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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA DE LÚCIO CARDOSO: UM ESTUDO SOBRE OS ROMANCES SALGUEIRO E CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA Mayara Costa Pinheiro Natal/RN, 2019

SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

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Page 1: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL

SOCIAL E INTIMISTA – DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA

DE LÚCIO CARDOSO: UM ESTUDO SOBRE OS ROMANCES SALGUEIRO

E CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Mayara Costa Pinheiro

Natal/RN, 2019

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Mayara Costa Pinheiro

SOCIAL E INTIMISTA – DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA

DE LÚCIO CARDOSO: UM ESTUDO SOBRE OS ROMANCES SALGUEIRO

E CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Tese submetida ao programa de Pós-Graduação

em Estudos da Linguagem da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte como requisito

parcial para a obtenção do grau de Doutora em

Letras.

Orientador: Professor Doutor Andrey Pereira

de Oliveira

Natal/RN, 2019

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Pinheiro, Mayara Costa. Social e intimista - dois vértices da narrativa romanesca deLúcio Cardoso: um estudo sobre os romances Salgueiro e Crônicada Casa Assassinada / Mayara Costa Pinheiro. - 2019. 118f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes,Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte, 2019. Natal, RN, 2019. Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira.

1. Cardoso, Lúcio, 1912-1968 - Tese. 2. Romance de 1930 -Tese. 3. Romance intimista - Tese. 4. Narrador - Tese. 5.Literatura Brasileira - Tese. I. Oliveira, Andrey Pereira de.II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 821.134.3(81)-3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Sebastião e Maria Da Paz, por acompanharem cada passo meu, pela força e

estímulo oferecidos em todas as fases de minha vida.

As minhas queridas irmãs Lorena e Viviane, e à minha prima-irmã Lidianne Melo, pela

amizade, carinho e pelo companheirismo. Vocês são meus elos de ligação com o passado, que

cresceram e crescem a cada dia ao meu lado.

A Willian Pinheiro Galvão, companheiro de todas as horas. Agradeço o afeto, o apoio amoroso,

moral e intelectual oferecidos a cada momento da produção deste trabalho.

Ao Professor Andrey, orientador deste trabalho. Agradeço as contribuições feitas durante as

orientações, pela leitura atenta de cada linha que escrevi, cuidado esse que foi fundamental para

o crescimento e a concretização deste trabalho.

Aos amigos da pós-graduação com os quais compartilhei as angústias da escrita e sempre me

alentaram com palavras de estímulo: Lanaíza, Célia e Ciro.

Aos colegas de trabalho do IFRN – campus Currais Novos, em especial: Janaína, Maura,

Gabriela, Dayana, Jane, Marcos Queiroz, Raquel Maia, Hyrla Cunha, Andreilson, Elionardo,

Rejane, Danilo, Gutto, Edinalva, Gabriell John, Hanniel, Ronaldo Falcão, Ítala, Márcia, Uliana,

Duarte, Lúcia Carneiro, Lívia, Marcílio, Saint Clair, Jahynne, Eliézio, Mário, Sadart, Fábio

Rolim e meu substitutos Juan Santos e Maíra Dal’Maz.

As orientadoras durante o período de graduação, as professoras Maria das Graças Soares

Rodrigues e Valdenides Cabral de Araújo Dias não só pela formação inicial, mas

principalmente por despertarem em mim o gosto pela pesquisa.

Aos meus professores de Literatura durante todo esse percurso de formação na área de Letras:

Márcia Tavares, Derivaldo dos Santos, Humberto Hermenegildo, Marta Gonçalves, Rosanne

Bezerra, Gerardo Fajardo e em especial ao Professor Andrey.

À Professora Eva Barros, pelos conhecimentos transmitidos nas nossas conversas amistosas.

À Iara Maria, minha primeira professora de literatura no ensino médio, agradeço por ter me

apresentado o mundo contagiante da Literatura pelo qual hoje sou apaixonada.

Aos bibliófilos Rejane Cardoso e Vicente Serejo, por abrirem as portas de sua biblioteca para

a pesquisa em obras raras.

A Ésio Macedo Ribeiro, estudioso e editor das obras de Lúcio Cardoso no Brasil, pelas

conversas enriquecedoras sobre nosso querido Lúcio.

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A Elisabete e Gabriel, funcionários da secretaria do PPGEL, por sempre me receberem com

atenção e tirarem minhas dúvidas com presteza.

À Monique Galvão, minha professora de Iyengar Yoga, por me apresentar o equilíbrio entre

corpo e mente.

As minhas terapeutas durante todo esse longo percurso de doutorado: Monalisa, Mayara Soares

e Natália Alves.

A CAPES pelo financiamento desta pesquisa.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

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Dedico este trabalho a Lúcio Cardoso

e a sua fiel irmã Maria Helena Cardoso.

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“Lúcio, estou com saudades de você, corcel de fogo que você

era, sem limite para o seu galope”

Clarice Lispector

“O outro ladodamenteéexpostoagora - o lado escuro, que prevalece

na solidão, e não o lado claro, que se mostra quando estamos

acompanhados.”

Virginia Woolf

“Houve tempo em que achei que devia seguir o caminho de

todo mundo. Era criminoso, era insensato seguir uma lei

própria. A lei era um domínio comum a que não podíamos

nos subtrair. Apertava-me em gravatas, exercitava-me em

conversas banais, imaginava-me igual aos outros. Até o dia

em que senti que não me era possível continuar: por que

seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me

igual aos outros, se era totalmente diferente? Ah, Betty, não

veja em mim, nas minhas roupas, senão uma alegoria: quero

erguer para os outros uma imagem da coragem que não tive.

Passeio-me tal como quero, ataviado e livre, mas ai de mim,

é dentro de uma jaula que o faço. É esta a única liberdade

que possuímos integral: a de sermos monstros para nós

mesmos.”

Timóteo, personagem de Crônica da Casa Assassinada

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RESUMO

Nesta tese, procuramos analisar dois momentos da produção romanesca de Lúcio Cardoso: a

fase social e o estilo intimista. Para delinear esses dois vértices da produção do autor,

selecionamos os romances Salgueiro (1935) e Crônica da casa assassinada (1959). O

primeiro é abordado como um romance de transição da fase social para o estilo intimista, e

o segundo é considerado o ápice da narrativa intimista de Cardoso. No desenvolvimento desta

análise, utilizamos como método a concepção dialética entre a literatura e seu contexto de

produção, estabelecendo uma relação entre os elementos estético-formais e os sociais,

princípios da “crítica integradora” proposta por Antonio Candido (2010b). Inicialmente,

fazemos um panorama sobre a vida e obra de Lúcio Cardoso, bem como uma

contextualização sobre romance de 1930, mostrando tanto a vertente regionalista, quanto a

intimista/psicológica na perspectiva dos críticos literários Luís Bueno (2006), Afrânio

Coutinho (2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006),

Massaud Moisés (2004) e Luciana Stegagno Picchio (2004). Em seguida, para análise de

Salgueiro, utilizaremos a perspectiva de Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira (1935),

Afrânio Coutinho (1995; 2004a), e Rosiane Vieira de Rezende (2007); bem como de Antonio

Candido (2010a) e Paulo Franchetti (2012) na comparação entre Salgueiro e O Cortiço, de

Aluísio Azevedo, entre os elementos da estética naturalista. Para desenvolver a análise

específica de Crônica da casa assassinada, foram utilizados dos conceitos de dialogismo e

polifonia propostos por Mikhail Bakhtin (2015b), a noção de “autor implícito”, de Wayne

Booth (1980) e a contextualização de Gilberto Freyre (2004) sobre a decadência do

patriarcalismo rural brasileiro. Por fim, a vinculação entre a análise de Salgueiro e Crônica

da casa assassinada ocorreu através da categoria estrutural do narrador, pois enquanto

Salgueiro é narrado em focalização fixa com o uso da onisciência, em Crônica da casa

assassinada ocorre a predominância do romance psicológico que é representado

esteticamente pelos vários narradores homodiegéticos. Procuramos mostrar como essa

mudança no elemento estrutural contribuiu para consolidar o estilo intimista de Lúcio

Cardoso por meio da noção de “polimodalidade focal” proposta por Gérard Genette (1979) e

comentada por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2009).

Palavras-chave: Lúcio Cardoso; Romance de 1930; Romance intimista; Narrador;

Literatura Brasileira.

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ABSTRACT

In this thesis, we try to show two moments in the novel production of Lúcio Cardoso: the social

phase and the intimate style. To delineate these two vertices of the author's production, we

selected the novels Salgueiro (1935) and Chronicle of the Murdered House (1959). The first

one is approached as a transitional novel from the social phase to the intimate style, and the

second one is considered the apex of Cardoso's intimate narrative. In the development of this

analysis, we use as a method the dialectical conception between literature and its production

context, establishing a relation between aesthetic-formal and social elements, principles of

"integrative criticism" proposed by Antonio Candido (2010b). First, we give an overview of the

life and work of Lucio Cardoso, as well as a contextualization about the 1930 novel, showing

both the regionalist and intimate / psychological aspects from the perspective of literary critics

Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho (2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004),

Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés (2004) and Luciana Stegagno Picchio (2004). Then, for

Salgueiro analysis, we will use the perspective of Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira

(1935), Afrânio Coutinho (1995; 2004a), and Rosiane Vieira de Rezende (2007); as well as

Antonio Candido (2010a) and Paulo Franchetti (2012) in the comparison between Salgueiro

and O Cortiço, by Aluísio Azevedo, among the elements of naturalistic aesthetics. To develop

the specific analysis of Chronicle of the murdered house, we used the concepts of dialogism

and polyphony proposed by Mikhail Bakhtin (2015b), Wayne Booth's (1980) notion implied

author and the contextualization of Gilberto Freyre (2004) on the decadence of Brazilian rural

patriarchy. Finally, the link between the analysis of Salgueiro and Chronicle of the murdered

house occurred through the structural category of the narrator, because while Salgueiro is

narrated in fixed focus with the use of omniscience, Chronicle of the murdered house occurs

the predominance of the psychological novel that is represented aesthetically by the various

homodiegetic narrators. We try to show how this change in the structural element contributed

to consolidate the intimate style of Lúcio Cardoso through the notion of focal polymodality

proposed by Gérard Genette (1979) and commented on by Vitor Manuel de Aguiar e Silva

(2009).

Keywords: Lúcio Cardoso; Novel of 1930; Intimate novel; Narrator; Brazilian literature.

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RÉSUMÉ

Dans cette thèse, nous cherchons montrer deux moments de la production romanesque de

Lúcio Cardoso: La phase sociale et le style intimiste. À fin de déssiner ces deux vertex du

travail de l’auteur, nous avons choisi les romans Salgueiro (1935) et Cronica da casa

assassinada (1959). Le premier nous l’abordons en tant que roman de transition de la phase

sociale au style intimiste de l’écrivain, dans le deuxième est reconnu le sommet de la

narrative intimiste de Cardoso. Par rapport au développement de cette analyse, nous utilisons

comme méthode la conception dialectique entre la littérature et son contexte de production,

établissant une relation entre les éléments esthétique-formel et les sociaux, principe de la

“critique intégrative” proposée par Antonio Candido (2010b). Initialement, nous traçons un

panorama sur la vie et l’oeuvre de Lúcio Cardoso, ainsi qu’une contextualisation sur le roman

de 1930, en montrant les aspects régionalistes et intimiste/psychologique, selon la

perspective des critiques littéraires tels que Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho (2004),

Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés

(2004) et Luciana Stegagno Picchio (2004). Ensuite, pour l’analyse de Salgueiro, nous

utiliserons la perspective de Luís Bueno (2006), Lúcia Miguel Pereira (1935), Afrânio

Coutinho (1995; 2004a), et Rosiane Vieira de Rezende (2007); aussi bien celle d’Antonio

Candido (2010a) et Paulo Franchetti (2012) dans la comparaison entre Salgueiro et O

Cortiço, d’Aluísio Azevedo, et entre les éléments de l’esthétique naturaliste. Pour développer

l’analyse spécifique de Crônica da casa assassinada, nous nous sommes servis des conceptes

de dialogismes et polyphonie préconisés par Mikhail Bakhtin (2015b), ainsi que la notion

“d’auteur implicite ”, de Wayne Booth (1980) et la contextualisation de Gilberto Freyre

(2004) sur la décadence du patriarcat rural brésilien. Enfin, le lien entre l’analyse de Salgueiro

et de la Crônica da casa assassinada est apparu à travers de la catégorie structuralle du

narrateur. En effet, alors que Salgueiro est narré dans une focalisation figée avec la présence

de l’omniscience, sur Crônica da casa assassinada se manifeste la prédominance du roman

psychologique représenté esthétiquement par les plusieurs narrateurs homodiégétiques.

Donc, nous essayons de montrer en quoi ce changement dans le structural a contribué à

renforcer le style intimiste de Lúcio Cardoso par le biais de la notion de “polymodalité focale”

proposée par Gérard Genette (1979) et expliquée par Vitor Manuel de Aguiar et Silva (2009).

Palavras-chave: Lúcio Cardoso; Roman de 1930; Roman intimiste; Narrateur;

Littérature Brésilienne.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

Capítulo 1 – Vida, obra e contexto de produção de Lúcio Cardoso ................................... 13

1.1 BIOGRAFIA E OBRA DE LÚCIO CARDOSO ........................................................................................................................................... 13 1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ROMANCE DE 1930: O EMBATE ENTRE AS VERTENTES SOCIAL E A INTIMISTA ........................................ 21

Capítulo 2 – Salgueiro: a transição entre o coletivo naturalista e o individual do romance

intimista ................................................................................................................................... 31

2.1 Aspectos gerais sobre o enredo ........................................................................................ 31

2.2 O morro como um ambiente coletivo: os traços naturalistas ....................................... 32

2.2.1 A AMBIVALÊNCIA DO ESPAÇO: O COLETIVO E O INDIVIDUAL ........................................................................................................ 32 2.2.2 A CONFIGURAÇÃO DO AMBIENTE OPRESSOR ................................................................................................................................ 39 2.2.3 O INFERNO DO SALGUEIRO ............................................................................................................................................................ 42 2.2.4 A ANIMALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS ........................................................................................................................................... 47

2.3 A superação do determinismo naturalista ................................................................. 54

2.3.1 O DESENVOLVIMENTO DA COMPLEXIDADE INTERIOR DO PERSONAGEM GERALDO ..................................................................... 59

Capítulo 3 – Crônica da casa assassinada: o ápice do intimismo na narrativa romanesca

de Lúcio Cardoso .................................................................................................................... 75

3.1 Sinopse do romance .......................................................................................................... 75

3.2 Refletindo sobre a noção de crônica ................................................................................ 82

3.3 O papel do autor implícito na organização do romance ............................................... 87

3.4 Crônica... um romance polifônico? .................................................................................. 96

3.4.1 UM CABO DE MADREPÉROLA: UM ELEMENTO DA CONFLUÊNCIA DE VOZES ................................................................................ 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 112

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 115

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INTRODUÇÃO

O início da narrativa intimista na literatura brasileira ainda é uma incógnita. Afrânio Coutinho

(2003) aponta José de Alencar, ainda no romantismo, como aquele que esboçou o romance psicológico

na literatura brasileira. Alguns críticos, como Massaud Moisés (2004), Alfredo Bosi (2006) e o próprio

Coutinho (2003) concordam que o romance psicológico começou a se consolidar ainda no

realismo/naturalismo oitocentista com Machado de Assis e Raul Pompéia.

Na década de 1930, a narrativa acabou retomando alguns princípios do realismo/naturalismo,

chegando a ser chamada de Neorrealismo ou de Neonaturalismo. Esse estilo de narrativa ganhou

destaque naquela época por uma questão ideológica que procurava através da literatura mostrar as

mazelas sociais vivenciadas pelos habitantes de determinadas regiões do Brasil, por isso, também se

nomeia esse estilo de romance de regionalista. Ganharam destaque nessa época os romances que

apresentavam o meio como fator determinante da pobreza daqueles que viviam em determinados locais,

como foi o caso dos romances que retratavam os períodos de seca na região Nordeste.

Tanto boa parte da crítica, quanto os escritores dessa época tinham afinidades ideológicas com as

ideias ditas de esquerda e muitas vezes incutiam em suas obras um conteúdo engajado de suas

concepções. Esse movimento chegou a ser tão forte que se folhearmos os livros didáticos de hoje,

praticamente em quase todos irão considerar apenas esse estilo de romance como o único estilo presente

no romance de 1930. Há raras exceções nos manuais didáticos que já trazem a corrente psicológica

(também chamada de intimista durante do Modernismo) com existência concomitante ao romance

regionalista nessa mesma época.

A narrativa romanesca de Lúcio Cardoso começou a ser publicada ainda na década de 1930 com

a publicação de Maleita (1934) um romance no estilo regional/social. No ano seguinte, Cardoso lançou

Salgueiro (1935), que é considerado por alguns críticos e estudiosos da obra do autor apenas como

neonaturalista, mas também é visto por outro grupo como um romance de transição, por apresentar além

dos aspectos naturalistas, como o determinismo e a animalização dos personagens, também apresenta o

desenvolvimento da psicologia de alguns dos personagens, principalmente do personagem Geraldo,

mesmo sendo narrado em terceira pessoa.

Nesta tese, optamos pela perspectiva do segundo grupo, pois se pretende mostrar que há a

coexistência das duas tendências, porque tanto há em Salgueiro a estética neonaturalista, como há um

início da narrativa psicológica, especificamente na terceira parte do romance. É a partir desta concepção

que iremos desenvolver a análise de Salgueiro, perseguindo a hipótese de que o estilo da narrativa de

Lúcio Cardoso começou a se delinear desde o seu segundo romance, não apenas a partir do terceiro, A luz

no subsolo (1936), como aponta parte da crítica. Para mostrar essas duas fases da obra romanesca desse

autor, além do romance Salgueiro selecionamos também a obra que seria o ápice de seu estilo intimista: o

romance Crônica da casa assassinada (1959).

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A categoria estrutural escolhida para comparar os dois romances deste estudo foi o narrador. Em

Salgueiro, temos um narrador em terceira pessoa onisciente que tem total conhecimento sobre as ações e

pensamentos de todos os personagens. Enquanto que em Crônica da casa assassinada, os seus

narradores contam em primeira pessoa a sua respectiva versão da história da decadência moral e

econômica da família Meneses, chegando a variar o ângulo de observação dos fatos entre centro e

periferia da história, e ainda apresentam as falas, as ações dos demais personagens e também os seus

próprios pensamentos. Procuraremos mostrar quais são as implicações que a escolha no modo de narrar

em cada romance provoca no contexto da narrativa e na percepção pelo leitor.

Iniciaremos o primeiro capítulo fazendo um panorama sobre a vida e obra de Lúcio Cardoso,

bem como uma contextualização sobre romance de 1930, mostrando tanto a vertente regionalista, quanto

a intimista/psicológica na perspectiva dos críticos literários: Luís Bueno (2006), Afrânio Coutinho

(2004), Antonio Candido (1989), Wilson Martins (2004), Alfredo Bosi (2006), Massaud Moisés (2004) e

Luciana Stegagno Picchio (2004).

No segundo capítulo, será realizada a análise do romance Salgueiro, a partir da apresentação das

características que o aproximam tanto da estética neonaturalista, quanto do romance intimista, mostrando

respectivamente a ambivalência entre o coletivo e o individual que segundo a nossa perspectiva constitui

a estrutura do romance. Especificamente no aspecto coletivo estabeleceremos uma comparação entre

Salgueiro e O Cortiço, romance naturalista oitocentista, de Aluísio de Azevedo. Nessa comparação serão

apontados, por exemplo, aspectos como a personificação do espaço de cada narrativa, a animalização de

alguns personagens e as semelhanças entre personagens dos romances. Ainda neste segundo capítulo,

mostraremos o ponto crucial que aproxima Salgueiro do romance intimista e o distancia do

neonaturalismo: a superação do determinismo através do conhecimento da existência divina, que segundo

a narrativa permitiu o personagem Geraldo se desgarrar das forças ocultas do morro e transformou-o em

dono de seu próprio destino.

O terceiro capítulo e último capítulo tem como pretensão analisar o romance Crônica da casa

assassinada, apogeu da narrativa intimista de Lúcio Cardoso. Primeiramente, faremos uma sinopse do

romance, mostrando o diálogo presente entre os textos dos personagens/narradores, bem como os

principais temas abordados no decorrer da narrativa, com destaque para a decadência do modelo

patriarcal rural que caracterizava a família Meneses. Esse declínio é representado no romance pelo

rompimento da autoridade masculina; pelo silenciamento de Demétrio, único irmão remanescente do

discurso patriarcal; o enfraquecimento da figura homem másculo, representado pelo personagem Timóteo

Meneses; e a má gestão e a crise latifundiária que arruinaram a Chácara Meneses, sendo esses temas

contextualizados a partir da perspectiva de Gilberto Freyre (2004).

Iniciaremos a análise de Crônica da casa assassinada discutindo a noção de crônica utilizada no

romance, em seguida será utilizada a noção de autor implícito, de Wayne Booth (1980), para discutir a

organização dos diversos gêneros e suportes textuais que compõe a estrutura romance; bem como serão

utilizados o conceito de dialogismo e polifonia de Mikhail Bakhtin (2015b). Durante a análise de

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Crônica da casa assassinada sempre estabeleceremos comparações com Salgueiro, principalmente por

meio da categoria estrutural do narrador, aplicando a noção de polimodalidade focal proposta por Gérard

Genette (1979) e comentada por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2009).

Page 16: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

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Capítulo 1 – Vida, obra e contexto de produção de Lúcio Cardoso

1.1 Biografia e obra de Lúcio Cardoso

Joaquim Lúcio Cardoso Filho nasceu em 14 de agosto de 1912, na cidade de

Curvelo/MG. Era o filho caçula dentre os seis filhos do casal Joaquim Lúcio Cardoso e Maria

Wenceslina Cardoso (Dona Nhanhá). A mãe de Lúcio Cardoso foi a segunda esposa de seu pai,

pois a primeira foi Regina Tassara com quem Joaquim Lúcio Cardoso migrou para as margens

do Rio São Francisco com o intuito de fundar a cidade Pirapora. Essa fundação fazia parte do

planejamento da instalação de uma indústria têxtil nessa região de Minas Gerais. Momentos da

história da fundação de Pirapora são narrados ficcionalmente em Maleita (1934), o primeiro

romance do escritor Lúcio Cardoso, como o autor ficou conhecido.

Em 1914, a família se mudou para Belo Horizonte. Nesta cidade, Lúcio Cardoso iniciou

seus estudos no jardim de infância, seguidos pelos estudos primários, como afirmou Mário

Carelli (1988), considerado o maior biográfico do autor, em Corcel de fogo: vida e obra de

Lúcio Cardoso (1912-1968).

Joaquim Lúcio Cardoso, o pai, fora uma figura constantemente ausente da família, pois

sempre estava envolvido em seus negócios que geralmente ficavam distantes de onde a família

residia (CARELLI, 1988, p. 22). Devido a essas ausências, quase sempre cabia a Dona Nhanhá

decidir sobre os rumos da família, principalmente, como definir o local de residência.

Em março de 1923, Dona Nhanhá decidiu ir morar no Rio de Janeiro devido aos estudos

superiores dos seus filhos Fausto, que cursava o “segundo ano de Medicina [,] e Adauto [que

foi] estudar Direito.” (CARELLI, 1988, p. 23). Enquanto que Lúcio passou a estudar no

Instituto Lafayette. Ele não era considerado um bom aluno, mas desde de criança tivera o hábito

da leitura, como bem recorda Maria Helena Cardoso, irmã com a qual tivera um maior laço

afetivo, em seu livro Por onde andou meu coração (1968).

Devido ao seu péssimo desempenho escolar: baixas notas, fugas da escola e indisciplina,

em 1924, sua família decidiu levá-lo “como interno para o Colégio Arnaldo”, em Belo

Horizonte/MG (CARELLI, 1988, p. 24). Só retornaria em 1929 para o Rio de Janeiro, onde

permaneceu morando até a sua morte em 1968.

Suas leituras ainda na juventude passaram por Dickens, Dostoiévski, Eça de Queiróz,

Conan Doyle, Hoffmann, José de Alencar, Emilio Salgari, Ibanez, José María Vargas Vila e

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Escrich, como elencou Mario Carelli (1988, p. 26).

Em seus diários, é possível conhecer as leituras da idade adulta de Lúcio que ele

comentava e promovia reflexões impulsionadas pelo que lia. Dostoiévski ainda permaneceu

entre as suas leituras da idade adulta, além de surgirem outros nomes como Nietzsche, Freud,

Baudelaire, Rimbaud, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Lúcio também dedicou várias

páginas de seu diário a comentar a Bíblia, devido a sua forte aproximação com a religiosidade

que também está tão presente em suas obras.

A amizade com Nássara e José Sanz, da época em que estava matriculado no Instituto

Superior de Preparatórios, no Rio de Janeiro, para concluir os estudos secundários, resultou na

sua primeira experiência literária. Ele fundou, junto com seus amigos, um jornal chamado A

Bruxa, “para o qual Lúcio escreve contos policiais” (CARELLI, 1988, p. 26).

Seu primeiro emprego foi na companhia de seguros “A Equitativa”, de propriedade de

seu tio Oscar Neto, mas nos momentos vagos não deixava de rabiscar um verso ou rascunhar

algo em prosa. No mesmo prédio em que ficava a companhia de seguros, também se localizava

a sede da Editora Schmidt, de Augusto Frederico Schmidt. O destino acabou relacionando Oscar

Neto e Augusto Schmidt e ambos criaram “A Metrópole”, uma outra companhia de seguros, e

Lúcio Cardoso foi convidado para trabalhar nela. Essa nova companhia foi o caminho para que

Schmidt conhecesse alguns versos de Lúcio por intermédio de seu tio Oscar. Os poemas de

Lúcio acabaram agradando Augusto Schmidt, que demonstrou interesse em publicá-los e

quando questionou se Lúcio possuía algum romance escrito, ele respondeu que possuía vários

e acabou escolhendo Maleita para mostrar ao dono da editora. Esse encontro resultou na

publicação do primeiro romance de Lúcio em 1934 pela Editora Schmidt. Assim começava a

promissora carreira de Lúcio Cardoso na literatura.

Foi nessa mesma época que antecedeu a publicação de Maleita que Lúcio conheceu, por

intermédio de Schmidt, Otávio de Faria, que foi um dos grandes amigos do escritor mineiro.

Apesar de seu primeiro romance ter sido considerado regionalista, Lúcio sentia ter mais

afinidade com o grupo que Carelli (1988, p. 30-31) chama de “espiritualista” e que era formado

inicialmente por Schmidt, Otávio de Faria, Vinícius de Moraes e Cornélio Pena.

Salgueiro (1935), o segundo romance de Lúcio, ainda foi considerado da corrente

regionalista/social, por apresentar, predominantemente, em suas duas primeiras partes, fortes

traços neonaturalistas como a relevância dada a interferência do ambiente no destino dos

personagens e por tratar as dificuldades enfrentadas por um grupo que lá vivia. Porém, na

terceira parte romance, já se nota uma inclinação para a corrente mais intimista da literatura na

medida em que aprofunda o psicológico do personagem Geraldo, o que seria em suas obras

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futuras um traço marcante da obra de Lúcio Cardoso.

Como ressalta Elisabeth da Penha Cardoso (2010), em sua tese intitulada Feminilidade

e transgressão: uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso, Vinicius de Moraes em carta a Lúcio

Cardoso, datada em 30 de janeiro de 1935, elogia a terceira parte de Salgueiro, que na ocasião

ainda era inédito, e confessa que não gostou da presença da vertente social das duas primeiras

partes, tendo em vista a preferência de Vinicius pela corrente espiritualista. O poeta carioca

afirma: “se você fizer o seu terceiro romance nessa progressão de aperfeiçoamento breve teremos

o maior braço do romance no Brasil” (MORAES apud CARDOSO, 2010, p. 22). Lúcio acabou

seguindo essa espécie de conselho de Vinicius, pois em carta no mesmo ano de 1935, escreve:

“Reneguei a ‘Maleita’ e o ‘Salgueiro’. Não penso agora senão no ‘Demônio’ ” (CARDOSO

apud LAMEGO, 2012). Esse demônio que ele cita, provavelmente é aquele que habita o

subsolo da mente humana e que ele passa a investigar mais a fundo nos seus romances

posteriores a Salgueiro.

Lúcio Cardoso trocou diversas cartas com Vinicius de Moraes e essa em especial

expressa um desejo do próprio Lúcio em mudar de enfoque em sua obra romanesca, mesmo

que essa mudança tenha causado muitas críticas negativas de seus contemporâneos.

Essa passagem na obra de Cardoso do romance regionalista para o romance

psicológico/intimista foi também observada por Valéria Lamego:

[...] Em pouco tempo, apagou os conceitos do romance regional e social, nos

quais a coletividade sobrepunha a individualidade, o sujeito e, sobretudo, a

linguagem poética. Deu início, então, ao seu projeto particular, individualista e

lírico de literatura. (LAMEGO, 2012)

Com o romance A luz no subsolo (1936), Lúcio Cardoso demonstra ter se vinculado de

vez a vertente intimista, seguido por Dias Perdidos (1943), Crônica da casa assassinada (1959)

e O viajante, que o autor não conseguiu concluir, mas que mesmo assim foi publicado

postumamente em 1973.

Cardoso também enveredou pelo gênero novela durante um bom tempo da sua

produção. Após a publicação de A luz no subsolo, em 1936, até 1959, o escritor mineiro

publicou apenas um romance: Dias Perdidos (1943). As demais obras nesse período foram do

gênero novela: Mãos Vazias (1938), Céu Escuro (1940), O Desconhecido (1940), Inácio

(1944) que junto com O Enfeitiçado (1954) e Baltazar (2002) fazem parte da trilogia que

Lúcio chamou de “O mundo sem Deus”. Baltazar acabou não sendo finalizado e seus

fragmentos foram publicados apenas em 2002. Lúcio também publicou as novelas A

Professora Hilda (1946) e O Anfiteatro (1946).

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Massaud Moisés (2004) chama a atenção que o critério utilizado por Lúcio Cardoso para

considerar uma obra como novela ou romance era quantitativo, tendo em vista que as obras

mais volumosas eram consideradas romances: Maleita, Salgueiro, A luz no subsolo, Dias

Perdidos e Crônica da casa assassinada; enquanto que as menos volumosas eram chamadas de

novelas. Moisés salienta que “[...] hoje, que uma distinção atenta aos princípios de rigor optaria

pela estrutura e não pelo número de páginas. Assim, Dias Perdidos está mais próximo da novela

que do romance, enquanto Mãos Vazias seria mais propriamente um conto extenso e O

Anfiteatro, um romance” (MOISÉS, 2004, p. 231).1

Lúcio Cardoso também atuou como tradutor. As primeiras atividades de tradução de que

se tem registro foi na única edição de “Sua Revista”, publicada em 1932. Esse veículo foi criado

por Lúcio Cardoso e Tomás Santa Rosa, desenhista e cenógrafo paraibano. Segundo Ésio

Ribeiro nessa revista Lúcio “apresentou traduções de Ibsen, Pirandello e Dostoiévski”

(RIBEIRO, 2006, p. 34).

As traduções em livro se iniciaram em 1940, com Orgulho e Preconceito, de Jane

Austen, pela editora José Olympio. Ésio Ribeiro (2016), no texto de apresentação da edição de

2016 da tradução de Lúcio Cardoso para O vento da noite, de Emily Brontë, elenca as primeiras

edições das traduções de Lúcio Cardoso, são elas: Fuga (1941), de Ethel Vance; O fim do

mundo (1941), de Upton Sinclair; O livro de Job (1943); Drácula – o homem da noite (1943),

de Bram Stoker; Ana Karenina (1943), de Leon Tolstói; As confissões de Moll Flanders, Daniel

Defoë (1943); O fantasma da ópera (1944), de Gaston Leroux; A ronda das estações (1944),

de Kâlidâsa; O vento da noite (1944), de Emily Brontë; A caverna (1944), de Eugênio Zamiatin;

O assassino (1945), de Liam O’Flaherty; Os segredos de Lady Roxana (1945), de Daniel Defoë;

A princesa branca (1946), de Maurice Bauring; Memórias I – extratos de minha vida – poesia

e verdade (1948), de Goethe; Três novelas russas (1947), que inclui: A Primavera da vida, de

N. Garin; Ivan, o terrível, de Tolstói; A mulher do outro – aventura extraordinária, de

Dostoiévski.

Segundo Ribeiro (2016), pode-se dizer que Lúcio fez uma “transcriação” – utilizando-

se da nomenclatura da “Teoria da Transcriação”, de Haroldo de Campos – em O vento da noite,

de Emily Brontë, pois ele não realizou uma tradução ao “pé da letra”, mas, na verdade, uma

espécie de recriação. Assim, Ribeiro (2016) conclui que Lúcio Cardoso desenvolveu um

método de “tradução de poesia”, na década 1940, que só seria teorizado, posteriormente, na

década de 1960, por Haroldo de Campos.

1 Apesar de apresentarmos essa visão de Massaud Moisés, neste trabalho optou-se por seguir a classificação

adotada pelo próprio Lúcio Cardoso.

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Outro exemplo de tradução que se pode mencionar é a “versão” que ele fez de Drácula,

de Bram Stocker, já que se nota pelo número inferior de páginas e pela ausência de alguns

detalhes da narrativa na edição publicada pela editora Civilização Brasileira, em 2013, que não

se tratou de uma tradução do texto na íntegra.

Acerca da tradução de O livro de Job, de 1943, tem as seguintes informações no próprio

livro: “Esta versão foi feita de acordo com a francesa de Samuel Kahen, por sua vez diretamente

traduzida do hebraico. Na sua revisão foram usadas as traduções de Lemaistre de Sacy e de A.

Crampon, bem como varias edições existentes em português. Convém notar que se trata de uma

tradução livre”. Como se pode perceber, pelo menos nessa tradução, Cardoso não traduziu do

hebraico, idioma em que a obra foi produzida, e acredita-se que isso ocorreu não só nessa

tradução, mas nas outras também.

Há poucos detalhes sobre esse trabalho de tradução que Lúcio Cardoso realizou durante

a década de 1940. Pouco se sabe sobre os idiomas de que ele tinha domínio, bem como de que

idioma ele traduzia os livros, se do original ou de outra tradução, como foi o caso de O livro de

Job, pois na época pouco se tinha esse cuidado editorial; bem como não há detalhes do método

que ele utilizou para desenvolver as traduções, mas que geralmente eram “traduções livres”.

Segundo Ribeiro (2006, p. 40), quando se aproximava dos quarenta anos, Lúcio se

dispôs a escrever um diário. O primeiro volume ainda foi publicado na década de 1960, sob o

título Diário I (1949-1951). Esse volume compreende o período entre agosto de 1949 até março

de 1951 e foi o único publicado em vida por Lúcio. Há controvérsias quanto ao ano de

publicação, pois na edição do Diário I não há menção do ano da publicação, mas há duas pistas

que nos levam a crer que esse volume foi publicado em novembro de 1960. A primeira pista é

uma nota presente na edição do Jornal do Brasil, publicado no Rio de Janeiro, em 16 de

novembro de 1960: “Simões ativo: edições e pesquisas – Será lançado dentro de poucos dias

um livro em torno do qual existe grande expectativa: o Diário de Lúcio Cardoso (1º volume).”

