ao se tomar como referentes as observações do

leitor/escritor em Fazenda e a falta de alusões ao nome de Luís Martins em

suas publicações para imprensa – o que diferentemente ocorre em relação a

Graciliano Ramos– observa-se que se trata de uma recepção firmada em

admiração.

Admiração silenciosa: Vidas Secas e São Bernardo

As principais características da marginália de Mário de Andrade em

Vidas Secas relacionam-se a sublinhas, breves manuscritos e sinais sem

manuscritos, totalizando seis ocorrências. Procedimento análogo pode ser

verificado nos 110 registros da leitura de São Bernardo realizados por João

Antônio, tendo em vista suas manifestações silenciosas sedimentadas

principalmente em sublinhas de palavras ou expressões e apenas três

manuscritos sucintos. Embora quantitativamente o número de ocorrências seja

discrepante, nota-se que o fundamento da recepção de ambos é

essencialmente similar, revelando manifestações de admiração e

aprendizagem. Em nenhuma de suas demarcações se evidencia fatores

negativos à obra Graciliano Ramos.

Um dos elementos que auxiliam no entendimento do grande número de

ocorrências registradas na leitura de João Antônio, comparativamente as

poucas localizadas em Vidas Secas realizadas por Mário de Andrade, pode ser

apreendido ao se tomar como referente o lugar destes leitores/escritores no

momento de seus atos de leitura aqui focalizados. Considerando-se as datas

das edições lidas por eles, Vidas Secas 1938 e São Bernardo 1964, como

indicativos de reflexão ressaltam-se particularidades que merecem ser

apontadas.

Em 1938, Mário de Andrade já era reconhecido escritor, poeta e crítico

no contexto da crítica literária brasileira. Com mais de 40 anos de idade, este

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leitor/escritor contava com trajetória de excelência tanto em termos de criação

estética quanto em relação aos seus pontos de vista sobre a produção de

outros artistas. Desta maneira, seria possível considerar que, ao ler Vidas

Secas, sua relação se estabelece no patamar figurativo de “mestre” para

“mestre”. Os seus poucos registros na obra do autor alagoano de teor positivo

e a ausência de críticas no condizente à elaboração e à forma do romance

sedimentam a perspectiva de admiração pela produção de alguém muito bom

na urdidura da carpintaria literária.

Pelo seu lado, João Antônio leu São Bernardo pouco depois do

lançamento de sua primeira coletânea de contos10. Em 1964, este leitor/escritor

contava 27 anos de idade e recém se tornara conhecido pelas narrativas de

Malagueta, Perus e Bacanaço publicadas no ano anterior. Desde as suas

primeiras entrevistas, ele reitera a posição singular que Graciliano Ramos

ocupou em sua formação literária. É recorrente em seus enunciados a

proposição de colocar-se sempre como aprendiz diante da escrita do autor

alagoano, desde a adolescência. Neste sentido, salienta-se que o ainda jovem

escritor configura seu ato de leitura do romance de Ramos a partir de um

exercício de carpintaria literária que o auxilia tanto no levantamento de

vocábulos e expressões singulares da linguagem do sertanejo como de

elementos formais na composição de personagens e enredo. Diferentemente

do que se observa em Mário de Andrade, sua recepção se consolida

figurativamente a partir da relação de um “discípulo” ante um “mestre”. Dentro

desta perspectiva, seria natural localizar um número bem maior de registros na

leitura de João Antônio.

A primeira marginália de Mário de Andrade em Vidas Secas incide na

ocorrência de sublinha e breve manuscrito. O contexto deste registro relaciona-

se a um dos momentos em que o protagonista Fabiano, no primeiro capítulo do

livro, sonha com dias melhores diante dos sofrimentos com a seca e a

condição de retirante sem destino juntamente com a sua família. A fome que

assola a todos é suspendida muito temporariamente a partir da ação da cadela

Baleia quando esta consegue caçar um preá. Embora se trate de um alimento

10Tendo em vista o apreço de João Antônio por Graciliano Ramos ter surgido durante a adolescência, é possível considerar que ele tenha lido São Bernardo antes da edição de 1964, contudo, neste texto toma-se como referência o registro escrito de sua leitura relacionado ao exemplar à disposição em seu acervo.

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precário para o sustento de toda a família, evitará a morte iminente. No

momento em que Fabiano segue em busca de água, antes da “refeição”, dá-se

o desenrolar dos seus pensamentos positivos ao mirar o céu e notar algumas

nuvens em torno da lua, despertando-lhe a esperança de chuva. Em seu

devaneio, ele é um vaqueiro forte, seus filhos são gordos e saudáveis e sua

esposa, Sinhá Vitória, uma mulher bonita e com evidentes traços de boa

saúde, como pode se observar no entrecho no qual se encontra o registro do

leitor/escritor.

Eram todos felizes. Sinha Victoria vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Victoria remoçaria, as nadegas bambas de sinha Victoria engrossariam, a roupa encarnada de sinha Victoria provocaria a inveja de outras caboclas. (RAMOS, 1938, p. 17) mulher de encarnado11 [sublinha, cruzeta e manuscrito à margem direita]

Evidencia-se o interesse de Mário de Andrade por uma expressão

caracteristicamente utilizada no Nordeste para definir vestuário de cor forte. A

denominação “encarnada” advém de lusitanismo de uso corrente em Portugal

relacionado à cor vermelha. No espaço onde vivia, São Paulo, dificilmente o

leitor/escritor localizaria este tipo de construção na linguagem cotidiana. Desta

maneira, atesta-se uma das possibilidades de entendimento desta

manifestação do leitor circunscrito à singularidade da expressão observada.

Salienta-se também a objetividade de seu manuscrito que se desprende da

configuração específica da personagem Sinhá Vitória para a contingência geral

de “mulher de encarnado”.

Acredita-se que, à parte da constatação do interesse pela expressão, muito

provavelmente não deve ter escapado a Mário de Andrade, em relação à

passagem transcrita, a excelência da composição de Graciliano Ramos. A

contraposição que Fabiano faz entre a realidade desalentadora de Sinhá Vitória

– cara murcha e nádegas bambas – e o mundo onírico – ramagens e roupa

encarnada – sedimenta apreensão profícua do estado desalentador de sua

esposa. A condição de penúria física sendo suprimida também por intermédio

da roupa de cor forte condiz com arguta sensibilidade quanto à consciência do

11 Todos os registros realizados pelo leitor estão representados em itálico ao final de cada citação.

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protagonista sobre a condição limítrofe que ele e os seus estavam sofrendo.

Donde advém outra possibilidade de interpretação sob a ótica de que “mulher

de encarnado” significaria mulher com carne, ou seja, bem nutrida, robusta e

saudável.

A marginália seguinte também se relaciona ao levantamento de expressão

singular. Neste caso, porém, sem manuscrito. O contexto da passagem na qual

se encontra a ocorrência incide em mais um momento de reflexão de Fabiano,

agora, sobre outro assunto e sem qualquer motivação de sonho. Muito pelo

contrário, trata-se de seu inconformismo pelo fato de ter sido injustamente

surrado por um soldado. Ocorre que, em razão de um jogo de cartas do qual

Fabiano preferiu se retirar por perceber que estava sendo enganado, o

“soldado amarelo” arma uma emboscada no meio do mato para cobrar-lhe a

desfeita. O protagonista apanha sem possibilidade de defesa e essa condição

passiva o leva a repensar suas concepções de governo e justiça, como se

verifica na citação a seguir.

[...] Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violencias, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: ‘Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita’. Mas agora rangia os dentes, soprava. [...] (RAMOS, 1938, p. 45) [sublinha e cruzeta à margem direita]

Apesar de anteriormente ao ocorrido Fabiano conceber que o governo

era bom e que se punia os cidadãos seria em razão de uma justa necessidade,

ao ser vítima inocente de um representante do poder, ele rapidamente muda

seu ponto de vista. É justamente o contexto de punição cruel que ascende na

marginália de Mário de Andrade. A expressão sublinhada, “cipó de boi”, refere-

se a um instrumento de tortura oriundo do pênis bovino que, ao ser esticado e

curtido ao sol, torna-se uma espécie de bastão de extrema inflexibilidade. Ao

ser golpeado, causa dor de grande proporção. Esta expressão é tipicamente

utilizada no Nordeste brasileiro, sendo que em outras regiões o mesmo

instrumento pode receber outras denominações.

A título de complementariedade, vale ressaltar a coincidência de

interesse deste leitor/escritor em outra obra de Graciliano Ramos presente em

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sua biblioteca pessoal. No romance Angústia (1936), Mário de Andrade

demarcou a ocorrência de “cipó de boi” em dois momentos.

– Está ouvindo, seu Moysés? Cipó de boi, facão e tronco. (RAMOS, 1936, p. 76) [sublinha e cruzeta à margem esquerda] [...] O corpo cahiria na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto [...] (RAMOS, 1936, p. 172) [sublinha e cruzeta à margem esquerda]

Como pode ser verificado, dois anos antes de sua leitura de Vidas

Secas, o leitor/escritor já se interessara pela mesma expressão presente em

obra também de Graciliano Ramos. Atenta-se para o fato de que, assim como

no caso relativo a Fabiano, as duas passagens de Angústia repercutem

contextos de extrema violência e crueldade. Neste sentido, apreende-se que a

presença desta expressão na escrita do autor alagoano incide em descrições

fiéis à realidade hostil da vida sertaneja, na maior parte das vezes relacionada

a desmandos cometidos pelos latifundiários contra seus empregados ou

inimigos pessoais.

Se os dois primeiros registros de Mário de Andrade em Vidas Secas

apontam para destaques a expressões singulares da linguagem e cultura

nordestinas – o que demonstra o teor positivo deste leitor/escritor para com a

elaboração do autor alagoano – a próxima ocorrência repercute de modo mais

explícito a sua recepção positiva. Embora se limite a manifestações de sublinha

e sinal sem manuscrito, é incontestável se tratar de um dos registros mais

enfáticos desta leitura, tendo em vista a posição silenciada e sucinta que Mário

de Andrade assume diante do romance em foco, conforme vem se

demonstrando.

Novamente, o teor da passagem aludida centra-se nas reflexões de

Fabiano quanto à surra que tomou do “soldado amarelo”. Agora, porém, nota-

se que a perspectiva de sua revolta assume outros contornos sedimentados no

seu desejo de vingar a humilhação sofrida, o que lhe impede de agir é

justamente a preocupação com o bem-estar de sua família.

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Agora Fabiano conseguia arranjar as idéas. O que lhe segurava era a familia. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, supportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amollecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aquelles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sahiria d’ali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarello. Não. O soldado amarello era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos delle. [...] (RAMOS, 1938, p. 51) ! [sublinha e ponto de exclamação]

Observa-se a mudança do ponto de vista de Fabiano desde o acontecimento

da surra, como se pôde perceber na marginália anterior, quando passa a

contestar a validade da justiça governamental. Agora, na citação apresentada,

verifica-se sua lucidez quanto à posição inferior do “soldado amarelo”, tão

próxima com a dele próprio. Evidencia-se que esse processo de

conscientização do personagem chama a atenção do leitor/escritor a ponto

dele se manifestar por meio de exclamação, recurso da escrita diretamente

vinculado a uma recepção de caráter efusivamente positivo. Vale ressaltar

também a composição exímia de Graciliano Ramos que transmite uma

assimilação perfeita entre a maneira como ocorrem os pensamentos de

Fabiano e a linguagem oral do sertanejo, elementos que em si encerram

aspectos também a serem considerados ao se pensar a respeito das razões da

marginália de Mário de Andrade.

Uma questão paralela deve ser levada em conta na passagem

demarcada pelo leitor. É necessário atentar que, no ano da primeira edição de

Vidas Secas (1938), a sociedade brasileira vivenciava a ditadura do Estado

Novo, sob o primeiro governo de Getúlio Vargas. Um ano antes da publicação

da obra de Graciliano Ramos, Vargas instituiu o estado de exceção que

configurou uma ditadura implacável com quem fosse contrário ao governo.

Entre outros fatores, houve a suspensão dos direitos civis, perseguição política

e a censura aos meios de comunicação.

Diante deste contexto, o entrecho demarcado por Mário de Andrade

incide em questionamentos reveladores da realidade política do país que

concedia poderes extremos a uma pequena parte da população

economicamente favorecida e alinhada a pressupostos ditatoriais de punição à

revelia de motivos e fatos. Colocar este tipo de conscientização em um

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personagem representativo do sertão nordestino – homem simples, honesto e

de quase nenhuma capacidade de expressão verbal – demonstra o quanto a

população tinha clareza da situação que se vivia, mas nada poderia fazer para

impedir a profusão de injustiças que se alastrava no território nacional.

O contingente simbólico imbuído na apresentação de dois personagens

“infelizes” repercute de forma hábil uma ilustração da ressonância do

autoritarismo como instrumento de punição a quem fosse contrário à esfera

ideológica em vigência. O “soldado amarelo”, então, configuraria o papel

secundário de representante do poder em pleno uso do modelo de “justiça”

instituído pelo Estado Novo. Fabiano, a vítima, representaria a população

silenciada não apenas pela condição de miséria advinda da seca como

também pela opressora situação de punição sem razão sustentável. Donde ele

conclui, pertinentemente, sobre a necessidade de “cortar o mal pela raiz”,

vingar-se não do “soldado amarelo”, mas dos seus chefes, responsáveis pela

reverberação do uso do poder para fins estritamente pessoais e equivocados.

Há que se ressaltar também a posição contrária do próprio Mário de Andrade

em relação à instituição do Estado Novo quando, em 1938, ele próprio se

demite de seu cargo de diretor do Departamento de Cultura e Recreação da

Prefeitura Municipal de São Paulo por não compactuar com as ações

opressoras do regime ditatorial.

É importante destacar, ainda sobre a mesma citação, a presença de

uma expressão no excerto sublinhado por Mário de Andrade que também foi

destacada por João Antônio em sua leitura de São Bernardo. Trata-se do termo

“tiro de pé de pau”, sublinhado pelo leitor/escritor numa passagem em que o

protagonista Paulo Honório reflete sobre a emboscada contra Dr. Pereira,

homem influente que lhe comprara um gado, mas se recusava a efetuar o

pagamento. O golpe que arma contra seu devedor surte efeito, porém, ele tem

consciência da necessidade de sumir das imediações dominadas por Pereira,

caso contrário, muito provavelmente seria vítima de “um tiro de pé de pau”:

“Não tornei a aparecer por aquelas bandas. Se tornasse, era um tiro de pé de pau na certa, a cara esfolada para não ser reconhecido quando me encontrassem com os dentes de fora” [...]. (RAMOS, 1964, p. 15) [sublinha de João Antônio].

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Na sequência da marginália de Mário de Andrade em Vidas Secas,

localiza-se novamente seu interesse por uma palavra relacionada à cultura do

sertanejo. Observa-se que seu registro destaca um vocábulo característico da

linguagem utilizada pelo vaqueiro para conduzir o gado, bem como a maneira

como se manifesta esta interação entre o homem e o animal.

[...] O aboio era triste, uma cantiga monotona e sem palavras que entorpecia o gado. (RAMOS, 1938, p. 112) abôio [círculo em torno de “sem palavras”, traço vertical e manuscrito à margem esquerda]

Aboio é uma melodia entoada pelo vaqueiro, com base em determinadas

entonações quase sempre vocálicas, que lhe permite conduzir o gado. São

manifestações sonoras de cunho geralmente expressivo às quais o gado

costuma “responder” por meio de mugidos. Realiza-se uma espécie de

simbiose na qual o humano se aproxima do animal e vice-versa numa estreita

interação fundamentada em sons específicos. Além de ser característica da

cultura sertaneja, também é empregada por vaqueiros de outras regiões

brasileiras. Apesar de na citação da obra do autor alagoano se afirmar que se

trata de um som sem palavras, muitas vezes o aboio também pode ser

entrecortado por breves frases de comando, geralmente terminadas por

expressões de certo teor carinhoso como “êêê boi...”, “ôôô boi...”.

Evidencia-se que o interesse de Mário de Andrade assume um viés

duplo segmentado tanto na ocorrência da palavra em si quanto na

característica peculiar do significado de aboio, especificamente à condição de

se tratar de uma melodia “sem palavras”. Neste aspecto, ascende o

reconhecido interesse do leitor/escritor pela música popular brasileira tendo em

vista, por exemplo, suas viagens ao Norte e Nordeste do país, no final dos

anos 20 e em 1938, em busca de catalogar as músicas típicas destas regiões.

Não se pode afirmar se ele já conhecia ou não o vocábulo destacado, porém, o

fato dele atentar para a ocorrência no contexto da escrita de Graciliano Ramos

atesta, no mínimo, um exercício de levantamento de apreço pela maneira como

aparece, já que ele não apenas sublinha a palavra como circula sua

denominação de linguagem não-verbal.

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A última marginália localizada dentro do espaço narrativo de Vidas

Secas retoma um viés já enunciado em ocorrência anterior. Novamente,

observa-se uma manifestação efusiva de Mário de Andrade diante da escrita

do autor alagoano a partir do registro de um ponto de exclamação. O contexto

narrativo pertence ao capítulo intitulado “Festa”, quando Fabiano e a família

vão à festa de Natal na cidade. Assim como o protagonista, seus filhos e

esposa caracterizam-se pela quase ausência de fala. A vida na fazenda os

mantém distantes de outras pessoas e da realidade da cidade. Com isso, eles

se deslumbram ao observar quantas coisas existem, quantos objetos nas lojas

e na igreja. O “menino mais novo” e o “menino mais velho”, ao contemplarem

as vitrines, pensam como poderia haver nomes para a variedade de objetos e,

além disso, indagam como alguém poderia assimilar tantos nomes. Parece-

lhes impossível. É justamente a maneira como a escrita do autor alagoano urde

a composição desta passagem que leva ao registro do leitor/escritor.

[...] Provavelmente aquellas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim com certeza as preciosidades que se exhibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nome. Puzeram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossivel [...] (RAMOS, 1938, p. 123) ! [sinal sem manuscrito, à margem direita, na altura da frase “Como podiam os homens guardar tantas palavras?”]

Numa narrativa em que os personagens principais caracterizam-se pela

dificuldade de expressão verbal, com um repertório linguístico limitado ao

essencial, a maneira como é colocada esta questão na citação em foco

demonstra uma sensibilidade notável na composição estética de Graciliano

Ramos. Assim como as crianças, o próprio protagonista se pergunta algumas

vezes, em outros momentos da narrativa, como há determinadas pessoas que

sabem se expressar utilizando-se de um grande número de palavras das quais

ele não tem o menor conhecimento. Essa perspectiva de observar o universo

da linguagem como algo intricado e passível de ser habilmente empregado

apenas por poucas pessoas demonstra o lugar particular desses personagens

à margem da vida social e até mesmo humana. Contudo, a focalização nesse

aspecto a partir do universo infantil, com destaque ao espanto e à admiração

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dos meninos, configura uma imersão tanto na realidade de isolamento do

homem do sertão quanto na paridade das crianças com a natureza de seu pai.

A inocência da concepção de mundo que personificam caracteriza-os como

quase homens.

Nessa linha de entendimento, depreendem-se as possibilidades de

interpretação de elementos que movem o leitor/escritor a destacar a frase

“Como podiam os homens guardar tantas palavras?”. A palavra é a matéria-

prima de todo escritor, logo, quaisquer referências a este universo o deve

interessar. Mas no caso específico do entrecho destacado, verifica-se um

questionamento de fundo existencial muito particular sobre a própria finalidade

da linguagem enquanto meio propício de interação social. Se ela une os

homens, quem não a domina fica aquém de ser considerado indivíduo atuante.

A condição social inerente à linguagem também estabelece fronteiras em uma

sociedade como demonstram os dois mundos em choque na narrativa de

Graciliano Ramos, o universo “dos Fabianos” e a realidade da cidade. A

disparidade entre essas instâncias determina de maneira clara a

inacessibilidade dos primeiros dentro da segunda.

