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sobre quantos cafés desperdiçamos

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uns escritos de querino, esse livreto publicado pelo selo candeeirocafe em outubro de 2011

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sobre quantos cafés desperdiçamos

querino

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nesse instante, a xícara em mãos

diz mais

que os corpos que se afastam

e apenas isso

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comparando mitologias

nessa noite todas as palavras serão de adeus

e quem sabe verdades aconteçam

por um cigarro que, aceso, alumia a fé

e o medo e

é leonard cohen quem diz

coisas que não queremos ouvir, mas é bem isso

um tinto para a saudade, um brinde

e tudo depende do quão perto de mim você se deita

mas numa noite como essa há promessas demais por cumprir

gestos que nada dizem

promessas

em cada palavra que negamos por decisão

dizemos adeus e permanecemos

há essa voz na vitrola

e toda ausência que um dia encontramos

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la notte (ao som de Wise One, John Coltrane)

Naquela noite,

uma noite como esta,

eu te via, meu caro, deitado

sobre teu vômito a dizer palavras de morte,

a dizer o que eu…

o que…

eu também te via ali, abandonado

no banheiro, as calças arriadas,

e diante de você um espelho,

porque narciso tu era

e então a beleza te levou até ali,

até esse lugar de apenas solidão.

Ali eu também estava:

eu era o teu vômito, o teu espelho muito claro;

eu via coisas que ninguém mais

como testemunha

saberia

se comportar.

Ali eu também estava, numa noite como esta.

Mas eu não te compreendia,

assim como vocês não me compreendiam. Eu apenas observava.

Eu estava longe.

Eu era outra coisa que talvez agora...

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O mundo se estendia a diante,

era um caminho, era a minha casa.

Eu estava indo.

In a silent way eu estava indo, mas

junto a você eu morria também, meu caro,

junto a você eu mergulhava nesse rio de teu mijo sobre o chão;

eu morria mais ainda,

a beleza também havia me levado até ali,

e mais ainda.

Mais longe ainda que vocês, eu estava indo.

Eu tinha chegado.

Eu via a morte. Eu via a face de –

Ela não estava mais ali.

Fazia pouco, ela tinha corrido trecho

para onde eu não poderia continuar.

Era o fim, meu caro.

Era o fim e eu não te compreendia.

Eu não compreendia a vocês que tanto me ouviam

falar das horas e horas de nossa fuga:

iríamos para onde, até onde,

eu me perguntava, até quando.

Vocês também me falavam de intervenções e danças,

e naquela noite Dioniso dançava –

tínhamos estado com ele mais além,

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no alto daquele morro fora da cidade,

em um teatro aqui agora.

A nós ele revelava segredos,

a nós que por essa antecâmara precisávamos passar

– e é essa a noite em que estamos.

Cada um na sua, estávamos juntos. Estamos juntos,

somos um – e não há transcendência alguma em tudo isso.

Dioniso é aquele que passa: passamos.

E agora o bojo de nossa vitória:

estávamos ali.

Eu estava ali e ela não, a sua ausência sim.

E era porisso que eu não compreendia a vocês

e nem vocês a mim.

Há sempre um ponto mais além, mais aquém

onde chegamos

e ninguém mais. Um pouco à esquerda

eu estava.

Segurei a tua mão por um tempo,

te ofereci o meu ombro,

mas não o bastante, eu sei.

Eu estava só.

Eu era apenas eu.

Não havia mais alguém ali.

O telefone não atendia, não tocava.

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Sem a tua graça quem eu seria,

eu perguntava. Um mundo se desfez,

um caminho, a minha casa.

Esse estradar,

não mais.

Não mais, eu dizia: não mais

(e não era para vocês esse meu desalinho,

mas para quem ali não mais estava,

para a parte que nos falta nessa busca por quem somos).

Eu era ninguém,

e teu nome, mulher, eu escrevia

em passos indecifráveis, numa língua estranha

(havia um tinto derramado no chão, se bem me lembro).

Vocês não me compreendiam.

Talvez nesse instante.

Ela sim, até um tempo que agora já não é.

E agora, eu me perguntava, agora que foi aquela noite,

por onde vai esse estradar.

Eu que por tantas vezes disse Sim.

Eu que me gabava, mesmo sem querer,

de tudo isso que tem sido

a nossa vida. Eu tenho orgulho

de tudo o que construímos,

desse lugar que somos.

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É para você, mulher, que traço essas linhas.

Pelas noites e dias de nossa presença,

é tua a origem

de todos os poemas. São teus.

Vocês não me compreendiam, não me compreendem,

mas sei o que digo.

Naquela noite eu estive só, eu era ninguém.

Estou só agora,

quero dizer, não há alguém aqui.