A segunda pista está em um dos exemplares do Diário I, especificamente numa dedicatória

redigida pelo próprio Lúcio Cardoso à Maristela Campos Barreto, na qual ele localiza e data:

“Rio, XI - 60”. O onze em algarismo romano seria equivalente ao mês de novembro e o sessenta

ao ano de 1960. A Simões, citada na nota, eram as “Organizações Simões”, como mencionou

Walmir Ayala em texto publicado na edição de 11 de setembro de 1960, do Jornal do Brasil.

O volume I do Diário saiu pelo selo Elos dessa organização e tinha-se a pretensão de serem

publicados mais quatro volumes, totalizando cinco volumes de diários, mas isso acabou não

ocorrendo.

O Diário II (1951-1962) foi publicado pela primeira vez em 1970, junto com o Diário I,

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sob o título de Diário Completo, com a organização de Walmir Ayala, amigo de Lúcio. Em

2012, é publicado o volume Diários, organizado por Ésio Macedo Ribeiro, que inclui Diário

0, que é anterior ao Diário I, e compreende o período entre de novembro de 1942 e se estende

até 1947; bem como o Diário I e o Diário II, publicados anteriormente, mas também inclui

alguns textos dispersos que foram publicados em periódicos, como é o caso de: “Diário

proibido – páginas secretas de um livro e de uma vida”, “Diário de terror”, “Pontuação e

prece”, “Confissões de um homem fora do tempo”, “Livro de bordo”, “Diário não íntimo” e

outros registros que permaneciam inéditos no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa,

localizada no Rio de Janeiro/RJ.

Lúcio em seus Diários se intitulava católico, mas como ressalta Consuelo Albergaria,

no ensaio “Espaço e transgressão”, seria melhor chamá-lo de “escritor cristão”

(ALBERGARIA, 1991, p. 686), devido as suas críticas a algumas práticas do catolicismo e sua

preferência em comentar a Bíblia sem o intermédio de uma religião. Essa característica também

está presente em suas obras, como em Salgueiro, em que o narrador acaba criticando a crença

em imagens de santos e as rezas decoradas. O modo como Geraldo entra em contato com a

divindade também possui um diferencial, pois não é através de um padre que ele é tocado por

Deus, mas através da fala dos personagens Valério e Vicente, que encontraram na figura divina

o conforto para suas dores. Aliás, a própria ausência de uma igreja no morro Salgueiro,

demonstra esse descompromisso com a evangelização promovida pelas religiões, pois o

narrador do romance parece acreditar em uma crença em Deus de forma mais livre, distante

dos dogmas impostos pelas religiões. Desse modo, pode-se inferir que Cardoso acaba refletindo

no narrador do romance suas concepções acerca da religião e da fé. Essa reflexão sobre a

religião também vai ser representada em Crônica da casa assassinada pelas personagens Ana

e Padre Justino. Ela sempre fica se questionando em suas confissões sobre alguns dogmas e

práticas do catolicismo e o Padre Justino atua na narrativa como o representante de Deus e da

Igreja Católica. O padre reafirma em suas falas a noção de pecado, a presença do inferno nos

lugares onde Deus está ausente e realiza alguns sacramentos cristãos como a unção e a

encomenda da alma dos personagens que falecem durante a narrativa.

Lúcio também se aproximou do teatro ao escrever algumas peças e também do cinema,

chegando a redigir roteiros e a ser diretor do filme “A mulher de longe” (1949). O Escravo

(1945) e O filho pródigo (1949) foram duas peças que ele produziu e foram logo publicadas.

As demais peças só foram publicadas pela primeira vez em livro no volume Teatro Reunido

(2006), pois anteriormente seu acesso ficava restrito ao acervo da Fundação Casa Rui Barbosa.

Nesse novo volume, foram inclusas além das peças O Escravo e O filho pródigo, também outras

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obras da dramaturgia de Cardoso, como A corda de Prata; Angélica; O homem pálido; Os

desaparecidos; Prometeu libertado; e Auto de Natal. A encenação dessas peças foi resultado

da participação de Lúcio Cardoso em diversos grupos como: “O Comediantes”, que encenou a

sua primeira peça: O Escravo, em 1943; o grupo “Teatro Experimental do Negro”, que

selecionou a peça O filho pródigo, em 1947; e ainda no ano de 1947, funda seu próprio grupo

de teatro, o “Teatro de Câmara”, no qual foram encenadas as peças A cor de prata (1947) e

Angélica (1950). A extinta TV Continental exibiu O homem pálido, em 20 de agosto de 1961,

de acordo com as informações presentes no volume Teatro Reunido (2006, p. 400). As peças Os

Desaparecidos, Prometeu libertado e Auto de Natal não chegaram a ser encenadas.

O escritor mineiro também tentou enveredar na área da Literatura Infantil ao escrever

o livro História da Lagoa Grande. Sobre essa obra de Cardoso, Nelly Novaes Coelho (1995),

no Dicionário Crítico da Literatura Infantil/Juvenil Brasileira, considera que as histórias até

poderiam ser classificadas como fábulas, por terem como personagens animais que estão

envolvidos em situações semelhantes às humanas, porém as narrativas não trazem a famosa

“moral da história” e “nem a vitória dos fracos”, que vencem os fortes fisicamente através da

astúcia, características típicas das fábulas. Curiosamente o que rege a Lagoa Grande são

sentimentos e atitudes negativas, como: “presunção, orgulho, vingança, ambição de possuir o

que é do outro, agressividade gratuita etc” (COELHO, 1995, p. 615). Esse conjunto de fatores

acabou distanciando o público inicial do livro, que era o infantil, já que durante a infância o

recomendado é apresentar sentimentos e atitudes positivas para os seres em formação.

Lúcio Cardoso publicou seus poemas em dois volumes: Poesias (1941) e Novas Poesias

(1944). Postumamente, Octávio de Faria organizou Poemas Inéditos que foi publicado em

1982. Em 2011, foi publicada a edição crítica Poesia Completa, com estabelecimento de notas

por Ésio Macedo Ribeiro. Esse volume compreende além dos três primeiros livros de poesias de

Cardoso, as seções “Poemas publicados em periódicos” (1934-2009), “Poemas póstumos” e

“Poemas póstumos incompletos”. Boa parte desse material foi encontrado no Arquivo Lúcio

Cardoso (ALC) do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa

(FCRB), bem como a consulta nos diversos periódicos que Cardoso publicou.

O escritor mineiro teve uma intensa atividade de publicações nos jornais e revistas da

época, tais como os cariocas: “A Manhã”, “A Noite”, “Diário Carioca”, “Revista da Semana”,

“O Cruzeiro”, só para citar os principais. Nesses periódicos, Cardoso publicou poemas,

contos, crônicas, artigos, trechos de seus romances e partes de seus diários.

Na noite de 7 de dezembro de 1962, como relatou Maria Helena Cardoso em Vida- Vida

(1973, p. 81-86), Lúcio Cardoso sofreu um acidente vascular cerebral, que resultou numa

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hemiplegia, paralisando todo o lado direito do autor, o que o impediu de falar e escrever, já

que era destro. Apesar do longo período de recuperação, marcado por diversos tipos de exercícios

e terapias variadas, não conseguiu retomar a fala e a escrita, interrompendo assim o ciclo

produtivo do escritor. Porém, a verve artística de Lúcio se manifestou desta vez nas artes

plásticas, quando passou a pintar com a mão esquerda. A sua produção em telas foi

apresentada em algumas exposições na maioria individuais e algumas coletivas em galerias nas

cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e até mesmo em Paris e Berlim, como

elenca Ribeiro (2006, p. 189-190).

Lúcio Cardoso morreu em 24 setembro de 1968, na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de

Janeiro, devido as complicações de um segundo acidente cardiovascular, que ele sofreu no dia

12 setembro desse mesmo ano. Cessava de vez o ciclo de uma existência marcada pela forte

verve artística nas áreas da literatura e das artes plásticas.

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1.2 Contextualização do romance de 1930: o embate entre as vertentes social e a intimista

Em Uma história do romance de 30, Luís Bueno reconhece que durante a década de

1930, havia na literatura brasileira uma polarização artística que era um reflexo de um conflito

político entre direita-esquerda (BUENO, 2006, p.15). Na polarização artística, observou-se o

contraste entre o “romance social ou proletário”, que inicialmente teve maior prestígio, e o

“romance psicológico”, que foi ganhando o interesse dos leitores no decorrer da década:

O romance social ou proletário foi quantitativamente dominante na década,

mas seu prestígio teve a tendência de diminuir a partir de um momento de

auge em 1933. O romance psicológico, seu antagonista, ao contrário, foi

menos numeroso, mas seu prestígio foi se consolidando com o correr dos

anos. (BUENO, 2006, p. 15)

Enquanto o romance social possuía mais um caráter empenhado, o romance psicológico

era incialmente acusado de apresentar um tom descompromissado com a realidade nacional,

por isso foi bastante criticado num contexto que buscava utilizar a literatura como uma

ferramenta de conscientização política e social:

Afinal, os anos 30 são a época do romance social, de cunho neonaturalista,

preocupado em representar, quase sem intermediação, aspectos da sociedade

brasileira na forma de narrativas que beiram a reportagem ou o estudo

sociológico. É claro que, nesse tempo, houve também uma outra tendência na

qual pouco se fala, uma “segunda via” do romance brasileiro, para usar a

significativa expressão de Luciana Stegagno Picchio, o chamado romance

intimista ou psicológico, mas tão secundária que não teve forças para

estabelecer-se como forma possível de desenvolvimento do romance no

Brasil. [...] (BUENO, 2006, p. 19)

Mas há concepções diferentes sobre esse mesmo período, pois se percebe que o romance

intimista também apresentava uma representação da identidade nacional do brasileiro, só que

de uma forma não tão explícita como se expressava no romance regionalista, como bem

observou Afrânio Coutinho (2004 [1970]):

[...] Há uma evolução coerente da ficção brasileira desde o início no sentido

da brasilidade, pela absorção dos elementos ficcionais locais. Os ficcionistas

‘adquirem um só comportamento: fixam em documentário, dentro dos

movimentos temáticos, a matéria ficcional’. E mesmo quando o interesse é

pela análise do caráter, é em função do ambiente social. E até quando o espaço

social é mais limitado – o provincialismo metropolitano – a matéria ficcional

adquire dimensão em profundidade (sondagem psicológica), mas o fundo

brasileiro é o mesmo. (COUTINHO, 2004, p. 272)

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Esse crítico percebeu que além de haver essa tentativa da construção do caráter nacional

nos romances sociais, também identificou essa temática naqueles romances com abordagem

psicológica. Na citação, Coutinho se refere a essa abordagem especificamente nos trechos em

que comenta sobre a análise do caráter dos personagens e quando a “matéria ficcional adquire

dimensão em profundidade (sondagem psicológica)”, pois segundo ele ambos os enfoques são

em função do ambiente, que no caso é o brasileiro. Dessa forma, pode-se entender que mesmo

não deixando explícita a influência do ambiente na constituição dos personagens, que foi a

abordagem do romance social, os romances intimistas podem até ter mostrado as angústias de

indivíduos específicos, mas na verdade esses sujeitos são uma alegoria de algo maior, pois

suas inquietações individuais também são as de seu povo.

É essa a perspectiva que adotamos nesta tese, pois simpatizamos com as ideias do grupo

que acredita que o romance psicológico foi o outro caminho para representar o Brasil ainda na

década de 1930, além do romance social e regional. Sendo esse caminho, diferente do que

pensavam alguns contemporâneos à época, que consideravam esse tipo de perspectiva alienante,

ao alegar que esse tipo de romance não expressava preocupações com os problemas sociais do

país, mas que na verdade os representava só que metaforizada nas angústias do indivíduo.

Antonio Candido (2006, p. 28-29), em Formação da literatura brasileira, reconhece

que boa parte do romance brasileiro possuía um “caráter empenhado”. Para ele, o início do

romance brasileiro com Joaquim Manuel de Macedo até as obras de Jorge Amado “[...] mostra

quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na

construção de uma cultura” (CANDIDO, 2006, p. 434).

O romance considerado como engajado ganhou destaque, porque boa parte da crítica

literária da década de 1930 simpatizava com as ideias da esquerda e esse grupo acabou

valorizando a literatura engajada, como reação aos regimes políticos da direita que para

alguns eram considerados grupos fechados (BUENO, 2006, p. 17). Segundo Wilson Martins

(2004), a produção inicial do Modernismo tinha uma “concepção sociológica da literatura”

(MARTINS, 2004, p. 602), por isso a crítica inicial ao Modernismo, na década de 1920,

julgava uma obra mais pela suas “qualidades de fidelidade ao meio [...] do que pela sua

perfeição estética” (MARTINS, 2004, p. 603). Isso acabou refletindo diretamente na crítica da

época, pois no período compreendido “entre 1930 e 1940, talvez um pouco mais, digamos,

1945, houve o predomínio da ‘ideia política’ na vida literária brasileira. A crítica dessa época

será igualmente doutrinária e extremista, propensa a julgar as obras pelo conteúdo

programático ou humanitário, desprezando as preocupações estéticas, ridicularizando a

perfeição formal [...]” (MARTINS, 2004, p. 599). Só por volta de 1945 é que a crítica se

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desvincula do que Martins chama de “desorientação” e passa reconsiderar o fator estético

como item de análise das obras, não apenas o caráter engajado.

Mas perceber que boa parte da literatura brasileira possui esse caráter engajado não

significa dizer que esse tipo de literatura seja superior, quando comparada a que não é

empenhada ou desinteressada desses temas sociais, ou seja, não é porque a literatura engajada

ganhou destaque, isso significa dizer que ela é a melhor. Porém, como salientou o próprio

Bueno (2006), também não se deve estigmatizar a literatura considerada empenhada, porque

ela também possuiu vários atributos positivos. Dentre esses atributos estão até mesmo

algumas contribuições formais significativas às narrativas, que só foram reconhecidas

posteriormente, tais como o “estilo oral, construção e montagem cinematográficas,

expressionismo verbal”, conforme destacou Luciana Stegagno Picchio (1988, p. 93),

contrariando a omissão da crítica da época a esses aspectos formais. Em contrapartida, a

crítica empenhada acabou provocando um apagamento dos “autores ditos intimistas”, que

eram considerados como autores de concepções da direita e que por essa motivação política,

muitas vezes eram renegados pela crítica de ideologia política de esquerda: “um efeito claro

desse fenômeno, relativo aos anos 30, é o apagamento a que foram condenados os autores

ditos intimistas que surgiram naquele momento” (BUENO, 2006, p. 17). Talvez seja essa a

justificativa que quando se fala em romance de 1930 já se pense em romance regional/social e

se esqueça de mencionar a existência do romance intimista, como está posto na maioria dos

manuais didáticos e antologias literárias.

Alfredo Bosi menciona o retorno de alguns aspectos do Naturalismo nas letras

brasileiras e menciona também a presença de um “veio neo-realista da prosa regional” (2006,

p. 388), especificamente, pelo estilo de narração documental, que acabou se enfraquecendo na

produção da década de 1950. Nesta época, a produção documental deu lugar à intensificação

das obras de perspectiva psicológica, como salientou Bueno (2006), mas o aspecto

realista/naturalista retorna nas décadas de 1960 e 1970 através da literatura-reportagem, como

forma de reação a repressão do período político da ditadura militar. Nesse momento, a

literatura brasileira passa mais uma vez por um período engajado, e volta a ter o tom

documental, aproximando a hipótese de Flora Süssekind (1984) do “eterno retorno”

naturalista, a qual será abordada mais à frente.

Segundo Massaud Moisés, a ficção modernista também teria essas duas vertentes: a

realista e a ficção psicológica ou introspectiva. Percebe-se que ao chamar o “romance

regional/social” de “realista”, ele acaba destacando a influência do Realismo e do Naturalismo

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do século XIX nessas obras típicas do romance de 1930, na medida em que retomava teses

científicas e sociais, como, respectivamente, as de Émile Zola e as de Karl Marx:

Ao retomar a doutrina naturalista em voga nos fins do século XIX, a corrente

realista da geração de 30, notadamente os ficcionistas nordestinos, repudiou o

cientificismo mecanicista dos seguidores de Zola, substituindo-o por um

verismo doutrinariamente orientado. Não conseguiu, porém, resistir aos apelos

de uma espécie de realismo ingênuo, pela adoção, também mecânica, de teses

sociológicas. (MOISÉS, 2004, p. 138)

Para Moisés, o romance regional/social buscava “ser um registro documental das

características sociais, geográficas e históricas do interior brasileiro, notadamente o Nordeste e

o Sul” (MOISÉS, 2004, p. 130). Essas características se apresentavam tanto no espaço rural,

como no urbano. Enquanto a ficção psicológica ou introspectiva estava “presa, remotamente ao

Simbolismo e, mais de perto, às correntes romanescas da belle époque, e enriquecida com as

sugestões da prosa moderna dum Proust, dum Gide, etc” (MOISÉS, 2004, p. 137), além de ter

influências do modelo de romance psicológico de Machado de Assis.

Essas “duas vertentes” da ficção década de 1930, denominadas por Massaud Moisés

(2004), são denominadas de “duas tradições” em A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho

(2004b), mas apesar dos nomes serem diferentes, a ideia é bem parecida. Essas duas tradições

na ficção brasileira, de que trata Coutinho, surgiram durante o romantismo e em ambas o

homem é a preocupação principal. Em uma, a regionalista ou regional, o homem aparece

situado no meio rural ou urbano, “em conflito ou tragado pela terra e seus elementos, uma

terra hostil, violenta, superior às suas forças” (COUTINHO, 2004b, p. 264). Na outra tradição,

a corrente a psicológica ou de análise de costumes, “o homem está diante de si mesmo ou de

outros homens” (COUTINHO, 2004b, p. 264) e há uma preocupação em apresentar

“problemas de conduta, dramas de consciência, meditações sobre o destino, indagações acerca

dos atos e suas motivações, em busca de uma visão da personalidade e da vida humana”

(COUTINHO, 2004b, p. 264). Coutinho ainda reforça que essas duas tradições corriam

paralelamente e atravessaram diversas escolas e estilos, inclusive durante do Modernismo da

Literatura Brasileira.

Especificamente no Modernismo, Coutinho expõe que a tradição “regionalista ou

regional” foi marcada por uma “corrente social e territorial”, na qual o ambiente se sobrepôs ao

homem, seja no ambiente rural, na sua problemática geográfica e social, tais como “seca,

cangaço, latifúndio, banditismo, etc” (COUTINHO, 2004b, p. 275); seja no ambiente urbano,

mostrando a vida da classe média e do proletariado, bem como as lutas de classe; e a técnica

narrativa dessa tradição seguiu o estilo realista e documental.

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Coutinho ainda subdividiu essa “corrente social e territorial” em dois grupos: a)

documentário urbano-social realista, no qual se destacaram Érico Verissimo, Dyonélio

Machado, Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, Alcântara Machado, Viana Moog, Lygia

Fagundes Teles, Carlos Heitor Cony, dentre outros; b) documentário regionalista, também

chamado de Neorealista ou Neoregionalista, que abordou os “ciclos da ficção brasileira”: “ciclo

da seca, do cangaço, do cacau, da cana de açúcar, do café, do sertão, do pampa, etc”

(COUTINHO, 2004b, p. 276). Nesse último grupo, os autores de destaque foram José Américo

de Almeida, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado etc. Houve também aqueles

autores que misturam as duas correntes como foi o caso de Graciliano Ramos. Guimarães Rosa

foi visto como aquele que conseguiu utilizar o material de origem regional trazendo para ele

uma visão mítica da realidade, por meio de símbolos e mitos com representatividade universal,

além de propulsionar praticamente uma revolução estética. Coutinho elenca ainda o grupo

neonaturalista socialista “que fundamenta a sua visão da realidade em postulados de ideologia

política, fazendo da ficção arma de propaganda e ação revolucionária. É o caso, entre outras, de

parte da obra de Jorge Amado” (COUTINHO, 2004b, p. 276).

Além da “corrente social e territorial”, havia também a corrente “psicológica,

subjetivista, introspectiva e costumista” que possui grande influência do Simbolismo e do

Impressionismo, e com ligação ao neoespiritualismo. Os romances se desenvolvem

geralmente no ambiente urbano, através do desdobramento do interior dos personagens,

ressaltando problemas da alma, psicológicos, morais, metafísicos e de ordem religiosa, por

meio da introspecção e da análise de costumes. Destacaram-se nesse grupo: Cornélio Pena,

Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Jorge de Lima, Lúcia Miguel Pereira, Josué Montelo,

Andrade Muricy, Barreto Filho, Fernando Sabino, Murilo Rubião, Autran Dourado, Adonias

Filho, dentre outros. Clarice Lispector também estaria incluída nesse grupo através de algumas

especificidades como a valorização de “produtos do sonho e da fantasia, na criação de uma

atmosfera sem densidade real, mas de forte conteúdo emotivo e linguagem metafórica, fugindo

assim para uma variedade de realismo mágico” COUTINHO, 2004b, p. 277)

À divisão que Moisés nomeia de “vertentes” e Coutinho chama de “tradições”, Alfredo

Bosi, na História concisa da Literatura Brasileira, atribui a nomenclatura de “dois planos”.

Segundo Bosi, esses “dois planos” se apresentaram na produção literária brasileira entre 1930

e 1945/50, grosso modo: I) “a ficção regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento da

lírica moderna”; II) romance introspectivo. No primeiro plano, especificamente da ficção, tinha-

se o predomínio de temas como: “o Nordeste decadente, [e] as agruras das classes médias no

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26

começo da fase urbanizadora [...]”. No que seria o segundo plano, o romance introspectivo –

que é considerado raro na literatura Brasileira, tendo sido desenvolvido antes do Modernismo

por Machado de Assis e Raul Pompéia – teve como principais representantes no Modernismo:

Barreto Filho, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Jorge de Lima, José Geraldo Vieira, Lúcia

Miguel Pereira, Lúcio Cardoso, Mário Peixoto, Otávio de Faria, e como principais temas “os

conflitos internos da burguesia entre provinciana e cosmopolita” (BOSI, 2006, p. 386) e a

representação das angústias existenciais e religiosas da época. Com base nesses temas, pode-se

dizer que “socialismo, freudismo e catolicismo existencial” (BOSI, 2006, p. 389) foram os

norteadores ideológicos do romance de 1930 utilizados para refratar a realidade vivenciada pelo

homem da época. Sendo que o socialismo está para o romance social, assim como o freudismo

e o catolicismo existencial estão para o romance intimista.

Antonio Candido (1989), no texto “A Revolução de 1930 e a cultura”, presente na obra

A educação pela noite e outros ensaios, apontou que especificamente na década de 1930 houve

o despontar das literaturas regionais por meio do chamado “romance do Nordeste” e da

produção dos intelectuais espiritualistas, sendo que esses últimos se expressaram tanto na prosa

como na poesia. Enquanto José de Alencar trouxe em seus romances chamados de indianistas

aspectos gerais do Brasil, como a figura do nativo e a caracterização da fauna e da flora. Dessa

forma, pode-se perceber que a ficção modernista trouxe as especificidades regionais de diversos

pontos do Brasil.

Dessa forma, a literatura regional acabou mapeando várias partes do Brasil ao trazer

aspectos específicos de cidades e estados como “a Bahia, de Jorge Amado; a Paraíba e o

Recife, de José Lins do Rego; a Aracaju, de Amando Fontes; a Amazônia, de Abguar Bastos;

a Belo Horizonte, de Ciro dos Anjos; a Porto Alegre, de Érico Veríssimo, Dionélio Machado

e Viana Moog” (CANDIDO, 1989, p. 187). É importante salientar que boa parte dos autores

desse grupo simpatizava com as ideias do comunismo e tinham preocupações mais sociais.

Enquanto alguns integrantes do outro grupo possuía afeição pelo fascismo e expressavam em

suas obras preocupações religiosas e também sociais. Mas também havia aqueles autores que

apesar de produzir literatura regional ou espiritualista não possuíam nenhuma dessas

vinculações políticas e ideológicas da direita ou da esquerda, pois apenas seguiam a estética

de um determinado grupo, sem expressar um engajamento com as outras ideias desses grupos.

Essa possibilidade de desfiliação entre política e estética foi observada por Luciana Stegagno

Picchio (1988):

É demasiado simplista, demasiado maniqueísta dizer que o romance

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27

nordestino, regionalista e social, constitui uma literatura de esquerda, e que o

romance psicológico e de ambiente burguês pertence ao outro mundo.

(Graciliano Ramos é também um prosador introspectivo; José Lins do Rego

não era decerto um homem de esquerda.) Mas é verdade que todos esses

escritores ‘burgueses’ possuem em comum um mesmo fator espiritualista.

(PICCHIO, 1988, p. 99)

Para a maioria dos integrantes do grupo dos espiritualistas “o catolicismo se tornou uma

fé renovada, um estado de espírito e uma dimensão estética” (CANDIDO, 1989, p. 188) e citar

Deus, tê-lo como fonte de inspiração estava bastante em voga. Outra característica desse

grupo era criar em suas narrativas e seus poemas uma atmosfera espiritual de tensão e

mistério bem típico da estética simbolista. Na ficção, destacaram-se Otávio de Faria, Lúcio

Cardoso e Cornélio Pena; e na poesia Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Augusto Frederico

Schmidt e Jorge de Lima.

Flora Süssekind (1984), em Tal Brasil, qual romance, foi a única dentre os autores

selecionados para essa contextualização a omitir a existência da segunda vertente do romance

de 1930: o romance psicológico. Talvez tenha sido uma opção de Süssekind não atrelar o

romance psicológico ao Naturalismo, mas daí a não mencionar a sua existência é uma grave

omissão que compromete até a contextualização que ela pretendeu fazer desse período

compreendido entre o final do século XIX, passando pelos anos de 1930 e finalizando na década

de 1970.

Para Süssekind, não foi produtivo para a literatura brasileira esse compromisso em

retratar as especificidades nacionais, que ela considera um “eterno retorno ao Naturalismo”,

pois a literatura fica mais longe de seu “desejo mimético”. Ao invés de representar o que

realmente existe: uma divisão cultural advinda dos diversos povos que aqui estiveram, quer-se

mostrar uma unidade que nunca existiu, e assim acaba tendo o efeito contrário, porque em vez

de mostrar o que realmente o país é, acaba contribuindo para um “ocultamento da dependência

e da falta de identidade próprias ao Brasil.” (SÜSSEKIND, 1984, p. 39). Dessa forma, uma

literatura que se propõe a representar a realidade do Brasil, acaba fugindo de tal propósito.

Esse eterno retorno ao Naturalismo se expressou por meio do caráter documental da

literatura em busca de uma verdade, com vinculação direta com a realidade, perseguindo o

desejo de construir uma identidade nacional, porém, contraditoriamente, o modelo para

construir essa identidade nacional foi estrangeiro, advindo da colonização pela qual o Brasil

passou. Assim, quando se pensava estar à procura das origens legítimas do país, buscando

uma unidade, dificilmente a alcançaria devido as suas origens advirem de povos diversos e não

de um tronco genealógico único, utilizando a analogia da própria Süssekind.

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28

Chegou-se a “ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior referencialidade”

(SÜSSEKIND, 1984, p. 37, grifo do autor), do trabalho com a linguagem e de alguns outros

aspectos narrativos para obter uma ligação direta com a realidade. Dessa forma, restou ao leitor

buscar compreender o texto sempre através dos elementos extraliterários, ou seja, vincular a

sua compreensão com a realidade externa e não no contexto criado pela própria obra de ficção,

como deveria ser.

Süssekind menciona que após o Naturalismo ter sido iniciado por Aluísio Azevedo, no

final do século XIX, as características dessa estética são retomadas em dois momentos na

literatura brasileira: no romance de 1930, em que assume outras funções e chega a ser

chamada de Neonaturalismo, o que corrobora com a ideia de Bueno (2006), mencionada nesta

contextualização; e no chamado romance-reportagem de 1970, também considerado por

Süssekind como um Neonaturalismo. Dessa forma, o “eterno retorno” acaba se explicando

porque o Naturalismo não foi apenas uma estética, mas se expressa como uma “ideologia

estética naturalista” pela sua constante influência na literatura brasileira. Pode-se perceber

também que essa “ideologia estética” naturalista tenta apagar, através da ficção, as divisões e

dúvidas da configuração do país, e tem como principal finalidade restaurar a identidade do

Brasil, ou seja, praticamente encenar ficcionalmente uma unidade que na realidade não existe.

Outro aspecto salientado por Süssekind é a característica da continuidade da “estética

naturalista” em diversos momentos históricos do Brasil e a sua capacidade de se adaptar a

esses novos contextos (SÜSSEKIND, 1984, p. 46). No Naturalismo do final do século XIX, o

biologismo e fisiologismo eram os instrumentos utilizados para se tratar do Brasil nas obras

ficcionais. Na década de 1930, vê-se essas as ciências naturais caírem no desuso, em

contrapartida, vê-se a ascendência das ciências sociais e das ciências econômicas; enquanto

que na década de 1970, teve-se ênfase nas ciências de comunicação, em outras palavras, um

misto de literatura e jornalismo. Apesar dessas diferentes afinidades científicas, nos três

momentos do Naturalismo há a repetição de algumas características que acabam unindo os

três momentos: “a observação cuidadosa dos fatos” (SÜSSEKIND, 1984, p. 87), bem como a

objetividade na linguagem e o caráter documental da narrativa.O que se percebe no estudo de

Süssekind é que o fato de ela omitir o início do romance psicológico ainda na década de 1930,

o que seria a “segunda via” da narrativa modernista dessa década, chamado de “romance

psicológico e o romance de costumes”, utilizando a nomenclatura de Luciana Stegagno

Picchio (2004), justificaria o surgimento de autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector

quase de fora meteórica, como considerou Bueno (2006, p. 18). Segundo a perspectiva

apresentada por Süssekind, Lispector e Rosa despontaram na literatura brasileira sem advir de

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29

uma tradição e sem praticamente surgir de um sistema já consagrado na produção literária

nacional. Flora Süssekind optou por apenas mencionar como autores do romance de 1930

apenas aqueles consagrados do romance regionalista: José Lins do Rego e Jorge Amado, além

da figura de Graciliano Ramos, que segundo ela foi o único a romper com traços

característicos da “ideologia estética naturalista”. Para a estudiosa, após o surgimento do

Naturalismo, no século XIX, na literatura brasileira, apenas Machado de Assis e Oswald de

Andrade foram os únicos autores que quebraram com a tradição naturalista instaurada na

literatura produzida no Brasil, seguidos por Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Para Bueno, a forma como boa parte da crítica apresentou o romance 1930, a exemplo

de Süssekind, figuras como Guimarães Rosa e Clarice Lispector acabaram se apresentando

como uma espécie de “ilhas incomunicáveis e louváveis” (2006, p. 18), que nem chegaram a

constituir uma tradição e nem fazer parte de um sistema literário. Porém, atualmente já se

percebe que a presença do romance psicológico ainda na década de 1930, omitida por uma

parte da crítica, como a própria Süssekind, favoreceu para o surgimento de suas obras. Dessa

forma, não se deve enxergar Rosa e Lispector como “verdadeiros meteoros caídos sobre nós

para extinguir velhos dinossauros e iniciar uma era povoada de outros animais” (BUENO,

2006, p. 18) e que livraram a literatura brasileira do ranço naturalista que se alastrava desde o

final do século XIX.

A obra desses dois autores pode ser vista em conformidade com o contexto de uma

segunda corrente no romance brasileiro e não como uma “ilha incomunicável” ou como “a

pedra filosofal” para desvencilhar a literatura do Brasil de um compromisso eterno com a

realidade nacional. Não que se queira com essas afirmações diminuir a genialidade de Rosa e

Lispector, não é isso. O que se quer mostrar é que eles não criaram suas obras do nada e que um

contexto de produção intimista, paralelo ao naturalista, já existia na década de 1930 e que

contribuiu significativamente para o surgimento das obras de Clarice Lispector e Guimarães

Rosa. Esse grupo chamado por vezes de intimistas, mas também nomeado de espiritualistas

ou católicos, tinha como protagonista Lúcio Cardoso, bem como a participação de outros

autores como Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Jorge de Lima, José Geraldo Vieira, Lúcia

Miguel Pereira, Barreto Filho e Octávio de Faria só para citar alguns contribuíram para o

desenvolvimento do romance psicológico no final da década de 1930.

Bueno chega a afirmar a existência do “sistema intimista” em paralelo ao “sistema

social”, ambos concomitantes na década de 1930. Se o sistema social, teve como precursor A

Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, Bueno (2006, p. 22) aponta como o

prenunciador do sistema intimista a publicação de Sob o olhar malicioso dos trópicos (1929),

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30

de Barreto Filho. Bueno ainda aponta Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Érico Veríssimo

e Rachel de Queiroz como autores que são considerados na maioria das vezes como sociais ou

regionalistas, mas que na verdade também transitaram pela vertente intimista. Para se ter ideia,

da importância do reconhecimento da existência do sistema intimista, por exemplo, Bueno

(2006, p. 25) chega a ressaltar a forte presença do universo telúrico de Cornélio Pena, autor do

sistema intimista, na obra de Guimarães Rosa.

Traçado esse panorama sobre as duas perspectivas do romance de 1930, localizando a

produção de Lúcio Cardoso nesse contexto, tem-se Maleita (1934), a sua primeira obra, um

romance tipicamente regional/social; seguindo por Salgueiro (1935), que é considerado por

alguns estudiosos da obra do autor apenas como regionalista ou romance proletário, mas

também é visto por outro grupo como um romance de transição, já que para eles apresenta a

confluência dos dois grupos do romance de 1930. Nesta tese, optamos pela segunda opinião

que considera Salgueiro como um romance de transição, pois há a coexistência de traços

neonaturalistas, como o determinismo do meio interferindo na vida dos personagens, nas duas

primeiras partes do romance; e intimistas, na terceira parte, através da focalização interna nos

pensamentos dos personagens e na ênfase na fé em Deus como fator de libertação das amarras

do ambiente. Desse modo, procuraremos na análise de Salgueiro além de mostrar a vinculação

com o romance social, expor também o início do romance psicológico na obra de Cardoso.

A partir de Salgueiro, percebe-se que Cardoso iniciou o que seria o esboço do seu estilo

intimista, que se consolidou com o romance A luz no subsolo (1936), deu continuidade com

Dias Perdidos (1943) e atingiu seu ápice com Crônica da casa assassinada (1959). Desse

modo, Lúcio Cardoso se uniu, então, ao grupo de escritores que escreveram romance intimista

ou introspectivo, quando a predominância da literatura dos anos de 1930 era a ficção

regionalista, preocupada com o indivíduo na sociedade.