Somente a partir do conhecimento das coisas e de seus nomes se pode

interagir e comungar com alguma equivalência. O mundo sintético de Fabiano

e sua família não permite a existência desta interação porque prescinde dos

valores e costumes da vida na cidade. Para eles, a existência se basta no

contexto da fazenda, na lida simples com o gado e demais ingerências do

cotidiano do campo. Dentro desta perspectiva, o precário repertório linguístico

deles circunscreve-se apenas à restrita funcionalidade direta do mundo tangível

e não haveria mais coisas ou mundo além daquele conhecido. Ao descobrirem

que existe muita coisa além da circunferência da fazenda, sentem-se

desencontrados e sem possibilidade de interação na esfera infinita de

significados inerente à palavra enquanto signo eminentemente social. Em

suma, acredita-se que toda essa conjunção de aspectos sedimentou o

interesse do leitor/escritor, afinal, as possibilidades de interpretação

proporcionadas pelo entrecho destacado são amplas, assim como o próprio

choque dos dois mundos em questão.

Após finalizar as considerações sobre a marginália de Mário de Andrade

dentro do espaço narrativo de Vidas Secas, faz-se necessário focalizar

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anotações que ele deixou na página de rosto do volume. Em princípio, há dois

registros externos ao conteúdo do romance do autor alagoano por se

circunscrevem a anotações de orientação geral, particularmente, uma

referência bibliográfica e um nome, acrescido de um número de telefone e

endereço. Torna-se dispensável transcrever esses dados relativos a

determinada pessoa. A seguir, apresentam-se a referência bibliográfica e, o

que mais interessa aqui, a seleção de números de páginas do romance Vidas

Secas efetuada pelo leitor/escritor.

Ler Bibliotecaria Rev. do Instituto nº 32 17-45-112- [anotações de Mário de Andrade na página de rosto de Vidas Secas]

Em relação à primeira anotação, “Ler Bibliotecaria...”, foram consultadas

as referências a periódicos pertencentes à biblioteca pessoal de Mário de

Andrade, localizada no acervo da Biblioteca do IEB-USP. Observou-se que os

títulos de revistas à época da publicação de Vidas Secas não permitem

verificar a existência da alusão realizada pelo leitor/escritor. Por outro lado, não

é preciso muito esforço para compreender que as páginas destacadas pelo

leitor relacionam-se a momentos de seu interesse pela escrita de Graciliano

Ramos, visto que os três números registrados compreendem justamente

algumas das ocorrências abordadas. Como se viu, a página 17 refere-se ao

destaque à expressão “mulher de encarnado”; a página 45 relaciona-se à

passagem sobre a utilização do “cipó de boi” como instrumento de tortura e,

por último, a página 112 compreende a alusão ao “aboio” do vaqueiro. Chama

a atenção o fato do leitor/escritor ainda acrescentar um hífen após o último

número (112-), o que leva a crer na intenção de realizar outro apontamento, no

caso, provavelmente, seria a página 123 em que a marginália versa sobre a

linguagem. É importante destacar que, dentre as três obras consultadas,

apenas nesta existe este tipo de registro extratextual específico.

Se até o momento vem se trabalhando com a ideia de que a recepção

de Mário de Andrade em relação a Vidas Secas caracteriza-se pelo viés de

admiração, semelhante preocupação de anotar os números de algumas

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páginas no espaço da página de rosto só vem a reiterar a perspectiva de

recepção aqui defendida. Em relação à sua leitura de Fazenda, de Luís

Martins, a quantidade de marginália é bem maior do que a encontrada no

romance do autor alagoano (15 manuscritos, além de destaques a erros de

composição textual e registros sem manuscritos), assim como o tamanho dos

manuscritos também é extensivamente maior. Porém, Mário de Andrade não

transcreveu nenhum número de página em espaço particular no livro de Luís

Martins. Certamente em razão de sua postura opositiva quanto ao conteúdo da

obra.

A necessidade de reiterar seu universo de interesse em relação à escrita

de Graciliano Ramos, não há como negar, sedimenta a intenção de não

esquecer aquilo que foi lido tendo em vista um sentido qualitativo. Quanto à

finalidade desses apontamentos numéricos, pode-se inferir tratar-se de

levantamento de elementos a serem utilizados tanto em sua própria

composição estética quanto para se refletir acerca de determinada vertente

literária desenvolvida pelo autor alagoano. Ou mesmo pode se referir a

questões de carpintaria literária ou temática sobre as quais tenciona

desenvolver alguma abordagem. Se esta, aquela ou nenhuma dessas

inferências estão corretas, não há como afirmar conclusivamente, porém, não

se pode negar o caráter de eminência positiva no ato do leitor destacar os

números na página de rosto.

Um encontro feliz

Embora na marginália de João Antônio relativa a Graciliano Ramos não

se encontre ocorrência similar a de Mário de Andrade quanto ao destaque a

números de páginas, após excursionar pelas marcas de leitura presentes em

Vidas Secas verifica-se a adequação entre esses dois leitores no condizente à

postura de admiração pela escrita de Graciliano Ramos. Já se afirmou sobre a

semelhança de características na recepção de ambos: sublinhas com ou sem

traço vertical e breves (e raros) manuscritos. Enquanto João Antônio pontuou

31 problemas de revisão em São Bernardo, Mário de Andrade atentou para

este aspecto apenas uma vez – o que não foi abordado em razão de fugir à

perspectiva central deste texto. O autor de Paulicéia Desvairada utilizou ponto

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de exclamação duas vezes; João Antônio em nenhum momento assim se

manifestou. Na verdade, o autor de Malagueta, Perus e Bacanaço emprega

exclamações e pontos de interrogação apenas para reiterar sua indignação

com problemas de revisão, nada relacionado ao contexto narrativo. De uma

maneira geral, como já se afirmou anteriormente, apesar da grande diferença

quantitativa de registros (110/6) se verifica que as recepções de ambos primam

pela manifestação comum de admiração.

Se a marginália de João Antônio em São Bernardo repercute admiração

pelo grande número de sublinhas, acompanhadas ou não de traços verticais,

não se encontra, porém, nenhuma ocorrência de ponto de exclamação como

visto em Vidas Secas. Apesar das duas manifestações conferirem recepção

positiva, é fato que a exclamação expõe de modo mais explícito esta condição.

Retomando as denominações iniciais de “mestre” e “discípulo”, pode-se dizer

que João Antônio, enquanto “discípulo” de Graciliano Ramos, mesmo

explicitando sua condição de admirador por meio de suas dezenas de

sublinhas, se contém diante de seu “mestre”. Mário de Andrade, enquanto

“mestre” tanto quanto Graciliano Ramos, não se detém de demarcar com

clareza os momentos em que detecta a alta qualidade da escrita do autor

alagoano.

Aludiu-se aqui a atestada presença de uma recepção negativa de Mário

de Andrade dirigida principalmente à fraca composição formal e artística a

respeito de Fazenda. Pelo seu lado, na leitura de Noturno da Lapa efetuada por

João Antônio podem ser observados procedimentos bem similares, levando à

constatação de uma proximidade importante entre os pontos de vista de ambos

acerca de duas diferentes produções de Luís Martins. A ênfase presente nos

manuscritos deles, ao tratar de aspectos que julgam inapropriados na escrita

do autor carioca, igualmente se demonstra análoga. Como se pode verificar,

não é diferente o que ocorre quando se tomam como objetos de reflexão Vidas

Secas e São Bernardo. Como dois leitores tão diferentes podem se equivaler

em suas recepções da escrita de Graciliano Ramos?

Na verdade, são os mesmos leitores/escritores da obra de Luís Martins

que se manifestam na marginália presente nos livros do autor alagoano.

Evidencia-se em suas anotações um ponto fulcral centralizado tão somente

naquilo que observam, ou seja, a criação literária em mãos no momento de

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suas leituras. Se a escrita do autor carioca os faz desprenderem do fluxo de

leitura em razão de elementos destoantes na forma de composição – o que

gera a presença de ponderações mais prolongadas e negativas – os dois

romances de Graciliano Ramos configuram atos de leitura sintéticos que

permitem apreender uma leveza de recepção oriunda da própria fruição da

escrita. Essa espécie de reflexo de identidade segmenta-se na acepção de se

tratar de um escritor de talento estético no trato de determinados temas e na

elaboração artística com quem ambos se identificam. Portanto, no silêncio de

seus registros descortina-se uma interação profícua, no exato sentido da

expressão. Eles são acrescidos de novos conhecimentos em termos

estilísticos, composicionais e temáticos diferentemente da perspectiva

percebida na escrita de Luís Martins diante da qual são os leitores que

acrescentam elementos (ausentes e/ou deficientes) nas produções lidas.

Entretanto, são dois leitores/escritores envolvidos em lugares e tempos

diferentes. A escrita do autor alagoano é o único vértice em comum a

transcender a perenidade temporal que a faz ser atual e promissora tanto nos

anos 30 quanto nos anos 60 – diga-se de passagem, também até a atualidade

do século XXI. Dessa maneira, é ela que assume o papel imprescindível de elo

dialógico entre Mário de Andrade e João Antônio desvendando correlações

entre seus atos de leitura privados, realizados em instâncias históricas

diferentes. As produções de Graciliano Ramos sedimentam-se então como

cronotopos, no sentido elucidado por Bakhtin (1993, p. 211-362), ou seja,

tornam-se referência de um tempo e espaço que amplia seu alcance,

interferindo de modo promissor na visão de mundo dos dois leitores imbuídos

de outras referências particulares e sociais. O estudo da marginália em Vidas

Secas e São Bernardo permite localizar um encontro feliz entre ambos

sinalizando a amplitude deste tipo de objeto que permite dois sujeitos – que

nunca se conheceram pessoalmente – revelarem afinidades importantes em

relação aos seus pensamentos estéticos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina G. Gomes.São Paulo, Martins Fontes, 1992.

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______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e outros. 3 ed. São Paulo, Hucitec, 1993.

LOPEZ, Telê. A criação literária na biblioteca do escritor. Revista Ciência e Cultura – SBPC, vol. 59, nº 1, São Paulo, Jan/mar 2007, p. 33-37.

MARTINS, Luís. Fazenda (Drama da decadência do café). Curitiba: Guaíra, 1940. (Biblioteca IEB/USP)

______. Noturno da Lapa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. (Acervo João Antônio)

RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. (Biblioteca IEB/USP)

______. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1964. (Acervo João Antônio)

______. Vidas Secas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. (Biblioteca IEB/USP)

_____. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste – obra póstuma. São Paulo: Martins, 1962. (Acervo João Antônio)

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3

De verbos e verbetes: ecos do Vocabulário das ruas na correspondência

João Antônio & Jácomo Mandato

Telma Maciel

Universidade Estadual de Londrina

A amizade entre João Antônio e Jácomo Mandatto tem início nos anos

sessenta, por meio da troca epistolar. Sem nunca terem se encontrado

pessoalmente, os dois jovens autores passam a trocar cartas e, pouco a pouco,

descobrem afinidades e alinham projetos. João Antônio viria a se tornar um dos

escritores mais badalados e polêmicos de sua geração, com diversos prêmios

nacionais e internacionais. Jácomo Mandatto teve uma carreira mais discreta,

porém não menos importante. Escreveu várias obras sobre a memória de

Itapira, sua cidade natal, onde foi eleito vereador por quatro legislaturas,

chegando à presidência da câmara. Além disso, foi um respeitável crítico

cultural e literário, com textos publicados nos mais importantes jornais Brasil a

fora.

O volume da correspondência dos dois autores é composto por mais de

trezentas missivas, além de documentos de naturezas diversas, como recortes

de jornal, cópias de originais datiloscritos, fotografias etc. O diálogo travado ao

longo de quatro décadas torna-se uma radiografia dos períodos mais

produtivos dos dois amigos. Por meio dele, é possível ter acesso a esse

passado e refazer os caminhos trilhados pelos correspondentes, descortinando

processos, dissensões e contradições.

Quando olhamos para o volume completo dessa correspondência, com

cartas, anexos, apêndices etc, a impressão geral é de um todo caótico, forjado

no calor da hora, como se ali os autores pudessem ser vistos livres das

convenções e das máscaras sociais. Contudo, uma análise detida deixa ver

que há algo de planejado na desordem. Os dois jovens, aos poucos, vão

criando um espaço de representação de si, por meio da linguagem.

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Nesse sentido, o início da troca epistolar é bastante significativo. As três

primeiras cartas de João Antônio para Jácomo Mandatto destoam de modo

expressivo das centenas de missivas enviadas posteriormente. O ano é 1962

e, nesse momento, o escritor paulistano é ainda inédito no que diz respeito à

divulgação em livro. Nesse período, alguns contos (ou trechos) de Malagueta,

Perus e Bacanaço já haviam sido publicados, porém em revistas e/ou

suplementos literários. O jovem autor datilografa seus textos e envia para

diversos cantos do país a fim de participar de concursos literários, e é um

concurso desses que aproxima João Antônio e Jácomo Mandatto.

As três primeiras cartas de João Antônio de que falamos acima são

datadas, respectivamente, de 15 e 29 de outubro e 07 de dezembro de 1962.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que elas foram remetidas não a Jácomo

Mandatto, mas ao Centro Itapirense de Cultura e Arte, com “atenção do sr

Presidente, Jácomo Mandatto”. Essa informação é importante porque ela

condiciona o modo como João Antônio escreve, e justifica a sua formalidade no

trato com o colega. Vejamos o início que o escritor dá às duas primeiras

missivas:

Prezado Senhor, Estou recebendo nesta data uma carta de V.sa., no tom mais cordial, comunicando-me os resultados finais relativos ao certame literário “Prêmio Menotti Del Picchia”, cujo Concurso de Contos alcançou o maior êxito e repercussão, do que é afirmação evidente esta enorme parcela de 110 concorrentes. Muito grato pelas gentis referências a meus contos. E parabéns ao Centro Itapirense de Cultura e Arte! Prezado Senhor, Havia preparado minha ida a Itapira para assistir ao ato de entrega do “Prêmio Menotti Del Picchia”, que se realizou a 24 do corrente. Havia telegrafado confirmando minha ida. Entretanto, à última hora, vi-me metido com um compromisso na televisão. Paulo Bonfim necessitava de completar um programa de TV. E se recusasse teria criado para o poeta um problema de ordem profissional bastante sério.

Como no início, o resto das duas missivas, é também permeado pelo

discurso repleto de mesuras, com elogios ao grupo responsável pela

organização do certame literário e demonstração de respeito ao resultado, que,

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mesmo que o colocasse numa posição de destaque, não lhe conferia o

primeiro lugar. Há uma flagrante preocupação com a norma padrão: respeito à

ortografia, colocação pronominal, vocabulário culto etc. Esse dado merece

destaque, pois quando se olha para o conjunto, vê-se que o trato com a

linguagem no resto das cartas aparece de modo bastante diverso, com uma

dicção que retoma o linguajar expressivo da malandragem e das faixas

marginalizadas da população, o mesmo que aparece esboçado na agenda-

dicionário, hoje publicada pela editora Cosac&Naify, sob o título de Vocabulário

das ruas12.

Nesse Vocabulário é possível encontrar palavras dicionarizadas, mas

que pelo uso restrito acabam ganhando um matiz de gíria, como por exemplo,

“fuleira = prostituta rampeira” (ANTÔNIO, 2012), ou palavras que têm o seu

sentido alterado em determinados grupos e/ou contexto, como “falador =

pessoa falaz e sem juízo; alcaguete” (ANTÔNIO, 2012). Há também

expressões, tais quais “jornal de ontem = coisa ultrapassada” (ANTÔNIO,

2012) e “roendo beirada do penico: passar mal; gramar, atravessar dificuldades

sérias” (ANTÔNIO, 2012). São centenas de verbetes e esses arrolados acima

servem apenas para dar uma ideia da sua diversidade.

Bem, voltemos às cartas. Conforme vimos, elas começam bastante

formais. Contudo, já no quarto exemplar, quando João Antônio se dirige

diretamente a Mandatto, agora não mais ao “Senhor presidente do Centro

Itapirense de Cultura e Arte”, a linguagem muda radicalmente. O jovem que

12 A “Agenda-dicionário”, ou Vocabulário das ruas, é um documento que compõe o Acervo João Antônio. Trata-se de uma agenda telefônica utilizada, em parte para anotação de contatos do escritor, como seria natural, e em parte para a criação de uma espécie de dicionário de gírias. A editora Cosac&Naify publicou a agenda como um apêndice, em edição fac-similada, sob o título de Vocabulário das ruas, em sua edição de luxo dos Contos reunidos (2012), de João Antônio. O volume não apresenta número de páginas, nem ficha catalográfica, por isso, adotaremos a data da coletânea de contos à qual está ligado. Patrícia Aparecida dos Santos fez o único estudo existente até agora sobre esse material, mas infelizmente ele permanece inédito. Tive acesso, por meio do Acervo João Antônio, a seu relatório de Iniciação científica (2006), intitulado “A Agenda-dicionário de João Antônio e as obras Dedo-duro e Abraçado ao meu rancor”, no qual levantou a hipótese de que o dicionário tenha sido criado por João Antônio para dar subsídio ao seu trabalho com a linguagem dos dois livros editados na década de oitenta. Entretanto, apesar de voltar-se para a pesquisa da presença dos termos constantes na Agenda nas obras Dedo-duro (1982) e Abraçado ao meu rancor (1986), ao final da pesquisa, a estudiosa relativiza a hipótese de o material ter sido criado especificamente para dar subsídios aos dois livros. Nesse sentido, nós também não apostamos nessa conjectura, pois muitas palavras seguem a grafia anterior à reforma ortográfica de 1971, o que indica que o material deve ter sido iniciado ainda nos anos sessenta. Não faremos citação direta do texto de Patrícia Santos, por este ser inédito, mas indicaremos toda vez que alguma ideia ou informação for de sua autoria.

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buscava mostrar-se como alguém bem relacionado literariamente (J.A arrola

uma série de nomes importantes da literatura como sendo seus amigos) e

conhecedor da norma padrão, agora busca mostrar o seu outro lado: o de

conhecedor da “boca do lixo” e de suas leis, inclusive no que diz respeito à

comunicação dos diversos grupos.

Na carta de meados de dezembro de 1962, a conversa é completamente

diferente daquela travada nas três primeiras missivas. Ao que tudo indica13,

uma resposta de Mandatto o encorajou na mudança de tonalidade e João

Antônio assim inicia o seu diálogo: “Gostei muito de sua carta que veio no

único tom que pode tocar a este aqui. E como de conversas moles já ando

cheio, passo-lhe uma resposta no mesmo tom”14. Aqui, entramos em contato

com um tipo de discurso que vai ser a constante da troca epistolar. O

vocabulário despojado e “masculino”, que busca aproximar os interlocutores,

não mais a partir de suas posições sociais – o escritor em ascensão e o

presidente de um centro cultural -, mas a partir daquilo que pensam sobre si e

sobre o mundo que os rodeia.

A organização cartesiana, do ponto de vista da estrutura das cartas, bem

como a linguagem sóbria, dão lugar ao diálogo matizado pela fala das ruas,

numa fusão de lirismo e violência, aliás bem característica da obra do escritor

paulistano. Note-se que o excerto citado acima traz uma expressão bastante

popular, “conversa mole”, que designa iludir, enganar, trapacear por meio do

diálogo. É, portanto, a linguagem que ganha destaque e a formalidade do

diálogo é denunciada como uma forma de trapaça.

Apesar de João Antônio afirmar que “de conversas moles já and[a]

cheio”, pode-se depreender, pelo trecho citado acima, que é Jácomo Mandatto

quem põe fim ao tom formal daquela ainda pequena correspondência. Não

temos as primeiras cartas do interlocutor itapirense, mas o próprio contista diz

estar respondendo no mesmo “tom” do amigo. Enfim, depreende-se que a

formalidade é tida por ambos como um meio de defesa, que deve ser

substituído por um diálogo franco, na medida em que a amizade vai sendo

forjada.

13 Não tivemos acesso às cartas de Jácomo Mandatto dos anos sessenta, provavelmente, perdidas por João Antônio. Apenas as cartas de 1977 em diante foram preservadas no Acervo João Antônio. 14 Carta datada de 17 de dezembro de 1962.

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Outro destaque que se pode fazer nesse trecho diz respeito a uma

construção que vai perdurar nas quatro décadas de diálogo epistolar. Vejamos

novamente: “Gostei muito de sua carta que veio no único tom que pode tocar a

este aqui” (grifos nossos). Há uma clara estratégia de personificação. Os

elementos dêiticos promovem a ilusão de presença física e, portanto, de

aproximação entre os correspondentes. É como se o autor se materializasse

em meio ao discurso e apontasse para si próprio. Essa é apenas uma

ocorrência das dezenas encontradas nas cartas enviadas a Mandatto, mas ela

é bastante significativa, pois marca justamente o momento da mudança no tom

do diálogo entre os carteadores, que é preciso que seja lembrado, nunca

tinham se visto antes. Diante disso, a função catafórica do termo “este aqui” é

de suma importância, visto que indica o nascimento de um novo sujeito

enunciador, não mais preso ao padrão da norma culta, do ponto de vista da

linguagem, nem tampouco aos padrões sociais, no que diz respeito ao

comportamento.

