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“Estando em meu perfeito juízo”: testamentos, ritos fúnebres e estratégia de mobilidade
social de forros – Mariana, Minas Gerais, c. 1735 – c. 1750
FELIPE TITO CESAR NETO
Introdução
Esta comunicação tem como objetivo analisar as práticas fúnebres empreendidas por
forros, dentre os anos de 1735 e 1750, em Mariana, Minas Gerais. O estudo empírico desta
pesquisa compõe de testamentos oriundos do Acervo da Casa Setecentista de Mariana e,
temos enquanto hipótese, que a prática testamentária empreendida pelos forros era utilizada
para intentar obter a salvação da alma e mobilidade social.
A historiografia referente à mobilidade social de escravos e forros muito contribuiu ao
estudar as diferentes estratégias empreendidas por eles, de modo a almejar melhores
condições de vida. Entretanto, pouco se sabe a respeito de suas ações de ascensão social, no
momento de suas últimas vontades, diante da proximidade com a morte. Com esta proposta,
os testamentos desses negros são fundamentais para compreender a importância dos ritos
fúnebres e as demais disposições testamentais, neste último ritual social, que tem seu início
em vida e fim com a morte. A metodologia empregada consiste na coleta e fichamento destes
documentos, permitindo traçar o perfil dos testadores e as suas estratégias de mobilidade
social na hierarquia mineira.
Por se tratar de uma pesquisa em andamento, os apontamentos inerentes ao trabalho
são provisórios e não necessariamente serão corroborados no fim de nosso estudo. O quadro
teórico desta pesquisa consiste no conceito e a noção de “estratégia” proposta pelo
antropólogo Frederick Barth. Por meio deste, torna-se possível compreender as ações dos
sujeitos, na medida em que cada indivíduo age em função de uma situação que lhe é própria e
com os recursos que detém, dentro de uma sociedade fraturada por suas incoerências, a partir
do seu universo de possíveis. (BARTH, 2000) e (ROSENTAL, 1998).
No desenrolar deste trabalho, pretendemos mostrar de forma breve a respeito das
hierarquias e mobilidade social nas sociedades de Antigo Regime e o diálogo referente à
morte e hierarquia nas práticas de bem morrer, tendo a bibliografia e uma pequena
amostragem de fontes como base. Esperamos, no fim desta comunicação, conseguir ter
Mestrando do curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES. Orientador: Prof. Dr. Carlos
Leonardo Kelmer Mathias. E-mail: [email protected].
2
mostrado os estreitos laços entre hierarquia e morte, entendendo que olhar sob esta
perspectiva, possibilita frutíferas análises tanto para a História da Morte, quanto das relações
entre livres e alforriados, em uma sociedade com característica estamental e escravista.
Hierarquia e Mobilidade Social
Conforme salienta Júnia Furtado, a sociedade setecentista procurava se organizar de
forma hierárquica e excludente. Todavia, tanto no reino português e em sua colônia na
América portuguesa, essas exigências estavam distantes da premissa dos modelos rígidos que
deveriam ser seguidos. Com a grande diversidade na Colônia, com seus hábitos e costumes
diferentes da Metrópole e, a escravidão tendo como marco importante e fundamental na
distinção social desta sociedade, era criado um novo cenário para além mar. Era uma
“sociedade colonial fluida, que se movimentava com mais facilidade, misturava brancos,
índios e negros, incorporava novas culturas, e criava uma sociedade que, se por um lado, tinha
Portugal como referência, por outro, era diferente” (FURTADO, 2001: 1).
Para nossa análise, não atribuímos a riqueza enquanto fator decisivo para a
movimentação na hierarquia, a respeito da mobilidade social. “Enriquecer ou empobrecer não
era um fato social decisivo, do ponto de vista da categorização” (HESPANHA, 2009: 122).
Antes disso, nas sociedades de Antigo Regime, a reputação social tem sua primazia de
destaque. No que tange aos escravos e forros, concebemos a mobilidade social por meio da
mudança jurídica – de cativo a forro - e o constante afastamento do passado escravo, através
de suas estratégias de ação que permitissem meios de inserção no mundo livre e branco
(GUEDES, 2006: 399). Assim, as relações de sociabilidade durante a trajetória de vida são
fundamentais para galgar melhores posições dentro da hierarquia.