Neste contexto de produção de Lúcio Cardoso, selecionamos além do romance

Salgueiro para mostrar o percurso da transição da obra desse autor, escolhemos também o que

seria o outro extremo de sua produção: o romance Crônica da casa assassinada, considerado

o ápice do estilo intimista do autor e que será analisado no terceiro capítulo desta tese.

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Capítulo 2 – Salgueiro: a transição entre o coletivo naturalista e o individual do romance

intimista

2.1 Aspectos gerais sobre o enredo

Salgueiro, o segundo romance de Lúcio Cardoso, é dividido em três partes: “O avô”,

“O pai” e o “O filho” com o fim de narrar a trajetória de três gerações de uma família que tem

poucas perspectivas de crescimento em suas vidas devido a ação das forças ocultas do morro.

As três gerações são representadas respectivamente por Seu Manuel, José Gabriel e Geraldo.

Além dos representantes masculinos de cada geração da família, há ainda Genoveva, a

esposa de Seu Manuel, que juntos possuem dois filhos: José Gabriel e Marta. José Gabriel tem

uma amante chamada Rosa e é o pai de Geraldo. Todos vivem no mesmo barraco localizado no

morro do Salgueiro e lá passam uma situação de penúria, já que só Zé Gabriel, como é chamado

José Gabriel em boa parte da narrativa, trabalha como operário numa fábrica. Seu Manuel está

doente de tuberculose, por isso está incapacitado de trabalhar, e Veva, como era conhecida

Genoveva, também teve que parar de trabalhar para cuidar do marido. Marta e Rosa nunca

trabalharam, bem como Geraldo.

Um desejo partilhado por muitos moradores do morro é sair do Salgueiro, mas a sua

saída é tão difícil de achar como a do inferno com o qual ele é comparado, como será abordado

logo à frente. As cenas mal iluminadas por velas e lamparinas, bem como a preferência pelo

período noturno e pelo inverno parecem formar uma névoa que impede os moradores do morro

enxergarem além dele. Assim, a cidade, que fica embaixo, parece algo inalcançável.

Além disso, todos os moradores do morro parecem ser vítimas de uma espécie de

infração cometida por um ou mais mortais, por isso todos os integrantes da comunidade são

punidos pela divindade. Apenas Geraldo, o membro da terceira geração da família, consegue

se libertar das garras do morro, mas para conseguir essa libertação ele passa por uma espécie de

transformação da animalização inicial em uma espiritualidade, através do conhecimento da

figura divina. Essa seria em algumas linhas uma síntese do resumo do romance Salgueiro.

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32

2.2 O morro como um ambiente coletivo: os traços naturalistas

A dupla aproximação de Salgueiro com o romance naturalista, por um lado, e com o

romance intimista, por outro, acaba significando uma ambivalência, respectivamente, entre o

coletivo e o individual.

O ambiente coletivo, criado para o desenrolar da narrativa, é o fator principal para a

definição do destino da maioria dos personagens. Apenas um deles, Geraldo, acaba rompendo

com as amarras do ambiente e faz com que o fator individual se sobreponha ao coletivo.

Esse ambiente opressor do morro é marcado pela falta da ordem urbana; degradação das

moradias; predominância da má iluminação das cenas, representada pelo tempo nublado e o

ambiente noturno; além do frio constante, que juntos parecem impedir os indivíduos de

questionarem quem eles são e quem eles podem ser. Além disso, essa pouca luz parece formar

uma espécie de névoa que impossibilita os personagens de verem além do morro, fazendo com

que muitos deles não vejam a cidade com uma outra possibilidade de vida.

Além desse ambiente obscuro, muitas vezes o morro é comparado ao inferno, cuja saída

é encoberta por uma névoa que a dificulta de ser encontrada. Outro fator que leva os personagens

a esse inferno, como o Salgueiro é chamado, é o fato de poucos acreditarem em Deus, segundo

a visão apresentada pelo narrador. Por isso, como uma espécie de castigo divino, todos os

moradores do morro vivem nessa espécie de purgatório. Desse modo, compreende-se que o

aspecto físico dessa falta de visibilidade, causada por esse ambiente sombrio, acaba

transcendendo para um aspecto simbólico, constituindo uma espécie de “alegoria da

impossibilidade”, pois é muito difícil para eles enxergar que é possível viver de uma forma

diferente.

Outro fator que contribui para essa “alegoria da impossibilidade” é o fato da maioria das

personagens serem animalizadas em algum momento da narrativa, sendo esse ainda um traço da

estética naturalista oitocentista presente no romance. Essa animalização impede que as

personagens desenvolvam o seu próprio autoconhecimento e a sua espiritualidade.

2.2.1 A ambivalência do espaço: o coletivo e o individual

A caracterização do coletivo no Salgueiro se inicia desde o espaço da narrativa que

ocorre em um morro homônimo localizado na cidade do Rio de Janeiro. Dentro do morro do

Salgueiro ficcional, os espaços em que se passam a narrativa são: o barracão da família de

Geraldo e de outros moradores do morro (Valério, Chico Padre, Vicente, Teresa-Homem, Dona

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Zica e Timóteo), as vielas da comunidade, o armazém de Tomás de Aquino e o hospital em que

Seu Manuel fica internado. Além desses, outros espaços de importância secundária são

mencionados, como o Terreiro Grande, local onde se concentravam prostitutas que se

envolviam com marinheiros; bem como, há menção da visão panorâmica dos arredores do

morro, como a Penha, bairro da Zona Norte do Rio; o Jardim Zoológico de Vila Isabel, além

outras partes da cidade.

Como a organização do morro ocorre através de barracões por família, nota-se que há

espaços físicos individualizados, pois há tanto um distanciamento físico entre os moradores do

morro, como um distanciamento emocional entre os membros da mesma família, apesar de

morarem num mesmo barracão. Observa-se também esses aspectos individuais quando o

narrador projeta o estado anímico de algumas personagens no ambiente, aspecto esse que

aproxima o romance da perspectiva intimista, ou seja, voltada para as particularidades do

indivíduo, como suas emoções e sentimentos, que são concretizadas pelo ambiente externo.

Além desse aspecto individual, como a maioria dos moradores do morro do Salgueiro

parecem subjugados ao ambiente em que vivem, eles acabam sofrendo coletivamente. É como

se o espaço determinasse o destino dos personagens, bem aos moldes em que os estilos

oitocentistas realista e naturalista concebiam a influência do espaço na vida dos personagens.

Como vimos no capítulo anterior, essa característica foi retomada pelo romance social de 1930.

Salgueiro seria um romance de transição por trazer esse aspecto coletivo com personagens

subjugados e quase que como vítimas do ambiente, bem como por trazer a faceta intimista que

caracterizará posteriormente o estilo de Cardoso.

Devido a essa influência das estéticas realista e naturalista do século XIX nos romances

da década de 1930, é possível estabelecer uma comparação entre a obra naturalista O cortiço,

de Aluísio Azevedo, e Salgueiro, especificamente nesse aspecto coletivo.

Mesmo havendo vários núcleos de personagens dentro da história de O cortiço, boa

parte da crítica concorda que ele seria um romance de espaço, pois é o espaço ou meio,

utilizando a terminologia do determinismo, que acaba manipulando o comportamento dos

personagens. Paulo Franchetti (2012, p. 56), na apresentação da edição de O cortiço, da Ateliê

Editorial, defende que a ideia de conjunto é bem maior que a particularização dos tipos

individuais: “[...] o cortiço, como um todo, surge como a grande personagem, uma vez que as

personagens, em si mesmas, constituem antes tipos, casos, exemplos”. Dentre esses tipos,

pode- se citar o português avarento e ganancioso, representado por João Romão; Bertoleza, a

negra escrava, explorada por João Romão considerado de raça superior à dela, conforme as

palavras do narrador do romance; a representação da prostituta por meio da personagem

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Léonie e depois Pombinha, dentre outros. Desse modo, percebe-se que tanto no romance de

Cardoso, como no de Azevedo há a ideia da coletividade. Em Salgueiro, a coletividade, em

seu aspecto físico, é expressa através dos vários barracões, enquanto no romance de Aluísio

Azevedo é na estalagem de João Romão que a coletividade se materializa. A aproximação dos

dois romances também se apresenta através das semelhanças entre alguns personagens, como

Tomás de Aquino e Chico Padre, personagens de Salgueiro, que apresentam aspectos

parecidos com João Romão de O cortiço. O primeiro se aproxima de João Romão pelo fato de

também possuir uma venda e moradias para aluguel. Inicialmente não era ganancioso como

Chico Padre, que também possuía barracões para alugar, mas que cobrava um valor bem

superior do que aquele cobrado por Tomás de Aquino. Chico acaba incitando Tomás a cobrar

mais pelos barracões, inclusive pelo barracão em que a família de Geraldo morava. Desse

modo, Chico Padre acaba por despertar em Tomás de Aquino a ganância que ele até então não

demonstrava possuir. Esse sentimento de ganância é mais um aspecto que aproxima os dois

personagens de Salgueiro a João Romão.

O irônico é que o nome “Tomás de Aquino” remete à figura do teólogo e filósofo que

via na justiça a possibilidade da equidade das relações humanas, por isso seu pensamento seria

combativo à ganância (SILVA; TEIXEIRA, 2011, p. 38). Desse modo, quando o leitor vê o

nome Tomás de Aquino cria certas expectativas com relação ao personagem de Salgueiro, mas

no decorrer da narrativa percebe-se que ele é o avesso do filósofo, e que certo nome não passou

de uma ironia do autor. O mesmo acontece com o personagem Chico Padre que não possui

nenhuma ligação religiosa, apesar do “Padre” em seu nome. Esse personagem de santo nada

tem, pois é dono do Terreiro Grande, uma espécie de prostíbulo; além de ser bastante

ganancioso, chegando a cobrar altos preços pelos barracões que aluga no morro.

Nota-se também a presença da personificação dos espaços do morro e do cortiço nas

obras aqui confrontadas. A ideia de coletividade é expressa através da metáfora da colmeia em

ambos os romances, o que acaba representando de forma animalizada a ideia do grupo de

moradores tanto do morro, como do cortiço. Quando Geraldo vai em busca da casa de Valério

para tentar conseguir um emprego, percebe-se que o narrador, ao descrever a vizinhança, faz

uma analogia entre o zum-zum dos moradores e uma colmeia: “[...] Geraldo se aproxima,

atordoado com o rumor da colmeia, os gritos, o choro das crianças e o canto áspero dos galos”

(CARDOSO, 2007, p. 312); Após entrar na casa de Valério, o burburinho da “colmeia” continua

sendo ouvido: “Vinham de fora o som das vozes e os gritos da colmeia em plena ebulição”

(CARDOSO, 2007, p. 33).

2 A partir deste ponto, será utilizada citações da edição de Salgueiro de 2007.

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Nas citações acima, nota-se um apelo sinestésico à audição representada através dos

“gritos”, do “choro das crianças”, do “canto áspero dos galos” e das vozes, sons esses que juntos

caracterizam a colmeia, metáfora zoomórfica que denota conglomerado de pessoas juntas ou

até mesmo de animais. Dessa forma, o narrador acaba considerando o Salgueiro como uma

conglomeração de pessoas que mesmo morando em barracos independentes, acabam juntas

formando uma coletividade que representa o cotidiano do morro carioca.

Essa ideia da animalização coletivizada pode ser comparada às “larvas do esterco” de O

cortiço:

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa,

começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma

geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e

multiplicar-se como larvas no esterco. (AZEVEDO, 2005, Capítulo 1, p. 22)

O ruído emitido em Salgueiro é semelhante àquele que ressoa em O cortiço, num dos

momentos em que o narrador descreve o início de um dia na hospedaria. Abaixo é possível

perceber que, além dos zum-zuns, onomatopeia das abelhas da colmeia, o verbo verminar e o

substantivo formigueiro constroem a zoomorfização presente na coletividade do cortiço:

Daí a pouco, em volta das bicas era um zum-zum crescente; uma

aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. [...]

O rumor crescia, condensando-se; o zum-zum de todos os dias acentuava-se;

já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia

todo o cortiço.

[...]

O zum-zum chegava ao seu apogeu. A fábrica de massas italianas, ali mesmo da

vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu arfar

monótono de máquina a vapor. As corridas até à venda reproduziam-se,

transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no

lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de

querosene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da água

caindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras

estendiam nos coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho.

Rompiam das gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um

carroção de lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma

algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro.” (AZEVEDO,

2005, p. 13)

Outra nomenclatura animalizante presente no trecho citado acima ocorre ao chamar os

homens e mulheres do cortiço de “aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas” que

remetem às definições biológicas tão afeiçoadas pelo naturalismo.

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Mais um aspecto que aproxima Salgueiro de O cortiço é a personificação dos espaços.

No primeiro, o morro é personificado, no segundo, o próprio cortiço. Ao se comparar o

ambiente do morro do Salgueiro ao do cortiço, nota-se que ambos são considerados uma espécie

de corpo vivo, que em alguns momentos possuem ações que geralmente são atribuídas aos seres

com vida. O morro se move, possui forças de origens desconhecidas, sente sono, dorme e

acorda:

Todo o Salgueiro se move como um corpo de gigante, na noite larga que vai

crescendo. Uma força desconhecida brota daqueles casebres acocorados no

escuro, daqueles barrancos agressivos da estrada. Mas é uma força de doença

e de morte, de coisa estragada. (p. 49)

O silêncio voltou a tombar. Tudo estava calmo, a noite corria serenamente,

todo o Salgueiro parecia, afinal, entregue ao sono.

(p. 102)

Mas o morro estava quieto, dormindo ao sol frio.

(p. 147)

Ao longe gritavam chamando alguém. O morro acordava. (p. 243)

As forças do morro agiam de forma a sufocar seus moradores, dominando o destino da

maioria deles. Havia uma lenda no morro segundo a qual só se conseguiria sair dele ou muito

doente ou morto, como foi o caso, respectivamente, de Seu Manuel e Zé Gabriel, avô e pai de

Geraldo:

Sim, homens que descem para o hospital e não regressam mais, homens que

se perdem no próprio destino como dentro de uma senda escura... Que

miséria era a vida destes desgraçados, criaturas ignorantes e rudes! (p. 227)

O narrador afirma isso logo após a morte de Zé Gabriel, o que reafirma a ação das forças

ocultas do morro em seus moradores e o mantra do morro.

A estrutura do morro estava consolidada, enquanto o cortiço ainda estava em

construção, por isso em alguns momentos o narrador diz que a estalagem estava em

crescimento:

E, durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças,

socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela

exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que

lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais

grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o

chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo. (AZEVEDO, 2005, p. 23)

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37

Ao chamar o cortiço de “floresta implacável” que crescia com suas raízes “mais grossas

do que serpentes”, o narrador confere um ritmo de crescimento quase que biológico à

hospedaria. Segundo Antonio Candido (2010, p. 117), no ensaio “De cortiço a cortiço”, o

cortiço apesar de ser uma construção humana parece relacionado à natureza, pois “[...] ele

cresce, se estende, aumenta de volume e é consequentemente tratado pelo romancista como

realidade orgânica, por meio de imagens orgânicas que o animam e fazem dele uma espécie de

continuação do mundo natural”. Ainda segundo Candido, isso acontece no princípio do romance

de Azevedo, pois inicialmente nota-se que o cortiço é estabelecido por leis biológicas,

reforçando a presença do naturalismo. Esse ritmo de crescimento natural e espontâneo vai sendo

substituído pelo planejamento direcionado de João Romão.

Assim como o morro do Salgueiro, o cortiço também dormia e acordava junto com seus

moradores:

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a

sua infinidade de portas e janelas alinhadas. (AZEVEDO, 2005, p. 3)

O cortiço dormia já e só se ouviam, no silêncio da noite, cães que ladravam lá

fora na rua, tristemente. (AZEVEDO, 2005, p. 105)

Devido a essa presença marcante do espaço nas duas narrativas, pode-se considerá-los

como personagens, como sugeriu Franchetti (2011) com relação ao cortiço, e podemos estender

essa analogia ao próprio morro, em Salgueiro. Pode-se considerá-los dessa forma, pois ambos

além de serem personificados, atuam no destino dos personagens. Sendo assim, tanto o morro,

como o cortiço representam o meio interferindo na vida de seus moradores, determinando os

caminhos de seus respectivos destinos.

O diferencial de Salgueiro, quando comparado a um romance naturalista, é que um dos

personagens consegue ultrapassar as limitações impostas pelo determinismo do ambiente, que

foi o caso de Geraldo. Esse aspecto individual se sobrepõe quando Geraldo, após conhecer a

figura divina através dos personagens Valério e Vicente, consegue se desprender da

animalidade e desenvolve a sua espiritualidade. Depois de vários momentos de reflexão, ele

se desprende das forças do morro e encontra a sua saída.

Apesar da individualização física tão presente no morro do Salgueiro, pois praticamente

cada grupo vive em barracos distintos, quando Seu Manuel vai para o hospital parece haver uma

comoção coletiva dentre os moradores do morro. Muitos querem ajudar na sua descida e esse é

um dos poucos momentos em que os moradores do Salgueiro agem coletivamente:

Dentro em pouco, correu a notícia de que o velho descia para o hospital. No

morro do Salgueiro, como em todos os lugares onde o homem sofre

Page 41: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

38

coletivamente, a fraternidade se denuncia mais impressiva quando aparece

algum caso de doença. Então, toda a gente se movimenta. Todos querem

ajudar e os braços se agitam incansáveis em torno daquele que vai descer.

Tomás de Aquino, o vendeiro, possuía uma cadeira, velha cadeira de braços,

que já fora de um salão de barbeiro e que agora servia para a descida dos

feridos e doentes. [...] (CARDOSO, 2007, p. 63-64)

O sentimento de fraternidade e de preocupação com o próximo surgiu nesse momento.

O curioso é que já existia até uma cadeira de prontidão para a descida dos moradores doentes e

feridos. Até mesmo aquelas pessoas que tinham inimizade umas com as outras deixavam as

indiferenças e se propunham a ajudar: “Nem mesmo Teresa-Homem, inimiga conhecida de

Rosa, deixou de se apresentar. Nem Chico Padre, cujo olhar durante todo o tempo seguiu o

vulto hostil de Marta, nem o próprio Tomás de Aquino, solícito e espantado” (p. 64).

Apesar da compaixão com o próximo, a falta de respeito com a situação acabou se

sobrepondo, pois o momento que era de tristeza apresenta-se mais como uma festa: “Todos se

comprimiam em redor do casebre. Parecia uma festa. As conversas ecoavam alto e os negros

entravam e saíam, trazendo notícias” (p. 64).

Rosa, a amante de José Gabriel, é a mais animalizada dos personagens, nem no

momento de sofrimento ela deixa de dar as suas risadas, que ecoam constantemente na

narrativa: “Rosa, satisfeita com a novidade, ria, contava histórias do ‘pobre’, parecia conhecer

detalhes da moléstia muito bem. E falava em briga, na desforra que ainda tiraria da Zefa” (p.

64).

As reações de Geraldo e de Arlete também são estranhas para a situação, pois não

estavam tristes e nem comovidos pela ida, talvez sem volta, do avô de Geraldo para o

hospital. Não se estranha muito a reação de Arlete, porque ela nem conhecia o Seu Manuel, se

bem que ela até poderia se comover com a situação e ser solidária com seu amante: “Geraldo

e Arlete esperavam ouvir a campainha da ambulância para avisarem em casa. Sentiam prazer,

em todo aquele movimento que vinha lhes alterar a vida. E riam, olhando o céu imenso e

azul” (p. 65). Tenta-se até compreender essa reação, pois a vida de ambos era bastante

monótona. Ele nem estudava nem trabalhava, ela também não, pois não é mencionado nada a

esse respeito durante a narrativa, ou eles eram tão ingênuos que não tinham ideia do que

realmente se passava. Parece que a vida de Geraldo se resumia apenas em ser repudiado pelos

membros de sua família, fazer pequenos serviços por valores ínfimos e talvez por isso se

justifica o seu desejo de sair daquele morro opressor.

Enquanto o Seu Manuel aguardava a chegada da ambulância e ouvia o burburinho dos

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39

outros fora de seu barracão, algumas pessoas chegavam para perguntar como ele estava e “ele

se encolhia, esmagado pela força de um mundo desabando. Mudo, amedrontado como um cão

batido” (p. 65). Percebe-se que mesmo em meio a uma multidão, Seu Manuel se sente só,

provavelmente certo de que não voltaria com saúde para o seu lar.

Desse modo, nota-se que mesmo num ambiente onde há uma certa indiferença entre

seus moradores, em certos momentos, a coletividade se faz presente através da compaixão, mas

também pensando que quem ajuda hoje, poderá precisar amanhã.

2.2.2 A configuração do ambiente opressor

No que diz respeito, especificamente, à construção do ambiente opressor em que viviam

as personagens do romance Salgueiro, nota-se que ele apresenta um forte tom sombrio e

obscuro, pois a maioria dos momentos descritos pelo narrador tem como iluminação a pouca

luz de uma vela e muitas vezes a escuridão. Isso pode ser observado desde o início da

narrativa, quando o narrador começa a revelar o ambiente desprovido de conforto no qual

vivia a família de Geraldo: “Marta riscou um fósforo e acendeu a vela. Do canto, veio a tosse

áspera do velho, Seu Manuel, doente do peito e atirado numa cama de trapos há muitos anos.

Marta aproximou-se lentamente e colocou a luz num castiçal de folha” (p.9). Além da luz de

velas, a lamparina alimentada a querosene também era utilizada para iluminar precariamente o

interior dos barracões:

[...] Já era noite completamente. Num ou noutro casebre do morro brilhava o

pavio das lamparinas e das velas. A luz escorria friamente para fora, imóvel

no chão escuro ou oscilando devagar; mariposas tremiam no calor da noite.

[...] (p.11)

Um aspecto que pode ser notado, no trecho citado, é acerca da iluminação nas moradias

do morro, que ocorre por meio da contraposição entre as velas e as lamparinas e as armações

da empresa Light, companhia energética do Rio de Janeiro, para mostrar que o progresso

passa sobre o morro do Salgueiro, mas não é acessível aos seus moradores: “Em cima, perto

das armações da Light, a terra áspera surgia frisada de vermelho vivo, com fartas veias

rasgadas a esmo” (p.27-28).

Ainda com relação ao trecho citado, observa-se a presença de outro elemento

fundamental para a construção do tom sombrio: a escolha do ambiente noturno para ser o

cenário no qual ocorre a maioria dos acontecimentos da narrativa – “Já era noite

completamente” (p.11). Mas não era uma noite fria que tranquiliza e

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40

favorece o descanso, era uma noite quente, caracterizada pelo calor que inquieta e impede o

sossego dos seres, inclusive das mariposas. E esse aspecto se repete em outros momentos da

parte analisada do romance: “A noite fechada estalava em estrelas miúdas” (p.17); e em “O

tempo estava quente e a noite aberta em estrelas” (p.37). Nestas duas citações, em momentos

posteriores à citação da página 11, percebe-se que o tom da noite fechada, conotando

provavelmente o tempo nublado, com poucas estrelas e abafado, contrapõe-se em partes com a

citação da página 37, em que a noite está aberta, mas a sensação de calor e inquietação ainda

permanece. A noite fechada é um provável reflexo de uma discussão que ocorreu entre José

Gabriel e sua amante Rosa por causa do filho do operário, Geraldo. A noite aberta é embalada

pela flauta do aleijado Vicente e associada ao momento em que Geraldo relembra uma visita que

fez a Valério na esperança de obter um emprego. Nos dois casos, observa-se a projeção do

estado de ânimo dos personagens no ambiente, um traço que aproxima a narrativa da vertente

intimista do romance de 1930. Ainda sobre a visita, foi naquele momento que Geraldo notou a

impossibilidade de Valério contratá-lo, tendo em vista que o senhor era um pobre ser ferido

impedido de trabalhar, devido a um tiro que sofrera e não cicatrizara, deixando uma ferida

aberta. É também nessa visita que Valério menciona a existência de Deus a Geraldo e a partir

disso o rapaz inicia o seu processo de autoconhecimento, que também será abordado no item 2.3

desta análise.

Esse calor, que também está presente durante a noite, possivelmente se relaciona com a

escolha do período no ano em que o narrador inicia a focalização da história dessa família

desventurada: “No morro, nenhum sopro movia as folhas. O calor de novembro abafava”

(p.11). No hemisfério Sul, onde se localiza o Brasil e especificamente a cidade do Rio de

Janeiro, cidade onde se passa a narrativa, o mês de novembro se aproxima do verão: “De todo

o Salgueiro partia um cheiro bom de brotos novos e o verão em começo” (p. 29). A primeira

parte do romance se passa durante o verão, provavelmente nos meses de novembro e

dezembro, por isso se justifica o calor dessa época. Mesmo durante o verão, dá-se preferência

a narrar as cenas no período da noite, contrariado aquela tradicional ideia de céu azul e alegria

dessa estação. Essa preferência pelo ambiente noturno, marcado pela escuridão e pela precária

iluminação de velas e lamparinas, vai se acentuar ainda mais na segunda e terceira partes do

romance, em que os acontecimentos ocorrem durante o inverno. Sendo esse outro fator que

contribuiu significativamente para a formação do tom sombrio e melancólico que parece

provocar desânimo nos personagens para a vida, como é o caso da personagem Marta. Esse

tom é obtido através de um céu que é na maioria das vezes escuro, nublado e marcado pelas

chuvas torrenciais, além do frio constante.

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41

Percebe-se que há a comunhão entre o estado de espírito dos personagens e a expressão

do ambiente. Esse procedimento de estabelecer uma relação entre a projeção anímica das

personagens no ambiente foi uma prática bastante utilizada pelos autores do Romantismo, mas

o narrador de Salgueiro também utiliza. Outro aspecto interessante é que ao fazer esse

movimento de focar nos pensamentos dos personagens e depois expandir o campo de visão para

o ambiente, o narrador faz apelos sensoriais não só ao sentido da visão, mas também da audição

e do tato, concedendo assim um tom simbólico, bem aos moldes da estética simbolista, como no

seguinte trecho:

Agora, chegavam em ondas de perfumes intensos e variados. Mais forte, o

cheiro dos jasmineiros nas ruas que se estendem ao pé do morro. Também

cheirava a terra requeimada, cheiro de cinza ainda quente e barro cozido. O

verão se estendia inteiro, morno e excitante. [...] (p. 39)

Na citação acima, o apelo sensorial ao olfato ocorre através de perfumes e cheiros: “ondas

de perfumes intensos e variados.”, “o cheiro dos jasmineiros”, bem como o cheiro “terra

requeimada”, de cinza e de barro cozido. Além do olfato, também se tem o apelo ao tato na

“cinza ainda quente” e o verão morno. Com esse exemplo, entende-se que o romance tem um

apelo sinestésico bastante forte que contribui significativamente para a construção desse

ambiente.

Como a maioria dos acontecimentos tem como ambientação o cinza do clima nublado

ou até mesmo a própria chuva que cai com frequência no morro, o céu azul e o sol brilhante

surgem de forma escassa durante a narrativa de Salgueiro. Cita-se como exemplo, o momento

em que seu Manuel tem esperança de recuperação:

Três dias depois o velho Manuel sentiu-se melhor. A voz saía mais forte e

descobriu-se mesmo com um interesse maior pela vida. [...]

Como a vida lhe pareceu bela! Entreviu o claro do sol lá fora e as galinhas

numerosas que ciscavam. [...] Era uma paz tão grande uma calma tão profunda

derramando-se ao calor do dia [...]. Invadiu-o uma suave alegria. (p. 59)

Nota-se nesse trecho a projeção do estado de ânimo de Seu Manuel no ambiente. Como

ele estava se sentindo melhor, o claro sol surge na cena agitando o dia, trazendo paz, calma e

uma “suave alegria”, sensações raras no decorrer no romance.

Outro momento com esse clima mais ameno ocorre no final do romance,

especificamente em seu penúltimo parágrafo, quando Geraldo deixa o morro:

Tudo agora estava diferente agora. Nunca vira manhã tão bela em sua vida. As

folhas tocadas pelo vento, sussurrando, uma fumaça escura subindo ao

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42

longe, as nuvens brancas caminhando. [...] sente o peito estufar e respira

fundamente, olhando o céu azul. (p. 246)

Na citação acima, Geraldo, após fazer várias reflexões e ter superado o medo, decide

sair do morro. Por isso ele sente tudo diferente: a manhã ficando bela, as folhas denotando

esperanças, as nuvens brancas remetendo a paz e o céu azul contrastando com o céu acinzentado

do morro. As cores da descrição do ambiente passam a ser mais amenas e a “fumaça escura” é

separada pelo adjunto adverbial de lugar “ao longe”, provavelmente, com o intuito de

significar que as trevas não fazem mais parte de sua vida.

2.2.3 O inferno do Salgueiro

Luís Bueno (2006) atenta para o fato de o morro do Salgueiro ser chamado em vários

momentos pelo narrador e por alguns personagens de “inferno”:

O morro do Salgueiro é uma espécie de inferno – designado literalmente por

essa palavra em mais de uma ocasião – em que mais facilmente se veem

aquelas vidas em que a fé é substituída pelo medo. Trata-se de um universo

aparentado do trágico, uma espécie de Tebas vivendo sob a desgraça causada

por algum erro. A diferença é que esse estado trágico não vem da ação isolada de

algum indivíduo, mas da postura geral de rebaixamento espiritual, a hybris

sendo substituída pelo maior dos pecados, prefiguração do inferno cristão

propriamente dito, que é o distanciamento voluntário de Deus. (BUENO,

2006, p. 275)

Bueno ressalta que esse inferno, ao qual Salgueiro é comparado, deriva da inexistência

na crença em Deus por boa parte de seus moradores. Isso pode ser percebido nas falas dos

personagens Valério e Vicente, os únicos que falam da existência de Deus durante o romance.

Valério sente que não é ouvido pelos demais moradores, que acabam chamando-o de louco por

julgarem que ele fala de algo inexistente, uma provável criação de sua mente. Enquanto Vicente

só tocou no assunto em conversas com Geraldo.

O universo trágico do qual fala Bueno (2006) refere-se à tragédia grega motivada pela

hybris. Ela seria uma espécie de punição a um mortal por ter cometido uma infração, por isso

ele e todo o povo de sua comunidade seriam castigados pelos deuses por esse erro. Daí

decorre uma sequência de acontecimentos trágicos e de desgraças. Em Salgueiro, é provável

que a hybris seja o fato de não apenas um, mas a maioria dos moradores do morro não

acreditarem em Deus e por não acreditarem deixaram que as trevas tomassem de conta do

morro.

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43

Essa sequência de acontecimentos trágicos se manifesta no romance de Cardoso na

pobreza das habitações; na prostituição que afetou Rosa e Marta, que era concentrada no

Terreiro Grande através do recrutamento de Chico Padre; na exploração dos preços dos

aluguéis, demonstrando a ganância de Tomás de Aquino e Chico Padre; nos constantes atos de

violência; e no abandono dos moradores doentes: Seu Manuel, Valério e Vicente. Esse universo

trágico, do qual trata Bueno, possui como “[...] motivadores das ações das personagens são

muito remotamente sociais e mesmo a pobreza aparece menos como resultado das forças e

econômicas e sociais e mais como decorrência do afastamento de Deus” (2006, p. 275). Desse

modo, pode-se dizer que a motivação da tragicidade em que vivem os moradores do Salgueiro

é espiritual e não econômica e social como propunha o romance regional. Eles estão nessa

situação de penúria por não acreditarem em Deus conforme exige a doutrina do catolicismo

existencial que rege a narrativa.

A ausência, no Salgueiro, de um Deus do bem que salva, perdoa e mostra um caminho

melhor para a vida de quem nele crê, também reforça a ideia de inferno. No morro, parece haver

um outro tipo de Deus, aquele que pune e causa medo. Esse tipo de divindade é mencionado

durante a narrativa por Vicente e é citado na cena final, quando Geraldo deixa o Salgueiro

definitivamente: “[...] compreende que Deus havia, afinal, descido ao seu coração. Não o Deus

do Salgueiro, mas um outro Deus” (p. 247).

Outro aspecto que aproxima o Salgueiro do inferno é que a sua saída é difícil de

encontrar, como bem observou Bueno:

O Salgueiro é um inferno, e curiosamente um inferno gelado em pleno Rio de

Janeiro. O sol que consolara Manuel depois de uma noite agônica de

tuberculoso será substituído pela chuva e pelo frio, que acompanharão todos os

movimentos de Geraldo até o desfecho do romance. Como era de se esperar

em se tratando de um inferno, não é fácil encontrar uma saída dele. Não basta

simplesmente abandonar o morro: é preciso escapar das forças que fazem do

morro um inferno. (BUENO, 2006, p. 278)

Chevalier (2017), no verbete “Inferno”, atenta para a ausência de sua saída: as

características de Hades ou o Inferno, também chamado Tártaro, “[...] são as mesmas por toda a

parte: lugar invisível, eternamente sem saída [...] perdido nas trevas e no frio [...]” (p. 505). Essa

característica do clima do inferno grego também comunga com um aspecto do morro do

Salgueiro representado no romance, já que o morro é um inferno frio em pleno Rio de Janeiro,

o que contradiz o clima tropical e com temperaturas relativamente altas em boa parte do ano

típicas da cidade. Esse clima frio do morro acaba aproximando-o do Hades ou o inferno da

mitologia grega, em contraposição com o inferno judaico-cristão que é muito quente e

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44

caracterizado pelas chamas e labaredas de fogo.

Essa predominância do clima frio comunga com o fato de a narrativa se desenrolar

predominantemente durante o inverno, como também esse é mais um elemento que constitui

“alegoria da impossibilidade”, pois as baixas temperaturas junto com a pouca luminosidade do

morro contribuem para a indisposição para o trabalho e para a vida.

Na tradição cristã, a luz seria o céu e as trevas o inferno. Então, se o Salgueiro é um

morro com pouca luz e em alguns momentos com nenhuma, devido à ausência de Deus, a

noção: “Se a luz se identifica com a vida e com Deus, o inferno significa a privação de Deus e

da vida” (CHEVALIER, 2017, p. 506), expressa bem a condição do morro.

Assim sendo, supõe-se que o inferno do Salgueiro seria a união do inferno mitológico

grego, devido as suas baixas temperaturas, com o inferno judaico-cristão já que a pouca luz e o

abandono de Deus também o caracteriza: “Sim, o Salgueiro era uma terra condenada, uma

terra de exílio, sem culpa, ali é que eles pagavam a pena de não serem lembrados por Deus”

(CARDOSO, 2007, p. 204).