Ainda sobre a importância dessa construção, ela não se restringe ao

diálogo com Mandatto. Veremos em outras correspondências do escritor, como

no caso de carta a Fernando Paixão, de 1996 – “Tenho de ser motivado. Caso

contrário, esse bendito livro não sairá nunca, em tempo algum. Este aqui se

conhece, Fernando. Ajude-me. Preciso ser pautado para fazer um serviço

desses.” (PAIXÃO, 2010 p. 179, grifos nossos) – ou ainda em textos mais

literários como “Uma força”, publicado em Abraçado ao meu rancor (1986) –

“Um cágado me seguia sutil e andarilho, com sua cabeça de cobra, e talvez até

tivesse sedes com este aqui.” (ANTÔNIO, 2001 p. 159, grifos nossos).

No texto “De Malagueta, Perus e Bacanaço”, escrito à época da

publicação do livro de estreia, João Antônio repete a estrutura: “Para começo

direi que temo o julgamento desta conversa deste aqui [...]” (ANTÔNIO, 2004

p.13, grifos nossos) e, mais adiante, “O que se passa com eles e dentro deles,

o que se passa na cidade é o que este aqui quis contar [...]” (ANTÔNIO, 2004,

p.15, grifos nossos). O material foi enviado aos amigos – com o pedido de

divulgação e publicação – como uma espécie de release da obra, mas trata

mais da biografia do autor, destacando os aspectos de uma pretensa

marginalidade como elemento de fusão entre as suas vivências e as de suas

personagens. Contudo, o autor admite, ainda que de maneira tímida, certo

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distanciamento entre ele e os indivíduos retratados: “Utilizo linguagem deles,

jeitos, códigos, vou até a sintaxe malandra. Gíria. Gíria é bom para espíritos

intensos, de vulcânica agitação e sublime vibração.” (ANTÔNIO, 2004, p.15,

grifos nossos).

A “linguagem deles”, portanto, não coincide completamente com a

linguagem do escritor e, por isso, demanda estudo para chegar ao tom correto.

João Antônio recolhe das ruas termos que considera ricos em expressividade,

entretanto eles não permanecem em descanso, enquanto não são empregados

em alguma obra literária. Pelo contrário, essas palavras aparecem nas cartas,

nos textos autobiográficos, nos artigos etc, de maneira a performatizarem a

figura do autor, que se torna um híbrido entre escritor e personagem.

No que diz respeito à correspondência com Mandatto, observa-se que a

gíria, enquanto uma das categorias da linguagem popular, instaura “a vulcânica

agitação” no diálogo entre os dois colegas, que até ali se conheciam muito

pouco. A partir da mudança de tom – passando da carta-ofício à carta pessoal

– as expressões de caráter popular serão constantes. Elas servem para dar

expressividade às descrições que João Antônio faz de si mesmo, dos amigos e

colaboradores, dos desafetos, da situação política do país, de suas

personagens etc. Vejamos alguns exemplos:

Tirante vaginas, coxas e alcolóides o resto é um grosso engodo que os burgueses, gordalhudos, felizões e imbecis querem nos pespegar. Mas nós estamos livres de toda a fluente porra que corre por aí. Além de pobres e dementes, somos também delirantes. E como acreditamos na bagunça geral e total, possivelmente, muito provavelmente a esculhambação nos salvará. Pelo menos nos resta a dignidade de fazer nossas coisas com os culhões. O que é bem raro nos dias correntes15.

É por meio dessa fala das ruas que o intercâmbio epistolar flui e ganha

um tom pessoal. Ao mesmo tempo em que aproxima os correspondentes, essa

linguagem confere um tom ficcional, na medida em que amplifica os

sentimentos narrados e insere outras vozes no diálogo. No trecho em questão,

como em geral, o tom performático dá vazão a um discurso de protesto, contra

uma sociedade corrompida, baseada em valores materiais. João Antônio

15 Carta de 29/01/63

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oferece uma representação de si que destoa completamente desse padrão e,

por isso, a vida desregrada – marcada aqui pela aderência aos valores da

malandragem e à sua forma de falar – é vista como um dos poucos atos de

resistência possíveis.

A expressão “fazer as coisas com os culhões” é largamente repetida ao

longo das quatro décadas de troca epistolar. Ela cria uma divisão entre os tipos

que se vendem ou se deixam enganar pelos padrões sociais e os homens de

verdade, aqueles que se rebelam e resistem. João Antônio coloca-se nessa

categoria e inclui o amigo. A inadequação se dá em vários níveis, não apenas

social, visto que um dos elementos que os aproxima é o fato de serem

“delirantes”.

Note-se que o uso de gírias nesse trecho específico é aparentemente

discreto, mas a fusão de gírias, palavrões e frases feitas a um processo de

enumeração confere um ritmo frenético ao parágrafo, cujo efeito é justamente o

de ampliação de sentidos. Desse modo, há a retomada de uma dicção da

malandragem, inclusive pela afirmação da marginalidade como forma de

salvação. Jane Christina Pereira (2006), ao estudar a construção poética de

Malagueta, Perus e Bacanaço, trata da importância da gíria na contística de

João Antônio. A pesquisadora aponta para a fusão promovida pelo escritor

entre a gíria e a norma culta, como um traço estilístico importante para

entender a construção poética em sua obra:

Nas narrativas em que os malandros entram em cena, há uma adesão empática que dá estatuto artístico à maneira de ser dessa população, inovando na forma de dizê-la, pois essa vem com uma ginga que percorre todo o texto. A linguagem tem musicalidade, seguindo padrões de correções: os léxicos são gírias, mas a sintaxe é correta. Dessa forma, é o ritmo que diferencia essa sintaxe, propondo uma inclusão em termos artísticos àqueles que não têm. (PEREIRA, 2006, p. 18).

Nas cartas, o mesmo processo acontece. A enumeração, já bastante

reconhecida como aspecto estilístico da obra do escritor, aparece nas missivas

como elemento de suma importância. É ela que dá ritmo às frases, inserindo o

leitor na atmosfera da malandragem. Ao caracterizar os indivíduos adaptados

ao sistema, o contista associa enumeração e gradação, em um processo no

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qual os termos são utilizados de forma a ampliar gradativamente o sentido:

“Tirante vaginas, coxas e alcolóides o resto é um grosso engodo que os

burgueses, gordalhudos, felizões e imbecis querem nos pespegar” (grifos

nossos).

Os termos em destaque são todos, aparentemente, de campos

semânticos diferentes: burgueses, está ligado à condição financeira;

gordalhudos, a um determinado tipo físico; felizões, a um estado de espírito,

enquanto imbecil pode ser associado a uma condição mental. Quanto à palavra

“gordalhudos”, não dicionarizada, fica claro que é um neologismo criado a partir

da palavra gordo, presente da seguinte forma no e-dicionário Caldas Aulete:

“Diz-se de pessoa que tem muita gordura, que está acima do peso normal”.

Nesse sentido, o vocábulo neologizado amplifica ainda mais a ideia de excesso

de peso e de gordura, mas mantém os termos em seus respectivos campos

semânticos. Contudo, uma das entradas do Vocabulário das ruas possibilita

uma leitura diferente: “Gordo = diz-se do indivíduo endinheirado” (ANTÔNIO,

2012). A palavra dicionarizada tem seu sentido deslocado, deixando de

caracterizar um tipo físico, para designar um tipo social.

No que diz respeito ao vocábulo “imbecil”, o e-dicionário Caldas Aulete

aponta a seguinte significação: “Que não tem inteligência; IDIOTA; TOLO”.

Esta designação nos remete a uma categoria de personagem bastante

significativa no primeiro livro de João Antônio16. Trata-se do “otário”, que seria

uma espécie de antípoda do malandro, grupo de maior representatividade nas

obras do escritor. Está claro que a relação de sinonímia entre os termos não é

absoluta (nunca é), mas há uma derivação de sentidos bastante curiosa.

Novamente recorremos ao e-dicionário Caldas Aulete, no qual a palavra

“otário” aparece categorizada como gíria e com o seguinte significado: “Diz-se

de pessoa que se deixa enganar facilmente; INGÊNUO; TOLO [Antôn.:

esperto. ]”.

Segundo Jesus A. Duringan (1983), os otários, nos contos de João

Antônio, são aqueles indivíduos “[...] que visam à obtenção de certos objetivos

previamente fixados e definidos: família, casa, dinheiro, felicidade. A

16 Sobre a categorização dos tipos na obra de João Antônio, recomenda-se a leitura da dissertação de mestrado de Luciana Cristina Corrêa (2002), intitulada Merdunchos, malandros e bandidos: estudo das personagens de João Antônio.

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modalidade que orienta seu fazer é a do ter, do possuir, do acúmulo como

instrumento e condição para ‘atingir a felicidade.’” (DURINGAN, 1983 p. 215-

216, grifos nossos). Desse modo, “burgueses, gordalhudos, felizões e imbecis”

acabam por estabelecer uma relação de sinonímia bastante estreita, na medida

em que designam a mesma coisa, ou seja, pessoas tolas, que buscam

felicidade por meio do dinheiro. Há, portanto, um processo de gradação, no

qual o campo semântico de cada uma das palavras se torna elástico,

permitindo um intercâmbio de sentidos.

O que está em jogo nessa carta é o processo de auto-representação que

João Antônio traça ao longo de toda a sua correspondência, com ênfase na

juventude, quando ainda não havia fixado seu nome de autor. Nesse sentido,

há momentos em que ele agradece pelas críticas positivas dos amigos, mas

faz ressalvas, pois considera que muitos desses juízos retiram-no dessa aura

de escritor marginal e inadaptado. Ao comentar um artigo de Leonardo Arroyo,

por exemplo, o escritor afirma:

E o Arroyo me joga umas lantejoulas dizendo-me médico radiografista do submundo paulistano. Besteiras de Arroyo. Aliás, comparo tais frescuras com a palavra cafetão. Caften é francês, cafetão é cafetão. Sei que você tem virtualidades para me entender17.

Chamando a atenção para a força da linguagem das ruas, João Antônio

busca estabelecer uma diferença de sentido entre as palavras caften e cafetão,

a primeira como a representação do universo oficial e a segunda como

referência de expressividade do linguajar que não reconhece autoridade e, por

isso, transforma e estiliza os modelos calcificados. Ao afirmar que “Caften é

francês, cafetão é cafetão”, o contista retira a palavra do âmbito da língua

nacional. Derivada do francês, ela não é apenas uma adaptação para o

português, porque a sua força expressiva designa também a força do tipo

social que caracteriza.

No Vocabulário das ruas, não há um verbete específico para a palavra

cafetão, mas há a ocorrência de duas variantes de mesmo significado:

“Cafetãozinho = filho de prostituta / Cafetão pequeno = filho de prostituta”

17 Carta de 05/03/1963.

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(ANTÔNIO, 2012). Note-se que há um deslocamento irônico do termo. A ideia

do diminutivo, empregada de modos diferentes nos dois verbetes, traz certa

leveza ao termo, mas o conceito de exploração é ainda a base para a criação

de sentidos. Nos dois casos, os sujeitos são sustentados pelo trabalho da

prostituta, que vende seu corpo para isso.

A ideia de ser tratado como “médico radiografista do submundo

paulistano” é vista como “lantejoula” crítica, pois desloca o autor de suas

alardeadas vivências periféricas para uma ambiência asséptica, permeada por

indivíduos aos quais o projeto estético do escritor se coloca na linha de

combate. Assim, “médico radiografista” equivale ao termo caften, algo

desprovido de profundidade e força.

Como se pôde notar até aqui, é possível identificar alguns padrões para

o uso das gírias nas cartas e, nesse sentido, o que mais se repete é o seu

emprego para a caracterização de pessoas, sejam elas o próprio escritor,

personagens ficcionais ou amigos, de quem ele busca traçar um perfil. As

personagens de Malagueta, Perus e Bacanaço aparecem constantemente nas

missivas e, muitas vezes, têm suas vozes transportadas para o diálogo

epistolar:

Quanto a Zé Armando, não tenho mais dúvidas. Está inteiramente estrepado, funhenhado, engolobado, como dizem os malandros. EstrepadinhoTortão da Silva Roubado, como diria o velho Malagueta, filho deste aqui. Mas Zé Armando é um grande sujeito. Não tenho dúvidas também18.

No Vocabulário das ruas encontraremos os verbetes “funhenhado =

estrepado” e “engolobado = estrepado” (ANTÔNIO, 2012), o que significa dizer,

portanto, que todos os adjetivos têm uma definição única, mas o modo como

são encadeados, partindo do mais para o menos conhecido, garante gradação

e ampliação de sentidos. Ao traçar o perfil do amigo José Armando, João

Antônio usa a voz dos malandros em geral e, também, de uma de suas

personagens mais precárias. Mais uma vez, a precariedade é tida como um

grande atributo, que serve para fortalecer o caráter dos indivíduos.

18 Carta de 02/05/63.

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Em outra carta, João Antônio volta a trazer a linguagem de seus

personagens com o intuito de dimensionar a precariedade, agora a sua própria.

Novamente, Malagueta é chamado às falas:

Uma solidão besta, Jácomo. E o diabo é que já sou um cara para quem álcool, jogo, farras, não resolvem porra nenhuma. Tou só. ―Tou espetado, bem espetadinho. Espetadinho da silva estrepado – como talvez dissesse Malagueta. São dez da noite, estou bem só neste apartamento e escrevo para Jácomo Mandatto. Que é um amigo. O apartamento tem bons livros, tem um magnífico toca-discos. Tem lindos discos. Ainda há pouco, ouvi Borodine e Noel Rosa. Fiquei mais só e bem mais triste19.

No trecho em que Malagueta fala, aparecem dois termos que compõem

o Vocabulário das ruas: espetado e estrepado: “espêto = diz-se na sinuca da

jogada indefensável, quando a bola não tem campo de ação, o mesmo que

sinuca”. “Estrepado”, como vimos anteriormente, não surge como verbete, mas

como significado de duas entradas do dicionário: “engolobado” e “funhenhado”.

Nos dois últimos exemplos, é possível notar que mais importante do que os

termos utilizados é o modo como eles são relacionados. A vibração que emana

desses trechos está muito mais no ritmo, dado pelo encadeamento e pela

pontuação, do que simplesmente pelo uso da gíria. Nesse sentido, a linguagem

de João Antônio nas cartas se constrói por meio de mudanças de tons, com a

língua padrão sendo naturalmente fundida ao vocabulário forjado nas ruas,

muitas vezes com o discurso direto de suas personagens.

Como nos exemplos acima, há vários outros momentos em que

Malagueta ganha voz, com o intuito de dar ênfase à determinada situação. Em

carta do início de março de 1964, pouco menos de um mês antes de ser

deflagrado o golpe militar no Brasil, João Antônio analisa a movimentação

política do momento. A carta é bastante confusa, refletindo, portanto, a guerra

de informações que o país sofria, mas o que nos importa aqui é mais o modo

como o escritor inicia o diálogo e menos a veracidade das informações

veiculadas por ele. Vejamos: “Velho, quanta complicação, correria, susto e que

tais. / – Um penderepá* de quatrocentos capetas! – gritaria Malagueta,

19 Carta de 31/05/63.

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inteiramente desalonado, desequilibrado e apavorado a essas tantas

intensidades”20.

Todo o trecho é hiperbólico e o escritor utiliza o recurso da cena para dar

ainda mais ênfase aos seus sentimentos diante dos fatos. Note-se que é

Malagueta quem aparece, totalmente desnorteado, no meio do tumulto. É

preciso destacar o fato de que apenas um dos adjetivos utilizados para

dimensionar a situação não é dicionarizado, ou seja, mais uma vez, a força da

cena está no encadeamento dos termos e na sua enumeração, não na gíria em

si mesma. Outro elemento que deve ser levado em conta é a rima. Ela é um

recurso presente em todos os trechos nos quais Malagueta aparece, em uma

clara estilização da linguagem dos malandros.

O trecho traz ainda uma novidade no que diz respeito aos outros

analisados aqui: a palavra “penderepá” aparece com um asterisco, que se liga

a uma marginália inserida no canto superior da página. Ali o escritor anota:

“*Novidade agora na malandragem. Significa: espôrro, tropel, coisa mui

encrencada”. Ao explicar o sentido da palavra “penderepá”, o contista

contextualiza o amigo e, mais que isso, sistematiza a captação do vocabulário

da malandragem e da anotação de seus possíveis significados, ou seja, a

mesma prática presente em seu “dicionário”. Outra coincidência com relação

ao método utilizado no Vocabulário das ruas se dá no modo como João

Antônio faz uso da gíria (ou do calão popular) para explicar a própria gíria. No

excerto, ele dá três significados para a palavra “penderepá”, todos de raiz

popular.

Não há no Vocabulário das ruas uma entrada para o vocábulo

“penderepá”, o que denota ainda mais importância a essa anotação feita na

carta. Mas há um verbete para a palavra “espôrro”, que aparece como um dos

significados de “penderepá”, criando assim uma espécie de rizoma: “espôrro =

conflito, desaguizado21” (ANTÔNIO, 2012). Aqui, as duas palavras estão

dicionarizadas, apenas com a ressalva de que o autor, aparentemente por um

lapso, grafa erroneamente “desaguisado”, que se escreve com “s”, não com “z”,

20 Carta de 03/03/64. 21 No estudo de Patrícia Santos, ela anotou “Espôrro = conflito, desajuizado”. Como o material está escrito à mão, a possibilidade de leituras conflitantes existe. Considerei a opção apresentada pela pesquisadora, mas após analisar a letra do escritor, optei pela opção “desaguizado”, pois, mesmo tendo que assumir a hipótese do erro de grafia, ela me pareceu mais coerente com o sentido do verbete.

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e significa “1. Conflito, desavença ou briga entre pessoas. 2. Desordem,

confusão, tumulto”, conforme definição do e-dicionário Caldas Aulete.

Apresentamos neste artigo apenas alguns elementos do emprego da

gíria e do vocabulário das ruas – de maneira mais ampla – entre muitos outros

possíveis. O recorte pretendeu abranger o início da carreira de João Antônio,

quando este ainda era um jovem autor em busca de fixação de seu nome e

estilo, dentro do quadro geral da Literatura Brasileira.

No Acervo João Antônio, hoje sob a guarda do CEDAP - Centro de

documentação e pesquisa -, da Unesp-Assis, há uma série de documentos,

entre os quais, muitos blocos (feitos pelo próprio escritor com maços de cigarro

vazios) com anotações de frases e termos, captados nas ruas, para serem

retrabalhados e inseridos nas obras literárias do escritor.

Nesse sentido, as cartas e a agenda-dicionário, ou Vocabulário das ruas,

são apenas dois dos exemplos de suportes, nos quais se podem observar a

pesquisa do contista paulistano com a linguagem. Esse material demonstra,

não apenas a atenção dispensada por João Antônio à fala dos marginalizados,

mas o modo como esta fala é trabalhada literariamente, não sendo apenas

uma transposição pura e simples para o discurso das personagens.

REFERÊNCIAS:

ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu rancor. São Paulo: CosacNaify, 2001.

______. Dedo-duro. São Paulo: CosacNaify, 2003.

______. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: CosacNaify, 2004.

PAIXÃO, Fernando. João Antônio: cartas de desabafo. Revista IEB n.51 mar/set 2010.

CORRÊA, Luciana Cristina. Merdunchos, Malandros e Bandidos: estudo das personagens de João Antônio. Dissertação. 2002.

DURIGAN, J. A. João Antonio e a ciranda da malandragem. In: SCHWARZ, R. (Org.) Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 215-216.

E-dicionário Caldas Aulete. http://www.aulete.com.br/

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PEREIRA, Jane Christina. A poesia de Malagueta, Perus e Bacanaço. Tese 2006.

SANTOS, Patrícia Aparecida. A agenda-dicionário de João Antônio e as obras Dedo-duro e Abraçado ao meu rancor. (Acervo João Antônio – 2006 inédito)

ANTÔNIO, JOÃO. Vocabulário das ruas. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: CosacNaify, 2004.