A historiografia referente a escravos e forros chama a atenção para determinadas
formas de mobilidade social. Podemos destacar as seguintes: inserção pela via militar (as
milícias); a prática de concubinato; a construção de família; pelo trabalho; o batismo; as
relações de compadrio; pela via eclesiástica, etc.1 Nesta variedade de possibilidades, a
1 Para mais informações sobre estas práticas de mobilidade social sugerimos as seguintes leituras: RAMINELLI,
Ronald. “Fradaria dos Henriques. Conflitos e mobilidade social de pretos no Recife c.1654-1744”. In:
MONTEIRO, Rodrigo; CALAINHO, Daniela Buono; FEITLER, Bruno e FLORES, Jorge. (org.). Raízes do
Privilégio: Mobilidade Social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011,
pp. 387-421; REIS, Adriana Dantas. “Luzia Jeje, O Capitão Manuel de Oliveira Barroso e seus filhos pardos:
Quando as fronteiras de gênero interferem nas hierarquias sociais Bahia, 1780-1822”. In: TAVARES, Célia
Cristina da Silva e RIBAS, Rogério de Oliveira (org.). Hierarquias, raça e mobilidade social: Portugal, Brasil e o
3
historiografia mostra a inserção desses negros, consoante o afinamento as práticas do mundo
livre e branco, sobretudo inserido no conjunto de símbolos da fé católica.
Deste modo, levantamos o seguinte questionamento: e no momento da morte, como
acontecia a integração as práticas de bem morrer, para os alforriados? Buscamos compreender
como a feitura do testamento e as disposições de últimas vontades, foram importantes ao
moribundo obter a salvação da alma e, por meio desta, como os ritos fúnebres, mostravam as
intenções dos forros que conseguiam deixar suas disposições testamentais. Não cabe a este
trabalho comprovar, contudo, reitero a importância de nossa hipótese de pesquisa, a
considerar tais elementos como importante na mobilidade social desses alforriados no
momento da morte.
Prática testamentária
O testamento é a ferramenta por excelência para iniciar as práticas com o intuito de
obter a salvação da alma. Na maioria das vezes, estando de proximidade com a morte, que a
produção do mesmo era feita (FURTADO, 2009). Por se tratar de uma sociedade de Antigo
Regime, o morrer era cercado de importantes ritos necessários com o principal intuito de obter
a salvação da alma ou uma curta estadia no Purgatório – evitando, claro, a condenação eterna
no Inferno.2
Os moribundos - e posteriormente os mortos - por meio das práticas de bem morrer,
possuíam vínculos estreitos com os vivos. Essas interações nos permitem observar a dinâmica
Império colonial português (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Conta Capa/Companhia das Índias, 2010. pp.
151-166; FURTADO, Júnia Ferreira. “Pérolas negras: mulheres livres de cor no distrito diamantino”. In:
FURTADO, Júnia Ferreria (org). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do
Império ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, pp. 81-119; GUEDES, Roberto. Egressos
do Cativeiro: Trabalho, família, aliança e mobilidade social. (Porto Feliz, São Paulo, c.1708 – c.1850). Rio de
Janeiro: Mauad X : FAPERJ, 2008; FRAGOSO, João. “Elite das senzalas e nobreza de terra numa sociedade
rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741”. In: FRAGOSO, João e
GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Coleção o Brasil Colonial 1720-1821. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2014. pp. 241-305; FURTADO, Júnia Ferreira. “Mulatismo, mobilidade e hierarquia nas Minas
Gerais: os casos de Simão e Cipriano Pires Sardinha.” In: MONTEIRO, Rodrigo; CALAINHO, Daniela Buono;
FEITLER, Bruno e FLORES, Jorge. Raízes do Privilégio: Mobilidade Social no mundo ibérico do Antigo
Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 355-386; OLIVEIRA, Anderson José Machado de.
“Padre José Maurício: “dispensa da cor”, mobilidade social e recriação de hierarquia na América portuguesa”.