O Salgueiro era uma espécie de reduto dos seres que não tinham uma vida espiritual

pautada na experiência com Deus e por isso eles viviam ali exilados sofrendo as

consequências de seus atos, como foi o caso de Vicente que roubou e gastou, numa farra, todo

o dinheiro que Mateus juntou para Adélia, sua filha com deficiência visual. 3

Vicente após contar o que aconteceu na vida dele para perder a sua perna e depois vir

parar no inferno do Salgueiro: “– Perdi tudo ... parecia maldição ... até a minha perna... até parar

neste inferno! Oh, quem vem para aqui não volta ao mundo nunca mais...” (p. 202), ele acaba

reafirmando o que dissera o narrador na citação anterior: “Os que ali viviam eram seres

exilados, culpados de algum tremendo crime, e que jamais sairiam de seus sombrios limites”

(p.181). Nas falas de Vicente, é como se o Salgueiro fosse um lugar separado do mundo e no

qual aqueles que cometeram algum pecado pagariam por ele, reforçando a ideia de inferno.

Outro ponto da narrativa em que se percebe a descrença dos personagens na figura de

Deus é durante uma conversa na venda de Tomás de Aquino, entre Geraldo e Damião, um negro

musculoso que bebia aguardente na cena descrita. Geraldo chega a perguntar ao negro se ele

acredita em Deus e recebe como resposta uma grande risada. Tomás de Aquino, que havia saído

do salão do armazém para pegar um copo de água para Geraldo, diz: “Larga isto para os padres,

rapaz... Deus é Deus e não quer saber da gente” (p. 209). Após beber o copo

3 Mateus era um velhinho que trabalhava como guarda no Jardim Zoológico, na Vila Isabel, e que é mencionado

apenas uma vez no romance para justificar o castigo divino dado a Vicente por ter cometido tal roubo.

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de água, Geraldo sai refletindo que apenas ele tem medo de Deus e chega a duvidar que exista

naquele morro escuro qualquer tipo de divindade: “Tolices... naquele mundo escuro jamais

houvera o rastro de qualquer espécie de divindade” (p. 209). A reação de Damião e a fala de

Tomás de Aquino acabam reforçando a ideia do distanciamento dos moradores da crença em

Deus e por isso, como uma espécie de castigo, estariam vivendo nessa espécie de inferno que é

o morro do Salgueiro.

Nota-se que depois de estar no Salgueiro além de ser difícil de deixá-lo, por muitas vezes

é ressaltada a presença de forças que faziam seus moradores permanecerem nele: “o Salgueiro

se erguia à parte de tudo, sozinho no seu silêncio e no seu abandono como uma determinada

espécie de inferno” (p. 180-181).

O desejo de sair do morro era compartilhado por vários de seus moradores, como Tomás

de Aquino, Marta, Zé Gabriel, Vicente e Geraldo. Até mesmo Tomás de Aquino, dono de uma

venda e que também possuía alguns barracões para aluguel, tinha o desejo de deixar o morro:

Tomás está desconsolado. Tanto barracão por uma miséria! Talvez que jamais

consiga abandonar aquele lugar horrível. Nunca reunirá dinheiro bastante para

ser gente. Não passará de um pobre vendeiro, no fim do inferno, no morro do

Salgueiro. (p. 48)

As garras que prendiam os moradores ao Salgueiro eram tão fortes que alguns, mesmo

com a oportunidade de sair dele, sentiam-se presos por uma força oculta, como foi o caso de

Veva:

– Vamos, mãe – disse. [...]

Marta avançou, impaciente.

– Vamos depressa, olha só como chove.

A velha lançou um olhar angustiado para o morro. [...]

– Preciso arrumar as minhas coisas – murmurou com voz sumida. Marta bradou, agitando o chapéu: – Coisas? Que é que tu tem? Vive aí atirada... [...] Dissera aquilo para ganhar tempo... porque estava com pena de descer para sempre... para sempre!

– Marta! A gente não pode ir assim... largar tudo... Aqui é que a gente vive.

– Não, mãe – bradou Marta. – Por quê? Não voltaremos mais a este morro... [...] – Nunca mais? - perguntou a Marta. [...] – Não. Nunca mais.

[...]

Se quisessem fugir do inferno, sabiam que deveriam partir, mas ainda assim

qualquer coisa os ligava ao morro. A saúde era fora, longe dali, mas eles

pertenciam àquela espécie de morte. (p. 156-157)

No final da citação acima, é perceptível a resistência de Veva a deixar o morro. Apesar

de viver na miséria naquele local, nota-se que, se não fosse a insistência de Marta, ela continuaria

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a viver lá. No final da citação, o narrador utiliza “inferno” como sinônimo do morro e afirma que

mesmo elas saindo dele, algo continuaria ligando-as àquele espaço.

Outro aspecto de destaque é o morro ser sinônimo de doença e morte, por isso o narrador

diz que a saúde era longe do morro. O espaço do Salgueiro parecia não exalar vida, mas a morte

e os seus moradores pertenciam a esse estágio, pois pouco expressavam seus sentimentos e por

isso não pareciam estar vivos, mas quase mortos. As forças do morro eram tão fortes que Marta

mesmo saindo dele ainda ficou com sequelas, pois também contraiu tuberculose assim como

pai: “Magra, dominada pela doença que avançava impetuosamente, não encontrava nenhuma

boa vontade. [...] lia a condenação – ‘tuberculosa’– sem que pudesse remediar ou esconder

nada, [...] (p. 148). E, assim, Marta foi mais uma vítima das forças do morro, pois conseguiu

sair dele doente, fazendo valer o velho mantra do Salgueiro.

Logo após a saída de Marta e Veva da casa de Dona Zica, com o fim de deixarem o

Salgueiro de uma vez, Geraldo se vê sozinho e reflete:

De repente, Geraldo percebeu o frio da chuva penetrante. Viu o céu escuro e as

árvores batidas... Olhou para dentro e encontrou o cobertor vermelho, os pés

inertes da paralítica. Compreendeu então, sem desespero, que ele não se

livrara do inferno, que ali ainda ficaria, porque ali ainda era o seu lugar. (p.

159)

Esse parágrafo encerra a segunda parte do romance, chamada “O pai”. Mesmo vendo as

duas últimas pessoas de sua família deixarem o morro, Geraldo ainda não sentia que estava

pronto para descê-lo, pois a ideia de reencontrar o pai ainda o prendia àquele lugar: “Sentia-se

preso ao morro por uma ideia mais forte do que o desânimo: o pai. Percebia que nem tudo estava

perdido. A ideia de encontrá-lo ainda alimentava a sua vida” (p. 164).

Além de todo o Salgueiro ser considerado um inferno, há também o inferno individual

de Zé Gabriel. Em seu leito de morte, Zé Gabriel acaba deixando de forma trágica o inferno do

Salgueiro, mas também deixa o seu inferno particular: “Pela última vez seus olhos

contemplavam o cenário escuro do seu inferno” (p. 223). Desse modo, a afirmação de Mario

Carelli (1988) acaba se confirmando: “[...] os personagens compreendem que o inferno não é

apenas o Salgueiro nem mesmo os outros, mas que o inferno está neles” (CARELLI, 1988, p.

161).

Sendo assim, entende-se que a comparação com o inferno é outro elemento que contribui

para configuração do determinismo naturalista no romance, junto com a personificação, o

ambiente obscuro e a atuação das forças desconhecidas do morro analisadas na subseção

anterior. A animalização de alguns personagens será o próximo e último elemento a ser

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47

analisado nessa vinculação do romance à estética naturalista.

2.2.4 A animalização das personagens

Em Salgueiro, alguns personagens são comparados a animais pelo narrador e algumas

vezes essas comparações são feitas entre os próprios personagens. Como se verá na análise a

seguir, a maioria das associações de nomenclatura animalizante é atribuída a Rosa e algumas a

Geraldo. Essas comparações zoomórficas são um traço da estética naturalista, que foi retomado

pela vertente regionalista/social do romance de 1930, que é considerado também como

Neonaturalista. É constante também a comparação de alguns personagens com dois animais

específicos: o gato e o cachorro, mas nem sempre com a mesma conotação.

A primeira associação feita pelo narrador a um animal ocorre logo no início da narrativa,

quando Rosa adentra ao barracão da família, onde estavam Seu Manuel, seu sogro, e Marta, sua

cunhada, na sala pouco iluminada por uma vela: “E Rosa, abrindo violentamente a porta,

apareceu rindo, sufocada, as mãos sobre o peito, com o corpo inclinado para a frente,

desamparada. Era um riso vivo, histérico, de animal forte na consciência da sua força” (p. 10).

No trecho citado, pode-se notar que o narrador caracteriza o riso “vivo, histérico” de Rosa

equiparando-o ao “de animal forte”. Nesse primeiro momento, Rosa chega contando sobre

uma briga entre duas moradoras do morro, Zefa e Chica, mas é ignorada por Marta: “Também

ela sentia há muito tempo aquele gelo que ia cristalizando lentamente entre ambas. Também

ela não sabia escapar à repulsa que a separava de modo tão violento da irmã do seu amante” (p.

11). Em seguida, o narrador compara os olhos de Rosa aos de uma “gata brava”: “Seus olhos

agudos de gata brava pousaram com desafio sobre o rosto de Marta” (p. 11).

Quando Rosa foi encontrada por José Gabriel era uma “simples rapariga de rua, sem

destino certo senão o destino de todas as mulheres que vagueiam pelas ruas...” (p. 132). Ela só

pensava em festas, em dançar, entrar em discussões e observar os outros em conflito, como se

viu anteriormente, quando ela chega contando a briga entre Zefa e Chica.

As ações da amante de Zé Gabriel, na maioria das vezes, são justificadas pelo narrador

por uma “vontade inconsciente” semelhante àquelas observadas nos animais irracionais. Ao

ouvir música ela sentia: “Um calor estranho correu-lhe dos pés à cabeça. [...] Uma vontade

inconsciente de fazer nem ela sabia o quê, de rir e dançar talvez, talvez de não fazer coisa

nenhuma [...]” (p. 12).

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48

Rosa também gostava de provocar conflitos dentro do barracão da família ao insultar

com frequência Marta e Veva, mas também com as vizinhas: “O pai saíra para o trabalho e

Rosa gritava no caminho. Prestou atenção e ouviu que a negra ameaçava alguém: — Sua safada,

um dia a gente acaba tirando a diferença!” (p. 28).

Como a música despertava em Rosa sensações estranhas e inconscientes, José Gabriel,

com ciúmes, tentava impedi-la de participar desses festejos, não a deixando nem sequer ir à

janela:

O seu doentio ciúme estendia-se até aí, não gostando que a negra se perdesse no

meio dos tocadores de samba do Salgueiro. Quando a dança, nalgum ponto do

morro, atraía gente de todos os cantos, Rosa não tinha o direito de chegar à

janela do barracão. Esses eram os momentos em que ela se revoltava, incapaz

de conter a índole impetuosa que despertava. Transformava-se no que

realmente era, uma fúria capaz de morder os que se aproximassem, sem querer

ouvir ninguém, apenas com o rancor cegando-a e tornando-a alucinada, capaz

de cometer todos os desatinos. (p. 12)

Observa-se que Rosa foi descrita pelo narrador mais uma vez como animalesca:

“Transformava-se no que realmente era, uma fúria capaz de morder os que se aproximassem”.

A mordida é mais uma forma de aproximá-la a mais um aspecto animalesco, como também a

fúria. Nota-se que quando contrariada, os traços animalescos dela ficam ainda mais evidentes.

Rosa também se utiliza de termos que remetem a animais quando vai se referir aos

outros entes da família: Marta, Geraldo, e Genoveva, respectivamente irmã, filho e mãe de Zé

Gabriel. Com relação a Marta, pode-se observar, no trecho a seguir, que o narrador dá voz a

amante de Zé Gabriel em discurso direto “— Essa diaba... Parece que vive pra morrer... nem

parece fêmea!” (p.13). Ao chamar Marta de fêmea, Rosa utiliza uma terminologia da biologia

“macho e fêmea” típica da estética literária Naturalista, empregada para caracterizar os

animais. Na verdade, quando quer se referir a seres mais humanizados, deveria ser utilizada

terminologia “homem e mulher”.

A própria Marta também nutria um forte ódio por Rosa. Marta culpava Zé Gabriel, seu

irmão, por trazer Rosa, aquela espécie de “doença trazida da rua”, que contaminou a família

com a discórdia e acabou desagregando-a: “Culpava-o da existência da negra naquela casa,

como de uma doença trazida da rua, em ameaça à vida de todos” (p. 13).

Com relação à Genoveva, sua sogra, não é diferente o uso dos termos animalizados, que

acabam por caracterizar a linguagem de Rosa, que é marcada pelos palavrões e adjetivações

pejorativas, os quais denegriam a quem ela odiava. Aliás, ela odiava a todos os membros da

família de Zé Gabriel e eles a ela:

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49

Genoveva, a mãe, procurava consertar as coisas. Rosa repelia com furor,

desmanchando-se em palavrões:

− Sai, besta velha... Quem é que te chamou aqui, estupor?

E se ela, por acaso, não ouvisse os vitupérios, Rosa se erguia com uma

fúria, empurrando-a violentamente:

− Vai, diaba... O teu velho tá chamando, vai morrer! (p. 13)

Rosa chama a sua sogra de “besta velha”, “estupor” e “diaba”, e mais uma vez expressa-

se através da sua fúria que se apresenta com frequência na narrativa. Esse tratamento se repete

constantemente, como, por exemplo, quando houve uma briga entre Rosa e Zé Gabriel. Mesmo

Veva chamando a atenção de seu filho para não bater na sua amante, ou seja, a sogra tenta

defender a nora, mesmo assim Rosa pronunciava palavras de afronta a Veva:

− Zé — gritou a velha, da sombra. Rosa ouvi-a e pôs-se a insultá-la.

− Sua velha! Diabo do inferno! Traste, cala a boca, peste! (p. 117)

Desta vez, o substantivo “velha” é reiterado, inclusive é utilizado pelo próprio narrador,

conjuntamente com “diabo do inferno”, “traste” e “peste”. Mas pouco importa para Zé Gabriel

o insulto que sua amante profere em desfavor de Veva. A ira dele era tão grande que ele

continuou a agredir Rosa. Essa postura de Zé Gabriel denota que ele não tinha apreço por sua

própria mãe, pois não tem a mínima atitude de defendê-la dos insultos de sua amante.

Ao se referir a Geraldo, Rosa chamava-o constantemente de idiota. Numa das vezes que

o filho de Zé Gabriel chegou em casa e disse que estava ajudando a Dona Zica, uma senhora

paralítica que vivia em um dos barracos do morro, quando Geraldo disse que ela não pode pagá-

lo pelo serviço, ele foi revidado por Rosa em tom de afronta:

− Quando é que este traste deixará de ser idiota? Será que pensa ser escravo dessa gente?

− Aquele “idiota” fez Geraldo estremecer ligeiramente. [...] (p. 19)

Ser chamado de idiota era algo que incomodava bastante a Geraldo como se pode

perceber na reação dele ao “estremecer ligeiramente” (p.19) quando ouviu as palavras de

Rosa, bem como em outros momentos na narrativa, que serão contemplados mais à frente nesta

análise.

Rosa também tinha um desejo imenso de se ver livre de Geraldo, pois o via como um

estorvo: “Tudo se confundia, para a negra inconsciente, num enorme desejo de se ver livre do

rapaz, de afastá-lo o mais distante possível do seu olhar” (p. 15). Nesse

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50

trecho, o narrador refere-se a Rosa ressaltando mais uma vez a inconsciência dela ao agir, assim

como um animal irracional.

Numa noite em que Rosa foi até a casa de Chico Padre, a convite dele, ao voltar para

casa, Geraldo e Zé Gabriel já esperam por ela. Ao chegar, seu amante trata-a por “porca”: “—

Sua porca! Sua porca! — gritou” (p. 116). Quando Zé Gabriel pergunta se ela bebeu, Rosa

também o trata por “porco”: “ — Porco! Porco! Você é que é porco, tá ouvindo? [...] — Bebi

sim, porco! Bebi! Bebi! Olha, bebi!” (p. 117). Nessas passagens, reforça-se a ideia de que não é

só o narrador que animaliza os personagens, mas que eles fazem isso entre si.

Não suportando o atrevimento de sua amante, ao dizer que foi à casa de outro homem,

Zé Gabriel não se conteve e passa a agredir Rosa. O narrador caracteriza essa briga como uma

luta entre animais: “Continuaram a luta no escuro, arfando, como dois animais” (p. 118).

Após a briga com José Gabriel, Rosa se abrigou na venda de Tomás de Aquino. Lá na

venda, ela

esbravejou como uma fera furiosa. Todos os palavrões que sabia brotaram dos

seus lábios. [...] Chegou mesmo a assustar o vendeiro, dando gritos agudos e,

com os cantos da boca cheios de espuma, deitou-se, retorcendo-se no chão.

Exausta, pensou em armar uma cilada ao amante; fechou os olhos calculando

vinganças tremendas, jurou que tinha sede daquele sangue. [...] E como

desaparecera da casa do amante, desapareceu também do armazém de Tomás

de Aquino. O vendeiro sorriu, não a encontrando. Disse:

− Ora, cão que ladra muito... (p. 124)

No trecho citado, as expressões “fera furiosa” e “cantos da boca cheios de espuma” são

mais uma forma de equipará-la a aspectos animalescos. Nesse mesmo trecho, tem-se a fala do

personagem Tomás de Aquino: “— Ora, cão que ladra muito...” (p. 124) referindo-se à Rosa.

Sendo assim, enfatiza-se a ideia de que os traços animalizados de Rosa não são de percepção

apenas do narrador, mas também dos outros personagens.

O narrador até ao falar sobre os odores que Rosa exala, apela para o traço animalizante.

Na segunda parte, numa cena em que Zé Gabriel mostra um dinheiro que ele obteve de forma

ilícita a sua amante, Geraldo percebe a movimentação dentro do barracão e seu pai, sem saber

se ele estava acordado, pergunta a Rosa:

− O rapaz está acordado? — ouviu o pai perguntar, enquanto a cama rangia mais forte.

Enrodilhou-se no canto e cerrou os olhos, respirando o mais pausadamente

possível. [...] Um bafo quente envolveu-o. Apenas o coração batia-lhe tanto

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por um momento. Após, uma onda de ar mais puro. (p. 101)

Com as expressões “cheiro da negra” e “suor animal”, o narrador acaba estabelecendo

uma aproximação entre odor exalado por Rosa ao dos animais, instaurando mais uma vez um

traço animalesco da personagem, só que desta vez atrelou a animalização à característica racial.

Após esse panorama, percebe-se o poder desagregador de Rosa na história da família de

José Gabriel. Esse poder também foi ressaltado por Lúcia Miguel Pereira, na coluna “Livros”,

publicada na edição de 2 de junho de 1935, do jornal Gazeta de Notícias, pouco tempo depois do

lançamento de Salgueiro: “Trata-se da história de uma família desmantelada pela influência de

uma NEGRA, Rosa, criatura inteiramente animalizada. Se é possível comparar-se uma pessoa

a um elemento Rosa dá a impressão de uma ventania.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 1, grifo do

autor)

Ainda na citação de Pereira, chama a atenção o fato dela grafar a palavra negra com letra

maiúscula, pondo assim em relevância a cor da pele e uma possível relação com o seu

comportamento animalizado. A cor da pele de Rosa vai ser lembrada várias vezes pelo narrador

para diferenciá-la dos membros da família, pois boa parte de seus membros são mulatos.

Rosa é a segunda amante de José Gabriel, a primeira foi Eulália, mãe de Geraldo.

Neste trecho, o narrador estabelece uma comparação entre elas:

Rosa, muito mais moça do que ele [José Gabriel], negra de gênio pior do que a

primitiva, e que, além de leviana, era hostil e impetuosa. Eulália tinha o gênio

calmo e gostava de lidar com todo mundo. Rosa agitava a vizinhança, fazia

intrigas de barracão em barracão, brigava com as amigas, espancava Geraldo.

(p. 21-22)

O traço racial de Rosa também é bastante evidenciado pelo narrador, como se pode

perceber no trecho acima “negra de gênio pior do que a primitiva” (p. 21). Por várias vezes

ele usa “negra” como elemento de substituição do nome Rosa. Chamá-la de negra significa

criar uma diferenciação entre ela e os membros da família, pois Marta, Seu Manuel e Veva

são descritos como mulatos, e apenas Zé Gabriel e Geraldo são caracterizados como negros.

O tom “amulatado” da pele de Marta chegava a causar inveja na amante de Zé Gabriel:

“Rosa sabendo-se negra e invejando o amulatado vago de Marta, murmurava, devorando-a com

os olhos [...]” (p.13). Com relação a Seu Manuel, no início da narrativa sua pele é descrita

como: “não era um negro; mesmo, pela extrema magreza, o rosto amulatado se tornara cor de

cinza, quase branco” (p. 9). O tom amulatado de Seu Manuel

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também causava inveja dos seus antigos colegas de trabalho: “Os companheiros de trabalho,

todos negros, chalaceavam que ele tinha luxos de branco só porque nascera mulato” (p. 20).

Manuel era “filho de um branco e de uma negra [...]” (p. 21), por isso a cor mulata da pele.

Genoveva também é descrita como mulata: “Casara- se com mulata uma pequena e humilde

mulata de Deodoro [...]” (p. 20-21). É possível que essa apresentação do mulato como uma cor

superior ao negro, tenha sido influência da valorização da mestiçagem no final do século XX

até por volta da década de 1930, tema tratado pelos intelectuais da “Escola de Direito de

Recife”: Tobias Barreto, Sílvio Homero e Gilberto Freyre, em momentos distintos.4

A menção à cor da pele de Zé Gabriel praticamente só ocorre em seu leito de morte,

quando Geraldo, após socorrer o pai, observa-o em seus últimos segundos de vida:

Mais alongado, os traços mais acentuados, os lábios grossos como os de um

negro legítimo. Sentiu um arrepio longo e perguntou a si mesmo, sentindo o

horror nascer na sua alma: ‘Será este o meu pai?’ (p. 225)

A cor de Geraldo fica subentendida, pois não há menção direta a ela. Supõe-se que ele

seja negro, porque a cor negra de sua mãe, Eulália, é sugestionada quando comparada a de Rosa:

“Rosa, muito mais moça do que ele [José Gabriel], negra de gênio pior do que a [amante]

primitiva” (p. 21); e do seu pai, Zé Gabriel, descrito na citação acima pelo narrador como

“negro legítimo” (p. 225).

Há outros moradores do morro que não eram membros da família, mas que também são

descritos como negros: Arlete, Chica Prudência, Timóteo e Damião. Há também outros

personagens cuja cor da pele o narrador não chega a descrever, são eles: Valério, Chico Padre,

Tomás de Aquino e Vicente. Teresa-Homem é caracterizada como mulata e não há menção

explícita a personagens brancos.

Segundo Cerqueira Filho (2013), o morro do Salgueiro real começa a ser ocupado nos

fins nos anos 1920 e a expressão “Salgueiro” começou a ser associada à negritude, à afro-

descendência, ao batuque e ao samba, que aparece sutilmente no romance: “Um silêncio

profundo caíra no Salgueiro. De vez em quando, vinham do Terreiro Grande o som rouco de

uma cuíca e o grito dos negros no saracoteio da dança Caxambu” (p. 25).

A partir dessa caracterização da cor da pele, é possível identificar um traço social do

Salgueiro ficcional na medida em que caracteriza seus moradores como negros ou como

4 SCHWARZ, L.M. Gilberto Freyre: adaptação, mestiçagem, trópicos e privacidade em Novo Mundo nos

trópicos. Philia&Filia, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 85-117, jul./dez. 2011.

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mestiços, pois acaba estabelecendo uma vinculação entre a raça e o ambiente de exclusão social

do morro.

A relação entre a cor da pele e a situação econômica acaba ficando tão evidente que

nenhum branco, considerado superior nas teorias naturalistas, mora no Salgueiro ficcional. Essa

constatação acaba refletindo um aspecto cultural brasileiro, especificamente a ideia na qual às

raças consideradas inferiores, na sua maioria descendentes de negros libertos da escravidão, são

historicamente relegadas aos espaços marginais das cidades.

Especificando apenas os personagens negros nos romances de 1930, Luís Bueno

enfatiza o aspecto da cor da pele de Geraldo:

Veja-se o caso dos protagonistas negros. Não é coincidência que num único

ano, 1935, três escritores muito diferentes — Jorge Amado, comunista, Lúcio

Cardoso, católico muitas vezes rotulado como de direita, e José Lins do Rego,

autor visto como regionalista, mas não ligado à esquerda — tenham publicado

romances com protagonistas pobres e negros. [...] Em Salgueiro, de Lúcio

Cardoso, era Geraldo, também criado no morro, mas no Rio, como indica o

título, que procura fugir da pobreza e busca uma solução espiritual para si. [...]

(BUENO, 2014)

Assim como Rosa, Geraldo também chega a ser animalizado pelo narrador, só que

diferentemente dela, apesar de também ser negro, a cor de sua pele não é posta em destaque

pelo narrador e nem por outros personagens, aliás ela não é nem mencionada, como dissemos

anteriormente.

Após esse levantamento dos traços animalizados dos personagens e do determinismo do

ambiente, elementos que aproximam o romance Salgueiro da estética naturalista, a seção a

seguir mostrará a superação do meio obtida pelo personagem Geraldo, fato que acaba

distanciando a narrativa do naturalismo e aproximando-a da vertente intimista do romance de

1930.

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2.3 A superação do determinismo naturalista

A religiosidade presente em Salgueiro vai ser o fator fundamental para mudança no

percurso de Geraldo, principalmente no que se refere à superação do determinismo naturalista.

Essa religiosidade vai ser representada no romance por dois personagens: Valério e Vicente.

São eles que apresentaram ao personagem Geraldo a figura divina, e a partir disso provocaram

no rapaz uma série de reflexões que o incitou a promover mudanças no que estava

predestinado para a sua vida e de sua família.

O primeiro contato de Geraldo com Valério ocorreu em uma visita que o rapaz fez a

casa desse senhor. Essa visita acabou mudando a vida de Geraldo, pois foi nesse encontro que

lhe foi apresentada a chave da saída do Salgueiro: a crença em Deus.

Quando Geraldo vai até a casa de Valério, o doente confessa a ele que não estavam

enviando mais nenhuma roupa para a sua lavanderia:

− ... e eu preciso viver! Não compreendem que somos criaturas de Deus?

Geraldo sentiu as pálpebras úmidas. Valério tornou a se erguer, fincado nos

cotovelos. Sua fisionomia deixou transparecer subitamente um tom

desesperado, quase de loucura:

−Sou um homem abandonado, mas espero em Deus... Deus existe.

E daquele rosto magro e envelhecido, daquela boca contraída, brotava uma luz

que saía decerto das suas palavras ardentes:

− Todos nós somos filhos de Deus. Mas o miserável, o que sofrer mais, estará mais perto dele! Eu quero, porque sei que um dia estarei lá... compreende?

E apontava algum lugar vago. Deixou cair a mão e segurou o livro, apertando-

o contra o peito:

− Muita gente sofre, mas poucos são os resignados. Eu sei que Deus trará

confiança, e não o esquecimento. Quando chega a noite, todos dormem e

esquecem da vida... Ouço então sua voz e me sinto feliz, pensando que ainda

hei de sofrer mais... muito mais. (p. 35)

Valério foi o primeiro personagem a tocar no nome de Deus na narrativa e falou sobre

o assunto nessa conversa com Geraldo. Esse foi o início da mudança na vida do protagonista

de Salgueiro, pois a voz de Valério continuou ecoando nos pensamentos de Geraldo no decorrer

da narrativa. A luz que brotava das palavras dele pode ser associada à chegada do elemento

divino na vida do rapaz. Valério fez uma reflexão de que todos são filhos de Deus. Mesmo ele

se sentindo um homem abandonado e ao ter a convicção de que seu o destino seria sofrer mais,

contraditoriamente, ele continuava a reafirmar a existência de Deus. Provavelmente, porque para

ele quanto mais se sofre mais próximo se está de Deus. Valério talvez agia assim, pois tinha a

esperança que Deus o retiraria daquela situação de abandono.

Geraldo decidiu ir embora ao perceber que não conseguiria um emprego com Valério,

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mas passou a imaginar um mundo diferente “lá fora” do morro: “E pensa num campo verde, no

sol que arde sobre as folhas, no rio manso que passa lá fora, no ar, no céu, na liberdade inteira”

(p. 36). Essa foi a primeira vez que Geraldo pensou numa vida fora do morro, pois as palavras

de Valério fizeram-no abrir seu campo de percepção. Nota-se que o ambiente da liberdade

fora do morro é descrito com cores mais vibrantes como o verde, no campo e nas folhas; na

adjetivação “manso” para o rio; e seguindo pelo ar, o azul do céu, numa gradação para

representar a liberdade. Essa não é qualquer liberdade, é uma “liberdade inteira”. Essa

imagem destoa dos ambientes escuros e sufocantes com o ar poluído, como o da casa de Valério:

“o cheiro de óleo e ranço pareceu mais forte” (p. 32) e até do próprio morro que geralmente é

descrito com uma sensação de abafado: “O calor de novembro abafava” (p. 11).

A conversa que Geraldo teve com Valério despertou a primeira reflexão no filho de José

Gabriel, por isso acredita-se que essa conversa foi o primeiro passo para a mudança no destino

de Geraldo. Ao voltar para casa, Geraldo tem suas palavras postas em dúvida por Rosa e pelo

seu próprio pai, ao afirmar que ele não foi falar com Valério:

Geraldo não se importava com o que haviam dito. Trazia ainda no espírito a

fala sibilada de angústia do pobre ferido, clamando na colmeia indiferente.

Seu desejo era gritar as mesmas palavras de Valério, gritar alto como se todos ali

fossem surdos. Ele não sabia por quê, mas aquele desejo latejava na sua alma;

pensava no pobre homem atirado num casebre daqueles, pregando para os que

passavam... Como ouviria aquela gente a voz do louco, falando de coisas

estranhas e aterradoras? (p. 37)

Valério é caracterizado pelo narrador por “pobre ferido”, “pobre homem” e “louco”.

Os adjetivos depreciativos “pobre”, que é reiterado duas vezes, e “louco” acentuam a

caracterização da penúria que ele vivia. Pode-se pensar ainda nos passantes na frente na casa

de Valério que o consideram louco, por “falar coisas estranhas e aterradoras”. Talvez a vida dos

moradores do Salgueiro não mudava, porque eles não ouviam as palavras de Valério, pois

achavam o que ele dizia uma loucura. Eles preferiam ir vivendo, aceitando conformados o

destino que lhes foi imposto, sem tentar mudar.

[Geraldo] Sentado junto à porta, pensava em tudo isso, ouvindo a flauta do

aleijado. O tempo estava quente e a noite aberta em estrelas. Aquele som

agudo, desgarrado, decepando a noite como um grito de sofrimento,

despertara nele uma sensação de dolorosa inquietude. Sentia no peito alguma

coisa opressa, como se estivesse sufocado; abrigava uma gente miserável e

descuidada. Decerto, a voz de Seu Valério arrancaria daquela indiferença as

criaturas que viviam em festas e danças... Sua angústia era a de uma criatura

perdida num deserto. Sua voz não podia ser ouvida senão pela imobilidade das

coisas. Ele sentia a inquietação, mas não percebia a causa. Aquilo que

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palpitava dentre de si tinha a violência de um apelo de quem deseja viver e

não encontra senão silêncio e treva em torno. (p. 37-38)

A conversa entre Valério e Geraldo também causou uma inquietação de origem

desconhecida no rapaz e impulsionou suas primeiras reflexões. Geraldo tinha vontade de gritar

para aquelas pessoas que elas estavam agindo errado, que elas não podiam continuar agindo

assim, sem acreditar em Deus. Mas como a voz de Valério era única, ele era encarado como um

louco, pois não concordava com aquelas criaturas que viviam para as festas e danças. A angústia

de Geraldo era a de um homem só, por isso era considerado uma “criatura perdida num deserto”;

era a angústia de um homem que queria viver de uma maneira diferente dos demais, mas não

encontrava espaço para isso: “Aquilo que palpitava dentre de si tinha a violência de um apelo

de quem deseja viver e não encontra senão silêncio e treva em torno” (p.38).

A primeira vez que Geraldo expressou a sua vontade de sair daquele morro, ocorreu

cerca de duas noites após a visita dele a Valério. Isso aconteceu quando ele foi a pedido de

sua tia, Marta, comprar querosene para iluminar a casa da família e no caminho encontrou

Arlete, sua namorada. Neste momento, Geraldo parou e relembrou as vezes em que foi

chamado de idiota: “Todos o chamavam de idiota, desprezavam-no como um objeto sem

utilidade do morro. Mas um dia fugirá, deixará essa gente toda, entregar-se-á à grande cidade

que ruge e se estende como um gigante adormecido” (p. 40-41).

Na parte 2, Geraldo voltou a ouvir a voz de Valério fazendo a sua pregação da palavra

divina, mas quase em forma de alucinação:

Geraldo lembrava-se de que naquela tarde haviam recebido a visita do

vendeiro Tomás de Aquino. Tivera uma conversa com o pai, que se mostrara

muito nervoso. Depois o seu pensamento fugia para Arlete e, sem querer, para

o velho Valério. Parecia ouvir a sua voz rouca pregando no casebre deserto.

Como soava dentro dele o som melancólico daquela pregação, o furor das

palavras que brotavam ardentemente dos lábios contraídos!... '(p.97)

Nessa citação, percebe-se uma descrição psicológica pelo narrador, a medida em que

ele tenta descrever os pensamentos desordenados de Geraldo, utilizando a técnica do monólogo

interior. Ao descrever a voz rouca de Valério, talvez o narrador tentou expressar as várias vezes

em que ele entoou a sua pregação, provavelmente, até insistentemente e de forma melancólica.

Chama-nos à atenção o detalhe do “casebre deserto”, isto é, sua pregação não tinha público,

pois ele não era ouvido pelas pessoas que passavam. O curioso é que Geraldo não expressou

em nenhum momento vontade de comentar essas novas sensações que ele passa a sentir para

outra pessoa, nem ao menos para Arlete.

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57

Após esse primeiro contato com a existência de Deus através Valério, a outra

personagem que vai falar da existência divina é “Vicente, o aleijado”, outra figura vítima do

destino miserável predestinado aos moradores do morro do Salgueiro. O som de sua flauta

embalava os acontecimentos no morro, sendo esse um constante apelo sensorial à audição

durante a narrativa. A primeira aparição desse personagem ocorreu no barracão da família do

protagonista e a personagem Rosa foi quem se lembrou da situação de Vicente:

Mais forte, desceu o som de uma flauta. Era o aleijado Vicente, exercitando- se

na diversão predileta. Rosa lembrou-se da sua figura pequena, das muletas

encostadas a um canto, os cabelos sujos caindo pelos ombros. Tinha fama de

santo. Ninguém falava em virtude sem trazer à baila sua figura melancólica.

Vivia trancado em casa, envergonhado e humilde, afinando a flauta no

silêncio das longas tardes. Rosa pensou, com um leve estremecimento, no seu

olhar gelado e enigmático, seguindo os passantes da janela. (p. 11-12)

O som da flauta do aleijado de vez em quando perpassava as cenas ocorridas no

Salgueiro e além do apelo sensorial da audição, também há uma sensação ao paladar através da

expressão “som adocicado”: “Vinha de muito perto o som adocicado da flauta do aleijado” (p.