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4

A trajetória de um bandido em Leão-de chácara

Luciana Cristina Corrêa

Universidade Estadual Paulista/Assis

A literatura não nasceu para dar respostas, tarefa que constitui a finalidade específica da ciência e da filosofia, mas antes para fazer perguntas,

para inquietar, para abrir a inteligência e a sensibilidade a novas perspectivas do real

(Julio Cortázar)

João Antônio cria uma espécie de normalidade do socialmente anormal, fazendo com

que os habitantes de sua noite deixem de ser excrescências e se tornem carne da mesma massa

de que é feita a nossa. O seu submundo é um mundo como outros.

(Antonio Candido)

A presença, na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, de

documentos, objetos e textos pertencentes ao escritor paulista João Antônio

Ferreira Filho (1937-1996), que formam o “Acervo João Antônio”, instigou que

estudos sobre a obra do escritor fossem realizados. Assim, o presente artigo

resulta de um estudo teórico sobre os personagens ficcionais do autor, mais

precisamente sobre os “tipos” presentes em sua produção artística, haja vista

serem reconhecidos assim pelo próprio escritor e por vários críticos. A esse

respeito, o autor, numa de suas declarações à imprensa, revela:

Eu não levanto personagens pitorescos, engraçados, anedóticos e nem minhas histórias são amenas, humorísticas de mero entretenimento. Minha gente é típica, mas nada caricatural. É universal, vincada de realismo e verdade, possui a sua própria valência, seu peso específico. (ANTÔNIO, 1987).

Como ressalta o próprio contista, seus personagens não são figuras

caricaturais, ou seja, não são vistas sob o ângulo do ridículo ou mesmo

exóticas ou anormais. São típicos, pois representam uma média comum de

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indivíduos com as mesmas qualidades ou vícios. E como típicos, induzem à

certeza de que as situações vividas por eles nas narrativas são facilmente

identificadas ou mesmo vivenciadas por qualquer ser humano.

Umberto Eco (1976), ao estudar a tipicidade dos personagens nas

representações literárias, ratifica que eles não precisam, necessariamente, se

caracterizarem por suas virtudes para se constituírem como “tipos”. O mesmo

salienta que podemos considerar típicos os personagens cujas ações e

comportamentos amiúde são condenadas pela sociedade, já que os vícios de

um personagem são perfeitamente encontrados nas pessoas reais. Como o

próprio ser humano não é pleno de virtudes, o que se torna essencial é a

identificação que este possa vir a ter com os seres fictícios na literatura. Nesse

sentido, vale-nos as reflexões do autor de Apocalípticos e Integrados:

[...] a tipicidade da personagem se define na sua relação com o reconhecimento que o leitor nela pode efetuar. A personagem bem realizada – sentida como tipo – é uma fórmula imaginária com mais experiências verdadeiras que resume e emblematiza. Uma fórmula ao mesmo tempo fruível e crível (ECO,1976, p. 225, grifos nossos).

Dessa forma, o “tipo” para o estudioso italiano “[...] é, portanto, a

personagem ou situação bem realizada, individual, convincente que permanece

na memória”. Acrescenta ainda que um personagem pode ser reconhecido

como típico quando, “pela organicidade da narrativa que a produz, adquire uma

fisionomia completa, não apenas exterior, mas intelectual e moral.” (1976, p.

219).

A grande maioria dos personagens do escritor João Antônio possui

como marca a “tipicidade negativa” proposta por Eco, já que suas ações e

sentimentos, de forma alguma, podem ser denominados “virtuosos”. Todavia,

não deixam de ser, em determinadas ocasiões, reconhecidas como atitudes

praticáveis por qualquer ser humano, leitor da obra do escritor.

Assim, transcorridos, aproximadamente, doze anos da primeira edição

de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), surge mais um título na carreira

literária do escritor João Antônio, no qual podemos reconhecer as

particularidades destacadas por Eco em seu arguto estudo. Leão-de-chácara,

publicado em 1975, quase que simultaneamente chega às livrarias com a

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reedição da predecessora coletânea e, como essa, apresenta aos leitores,

atraídos pelo universo narrativo do autor, o ambiente da malandragem e as

figuras humildes e marginalizadas que habitam nesse meio.

Um mundo ficcional composto por boêmios, prostitutas, gigolôs,

jogadores, punguistas, engraxates, picaretas e traficantes, enfim, os

marginalizados do sistema de organização social brasileiro ou, como nos

acrescenta Antônio Candido (1982), “[...] os seus contos exploram quase

sempre o chamado submundo, o outro lado que pagamos para não ver, ou

para ver do palanque armado pelos distanciamentos estéticos.”

O segundo trabalho do escritor ganha uma especial atenção da crítica no

momento de seu lançamento, sendo destacado em vários veículos de

imprensa. Ao divulgarem a obra, os críticos, na maioria dos textos pesquisados

no “Acervo João Antônio”, destacam a expectativa do público leitor pela volta do

estilo de narrar particular do escritor, ou seja, a linguagem que, conforme Hélio

Pólvora (1975, p. 2), é um “aspecto dos mais deleitosos” e “que exprime

sempre a psicologia individual e de grupo” e, sobretudo, pelos peculiares

personagens, elaborados não para o divertimento, mas a fim de transpor para a

literatura sua condição de miséria.

Em Leão-de-chácara, vemos que João Antônio permanece dividindo as

narrativas por partes que integram a obra e, neste caso, especificamente, pelas

cidades Rio de Janeiro e São Paulo, ao contrário do anterior Malagueta, cujas

divisões justificam-se pela temática. Composto por quatro histórias, o autor

agrupa em “Três Contos do Rio” os textos “Leão-de- chácara”, “Três Cunhadas

– Natal 1960” e “Joãozinho da Babilônia”. A primeira narrativa foi também

publicada em algumas antologias nacionais e a última, além das coletâneas

brasileiras, destaca-se igualmente nos Estados Unidos, Alemanha e Polônia.

Ocupando boa parte do livro, temos em “Um Conto da Boca do Lixo”, - uma

referência clara à zona do baixo meretrício na capital paulista, no início da

década de 50 do século passado - o clássico “Paulinho Perna Torta”, aclamado

pela crítica como um dos melhores textos do escritor e editado também em

antologias nacionais e estrangeiras.

Quanto à construção dos personagens de Leão-de-chácara, podemos

adiantar que a maioria deles possui como marcas, além da tipicidade negativa

destacada por Umberto Eco em seu estudo, as mencionadas no estudo de Eric

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Hobsbawn (1975:135) quando o mesmo refere-se às considerações de Ivan

Olbracht e que merecem ser lembradas, por nós, neste momento. Nas palavras

do crítico:

O homem tem um anseio insaciável de justiça. Em sua alma rebela-se contra uma ordem social que lhe é negada, e, qualquer que seja o mundo em que ele viva, ele acusa de injustiça aquela ordem social ou todo o universo material. O homem está imbuído de um impulso estranho e obstinado para lembrar, para racionalizar as coisas e modificá-las; e além disso traz consigo o desejo de possuir aquilo que ele não pode ter – ainda que na forma de um conto de fadas (OLBRACHT apud HOBSBAWN, 1975, p.135).

A aversão ao sistema de organização social, traduzida numa visível

aversão à ordem social que lhe é negada, o desejo de modificar e racionalizar a

realidade como ela se apresenta e, somado a tais dados, o intento de possuir

aquilo que, certamente, não pode adquirir por meios lícitos, são algumas das

características dos seres encontrados neste livro de João Antônio.

O segundo trabalho do autor, todavia, traz uma novidade, uma nova

categoria que devemos acrescentar à galeria de tipos que compõem o seu

universo narrativo. Ao contrário do que presenciamos no estreante Malagueta,

repleto de malandros e otários2, agora, destacamos a elevação da figura de um

marginal ou bandido como personagem protagonista. Paulinho Perna Torta, do

texto homônimo, pode ser considerado como um perigoso delinquente, na

medida em que ultrapassa a malícia, astúcia e pequenos golpes, típicos dos

malandros Malagueta, Perus, Bacanaço, Vitorino e Paraná, inseridos na

primeira publicação do autor, para se transformar numa figura amarga, fria e,

sobretudo, criminosa, capaz de atos violentos, entre os quais podemos

destacar alguns homicídios, contra os que ousam cruzar seu caminho.

Ao passarmos da literatura do escritor paulista para a extratextualidade,

mais especificamente aos estudos da área de Sociologia, veremos que alguns

trabalhos contribuem de maneira significativa para o entendimento do

banditismo enquanto fenômeno social. Eric Hobsbawm (1975), por exemplo,

nos revela, em seu pertinente estudo sobre a figura do bandido, que

determinadas atitudes desses seres podem ser explicadas como uma reação

de homens livres aos desajustes sociais e às más condições de vida. No intuito

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de uma melhor compreensão acerca do comportamento típico de bandidos, o

autor prefere dividir em três grupos distintos suas principais manifestações.

No primeiro grupo, Hobsbawm destaca o “Bandido Nobre”, o de ações

positivas, aquele representado pela lenda de Hobin Hood, cujo início da

carreira marginal é marcado por sofrimentos, ligados às injustiças sociais. Ele é

o que “corrige os erros”, “o que rouba dos ricos e dá aos pobres”, o que

promove a justiça sem fazer uso de violência, matando quando absolutamente

necessário.

A segunda categoria mencionada pelo estudioso britânico é a do

marginal “Haiduk”, um tipo de malfeitor comumente caracterizado como

integrante de um grupo de homens livres, armados, fugidos, a maior parte, da

servidão nas planícies do sudeste da Europa do século XV. São conhecidos

como combatentes a serviço de senhores rurais e membros da nobreza, em

troca do reconhecimento de sua liberdade e algumas doações de terras.

Por fim, o último, mais próximo e significativo grupo de marginais

diagnosticado por Hobsbawm, diz respeito aos “Vingadores”, os que,

representados por Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o nosso alcunhado

Lampião, são identificados pelo desejo de vingança e usam a tortura e a morte

como afirmação do seu poder. Mesmo fracos e pobres podem provar que são

terríveis, através das crueldades e crimes que praticam, como as batalhas, os

ataques às cidades, os sequestros, os combates com soldados e os

assassinatos.

Ora, mesmo aparentemente distantes de nossa realidade brasileira, em

pleno século XXI, numa sociedade industrializada, marcada pela divisão da

população em classes sociais e, consequentemente, caracterizada por

inúmeras injustiças, convém destacar que algumas das marcas dos bandidos

estudados por Hobsbawm, mais especificamente as do último grupo, estão

presentes em nossos marginais urbanos reais, como também em nossas

representações literárias.

Na literatura, especialmente na do escritor João Antônio, o fenômeno do

banditismo, representado no personagem exibido a seguir, adquire uma nova

dimensão. Uma particularidade digna de registro, já que podemos apreciar as

ações e pensamentos do protagonista a partir de seu próprio ponto de vista, da

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sua visão de mundo, evitando, assim, um olhar piedoso ou de menosprezo dos

leitores a essa figura.

A narrativa “Paulinho Perna Torta”, a última e mais extensa das quatro

de Leão-de- chácara, traz, em suas páginas, algumas características que a

engrandecem e a tornam uma das mais densas do escritor João Antônio, como

nos declara o crítico Antonio Candido:

João Antônio publicou em 1963 a vigorosa coletânea Malagueta, Perus e Bacanaço; mas a sua obra-prima (e obra-prima de nossa ficção) é o conto longo “Paulinho Perna Torta”, de 1965. Nele parece realizar-se de maneira privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os níveis da realidade, graças ao fluxo do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre falado e escrito, ao ritmo galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de uma maneira brutal a vida do crime e da prostituição (CANDIDO,1989, p. 210-211, grifos nossos).

Diante da importante apreciação de Candido é que nos dispomos a

estudar a intimidade desse personagem protagonista e detectar suas

principais marcas como um bandido. A priori, devemos mencionar que alguns

aspectos o distinguem dos malandros que permeiam as páginas do livro de

estreia do autor, Malagueta, Perus e Bacanaço. Assim como também se faz

necessário acrescentar que determinadas marcas o aproximam dos três

protagonistas do conto que dá título à coletânea, como veremos

oportunamente.

Antes de retomarmos o pertinente estudo de Eric Hobsbawm e dele

utilizarmos alguns aspectos que, de certa forma, contribuem para a

caracterização de Paulinho Perna Torta, destacamos, inicialmente, que essa

criação artística de João Antônio nos é apresentada pela voz do próprio

personagem. Ou, como nos acrescenta a professora Tânia Macêdo (2002, p.

8), “[...] é enfocada a partir de seus próprios olhos e definida por suas próprias

palavras.” Semelhante à maioria dos textos do autor, tomamos conhecimento

de experiências e ações na trajetória do marginal através de seu próprio relato,

ressaltando, dessa forma, o uso do monólogo interior como recurso narrativo

utilizado na apresentação do personagem aos leitores.

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Com o emprego de um retrospecto narrativo, uma “distância cronológica

entre o ‘então’ e ‘agora’ e, no final, o invariável retorno ao presente”, lembrado

pelo crítico Malcolm Silverman (1981:71) - um recurso também aplicado em

narrativas como “Fujie”, “Meninão do Caixote” e “Afinação da Arte de Chutar

Tampinhas”, inseridas no primeiro livro, citado anteriormente - Paulinho Perna

Torta relata como passa de uma criança abandonada a um bandido famoso,

explorador do meretrício e do jogo:

Dei duro. Enfrentei. Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro, ganhar. Como todo infeliz começa. Já cedinho batucava. – Vai um brilho, moço? Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar freguês [...]. Os dedos imundos não tinham sossego às vezes, cobiçava os pisantes dos fregueses; então, apurava mais o brilho [...]. O tipo se levantava da cadeira, se arrumava todo; se empinava, me escorregava uma nota. Humilde, meio encolhido, eu recolhia a groja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, uma nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia. (ANTÔNIO,1989, p. 97).

O início de sua vida marginal é marcado por explorações e sofrimentos

morais e físicos nas suas “virações” pelas ruas de São Paulo que indicam uma

inicial preocupação do jovem personagem com o trabalho e moradia, que

poderiam ser consideradas inquietações próprias de um “otário”. Em suas

ações iniciais podemos notar uma apreensão quanto ao seu incerto futuro, haja

vista que “humilde e meio encolhido” (p.98), um “trouxinha”, como ele mesmo

se auto classifica, declara a sua primária condição de subserviente e explorado

pelo jornaleiro, o verdadeiro dono das caixas de engraxar:

Aguentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí. Aguentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pelo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo [...]. A gente caía para a rua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia

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cachorro enfiando a fuça atrás de comida. (ANTÔNIO,1989, p. 98-99).

Em meio a “tiro, facada, navalhada” (p.103) - marcas que denunciam

uma violência mais explícita nesta obra do escritor - o protagonista vai, aos

poucos, adquirindo os ensinamentos necessários à sobrevivência no submundo,

processo semelhante ao que ocorre aos demais malandros joãoantonianos.

Entretanto, ainda “uma criança” ou um aprendiz do submundo da

malandragem, semelhante ao franzino e anônimo protagonista de “Frio”, em

Malagueta, Perus e Bacanaço, Paulinho ainda desconhece “[...] cadeia,

maconha, furto, jogo, mulher.” (p.108).

A aparente ingenuidade, comum aos iniciantes a malandros e, - neste

momento podemos lembrar também de Perus e Meninão do Caixote, ambos

inseridos ainda na primeira publicação do autor, - cede lugar à picardia quando,

aos quinze anos, o jovem personagem inicia o aprendizado com o seu mentor

Laércio Arrudão. A partir desse momento, Arrudão passa a ser admirado por

Paulinho Perna Torta como Bacanaço por Perus. Como podemos observar

pelo excerto selecionado, Paulinho, até atingir o apogeu de sua bandidagem,

também recebe o “treinamento” que aos jovens vadios é necessário, tornando-

se ele próprio um malandro, mesmo que temporariamente:

Foi depois de Laércio Arrudão me apadrinhar e me ensinar o riscado do balcão, pra cima e pra baixo, servindo cachaça, fazendo sanduíche e tapeação nos trocos; misturando água nas bebidas quando, noite alta, as portas do bar desciam e Laércio ia fazer a féria e eu as marotagens nas garrafas. (ANTÔNIO, 1989, p. 99).

O aprendizado do iniciante Paulinho Perna Torta na malandragem, como

o do jovem Perus, é um recurso utilizado visando à sobrevivência no adverso

sistema social e, como declara Jesus Antônio Durigan, esse processo tão caro

aos malandros:

Se realiza duplamente: aquele que é percorrido pelos atores dos espetáculos narrados, com todos os seus conflitos e contradições advindos de uma realidade adversa, e o que se

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processa ao nível do aprendizado do narrador. (DURIGAN,1989).

Este segundo modo refere-se às narrativas em terceira pessoa, nas

quais o crítico faz menção à existência de um “saber narrar malandro”, já que o

narrador, nos textos de João Antônio, garante a sua sobrevivência graças à

“capacidade de valer-se de textos (ditos populares, gírias) e de características

textuais (ritmo, pontuação) alheias” (1989, p. 16). É o processo que

encontramos em narrativas de terceira pessoa como “Malagueta, Perus e

Bacanaço” e “Frio”, nas quais descobrimos um modo de narrar peculiar, ou

seja, uma forma também malandra de relatar os fatos como se o próprio foco

narrativo viesse do submundo da malandragem.

A semelhança entre “Malagueta, Perus e Bacanaço” e o texto ora

analisado do escritor, também pode ser percebida no comportamento de

Paulinho Perna Torta. O protagonista, como os vários malandros do primeiro

livro de João Antônio, possui um desejo quase incontrolável de caminhar ou, no

seu caso, pedalar por diversos lugares no intuito, talvez, de buscar algo ou

alguém que lhe preencha o vazio existencial. A esse respeito, convém

mostrarmos tal similitude com as próprias palavras do protagonista:

Vou pedalando. O vento quente me dando na cara, o sol me enxugando os cabelos, os olhos doem um pouco, acordei agorinha. Gostoso, pedalar [...]. E zanzo demais por aí, em cima da minha magrela. Gosto do pedal. Nele é bom curtir essa onda de andar. Sei lá porque gosto. Sei que gosto. Atravesso essas ruas de peito aberto, rasgando bairros inteirinhos, numa chispa, que vou largando tudo para trás – homens, casas, ruas. Esse vento na cara [...]. Pacaembu, Barra Funda, Campos Elíseos, Bom Retiro. Vou pedalando. (ANTÔNIO,1989, p. 112-124).

Além da deambulação por diversos lugares, outra característica que

aproxima os personagens das duas narrativas, mais especificamente o cínico

Bacanaço e o ainda aprendiz Paulinho Perna Torta, é a condição de

sustentados financeiramente por suas “minas” ou namoradas. Aquele, pela

prostituta e “otária” Marli, este por Ivete, de quem chega até a ganhar uma

bicicleta, além de ser a responsável pela iniciação da vida sexual do

personagem:

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Cato a caixa de charutos que fica embaixo da cama, começo a contar o dinheiro que Ivete beliscou na noite. Vou estendendo as notas sobre a colcha. A maçaroca de grana vai formando montinhos – tantas de cem, tantas de duzentos... Separo tudo. Depois, conto para as despesas [...]. E tantos para a Caixa Econômica, em meu nome. Mamo mais algum tutu decente para o meu consumo. Roubo duzentas pratas. Ivete vem se chegando com seus carinhos. Empurro, ela que me espere contar o dinheiro. Dou-lhe um bofete leve [...]. Arrependo- me de morder só duzentos cruzeiros. Malandro tem é que andar com muito. Tomo mais uma nota graúda. Ivete já está choramingando [...]. Meto a mão no bolso, fecho os olhos, sinto as notas [...]. Laércio começava a me escolar que quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o dinheiro interessa. Só ele é positivo. O resto são frescuras do coração. (ANTÔNIO, 1989, p. 116-122).

Como um malandro, o protagonista vai se aperfeiçoando e fazendo

carreira na arte dos golpes e trapaças até chegar ao auge de um marginal.

Podemos demarcar sua inclusão no mundo do crime no momento em que é

“enquadrado” pela polícia como ladrão e assaltante:

Faço um conluio com a curriola de assaltos de Bola Preta. Mão armada, máquina na mão. Assalto, surrupio carteira, Colt 45, vou gatunando por aí. Cinco passagens na Delegacia de Furtos. A Captura já farejou atrás de mim. Carrego cinco processos no lombo, que o doutor Aniz Issara cuida a bom preço. Trato Aniz de você, me impondo – e ele é o maior especialista do crime em São Paulo. Mas estou fichado apenas como ladrão e assaltante. Rufianismo, vadiagem e jogo, não. (ANTÔNIO,1989, p. 137-138).