In: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica Imperial no antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras,
poderes e legados: séc. XVII - XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. pp. 51-66; entre outros autores. 2 Para maior aprofundamento sobre a temática do Purgatório e do Inferno, sugerimos as seguintes leituras: Le
GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1993; VOVELLE, Michel. As almas do
Purgatório: ou o trabalho de luto. São Paulo: Editora Unesp, 2010 e ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte.
São Paulo: Editora Unesp, 2014.
4
social entre eles, marcada pela hierarquia, distinção e pompa fúnebre. Essa relação entre
ambos, da mesma forma que era importante para aqueles que partiam – afinal, dependiam dos
vivos para que suas últimas vontades fossem realizadas –, também era fundamental para os
vivos, sobretudo aqueles encarregados de realizar as disposições solicitadas pelo testador.
Consoante Van Gennepe, o benefício era para ambos os lados:
Os indivíduos para os quais não foram executados os ritos fúnebres, assim como as
crianças não batizadas ou que não receberam nome, ou não foram iniciadas, são
destinadas a uma existência lamentável, sem poder jamais penetrar no mundo dos
mortos nem se agregarem à sociedade aí constituída. São os mortos mais perigosos,
porque desejariam reagregar-se ao mundo dos vivos, mas não podendo fazê-lo
conduzem-se como estrangeiros hostis. Não dispõem dos meios de subsistência que
os outros mortos encontram em seu mundo, e por conseguinte devem procurá-los à
custa dos vivos. Além disso, estes mortos sem lar nem lugar sentem frequentemente
um amargo desejo de vingança. Deste modo, os ritos dos funerais são ao mesmo
tempo ritos utilitários de grande alcance, que ajudam a livrar os sobreviventes de
inimigos eternos (GENNEPE, 2011: 138).
Destarte, ao realizar os pedidos solicitados pelos mortos, os vivos escapavam de sua
ira. E, também poderiam vir a nutrir, que ao chegar seus últimos momentos, receberia o
mesmo tratamento; mostrando a imagem de um bom cristão, preocupando-se tanto consigo,
quanto às almas dos demais. Na maioria das vezes, cabia ao testamenteiro escolhido pelo
testador, cuidar das premissas para a salvação de sua alma e partilha de seus bens materias. A
proximidade nas relações entre vivos e mortos, são características das sociedades de Antigo
Regime, na hora da morte. Todavia, para além das garantias de realizações das disposições em
testamento, à prática testamentária e ritos fúnebres neles contidos, possibilita ampliarmos o
nosso olhar de análise.
As Ordenações Filipinas, legislações que vigoraram no Império Português e em suas
colônias, regulavam a prática testamentária na América Portuguesa. Nelas continham alguns
limites ao direito de testar. Não era permitido que os homens menores de 14 anos; as mulheres
abaixo de 12 anos; os furiosos ou loucos; os mentecaptos ou idiotas; os hereges; os apóstatas;
o pródigo ou gastador; os religiosos professos; os escravos, etc., solicitassem suas últimas
5
vontades em testamentos.3 Por si só, o ato de testar, funcionava como uma espécie de “filtro
social” daqueles que poderiam lograr e ter condições de almejar uma boa morte. Dos poucos
alforriados que conseguiram realizara a feitura do testamento, as suas últimas vontades eram
importantes meios de intentar a salvação, bem como demonstração de poder que o morto
possuía enquanto vivo no interior do próprio grupo.4
Adiante, com o intuito de embasar a discussão que trouxemos até aqui, analisaremos
uma pequena amostragem de testamentos, chamando atenção para os ritos, enquanto
importante meio de obter a salvação da alma, e também, fundamental na análise da hierarquia
e ascensão social, levando em consideração as atitudes diante da morte.
Ritos fúnebres e hierarquia
A preta forra Maria Fontoura, moradora no termo de Mariana, em 7 de maio de 1744
registrou o seu testamento:
[...] Em nome da santíssima Trindade Padre Filho e Espírito Santo três pessoas e
um só Deus Verdadeiro Saibam quanto este instrumento virem que no ano de
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e quarenta e quatro e
aos sete dias do mês de maio do dito ano eu Maria Fontoura preta forra estando em
meu perfeito juízo e entendimento que nosso Senhor me deu (...) desejando por a
minha alma no caminho da salvação por não saber o que Deus Nosso Senhor de
mim quer fazer [...].