14); e em “A flauta, agora, descia em grandes notas desafinadas” (p. 17).

O aleijado era “feio e desconfiado. Raramente saía de casa. Não possuía uma das

pernas e tinha vergonha da sua condição. Vivia enterrado ali, sem procurar ninguém, quando

muito conversando da janela. Passava por santo” (p. 138). Sobre a sua origem “ninguém se

lembrava de quando viera, nem de que lugar” (p. 139). O som da sua flauta, bem conhecido

pela sua vizinhança, aparecia “sempre que a solidão se lhe tornava mais pesada, pegava na

flauta e tocava velhas valsas” (p. 139). Pode-se interpretar que o som da flauta de Vicente

seria a metáfora de sua crença em Deus. Tocar valsas em momentos de solidão, um ritmo

musical que destoa do samba, o ritmo que embalava as festas e danças no morro, pode

representar o isolamento daqueles que acreditam em Deus e moram no morro.

Diferentemente de Valério, a crença de Vicente era manifestada através das rezas

decoradas e repetidas, e das gravuras de santos que ele pregou nas paredes de seu barracão,

como: “São Cosme, São Damião, São Gregório e São Jorge matando o dragão” (p. 139).

Inclusive o próprio Vicente tinha fama de santo. Essa diferença de crença entre os dois

personagens vai ser fundamental na escolha de Geraldo em que Deus seguir. Ele acaba

preferindo o Deus de Valério que é benevolente, aquele que perdoa e traz conforto,

semelhante àquele apresentado Novo Testamento da Bíblia. Enquanto

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58

o Deus de Vicente não trouxe a sensação de liberdade almejada por Geraldo, pois essa figura

divina era punidora, vingativa e lhe causava medo, como o Deus do Velho Testamento.

Mesmo vivendo recluso em seu barracão, Vicente não deixava de estar informado sobre

os acontecimentos do morro, inclusive sobre o desaparecimento de Zé Gabriel. Ao perguntar a

Geraldo sobre a fuga de Zé Gabriel, ele repetiu um boato que ouviu sobre o operário ter feito

coisa feia. Além disso, Vicente chegou a duvidar que Zé Gabriel e Veva acreditavam em Deus.

A descrença em Deus também acaba sendo a justificativa de Vicente para os acontecimentos

ruins na vida de Zé Gabriel, em específico no episódio da confusão entre ele e Rosa. Ao afirmar

que ele mesmo era um homem de bem: “— Eu, por exemplo. Sou honesto, pobre, sozinho, mas

homem de bem, amigo de Deus” (p. 140), talvez Vicente quisesse insinuar que Zé Gabriel era

o seu contrário, um homem mal: “— Ouvi dizer que foi por causa de uma coisa feia...” (p.

140).

Um trecho que demonstra a incompreensão das pessoas do morro, no que diz respeito

às opiniões de Vicente sobre religiosidade, é quando ele diz que os moradores não gostam de

ouvir pessoas de bem como ele: “O aleijado, muito debruçado para fora, balançada a cabeça:

“— Não gostam de ouvir os homens de bem... Cambada de orgulhosos ouviu? Orgulho, orgulho

só!” (p. 141).

Outro momento em que ocorre essa reafirmação da necessidade da crença em Deus é

quando Geraldo segue Rosa e acaba vendo-a entrando na casa de Timóteo, que é descrito pelo

narrador como um “negro da toca azul” (p. 171). Rosa e Geraldo acabam discutindo e as falas

exaltadas acabam chamando a atenção de Vicente, que passava próximo. Por isso, ele decide

entrar onde os três estavam. Então, Vicente adentra o barracão, atraído pelos gritos da discussão

entre Geraldo e Rosa: “– Silêncio! Para que esta briga? Lá de fora a gente está ouvindo os

gritos” (p. 171). Ao saber que Timóteo está doente e não consegue andar, Vicente o aconselha

a procurar Deus: “– Devia procurar Deus – murmurou em tom diferente. – Pois é quem ajuda a

todos” (p. 172).

Porém, a forma de abordagem do tema por Valério é bem distinta da maneira de

Vicente. Valério é mais sutil, procura convencer Geraldo, que mesmo dentre as dificuldades, se

ele acreditar em Deus, a divindade poderá fazer algo para mudar a vida de cada um deles. Desse

modo, o senhor acidentado acabou trazendo uma possibilidade de mudança para a vida de

Geraldo e talvez até de outras pessoas. Enquanto Vicente apresentou sua crença em Deus como

algo particular e que não poderia ser compartilhado com os outros. Vicente não procurava cativar

os outros para que tenham fé como ele, o que ele acabava fazendo era uma espécie de deboche

daqueles que não acreditavam em Deus. Sobre a diferença entre as crenças de Valério e Vicente,

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59

Bueno ressalta que:

[...] E Geraldo, depois de se sentir derrotado, irá perceber qual é o caminho

que pode levá-lo a frente. É Deus, é a fé. Mas não é um Deus que se encerra

nas igrejas e se revela nas estampas de santos, nem uma fé do medo. É uma fé

da liberdade. Não a fé de Vicente, mas a fé de seu Valério. [...] A grande

diferença entre seu Valério e Vicente – ou mesmo Manuel – é que a doença

não lhe causava medo nem culpa. Havia nele uma fé calcada no amor, no

perdão – uma fé afirmativa. Para ele, o sofrimento não era um castigo, mas

um veículo para a salvação. (BUENO, 2006, p. 280)

No trecho citado, percebe-se que a fé a qual trará diferença na vida de Geraldo não é

aquela institucionalizada em igrejas, com seus santos e rezas repetidas, é tanto que “não há

igrejas e nem padres no morro do Salgueiro” (BUENO, 2006, p. 282). Não houve uma

catequização de Geraldo, pois “para Lúcio Cardoso a fé não pode ser libertadora num universo

de opressão e de convencionalismo – essa, afinal, é a falsa fé de Vicente” (BUENO, 2006, p.

282).

Essa crítica a alguns dogmas e concepções da igreja católica também foi abordada em

Crônica da casa assassinada, romance a ser analisado no capítulo seguinte desta tese, pela

personagem Ana em suas confissões direcionadas ao Padre Justino. Em suas confissões, Ana

questionou por várias vezes alguns posicionamentos e práticas da igreja.

Até aqui foram expostos os fatores que foram responsáveis pela mudança no destino de

Geraldo. Na próxima parte, serão expostas as mudanças que esses fatores provocaram no

comportamento do protagonista do romance e como ele se percebeu capaz de guiar seu próprio

destino a partir da sua aproximação a Deus. Em seguida, o ponto de vista em terceira pessoa do

narrador será analisado para definir as aproximações e o distanciamento do romance da estética

Naturalista. Os traços desta estética aproximam Salgueiro do romance social de 1930 e a ênfase

nos pensamentos de Geraldo, a partir da terceira parte do romance, estabelece um vínculo com

o romance intimista, que acabou sendo a principal característica na produção romanesca de

Lúcio Cardoso desde A luz no subsolo em diante.

2.3.1 O desenvolvimento da complexidade interior do personagem Geraldo

Serão expostas nesta parte as mudanças acarretadas no comportamento de Geraldo,

desde a sua primeira aparição na narrativa até depois que lhe foi apresentado a figura de Deus,

com o intuito de mostrar a sua paulatina superação do Determinismo.

Geraldo apareceu pela primeira vez na narrativa através da pergunta de José Gabriel a

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60

Rosa em um dia em que ele chega em casa um pouco sombrio e entrou no barracão sem dirigir

a palavra a ninguém:

– Onde está Geraldo?

Então, de súbito, Rosa se retraiu. Seu olhar readquiriu, instantaneamente, o

tom agudo de maldade. Era o único ponto em que não se deixava dominar.

Dedicava um ódio sem limites a Geraldo, filho da primeira de amante de José

Gabriel. Não havia horizonte para limitar aversão tão grande. Tudo se

confundia, para a negra inconsciente, num enorme desejo de se ver livre do

rapaz, de afastá-lo o mais distante possível do seu olhar. (p. 14-15)

Nota-se a mudança repentina de Rosa, ao ouvir o nome de Geraldo, expressa através de

seu olhar. Ela odiava Geraldo e encarava-o como se ele fosse uma espécie de rival dela na

disputa pela atenção de Zé Gabriel.

O narrador apresenta Geraldo da seguinte forma: “andava beirando os vinte anos” (p. 15)

e “era muito raro que o pai o encontrasse em casa” (p. 15). Rosa tem uma atuação

significativa para conseguir deixá-lo fora de casa, pois ela “se encarregava de afugentá- lo para

a rua”. A amante de Zé Gabriel ainda chamava seu enteado constantemente de idiota (p. 15) e

essa lembrança vai acompanhar Geraldo por toda a narrativa.

Por Rosa chamá-lo de idiota, as demais pessoas acabavam pensando o mesmo dele.

Geraldo era visto como uma figura “sem nenhuma utilidade”, não tinha emprego e dava

“pequenos recados e [fazia] trabalhos para as lavadeiras”. Era José Gabriel o responsável por

prover a casa através do trabalho como operário na fábrica. Rosa era ociosa, “Marta e os velhos,

um perdido de doença, a outra atolada numa senilidade apressada pelo sofrimento,

conservavam-se perfeitamente indiferentes à sorte do neto” (p. 15). Como pode-se perceber,

os entes da família pouco se importavam com Geraldo, apenas o seu pai ainda tinha uma leve

preocupação com o filho, mas parece que esse interesse era mais financeiro do que afetivo,

pois aparenta que Zé Gabriel queria que o filho trabalhasse para ajudá-lo a pagar as despesas

da casa e não porque se preocupava com o futuro de Geraldo. No trecho a seguir, foi uma das

poucas vezes que Zé Gabriel dirigiu a palavra a Geraldo na parte 1 do romance, para exigir

que ele arrumasse um emprego, mas isso por insistência de Rosa, que ironicamente em nada

trabalhava:

Ficaram silenciosos por um momento. Rosa deixou escapar uma risada. Então

José Gabriel avançou para ele e, agitando o punho, esbravejou:

− Quando é que este traste deixará de ser idiota? Será que pensa ser escravo dessa gente?

Aquele ‘idiota’ fez Geraldo estremecer ligeiramente. Fixou o olhar no pai

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que se debatia, caminhando até a porta.

− Olha, tu vai trabalhar amanhã... Seu Valério deve arranjar qualquer coisa... Sabe onde ele mora?

− Sei.

Rosa deu-lhe as costas e puxou o amante pelo braço:

− Escuta, Zé, está na hora da gente ir...

Fez um movimento como quem ia falar alguma coisa com o filho. Depois

ergueu os ombros e caminhou para a porta, arrastado pela negra. (p. 19)

Observa-se nesse trecho que é Rosa quem induz Zé Gabriel a se afastar de seu filho.

Talvez até ele tente uma aproximação: “Fez um movimento como quem ia falar alguma coisa

com o filho”, mas sai de cena “arrastado pela negra”.

Mais à frente na narrativa, especificamente na parte 3 – depois do desaparecimento de

Zé Gabriel e após de uma briga séria com Rosa – ela ainda tem o mesmo tratamento para com

Geraldo, e sua raiva aumenta quando o rapaz a provoca ao dizer que se seu pai não voltará, que

ele estava com outra mulher e não tem mais interesse em Rosa:

− Ele não voltará mais – repetiu Geraldo, sombrio. – Quando aparecer, será de outra... Até já sei quem ela é.

Rosa se calara. [...]

− Também ele não gosta de ti – respondeu Rosa. – Nunca se importou... Seu

Timóteo, ele dava neste cão porque eu mandava... Apanhava todo dia, só

vendo.

− Coisa ruim... – cuspiu Geraldo. (p. 170-171)

Ao ser ofendida pela fala de Geraldo, Rosa reage reafirmando que Zé Gabriel não gosta

do filho e nunca se importou com ele. Ela volta a chamar Geraldo de um animal, desta vez

chama-o de “cão” e ele reage numa atitude de nojo ao falar e cuspir em seguida. No trecho citado

acima, também há uma revelação de Rosa, quando ela diz que Zé Gabriel batia em Geraldo

porque ela mandava, o que reforça o ódio que ela tinha por ele e o poder de manipulação que

ela tinha sobre seu amante.

Mesmo sendo deixado de lado pela família, Geraldo não se importava muito pela

ignorância que sofria. Inicialmente, ele apresentou esse comportamento diante de sua família,

mas será observado que à medida que ele vai superando o determinismo sua concepção sobre

ela vai se modificando.

Geraldo é descrito fisicamente como

magro e anguloso, tinha os braços longos e grandes mãos que se moviam

constantemente, sem nunca acharem lugar para repouso. Os olhos encovados e

frios guardavam a mesma expressão da tia. Aliás, a palidez e os traços mais

acentuados de Marta apareciam nitidamente em seu rosto. As roupas rasgadas

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e as calças demasiadamente curtas não chegavam aos grandes pés, que

enlameados, pareciam maiores ainda. (p. 18)

Geraldo chegara ao barracão dos avós com cinco anos, junto de sua mãe Eulália, a

primeira amante de José Gabriel:

[...] Logo depois, trouxera ele a amante, Eulália, acompanhada de um filho de

cinco anos, a fim de abrigá-la sob o mesmo teto. Eulália morria alguns anos

depois, assassinada num conflito no morro. Durante dez anos, José Gabriel

não pensara em tomar outra amante. Período relativamente tranquilo. Quieto,

vivia pacatamente, pensando em mandar Geraldo aprender a ler. Ele haveria de

ser doutor como tanta gente. Passado esse lapso de tempo, sentindo as

proximidades da velhice, surgira com Rosa, muito mais moça que ele, negra de

gênio pior do que a primitiva, e que, além de leviana, era hostil e impetuosa.

[...] Com grande desespero de Marta e do velho Manuel, José Gabriel, ao

contrário, parecia muito mais preso a esta louca do que o fora à mãe do seu

filho. (p.21-22)

Nesse trecho, vemos que Zé Gabriel tinha planos para o futuro de seu filho, pois sonhava

em lhe oferecer uma boa educação, mas parece que com o início do relacionamento com Rosa,

ele se esquece desse desejo. Esse é mais um elemento que reforça a ideia que ela é o elemento

desagregador da família: “Pois bem que ele [Seu Manuel] percebia onde iria parar tudo aquilo.

Em breve estariam todos dispersos, separados pela força daquela mulher estranha” (p. 22).

A relação entre José Gabriel e Geraldo só vai se reatar após uma grande briga entre o

operário e Rosa, após ela retornar ao barracão da família, depois de ter ido à casa de Chico

Padre. Rosa, por ter sido agredida por Zé Gabriel, acaba fugindo de casa e Geraldo acaba

sugerindo o mesmo para seu pai para que a polícia não o pegue. O rapaz o aconselha, pois ele

ouviu toda a conversa que teve com Rosa sobre o dinheiro ilícito que Zé Gabriel havia roubado:

− Tu devia, pai, ir se esconder... Tu devia.

Então o pai segurou-o brutalmente. Dentro da sombra seu olhar desceu no do filho como uma lâmina afiada.

− Por quê?

Geraldo envolve-o numa expressão de assombro. Nunca pai e filho haviam

estado tão próximos. A respiração de um se confundia com a do outro. E o

filho, quase sussurrando, murmurou ao seu ouvido:

− Pai, ela irá contar! [...]

E o tempo que decorreu poderia ter sido um segundo ou uma hora. Ambos,

agitados pelos mesmos sentimentos, permaneceram de pé, insensíveis, como

dois fantasmas. [...]

Geraldo seguiu-o e pôs-se a sacudi-lo, quase alucinado:

− Foge, pai, “eles” virão aqui... [...]

− “Eles!” — O operário pensou que não valia a pena perder-se para sempre por causa de uma negra. Não foi propriamente um raciocínio, mas instinto

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63

previsor, que o obrigou a procurar as roupas, sem vontade, quase

inconsciente. [...] [...]

E José Gabriel fitou-o como se fosse a primeira vez em sua vida que o fizesse.

Geraldo sentiu que pela primeira vez ele era o “filho”.

− Adeus. (p. 122-124)

Vê-se nessa passagem o único momento da narrativa em que há cumplicidade entre pai

e filho, pois “Geraldo andava beirando os vinte anos” (p. 15) e não tinha uma boa relação com

seu pai, e no momento em que iriam se aproximar, o destino ou talvez o determinismo os

separa:

[...] Não podia, pois, ter amizade a um pai que mal lhe dirigia a palavra, conservando-o apenas como um objeto de casa, familiar e desconhecido.

Não era difícil adivinhar para que ele o procurava às vezes: as surras que lhe

dera estavam bem gravadas no seu espírito, como um selo que o tempo, em

vez de consumir, reavivava (p. 127).

No final da parte 2, após a morte de Seu Manuel, o desaparecimento de José Gabriel,

após a briga com Rosa, que também deixou o barracão, Marta retorna para buscar sua mãe e

retirá-la daquele morro desprezível, mas em nenhum momento ela pensa em levar Geraldo.

Neste momento, em que elas decidem ir embora, a indiferença de ambas em relação a Geraldo

fica ainda mais evidente:

[Veva] Foi saindo, lentamente, sem olhar para ninguém. Marta seguiu-a, mas

seu olhar encontrou o de Geraldo. Durante um momento, sentiu travado em si

um áspero combate. Falaria com ele? Afinal, por que o maltratava assim? Mas

também... por que se importava? Que valia para ela o sobrinho? Por que pensar

ainda nele? ‘Roubará’ — pensou. ‘Roubará se tiver necessidade disso.’ E

passou, sem lhe dirigir nenhuma palavra. Ganharam a estrada, sob a chuva

gelada. (p. 158-159)

Se fossem familiares mais próximos, a saída seria um momento de grande emoção com

lágrimas e abraços, porém o desejo de Marta é sair o mais rápido possível daquele morro,

enquanto Geraldo só pensava que ficaria sozinho e que estava sendo abandonado pela sua

família. Da mesma forma que Veva e Marta não esboçaram nenhuma reação, Geraldo também

não se expressou. Talvez elas até aguardassem que ele reagisse, mas lembremos que elas não o

criaram dessa forma, expressando carinho e sentimentalismo, então a espera de Marta era em

vão. A relação entre eles sempre foi muito adversa, mesmo assim, quando Geraldo se vê sem

nenhum membro da sua família por perto e angustiado com as conversas de Vicente sobre Deus,

ele acaba pouco tempo depois pensando em sua tia Marta:

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64

Quis se esquecer daquilo e procurou imaginar onde estaria Marta naquele

instante. Muitas vezes ouvira dizer: caiu na boca do mundo... Agora, ele tinha a

impressão de que essa boca escura se abrira e ela para sempre desaparecera no

vazio da cidade grande e misteriosa. (p.177)

Após a saída de sua tia Marta e de sua avó, a única pessoa que ainda prendia Geraldo

no morro era seu pai. Saber como e onde ele estava era a sua maior obsessão: “Esquecia pouco

a pouco a partida de Marta e da avó. Sentia-se preso ao morro por uma ideia mais forte do que

o desânimo: o pai” (p. 163).

Depois que Zé Gabriel deixou o barracão, ficou subentendido que os membros da

família que restaram – Marta, Veva e Geraldo – , por não terem como pagar o aluguel a Tomás

de Aquino, foram morar na casa de Dona Zica. E Geraldo, depois de Veva e Marta saíram do

morro, passou a morar no barracão de Vicente: “Desde algum tempo dormia ali, no canto, em

troca de pequenos serviços que prestava ao aleijado” (p. 174).

Na parte 2, percebe-se uma alteração nos pensamentos de Geraldo com relação a sua

família, quando ele percebe que não verá nunca mais seu avô, que havia morrido a esta altura

da narrativa, e que também ele nunca mais iria rever sua tia Marta, que fugira de casa no final

da primeira parte do romance:

E logo após era do avô que se lembrava, no dia da sua partida, cobrindo os

olhos com as mãos, por causa do sol forte. Achava impossível que o velho

tivesse morrido, que nunca mais o visse encostado no seu canto.

[...] De novo o seu espírito se enchia de imagens confusas ... a tia ... o avô

estendido num caixão de madeira preta ... Ambos tinham ido embora. Nunca

mais os veria de volta. Ele, que nunca pensara naquelas pessoas, sentia assim

subitamente uma angústia, quase uma necessidade de revê-los. Em seus

lugares restava agora aquela mulher que o maltratava, que não se lembrava

dele senão para ameaçar. Ouvia os seus palavrões, o "idiota!" gritado como

um escárnio na meia da estrada. (p.97-98)

Após a morte de Seu Manuel, Geraldo reconsidera os seus sentimentos pelo seu avô e

pela sua tia, pois Marta havia deixado o barracão da família após se envolver com Chico Padre.

Esses acontecimentos acabam por promover mudanças no pensamento de Geraldo com relação

a sua família e esse é mais um fato que contribuiu para a paulatina superação do personagem

ao determinismo, que manipulava o destino da maioria dos demais personagens da história.

Outro acontecimento que contribuiu para as mudanças no pensamento de Geraldo com

relação a sua família ocorreu após a já citada briga entre Zé Gabriel e Rosa, na parte 2 do

romance. Ele que não se importava com ninguém no início da narrativa, depois do que vinha

acontecendo: a morte do avô, a fuga de sua tia Marta e Rosa, e agora a evasão de seu pai, ele

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passa a enxergar sua família de uma forma diferente, enquanto esperava os policiais fazerem a

revista no barracão em busca de Zé Gabriel. Mas algo maior o fazia permanecer ali – o ódio por

Rosa:

[...] E só uma coisa se apresentava realmente como motivo, como razão de

tudo aquilo. Só uma coisa que mascarara todos os seus atos de um interesse

que estava longe de ser o verdadeiro - era Rosa. Sem dúvida, era um ódio

trazido do mais fundo de si mesmo, um ódio que herdara da família, mas

profundo, grande e indomável. [...]

Geraldo revolvia-se dentro dos próprios pensamentos; aquele nublado

despertar para a vida era exposto e analisado por ele com a curiosidade de

quem se sente ainda com todas as forças acumuladas. Era o gato que abria os

olhos e se entregava ao exame local com a curiosidade necessária a quem vai

caminhar por si mesmo. (p. 128)

No trecho citado, nota-se o narrador explorando mais uma vez a psicologia do

personagem Geraldo, ao afirmar que ele “revolvia-se dentro dos próprios pensamentos”.

No romance em questão, há o desenvolvimento da narrativa psicológica, conforme

afirmou Lúcia Miguel Pereira (1935), que começa a ser desenvolvida na parte 2 de Salgueiro e

atinge seu ápice na parte 3:

Não viu as suas personagens por fora, não imaginou as suas sensações

segundo as suas próprias necessidades de intelectual e de homem habituado a

um certo nível de conforto. Não pôs nelas o desespero que sentiria se se

encontrasse nas mesmas condições. Sentiu-as por dentro, compreendeu as

suas almas balbuciantes as suas necessidades rudimentares. E por isso as fez

sem amargura, e o seu livro, porejante de simpatia humana, não tem entretanto

uma só declamação, nem o menor sentimentalismo. O que domina em toda essa

gente é o seu desemparo moral ainda maior do que psíquico. (PEREIRA,

1935, p. 6, col.5)

Essa ideia se contrapõe à concepção de Massaud Moisés (2004), que considera o

primeiro romance intimista de Lúcio Cardoso A luz no subsolo: “Duas modulações podem ser

observadas na ficção introspectiva de Lúcio Cardoso: a que começa com A luz no subsolo e a

representada pela última obra, Crônica da casa assassinada.” (p. 231-232, grifo do autor).

Rosiane Vieira de Rezende (2007), em sua dissertação: “Lúcio Cardoso - o laboratório

da escrita literária: de Maleita à A luz no subsolo”, também comunga com a concepção de

Lúcia Miguel Pereira, ao afirmar que Salgueiro antecipa o aspecto intimista que vai ser mais

desenvolvido no próximo romance de Lúcio Cardoso: “O romance Salgueiro foi publicado pela

primeira vez em 1935. Nele, Lúcio Cardoso concentra muitas das características de seu

primeiro romance, mas antecipa, por sua vez, A luz no subsolo, seu

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terceiro livro.” (REZENDE, 2007, p. 67, grifos do autor)

A mudança nos sentimentos de Geraldo pelo pai é um pouco lenta, porque ele chega a

confessar que gostava do pai, mas não muito, pois ele lembrava das surras que levou dele. Então

a principal razão dele ainda estar ali no morro era a vontade que ele tinha de ver Rosa se dar

mal. Geraldo apoiava o pai naquela situação não por gostar dele, mas pelo ódio que alimentava

por Rosa, o mesmo ódio que seus familiares nutriaram por ela: “Sem dúvida, era um ódio

trazido do mais fundo de si mesmo, um ódio que herdara da família, mas profundo, grande e

indomável” (p. 128). Na verdade, ele queria fazer o mal para Rosa e não o bem para o seu pai:

“Sentia-se levado para o combate e sentia que o inimigo era aquela negra de espírito rebelde e

atrevido” (p. 128). O ódio era tanto que quando Geraldo descobriu onde seu pai estava

escondido, por intermédio de Vicente, ele cogitou fugir do Salgueiro com Zé Gabriel para se

vingar de Rosa: “Ah! com se vingaria ele de Rosa, fugindo do Salgueiro com o pai! Era uma

ideia instantânea que lhe ocorrera, esta, de abandonar o morro para sempre... Para sempre, e na

companhia do pai, a quem ajudaria a viver na cidade, lá embaixo” (p. 179).

De Veva, sua avó, ele só sentia a sua presença como uma sombra que passava em

silêncio, “sem força nem movimento para deter a marcha dos acontecimentos” (p. 128). Após

a saída de Seu Manuel para o hospital, o destino dos moradores do barracão tornou-se incerto.

Marta não teve certeza se Zé Gabriel ainda iria pagar o aluguel do barracão. Geraldo não se

importava com sua avó, porque ela também não demonstrava nenhum carinho por ele. É tanto

que quando Seu Manuel vai para o hospital, por ter piorado da tuberculose, Veva especula o

pior para o seu neto numa conversa com Marta: roubaria, seria um homem mau e iria para a

prisão.

Como Geraldo perdeu a mãe por volta dos cinco anos, o esperado era que sua avó ou

sua tia assumisse a função materna, mas isso não ocorreu. Ao deixar o garoto largado, não

deram educação para ele e dessa forma pareciam induzi-lo a um destino trágico. Assim, Geraldo

foi criado como “cachorro solto” e pouco ou quase nada sabemos da infância dele, pois o

narrador focaliza a vida do filho de Zé Gabriel quando ele tinha quase 20 anos.

A modificação dos pensamentos de Geraldo é considerada pelo narrador como um

“nublado despertar para a vida” (p. 128) e chega a compará-lo a um gato que a partir daquele

momento tem de caminhar sozinho, porque percebe que não pode contar com seus familiares.

Não foi a idade que fez Geraldo mudar, pois ele continuava “perto dos vinte anos”, como

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no início da narrativa. Foram os acontecimentos que o fizeram amadurecer e não a passagem

do tempo, porque “antes, não se importava com Marta nem tampouco com o pai.”; muito menos

pela avó, “esta não o interessava absolutamente” (p. 128).

Geraldo, por estar morando com Vicente, ficou mais próximo desse Deus que ele cultua.

Vê-se a presença da religiosidade na vida de Vicente também através da presença do oratório

em sua casa: “Vicente dirigiu seus passos para uma caixa fechada junto ao oratório e retirou

dela umas costuras antigas” (p. 175).

O modo como Vicente rezava foi analisado por Geraldo. Ele não sentia segurança nesse

ato de Vicente: “Era sempre a mesma coisa, como uma reza decorada, onde não estremecia a

mínima emoção, nem o mais leve sentido de verdade” (p.176). A visão de Deus que ele

apresentava para Geraldo era daquele “[...] Deus estranho e vingador assumia para o seu pobre

coração a figura terrível de um juiz que não perdoa” (p. 176). Daquele que causa mais medo

do que conforto: “Era a única coisa que conseguia sentir depois daquilo tudo – medo, e um

medo que vinha do próprio aleijado [...]” (p. 176).

Nota-se um tom de crítica do narrador, ao descrever o modo como Vicente orava com

uma “reza decorada, onde não estremecia a mínima emoção” e, além disso, a visão do Deus

punidor que Vicente apresenta a Geraldo. Na medida que o narrador critica, ele também

apresenta que é possível ter uma outra visão sobre Deus: aquele traz a divina Providência, o

Deus apresentado por Valério.

Vicente ao ser questionado por Geraldo sobre onde estava Zé Gabriel ficava mudando

de assunto. Diante desse comportamento de Vicente, Geraldo pensa: “Por que se divertia ele

daquele modo com seus sentimentos? Ah! Como era miserável este homem que tanto falava

em Deus!” (p. 177). Se Vicente era um homem que falava em Deus não deveria se divertir

com os sentimentos de Geraldo. Talvez o narrador esteja através dos pensamentos de Geraldo

fazendo uma crítica a certos tipos de crenças que pregam o respeito ao próximo, mas que

hipocritamente não põem em prática os preceitos que tanto pregam.

Para ilustrar que o Deus caracterizado por Vicente era aquele punidor, ao iniciar a

conversa sobre onde está Zé Gabriel ele diz:

− Escuta, tu tem sido bom para mim... [...]

Jura que toma cuidado?

Ergueu os dedos em cruz. Na parede, a sombra se desenhou trêmula, deformada.

− Juro!

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− Deus não tem perdão para quem jura falso...

Geraldo procurou sorrir e apertou as mãos contra o peito.

− Olha, Vicente, eu não seria capaz de... Então, curvou-se bruscamente e sussurrou:

− Teu pai está bem perto daqui. [...]

− Jura! Jura! – exclamou. [...]

− Juro – respondeu ele afinal –, juro por Deus.

Então Geraldo abandonou-o. Aquele “por Deus” soara lugubremente no casebre miserável. [...]

− Ah, Vicente! Se fosse mentira? (CARDOSO, 2007, p. 177)

O elemento religioso aparece no gesto de Vicente ao fazer o sinal da cruz com os dedos.

Nessa fala de Vicente, reafirmar-se a visão do Deus punidor que castiga quando se cometem

erros. Além do Deus punidor, Vicente apresenta um Deus revelador a Geraldo, quando ele

pergunta a Vicente como ele descobriu onde Zé Gabriel estava escondido. Vicente afirma que

foram os santos de seu oratório que o ajudaram a descobrir onde Zé Gabriel estava. Diante dessa

afirmação, Geraldo acabou sentido um início de rancor “ante a onipotência daqueles santos que

de tudo sabiam” (p. 179).

Geraldo ao questionar Vicente sobre quem lhe disse a verdade, pergunta se foi Deus,

mas Vicente nega que foi a divindade e afirma que foi ele mesmo que falou a verdade. Logo

em seguida, Geraldo pergunta se Vicente conhece Deus, pois, provavelmente, tenha a ideia de

Deus como um ser materializado e quando Vicente nega conhecê-lo, mas sabe que ele existe, o

que causa ainda mais confusão na mente do jovem:

− Tu o conhece? – perguntou Geraldo num sussurro.

− Quem?

− Deus?

[...]

− Não... [...]

− Mas sei que ele existe. [...]

− Por quê?

Não pode responder. Moveu os lábios com dificuldade:

− Tenho medo.

− Tu não tem ele no coração... Isto é só da boca para fora. (p. 190-191)

Em seguida, Vicente muda de estratégia, passa a indagar Geraldo se ele sabia como

Deus fez o mundo. Essa pergunta do aleijado provoca um turbilhão de pensamentos em Geraldo:

Teve medo de gritar. Por que lhe vinha aquilo ao peito, subindo, subindo

sempre, como se o sangue lhe fervesse no peito? Pavor? Angústia? Como

aquele homem o torturava? Que lhe importava Deus? Não tinha vivido bem

Page 72: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

69

até esse instante? Mas um grito despertou a sua consciência e tudo pareceu

varrido por um vento mau: vivido bem? Oh! E aquela coisa martelava na sua

cabeça, pausadamente, como batidas de um grande relógio no silêncio de um

quarto fechado! Deus... vivido bem? Moveu a cabeça, hesitante. [...]

(CARDOSO, 2007, p. 191)

Várias questões vieram à mente de Geraldo. Ele chegou a se questionar se até então, ele,

que não conhecia Deus, achava que vivia bem, qual diferença faria conhecê-lo agora. Mas em

seguida, logo após ouvir um grito, ele passa a pensar diferente, e começa a se questionar se

realmente ele havia “vivido bem” até aquele momento. Esse grito, provavelmente, seria a

representação da voz divina que passava a interferir nos pensamentos de Geraldo, martelando

em sua cabeça “como batidas de um grande relógio no silêncio de um quarto fechado!” (p.

191).

A resposta para a pergunta que o aleijado fizera para Geraldo: “– Sabe como Deus fez o

mundo?”, o próprio aleijado responde:

− Deus fez primeiro as cobras... e o vento... foi assim que ele fez primeiro.

Então, tudo se confundiu como num sonho. O martelo voltou a vibrar na sua

cabeça, encostou-se à parede, temendo cair. Reabriu, porém, os olhos e

perguntou:

− Por que... o vento? Por que as cobras? [...]

− Tu não compreende. O vento há de matar os homens todos. E as cobras hão de envenenar o sangue do mundo. (p. 192)

Em alguns momentos, Geraldo pensava estar sendo ludibriado por Vicente, que apenas

zombava dele através de uma brincadeira maldosa. A ideia de ludíbrio foi crescendo nos

pensamentos do filho de José Gabriel e de uma sensação vaga, passou para uma sensação real,

até o ludíbrio vencer quando Vicente disse que Deus criou primeiro as cobras e o vento.

Geraldo percebe que Vicente queria apenas apavorá-lo, pois o jovem tinha pleno

conhecimento que a divindade criou, no princípio, o céu e o dia.

Depois de abordar a questão da criação, Vicente conduz a conversa sobre a onipresença

e a onisciência de Deus:

− Então, Deus mata os homens à toa? [...]

− Por causa do pecado é que ele mata.

E mais baixo, como quem dissesse para si mesmo:

− Nada fica escondido de Deus... Ele vê tudo...

Geraldo volveu então o olhar a imagem, sem nada, porém que lhe agitasse o

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70

peito. Apenas, ante o sangue que corria pelo pedestal, teve asco como diante

de uma coisa nojenta.

− É por isso que morrem os homens que pecam... Os anjos espiam para

contar... Vem depois o vento... e sopra, e sopra. Tudo fica gelado, e Deus,

sozinho, passeia de novo pelo mundo. Ele não nos quer, não nos ama, porque

somos anjos e fazemos porcarias. O mundo dele é branco e limpo... O nosso é

o Salgueiro. (p. 192-193)

Nesse trecho, Vicente ainda menciona que o pecado é a causa de Deus matar o homem

e que o mundo da divindade “é branco e limpo”. Por suposição e extensão, ao dizer “O nosso é

o Salgueiro”, Vicente, provavelmente, estava querendo dizer que o mundo deles seria por

comparação negro e sujo, como muitas vezes o narrador chega a afirmar.