É neste momento da narrativa, todavia, que identificamos o

afastamento do personagem do ambiente no qual Bacanaço estava inserido

em “Malagueta, Perus e Bacanaço”: o mundo da malandragem, ou seja, um

universo aparentemente menos violento, em que os golpes se resumem a

pequenos delitos e trapaças de pouca monta, sem maiores danos aos

demais personagens. No instante em que Paulinho Perna Torta abandona a

malandragem “aprovada” ou “leve” para se dedicar a golpes verdadeiramente

desonestos, nos quais incluímos assassinatos e tráfico de drogas, é que

podemos classificá-lo como um bandido ou, como ele próprio se denomina,

um “malandro dos malandros” (p.145). A delinquência da personagem-

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narrador pode ser identificada a partir de fragmentos como os selecionados

abaixo:

Cobiça raiada vai comigo. Por causa de dois braseiros da Rua dos Gusmões, apago a Colt 45, em tiroteio de rua, o cafetão Mandureba, falado cafiolo, que atravessando o meu trajeto queria me beliscar aquelas situações. (ANTÔNIO,1989:151).

Após dois anos e meio na Casa de Detenção e solto por “bom

comportamento”, o bandido-protagonista monta uma casa de jogos em parceria

com seu mestre Laércio Arrudão e passa a comandar o tráfico de drogas nos

subúrbios de São Paulo:

Lido com tóxicos. Desço à zona de Sorocaba e ao Retiro de Jundiaí [...]. Passadores de fumo vêm comigo. Nota encorpada. Só se trabalha com a melhor maconha, a pura. Cabeça-de-nego, vinda de Alagoas (ANTÔNIO,1989, p. 151, grifos nossos).

Note-se que os verbos em destaque no fragmento citado indicam uma

aparente normalidade nos “negócios” do personagem, como se esse fosse um

verdadeiro trabalhador, exercendo o que a sociedade costuma rotular como um

“trabalho honesto”.

A partir de trechos como o acima destacado da narrativa, deve-se

ressaltar que a violência física, o tráfico de drogas e o homicídio se mostram

mais explícitos em “Paulinho Perna Torta” do que na maioria dos textos do

autor paulista. Cenas como a da destruição da zona do baixo meretrício de São

Paulo, como também a da morte da prostituta Ivete, queimada viva pelos

policiais, indicam a densidade na construção do texto entre os demais de João

Antônio. Sob este aspecto, destacamos o importante excerto da narrativa:

Como loucos, tantãs de muita zonzeira, acabam com a zona. Vão esvaziando. Inundam as casas. Tocam fogo nos colchões, entortam janelas, com guinchos arrebentam as portas. Estraçalham, estuporam, quebram. Atacam as minas, arrancadas do sono e quase nuas. Batem e chutam como se surrassem homens. Sapateiam nos corpos das mulheres. A polícia em massa [...]. Os cavalos pisam também. Empinam-se no ar e atropelam as infelizes. Vão pisando. As mulheres

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engolem depressa tubos de tóxicos e despejam álcool no corpo. Os corpos pelados, sem pressa pelas ruas, vão às labaredas, ardendo como bonecos de palha [...]. Gente, cantoria, grito; é esguicho d’água, é tiro, correria desnorteada. Xingação, berreiro, choro alto e arrastado, cheiro de carne queimada e fumaça. Voa de tudo pelas janelas. Quebram cama, cadeira, oratórios... Sangue se espirra no lixo da rua [...]. Ivete está morrendo devagar na rua Aimoré, há cinquenta metros meus. Eu nunca vi morte assim e sei lá como me aguento quieto, me remexendo por dentro e não podendo fechar os olhos [...]. Ivete está morrendo [...]. As sirenas das assistências parecem crianças chorando. Recolhem os corpos em carne viva e, aos trombolhões, jogam para dentro. Carnes se desmancham, braços e pernas. Dez- doze mulheres. Braços, pernas. Os cadáveres ainda ardem. Minha boca fechada há muito, os lábios se mordendo. Ivete cai de vez. (ANTÔNIO,1989, p. 143-144).

O momento descrito literariamente na narrativa joãoantoniana também

torna-se foco de alguns olhares críticos de sociológicos e historiadores, entre

eles, destacamos o da pesquisadora Márcia Regina Ciscati, que ao abordar a

famosa “limpeza” realizada de forma brutal pelos policiais na Boca do Lixo

paulistana, ressalta não tratar-se de ação de acarreta,

A regeneração, mas sim a transformação para uma performance mais agressiva ou uma necessidade de atualização que parece descaracterizar a antiga malandragem [...]. Reforça-se assim, determinados argumentos como, por exemplo, o de que a malandragem não só existiu no contexto real da cidade, como não morreu [...], apenas modificou-se como parte de um conjunto de transformações que ocorreram na vida urbana. (CISCATI,1998, p. 42-43).

Sob este aspecto, Paulinho Perna Torta transforma-se num possível

representante da transformação da malandragem mencionada por Ciscati, em

seu estudo. O protagonista possui algumas marcas que o revelam como um

perigoso bandido e a sua “performance” como marginal - para ainda usarmos

um termo da pesquisadora - torna-se cada vez mais agressiva, no decorrer das

páginas da narrativa.

Destacamos também e, agora recorrendo às considerações de E.

Hobsbawn, que a categoria a qual pertence o personagem do escritor possui

sua própria organização. Marginais, mesmo que fictícios, “[...] formam sua

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própria sociedade isolada, senão uma anti-sociedade de ‘tortos’, que reflete a

dos ‘honrados’” e “normalmente falam sua própria linguagem.” (1975, p. 32). A

esse respeito, valem-nos as palavras do narrador-protagonista:

Chamo os dois. Fazemos um bate-boca de juízo e depressinha, num come-quieto no Morumbi. No Morumba, traçamos a defesa, catando solução. Armamos sociedade, conluiados os três [...]. O malandreco Frangão, Laércio Arrudão e eu montamos a maior boca e jogo de ronda da cidade. Até a polícia frequenta o nosso come -quieto do Bom Retiro. Dobro paradas de trezentos mil jiraus. A rataria se mistura com a gente no quente do jogo e assim é que deve ser em tempos de paz (ANTÔNIO,1989, p. 141-149, grifos nossos).

A linguagem utilizada pela personagem, além de denunciá-lo como um

bandido experiente, que domina o linguajar próprio do submundo, repleto de

gírias, evidencia, sobretudo, que os seus negócios são realizados de forma

rápida e os lucros oriundos dessas atividades também aparecem

instantaneamente, como podemos perceber pelo ritmo da narração. Mesmo

numa estrutura de características próprias, organizada conforme as leis e

hierarquias do submundo, marginais como o personagem Paulinho Perna Torta

não se isolam da sociedade, não se afastam dos “homens de bem” ou como

nos declara o autor de Bandidos,

[...] continuam a fazer parte da sociedade [...], e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos da justiça, talvez até como líderes da libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. (HOBSBAWMAN,1975, p. 11).

O personagem-título de “Paulinho Perna Torta”, na tentativa de

soberania entre os demais marginais e no intuito de manter contatos que julga

oportunos para o seu intento de ascender socialmente e continuar no mundo

da criminalidade, relaciona-se diretamente com jornalistas, policias e figuras

representativas da classe alta, como veremos a seguir:

Vamos molhar a mão dos homens com uma granuncha gorda e graúda. Ou os tiras entram nos bons entendimentos ou irão rebolar. Porque haverá guerra [...]. Sou tratado de doutor,

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jornalistas me adulam. E nessas umas e outras me estendem convites. Com as equipes esportivas dos jornais e dos rádios, conheço a Argentina, o Uruguai e o Peru. É Paulinho duma Perna Torta quem nessas delegações melhor ajambra a elegância de sua picada [...]. Que minas eu tenho e até pivas e naimes das mais finas. Tive filhas de bacanas, nas estranjas. (ANTÔNIO,1989, p.141,151,154).

Torna-se importante mencionar que “Paulinho duma Perna Torta” ou

“Paulinho Perna Torta” – como encurtam os tontos dos jornais” – (p.150), ao

contrário do malandro Bacanaço (que prefere afastar-se de lugares

frequentados por “bacanas” e permanece derrotado financeiramente durante

toda a narrativa), além de interagir com os integrados no sistema, ascende

socialmente através de seus “negócios”, chegando a ser “adulado” e

“convidado” a frequentar lugares designados aos “otários” e relacionar-se com

pessoas consideradas por ele influentes, como vimos acima. Dessa forma,

mantendo contato com a sociedade dos considerados comumente como

“homens de bem”, o protagonista, que outrora pertencia à baixa malandragem,

chega a um refinamento que o coloca mais próximo do cidadão respeitável,

como observamos abaixo:

Meu capital sobe na Caixa Econômica da Praça da Sé [...]. Passo para o partido alto. Manicuro as unhas, me ajambro com panos ingleses, fumo charuto holandês e a crônica policial comenta com destaque porque declarei, dia desses, que a minha marca é só Duc George. Holandês. E caftinar é o negócio [...]. A chegada da granuncha alta me refina. Quem conta tostões não chega a cruzeiros. Aprendo. Monto um apartamento na Avenida Rio Branco e quero de tudo. Jardim de inverno, televisão, telefone, carro e ar refrigerado (ANTÔNIO, 1989, p.136,150,151).

A ascensão social do protagonista, oriunda de suas falcatruas e de

diversos crimes, nos revela, segundo Edison Luiz Lombardo, a

contraditoriedade de seu caráter. A personagem que, de início, critica a

burguesia, ao final, encontra-se inserido nela e, como um bandido

“aburguesado”, mantém contato com jornalistas e policias. Lombardo acredita

que o próprio refinamento com relação às vestimentas é a confirmação de uma

“[...] contradição entre a avaliação negativa que fazia da burguesia,

anteriormente, e sua tentativa atual de adesão a ela.” (1993, p. 169).

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A trajetória de Paulinho Perna Torta no mundo do crime, nos subúrbios

de São Paulo, mais especificamente na Boca do Lixo, faz com que

identifiquemos alguns traços de sua fria personalidade, partícipes do

comportamento dos bandidos “vingadores” de Hobsbawm. A crueldade do

personagem pode ser percebida quando atentamos para seus crimes, na

maioria, movidos pela vingança:

O malandro Valdão, chamado também Valdãozinho [...] me fez uma safadeza [...]. Tenho uma crise e quero a cabeça do cagueta [...]. Às três e meia da manhã, trago minha cambada, faço a invasão do Restaurante Tabu, fecha-nunca da rua Vitória, ponto de aponto da malandragem baixa. E apago, a tiros, o safado Valdão [...]. O enterro de Valdão é seguido por toda a malandragem ao cemitério público de Vila Formosa. A consideração das curriolas a Valdão é um despeito das curriolas a um bem-feito de Paulinho duma Perna Torta. Fico mordido; me vingo partindo para o jogo sujo. Ponho ratos da RUDE e da RONE, rondas especiais da polícia, ocultos campanando dentro do cemitério. E, durante o enterro, capturam lá cinquenta vagabundos. (ANTÔNIO,1989:152-153, grifos nossos).

Como um vingador, a personagem segue tirando de seu caminho todos

que possam impedi-lo de alcançar suas verdadeiras metas. A violência, a frieza

e a crueldade de seus atos podem ser consideradas como uma afirmação de

poder, um poder de mando dentro da própria hierarquia do submundo do texto

de João Antônio, em que os mais fracos obedecem aos mais fortes.

Devemos acrescentar que a soberania de Paulinho Perna Torta entre os

demais delinquentes, entretanto, é adquirida graças a um mestre de

habilidades, o mulato Laércio Arrudão. Os ensinamentos de seu “padrinho” e

os anos detido na cadeia são avaliados pelo personagem como verdadeiras

escolas para a sua posterior posição de “malandro dos malandros”. A relação

entre o protagonista e seu professor de picardias nos faz lembrar a de

Bacanaço e o jovem Perus, em “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Semelhante

ao que sucede a estes, Laércio Arrudão, o dono da Boca do Arrudão, passa a

ser admirado e copiado em suas ações pelo aprendiz Paulinho:

Engraxando lá uns tempos nas caixas da entrada da barbearia, que eu conheci, bem-ajambrado e já senhor, no terno claro de

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brilhante inglês, que fazia a gente olhar, mão luzindo um chaveiro e dentes brancos muito direitinhos, um mulato muito falado nas rodas da malandragem, professor de picardias, dono de suas posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num macio rebolado! [...]. Só aparece à noite alta, vistoso e mandão, barbeado e luzindo. Dono da bola, sua palavra tem peso de lei. Canta de galo aqui e não trabalha. Fiscaliza [...]. Dar ordens é com ele. Os malandros ficam à sua roda ouvindo, aprendendo e adulando. Os irmãos guardam distância [...]. Meu padrinho [...]. E é como se ele me passasse o seu vício de piranha [...]. O ensino de Arrudão quer o meu bem [...]. Arrudão me quer vivo e cobra como ele, a cobiçar e tomar todas as coisas alheias. (ANTÔNIO,1989, p.110,128-129,132, grifos nossos).

Podemos destacar que o próprio aumentativo no nome do mestre de

Paulinho Perna Torta que, de Arruda passa a “Arrudão”, como também o de

Bacanaço, como um aumentativo de “bacana”, já revela a experiência, a

soberania e o poder dos mestres em relação aos jovens aprendizes.

Reservado a poucas liberdades, Arrudão ensina ao ainda jovem

Paulinho a forma “correta” de tratar as mulheres, no caso a prostituta Ivete, “[...]

francesa, trinta e um anos, quinze de putaria [...]” (p.118), a primeira das

amantes do futuro rei da Boca do Lixo e anteriormente exposta em sua agonia,

queimada viva pelas chamas:

O brilho de simpatia nos olhos de Laércio Arrudão começou por me ensinar que quem bate é o homem. E manda surra a toda hora e fala pouco. Quem chega tarde é o homem. Quem tem cinco-dez mulheres é o homem – a mulher só tem um homem. Quem vive bem é ele – para tanto, a mulher trabalha, se vira e arruma a grana. Quem impõe vontades, nove-horas, cocorecos, bicos-de-pato e lero-leros é o macho [...]. Mulher só serve para dar dinheiro ao seu malandro. Todo o dinheiro [...] (ANTÔNIO,1989, p. 121-122).

A responsável por este discurso do malandro Arrudão ao jovem

Paulinho, de conduta semelhante a outros personagens femininos do escritor

João Antônio, como por exemplo, Marli (a garota de Bacanaço), após os

primeiros “safanões” do narrador-protagonista passa de autoritária a obediente.

E “como uma cachorra” (p.123), Ivete sai às ruas drogada, oferecendo seu

corpo em troca de dinheiro, no período que antecede a sua trágica morte:

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Na noite, enche o caco com tudo quanto é bebida. Com os trouxas, seus fregueses, amarra um pingão, ferve e queima o pé. Toma tóxico, perturba, fica à vontade. Às vezes, começa a trambicar vestida [...]. Firma o corpo, chama os homens, levanta o dinheiro. Mango por mango, ali. Pelo quarto-quinto freguês, está engolobada de cansaço. O corpo querendo afrouxar. Mas firme e vai valente. Outra vez Ivete mete um tóxico na cabeça. Otedrina misturada a espasmo de cibalena ou qualquer primeiro barato que encontra na farmácia. [...] Maconha ou picada de injeção, tanto faz. Todo barato é um incentivo quando uma mulher tem vontade e um homem para sustentar (ANTÔNIO,1989, p. 114-155).

A este respeito, a aproximação entre Ivete e Marli, a prostituta e amante

de Bacanaço, torna-se necessária para entendermos como ocorre a relação

conturbada entre os malandros e as mulheres que os mesmos agenciam no

submundo da malandragem. O personagem- título da narrativa, publicada em

1963, já se mostra violento frente a qualquer desobediência, no intuito,

certamente, de mostrar-se mais poderoso, temido e, sobremaneira, fazer-se

respeitado por Marli. No livro de estreia de João Antônio já nos deparamos com

a crueldade do personagem, em merecido destaque abaixo:

Bacanaço andava agora com uma mina nova, vinte anos. Morena ou ruiva não se sabia [...]. Fazia vida num puteiro da Rua das Palmeiras, tinha seu nome de guerra – Marli. A mina lhe dava uma diária exigida de mil, mil e quinhentos cruzeiros, que o malandro esbagaçava todos os dias nas vaidades do vestir e do calçar, no jogo e outras virações. Quando lhe trazia menos dinheiro, Bacanaço a surrava, naturalmente, como fazem os rufiões. Tapas, pontapés, coisas leves. Apenas no natural de um cacete bem dado para que houvesse respeito [...]. Obrigação sua era ganhar - para não acostumá-la mal, Bacanaço batia-lhe [...]. Se a desobediência se repetia, o cacete se dobrava. Bacanaço se atilava em crueldades mais duras. [...] a trancafiava no quarto [...] a mulher que lá ficasse aguentando fomes e vontades. Voltava tarde [...] usava o cabo de aço e agia como se Marli fosse um homem. Proibi-a de gritar. Malhava aquele corpo pelas paredes, dava- lhe nos rins, nos nós e nas pontas dos dedos. Encostava-lhe o cigarro aceso nos seios. Às vezes, Marli urinava [...] (ANTÔNIO, 1987, p. 143).

Como prossegue o narrador, após as surras, a mulher seguia para o

bordel onde trabalhava e, “dolorida e pisada” (p.143) retornava obediente ao

trabalho, a fim de sustentar o seu malandro. Apesar de secundárias, as vadias

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Marli de “Malagueta, Perus e Bacanaço” e Ivete, de “Paulinho Perna Torta”

possuem grande importância para as narrativas, já que é a partir delas que os

protagonistas se afirmam como verdadeiros marginais, que impõem respeito e

autoridade, por meio da violência, aos seus subordinados. E é também com

elas que, tanto Bacanaço como Paulinho, começam a cafetinar mais mulheres

até se transformarem em famosos gigolôs, na noite paulistana.

Ao final da narrativa, aos trinta e um anos e no auge de sua maturidade,

reconhecido como um “bandido linha de frente” (p.147), mas “difamado pelos

jornais, revistas, televisão” (p.154), Paulinho Perna Torta reconhece que toda a

vida de bandidagem o faz consciente de sua precariedade e solidão. Diante

desse estudo da personalidade do narrador-protagonista é que nos resulta a

afirmação de que o retrospecto narrativo ou flash back adquire a importância

de revelar, através de maldades variadas, a vacuidade existencial do

personagem. E é justamente no momento de sua reflexão final, no instante em

que expõe aos leitores as suas frivolidades, que encontramos, paradoxalmente,

a densidade de construção do protagonista pelo escritor João Antônio. A

complexidade do protagonista se mostra de forma consistente nas partes finais

da história:

Eu me refinei, eu me refinei, não devia tanto. Fiz muito fricote, me escarrapachei mais do que a conta, me empapucei. Ou foi essa vida que me ensinou a cobiçar tudo o que é dos outros, iludindo, avançando, tomando, estraçalhando [...]. Eu me refinei e cada vez mais, amanhã precisarei de alguma novidade, senão já não serei o mesmo. Precisarei mais grana. E quando tiver, ainda assim, descontente e encabulado, irei vazio por dentro [...]. Estou com tóxico no caco e uma ideia besta me passa – talvez eu devesse ter ficado com a magrela [...]. Ou tirado Ivete da vida [...]. Tenho a impressão de que me preguei uma mentirada enorme nestes anos todos [...]. Eu só posso continuar. Até que um dia desses, na crocodilagem, a polícia me dê mancada, me embosque como fez a tantos outros. E me apague. E, nesse dia, os jornais digam que o crime perdeu um rei. (ANTÔNIO,1989, p. 159-161).

Como vimos, a densidade na construção do personagem pode ser

exposta no momento em que vislumbramos justamente a sua degradação

existencial, proveniente, talvez, da sua maturidade ao expor-se aos leitores da

narrativa. A riqueza composicional do protagonista nos é transmitida quando,

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nas páginas finais do conto, sua vida é passada a limpo numa trajetória de

expedientes e “virações”, passando da cafetinagem ao tráfico de drogas e

homicídios.