3 As legislações das Ordenações Filipinas encontram-se on-line:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. As questões referentes ao testamento podem ser
conferidas no livro IV, do Título LXXX, até o Título LXXXVI. 4 Estudos recentes a respeito da mobilidade social, sobretudo em sociedades com características estamentais,
consideram que a mobilidade social não deve ser entendida meramente como apêndice do enriquecimento. Antes
disso, nestas sociedades, a reputação social tem sua primazia de destaque. O enriquecimento podia ou não,
colaborar, porém o prevalecimento deve-se a imagem que o mesmo tinha no grupo que estava inserido. Cf.
GUEDES, Roberto. “Ofício mecânico e a mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVII-XIX)”. In:
Topói. Vol. 7, n° 3, jul-dez, 2006, pp. 379-423. Partindo deste pressuposto, que a mobilidade social dava-se no
interior do próprio grupo, salientamos a importância daqueles que conseguiam legar as suas últimas vontades,
levando em consideração o meio em que estavam inseridos. No momento da morte, o moribundo podia mostrar
aos demais, seu perfil de bom cristão e os ritos fúnebres que viria a receber. Especificamente no caso dos
alforriados, dos poucos que conseguiam deixar testamentos, tal atitude mostra a distinção que o mesmo possuía
em relação aos outros, neste grupo social de escravos e forros. Ou seja, alcançar o ato de testar, tanto para livres
e alforriados, nesta sociedade com símbolos do catolicismo na cosmogonia da época, era um importante
instrumento de poder, na hora da morte. Apesar dos gastos referentes à feitura do testamento, - não tornando o
poder como dependente da economia - chamamos atenção para o ato de testar, por si só, inserido nos sistemas de
significações das sociedades de Antigo Regime; bem como os ritos pedidos em testamento, que apesar das
solicitações serem mais ou menos suntuosas, o importante era estar afinado a este meio social.
6
Apesar das variações nos modelos de testamentos do século XVIII, a premissa e o
interesse do mesmo eram deixando claro em todos eles, que o principal intuito era colocar a
alma no caminho da salvação.5 A prática testamentária garantia após a morte de Maria
Fontoura, que suas solicitações seriam atendidas pelo seu testamenteiro, possibilitando a sua
boa passagem ao mundo de além-túmulo.
Continuando no testamento da preta forra Maria Fontoura:
[...] Primeiramente encomendo a minha alma à santíssima Trindade que a criou e
rogo ao Padre eterno pela morte e Paixão de seu Unigênito filho (...) Peço e rogo a
gloriosa virgem Maria Senhora Nossa Madre de Deus e a todos os santos da Corte
do Céu particularmente aos anjos da minha guarda e a Nossa Senhora do Rosário a
que tenho particular devoção e a todos os Santos da Corte Celestial queiram por
mim interceder e rogar quando a minha alma deste corpo sair por que como
verdadeiro cristão protesto de viver e morrer em a Santa Fé Católica e crer o que
crer a Santa fé Católica e nesta fé espero salvar a minha alma não por meus
merecimentos mas pelos da santíssima paixão do seu unigênito filho de Deus [...].6
O reconhecimento de seus pecados, as atitudes de simplicidade perante a fé cristã, a
solicitação dos santos, as santas e os anjos que intercedessem pelo testador, etc.,
demonstravam o reconhecimento em vidas dos atos falhos e arrependimento dos pecados,
tornando possível almejar o alívio da sua consciência e salvação da alma (MATHIAS, 2015).
A preta forra Maria de Meira, estando “doente na cama e temendo me da morte”, fez o
seu testamento “desejando por a minha alma no caminho da salvação”. A mesma informa
como deve proceder a respeito do seu cortejo fúnebre:
[...] Meu corpo será sepultado na Igreja desta cidade ou da freguesia donde quer
que eu falecer e me acompanhará meu corpo a sepultura o meu reverendo vigário
(...) com mais quatro sacerdotes e este dará (...) costumadas (...) missas de corpo
presente os que me acompanharem lhe darão as oitavas a cada um [...].