O narrador acaba trazendo uma reflexão sobre Deus através do personagem Geraldo que

até um determinado ponto da narrativa desconhecia o ente divino e por isso sente “um rancor

concentrado por ignorá-lo tanto tempo” (p. 189). Geraldo se questiona: “Por que Deus não era

para ele também? Por que não o escolhera como a outros que o conheciam e falavam dele sem

cerimônia?” (p. 189) Geraldo chega a se considerar uma “pobre criatura” quando percebe que

há uma grande intimidade entre Vicente e Deus, quando Vicente “fala nele como se

conversasse de noite com ele [Deus]” (p. 193).

Enquanto as palavras de Vicente causavam medo em Geraldo, a visão de Valério sobre

Deus, apresentadas ainda na parte 1 do romance, foram fundamentais para a mudança no

comportamento do rapaz. Elas foram tão importantes que ao serem retomadas no final do

romance, quando o filho de Zé Gabriel e Eulália, finalmente consegue se desprender das

amarras do morro do Salgueiro:

Toda a sua esperança está depositada no velho Valério. Ele o procurará e

ouvirá de novo a sua voz. Ainda uma vez, sente no rosto o vento da manhã e o

calor do sol, o cheiro do mato e da fumaça escura que se despedaça no ar

tranquilo. O medo desapareceu do seu coração e ele sabe que é um homem –

um homem livre.

De súbito, cerra os olhos e abaixa a cabeça, vencido pela emoção que sobre o

seu peito. Depois, prossegue lentamente a descida, ouvindo ainda o grito das

mulheres que estendem roupas no caminho. O morro desaparece numa curva

brusca. Marcha sem hesitação, ganhando a calçada larga, escutando ruídos de

bondes e gritos de vendedores. Mas, de repente, ele se detém e sente a alma

invadida pela alegria. Diante daquelas faces desconhecidas, daquelas janelas

abertas e daqueles gritos diferentes, compreende que Deus havia, afinal,

descido ao seu coração. Não Deus do Salgueiro, mas um outro Deus. (p. 247)

As palavras de Vicente foram sobrepostas pelas de Valério. No trecho citado acima, os

dois últimos parágrafos do romance, nota-se que a descida de Geraldo do morro e a

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71

sua chegada na cidade representada pela “calçada larga, escutando ruídos de bondes e gritos de

vendedores”, são na verdade uma elevação na sua vida. E isso ocorre, porque um Deus diferente

daquele do Salgueiro desce ao seu coração, provocando alegria. Essa sobreposição da voz de

Vicente pela de Valério, foi percebida por Lúcia Miguel-Pereira:

A lembrança de Valério, um infeliz que também lhe falara em Deus, mas com

amor, aplaca a inquietação despertada nele pelas palavras de Vicente. Sente

afinal, a presença divina velando pela sua miséria. (PEREIRA, 1935,

p. 6, col. 3)

E mesmo a procura de Deus, que atormenta Vicente, consola Valério e vai

talvez elevar Geraldo, corresponde, ela também, a dois sentimentos

profundamente arraigados na alma humana, por mais rude que seja – o medo

do castigo e a necessidade de proteção, de amparo, de ter alguém em quem

confiar. (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 6)

Traçado o percurso do personagem Geraldo, conclui-se que ele é o único que consegue

superar totalmente o que o meio, no caso o morro, determinava no destino de seus moradores.

Desse modo, o desfecho da história dos personagens mostra que a descida do morro do

Salgueiro por Geraldo, na verdade, é uma ascendência: “O livro termina nessa descida que é

uma ascensão, que dá um sentido a toda aquela desgraça.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 3),

enquanto que os representantes das duas gerações anteriores a Geraldo, seu pai e seu avô foram

vencidos pelo determinismo provocado pelo morro: “O avô e pai foram tragados pelo morro,

mas o filho se libertou do sortilégio” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 3).

Sendo assim, nota-se que apenas Geraldo, agiu de forma contrária aos personagens de

Émile Zola que seguiam o Determinismo de Taine, à medida que ele consegue superar essa

teoria. Essa utilização da teoria determinista permaneceu nos romances da década de 1930, no

período do modernismo brasileiro, e por isso eram chamados de Neorrealistas ou

neonaturalistas.

Como foi exposto, na parte 1.2 desta tese, a presença desses elementos da narrativa

naturalista oitocentista ainda estiveram presente no romance de 1930, chamado também de

regional/ social, pois mostrou as personagens vítimas do espaço em que viviam, como foi o

caso dos romances de ambientação no nordeste brasileiro, em que os personagens eram vítimas

da seca. No caso de Salgueiro eram as forças do morro que pareciam manipular a vida da maioria

dos personagens.

Apesar de se aproximar do Naturalismo, isso não queria dizer que havia uma

proximidade de Salgueiro com o realismo, como afirmou, Pereira (1935):

Page 75: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

72

Salgueiro é um romance real, mas não é um romance realista. Com o seu raro

temperamento de narrador e de animador, Lúcio Cardoso não é em absoluto

um escravo do fato, do acontecido. Os seus livros não tem nada de

fotográficos. E nem poderiam ter, porque ele é essencialmente um criador –

criador como o são os poetas – capaz de plasmar a sua própria realidade.

Criação subjetiva, mas execução objetiva. Dentro do plano em que as ideou

respeita a liberdade das suas personagens. Dentro do ambiente do livro, elas

são inteiramente verossímeis.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 6)

Massaud Moisés (2004) contraria o que disse Pereira, ao afirmar que em Salgueiro o

“realismo sem tese, ainda não oferece o melhor aspecto do autor por assemelhar-se a outros

ficcionistas da época” (2004, p. 231). Mas preferimos concordar com a opinião de Pereira, pois

os traços naturalistas são bastante fortes no romance.

Lúcia Miguel Pereira chega a comparar as personagens de Salgueiro a personagens de

Dostoievski: “Todas as criaturas se movem como sob impulso de forças superiores à sua

vontade ─ força do instinto, em Rosa, força do ódio de Martha, força da submissão em

Genoveva. Nisso o jovem escritor brasileiro se aproxima do grande russo Dostoievski” (1935,

p. 6, col. 4). São justamente por meio dessas “forças superiores”, de que fala Pereira, que atuam

o determinismo na maioria das personagens do romance de Cardoso.

O período em que o Seu Manuel fica no hospital é outro momento da narrativa em que

Pereira compara a Dostoievski: “O mero aspecto da sala de hospital enche Genoveva e Martha

de pasmo e acanhamento. Até nesse ambiente de dor, as duas destoam, desajeitadas e

ligeiramente ridículas. (Outra nota a Dostoievski, esse pobre e comovente ridículo dos

humildes.)” (PEREIRA, 1935, p. 6, col.5-6). Sobre essa última caracterização do escritor russo

“esse pobre e comovente ridículo dos humildes”, que aproxima Salgueiro das personagens de

Dostoiévski, era também um traço comum nos romances brasileiros de 1930, nos quais havia

um protagonismo dos personagens pobres, mostrados como vítimas das injustiças sociais. Por

isso na produção dessa época “os escritores — mas não só eles, os leitores também —

mergulharam na vida brasileira em toda sua amplitude, seja geográfica, seja social. Todas as

classes interessavam, todos os lugares, todas as raças, todos os sexos” (BUENO, 2006, 2014).

Eduardo de Assis Duarte, em Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996), ao

tratar do personagem Balduíno, do romance Jubiabá (1935), caracterizado como proletário e o

primeiro herói negro da literatura brasileira, acaba ressaltando uma característica do percurso

do personagem de Jorge Amado que se aproxima ao de Geraldo, como foi observado por Bueno

(2006). Ambos os personagens através de seus atos “tocam para frente” os seus respectivos

destinos. Essa característica dos dois personagens é contraposta a de Ricardo (Moleque Ricardo

Page 76: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

73

(1935), de José Lins do Rego), porque ele acaba “regredindo ao invés de tocar para a frente o

seu destino” (DUARTE, 1996, p. 108)

O significativo é notar que esse herói negro anterior a Balduíno não foi criado

por um autor de esquerda, entusiasta do romance proletário, e sim por um

autor católico, Lúcio Cardoso, e justamente no romance em que se vê com

clareza seu ingresso na fileira dos ditos intimistas. Trata-se de Geraldo,

protagonista de Salgueiro, publicado um pouco antes de O moleque Ricardo,

que foi posto a venda no início do segundo semestre de 1935, e de Jubiabá,

que saiu apenas no final do ano. (BUENO, 2006, p. 275, grifos do autor)

Para mostrar as aproximações e os distanciamentos de Salgueiro da estética

naturalista, cita-se a perspectiva de Afrânio Coutinho (1995) sobre o naturalismo:

A palavra Naturalismo é formada de natural+ismo, e significa, em filosofia, a

doutrina para a qual na realidade nada tem um significado supernatural, e,

portanto, as leis científicas, e não as concepções teológicas da natureza, é que

possuem explicações válidas; em literatura, é a teoria de que a arte deve

conformar-se com a natureza, utilizando-se dos métodos científicos de

observações e experimentação no tratamento dos fatos e das personagens.

(COUTINHO, 1995, p. 188)

Na citação de Coutinho, percebe-se que há tanto aproximações como distanciamentos

dessa noção de Naturalismo, pois o romance em análise aproxima-se tanto das concepções

teológicas, como é o caso de Geraldo, aquele que superou o meio através da crença em Deus;

como também ressalta-se a presença da ação das “leis científicas”, pois temos personagens que

realmente são levados pelo meio, tais como Seu Manuel, Rosa, José Gabriel, Marta e Veva.

A justificativa da superação do determinismo através da religiosidade e das forças

ocultas, algo considerado sobrenatural, é também salientada por Pereira:

E basta notar a diversidade das forças que atuam sobre esses pobres seres para

se ver que Salgueiro é um livro complexo, onde a presença do mistério, do

sobrenatural, introduz uma dimensão a mais. Uma dimensão que não estamos

habituados a ver nos romances brasileiros. Apanha o homem na sua realidade

completa, e não apenas na sua realidade visível. Há uma evasão para cima,

para o alto, aberta aqueles que, como Geraldo, não se contentam em comer e

amar, mas tentam lutar contra a fatalidade que os domina. Esses são, aliás, os

únicos desambientados. Os outros, bem ou mal, vão carregando o seu destino.

Sua vida é horrível, mas estão atolados nela até a alma. (PEREIRA, 1935, p.

6, col. 4-5)

Mesmo tendo a força do espaço determinante no destino dos personagens, aqueles que

creem na figura divina conseguem superar essa força, aqueles que não demonstram crer são

vítimas dos cerceios do morro: “O morro, com a sua promiscuidade, com a sua imundície,

domina a todos e limita o seu horizonte.” (PEREIRA, 1935, p. 6, col. 5)

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74

Outro diferencial de Salgueiro com relação a outros romances, conhecidos como

romance de 1930, é que os personagens possuem uma vida interior bem desenvolvida,

diferentemente, por exemplo, do personagem Antônio Balduíno, do romance Jubiabá, de Jorge

Amado:

Se o proletário de Jorge Amado não tem vida interior, sua psicologia se

desenvolvendo de modo muito implícito, o proletário de Lúcio Cardoso se

debate em uma movimentada vida interior que tem a tendência de eclipsar as

causas sociais de sua pobreza. (BUENO, 2006, p. 281)

Como bem observou Adelto Gonçalves (2009), Bueno considera proletário não apenas

o trabalhador do lúmpen marxista, mas também “o mendigo, o marginalizado, ou seja, o pobre

em geral”. Por esse motivo, Geraldo estaria incluído como protagonista de um romance

proletário, pois se fosse levada em consideração apenas a noção marxista de proletário ele não

estaria incluso, pois ele não trabalhava. No caso de Geraldo há um diferencial, pois as causas

de ele ser daquela maneira não são abordadas apenas de forma exterior, apenas como reflexo

do meio social em que vive, daí a sua superação ao determinismo, pois sua vida interior

prevalece, o que o torna um personagem mais profundo.

A presença do elemento divino atua como fator fundamental para a “salvação da alma”

de Geraldo, sendo esse um aspecto que distancia o romance do Naturalismo. Desse modo,

percebe-se que, fazendo Geraldo encontrar um novo caminho fora do morro para a sua vida,

caminho esse indicado pela presença de Deus, o romance acaba por “romper as amarras” da

teoria científica Determinista.

Assim constata-se o distanciamento do naturalismo e a aproximação de aspectos das

estéticas literárias romântica e simbolista, que foi uma retomada empreendida pelo romance

intimista do século XX, à medida que toca nas especificidades do indivíduo, ao representar as

suas reflexões. Essa aproximação se justificaria pela presença desse aspecto mais místico e

religioso no que diz respeito à alteração do destino do personagem. Desse modo, tem-se uma

confluência de estéticas, representada pela ambivalência entre o coletivo e o individual, o que

permite afirmar que Salgueiro é uma obra de transição na produção literária de Lúcio Cardoso,

já que nas suas obras posteriores, especificamente a partir de A luz no subsolo (1936),

percebe-se o predomínio da narrativa intimista, estilo que se tornou traço peculiar na obra

ficcional do autor.

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75

Capítulo 3 – Crônica da casa assassinada: o ápice do intimismo na narrativa romanesca

de Lúcio Cardoso

3.1 Sinopse do romance

A obra Crônica da casa assassinada não é dividida em três partes, como é comum

encontrarmos nos demais romances de Lúcio Cardoso. Ela é estruturada em diversos gêneros:

diários, cartas, narrativas, confissões, depoimentos, livro de memórias e pós-escritos que são

entremeados durante o romance. Os personagens, que em sua maioria também são narradores,

realizam durante o desenrolar da trama uma espécie de desconstrução não intencional do

discurso um dos outros, pois cada um deles apresenta a sua perspectiva sobre o mesmo fato: a

decadência da família Meneses que ocorreu aproximadamente na primeira metade do século

XX. O que se sabe sobre Demétrio e Alberto é o que os outros dizem sobre eles, o máximo que

se pode encontrar é a citação em discurso direto de suas falas, mas sempre dentro de um texto

de autoria de outro personagem, pois no romance não há nenhum capítulo escrito por eles.

Esse declínio foi causado tanto por uma má gestão da propriedade rural da família, que

arruinou as suas finanças e resultou na destruição física das estruturas da chácara, conhecida

como “Chácara dos Meneses”, quanto pela degradação moral que tem como ponto crucial o

casamento de Valdo Meneses com Nina, uma meretriz do Rio de Janeiro.

Esse processo de decadência é representado nos discursos de alguns

personagens/narradores por meio das descrições da Chácara em ruínas, em contraposição ao

discurso saudosista dos tempos áureos que vai surgindo de vez em quando nas lembranças de

alguns deles, como Valdo, um dos irmãos Meneses, e Betty, governanta da casa desde a época

em que Malvina Meneses, a matriarca da família, ainda era viva.

A Chácara dos Meneses se localizava em Vila Velha, cidade ficcional do interior de

Minas Gerais. Os Meneses eram uma família tradicional da cidade e boa parte dos comentários

de seus moradores tinham eles como tema principal. Quando chegou a notícia de que Valdo

havia se casado com uma mulher no Rio de Janeiro, os moradores da cidade ficaram indagando

quem seria essa mulher misteriosa. A notícia da chegada de Nina à Vila Velha também causou

muita expectativa na cidade, muitas pessoas ficaram na estação de trem esperando-a chegar,

porém Nina adiou a sua chegada e no dia em que ela desembarcou na estação não havia ninguém

para recebê-la. Ao chegar à Chácara, Nina chamou a atenção de todos pela sua beleza, tanto

dos moradores da propriedade, quanto do farmacêutico e do médico que prestavam serviços aos

Meneses.

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André, Nina, Demétrio (irmão mais velho), Valdo Meneses (irmão do meio), Aurélio

dos Santos (o farmacêutico), Betty (a governanta), Dr. Villaça (o médico), Ana (esposa de

Demétrio), o Coronel, Padre Justino e Timóteo Meneses (irmão mais novo) são as

personagens que também são narradoras do romance, enquanto que Demétrio Meneses, o

irmão primogênito da família e Alberto (o jardineiro) não possuem textos de autoria deles,

como dissemos anteriormente.

É compreensível que Alberto não tenha textos de sua autoria no romance, pois ele é um

personagem secundário, mas Demétrio ser o único dos irmãos Meneses que pouco tem voz,

mesmo sendo o primogênito, é de se estranhar. Ele é o único dos descendentes dos Meneses

que não teve os seus textos selecionados pelo autor implícito5 para compor a narrativa da

família, além do mais, nem se sabe se ele escreveu algo, pois no discurso dos outros narradores

eles não chegam a fazer nenhuma menção nem a cartas de sua autoria. Mas analisando o

personagem mais profundamente, ele é o irmão mais ligado à tradição patriarcal, e é justamente

essa tradição que as personagens Ana, Timóteo e Nina queriam assassinar.

Na edição crítica de Crônica...6 , há menção aos manuscritos de Lúcio Cardoso quando

ele produzia o romance e num desses materiais Cardoso escreveu que: “Demétrio: não fala, não

tem voz, como a casa.” (CARDOSO, 1996, p. 614)7

Assim, arruinar a casa, símbolo dessa imponente família tradicional de Vila Velha, seria

a metonímia da destruição da tradicional família mineira. Silenciar Demétrio, o representante

dessa tradição, seria uma espécie de metáfora para representar a decadência do discurso

patriarcal que estava em curso no período que Crônica.. focaliza.

Demétrio é a representação do patriarcalismo, da manutenção da tradição de uma

organização social que estava em decadência. Esse declínio do patriarcado tem os seguintes

símbolos na narrativa: a maneira falha em administrar os bens da família que acabou ruindo a

fortuna deixada pelos seus pais; as personagens femininas Ana e Nina que romperam com a

autoridade masculina por meio do adultério; e a desconfiguração do homem másculo, símbolo

do patriarcalismo, representado na figura de Timóteo com seus trejeitos e hábitos afeminados.

No período focalizado pela narrativa, manter uma propriedade do tamanho da Chácara

Meneses não era mais vantajoso, pois, na década de 1930, a região do centro-sul do Brasil

5 Utilizamos o conceito de autor implícito de Wayne Booth, em específico no aspecto que considera o autor

implícito como um alter ego do autor empírico. Esse conceito será mais bem delineado no item 3.3 deste capítulo. 6 Desde ponto em diante, iremos nos referir ao romance Crônica da casa assassinada apenas pela primeira palavra

que compõe seu título e reticências: Crônica... . 7 Citação presente na edição crítica que reuniu as variantes da escrita de Crônica , publicada na primeira edição,

em 1991, e na segunda edição, esta que citamos, em 1996.

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77

estava iniciando o seu processo de industrialização e aos poucos o êxodo rural foi se

intensificando, dando lugar a urbanização. Na literatura brasileira, temos o conjunto de seis

romances de José Lins do Rêgo que narram essa crise latifundiária: Menino de Engenho (1932),

Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto

(1943).

A desobediência feminina das personagens Ana e Nina começa a partir do momento em

que elas cometem adultério, ambas com o mesmo homem: Alberto, o jardineiro. As duas

também engravidaram mais ou menos no mesmo período de Alberto e enganaram toda a família

sobre quem eram os verdadeiros pais de André.

Seguindo linguagem de Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (2014), o macho

ostentava poder sobre a fêmea, que eram considerados respectivamente o “sexo forte” e o “sexo

fraco”. Uma mulher enganar seu marido como Nina e Ana fizeram é um claro ato de

representação do declínio do poder patriarcal, pois demonstra a desobediência do sexo feminino

ao sexo masculino.

Em Salgueiro, apesar de não haver essa discussão mais direta sobre o patriarcalismo, é

possível perceber que as personagens Marta e Rosa transgrediram a ordem masculina. Inclusive

devido a influência do naturalismo no romance, as denominações de macho e fêmea são bem

adequadas para representar essas relações de poder entre José Gabriel e Marta, sua irmã, e Rosa,

sua amante. Marta começou se prostituir com o intuito de envergonhar seu irmão e Rosa ao

desobedecer Zé Gabriel acabava sendo violentada por ele, como analisamos no capítulo anterior

desta tese.

Outro aspecto da narrativa que contribui significativamente para representar a queda do

modelo patriarcal é Timóteo: um homem com trejeitos afeminados, que usava roupas, joias e

maquiagem exagerada. A reclusão de Timóteo em seu quarto foi a maneira que ele encontrou

de não arriscar ser deserdado, pois foi ameaçado por Demétrio a perder a sua respectiva parte

nos bens da família, caso continuasse levando uma vida de farras, como mencionou Ana em

uma de suas confissões:

(Devo dizer, a bem da verdade, que Timóteo quase sempre chegava bêbado

em casa – um estroína autêntico, que dilapidava o dinheiro deixado pelo pai,

zombando da usura dos irmãos e triturando-os com o seu desprezo.) (8.

Primeira confissão de Ana, p. 105)8

A reclusão de Timóteo também era cômoda para os seus irmãos Demétrio e Valdo, pois

8 Como durante toda a análise iremos manipular várias vozes achamos mais prudente, até para melhor

entendimento do leitor da tese, indicar em qual capítulo do romance o trecho citado está.

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era a maneira de escondê-lo como se ele tivesse uma doença contagiosa que envergonhava a

família:

[...] Timóteo sempre foi um temperamento esquisito, de hábitos fantásticos, o

que obrigou a família silenciar sobre ele – como se silencia uma doença

reservada (8. Primeira confissão de Ana, p. 104)

Tendo em vista esse processo de modificação no contexto sócio-histórico brasileiro, os

irmãos Meneses demonstraram não se adaptar essa nova realidade, como observa Rita das

Graças Félix Fortes:

Embora a história da Crônica se passe em um tempo impreciso da primeira

metade do século XX, a desgraça da Casa Meneses resulta, exatamente, da

incapacidade das personagens se integrarem ao seu tempo histórico e, por isso,

continuarem se comportando de acordo com as regras de um mundo já

proscrito. (FORTES, 2010, p. 88)

Demétrio apesar de não ensejar um título nobre, ansiava desde muito tempo receber a

visita do Barão de Santo Tirso, bem como a ser convidado a participar das reuniões na casa

dele, que era uma forma de se sentir incluído na alta sociedade de Vila Velha. Ainda quando

Ana estava sendo preparada para ser a esposa de Demétrio Meneses, ele chega a dizer a mãe

dela que: “A senhora sabe... receberemos um dia a visita do próprio Barão. Quero apresentar

uma esposa digna, alguém que possa ofuscar, pelas suas graças, essa Baronesa que trouxe de

Portugal” (8. Primeira confissão de Ana, p. 104). A visita do Barão só vai ocorrer no velório

de Nina e quando o nobre finalmente faz a tão esperada visita Chácara dos Meneses é

recepcionado pela cena tosca de Timóteo vestido com roupas femininas e suspenso numa rede

levada por quatro negros.

Para percebemos o quanto Demétrio era um sujeito deslocado do tempo em que vivia,

podemos começar pelo ar de superioridade que ele sustentava perante os moradores de Vila

Velha mesmo devendo a muitos dos comerciantes da cidade. Outro fator de deslocamento é que

ele ainda valorizava os títulos nobres da época do Império Brasileiro, quando na verdade após

a Proclamação da República, em 1889, os títulos aristocráticos perderam tanto o valor na

sociedade brasileira. Nessa época, não era mais necessário ser de uma família de alta estirpe

para obter um título nobre, bastava ter dinheiro para comprá-lo.

Sobre essa valorização de títulos de nobreza, esse tema também foi abordado em O

Cortiço, quando João Romão, mesmo sendo rico, sente a necessidade de ter um título nobre.

Para isso, ele negocia com Botelho, um agregado da família de Miranda, o casamento com

Zulmirinha, a filha de Miranda, com a finalidade de ser um Visconde.

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79

Os Meneses são remanescentes da sociedade rural escravocrata, que mesmo após a

abolição dos escravos ainda tratavam os empregados da casa por pretos ou negros, ou seja, não

eram tratados pela função que exerciam, mas pela cor da pele e pela raça. Vale a pena

mencionar, que dentro da propriedade dos Meneses havia um “antigo cemitério dos pretos” o

que para época denotava que a família possuía muitos escravos, o que significava ter muitas

posses. Mas devemos levar em consideração que as mudanças na sociedade são lentas e a

assinatura da Lei Áurea é apenas um marco do início da abolição da escravatura e que a partir

dela a situação do trabalho escravo aos poucos foi se modificando.

Assim como foi relatado na análise de Salgueiro, no capítulo anterior desta tese,

observou-se também essa abordagem racial, especificamente dos remanescentes da escravidão

que depois de libertos não tiveram o apoio do Estado, pelo menos no setor de habitação, o que

os levou a ocupar os territórios periféricos dos morros cariocas.

Com relação à decadência moral, ela estava em curso desde que Timóteo, segundo irmão

Meneses, iniciou suas farras exageradas, regadas a muita bebida e altos gastos, bem como a

falta de gestão dos bens da família por Demétrio e Valdo. Esses atos juntos dilapidaram a

fortuna deixada por Antônio Meneses, patriarca da família, curiosamente mencionado apenas

uma vez em todo o romance. Tanto Sr. Antônio Meneses, como a Sra. Malvina já haviam

falecido quando a história começa a ser narrada e os tempos primorosos da família Meneses

ficaram apenas na lembrança daqueles que as vivenciaram.

Se fosse narrada cronologicamente, a história se iniciaria com o casamento entre Valdo

e Nina, mulher que ele conheceu em uma das suas viagens ao Rio de Janeiro, mas na verdade

a história começa a ser narrada depois que ela morre, especificamente em seu velório.

Nina acreditava ter casado com um homem de família rica, como o próprio Valdo se

apresentou para ela, mas, para sua decepção, os Meneses estavam falidos e logo na primeira

refeição em família, Demétrio faz questão de ressaltar esse fato para a cunhada. Além disso,

ainda durante a refeição, Demétrio avisou que não havia ocasiões para se utilizar tantos vestidos

e chapéus que Nina trouxe em sua bagagem e que as mulheres da cidade de Vila Velha se

vestiam como Ana, esposa dele, que naquela ocasião estava com um vestido preto, desbotado

e fora de moda.

A partir da entrada de Nina para família, intensificaram-se os desentendimentos entre

os irmãos Demétrio e Valdo. Enquanto Timóteo ficava dentro de seu quarto tramando uma

vingança contra seus irmãos e com a chegada de Nina, ele a convidou para pactuar numa

conspiração para destruir de vez a família Meneses. Dentro de seu quarto, Timóteo se trajava

com vestidos femininos e ornamentava-se com as joias deixadas pela sua mãe, além de sempre

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80

estar com uma maquiagem feminina bem exagerada. Ele dizia a Betty e a Nina que estava

possuído pelo espírito de Maria Sinhá, uma antepassada da família que biologicamente nasceu

mulher, mas que se comportava e se vestia como homem, por isso era considerada uma

vergonha para família, assim como Timóteo.

Nina quando desfez as malas sentiu o impacto da vida na roça, pois as palavras de

Demétrio sobre a bagagem dela foram reforçadas pela governanta Betty, que lhe alertou que

em Vila Velha, não havia eventos para se utilizar tantos vestidos, capas e chapéus. Esse impacto

também foi sentido por Betty quando ela chegou à casa dos Meneses anos atrás e que ela relatou

em seu diário: “Lembrei-me de mim mesma, assim que chegara, sufocada pelo excesso de

folhagem que havia em torno – e os dias que passei, procurando adaptar-me àquele sistema de

vida, tão diferente do meu” (12. Diário de Betty (III), p. 141).

Nina estava muito insatisfeita com a sua vida: reclamava dos empregados, da casa, do

clima, enfim, não estava satisfeita com o novo ambiente, bem díspar da movimentação urbana

que ela estava acostumada no Rio de Janeiro.

A esposa de Valdo adorava violetas e exigia de Alberto, o jardineiro, que deixasse todos

os dias na janela de seu quarto um ramo delas. A partir do elo das violetas, eles acabam se

aproximando e envolvendo-se sexualmente. Apenas Ana, esposa de Demétrio, e Timóteo,

ambos por terem a mania de espreitar as janelas da casa, descobrem que Nina estava tendo um

caso com o jardineiro.

Tempo depois de sua estadia na chácara, Nina avisou aos membros da família que

estava grávida e Demétrio sugere que ela fosse para o Rio de Janeiro, alegando que lá ela teria

mais assistência para ter o bebê. Mas, Demétrio acabou flagrando Alberto ajoelhado diante de

Nina e beijando as mãos dela no Pavilhão, um dos compartimentos da Chácara que ficava

afastado da casa principal. Esse simples gesto era uma pequena parcela de algo maior e

Demétrio acabou ordenando que Nina e Alberto deixassem a Chácara. Diante desse fato,

Demétrio apressa a ida de Nina ao Rio de Janeiro e quando Nina diz que vai embora, Valdo

tenta tirar sua própria vida. Depois desse fato, outros fatos desastrosos começam a ocorrer: Ana

se envolve com Alberto e acaba ficando grávida; e pouco tempo depois de Nina deixar a

chácara, Alberto comete suicídio por se sentir rejeitado por ela.

Nina, deixou a chácara e voltou para o Rio de Janeiro, lá teve o seu filho e foi

reencontrar o Coronel Amadeu Gonçalves, único amigo de seu pai, que jogava cartas com ele.

O pai de Nina era um militar da guarnição de Deodoro que ficou paralítico após ser vítima da

explosão de uma granada. Em razão desse grave acidente, ele foi aposentado de suas atividades.

A mãe dela era atriz de teatro italiana, de segunda classe, que voltou para Europa ainda quando

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81

Nina era criança, deixando a responsabilidade da criação da filha apenas para o pai.

Pouco se sabe sobre o que Nina fez durante esses quinzes anos que ela passou no Rio

de Janeiro, pois no romance não há textos que relatem esse período que ela se ausentou da casa

dos Meneses.

Quinze anos depois de sua longa estadia no Rio de Janeiro, Nina decide retornar à

Chácara Meneses, na tentativa de reaver o convívio da família e encontrar apoio, pois estava

doente de câncer na mama. O retorno é malogrado, pois os conflitos entre ela e Demétrio

continuam, e para complicar ainda mais a situação ela acaba se envolvendo sexualmente com

André, seu suposto filho. Para a sorte de Nina, apenas Ana descobriu a existência desse

relacionamento, do contrário haveria um escândalo ainda maior.

O câncer de Nina foi progredindo rapidamente, os médicos consultados disseram que

não havia mais tratamento, pois, a doença estava bem avançada. Nina morre e durante o velório

ocorrem vários acontecimentos: Timóteo entra no velório dentro de uma rede suspensa por

quatro negros, vestindo roupas femininas e usando as joias deixadas por sua mãe,

acontecimento que chocando a todos os presentes; a Chácara finalmente recebe a visita do

Barão de Santo Tirso, tão esperada por Demétrio, que acabou presenciando essa cena

emblemática de Timóteo; Angélica, filha do Barão e com fama de afetada das faculdades

mentais, tem a ousadia de perguntar se Valdo não poderia doar as roupas da morta para as

meninas de um orfanato da cidade; ocorrem duas discussões: uma entre André e Valdo, que

faz André deixar a chácara definitivamente, e outra entre Valdo e Demétrio, sendo que desta

vez foi Valdo quem decidiu deixar a casa dos Meneses; e para completar, Timóteo acaba

passando mal e desmaia durante a sentinela. Não fica muito claro na narrativa o que ocorreu

com Timóteo depois desse desmaio e sobre Demétrio, também não foi mencionado o fim desse

personagem.

O fim definitivo da família Meneses ocorreu quando nenhum dos três irmãos Meneses

deixa algum descendente, pois no último capítulo uma verdade vem à tona: André é filho de

Ana e Alberto, e não de Valdo e Nina, como boa parte da narrativa leva o leitor a acreditar.

Como golpe final para o fim dos Meneses, a estrutura física da Chácara é saqueada pelo bando

de Chico Herrera, considerado um famoso cangaceiro da região e em seguida uma epidemia

devastou a cidade de Vila Velha para completar a destruição. Ainda nesse capítulo, Ana, a

única sobrevivente da família, em sua última confissão ao Padre Justino, revela que o verdadeiro

filho de Nina, provavelmente se chame Glael e talvez more no Rio de Janeiro. O filho de Nina

estar vivo e ela saber onde ele estava, contraria o que ela disse a Ana que jamais criaria um

rebento dos Meneses e que fez questão de transformá-lo em um bebê enjeitado. Não se sabe ao

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certo, quem realmente era o pai desse filho de Nina, pois na época ela se envolveu tanto com

Valdo, como Alberto e ainda há a possibilidade desse rapaz ser filho do Coronel Amadeus, pois

desde que Nina chegou à Chácara ela não aparentava estar com uma boa saúde, porque ela

apresentava sinais de alguma enfermidade, como percebeu Betty. Então, pode se levantar as

hipóteses de que ela ou estava grávida ou que ela já estava sentindo os primeiros sintomas do

câncer. Desse modo, a verdadeira paternidade do filho de Nina é uma incógnita que a narrativa

deixa em aberto.

3.2 Refletindo sobre a noção de crônica

Segundo Massaud Moisés (2004), o vocábulo crônica foi mudando de sentido ao longo

dos séculos. “Crônica” foi utilizada pela primeira vez ainda na era cristã e consistia numa lista

de acontecimentos apresentados numa sequência cronológica do tempo. Essa acepção atingiu o

seu auge na Alta Idade Média, depois do século XII. Com o passar do tempo, só eram

consideradas crônicas aquelas obras que narravam acontecimentos com mais riqueza de

detalhes e iam além de uma lista, como as obras de Fernão de Dias, no século XIV. Enquanto

os textos mais simples dessa época, que traziam efemérides, começaram a ser chamados de

“crônicões”. Desde o Renascimento, séc. XVI, “o termo ‘crônica’ começou a ser substituído

por ‘História’ ” (MOISÉS, 2004, p. 112.) e a noção de crônica que conhecemos hoje começa a

se delinear apenas no século XIX. Na noção atual de crônica, o escritor apresenta um tom maior

de sua personalidade literária, ou seja, a partir dela o seu autor pode refletir sua visão subjetiva

de um fato do cotidiano.

O gênero crônica é caracterizado pelo hibridismo, ou seja, pode incorporar

características de outros gêneros, tais como carta, notícia, poema, diário, livro de memórias,

conto, dentre outros. Transitando entre a literatura e jornalismo, a crônica tem um objetivo

comum: refletir sobre o cotidiano de um espaço, em uma determinada época.

No romance Crônica da casa assassinada, temos uma reunião de diversos gêneros como

o fim de remontar o que seria uma parte da crônica social da cidade de Vila Velha, em específico

os textos que correspondem a uma de suas famílias mais importantes: os Meneses.