Trata-se mais precisamente de uma confissão digna de um verdadeiro

mestre de picardia, embora consciente da sua condição e do seu vazio

existencial. O personagem reflete, no tempo presente, - no auge de sua

carreira como um famoso marginal, embora desprovido de sua liberdade

anterior que lhe permitia “pedalar”, ou melhor, transitar pelas ruas da cidade e

por que não pela sua própria trajetória no submundo da malandragem - que o

seu “[...] passado [...] escapou[-lhe] das mãos [...] pela reificação social [que]

funciona como projeção de um mundo futuro, perdido por ele, mas que pode

ser conquistado pelo leitor.” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 95).

A densidade do protagonista-narrador pode ser confirmada quando, ao

analisarmos seu comportamento durante a trajetória na Boca do Lixo, notamos

que ele sintetiza algumas categorias de personagens da escrita de João

Antônio. Quando pequeno, como um “trouxinha” ou “otário”, sofre diversas

humilhações físicas e morais até o aprendizado, durante a adolescência, com o

mestre de malandragens Laércio Arrudão. Posteriormente, consegue

desenvolver, na maturidade, a malícia e a habilidade para cometer os pequenos

golpes típicos dos malandros, ultrapassando, numa terceira e última fase, os

delitos de pouca monta para se transformar num verdadeiro criminoso.

É justamente na trajetória de Paulinho no submundo e, de certo modo,

agregando as categorias de personagens do autor, a de malandros e a de

“otários”, para ainda recorrermos a um termo do próprio escritor, que

evidenciamos a reversibilidade como marca significativa na construção destes.

A constante “troca de papéis” ou oscilação entre as posições que ocupam

socialmente, acarretando mudanças de comportamento nos seres ficcionais,

permite que elevemos esta característica como uma das mais importantes para

a análise dos seres que povoam a escrita do autor paulistano, como também

reconhecemos que essa particularidade contribui para a qualidade literária de

seus textos.

A apresentação dos personagens e demais elementos narrativos dos

textos do escritor foi-nos permitida através de um trabalho de um narrador que,

em terceira ou primeira pessoa, adota uma postura também malandra e expõe o

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mundo narrado sob a ótica dos desassistidos socialmente, ou seja, escolhe “[...]

a maneira de pensar dos personagens”, aderindo “[...] a estes de tal maneira

que parece assumir, ele próprio, sua personalidade”, conforme esclarece Júlia

Marchetti Polinésio (1994, p.138).

A singularidade do foco narrativo do escritor é percebida quando

verificamos uma inversão do ponto de vista, pois seus personagens adquirem

voz, alterando a forma de apresentação das narrativas, e este recurso é o que

poderíamos chamar de representação de “dentro para fora” do universo

narrado. O enfoque, segundo Polinésio (1994:146) “emana das estruturas mais

profundas do texto” e não de forma distanciada.

O resultado desse estilo peculiar de narração é que, ao lermos textos

como “Paulinho Perna Torta” ou mesmo o referido “Malagueta, Perus e

Bacanaço”, não menosprezamos os protagonistas pelas condutas

recrimináveis (especialmente no primeiro caso, já que se trata de um bandido),

contudo passamos a observá-los como vítimas que sobrevivem, cada qual à

sua maneira, em um sistema explorador e repleto de desigualdades sociais.

REFERÊNCIAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Literatura, História e Política. 2ed. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2007.

ANTÔNIO, J. Leão-de-chácara. 7ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

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CANDIDO, A. A nova narrativa. In: Educação pela noite e outros ensaios. 2ed. São Paulo: Ática, 1989.

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DURIGAN, J. A. João Antônio: o leão e a estrela. In: ANTÔNIO, J. Leão-de-chácara. 7ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

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ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Trad. Donaldson Magalhães Garschagen. Rio de Janeiro: Ed. Forense – Universitária, 1975.

LOMBARDO, Edison Luiz. O malandro em textos de João Antônio. Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, 1993, 209f. Dissertação de Mestrado em Letras (Estudos Literários).

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PÓLVORA, Hélio. Na trilha da vadiagem. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 set. 1975. Caderno B, p.2.

SILVERMAN, Malcolm. Moderna ficção brasileira 2: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

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De João Antônio para Ilka Laurito

Sílvia Maria Azevedo

Universidade Estadual Paulista/Assis

Missivista contumaz, a correspondência enviada por João Antônio

(1937-1996) à amiga e escritora Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012), entre os

anos de 1950-1980, compõe o rico acervo do escritor paulistano, depositado no

Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da UNESP de Assis.

De 1º. de setembro de 1959, quando remete a primeira carta à poetisa

brasileira, até 1965, Ilka Laurito foi, segundo Rodrigo Lacerda, “[...] a

interlocutora preferencial do jovem escritor, com quem ele trocaria suas mais

íntimas confidências, tanto no nível pessoal quando no que se refere a seus

projetos literários e estéticos.” (Lacerda, 2005, p. 127)

Em setembro de 1959, Ilka Laurito tem o texto “Trânsito” publicado no

Boletim Bibliográfico, do Rio de Janeiro, depois de selecionado no concurso

permanente de crônicas, mantido pela revista. Poucos dias após a publicação,

João Antônio, em tom humilde e respeitoso, aproveita a ocasião para

apresentar-se como aspirante a escritor, que se mostrava identificado com a

temática abordada por llka em sua crônica, que falava do desamor e da solidão

em meio à multidão da cidade grande.

“Foi assim que a vida de João Antônio entrou em minha vida [...]”,

declara Ilka Laurito no belo depoimento, em 1999, em homenagem ao autor,

falecido havia três anos. A carta de 1959 deu início a “[...] uma correspondência

fecunda, franca, riquíssima do ponto de vista humano e literário [...]”, e que Ilka

considera “[...] como indispensável para compreender e vivenciar o nascimento

de um escritor e a gênese de uma obra. No caso, o João Antônio das décadas

de 50 e 60, flagrador da realidade paulista urbana e suburbana.” (LAURITO,

1999, p. 24)

Naquela altura, João Antônio era um autor ainda inédito em livro, mas

que já havia sido premiado em concursos literários, com alguns contos

publicados nos jornais O Estado de S. Paulo e Última Hora. Na mencionada

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carta, o jovem escritor informa também, com certo orgulho, seu trânsito entre

figuras de prestígio da intelectualidade brasileira, como Mário da Silva Brito

(1916-) e Ricardo Ramos (1929-1992), apontados como aqueles que sugeriram

que ele assinasse seus textos com o nome João Antônio. Bergman e Balzac

são nomes que igualmente despontam na correspondência inaugural, a indiciar

o lastro de cultura do aspirante a escritor.

Apesar da importância das correspondências de Monteiro Lobato (1882-

1848) e de Mário de Andrade (1893-1945), Ilka observa não conhecer, na

literatura brasileira, “[...] cartas que discutam com tanta paixão o processo de

criação literária e a entrega à vocação e à profissão de escritor.” Por isso,

embora João Antônio, ao longo da vida, tenha sido um correspondente assíduo

de vários interlocutores, segundo a amiga, “[...] suas primeiras cartas, nascidas

de um autor que ainda não vira o talento reconhecido publicamente, constituem

uma documentação insubstituível para a compreensão de sua obra.”

(LAURITO, 1999, p.25).

A partir de 1956, na informação de Rodrigo Lacerda, João Antônio inicia

a composição dos oito primeiros contos que mais tarde aparecerão em seu

livro de estréia, Malagueta, Perus e Bacanaço. No entanto, a repercussão do

nascimento dos três malandros só despontará na correspondência de 7 de

março de 1960, no depoimento de Ilka Laurito:

Foi assim que eu fui apresentada, num certo dia, a Malagueta, Perus e Bacanaço, os três malandros a cujo nascimento e crescimento fui assistindo, literalmente passo a passo, nas andanças das personagens pela noite paulistana e nas pegadas que iam deixando em minhas cartas. (LAURITO, 1999, p. 27)

A seleção de cinco cartas, entre março e junho de 1960, permite

vislumbrar o processo de criação da novela-título do livro de 1963, período

permeado por momentos euforia, desânimo e de falta de tempo para se dedicar

inteiramente à literatura. Nem bem o trabalho estava terminado, João Antônio

já tem outro projeto em mente, o texto “Gibóia” que, segundo Lacerda, “[...] foi a

gênese da novela, ou conto longo ‘Paulinho-Perna-Torta”, escrita por

encomenda após a publicação do primeiro livro do escritor.” (Lacerda, 2005, p.

116)

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Terminada a versão inicial de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, depois de

um silêncio de dois meses, Ilka recebe, em princípios de agosto, “um

telefonema desesperado de João Antônio.” Sua casa havia pegado fogo, e

junto com a perda de objetos, livros, quadros, discos, máquina de escrever, ele

também perdera os originais do conto que lhe custara tanto trabalho e

sofrimento. Ilka Laurito não hesitou em intimar João Antônio a reescrever o seu

trabalho:

Apesar do irremediável de uma tragédia que, por extensão, também me atingia, eu lhe dei quase uma ordem ao telefone:- você vai reescrever! Mas eu mesma não tinha a convicção, naquele momento, de que esse milagre pudesse ser possível, eu, que acompanhara o laborioso nascimento e crescimento da obra. Ao mesmo tempo lembrei-me de que minhas cartas continham largos trechos transcritos do conto, que ele me enviava à medida que os produzia, e que hoje podem ser preciosos para o confronto entre as duas versões. Assim, com o empréstimo de minhas cartas e de rascunhos de posse de Caio Porfírio Carneiro – o amigo a quem ele também confiava seus originais -, mais a prodigiosa memória que o fazia saber de cor trechos e trechos de uma história com a qual convivera intimamente nos últimos meses, João Antônio entregou-se ao árduo trabalho de reelaborar o conto incinerado. (LAURITO, 1999, p. 31).

Além de Ilka Laurito e Caio Porfírio Carneiro (1928-), Mário da Silva Brito

também ajudou, ao conseguir uma cabine na Biblioteca Mário de Andrade para

que João Antônio reescrevesse o conto levado pelas chamas, sob o pretexto

de que o escritor faria uma pesquisa sobre história da literatura brasileira.

Dentre as inúmeras cartas enviadas a Ilka Laurito, entre o segundo

semestre de 1960 e primeiro de 1961, as quatro escolhidas permitem ao leitor

fazer uma ideia de quão penoso foi o trabalho de reescrever o conto

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, num momento da vida do escritor em que o

trabalho de redator de publicidade na Agência Pettinati e os estudos noturnos

lhe consumiam a força criativa.

Antes de enveredar para o conto, o que talvez pouca gente saiba, João

Antônio havia tentado a poesia, como relata na carta de 15 de junho de 1961 à

amiga-mentora:

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Já tentei poesia, Ilka. Como todos os sujeitos que acabam fazendo prosa, tentei poesia. Daquele jeito. Duas amostras. Naquele tempo, ferozmente heróico eu ia otimista da minha poesia. Quer ver?

As “duas amostras”, transcritas na missiva, referem-se aos poemas

“Utopia no Porto da Felicidade” e “Pausa”, ambos publicados no Jornal do

Povo, de Itápolis, no segundo semestre de 1955, e assinados por “João

Antônio Ferreira Filho.” Embora reconheça que os versos são ruins, João

Antônio julga que, talvez, “[...] lá no fundo, eles tinham alguma coisa de meu.”

Durante o segundo semestre de 60, o ano inteiro de 1961 e o início de

62, no depoimento de Ilka Laurito, “[...] a história de Malagueta, Perus e

Bacanaço vai sendo lentamente, sofridamente, mas firmemente reelaborada.”

Nas cartas desse período, continua a escritora, “[...] momentos de depressão

sucedem-se a momentos de euforia, a insegurança quanto ao fato de não ter

ainda o talento reconhecido publicamente alterna-se com a certeza

indestrutível da vocação de escritor.” (LAURITO, 1999, p. 45).

Quando Caio Porfírio Carneio publica o livro Tapiá, em 1961, com

prefácio de Ricardo Ramos (1929-1992), João Antônio vibrou com o fato, e na

carta de 13 de setembro de 1961 comenta com a confidente ter avaliado o

peso de um livro, quando o amigo publicou o dele: “Livro, Ilka, é coisa que

comove”, diferentemente do que acontece quando um conto é publicado no

jornal ou na revista: “Um sabor isolado. Por melhor que apareça, aparece

mutilado.”

Por um momento, João Antônio cogita fazer dois livros de contos, um

com Paulo Dantas (1922-2007) e Ricardo Ramos, pela Autores Reunidos, e

outro com Mário da Silva Brito, pela Editora das Américas. O primeiro livro teria

por título Meninão do caixote, o segundo, de contos longos, João Antônio conta

histórias. Para o primeiro livro, João Antônio tinha até pensado na provável

colocação dos textos na coletânea, conforme expõe na carta de 23 de maio de

1961.

Exatamente neste momento, no informe de Lacerda, “[...] o presidente

Jânio Quadros cortou os subsídios para diversos setores industriais, entre eles

o dos fabricantes de papel. A isso seguiu-se um drástico aumento nos custos

da matéria prima essencial dos livros.” (LACERDA, 2005, p. 187). Daí, o tom de

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desânimo de João Antônio, na carta de 6 de outubro de 1961: “[...] meus livros

não sairão.”

Ao lado de notícias más, outras boas também são relatadas nesta

mesma carta, como “as admiráveis aulas” de Antonio Candido, que João

Antônio estava frequentando, e o projeto de Maurice Capovilla de filmar

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, o que enche de esperanças o jovem escritor:

“E assim, mal redimidos de um incêndio, meus vagabundos terão uma

oportunidade remota de irem para a tela.” No entanto, as coisas não foram tão

simples, e o conto de João Antônio só será levado ao cinema em 1977, com

roteiro do autor, sob o título Jogo da vida.

Finalmente, no primeiro semestre de 1962, a segunda versão de

“Malagueta, Perus e Bacanaço” estava pronta, e João Antônio correu para

mostrar a Ilka Laurito, que relata esse episódio:

Não posso precisar quando a segunda versão de Malagueta, Perus e Bacanaço ficou pronta. Só sei que num dia do primeiro semestre de 1962, dois anos depois de ter iniciado, pela primeira vez, a história dos três malandros, João Antônio apareceu em minha casa com os novos originais, pedindo-me leitura e opinião. Eu, que tinha ainda muito presente a leitura da primeira versão, tive apenas um reparo: pareceu-me que o final daquela era melhor que o reelaborado. E João Antônio, que nunca se declarou modesto, teve a humildade que o caracterizava diante da própria criação: pensou nas observações e, debruçando-se ainda uma vez sobre o conto, refez o final, que, hoje, é este da versão definitiva. (LAURITO, 1999, p. 47-48).

Com a retomada dos projetos de publicação pelas editoras brasileiras,

ainda no primeiro semestre de 1962, tendo em vista a nova conjuntura

econômica instaurada no país com a renúncia de Jânio Quadros, João Antônio

consegue publicar Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963, pela editora

Civilização Brasileira. Muito embora tenha esperado ansiosamente por aquele

momento, ao fazer a revisão das segundas provas do livro, o escritor é

invadido por inexplicável tristeza, como descreve na carta de 20 de março de

1963: “O livro já não é mais meu, Ilka. Isto é trágico, indizível. A gente por aí

jogado, mostrado, de mão em mão...”

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Mário da Silva Brito, diretor editorial da Civilização Brasileira,

supervisiona a noite de autógrafos de Malagueta, Perus e Bacanaço no Rio de

Janeiro e promove o livro junto ao meio literário. No entanto, como observa

Rodrigo Lacerda:

[...] apenas os críticos mais distraídos do eixo Rio-SãoPaulo foram pegos de surpresa pelo estreante. Muitos de seus contos já haviam sido publicados, alguns mais de uma vez, e mesmo a novela ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, a última a ser escrita, já havia ganho fama após o prêmio Fábio Prado. (LACERDA, 1999, p. 191-192).

Mais à frente, o biógrafo de João Antônio ainda acrescenta:

[...] simultaneamente a sentimentos reais de amizade e admiração intelectual – João Antônio construíra uma rede de pessoas que, sim, amavam a literatura como ele, mas que estavam na condição de ajudá-lo, fosse abrindo espaço para seus contos em jornais ou revistas, aproximando-o de editores, presenteando-o com livros, apresentando-o a outras pessoas, enfim, aproximando o jovem escritor suburbano, então modesto redator de uma agência de publicidade, sem sequer casa fixa, do centro dos acontecimentos. (LACERDA, 1999, p. 195-196).

No Rio, Malagueta, Perus e Bacanaço estava vendendo bem, como

informa João Antônio, na carta de 7 de junho de 1963. Mas para que as vendas

não decaíssem, era necessário promover o livro, e o escritor, obrigado a vencer

suas resistências, passou a buscar jornais, revistas, televisão no sentido de

atrair leitores para a obra.

Depois do Rio, a noite de lançamento e tarde de autógrafo foi na Livraria

Teixeira, em São Paulo, no dia 21 de junho de 1963, às 18h, na qual Ilka

Laurito esteve presente, conforme transcreve no depoimento de 1999:

Estive presente naquele histórico 21 de junho de 1965 [sic], um tempo em que as tardes de autógrafos ainda não se haviam banalizado e eram sempre um evento significativo, restrito aos lançamentos de grandes escritores. Numa certa altura da festa, João Antônio me apontou a presença de mulheres estranhas ao meio e que o cercavam, sorrindo com intimidade. Eram elas algumas de suas personagens, prostitutas da Boca do Lixo paulistana, que ele

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convidara especialmente para a estréia dos seus três vagabundos no mundo das elites intelectuais. E que tratava com o mesmo carinho e respeito com que tratava os outros convidados. (LAURITO, 1999, p. 49).

O sucesso junto à crítica, os prêmios literários, o reconhecimento público

foram fatores fundamentais para que João Antônio tomasse a decisão, talvez a

mais arriscada de sua vida - “Tentar viver de literatura.”, como declara na carta

de 19 de junho de 1963. Mas o que ganhava com a literatura não dava para

viver. A saída era a tradução no exterior, embora àquela altura sem conseguir

resultados mais concretos.

Outra decisão igualmente importante foi trocar São Paulo pelo Rio de

Janeiro, onde João Antônio acabou por se fixar definitivamente, visto acreditar

que na capital carioca encontraria maiores possibilidades de realização e um

ambiente menos provinciano. Na carta de 31 de março de 1965, o escritor não

esconde o entusiasmo pela cidade que, no seu ponto de vista, era melhor que

São Paulo: “Tem mar, tem o espírito do povo, tem a beleza da cidade, tem o

melhor que o Brasil possuir em termos culturais.” E tinha também outros

atrativos irresistíveis, como o samba, as “gafieiras autênticas”, as mulatas, a

Lapa, os bares tradicionais, os “melhores amigos.” Em outra carta, de 4 de

maio, relata que esteve dois dias em São Paulo, na casa de sua mãe, sem ver

ninguém, sem procurar ninguém, sem telefonar para ninguém: “Não senti nada,

absolutamente nada, em termos de saudade.”

Foi também no Rio que João Antônio conheceu Marília de Andrade,

jovem de 20 anos, de tradicional família mineira, por quem veio a se apaixonar.

Na carta de 8 de outubro de 1965, o escritor informa à amiga-confidente o que,

desde junho, vinha tentando contar-lhe: “Houve o amor, Ilka. Inesperado e

aguardado, não planificado e livre, rebelde e intenso, sem horários ou alianças,

imperturbável na sua forma anárquica, espontânea, natural.” Nas cartas de 13

e 24 de novembro, João Antônio informa que o casamento com Marília está

marcado para 11 do próximo mês, e que compreende o “futuro silêncio,

plenamente cabível” de Ilka Laurito.

Embora mais espaçada, e não apenas por conta do casamento, mas

também por inúmeras outras atividades de João Antônio, sobretudo como

jornalista profissional (colaborou, entre outros, para o Jornal do Brasil, Última

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Hora e as revistas Cláudia e Realidade), a correspondência com Ilka Laurito

não foi interrompida.