O cortejo fúnebre era considerado grande espetáculo referente ao barroco mineiro,
neste momento que o corpo era conduzido à sepultura. Segundo Adalgiza Campos a pompa
fúnebre antes de ser vista pela grandiosidade do funesto, requer ser entendida no sentido de
viabilizar a eternidade para os mortos (CAMPOS, 1987). Contudo, para aqueles que
presenciavam este momento, a pompa fúnebre remetia a condição social do morto e a
afirmação social do mesmo enquanto vivo, de acordo com Júnia Furtado (FURTADO, 2001). 5 Sobre as variações do testamento católico no século XVIII, Cf. RODRIGUES, Claudia e DILLMANN, Mauro.
Desejando pôr a minha alma no caminho da salvação: modelos católicos de testamentos no século XVIII. In:
Unisinos – doi: 10.413/htu. 2013.171.01. Janeiro/Abril, 2013. 6 ACSM. Livro de testamento 62, f. 66-66v.
7
Deste modo, podemos perceber, que a prática testamentária tanto com suas premissas
primordialmente espirituais, mas também materias, em conjunto, torna-se possível analisar e
estudar a respeito das hierarquias dessa sociedade por meio da documentação testamental.
Na continuidade com a exposição do testamento da preta forra Maria de Meira, a
mesma informa os tratamentos a ser dado a seu corpo:
[...] será amortalhado no hábito de São Francisco e não havendo em um lençol e me
levarão a tumba das almas com a Irmandade e lhe darão as esmolas costumeiras
[...].7
Dos testamentos das mulheres forras analisados neste trabalho, todos informaram as
mortalhas aos quais seriam envolvidos, após a alma de cada uma partir. Todas elas, também
solicitavam as mortalhas vinculadas aos seus santos de proteção. A necessidade desta veste,
conforme Claudia Rodrigues é devido à crença que durante a passagem para o além, os
mortos deveriam estar convenientemente vestidos. Ainda com a autora, em sua análise
referente à primeira metade do século XIX no Rio de Janeiro, as mortalhas de santos eram as
mais solicitadas pelos moribundos, pois representava um apelo aos santos para ajudá-los a
partir do momento que estiverem vestidos (RODRIGUES, 1997:146-147).
Igualmente a Maria de Meira, a preta forra Eugênia de Souza solicitou em seu
testamento o acompanhamento do cortejo fúnebre até o sepultamento de seu corpo, da
seguinte forma:
[...] Meu corpo será sepultado na matriz desta freguesia ou donde quer que eu
falecer amortalhado em hábito de São Francisco em falta desta em um lençol será
acompanhado pelas Irmandades das Almas (...) acompanhar o meu Reverendo
vigário e este dará costumas missas de corpo presente [...].8
Similarmente a estas, a preta forra Joana Ferras solicitou em seu testamento, após a sua
morte:
[...] Meu corpo será sepultado na capela de Nossa Senhora do Rosário da
irmandade das Almas de quem sou irmã e amortalhado em um lençol a irmandade
(...) missas por minha alma na capela de Nossa Senhora da Glória [...].9
Os testamentos das pretas forras analisados neste recorte, todos eles, com exceção de
dois que não foi possível verificar, solicitaram o acompanhamento e missas pela sua alma
para as Irmandades das Almas. Tais irmandades, conforme Júnia Furtado era específica para
7 ACSM. Livro de testamento 71, f. 122. 8 ACSM. Livro de testamento 63, f. 13. 9 ACSM. Livro de testamento 71, f. 99v.
8
brancos, de acordo com sua análise referente ao arraial de Tejuco. Apesar das restrições em
que estas confrarias pretendiam se organizar, foi possível a essas forras tornarem-se irmãs
dessas instituições e solicitarem as suas disposições espirituais (FURTADO, 2001).
A inserção de negros em irmandades era importante para estes conseguirem adentrar
nas relações sociais no meio que estavam inseridos. Consoante Cacilda Machado, os registros
de óbitos na região estudada por ela - o planalto paranaense - na primeira metade do século
XVIII, tornou possível compreender o momento da morte enquanto importante oportunidade
para expressar o prestígio social do moribundo (MACHADO, 2010: 178-180).