No primeiro capítulo do romance, “1. Diário de André (conclusão)”, e aliás, no romance

inteiro, há apenas uma data, que inclusive não está completa, pois falta o mês e o ano: “18

de... de 19...” (CARDOSO, 2008, p. 19). É de suma importância afirmar que só conseguimos

inferir que ela se refere à morte de Nina ao lermos o capítulo “48. Diário de André (X)” e em

seguida o capítulo “1. Diário de André (conclusão)”, que cronologicamente estariam nessa

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sequência, mas aparecem bem distantes na organização dos capítulos, como se pode perceber

pelos seus respectivos números. Nota-se que a ordem de aparição dessas partes foi alterada

pelo autor implícito, como veremos mais detalhadamente na seção a seguir. Não só no “1.

Diário de André (conclusão)”, mas também nas outras partes do diário, da parte II a X, há

apenas a indicação do dia em que o personagem faz o registro no diário, mas não há a

informação do mês ou ano. Isso também ocorre nos capítulos que são compostos pelas partes

do “Diário de Betty”, que é dividido em cinco partes.

O tempo datado e minucioso é uma característica realista, especificamente o tom

documental, enquanto que em Crônica... temos a ruptura da linearidade cronológica tradicional,

pois o leitor só fica sabendo da passagem do tempo através de acontecimentos do próprio

enredo, como, por exemplo, a gravidez de Nina, o nascimento de André, a indicação da idade

de André, e o avanço da doença de Nina. No romance em análise, pouco se utiliza números

para precisar os fatos narrados, pois não sabemos após quanto tempo depois da chegada de Nina

à chácara ela começou a se envolver com Alberto; também não sabemos ao certo se ela chegou

à casa dos Meneses grávida ou se ela ficou grávida realmente depois que chegou Chácara e

após quantos meses. Todos esses artifícios utilizados pelo autor implícito acabam gerando um

clima de mistério sobre a narrativa, pois o leitor pouco tem certezas.

Em concordância com a perspectiva de Guy Besançon (1996): “[...] uma crônica é um

relato de uma série de acontecimentos importantes, como uma campanha militar ou uma

epidemia. No caso narra-se a queda da casa Meneses ou, mais exatamente, seu assassinato” (p.

690). Na perspectiva de Besançon, que utiliza a noção de crônica adaptada para o contexto

específico do romance Crônica..., estamos diante de uma obra formada por narrativas que

contam a história do declínio e “assassinato” dos Meneses, uma família tradicional mineira, da

cidade ficcional de Vila Velha. O sentido de “assassinato” estaria mais adequado à noção de

destruir, extinguir e aniquilar e não tirar a vida de um ser vivo, como é mais comumente

utilizado. Se bem que muitas vezes, assim como o morro foi personificado em Salgueiro, a casa

também foi personificada, como nesse trecho escrito pelo narrador Padre Justino:

Ainda tenho presente na memória a última vez em que a vi, quando ia meio a

triste epidemia que liquidou nossa cidade. A Chácara Meneses foi das últimas a

tombar [...]. Vejo-a ainda, com seus enormes alicerces de pedra, simples e

majestosa como um monumento em meio à desordem do jardim. A caliça já

tinha quase completamente tombado de suas paredes, as janelas, despencadas,

batiam fora dos caixilhos, o mato invadia francamente as áreas outrora limpas e

subia pelos degraus já carcomidos – e no entanto, para quem conhecia a

crônica de Vila Velha, que vida ainda ressumava ela, pelas fendas abertas,

pelas vias à mostra, pelas telhas tombadas, por tudo enfim que constituía seu

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esqueleto imóvel, tangido por tão recentes vibrações. (CARDOSO, 2008, p.

495)

Essa descrição da Chácara Meneses, nos faz lembrar de quando o cortiço de João Romão

foi incendiado pela personagem Bruxa, mas o Cortiço foi reconstruído e voltou com ainda mais

imponência, enquanto que a Chácara Meneses desapareceu de vez.

Voltando à discussão sobre o significado do título do romance, nas palavras do próprio

Lúcio Cardoso, citadas por Walmir Ayala: “No título, CASA está no sentido de família, de

brasão. ASSASSINADA quer dizer, atingida na sua pretensa dignidade, pelo pecado. Eis o

ponto nevrálgico do drama: o pecado.” (1963, p. 5)

Desta forma, a explicação de Cardoso parte de duas metonímias presentes no próprio

título do romance. A primeira seria “casa” representando algo mais amplo como símbolo de

uma família, bem como um brasão a representa; enquanto que “assassinada” se refere ao ataque

a moral da família, principalmente, numa perspectiva religiosa do pecado. Como exemplo, tem-

se Nina e Ana são condenadas à morte pelos pecados que cometeram em vida, dentre adultérios

e até um suposto incesto.

A família Meneses, por ser importante na cidade de Vila Velha, sempre fora bastante

comentada pelos moradores da cidade, como relataram o farmacêutico e o médico em suas

narrativas. Desde os tempos em que vivia a mãe dos irmãos Meneses, não faltavam comentários

sobre os eventos ocorridos nas dependências da propriedade da família que faziam parte da

“crônica social da Chácara”, como nomeou a personagem/narradora Betty (CARDOSO, 2008,

p. 115). Por esse motivo, a imponência da família, desde os tempos mais antigos, fez parte da

crônica da cidade de Vila Velha, como mencionou Padre Justino, no último capítulo do livro.

Desse modo, consideramos os Meneses uma metonímia da família mineira, daqueles

seres calados, que pouco falavam ou expressavam seus sentimentos. Era essa tradicional família

mineira que Cardoso queria assassinar em sua narrativa, caracterizada pelos ranços da tradição

provinciana.

A família Meneses é mencionada pela primeira vez na obra de Lúcio Cardoso em seu

primeiro romance Maleita e são descritos como “comerciantes em grosso da cidade de Curvelo”

(CARDOSO, 2005, p. 10). Seriam os mesmos Meneses que agora estavam instalados em Vila

Velha, mas em duas épocas diferentes? Em Maleita, eles estão no auge econômico, já em

Crônica... estão na decadência.

Lúcio Cardoso, em conhecido depoimento a Fausto Cunha, expressou o seu desejo em

mostrar o que realmente caracteriza a família mineira. Seu desejo era desnudá-la, mostrar bem

dentro de suas entranhas o que ela realmente é, expor uma verdade que se esconde por trás de

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muitos muros e máscaras

Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma

paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais.

O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra

Minas Gerais.

Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira.

Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de

vida mineira. Contra a fábula mineira. Contra o espírito judaico e bancário que

assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu espírito.

(CARDOSO, 1996, p. 764)

Com essas palavras, Lúcio Cardoso quer dizer que ele é contra a tradição que Minas

Gerais representa: “esse fundo poeirento de província mineira” (Timóteo no “4. Diário de Betty

I”, p.55). Esses valores morais tradicionais acabaram anulando uma mulher guerreira como

Maria Sinhá, que foi incompreendida por usar roupas masculinas e ter o comportamento de um

gênero que não era o seu de nascimento. Ela, assim como Timóteo, foi vista como uma vergonha

da família, por isso um quadro com a sua foto foi retirado de uma das paredes da Chácara e

esquecido em um galpão da casa levando poeira.

Nina é a novidade que surge na família Meneses e representa a ameaça da destruição

dessa tradição, quando ela diz “Eu não quero viver segundo o sistema do Sr. Demétrio” (“9.

Diário de Betty II”, p. 112). Demétrio por ser o irmão mais velho, era o guardião das tradições

da família. Até ele mesmo se sente ameaçado por Nina e mandá-la de volta para o Rio de Janeiro

é uma forma de negar esse espírito moderno que a urbe trouxe para a chácara. A primeira

desculpa de Demétrio em mandá-la de volta ao Rio, era que, segundo ele, nem em Vila Velha,

e nem nas cidades das redondezas, ela teria a assistência médica que precisava para ter o bebê;

e depois da cena que o primogênito dos Meneses flagrou entre Nina e Alberto, a volta dela ao

Rio foi ainda mais apressada.

Nina traz consigo os ares metropolitanos do Rio de Janeiro, capital federal brasileira na

época, com seus bailes, cinemas, teatros e outros eventos. Ela não era apenas uma mulher que

encantava os outros pela beleza física, mas os hábitos novos que ela trouxe fizeram com que

outros personagens começassem a se enxergar de uma forma diferente, como a própria Ana

que após se comparar com Nina se percebeu uma mulher com a feminilidade anulada:

Sei apenas que sinto o quanto em torno de mim as coisas são inóspitas e o

quanto eu mesma me converti num ser gelado e triste. Ah, como é difícil reunir

essas duas palavras – gelado e triste – compreendendo que elas correspondem

exatamente ao que existe dentro de nós, a essa coisa pesada, insensível, em

que se converteu nosso coração. Muitas vezes sucede-me parar diante do

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espelho, e olhar de um modo quase brusco a minha figura. Sou eu mesma, não

há nenhuma dúvida, porque o vulto se movimenta assim e eu me movimento,

e traja antigas roupas sem graça que eu conheço tão bem, e que são

invariavelmente as minhas, com as minhas mãos, meus olhos, minha boca.

Apesar de tudo, no primeiro instante não posso deixar de indagar com certa

curiosidade: de quem é aquele rosto? E aos poucos, com uma lentidão onde há

visível crueldade, vou recompondo a fisionomia que conheço tão bem, e que,

é inútil dizer quanta repulsa me causa. Ah, como me detesto, como me

desprezo, que tremenda hostilidade interna delineia minha figura exterior.

Aquela saia cor de rapé, aquela blusa desbotada e sem nenhum enfeite, aquele

modo relaxado de pentear os cabelos, são a prova do quanto considero a minha

pessoa mesquinha e vil. (27. Terceira confissão de Ana, p. 270)

Assassinar a casa não é apenas derrubar a sua estrutura física, é matar as tradições que

a família tradicional de Minas Gerais representa. Não deixar descendentes é outra metáfora da

interrupção da tradição patriarcal, que por muitas vezes se mostrou tão danosa que anulou a

feminilidade de Ana, e que aniquilou a personalidade de Maria Sinhá e Timóteo.

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3.3 O papel do autor implícito na organização do romance

A obra Crônica da casa assassinada é estruturada nos diversos gêneros e suportes já

citados, bem como não é dividida em três partes, como em Salgueiro, analisado no capítulo

anterior, e nos demais romances de Lúcio Cardoso: Maleita, A luz no subsolo e Dias Perdidos.

Essa recorrência do número três na obra romanesca de Lúcio Cardoso, ocorre desde a

preferência por dividir os romances em três partes, passando pelo ensejo de fazer trilogias –

apesar de muitos de seus projetos não terem sido concretizados – além da presença constante

da ideia da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, elementos sagrados que aparecem

em contraste ao pecado dos triângulos amorosos: Rosa, Zé Gabriel e Teresa-Homem, em

Salgueiro; 1. Valdo, Nina e Alberto; 2. Valdo, Nina e Coronel Amadeus; 3. Valdo, Nina e

André; 4. Ana, Demétrio e Alberto, em Crônica... .

Retomando o que dissemos no capítulo anterior, com relação à divisão dos capítulos de

Salgueiro, cada uma das três partes desse romance representa uma das gerações da família: o

avô, o pai e o filho, que tem como intuito contar a história respectivamente de Seu Manuel, José

Gabriel e Geraldo. Enquanto em Crônica... a tríade se repete, porque os irmãos Meneses

também são em número três: Demétrio, Valdo e Timóteo.

Voltando à análise específica de Crônica... , além da variedade de gêneros, outro aspecto

interessante é a disposição deles durante a narrativa, pois a impressão que se tem é que alguém

definiu a ordem em que as partes deveriam aparecer. Mas esse alguém não seria especificamente

Lúcio Cardoso, o “autor empírico”, seria na verdade o que Wayne Booth, chama de “autor

implícito”:

Enquanto escreve, o autor não cria, simplesmente, um “homem em geral”,

impessoal, ideal, mas sim uma versão implícita de “si próprio”, que é diferente

dos autores implícitos que encontramos nas obras de outros homens. [ ]

Como diz Jessamyn West, por vezes é como se “só escrevendo a história o

romancista pudesse descobrir não a sua história, mas o escritor, o escriba

oficial, por assim dizer, para essa narrativa.” (BOOTH, 1980, p. 88)

Esse papel de escriba do autor se renova a cada obra que ele escreve, é como se a cada

nova obra ele criasse um novo alter ego de si mesmo para contar aquela história em específico.

Mas essas versões que o “autor empírico” cria para si próprio não são totalmente independentes,

pois a perspectiva ideológica do autor sempre estará nas entrelinhas de seus textos, denotando

a sua visão de mundo.

No caso de Lúcio Cardoso, em Salgueiro, o autor implícito apresenta uma versão de si

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através de um narrador onisciente que, por vezes, chega a expressar a sua opinião sobre os atos

e a personalidade dos personagens da narrativa. Enquanto que em Crônica... , o autor implícito

não é tão direto, pois sua ação na narrativa ocorre por meio da organização do material coletado

dentre as memórias da família Meneses e dos depoimentos colhidos.

Em Salgueiro, a história vai sendo narrada logo após os acontecimentos ocorrerem, o

que se pode perceber pelo predominante uso do pretérito perfeito. Em Crônica... , quando

estamos diante dos suportes diário e livro de memórias, e dos gêneros confissão e carta, ocorre

a preponderância do pretérito perfeito, porque o intervalo entre o acontecimento e a escrita é

mais curto. Em alguns momentos, é utilizado o presente do indicativo, quando, por exemplo,

há reflexões filosóficas pelos narradores – como no “Diário de André (conclusão)”: “O que é a

morte?” e em duas das confissões de Ana: “O que é a verdade?” – e, também, quando há a

transcrição de diálogos entre os personagens.

Há uma variedade maior de tempos verbais, quando os narradores, como o farmacêutico

e o médico, relatam os acontecimentos com uma maior distância no tempo, por isso utilizam

predominantemente o pretérito imperfeito e, por vezes, o pretérito mais-que-perfeito, bem como

adjuntos adverbiais de tempo que indicam uma distância significativa entre os acontecimentos

e o momento em que eles estão sendo trazidos para a diegese, como no seguinte trecho:

“Naturalmente não me é fácil desenterrar essas figuras, pois elas se acham visceralmente presas

ao que eu próprio fui, às minhas emoções daquele tempo” (“Cap. 13. Segunda narrativa do

médico”, p. 144, grifo nosso).

Nesse romance em específico, o autor implícito não tem uma voz delimitada, nem

mesmo através de um narrador, pois cabe a alguns personagens assumirem também essa função.

Liberado da função de narrador, o autor implícito atuou em decidir a ordem em que o material

coletado iria aparecer no romance, bem como quais partes ele iria suprimir para contar a sua

versão história.

Diga-se versão, porque quando o autor implícito opta por não incluir na narrativa

algumas das cartas que são mencionadas pelos narradores9, ele apresenta ao leitor a versão da

história que lhe conveio. Essa foi a forma de manter o mistério sobre a existência do verdadeiro

filho de Nina: Glael. Sendo também uma estratégia narrativa encontrada pelo autor implícito

para manter o clima de mistério e incerteza sobre a existência do incesto entre Nina e André.

A atuação do autor implícito também se manifestou na escolha do que seria o primeiro

9 Como a que Ana enviou para Nina, quando ela estava perto de dar à luz ao bebê que esperava (“56. Pós-escrito

numa carta de Padre Justino), ou quando ele não revela para o leitor o conteúdo da carta que Nina escondeu de

André, Valdo e Ana, bem como outras cartas que são mencionadas, mas que não foram incluídas no romance.

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capítulo do romance, que é a última parte do diário de André: “1. Diário de André (conclusão)”,

que cronologicamente equivaleria a 11ª parte de seu diário. Se fosse seguida a ordem sequencial

dos fatos, essa parte do diário de André estaria entre os últimos capítulos do romance, pois

nessa parte são mencionados os momentos finais do velório de Nina, que só vai ser apresentada

uma outra versão entre os capítulos 51 e 55, pelos personagens/narradores Valdo e Timóteo.

Outro exemplo dessa manipulação do material, seria a fragmentação, que aparenta ser

proposital, da “Segunda narração do Padre Justino” e da “Terceira confissão de Ana”, com o

intuito criar uma tensão, pois esses dois textos foram fragmentados em três partes cada um e

apresentados da seguinte forma entre os capítulos 27º e 33º:

27. Terceira confissão de Ana 28. Segunda narração de Padre Justino

29. Continuação da terceira confissão de Ana

30. Continuação da segunda narração de Padre Justino 31. Continuação da terceira confissão de Ana

32. Fim da narração de Padre Justino

33. Fim da terceira confissão de Ana

O autor implícito poderia simplesmente apresentá-las sequencialmente e em sua

integridade, mas talvez se assim o fizesse tornaria a narrativa mais próxima da tradicional, que

segue uma cronologia linear, bem característica dos romances realistas oitocentistas, como O

Cortiço, e os neonaturalistas brasileiros da década de 1930, como Maleita e Salgueiro. Assim,

a opção propositalmente encontrada por ele acaba interrompendo o fluxo de raciocínio do

leitor que nessa alternância pode acabar se perdendo na leitura, caso não esteja bem atento.

Nos primeiros dois romances de Cardoso, Maleita e Salgueiro, a focalização é fixa,

especificamente no primeiro é autodiegética, e no segundo, heterodiegética, por isso uma única

voz se sobressai das outras. Enquanto em Crônica..., deu-se lugar as múltiplas vozes que

possuem um grau equivalente e a focalização é variável e múltipla, cabendo ao autor implícito

ser o regente dessas vozes.

As noções de “ponto de vista” e “foco narrativo” eram utilizadas tanto pela crítica

europeia, quanto pela crítica norte-americana, sendo essa segunda representada por Norman

Friedman, no texto clássico “The point of view in fiction: the development of a critical concept”

(1955). Nesse texto, Friedman apresentou oito possibilidades de ponto de vista que podem ser

assumidos na narrativa: 1. Narrador onisciente intruso; 2. Narrador onisciente neutro; 3. “Eu”

como testemunha; 4. Narrador protagonista; 5. Onisciência seletiva múltipla; 6. Onisciência

seletiva; 7. O modo dramático; 8. A Câmera.

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O narrador de Salgueiro se adequaria ao ponto de vista do “narrador onisciente intruso”,

porque além de ter acesso aos pensamentos dos personagens, ele também opinava sobre

algumas das atitudes deles. Mas em Crônica... devido a variabilidade de narradores e pontos

de vista variados que eles assumem no decorrer da narrativa, a classificação de Friedman se

apresenta incapaz de abarcar tal complexidade. Por isso, consideramos que a designação de

“focalização”, proposta por Gérard Génette (1979), é a mais adequada do que a de “ponto de

vista” para analisar o romance em estudo neste capítulo.

Em Crônica..., cada personagem é construído pela percepção que ele tem de si mesmo

e a que os outros tem dele. Não há uma versão única de cada personagem, como a que se tinha

com o narrador onisciente de Salgueiro. Para compor essa variedade de vozes de Crônica... ,

cada personagem/narrador utiliza pelo menos um suporte ou um gênero textual para se

expressar na narrativa. André e Betty utilizam diários; Timóteo redigiu seu “Livro de

Memórias”; e juntam-se a esses suportes os seguintes gêneros textuais: as cartas que Valdo e

Nina trocaram; os depoimentos que Valdo e o Coronel prestaram a uma pessoa provavelmente

do gênero masculino; além das confissões de Ana; as narrações do Padre Justino; as narrativas

do farmacêutico e do médico; e principalmente o pós-escrito na carta de Padre Justino, que foi

colocado como último capítulo do romance e traz reviravoltas sobre a questão do possível

incesto entre Nina e André.

Nina quando escreve cartas para Valdo, mostra apenas uma de suas versões: a de esposa

fiel, que estava passando por um momento delicado em sua saúde e precisava do aconchego da

família. Ela afirmava que tinha muitos amigos no Rio de Janeiro, mas não confessava para ele

que na verdade esses seus supostos amigos, eram na verdade seus amantes. Porém, basta Nina

mudar de interlocutor que alguns assuntos são abordados de outra forma. Quando Nina

conversava com Ana, sua cunhada, ela apresentava a sua faceta de adúltera e desprezava um

possível rebento dos Meneses.

Sobre essa mudança de tom nas cartas de Nina, a perspectiva de Vitor Manuel Aguiar e

Silva (2009) nos ajuda a compreender essa variação: “Nos romances epistolares constituídos

por cartas de várias personagens, a focalização é variável e múltipla, pois cada personagem

apresenta, segundo o seu caráter, os seus interesses, o destinatário da sua missiva etc” (p.784)

Ainda sobre esse mesmo tema, Booth também nos traz uma interessante reflexão:

Tal como as cartas pessoais de cada um de nós implicam diferentes versões de

nós próprios, dependendo das diferentes relações que temos com cada

correspondente e da finalidade de cada carta, o escritor assume ares diferentes,

dependendo das necessidades de cada obra. (BOOTH, 1980, p. 89)

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91

Na narrativa há apenas duas menções sobre quem estaria coligindo essas memórias da

família Meneses. A primeira menção só ocorre no Capítulo “24. Terceira narrativa do médico”,

quando no início Dr. Vilaça diz:

... E finalmente concordo em narrar o que presenciei naquela época, apesar de

serem fatos tão antigos que provavelmente já que não existe mais nenhum dos

personagens que neles tomaram parte. Bem pensado, é talvez este o motivo

que me leva a usar a pena, e se a letra parece aqui ou ali pouco mais tremida, é

que a idade não me permite escrever com a facilidade de outros tempos, e nem

a memória é tão pronta a acudir ao meu chamado. No entanto, creio poder

precisar exatamente o dia a que exatamente o dia a que o senhor se refere.

Neste ponto, suas indagações são uteis, pois obrigam-me a situar lembranças

que flutuam desamparadas ao sabor da memória. (CARDOSO, 2008, p. 243,

grifo nosso)

Nessa terceira narrativa, percebe-se que o médico tem um destinatário específico

quando se dirige a ele por “senhor”. A pista que temos é que se trata de uma pessoa do sexo

masculino e que ela colheu essa narrativa, que mais parece um depoimento, num tempo bem

posterior à existência dos membros da família Meneses, tanto pelo uso do adjunto adverbial de

tempo “naquela época”, como pela observação feita pelo próprio médico de que os fatos são

bastante antigos, pois ele supõe que nenhum dos envolvidos estaria vivo no momento em que

ele prestava aquele depoimento. Outro aspecto peculiar é que o médico responde aos

questionamentos de maneira escrita e não oralmente, por mencionar que utilizava a pena e que

a sua letra poderia sair trêmula devido a idade. É habitual nos depoimentos que o interrogador

questione o interrogado de maneira oral e que o próprio interrogador ou um terceiro faça o

registro escrito. Só que neste caso é o próprio interrogado quem escreve, o que leva a crer que

Dr. Villaça recebeu esses questionamentos de maneira escrita, pois da forma como ele os

produz, parece que seu texto está sendo direcionado por perguntas específicas, como “o dia a

que o senhor se refere”; e por um outro texto anterior que suscitou a escrita desta terceira

narrativa: “suas indagações são uteis”.

Outro personagem que também parece estar sendo interrogado é o farmacêutico: “Meu

nome é Aurélio dos Santos, e há muito tempo que estou estabelecido em nossa pequena cidade

com um negócio de drogas e produtos farmacêuticos.” (CARDOSO, p. 45). Mas Aurélio não

chega a se referir em suas narrativas por nenhum vocativo a esse autor implícito, porém

percebe-se que as suas narrativas parecem estar sendo guiadas por questionamentos prévios,

assim como as do médico. Essa mesma pessoa que dialoga com o Dr. Villaça é provavelmente

a mesma com a qual o Padre Justino se refere como aquela que “colige tais fatos” (p. 495), no

último capítulo do livro. O interessante é que uma menção direta a essa pessoa ocorre no

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92

capítulo 24, como dissemos acima, e no capítulo 36, ou seja, em pontos bem distantes, que

exigem uma grande atenção de quem lê o romance para estabelecer essas conexões. Observa-

se que enquanto o médico se refere diretamente a um sujeito do sexo masculino, já que utiliza

o pronome “senhor”, o padre já se refere por “essa pessoa”, o que acaba não fechando a ideia

do gênero dessa pessoa, se é masculino ou feminino. Mais à frente, quando o padre se refere ao

seu interlocutor por “meu amigo”, se esvai a dúvida sobre o gênero dessa pessoa: “Creio, meu

amigo, que estamos atingindo o cerne de toda história.” (p.500):

Sim, resolvi atender ao pedido dessa pessoa. Não a conheço, nem sequer

imagino por que colige tais fatos, mas imagino que realmente seja premente o

interesse que a move. E ainda mais do que isto, acredito que qualquer que seja

o motivo desta premência, só pode ser um fato abençoado por Deus, pois a

última das coisas a que o Todo-Poderoso nega seu beneplácito é a eclosão da

verdade. Não sei o que essa pessoa procura, mas sinto nas palavras com que

solicitou meu depoimento uma sede de justiça. E se acedo afinal – e

inteiramente – ao seu convite, é menos pela lembrança total dos

acontecimentos – tantas coisas se perdem com o correr dos tempos... – do que

pelo vago desejo de restabelecer o respeito à memória de um ser que muito

pagou nesse mundo, por faltas que nem sempre foram inteiramente suas. (56.

Pós-escrito numa carta de Padre Justino, CARDOSO, 2008, grifo nosso, p.

495)

Outro momento de interação entre o padre e o seu interlocutor desconhecido ocorre

neste outro trecho: “Está vendo, está assistindo plenamente ao levantamento das linhas

essenciais do romance?” (CARDOSO, 2008, p. 501, grifo nosso); “Preste bem atenção, que eu

nada tento amenizar – apenas, e como disse mais acima, procuro restabelecer o respeito à

memória de um ser que muito pagou neste mundo por faltas que nem sempre foram inteiramente

suas.” (CARDOSO, 2008, p. 502, grifo nosso). Esse ser a quem o padre se refere é Ana que, foi

preparada desde criança para ser esposa de Demétrio Meneses; que teve toda a sua feminilidade

apagada em roupas feias; que teve qualquer possibilidade de vaidade aniquilada, como cuidar

de seus cabelos, por não ter o direito de cortá-los ou penteá-los; que não tinha direito voz, por

ser mulher; e que nunca conseguiu amar seu marido: “Sempre me dera bem com o meu marido,

apesar de não amá-lo. [...] Não o amava, repito, nunca o amei, algumas vezes cheguei a detestá-

lo – esta é a triste verdade.” (8. Primeira confissão de Ana, p. 106)

As interferências desse autor implícito acabam construindo uma narrativa não-linear, no

que diz respeito à sequência cronológica dos fatos. As supressões que ele faz ao utilizar linhas

pontilhadas contínuas e reticências entre algumas falas, possivelmente foi a forma que ele

encontrou para representar as partes que estavam faltando no diário ou na carta, porque

poderiam estar danificadas, ou foi a maneira que ele achou para especificar o que ele quis omitir

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da narrativa, ou, ainda, o que ele não julgava necessário para compreender a história de Ana.

Ana foi uma vítima do patriarcalismo que anulou não só ela, mas também outras

personagens da história da família Meneses, como Maria Sinhá e o próprio Timóteo. Ana pode

até ter cometido pecados, como o adultério e ter mentido por esconder de todos quem realmente

eram os pais de André, mas por tudo o que ela passou durante a sua vida, acabou sendo perdoada

pelo Padre Justino em sua última confissão, porque na verdade ela foi mais vítima do que algoz.

Talvez duas pessoas seriam as mais interessadas em saber a verdade: André e Glael. É

provável que um deles ou os dois tenham reunido esse material para expor a todos a verdade

tão perseguida por Ana. Teríamos mais indícios de que seria André do que Glael, porque Glael

é apenas mencionado, não é personagem. E Ana é a verdadeira mãe de André e nas discretas

pistas deixadas no decorrer do romance é possível provar seguinte hipótese: que a intenção de

Crônica... é mostrar não só o declínio da família tradicional mineira, mas também expor a

verdade ao revistar os fatos vividos por Ana que acabou sendo uma vítima do sistema patriarcal

e que teve durante toda a sua vida a sua identidade anulada.

Assim como o escritor norte-americano William Faulkner, Lúcio Cardoso tinha o hábito

de retomar personagens e espaços em suas produções narrativas seja nos romances, seja nas

novelas. Como dissemos anteriormente, a família Meneses vai ser mencionada na obra de Lúcio

Cardoso a primeira vez em Maleita e depois em Crônica da casa assassinada. Enaura

Quixabeira Rosa e Silva (2004), em Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira,

chega criar um quadro com as personagens significativas da obra cardosiana. Damos destaque

as personagens Angélica de Santo Tirso, Aurélio dos Santos, Chico Herrera, Padre Justino, e

em especial Ana Altiva de Oliveira Lara (Donana de Lara) e André, pois foram eles dois que

estabelecem o vínculo entre os romances Crônica... e O viajante, como veremos a seguir.

Na novela O enfeitiçado e Inácio, as personagens Inácio Palma e Rogério Palma

aparecem em ambas as histórias, o diferencial é que eles alternam o protagonismo. Em O

enfeitiçado o protagonista é Inácio, e Rogério é personagem secundária, enquanto em Inácio,

Rogério Palma é o protagonista que busca Inácio Palma, personagem secundária. No que diz

respeito aos espaços, a cidade de Vila Velha também aparece tanto em Crônica... , como em O

viajante.

No romance O viajante, obra que Lúcio Cardoso não chegou a concluir em vida, há um

personagem também chamado André, com os mesmos traços físicos do André de Crônica... .

Esse rapaz fez parte do bando de Chico Herrera, grupo que aparece tanto em O viajante como

em Crônica. Foi esse mesmo bando que invadiu a Chácara Meneses muitos anos depois da

morte Nina, quando apenas Ana era a última moradora da chácara. Supõe-se que André após

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94

fugir da casa dos Meneses se uniu ao grupo de Chico Herrera e alguns anos depois ele retorna

à chácara da família junto com o bando para saqueá-la. Provavelmente, é nessa situação que

André recupera o caderno em que escrevia seu diário, bem como recolhe todo o material para

confecção do livro: o Diário de Betty; as cartas trocadas entre Valdo e Nina, e entre Nina e o

Coronel; as confissões de Ana; o Livro de Memórias de Timóteo e os depoimentos de Valdo.

O que une o André de Crônica... ao André de O viajante é Donana de Lara, uma vizinha dos

Meneses que reaparece em O viajante. É ela um dos principais elos entre os dois romances:

Então, ante o seu silêncio, Chico Herrera gritaria para o homem louro: “Repare

bem, André, eu vi, foi esta mulher que atirou o filho pela ribanceira.” [...]

André, que se elevara o braço à altura do rosto como se o sol o cegasse, diria

apenas: “Eu sei, eu conheço essa mulher. É Donana de Lara.” E haveria em

sua voz uma calma, uma certeza que procederia sem dúvida de outros tempos

– onde – quando? Ela não sabia – mas que assim retinindo na rua deserta, só

relembrariam coisas que o passado já sepultara há muito. (CARDOSO, 1973,

p. 192-193)

Em Crônica... as pistas que levariam a crer que foi ele o organizador do romance seriam

as seguintes: André descreve que surpreendeu Nina remexendo em seus papeis e ela pergunta:

“– Que é isto? Um romance? Um diário?” (38. Diário de André (VII), 2008, p. 355); e a outra,

seria o último parágrafo desse mesmo capítulo, uma evidência que vincula com o jovem André

de Crônica... com o André mais maduro de O viajante:

(Escrito com a mesma letra à margem do caderno, tinta diferente: Tantos

anos passados, e eu ainda não esqueci. Amar, amei outra vezes, mas como se

fosse um eco desse primeiro amor. Não são pessoas diferentes as que amamos

ao longo da vida, mas a mesma imagem em seres diferentes. Também me

desesperei de outras vezes, até que me desesperasse não mais do amor, mas do

fato humano. E agora que este pobre caderno veio novamente ter às minhas

mãos, entre outros restos dessa casa que não existe mais, digo a mim

mesmo que realmente não há grande diferença entre aquele que fui e o

que sou hoje  –  só que, com o tempo, aprendi a domar aquilo que no moço era

puro desespero; hoje, calado, sofro ainda, mas sem aquela escuridão que

tantas vezes me atirou contra as quatros paredes de mim mesmo, enfurecido  e

que no seu desvario era apenas a tradução adolescente desse fundo terror

humano de perder e ser traído, que nos acompanha, ai de nós, durante a

existência inteira.) (CARDOSO, 38. Diário de André (VII), 2008, p. 355, grifo

em itálico do autor e grifo nosso em negrito)

O acréscimo da observação: “Escrito com a mesma letra à margem do caderno, tinta

diferente”, em específico a parte “a tinta diferente”, é o indício crucial para se perceber que há

dois momentos de escrita nessa parte do Diário de André. Essa é uma grande evidência que

temos o personagem André refletindo sobre duas fases de sua própria vida: o André adolescente

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95

e, provavelmente, o André já adulto que retorna anos depois amadurecido à Chácara da família

que lhe criou como um filho. Além disso, a cidade em que o protagonista de O Viajante,

Rafael, visita em uma de suas viagens, é justamente a cidade ficcional de Vila Velha, cenário

de Crônica... .

Outra leitura fundamental para estabelecer o elo entre as duas obras é a introdução de O

viajante, escrita por Octavio de Faria. Nessa introdução, Faria (1973) nos revela que conversou

muito com Lúcio Cardoso quando ele redigia O viajante, antes de Lúcio sofrer o primeiro

acidente vascular cerebral. Eis o que nos revela Faria sobre o sentimento de Lúcio acerca de

seu último romance: “Sua confiança no romance – que, de certo modo, devia, se não ‘continuar’,

mas torna-se ‘uma sequência ligada’ a Crônica da Casa assassinada – era absoluta. Os que com

ele privaram e os que conhecem seu Diário sabem que não há exagero nessa afirmação [...]”

(FARIA, 1973, p. xiii-xvi). E mais a frente, Octavio de Faria ainda nos revela:

E ainda vejo o entusiasmo com uma de suas cenas decisivas – aliás antecipada

no final de um dos capítulos de O Viajante (cap. XII), como uma espécie de

antevisão do triste destino de Donana de Lara: o bandido Chico Herrera,

acompanhado por André (o André, falso filho de Nina, da Crônica da casa

assassinada – ou o ‘outro’, o verdadeiro filho, Glael?) [...] (FARIA, 1973, p.

xvii)

Faria chega a levantar a dúvida se André é o falso filho de Nina, ou verdadeiro, chamado

Glael. Mas temos bem mais elementos para afirmar que o André que aparece em O viajante é

o filho de Ana e o falso filho de Nina, pois Glael não foi um personagem que Lúcio Cardoso

desenvolveu bem, como podemos observar ao revisitarmos a edição crítica de Crônica... e as

edições dos Diários de Cardoso.

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96

3.4 Crônica... um romance polifônico?

Como estamos reafirmando desde o início deste capítulo, a particularidade de Crônica...