É na carta de 10 de setembro de 1967, sugestivamente intitulada

“Depoimento sobre a minha geração”, aliás, pouco conhecida dos

pesquisadores, que João Antônio deixa registrado o seu desencanto com o

jornalismo, por não estar cumprindo o papel de revelar ao leitor brasileiro o que

“se poderia denominar de realidade brasileira atual”, que inclui oferecer um

retrato mais real do que seja a mulher brasileira. Do lado das grandes editoras,

como a Abril, os interesses são puramente comerciais, do lado dos intelectuais

brasileiros que colaboram nas revistas mantidas pela editora – Thomaz Souto

Corrêa (1938-), Ignácio de Loyola Brandão (1936-), Maurício Ritter, Roberto

Freire (1927-2008) - estão sempre de “namoro com os chefões”. E a carta se

encerra em tom de desalento: “Afinal, acaba-se perguntando: para que serve o

intelectual? Acho que para ‘ser intelectual’ e nada mais.”

Com a seleção das 23 cartas enviadas a Ilka Laurito, a partir do acervo

sob a guarda do Cedap, o leitor será apresentado ao João Antônio dos anos de

formação, às inquietações e angústias que marcaram o seu nascimento como

escritor, o sucesso conquistado a duras penas, cenas da vida profissional,

entremeadas por fragmentos da vida privada, na sequência dos quais o texto-

depoimento, com que se encerra esta pequena amostra, indicia o tipo de

relação que se estabeleceu entre o missivista e a amiga-escritora.

Na reprodução das cartas, foi atualizada a ortografia e mantida a

pontuação original. Alguns poucos erros de português vieram acompanhados

dos devidos “sic”, ente colchetes. Os fragmentos suprimidos das cartas, alguns

muito longos, não comprometem a intenção e a compreensão das mesmas.

São Paulo, 1/setembro/1959

Prezada Sra. Ilka Brunhilde Laurito,

Esta carta vem do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino, talvez seu

desconhecido. É que aqui convalesço dum acidente que sofri, há quase dois meses. A

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sra. talvez possa imaginar o que significa esse tempo, quando o resguardo é um

diapasão renitente...

Também acontece que sou moço e faço alguma literatura. Se é literatura

mesmo, não sei. O fato é que tenho logrado ganhar alguns prêmios e tenho escrito

uns troços que alguns escritores de meu convívio, dizem prestar. Outra coisa na qual

não faço muita fé: tenho topado bons sujeitos neste São Paulo, que me têm dado a

mão e às vezes se exageram na medida de meus valores.

Escrevo esta carta porque gostei da sua crônica “TRÂNSITO”, que achei muito

verdadeira. O seu trabalho no BBB, carrega toda uma realidade pungente – a tragédia

duma dimensão humana na luta brava da cidade de São Paulo. A solidão dos dias

iguais, do cansaço da lida, da ausência de camaradagem, solidariedade, outras

coisas. E é uma verdade. A senhora soube sentir (o que difícil acontece) e a senhora

soube transmitir (o que é mais difícil), toda essa tragédia do dia a dia, que nós

vivemos, sofremos e vamos tocando com uma rusga nas sobrancelhas. Tocamos,

vencidos, envelhecendo.

Muito humildemente, porém com sinceridade, acho que a sua crônica é duma

atualidade e importância dignas de notícia.

E há valores estéticos, também. Aquela moça caminhando pelo Viaduto do

Chá, na sua carência de amor e compreensão, na angústia de suas vontades,

lembram aqui, ali, além, na vontade duma palavra, criatura numa engrenagem, as

personagens femininas os grandes filmes do sueco Ingmar Bergman. O problema é o

mesmo, a atmosfera é a mesma, até o céu é cinzento. Mas na sua página, a tragédia

inda é mais amarga, porque mais humilde. Sua personagem não se suicida, o que é

uma característica: a vida é ruim, mas a gente continua. O encanto das duas

mulheres, que é também beleza. Porque não é encontro, é um desencontro. E isto

acontece todos os dias de São Paulo. Ô, que este povo não se entende mais!

Uma pessoa na multidão. Solidão. E a gente fica se perguntando se são os

dias apocalípticos, ou se é a sensibilidade que já se embotou de uma vez. E o trânsito

é pressa, não há que interrompê-lo, é segui-lo. Criatura na multidão. Na solidão.

Muito verdadeira, a sua crônica. Um trabalho sentido, e de muita humildade.

Por isso, aqui e ali, atinge uma dignidade sossegada.

Escrevo contos. Ganhei alguns concursos. Em A CIGARRA, na Revista do

Globo, e também em concurso de contos de Natal, patrocinado pela Última Hora e

pela Editora Cultrix, talvez de seu conhecimento. Isto foi no ano passado. Também

muito me interessam os problemas paulistanos e nos meus trabalhos vou registrando,

ao meu jeito, coisas de São Paulo, cidade a quem amo, madrasta embora. Hoje em

dia, dirijo-me pouco, pouco aos concursos. Ando publicando contos no Estado de São

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Paulo, na Última Hora, quando posso. Agora ando tentando enfiar um trabalho, conto

um tanto mais longo, na revista Anhembi. Tenho uns quantos amigos literatos e eles

me ajudam um bocado. Costumo assinar João Antônio nos meus contos. Foi o Mário

da Silva Brito e foi o Ricardo Ramos, quem me puseram na cabeça: meu nome é

muito comprido e não haveria cristão que retesse [sic] e guardasse. Bem. Fiquei sendo

João Antônio, este intrometido que ora lhe escreve por causa de uma crônica no BBB.

Cá na minha convalescença, bem longe da cidade, entre cigarros, uns livros e

um clima de montanha, dei de cara com a sua crônica e achei o que já disse. Faltava

escrever-lhe. Não? Afinal, como dizia o velho Balzac, um fato não pode ficar sem

registro.

Quero apenas que a senhora aceite minha congratulação, que desculpe este

meu jeito meio rasgado de falar e me meter nas coisas dos outros, que são dos outros

e não são minhas. Mas eu gostei e precisava falar. E quando gosto duma coisa, acabo

é falando mesmo.

-------------------------------

São Paulo, 7 de março de 1960

[...]

Amo. Malucamente adoro três vagabundos numa noite paulistana com suas

misérias, camaradagens e um relógio de pulso. Trabalho na história de “Malagueta,

Perus e Bacanaço”. Tê-la-ia escrito não fora um carnaval aluado em que me meti por

acaso e no qual fiquei, por prazer. Não entendo a vida, Ilka, sem algum acontecimento

novelesco.

[...]

É nessa batida o conto. Vai num intenso rebolado em que Bacanaço é rufião,

Malagueta é um trapo e Perus, um menino. E agitam-se na noite carta de prostituição,

misérias e arrelias. O drama é de Perus, coitado. Sozinho no meio dos outros, ilhado,

fazendo as coisas por fazer. Bacanaço é um safado e Malagueta é um cínico. Os três

vagabundos correm Lapa, Água Branca, Perdizes, cidade, Pinheiros à cata de algum

dinheiro. Voltam quebrados, quebradinhos. Fizeram marmeladas pelo caminho,

conluios, formaram, se bateram nos salões, brigaram nas ruas, deram pernada,

cabeçada, navalhada, mas tudo valendo nada. Entidades típicas da baixa

malandragem – o patrão, o trouxa, o gaiato, as piranhas.

Bem. Estou falando de alguma coisa que ainda não fiz. E isto não é bom.

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-------------------------------

São Paulo, 24 de março de 1960

[...]

Bato-me na faina de explicar o que se passa na alma de três sujeitos que você

conhece pelos nomes; Malagueta, Perus, e Bacanaço. Os safados andam irrequietos

na fala, nos gostos chinfrins e teimam sempre em esconder alguma coisa. Vivem

fingindo e domá-los é um custo. O conto anda pela décima terceira página

datilografada em papel ofício, não sei se trinta páginas darão para abrigar aquele

mundo. A fatura é difícil, para o malandro uma palavra tem trezentos significados,

porque como nas suas outras coisas a fala prolifera negaças, manhas num intrincado

rebolado. Correm por ali de dez personagens que aparecem e desaparecem à

proporção que isto me interessa. Para que você faça uma idéia da riqueza do tom, das

tantas coisas que, parece-me, preciso contar, passo-lhe um recorte do conto, história

de Sorocabana, que Bacanaço relembra com o menino Perus.

[...]

Ilka, este trecho, como é natural, não é definitivo. O conto está ainda em estado

de ebulição. Implorei tratamento mais rigoroso porque a forma atual não me agrada,

ainda. Contudo, por este retalho, você poderá sentir o clima do trabalho. Há muitas

personagens assim, Personagens se segunda plana, uns dez, que entram e saem da

história. Bacalau e Sorocabana são exemplo.

O que acha do fragmento?

[...]

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23 de abril de 1960

- Malagueta, meu faixa, meu velho engenhoso como encardido, para que tanto

me judiar? O que, Malagueta, se esconde nesta sua cabeça, que eu não sei como

conto? Que é essa ruga aí no canto da boca, Malagueta?

Ilka, este desgraçado me dá muito trabalho, arisco como ele só.

Perus é tímido, mas genioso como ele só. Coitadinho. Sempre fugindo.

Viva, Bacanaço, que é o mais fácil de todos! Cáften sem-vergonha.

Domá-los, João Antônio, domá-los.

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São Paulo, 26 de maio de 1960

Tanto lhe tenho falado nestes meus vadios que, a cada etapa, sinto como que

um compromisso levar-lhe o resultado. Já devo aborrecê-la...

Assim, lhe passo algumas fatias. São dois cortes em que, quer-me parecer,

variei um tanto a técnica e ritmo – o que é discutível. O importante é que os três

estejam vivos, apesar das marés que os fustigam.

[...]

Mas é o diabo um sujeito que se mete em literatura! Inda não acabei

“Malagueta, Perus e Bacanaço” e já sinto um negócio totalmente novo começando a

bulir. Mas, Ilka, foi uma história que me apanhou e me prendeu de todo.

É a muito pouco conhecida história de Gibóia. Drama de que pouco se fala

mesmo na própria malandragem de baixo.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 6 de junho de 1960

[...]

Creio em “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Como em tudo o que escrevi,

acredito nos meus vagabundos. Mas desta vez é diferente o sentir. Às vezes,

zanzando por essas ruas, nas noites frias e de neblina de minha terra, nos trens de

subúrbio ou nos velhos bondes rangedores, para os lados da Alameda Nothman e

Bom Retiro, em especial, locais de meus giros silenciosos, ao ecoar maravilhoso do

salto de couro de meus sapatos na calçado, eu penso. Tenho a certeza humilde,

quieta e grandiosa que estou diante de uma obra de arte e minhas mãos, meu

coração, meu todo pulsar de vida carregam uma enorme responsabilidade.

Muito obrigado, Ilka, por acreditar nos meus vadios.

E contente em Deus, que me deu este coração e que me tem concedido a

graça de sofrer pelos caminhos que me indicou. Porque só escrevendo eu sou inteiro.

Tudo é meu, então. Resta-me este grande bem – eu seria um homem que escreve ali,

além, na Bahia, no Indostão. Se não escrevo eu não sou ninguém. Se não amar o que

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escrevo, não escrevo. É uma a minha vontade e um, meu próprio – não permitir que

nada me afaste da literatura. Nem profissão, nem mulher, nem nada. Eu sou obrigado

a fazer aquilo de que gosto. E o dia em que não amar a vida, não querê-la e não retê-

la, gostaria da morte. “Sem aviso prévio” – conto canta Carlos Drummond de Andrade.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 8 de agosto de 1960

[...]

O incêndio não passou, Ilka! Inúmeras vezes senti uma saudade besta de me

sentar à mesa de um boteco qualquer, e, ali ficar quieto, bebericando com serenidade,

quieto.

-------------------------------

São Paulo, 8 de setembro de 1960

[...]

Agora, quando a noite começa eu já estou na minha cela. Cela – é a cabina da

Biblioteca Municipal. Cabina 21, cela da ressurreição de “Malagueta, Perus e

Bacanaço” – três vagabundos em busca de uma definição. Como é tranqüila a minha

cela! Nem cigarros, nem café. Só, lá fora, o relógio de ‘O Estado de São Paulo’ marca

a noite.

Eu sou um monge na noite da minha cela. Há um silêncio religioso que lembra,

cá no segundo andar, uma viagem de ficção-científica. Eu monge, faço a oração

nervosa:

“Meu Deus: dá fé do artista, que, só tem na vida um terninho chacal, muita

zonzeira e uma vontade maluca de fazer uma quizumba a que ele chamou ‘Malagueta,

Perus e Bacanaço’. Meu Deus, me dá esta colher de chá.

E ponho-me a desenterrá-los.

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104

Agora é treze; setembro, são 4 horas da manhã

[...]

[...] Boa noite, boa tarde, ou bom dia, Ilka! Escrevo-lhe porque pensei em você

desde as onze horas até agora. Recebi ontem os seus dois envelopes grandes,

trazendo-me de volta “Malagueta, Perus e Bacanaço”. E trazendo-me (especialmente

a última carta) a compreensão, ou melhor, a consciência reafirmada de uma porção de

coisas que sinto. Mais uma vez, a senhora dona botou-me em cheque [sic]. Sabe que

toda carta sua é uma espécie de chamada de revista? Desconfio que se eu vivesse

com você, eu seria um sujeito muito responsável.

Vou compará-la, agora, a uma porção de coisas porque não sei o que você é

para mim. Porto ou bússola, uma voz que orienta.

Não vou poder dispensá-la, como um dia pensei. Também não vou amá-la,

como eu quis, ou até fiz em momentos de doçura e de amor com a vida. Devo andar,

agora, num mixto [sic] desses sentimentos. O amor (homem+mulher), agora eu sei,

estragaria você para mim. Quero-a, direi, distante e indistante. Aqui comigo e além,

com seus problemas.

Você, Ilka, foi o inesperado. Ou – A Inesperada.

Mas foi uma dádiva. O de que eu preciso, talvez.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 24 de janeiro de 1961

Você seguiu para o Rio, o que me alegrou. Ótimo você continuar com suas

coisas de cinema, que entusiasmo fica maior se o alimentamos.

Estou bem. No domingo, gramei sete horas sobre o papel e “Malagueta, Perus

e Bacanaço” vai surgindo, escavado. Vou-lhe também impregnando coisas novas e as

cartas que você me devolveu ajudam-me bastante, devolvem-me realmente alguma

coisa. Tudo ajuda quando a gente se ajuda.

Trabalhando. Já descobri ou redescobri pela décima vez, que se me vem

alguma alegria nesta vida tonta, vem da literatura.

Não negarei que sofro. Tristezas nestes últimos dias. Fácil ver que não sou

ninguém como é fácil ver que sou um privilegiado. Escrever é lindo e se nos custa,

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muita recompensa vem. Escrever é um dom, Ilka. Não é privilégio? Machuca,

arrebenta, me larga quase chorando. Mas fico inteiro.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 3 de março de 1961

[...]

Pensando em você. Porque refaço num embalo nervoso meu “Malagueta,

Perus e Bacanaço”. Graças a Deus! A primeira parte prontinha e eles já não estão na

Lapa. Confesso – me agrada muito, me entope de alegria.

Pensando em você. De certa forma lhe devo este reatamento de “Malagueta,

Perus e Bacanaço”. Honestamente. Você sabe. E eu sei.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 15 de junho de 1961

Do incêndio sobraram-me bem poucas coisas, como você sabe.

Mas sobraram-me coisas que prezo.

Na segunda gaveta à esquerda de minha mesa lá na Pettinati, ficava, fica um

pouco de literatura no mundão de publicidade que ali se amontoa. Ali. Ali estava no dia

12 de agosto de 1960 o meu álbum de coisas publicadas nos jornais e nas revistas.

Já tentei poesia, Ilka. Como todos os sujeitos que acabam fazendo prosa,

tentei poesia. Daquele jeito.

Duas amostras. Naquele tempo, ferozmente heróico eu ia otimista da minha

poesia. Quer ver?

“Utopia no Porto da Felicidade”

(assinada: João Antônio Ferreira Filho)

Iremos então, bem equipados e com vontade dupla.

Abrirei as lâminas do Tarô Adivinhatório

e gritarei que nossa sorte é boa

e o sibilo do vento não me abafará os brados.

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(brados – horrível!)

E a vida rirá, de ébria...

Riremos com ela.

E nascerá uma chusma de querubins

que rir-se-ão todinhos.

Daí então, fingirei acreditar na Virgem

Erguerei odes de júbilo

Preexistirá a ufania ao som

Nesse dia, medrará água da pedra

E os meus cantos resistirão ao Tempo.

Eu fingirei crer na Virgem

E estaremos no porto da felicidade

O mundo nos irá abençoar muito...

(publicado no “Jornal do Povo”, 2º. semestre de 1955, Itápolis)

Outro horror.

“Pausa”

(ainda – João Antônio Ferreira Filho)

O cigarro está a apagar-se

As paredes pálidas,

Os sonhos da Vontade,

Os planos,

As ânsias,

As ilusões quedadas,

As estrelas do carvão da noite

Todas as histórias de braços caídos

Tudo quanto existe estará no rez [sic] do chão, dormindo

E as ações terão sono.

A vida está descansando muito

Para amanhã acordar bem cedinho

(publicado no “Jornal do Povo”, 31.7.1955 – Itápolis)

______

Como vê, são “joias” antigas.

Tinha também um “Credo”. Cruz, credo! Felizmente não encontrei.

[…]

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107

(Ilka, claro que os versos são ruins. Mas bem pensando, lá no fundo, eles

tinham alguma coisa de meu. Não sei...)

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São Paulo, 13 de setembro de 1961

Entendi o que é um livro quando Caio Porfírio Carneiro publicou o dele. Um

livro pronto. Tudo o que é dele já conhecíamos toma de repente uma imponente e

doce dignidade. Creio que com os contos este fenômeno se faz sentir muito mais claro

e forte.

Um conto no jornal ou na revista é um conto no jornal ou na revista. Um sabor

isolado. Por melhor que apareça, aparece mutilado. No livro, o conto pesa. Toma

tamanho, que a coisa agora é bem mais séria.

Livro, Ilka, é coisa que comove.

Vivi “Trapiá” antes dele assim se denominar. Acompanhei muitas de suas

coisas e as amei como amo, agora, os esboços que Caio fez de suas novelas sobre o

sal.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 6 de outubro de 1961

[...]

Muitas notícias, umas boas outras más. Mais más do que boas, desta feita em

que após instruções 204 e 208 e renúncia de um ilustre presidente que deixou o

Alvorada, em Brasília, como se deixasse o Clubinho Recreativo Flor da Mandioca

numa ruela do Brás; meus dois livros não sairão. As Edições Autores Reunidos e a

Editora das Américas não estão dispostas. Não sairá livro de ninguém na programada

coleção de livros de contos “Contos de Agora” das Edições Autores Reunidos. Não

sairá a excelente coleção de histórias que Mário da Silva Brito programou para a

Editora das Américas e que incluía um livro meu de novelas abertas por “Malagueta,

Perus e Bacanaço”.

[…]

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108

Prosseguem as admiráveis aulas de Antônio Cândido, uma das pessoas mais

úteis, mais simpáticas e mais lúcidas que já vi.

[…]

Maurice Capovilla. Este menino, sabe Ilka, ele e Luís Paulino têm me ajudado

muito, entusiasmando-me a que me entusiasme com minhas coisas.

[…]

“Malagueta, Perus e Bacanaço” entusiasmou-os. Tanto que, eu e Maurice

começamos já a trabalhar o roteiro, Ilka! Intencionamos concorrer a um concurso. E

assim, mal redimidos de um incêndio, meus vagabundos terão uma oportunidade

remota de irem para a tela. Trabalhos.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 19 de maio de 1962

[...]

Houve negócios. As Edições Autores Reunidos lançar-me-á o livro de contos

em edições de gente. Cinco ilustrações dentro do livro. Ilustrador que eu mandar e

pedir. Do lado de lá da capa do livro – retrato meu e notícias. Prefácio de Mário da

Silva Brito. Dinheiro adiantado. E os contos como eu quiser. Quando eu botar palavrão

há de ser palavrão. Mas eu não prefiro palavrões. Escolhi Mário.

Ilka, venci. Numa terra em que todos catam editores, os editores é que me

catam. Um, dois, três. Três convites deles, três propostas deles, três negações

minhas. Não era romantismo não, que você sabe quem sou. É que me queriam

aceitando e não queriam aceitar-me.

Venci, Ilka. E eu sei o quê. Uma grande humildade orgulhosa me enche o

coração de grandeza nascida daquilo que realmente é meu, das minhas andanças,

dos meus porres, dos meus vagabundos, dos meus amores a meu jeito. Só isso eu

tenho, Ilka. Amor por tampinhas, histórias de sinuca, procuras. Uma ou outra mulher

que eu sofro. O meu livro será a única coisa minha que dei, dei, dei. Porque minha. E

essas coisas tão bestas e tão lindas fazem falar os diretores das Edições Autores

Reunidas:

- Você representa São Paulo na presente coleção.