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caso de noites em branco aqueles ombros fortes de tua presença

quando o tempo

de olhos bem fechados

já se ia passado

não ‘guentariam agora a minha ausência

de ligações perdidas

e noites a esmo sob a neblina

te esperando chegar

do fato

das pedras

flores e espinhos e mais uma tentativa

num desespero de solidão

onde caberia um almoço feito às pressas

sem entendimento

a conversa muito rasa

sem um de nós realmente ali

mas a cama logo mais desfeita num gosto de vinho tinto

para a saudade

que caminho mãos nos bolsos olhos em riste

atravessando a rua

sem qualquer relação de vida ou morte

os passos apenas indo

para onde sabemos que sempre estarei

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ou sempre estaremos nós sem amarras sem promessa

dois passos no caminho

e só

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(pelas tardes de domingo e vinho tinto)

espero, então, a coisa tua

como se

de fato tu viesse, mulher

inteira

sem desculpa sem promessa

certeira e possível sem beira

para além das causas perdidas

para perto bem mais perto ainda mais

que a superfície transborde

e a gente possa, enfim, amanhecer

como nas tardes de domingo e vinho tinto

como nas tardes de domingo e vinho tinto

teu corpo

ao meu, tua boca

teu verso

que nunca escrevi

para ser apenas nosso esse gosto

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tocando a poesia que nome seria o teu em noites como esta,

quando o amor se mostra claro demais,

e é frio e solitário,

e lá fora todos são deuses pois é carnaval,

e você... você não ri nem chora

lembrando da vez em que teu corpo ao dela, exato

feito o dia,

numa língua estranha,

a pele em fogo

e o chão,

o chão –

por um instante apenas fomos mortais.

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sobre quantos cafés desperdiçamos por ian c.lima, pablo luz, querino

(ao som de One more cup of coffee, Bob Dylan)

quantos cafés desperdiçamos

sóbrios de que algo existe

quanta vontade e suas somas

nos ignoram plenamente

como se não

como se nunca

estivéssemos presentes

porque pouca dose nos resta

e destroços acumulam

em almas imprevisíveis

enquanto tolos e piadas rasas

nos alimentam a realidade de um dia seguinte

esquecemos tantas canções quanto cigarros num bolso qualquer

a fumaça ainda nos ardendo os olhos

a noite em seus versos mais sujos

palavras de silêncio, palavras

de uma ausência tão foda quanto a falta de vinho

e já é hora de irmos embora, mas

insistimos uma vez mais

porque não há lugar para pessoas como nós

não há lugar para ausências como as nossas, não há vidas

que sejam como as nossas

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: teu braço, Elba

se deslocando em minha direção

consoante o movimento acintoso de teus quadris

e as nuvens

nos assistindo com uma dança sensual, cúmplices

a praça

com dylan a espreitar

nossos olhares

tuas pálpebras de sedução

esses teus olhos de morgana

e teu corpo, a tatuagem, enquanto eu

eu esqueço cigarros esquecendo blues

você esquece o dylan, darlin’?

oh, eu não esqueço você

não, eu não esqueço você

há ainda esse teu gosto agridoce a impregnar o ar

a nos fingir eternidades, a nos convencer

da vida

a vida

que é feito nós mesmos

ou o que resta após tantas confissões a esmo

num buteco qualquer

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sobre uma mesa de sinuca qualquer

confissões gratuitas

de uma realidade que não nos pertence mais

(porque doçura paira, ausência corrompe)

quantos cigarros doem as almas solenemente duvidosas?

beije minhas pálpebras no delírio que tu é

– estou aquém dos ideais,

algo além das percepções,

trêmulo na mesa, compreendo apenas

e me torno o incômodo dos que flutuam futilmente –

mais uma xícara de café

e a fumaça escapa da locomotiva mais explosiva do meu crânio

atingirá aquela nuvem, pergunto

e, calado, silencio essa canção

que agora a pouco esqueci

aquela mesma canção que serpenteou esse teu corpo nu

quando o vinho faltou

e nos víamos irresistivelmente

tingidos

por um acorde lento que

ainda perdura em nós

mas por muito pouco tempo

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a canção irá acabar

seu fim está próximo

como esse último cigarro que já teima em me queimar os dedos

depressa, aperta bem forte contra o peito

mata-me, mas uma canção por vez

mato-me

entre vários coitos

que em revelar não escasso

arde na mente verdades prováveis

na ponta da língua na causa da carne

e deixo ela retirar-se e um boa noite: basta!

castrado como poucos agora

que a chuva caia apoteótica

(puta merda!)

e distorça as entranhas

disfarçando o asco dos cigarros

com sons deslocados que não são meus, mas agradam

que não inspiram, mas concordam o minuto

o que há dentro? o que há agora

quando mergulho nos ecos mais agradáveis

e todo o colapso inerente nos faz sorrir

e esperar o próximo acaso.

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body and soul

nas horas em que te espero

o dia que não está a vir

ouvindo caetano cantar

oh doce irmã

um rio a me esquecer sobre você

longe de todos os beijos teus que não vivi

que não viverei à espera de teu corpo

e tu não saberá de mim

que dancei para a lua numa noite como esta

que entreguei ao vinho as lágrimas de nosso carnaval

que deixei partir a tua estrada

e feito conversa encantei as pequenas coisas

todas em afetos desregrados

para algum fim

qualquer

(é teu nome que escrevo nestes poemas

teu nome de adeus e paixão)

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Publicado em Outubro de 2011 (1ª edição, ebook)

Capa, fotografia: giselli moreira

candeeirocafe.wordpress.com