A preta forra de sobrenome Pinha solicitou em seu testamento que seja “feito missas
de corpo presente”, na presença do seu reverendo vigário e de sua Irmandade das Almas. A
mesma ainda solicitou que fosse feita para a sua alma, “trinta missas de meia oitava de ouro”,
por meio de seu revendo vigário.10 Igualmente, para a sua alma, Eugênia de Souza deixou
“cinquenta missas de meia oitava”.11
As missas eram um dos principais elementos que compunham os pedidos de últimas
vontades do testador. Nela estava a crença, conforme Adalgisa Campos, de manter o bem da
própria alma e ajudava nas remissões do pecado daqueles que estavam no Purgatório,
aguardando para a sua salvação (CAMPOS, 1996). As missas solicitadas tanto poderiam ser
para seu proveito ou como caridade e compaixão para a alma de entes queridos, ex-senhores,
e para as almas do Purgatório. Mesmo também solicitando missas para outrem, comumente o
moribundo tinha por interesse também beneficiar a si, no qual a caridade tinha sua
importância na imagem que o testador queria deixar dele mesmo. São atitudes que tanto
demonstram a imagem de bom cristão, preocupado com os caminhos que sua alma irá seguir
e, com a alma de outros mortos, que ao ajudá-los, poderia contribuir no momento de seu
julgamento final.12
Os testamentos aqui analisados, todos eles, solicitaram as tradicionais missas de corpo
presente, nas quantias de costume, com o intuito de remissões de seus pecados. Durante as
missas, também solicitaram a presença de seus vigários e das irmandades aos quais faziam
10 ACSM. Livro de testamento 63, f. 94. 11 ACSM. Livro de testamento 63, f. 13-13v. 12 Para saber mais a respeito da imagem de bom cristão e o perfil criado em testamento, Cf. PAIVA, Eduardo
França. “Usos e costumes da terra: o viver e o sentir nos relatos testamentais e nos inventários post-mortem das
Minas Gerais setecentistas”. In: RODRIGUES, Claudia e WANDERLEY, Marcelo da Rocha (org.). Últimas
Vontades: testamento, sociedade e cultura na América Ibérica – séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X,
2015, pp. 75-106.
9
parte, aumentando tanto as chances de obter a sua salvação e a pomposidade fúnebre de seus
cortejos. As pretas forras Pinha e Eugênia, além das tradicionais solicitações, pediram missas
para sua alma, doando esmolas para o seu vigário e para a sua irmandade, respectivamente.
Por fim, chamamos atenção aos laços de sociabilidade que o moribundo demonstrava
no momento de preparo de sua morte, em que nesta ocasião, era possível expor os laços que
tinham durante a vida. Em seu testamento, a preta forra Maria de Meira informa ter sido
alforriada pelo seu ex-senhor. O mesmo foi escolhido por ela para ser seu testamenteiro:
[...] Declaro que fui cativa de Manoel de Marquez (...) meu testamenteiro Santo a
minha carta de alforria que suposta a dita carta está passada gratuitamente não
devo nada ao dito meu senhor como tenho dito [...]
A participação de Manoel de Marquez, neste momento tão importante na condução
das solicitações de Maria de Meira, mostra a permanência de laços entre eles e a proximidade
em que os mesmos se encontram, para que seja seu testamenteiro.
Com intuito de ajudar sua família, e assim mostrar generosidade com os demais e
evidenciar seus recursos no que tange ao quesito material de seu testamento, Maria de Meira
solicitou as seguintes instruções:
[...] Declaro que sou natural da Costa da Mina e que nunca fui casada nem tive
filhos alguns e intitulo a minha alma por minha herdeira (...) depois de pagar as
minhas dividas e satisfeitos os meus legados (...) Deixo ao meu irmão Felipe
escravo de Manoel de Marques para ajuda de sua liberdade vinte oitava [...].13
Sua ação mostra a importante relação com seu familiar, o irmão Felipe, ao deixar para
ele determinado valor para que conseguisse comprar a sua liberdade. Deste modo, nos
mostrando as relações sociais no qual o testamento nos permite analisar.