[...]

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109

-------------------------------

Morro de Presidente Altino, 23.5.1962

[...]

O convite para o segundo livro, estendido por Mário da Silva Brito modifica na

base meus planos iniciais para o livro que darei à Edições Autores Reunidos. Há que

fazer.

Carta de Rónai solicitando-me trabalhos para a revista “Comentário”, que ele

secretaria. Há que fazer.

[…]

Ilka, além do mais, começo a sentir que se eu fizer os dois livros (fazer é um

verbo de empréstimo), se eu os aprontar, terei de certa forma vencido meu incêndio,

coisa séria da vida.

Fazendo “Meninão do caixote”, primeiro livro de contos e “João Antônio conta

histórias”, segundo livro com contos longos terei ido à forra.

[…]

Meu primeiro livro obedeceria a esta provável colocação:

Contos Gerais

1. A

finação da Arte de Chutar Tampinhas

2. R

etalhos de Fome Numa Tarde de G. C.

3. N

atal na Cafua

4. Í

ndios (conto ruim que deve aparecer)

5. B

usca

6. N

atal por aí (a escrever)

7. F

Sinuca

8. V

isita

9. F

rio

10. P

atroando Paraná (a escrever)

11. M

eninão do Caixote (que será conto-título

do livro)

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ujie

Isto até agora.

“Malagueta, Perus e Bacanaço” fica para o 2º. livro.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 20 de março de 1963

[...]

As segundas provas de “Malagueta”, que também fiz auxiliado pelo ótimo Caio

Porfírio Carneiro, estavam tão bonitas, Ilka. E foi tão triste! Eu já me sinto roubado,

espoliado, desnudado, desrespeitado, enciumado. O livro já não é mais meu, Ilka. Isto

é trágico, indizível. A gente por aí jogado, mostrado, de mão em mão...

Afinal, são as coisas mais íntimas.

Mas a gente escreve também para os outros e a saída é dar um suspiro e

continuar.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 7 de junho de 1963

[...]

Cheguei da Guanabara anteontem. Lá estive três semanas em Copacabana,

vagabundeando, matando saudades, zanzando com Mário da Silva Brito, praiando,

lendo, autografando exemplares de “Malagueta, Perus e Bacanaço”. No Rio de

Janeiro, meu livro já está sendo vendido há bem quinze dias. Para minha alegria, os

interesses dos amigos promoveram, até agora, boa venda. Em Copacabana,

especialmente.

Mas estive ainda e antes em Porto Alegre e Vitória. Lugares muito lindos os

que conheci.

Ilka, meu livro é bonito. O que sinto é meio difícil expressar. O que já senti, isto

é: aquilo que sinto as primeiras vezes que vi e folheei, é indescritível.

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Faz dois-três que “Malagueta, Perus e Bacanaço” circulam nas principais

livrarias paulistanas. O que estou sentindo é algo tremendo.

Há o outro lado. Atrapalhações profissionais promiscuíram-se terrivelmente

com a falta de tempo para buscar jornais, revistas, televisão no sentido da promoção

do meu livro. Preciso me virar, Ilka. Você sabe muito bem (talvez mais do que

ninguém) que não dou para essa coisa de me mostrar. Necessário, entretanto, fazer

da minha cara e das minhas conversas algo interessante que atraia leitores para

“Malagueta, Perus e Bacanaço”. Ademais, você fique sabendo que esse negócio de

notinhas apenas em páginas literárias não funciona do ponto de vista publicitário. A

solução, o que marca mesmo, o que permanece é a reportagem. Então, Ilka, é um tal

de conversar com meio mundo. Não tenho jeito para tantas, mas vá lá. Faço.

(Até numa dessas revistas femininas de última categoria eu terei de aparecer:

afinal, são veículos que tiram até 150 mil exemplares. Horrível mas é um caminho).

Meu lançamento e tarde de autógrafos se realizará na Livraria Teixeira, à Rua

Marconi número 40, no dia 21 deste junho às 18.00 hs. É uma sexta-feira. Você

receberá um convite. Peço, Ilka, que espalhe “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Como

livro e como tarde de autógrafos. Você sabe o que penso disto tudo. Mas tenho

compromissos com o maior editor do Brasil.

Um abraço o sumido João Antônio.

[...]

-------------------------------

São Paulo, 19 de julho de 1964

[...]

É que eu, Ilka, preciso ganhar o mercado internacional. Porque já não entendo

ser apenas um escritor “brasileiro”. Não sei exatamente o que você poderá pensar de

mim; entretanto, tomei uma decisão na vida. Tentar viver de literatura.

A publicidade me permite viver, Ilka. Até com certo conforto. Não vivo mal com

o que ganho com publicidades. Entretanto, não pretendo viver assim o resto da vida. E

para tanto, para viver de literatura, necessário que eu lute, por todas as coisas que me

levem a ser um escritor traduzido no estrangeiro. Só vejo, pela minha frente, este

caminho como solução definitiva. O que me chega da literatura que faço e que é

publicada no Brasil, não dá para viver. E cheguei a um ponto decisivo: ou vivo como

escritor ou vivo como publicitário, jornalista ou outra coisa. O que não posso é

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continuar vivendo como escritor-jornalista, escritor-publicitário e outras combinações

detestáveis.

Meu caminho é a tradução no exterior, Ilka. Minha saída. Estados Unidos,

Espanha, Portugal, Iugoslávia, Alemanha, Tchecoslováquia, Argentina são lugares em

que venho tentando infiltração, teimosamente. Até hoje, contudo, apenas promessas e

promessas. Nada feito, ainda.

[…]

Estou lutando como posso. Peço, repeço, faço trezentas cartas. Envio

exemplares para o exterior, a tradutores, a editores, a estudiosos da literatura

brasileira... Mas eu estou aqui, em São Paulo e pouco adianta esgoelar. Entretanto

Jorge Amado e Érico Veríssimo (claro que não estou me comparando a eles) só

conseguiram viver de literatura devido às traduções.

[...]

-------------------------------

Rio, 31 de março de 1965

Tudo em ordem comigo. Ou quase. Completando praticamente um mês de Rio

de Janeiro, já não sei bem o que lhe diga. Claro que é melhor que aí. Tem mar, tem o

espírito do povo, tem a beleza da cidade, tem o melhor que o Brasil possui em termos

culturais. E tem samba e gingas cariocas. Tem gafieiras autênticas, mulatas quase

todas inconsequentes, tem a Lapa (que já não é o que foi), tem o Zicartola, a

Estudantina, o Amarelinho, o Régio, a Elite – bares, casas de samba e chope da noite.

Tem tudo isso, Ilka, mas eu ainda não sou Rio. Esta cidade ainda não entrou

por completo em mim. Eu estou ainda paulista. Que me afobo, que procuro saber qual

a hora, que fico me vigiando diante de uma porção de coisas, me policiando. Você

sabe. Paulista. Sou estrangeiro aqui, ainda sou. Se eu lhe fizesse uma carta eufórica,

falando-lhe delícias e maravilhas, estaria mentindo. Há dessas coisas maravilhosas e

deliciosas, há. Mas também há certa encabulação dentro de mim.

Falta de São Paulo? Saudade dos meus pais, irmão, avó? Ausências? De quê?

Eu estava vivendo bem aí? Não. Eu estava escrevendo aí? Ultimamente não.

Eu amava aí. Não.

Aqui me descompliquei um pouco. Tenho amigos melhores. Não necessito

paletó, gravata, sapatinhos polidos. Tenho Mário Peixoto, Esdras Passaes (chapola e

colega do “Jornal do Brasil”), Paulo Rónai, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito. Não há

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provincianismo. Há liberdade e libertação. A gente se autodetermina nesta cidade. É

estranho e é mágico. A gente se ameniza um pouco.

[...]

-------------------------------

Rio de Janeiro, 4/maio/1965

[...]

Ninguém vira entidade ou mito in Rio.

Ah, aquele cara escreveu um grande livro, pintou um bom quadro, fez um filme

importante? É? Bom, não?

E ninguém mascara o cara. Ele fica como está. Não há espanto, nem nada. Foi

apenas um sujeito que escreveu um livro. Não há susto. A gente toma chope com

Vinícius de Moraes, com o Paschoal Carlos Magno, com o Ênio Silveira. E ninguém se

surpreende com o normal. Esses cobras que não engrossem. Caso isso acontecendo,

fiquem pra lá. Sãos uns chatos e maus-caráter [sic], apesar de importantes, etc.

[…]

O carioca é um povo de cidade grande, Ilka. Arejado, liberto de muitas

frustrações. Desencolhido. Por isso, as mulheres e os homens são amoráveis, dão-se

mais, não complicam. Gostam, gostam. Não gostam... Azar da segunda pessoa. Mas

a tal segunda pessoa, também faz uso de uma solução extraordinária e fala: deixa pra

lá.

[…]

Vou-lhe confessar. Meio duro, mas vou. Estive em São Paulo já. Sabe o que

fiz? Estranhei o frio, e descendo na Rodoviária, fui direto para a casa de minha mãe.

Lá fiquei durante dois dias. Quieto, olhando minha mãe. Esperando que me chegasse

a saudade de São Paulo. Durante dois dias ela não chegou. Ainda bem.

Dois dias de São Paulo. E não vi ninguém, não procurei ninguém, não telefonei

a ninguém. Não senti nada, absolutamente nada, em termos de saudade.

Ingratidão? Ingratidão pela cidade, pelas pessoas? Sei lá. Não lhe estou

confessando nesta carta o meu sentimento culpado, nem a minha pena e nem

tampouco a raiva de nada. Simplesmente não senti saudade de nada de São Paulo,

em São Paulo.

[...]

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-------------------------------

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1965

[...]

Há muito, desde junho, que estou para lhe contar um caso extremo de minha

vida, Ilka. Estava, como se diz na sinuca, guardando o leite. No meu caso, não estava

escondendo uma jogada futura, nem me esquivando de um assunto grave. Estava era

experimentando a intensidade e a permanência dos sentimentos.

Quatro meses depois do surgimento, lhe falo, com algum sentido mais claro

sobre o que está se passando entre mim e Marília.

Este nome aí, Marília, significa talvez a maior loucura de minha vida feita até

então. Uma loucura equilibrada a meu modo e que, me deixa à vontade, para não ter

que dar satisfações a ninguém. Entretanto, não lhe queria falar nada, antes de sentir a

coisa mais em profundidade e comprovar o que ela não possuía de transitório. Agora

lhe falo.

Houve o amor, Ilka. Inesperado e aguardado, não planificado e livre, rebelde e

intenso, sem horários ou alianças, imperturbável na sua forma anárquica, espontânea,

natural. Cresceu, tomou conta de Marília e de mim. Vivermos um longe do outro vem

se tornando não impossível (o que é viver, afinal?) mas muito ruim. Uma coisa doída.

O amor arrebentou, Ilka. Numa menina de vinte anos, disposta a muitas coisas,

com ou sem aliança. Tenho vivido de tudo com essa menina. Desde a beleza dolorida

e alegria funda até mágoa, ciúme, saudade. De qualquer forma, Ilka, uma coisa

realidade se fez presente, de pronto, em minha vida. Eu não sou mais um. Eu sou eu e

Marília, entende?

[...]

-------------------------------

Rio, 13 de novembro de 1965

[...]

Caso-me com Marília, finalmente. Não há porque não. Eu poderia escrever um

livro contra o casamento pequeno burguês e seria um livro autêntico, que motivação

tenho para tanto. Entretanto, simplesmente me caso com Marília Andrade, a 11 de

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dezembro próximo, no interior de São Paulo, na cidade de Jaú. No padre e no juiz,

como querem as famílias que, muito felizmente, continuarão vivendo bem e distante.

Principalmente distante.

Para mim e ela o contrato é uma farsa bem comportada. É o resultado da pena

que temos de nossos pais e todo o seguimento de parentes que nem sempre

merecem pena. Casados, realmente, estamos há meses, sem nenhum protocolo e

com a maior naturalidade. E nos bastamos com essa abreviatura.

Caso-me com Marília Andrade, 20 anos de idade, sem nenhuma das ilusões

casamenteiras de que nos cercam pais e mães, irmãos e tias. Caso-me como não me

casaria. Já que casados estamos.

[...]

-------------------------------

Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1965

Não estou nauseado com este casamento que se dará no dia 11 e não no dia

20 de dezembro. Estou mais próximo ainda...

Também compreendo o seu futuro silêncio, plenamente cabível. Você fica,

entretanto, com a promessa de recomeçar a correspondência assim que ache (qual é

a palavra: conveniente, útil, necessária?)

[...]

-------------------------------

São Paulo, 10 de setembro de 1967

Há algum, muito tempo que estou para lhe fazer uma longa carta. Algo que me

seria útil no sentido artístico. Uma espécie de revisão em certa tábua de valores que

anda por aí. Também espécie de depoimento sobre a minha geração. Esta a que

dizem que pertenço e, querendo ou não, inclui nomes de Maurice Capovilla, Ignacio de

Loyola, Thomaz Souto Correa, Esdras do Nascimento, Maria Geralda do Amaral Mello

e outros e outras. Se não concordo de forma alguma, mas para não parecer que estou

dando uma bandeira, isto é: não parecer o mascarado e nem o desmancha-prazeres,

vou abaixando a cabeça e dizendo que sim e sim e sim. No entanto, Ilka, o tempo

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passa e repassa e a cada novo lance este palhaço aqui se intera e se reintera da

velha decepção. Anda faltando muita coisa naquilo a que chamam minha geração.

[…]

Claro que os editores da Revista Cláudia, Realidade ou seja qual seja revista,

sabem e muitíssimo bem que eles não estão revelando ao leitor brasileiro, a mulher ou

o homem que fazem aquilo que se poderia denominar de realidade brasileira atual.

Assim, enquanto a Revista Realidade vai enganando como pode e quanto

quer, apresentando uma pseudorealidade, composta de química provinciana com que

se faz o jornalismo em São Paulo – veja, por exemplo, o último número , sobre

Realidade da Juventude Brasileira Hoje (nº. de setembro) -, a Revista Cláudia vai

enganando com assuntos de mulher. À primeira revista interessa tocar de leve,

relando, na verdadeira realidade brasileira e parar aí. Entretanto, procura fazer do

assunto, com o mais evidente sensacionalismo, uma atração para massas de leitores.

À segunda revista interessa promover, direta ou indiretamente, grande porção de

produtos para os mercados – beleza, decoração, indumentária, moda em geral. E

pronto. Parar aí.

Há, Ilka, dentro do nosso país, algumas perguntas que estão precisando de

resposta em profundidade. No terreno da imprensa, eu faria duas e duvido que alguém

me respondesse em profundidade, além de citar números e anagramas sócio-

econômicos, subdesenvolvimentistas, etc. E quem souber responder a estas duas

perguntas, não as responderá, porque em profundidade, elas são o retrato do Brasil.

Ou antes: a denúncia de um governo externo dirigindo a política de ação brasileira.

Seguem as duas perguntas:

Por que a Revista Careta que fez uma admirável carreira como humorismo

político da vida brasileira, teve seu declínio e fechamento?

Por que a Revista Senhor, melhor revista sul-americana de todos os tempos e

uma das mais autônomas do mundo, mesmo depois de premiada na Europa, em

Londres, teve rápida decadência e fim indigente?

A Editora Abril é jogada comercial, como tantas outras. Pessoalmente, já

propus uma leva de matérias, que reunidas, tentariam desfechar um retrato mais

humano, mais real e mais convincente da mulher brasileira. Babás é tema.

Professoras é tema. Domésticas é grande tema. Prostituta é tema. E por aí assim.

Todas essas matérias foram para a pauta e a pauta não foi aprovada. Não interessa

nem à Cláudia e nem à Realidade promover a mulher brasileira ou a realidade

brasileira, respectivamente. Porque elas estão jogando um velho joguinho, Ilka. O jogo

de uma empresa comercial e industrial.

Após mais de três meses de observação, eu posso concluir alguns pontos:

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a) A Editora é mais uma tentativa de um império dentro da imprensa

brasileira, como foi a cadeia dos Diários Associados, liderada pelo dínamo Assis

Chateaubriand.

b) Cláudia tem o objetivo de se manter como uma revista modernosa,

falando muito em minissaia, juventude feminina-hoje, educação sexual, muita moda,

etc. Mas falará sempre da mulher como mulher-objeto, como mulher-ídolo, como

mulher-mito. Nunca como mulher-mulher brasileira. A revista Cláudia nunca chegará,

ou melhor, nunca deverá chegar lá.

c) A Editora Abril tem crises internas como têm todos os jornais e revistas

do Brasil (eu falo Rio-São Paulo, é claro). Há descontentamento na infra estrutura,

simplesmente porque há muita gente ganhando mal e muito mal.

d) Interessa à Editora que os cargos de Diretoria estejam na mão de

indivíduos mais ou menos jovens, bastante dúcteis e até volúveis – é a forma mais

certeira dos Civita terem tudo nas mãos.

e) A Editora procede a injustiças salariais, administrativas e de pessoal,

conscientemente. Os seus eleitos, independentemente de qualidade profissional ou

caráter, são aqueles que estiveram sempre, prontamente, mais à mão das disposições

da cúpula.

[…]

Confesso, humildemente dou fé, que a Editora me atraía, quando eu estava no

Jornal do Brasil, no Rio, como coisa mais séria, pioneira, lançadora, desbravadora,

etc.

[…]

Bem. Este meu lero todo sobre Editora é justificado pelo fato anterior de que

existem vários elementos chamados da “minha geração” dentro da Editora Abril, ou

tentando entrar, ou de namoro com os chefões, etc.

Thomaz Souto Correa e Ignacio de Loyola são apenas dois exemplos. Mas tem

Maurício Ritner e o Roberto Freire. Muito bem. O que é que esta gente faz dentro da

Abril? Joga o joguinho deles (patrões), Ilka. E apenas. E simplesmente. E até muito

contentes de suas vidas. Thomas esteve na Costa Azul faz bem pouco tempo. Loyola

esteve em Hollywood faz bem pouco tempo. Luiz Lobo vai para a Suécia dentro de

pouco tempo. Roberto Freire está em Paris. E assim por diante.

Não invejo esta “minha geração”. Mais dia, menos dia, estarei também em

Paris ou Israel. Mas acontece que essa gente é muito morninha. É muito acomodada.

É de um caráter, digamos: flexível. Ou antes, engraçadinho.

Ilka, eu acho que está faltando no Brasil, certo tipo de intelectual como este

país talvez ainda não tenha tido. Tipos como Gorki, Jack London e Trotski. Gente que

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entenda as coisas por dentro, que esteja acordada para a vivência. Que não seja

amiga do nosso povo porque agora, a palavra de ordem e mesmo a moda é ser

“amigo do povo”

[…]

Outra coisa. Não acredito em pessoas que precisem declarar, através de

roupas, penteados, bigodes, trejeitos, maneiras e outras bobagens, que é artista,

escritor ou intelectual. E todos esses meus citados, estão no caso.

[…]

Faço poucas exceções. Creio que Maria Geralda do Amaral Mello, a que diz

não entender nada de literatura e que escreve, mais ou menos, por amor animal. E

acredito em Roberto Santos pela sua humildade, falta de pose e grande capacidade

de ouvir. E quem mais, Ilka? Infelizmente, não vejo nada pela frente. Ou melhor, vejo

cabelos da moda, calças de veludo, costeletas, suíças, mini-saias, camisas xadrezes,

muita falta de cultura e do que dizer.

Há uma flagrante incapacidade profissional no chamado intelectual brasileiro.

Você me citou Paulo Dantas e Caio Porfírio Carneiro, à testa da União Brasileira de

Escritores e, como não podia deixar de ser, a meterem os pés pelas mãos. É uma

verdade em todos os setores, Ilka. Inclusive no jornalismo e na publicidade. Ficamos

sempre a ver navios quando dependemos dos chamados intelectuais. Afinal, acaba-se

perguntando: para que serve o intelectual? Acho que para “ser intelectual” e nada

mais.

REFERÊNCIAS

LACERDA, Rodrigo. João Antônio: uma biografia literária. Tese de Doutorado. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2005.

LAURITO, Ilka Brunhilde. João Antônio: o inédito. Remate de Males, revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem, nº. 19, Unicamp, Campinas, 1999, p. 25-53.