Em 20 de outubro de 1735, o homem branco e livre José, morador do termo de Mariana,
fez o seu testamento “estando enfermo temendo me da morte” e nele buscou pelos “Santos
Sacramentos” encaminhar a sua “alma para a Santíssima Trindade”. O mesmo solicitou que
seu corpo fosse “sepultado na matriz de Nossa Senhora do Monte do Carmo”, e seu corpo
amortalhado, em hábito de Nossa Senhora do Carmo.14 Igualmente, Luis da Silva Pinto,
também morador da cidade de Mariana, em 1752, solicitou que seu corpo fosse “sepultado na
catedral da cidade de Mariana” no “hábito de São Francisco” e pediu a presença de quatro
13 ACSM. Livro de testamento 71, f. 122-122v. 14 ACSM. Livro de Testamento 65, f. 1-1v.
10
padres e de seu reverendo para acompanhar seu corpo até o sepultamento, solicitando a missa
de corpo presente. O mesmo também informou que é irmão da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e pediu para que a mesma acompanhe-se seu corpo e que fosse feita vinte missas
por sua alma.15
Os testamentos das pretas forras são semelhantes às disposições testamentais dos
brancos e livres da sociedade ao qual estão inseridas. Os pedidos solicitados com intuito a
alívio da consciência e salvação da alma mantêm os mesmos interesses de ambos os grupos;
todavia, as formas de preparação para o momento da morte são subjetivas a cada testamento
devido às inquietações pessoais de cada consciência, os recursos que cada um detém e as
formas concebidas na produção do perfil em testamento.
.
Conclusão
A pesquisa que esta comunicação pretendeu expor, se encontra em fase inicial. Assim,
ainda temos um caminho longo a percorrer no levantamento de fontes dos testamentos dos
alforriados, bem como dos livres, possibilitando tecer comparações desses distintos grupos
sociais.
Também é de nosso interesse observar as possíveis alterações nas disposições –
sobretudo nos legados espirituais – por causa do impacto do auge e declínio do ouro na
Capitania mineira - tendo em vista o maior número de testamento de alforriados para a
segunda metade do século XVIII – bem como as demais mudanças que estavam acontecendo
neste período. 16
Acreditamos que o estudo das atitudes diante da morte empreendidas pelos forros,
permita melhor compreensão da relação desse grupo com a morte, bem como a inserção
desses forros numa sociedade com característica estamental e escravista. Deste modo, o
estudo da morte fomenta tanto o conhecimento acerca deste momento último e derradeiro,
bem como das relações entre os vivos e os mortos.
15 ACSM. Livro de Testamento 70, f. 10-11. 16 Em recente artigo, Claudia Rodrigues aponta sobre as transformações que estavam circulando no século XVIII
europeu com influência do iluminismo, bem como as transformações na prática testamentária feitas pelo Pombal,
na segunda metade do século XVIII. Cf. RODRIGUES, Claudia. “Intervindo sobre a morte para melhor regular a
vida: significados da legislação testamentária no governo pombalino”. In: RODRIGUES, Claudia e FALCON,
Francisco (org.). A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, pp. 307-
345.
11
Fontes manuscritas:
ACSM, livro 62, fls. 66-68v. Testamento de Maria Fontoura. 7 de maio de 1744.
ACSM, livro 63, fls. 13-15. Testamento de [Ileg.] de Souza. 15 de junho de 1746.
ACSM, livro 63, fls. 93v-95.Testamento de [Ileg.] de Pinha. 12 de abril de 1742.
ACSM, livro 65, fls. 1-3. Testamento de José de [ileg.]. 20 de outubro de 1735.
ACSM, livro 70, fls. 10-13. Testamento de Luis da Silva Pinto. 14 de fevereiro de 1752.
ACSM, livro 71, fls. 99-101v. Testamento de Joana Ferras. 6 de maio de 1751.
ACSM, livro 71, fls. 121v-125v. Testamento de Maria de Meira. 3 de setembro de 1751.
ACSM, livro 72, fls. 44v-47. Testamento de [Ileg.]. 20 de abril de 1742.
ACSM, livro 72, fls. 76v-79v. Testamento de [Ileg.]. 16 de agosto de 1743.
Fonte On-Line:
Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro de
1870. Especificamente o livro IV, do Título LXXX, até o Título LXXXVI. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm.
Referências Bibliográficas:
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2000.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Considerações sobre a pompa fúnebre na capitania das minas –
o século XVIII”. In: Revista do Departamento de História da UFMG, Belo Horizonte,
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