é que não temos a voz única do narrador onisciente conduzindo a narrativa como em Salgueiro.

No lugar de uma única voz temos uma confluência de várias vozes que se equivalem em nível

de importância, ou seja, são equipolentes, utilizando a terminologia de Mikhail Bakhtin (2015),

em Problemas da poética de Dostoiévski. Dessa forma, pode-se afirmar que estamos diante de

um romance polifônico em consonância ao que afirmam Mario Carelli (1988), Roberta Alina

Boeira Tiburri (2013) e Cinthia Lopes de Oliveira (2018), destoando do que parte da crítica

acredita que Crônica... seja apenas um romance monológico como defenderam Consuelo

Albergaria (1996), Nelly Novaes Coelho (1996), Adriana Carina Camacho Álvarez (2009) e

Elisabeth da Penha Cardoso (2010).

A uniformidade da linguagem utilizada pelos personagens narradores é o argumento

mais utilizado por aqueles que compreendem que em Crônica... a linguagem única

comprometeu a verossimilhança do romance, como afirmou Manuel Bandeira:

No entanto por ocasião da leitura como que me incomodava que todos

escrevessem da mesma maneira, que é afinal a maneira de Lúcio! Todavia

esse elemento destruidor da verossimilhança foi impotente para anular a

verdade imanente das criaturas a que Lúcio insuflou o seu extraordinário

sopro de vida. (BANDEIRA, 1996, p. 768)

Para Albergaria (1996), em Crônica... haveria uma ausência de modulação, ou seja, para

ela não haveria uma diferença de tom entre as vozes dos dez narradores. A pesquisadora ainda

chega a afirmar que todas as vozes que compõem Crônica... não passam de monólogos

reunidos, o que fica subentendido que em sua perspectiva não há diálogo entre essas vozes,

dessa forma não há dialogismo, e por conseguinte não haveria polifonia. Tanto para Bandeira,

como para Albergaria, todos os narradores utilizaram uma linguagem com características

estilísticas muito parecidas, que remetiam diretamente ao autor-empírico, que ela chama de

sujeito-autor, e por isso Lúcio Cardoso foi criticado:

A ausência de modulação marca o estranhamento nos monólogos que

constituem a Crônica e essa ausência permite, justamente, identificar a

presença de Lúcio, sujeito-autor, disseminado pelas falas de suas personagens.

Todas usam o mesmo registro de fala, independente de sexo, idade, ou

condição social. (ALBERGARIA, 1996, p. 683, grifo da autora)

Porém, como discutimos na seção anterior, utilizamos o termo autor-implícito, criado

por Wayne Booth, para tentar sanar esse equívoco de confundir a voz daquele que narra com o

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autor-empírico, ou com a voz daquele que organizou o material diversificado que compõe

Crônica... Outro aspecto que deve ser salientado, é que nenhuma obra está isenta das

concepções do autor-empírico, afinal, foi ele quem a produziu, foi ele quem pôs em palavras

boa parte daquilo que ele experienciou em sua vida, seja nas suas leituras, nos acontecimentos

que ele vivenciou e até mesmo na sua capacidade de imaginação. Sendo assim, o que se tem

em cada obra literária não é o autor empírico que ele é, mas na verdade um alter ego dele

mesmo.

Nas palavras de Bakhtin (2015), a existência de polifonia não depende apenas da

linguagem utilizada pelos personagens, independe se há um estilo único, como aparentemente

acontece em Crônica.... Aliás, se assim fosse, nem Os irmãos Karamázov, de Dostoievski,

romance que Bakhtin utiliza para explicar como funciona a polifonia, seria um romance

polifônico seguindo linha de raciocínio de Albergaria (1996) e de Coelho (1996), devido ao

grau de exigência que elas estabeleceram para considerar Crônica... como um romance

polifônico. O que vai definir se há ou não polifonia no romance é o nível de diálogo existente

entre essas personagens, seja em discursos contrários, seja em discursos concordantes, que

juntos se encontram como peças de um quebra-cabeça:

Ocorre, porém, que a diferenciação da linguagem e as acentuadas

“características do discurso” dos heróis têm precisamente maior significação

artística para a criação das imagens objetificadas e acabadas das pessoas.

Quanto mais coisificada a personagem, tanto mais acentuadamente se

manifesta a fisionomia da sua linguagem. No romance polifônico, o valor da

variedade da linguagem e das características do discurso é mantido, se bem que

esse valor diminui e, o mais importante, modificam-se as funções artísticas

desses fenômenos. O problema não está na existência de certos estilos de

linguagem, dialetos sociais, etc., existência essa estabelecida por meio de

critérios meramente linguísticos; o problema está em saber sob que ângulo

dialógico eles se confrontam ou se opõem na obra. Mas é precisamente esse

ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios

genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao

campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu

estudo. (BAKHTIN, 2015, p. 208, grifo do autor).

Mas se deve perceber que diferentemente dos narradores realistas oitocentistas ou

daqueles do romance de 1930, não houve a intenção de representar caricaturalmente a

linguagem do médico, do farmacêutico ou do padre com seus jargões profissionais, ou ainda

representar nacionalidade estrangeira da governanta Betty, através de termos em inglês, dentre

a predominância da língua portuguesa. Só ficamos sabendo que Betty é estrangeira nos últimos

capítulos do romance, isto significa que o fato dela ser estrangeira não tinha muita significância

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para a narrativa. Dessa forma, segue-se a perspectiva de Bakhtin de que apesar das relações

dialógicas pertencerem ao campo do discurso, não significa dizer que pertençam a um campo

“puramente linguístico”, pois a existência da polifonia vai muito além disso.

Lúcio Cardoso, em Maleita, tentou empreender essa representação na linguagem,

especificamente na variação linguística regional:

O cozinheiro sorriu: - Sezão, nhôzinho... (CARDOSO, 2002, p. 8)

Ela colocou as mãos na cintura e riu: - Uai, gentes, pode chegá! (CARDOSO, 2002, p. 13)

Lúcio Cardoso em Maleita ainda estava influenciado por esse tipo de romance regional

e assim como ele outros autores da década de 1930 e 1940 utilizavam uma linguagem mais

culta para o narrador, por meio do discurso indireto, e outra mais regional para representar a

fala de algumas personagens, através da citação das falas em discurso direto. Essa foi uma

contribuição trazida pelo que Antonio Candido (1989), em A nova narrativa, chama de

“Romance do Nordeste” que trouxe consigo um “acentuado realismo no uso do vocabulário”

(p. 203). Esses autores deram continuidade as mudanças estilísticas que iniciaram na década

de 1920, com Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

O que diferencia as personagens/narradoras de Crônica... é algo que vai muito além de

aspectos estilísticos explícitos na linguagem, são as discussões quase que filosóficas

empreendidas por André em seu diário: “O que é a morte?”; por Ana em suas confissões, nas

quais ela se indaga constantemente sobre “O que é a verdade?”; por Timóteo, no seu livro de

memórias, em que faz uma reflexão sobre “O que é a beleza?”. Esse tipo de reflexão não é

empreendido pelos outros narradores e é um traço estilístico de conteúdo que não é comum a

todos eles, é algo que vai bem além de uma análise puramente sociolinguística.

Outro aspecto que podemos ressaltar é que nem todos os narradores fazem

romanticamente a projeção do estado de seu ânimo na natureza, como Timóteo fez. Enquanto

que a narradora Ana imaginava que seu marido Demétrio era apaixonado por Nina, mas nenhum

outro narrador chega a comentar isso, nem mesmo Betty que tinha acesso as movimentações

mais obscuras da casa do Meneses. Como não temos a versão de Demétrio sobre o que ele

realmente sentia por Nina e nem o próprio Valdo percebeu alguma movimentação amorosa

entre sua esposa e seu irmão, temos pistas quase que suficientes para afirmar que Ana

provavelmente estava enganada sobre o que Demétrio realmente sentia por Nina. Quando

reunimos as falas de Demétrio sobre Nina e as atitudes de ele para com ela, o sentimento que

ele demonstra sentir por ela é um imenso ódio e não paixão. Essa confusão de sentimentos se

assemelha àquela abordada no romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, sobre o

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que realmente existia entre Capitu e Escobar; mas lembremos que o narrador da história é

Bentinho, o que se sente traído, e por não temos a versão de Capitu, nem mesmo de Escobar

para confrontar com a de Bentinho, a versão do narrador único fica sob suspeita.

Outras características peculiares dos narradores é que o médico e o farmacêutico tendem

a narrar especulando as reações dos personagens com quem eles interagem, bem como Nina,

nas cartas que escreveu, ficava supondo as possíveis reações do destinatário ao ler sua carta; a

governanta Betty, apesar de utilizar o suporte diário, escreveu pouco sobre si mesma; o Coronel

trouxe um ponto de vista sobre Nina que só ele por conhecê-la há bem mais tempo que as outras

personagens é capaz de empreender; Valdo apesar de muito observador, desconfiado e

sensitivo, era também bastante inseguro com relação ao que via e não conseguiu interpretar o

real significado das atitudes de Nina e André; o Padre Justino em suas narrações se apresentou

como um representante da Igreja Católica e atuou lembrando os dogmas do catolicismo a alguns

personagens, como quando relembrou a Ana o sentido de pecado e quando conversa com Valdo

sobre a existência do diabo nos lugares onde não se acredita na existência de Deus, como na

Chácara Meneses. Essa reflexão se assemelha à ausência do Bom Deus no morro de Salgueiro,

porque pouquíssimos de seus moradores acreditavam em sua existência e por isso tanto o morro,

como a casa dos Meneses são considerados como Inferno.

3.4.1 Um cabo de madrepérola: um elemento da confluência de vozes

Para ilustrar a confluência de vozes presentes na narrativa, iremos relatar o percurso de

um elemento que perpassa vários momentos da narrativa: uma arma com incrustações de

madrepérola no cabo. Iremos focalizar em específico o episódio em que Valdo aparece com um

ferimento de arma de fogo no peito.

Essa arma vai aparecer pela primeira vez no terceiro capítulo do romance, intitulado

“Primeira narrativa do farmacêutico” e vai reaparecer em outros capítulos de forma não

sequencial, o que pode ser considerado mais uma provável interferência do autor implícito.

Quando o leitor chega ao final do romance, e tem ideia da totalidade dos discursos, acaba

percebendo que a arma que fere Valdo é a mesma com a qual Alberto comete suicídio e a

mesma com que Ana ameaça Nina. Porém, o leitor só tem essa ideia no final do romance, pois

durante a narrativa essa arma também é chamada de revólver e os detalhes de seu cabo, que lhe

diferenciam de outras armas, muitas vezes é omitido. Através do recurso da coesão por

substituição utilizado pelos narradores e manipulado pelo autor implícito, essa arma foi sendo

caracterizada como velha e emperrada, bem como foi chamada de revólver em alguns

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momentos. Para descobrir o que realmente aconteceu naquela noite com Valdo, o leitor

empreende quase um trabalho de detetive, porque a alteração na sequência de apresentação dos

fatos não traz de imediato uma explicação definitiva para o leitor e ele tem que prestar muita

atenção nas pistas que vão sendo deixadas a cada capítulo.

No caso do ferimento de Valdo, levantaram-se as seguintes possibilidades: 1) ele se

feriu acidentalmente, quando estava limpando a arma, conforme disse Demétrio; 2) ele atirou,

intencionalmente, contra si, tentando cometer suicídio; 3) Demétrio tentou assassinar Valdo,

como insistia Nina; e por fim, 4) Nina tentou matar o marido e por isso estava fugindo.

Tudo começa com o episódio narrado por Aurélio, o farmacêutico, em sua primeira

narrativa que corresponde ao capítulo 3. Nessa narrativa, o farmacêutico conta o dia em que

recebeu a visita inesperada de Demétrio, o irmão mais velho dos Meneses. Demétrio foi até o

estabelecimento com o intuito de encontrar uma solução para eliminar um suposto lobo que

rondava a Chácara e que, segundo ele, assustava a sua esposa Ana. Ele perguntou ao

farmacêutico se ele não teria algum veneno ou algo que pudesse ser colocado em uma armadilha

para um lobo. A resposta de Aurélio foi que não se liquidam lobos com venenos e acabou dando

uma indireta a Demétrio como se quisesse algo em troca de um favor:

− Tempos duros os que vivemos, Senhor Demétrio! Veja esta parede que

carece tanto de reparos! Há dois meses espero conseguir o dinheiro necessário, e

até agora não fiz nem sequer para encomendar um tijolo! (3. Primeira

narrativa do farmacêutico, p. 48)

Demétrio acaba oferecendo um carro de tijolos para ajudar o farmacêutico. Então,

Aurélio acaba propondo uma solução mais enérgica para Demétrio solucionar o problema com

o lobo: uma arma de fogo. Essa arma pertenceu à mãe do farmacêutico e possuía “incrustações

de madrepérola que bordavam o seu cabo” (p. 50).

Durante todo esse capítulo, o farmacêutico ia descrevendo as expressões faciais de

Demétrio e indagava-se sobre o que ele pensava. O farmacêutico sentia que ele mentia e lhe

escondia algo. Aurélio, enquanto narrador, acaba provocando no leitor um suspense sobre o que

Demétrio realmente irá fazer com aquela arma:

A partir desse ponto, podia se dizer que ele estava definitivamente

conquistado. Vendo-o, eu indagava de mim mesmo se aquele Meneses não

teria vindo à minha casa precisamente para obter a arma – eles, que eram tão

ricos em recursos e estratagemas, acaso poderiam deixar de ter em casa um

revólver idêntico àquele? Em que circunstâncias o utilizariam, sob que

pretexto comprometeriam um outro na ação que provavelmente estaria prestes a

executar? E se se tratasse na verdade de um lobo – a ideia era quase ingênua

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– por que não liquidá-lo de um modo mais simples, com uma armadilha, por

exemplo? De qualquer modo, ergui os ombros – o negócio me convinha.” (3.

Primeira narrativa do farmacêutico, p. 50, grifos nossos)

Dessa forma, pode-se considerar Aurélio um tanto tendencioso, pois mesmo ele não

tendo acesso aos pensamentos de Demétrio, por ser um narrador homodiegético, mesmo assim

ele faz indagações sobre as expressões faciais do irmão mais velho dos Meneses e sugere o que

ele está pensando, como podemos perceber no seguinte trecho que o farmacêutico analisa as

reações mais sutis no olhar de Demétrio: “Ele rodava a arma, e já agora eu podia perceber que

a satisfação brilhava claramente em seus olhos.” (p. 50)

Por não termos a versão de Demétrio sobre quais motivos realmente o levaram ao

estabelecimento do farmacêutico e nenhum outro personagem menciona a existência de

possíveis lobos rondando a Chácara dos Meneses, durante grande parte do romance o suspense

sobre o real intuito de Demétrio adquirir essa arma fica pairando na mente do leitor.

Uma arma aparece no capítulo “5. Primeira narrativa do médico”. Mas até então, o que

se sabia era que Valdo havia se ferido com uma arma, porém não se tinha certeza se era a mesma

que Aurélio negociara com Demétrio. Essa incerteza decorre porque o médico, narrador

escolhido pelo autor implícito para contar o ocorrido, não chegou a vê-la, talvez por isso ele

não teve acesso aos detalhes do cabo da arma. Na fala do médico, percebemos que ao chegar à

Chácara, ele é avisado por uma das empregadas da casa o motivo pelo qual foi chamado até lá:

“Enquanto subia a escada do jardim, fui logo informado de que o Sr. Valdo se ferira ao consertar

uma arma velha.” (p. 68). Demétrio foi outra pessoa que dá essa mesma adjetivação à arma que

Valdo se feriu.

Ao adentrar o quarto, o médico encontra Valdo acompanhado apenas por seu irmão

Demétrio e era ele quem respondia às perguntas do Dr. Vilaça, pois, segundo o próprio

Demétrio, Valdo estava impedido de falar devido ao ferimento. A partir do clima de incerteza

gerado pelo médico, enquanto narrador, pode-se indagar: Valdo realmente não conseguia falar

devido ao ferimento; não queria falar talvez por vergonha do ocorrido; ou ainda queria proteger

o irmão por não o acusar logo?

A partir das reações de Demétrio, quando ele foi questionado a respeito do que ocorrera,

nota-se que o médico também acabou o considerando suspeito do que aconteceu: “Perguntei se

fora aquele único lugar atingido, e o Sr. Demétrio respondeu-me que sim, se bem que

acreditasse que a bala não houvesse interessado nenhum órgão importante. Falava depressa, e

como se desejasse dar ao fato a mínima importância possível.” (p. 69). O médico percebe que

Demétrio respondia às perguntas rapidamente como se quisesse encerrar logo o assunto:

Page 105: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

102

Perguntei se alguém escutara o tiro, e de que modo o haviam encontrado. O

Sr. Demétrio não pareceu muito satisfeito com essas perguntas, sobretudo

porque revelavam elas mais de um inquérito policial do que propriamente de

uma indagação médica, mas assim mesmo afirmou que o irmão se achava

desde cedo limpando o revólver, e que diversas vezes manifestara ele em voz

alta o receio de que sucedesse alguma coisa, já que tudo era de se esperar de

uma arma velha e emperrada; que não sabia a quem pertencia a arma; que

não ouvira o tiro, e nem ninguém da casa o ouvira; e afinal que, somente

alguns momentos antes de minha chegada, como estranhasse o silêncio do Sr.

Valdo, viera a descobri-lo, de roupão, estirado sobre o tapete da sala.

Informou ainda que havia uma poça de sangue no chão, sangue que ele

mandara a governanta limpar, enquanto conduzia o ferido para o quarto mais

próximo que era aquele. Desde aí o Sr. Valdo ainda não abrira os olhos, e ele,

Demétrio, que não podia desculpar aquela imprudência [...] (5. Primeira

narrativa do médico, p. 70, grifos nossos)

Esse trecho parece ser parte de um inquérito policial, em específico assemelha-se a seção

dos depoimentos pela forma como é conduzido e redigido, através de perguntas feitas a uma

possível testemunha do acontecimento. Pelo que se pode compreender, Valdo estava sozinho

quando se feriu, pois de acordo com o que conta Demétrio, seu irmão estava desde cedo

limpando essa arma e após um período de silêncio, Demétrio decide ir vê-lo e encontra-o ferido.

Com relação à linguagem, nota-se a semelhança com o gênero depoimento, uma das seções do

inquérito policial, como o uso de períodos longos, que possuem um verbo utilizado na primeira

oração e elipsado nas orações seguintes que são separadas por ponto e vírgula, além do uso do

“que” para elencar as orações complementares ao verbo “afirmar”.

Demétrio se faz de desentendido por dizer que não sabia a origem da arma. Ele não

queria se comprometer diante de uma pessoa que não era família? Queria proteger o irmão de

um escândalo maior? A essa altura da narrativa o leitor é conduzido ao caminho da dúvida, pois

com as informações fornecidas, ele não pode ter certeza se a arma com a qual Valdo se feriu é

a mesma que Demétrio negociou com o farmacêutico, pois ela é caracterizada apenas como

uma arma velha e emperrada. O curioso é que segundo Demétrio, nem ele e nem ninguém da

casa ouviu o barulho do tiro, mas ao conversar com Nina o médico fica sabendo que Betty, a

governanta, ouvira o barulho, bem como Ana, como será mostrado mais à frente.

Apenas no capítulo “10. Carta de Valdo Meneses” é que o leitor vai ter a certeza de que

arma com a qual Valdo se fere é a mesma da negociação entre Aurélio e Demétrio. O assunto

sobre a origem da arma e acerca do que realmente aconteceu surge numa carta que Valdo

escreve para Nina, em que ele narra o momento posterior a saída do médico do quarto onde

Valdo se encontrava:

Page 106: SOCIAL E INTIMISTA DOIS VÉRTICES DA NARRATIVA ROMANESCA …

103

O revólver pertencia a Demétrio, que se aproximara de mim certa noite,

dizendo: “É um modelo antigo, muito curioso. Seu Aurélio garantiu-me que

não poderia encontrar melhor em toda a cidade.” Tomei-o nas mãos,

examinando o gatilho. “É antigo”, concordei, “mas funciona bem.” Durante

algum tempo ele ainda fez a arma girar diante de mim, depois colocou-a sobre

um aparador, em lugar bem visível. E na verdade eu o via sempre, desde que

passasse defronte o móvel. A própria Ana, arrumando a sala um dia,

perguntou: Perguntou: “Por que você não guarda este revólver, Demétrio?”

Ele responde um tanto secamente: “Não. As armas devem ficar expostas para

serem apanhadas no instante preciso. (10. Carta de Valdo Meneses, p. 125)

Dr. Vilaça não é um narrador neutro, pois assim como o farmacêutico, ele vai

descrevendo as reações de seu interlocutor, como a alegria fingida e o escárnio que Demétrio

deixava transparecer mesmo diante da situação de sofrimento que ele via seu irmão passar. O

médico utiliza com frequência o discurso indireto livre, pouco utiliza o discurso direto que

geralmente dá mais credibilidade narrador. Nesse trecho, o médico percebe que Demétrio

finge estar alegre em ver seu irmão falar:

– Como? Já pode falar? Isto me alegra – fingiu o Sr. Demétrio, como se não

houvesse escutado perfeitamente o que o ferido dizia. E um tanto de

escarninho: – Quer dizer que tudo não passou realmente de uma brincadeira

imprudente? (5. Primeira narrativa do médico, p. 71, grifo nosso).

Antes do Dr. Vilaça deixar totalmente a Chácara, Nina surgiu entre os canteiros e dirigiu

a palavra a ele, questionando sobre o estado de Valdo: “É grave o seu estado? É realmente

grave? Como está agora? Há alguma esperança?” (p. 73). Ela confessa que já estava de partida

e de malas prontas quando acontecera tal fato com Valdo e o médico descreve a atitude suspeita

dela:

Uma ou outra vez poderia eu ter notado certo tremor em sua voz, mas era fácil

perceber que se tratava apenas de uma irritação contida antes os fatos que

provavelmente tinham vindo deter a marcha de um plano elaborado

anteriormente com maior cuidado. Também não me era difícil verificar quais

era esses planos: ela se achava de partida, provavelmente queria dizer adeus

para sempre à Chácara, e a “imprudência” viera retê-la no minuto exato da

consumação de seus planos. (5. Primeira narrativa do médico, p. 73)

Apesar de Nina deixar transparecer que não estava quando Valdo se feriu, o narrador

percebe que ela demonstrou ter muita certeza da gravidade do ocorrido, além de aparentar estar

calma e fria diante de uma situação dessa magnitude. Ainda no trecho citado, nota-se que

quando se referiu ao que ocorreu com Valdo, o Dr. Vilaça deixa a palavra “imprudência” entre

aspas, como forma de pontuar que essa perspectiva não era dele, mas de Demétrio, como vimos

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104

em citação anterior. Nina questiona o médico se há risco de Valdo morrer ainda naquela noite

e ele responde dizendo que não há esse perigo, pois a bala o atingiu superficialmente. A reação

de Nina a essa informação é ainda mais curiosa:

– Superficialmente! – bradou ela. – Mas doutor, não é mortal o ferimento?

Betty me disse que havia limpado no chão da sala uma grande mancha de

sangue. Depois disto, supus até que ele já estivesse em agonia. – Não, está mesmo muito longe de entrar em agonia.

– Ah – exclamou ela – então era verdade, Demétrio tinha razão? Foi apenas

um ato leviano, um gesto de... (5. Primeira narrativa do médico, p. 73,

supressão do autor)

A reação de Nina é como se ela estivesse decepcionada com o fato de o tiro só ter

atingido Valdo superficialmente, porque ela parecia ter a morte de seu marido como certa.

Assim, Nina se acaba tornando mais uma suspeita do ocorrido: será que foi Nina quem atirou

em Valdo? Ou as informações que ela sabia eram apenas as que Demétrio e Betty lhe fornecera

e ela acabou mal interpretando-as.

Ao ficar irritada por Demétrio ter lhe informado uma situação mais grave do que

realmente ocorria, Nina acaba deixando escapar uma informação, que pela reação dela, houve

arrependimento em dizê-la:

− Ah – disse – então é isto, assim é que pretendem me enganar? Decerto ainda

não me conhecem, nem sabem de quanto sou capaz. Diga-me, doutor, agora

que estamos sozinhos, que mentiras inventou, que contou a meu respeito? Não

falou que um jardineiro...

Levou a mão aos lábios, como se desejasse interceptar as palavras que iam lhe

escapando involuntariamente.

− Mas, quem? – indaguei?

E ela:

− Valdo, quem havia de ser? (5. Primeira narrativa do médico, p. 74)

Esse ato de colocar as mãos nos lábios denota que ela deixou escapar algo que ela não

deveria ter dito e só nos capítulos seguintes é que vamos entender o porquê: o jardineiro,

Alberto, era seu amante e Demétrio o flagrara ajoelhado, beijando as mãos de Nina. Mas ao

saber pelo médico que Valdo não podia falar, pois havia perdido muito sangue, parece que ela

percebe a gravidade do que dissera e conta a sua própria versão sobre o ocorrido:

Enquanto se vestia, as malas já arrumadas sobre a cama, Betty, avisada de que

deveria mandar chamar um carro, ouvira um tiro. Fora ela própria, a

governanta, quem irrompera pelo seu quarto, bradando: “Patroa, o Sr. Valdo

feriu-se mortalmente.” Não queria acreditar, não o julgava capaz de um fato

desses. Tanto que nem desfizera as malas. Ah, estava ainda muito longe de

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105

supor a que paroxismos o marido era capaz de levar a comédia. (5. Primeira

narrativa do médico, p. 76)

Contrariando o que dissera Demétrio ao médico, que ninguém da casa ouvira nada, Betty

ouvira o tiro, mas lembremos que essa é a versão contada por Nina e não pela própria Betty.

Além disso, ainda nos é apresentada a versão em discurso indireto do que o médico ouviu de

Nina, então tem-se quase que uma versão terciária da história, porque em seu diário Betty não

faz nenhuma menção a esse ocorrido.

Segundo a versão da própria Nina, contada ao médico, ela chegou a ir ao pequeno quarto

em que colocaram Valdo e diante da cena de seu marido ferido estendido no divã, ela não

aguentou cena e saiu correndo. Essa pode ser uma informação que descarte ter sido de Nina a

autoria do tiro, apesar dela se considerar culpada por tal ato, já que é provável que a atitude de

Valdo foi uma reação à notícia de que ela deixaria a Chácara dos Meneses.

Outra disparidade de versões ocorre sobre o real estado de Valdo: a) A governanta

adentrou o quarto de Nina e disse: “Patroa, o Sr. Valdo feriu-se mortalmente.” (p. 76), o que

levou a Nina achar que Valdo estava quase morto. Mas quando ela encontra Demétrio, ele

ameniza a informação: “Nina, é meu dever informá-la do que se passa. Meu irmão cometeu

uma imprudência, mas, pelo que vi, não é nada importante. Apenas um arranhão no peito. Se

você pretende partir, não se detenha por isto.” (p. 76). A mais provável intenção de Demétrio

em dizer que o ferimento de Valdo não passou de um arranhão foi convencer Nina a não desistir

da viagem e de se ver livre dela. Só após Nina conversar com o médico, é que ela acaba

percebendo que era essa a intenção de Demétrio.

Como até então tem-se apenas a versão Demétrio e não do próprio Valdo, Nina levanta

a hipótese de que seu marido pode ter sido vítima de um assassinato. E a partir dessa suspeita

de Nina, o médico começa a rememorar momentos no quarto do enfermo que chegam a

corroborar com essa possibilidade:

Não posso deixar de dizer que aquela pergunta, longe de escandalizar-me,

como que encontrava um eco já familiar em meu espírito. Lembrei-me do

olhar que os irmãos haviam trocado assim que o Sr. Valdo voltara a si, da

ameaça que fizera de dizer ‘o que sabia’ e, como nenhuma prova parecesse

indicar realmente de um ‘acidente’, não tive a menor dúvida em afirmar que a

hipótese do crime não seria descabida. (5. Primeira narrativa do médico, p.

77-78)

Desta feita, o médico levanta suspeitas que Demétrio pode ter sido o responsável do

ferimento de Valdo e acaba levantando mais uma dúvida no leitor: “Tudo naquele homem era

falso, estudado. [...] Aquele homem, sem dúvida, ocultava um criminoso desígnio em seu

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106

coração” (p.77). Ao médico, não faltavam elementos para desconfiar de Demétrio: os olhares

que os dois irmãos trocaram dentro do quarto; Demétrio dizendo que Valdo estava incapaz de

falar sobre o que ocorrera, contrastando com o olhar suplicante de Valdo, como se quisesse

dizer alguma coisa; e quando questionado por Nina, Demétrio confirma que Valdo tentou

suicídio, para despistar o seu possível envolvimento no ocorrido.

As dúvidas sobre o que realmente ocorreu com Valdo repercutiram na cidade de Vila

Velha e, até aquele momento da narrativa, não podiam ser dirimidas pelo leitor. O

farmacêutico, em sua segunda narrativa, capítulo 7, relata essa repercussão: “Foi por essa

época que começaram a circular em nossa cidade os mais desencontrados rumores sobre a

Chácara; não se sabia ao certo o que se passava, mas suspeitava-se de tudo, até mesmo de um

crime. (O Dr. Vilaça, médico que atendia na Chácara, havia deixado escapar qualquer coisa a

este respeito...)” (p. 88). Valdo estava indo com frequência para a farmácia trocar os curativos

de um ferimento de arma de fogo, por praticamente durante três semanas. Numa dessas

visitas, o próprio Valdo dissera ao farmacêutico que se feriu “acidentalmente” e não

propositalmente como ele vai nos revelar no capítulo 10.

Leva-se em consideração que Valdo fez um relato para uma pessoa que não era de sua

família, por isso é provável que ele não tenha se sentido a vontade para confessar coisas da sua

intimidade. Então, ainda não foi dessa vez que o leitor ficou sabendo sobre o que ocorreu

naquele dia. O que Valdo diz ao farmacêutico é uma versão bem diferente daquela que ele narra

em uma carta que tem Nina como destinatária. Nessa carta, ele relembra o que aconteceu e

confessa que não foi um acidente, pois ele realmente quis atirar contra si mesmo.

Um tempo depois da saída de Nina da casa, ela envia uma carta para Valdo, no capítulo

6, depois de tanto tempo de silêncio por parte dele, e ela refere-se àquele momento de “noite

do acidente”:

Na noite do “acidente”, e tendo em vista o período feliz que havíamos

atravessado o Pavilhão, eu decidira ficar – e teria ficado, se, além de suas

torpes acusações, Demétrio não exibisse uma prova que na verdade jamais

existiu... Foi ele quem me obrigou a abandonar a Chácara.

(6. Segunda carta de Nina a Valdo Meneses, p. 79, grifo nosso, aspas do autor)

Como fizera mal em ceder da primeira vez, como fora tola em não ter partido

naquela noite do tiro... (6. Segunda carta de Nina a Valdo Meneses, p. 84,

grifo nosso)

Segundo Nina, na carta, Demétrio interpretou mal uma cena entre ela e Alberto, na qual

o empregado estava aos pés dela tentando beijar as suas mãos. Mas na verdade, é revelado que

Demétrio interpretou essa cena como um forte indício de um adultério, que realmente acontecia,

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107

e esse foi o motivo para ele expulsá-la da Chácara.

Nina acaba tentando reforçar a ideia que Demétrio se equivocou, pois o destinatário de

sua carta dela é o marido e não lhe convinha confirmar que ela estava traindo ele. Ela vai

argumentar tanto na primeira, como na segunda carta que foi vítima do ódio que Demétrio

sentia por ela, que ela foi mal compreendida e acusada de algo que não tinha culpa. Mas o leitor

sabe muito bem que Demétrio estava correto e através das confissões de Ana é que se tem essa

certeza. Era ela quem espreitava Nina e que descobriu o caso dela com Alberto: “À força de

farejar, de espreitar, de seguir como um animal cauteloso e faminto, acabei descobrindo a pista

infernal que me levaria a este fogo onde hoje me queimo.” (8. Primeira confissão de Ana, p.

108)

Como informamos anteriormente, apenas no capítulo 10, tem-se a versão do próprio

Valdo sobre esse incidente com a arma. Neste capítulo, é transcrita uma carta de Valdo para

Nina, na qual destacamos o trecho identificado como “pós-escrito à margem do papel”. Esta

carta é a resposta de Valdo a “6. Segunda carta de Nina a Valdo Meneses”, citada no parágrafo

anterior, em que ela expressou o seu desejo de voltar a Chácara quinze anos após o referido

acidente. Valdo, em sua carta, deixa Nina à vontade para voltar, mas lhe avisa que as coisas

estão bem diferentes de quando ela deixou a Chácara Meneses. Temporalmente, essa carta é

escrita quinze anos depois da saída de Nina da chácara, como pode ser identificada na seguinte

passagem: “Sim, você pode vir, é verdade, ninguém poderá impedi-la de regressar a esta casa

que você própria desdenhou outrora (quinze anos, quinze anos já, Nina!) com a sua

inacreditável leviandade” (10. Carta de Valdo Meneses, p. 121).

Apesar de termos agora a versão do próprio ferido, há um fator problematizador dessa

versão: o distanciamento temporal de Valdo do acontecimento. Esse lapso de tempo poderá ter

implicações significativas no detalhamento do ocorrido. Ele começa utilizando um parêntese e

o verbo lembrar: “(Lembro-me, neste instante, de modo particular, da noite em que você veio à

minha cabeceira para se despedir.” (p. 122). Essa é uma informação nova que os outros

narradores não mencionam e, em seguida, continua relembrando como foi o momento da

despedida de Nina que já não suportava o que ela chamava de “comédia tola” (p. 123) o que

fazia principalmente Demétrio contra ela:

O médico acabara de sair e eu apenas convalescia daquele ato inútil de

desvario – oh, não porque me parecesse especialmente difícil suportar a

Chácara, Demétrio e tudo mais o que tanto lhe repugnava. Não. A razão do

meu gesto era mais simples, apenas nada mais podia suportar sem a sua

presença. (p. 122)

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108

Passados esses quinze anos, Valdo avalia seu “ato inútil de desvario” como um excesso

daquele momento e mais à frente se refere a um “gesto desesperado”.

Depois da saída do médico, Nina entrou no quarto em que o marido estava e ao conversar

com Valdo parece estar procurando algum objeto e o próprio Valdo percebe:

O objeto que procurava – e eu sabia tão bem quanto você – era o revólver que

me servira. Sim, Nina, o revólver com o qual tentara meu suicídio malogrado.

Provavelmente, você também percebeu que eu adivinhara tudo, e como

instintivamente meu olhar se dirigisse para a gaveta da cômoda, você se

precipitou, abriu-a, retirando a arma triunfalmente. Demétrio o enrolara num

lenço, a fim de subtraí-lo às minhas vistas.

– Aqui está ele – bradou você – o revólver assassino. Só você, Valdo, só você pode tentar enganar-me a respeito de fatos tão estúpidos. (p. 124)

[...]

– Não foi uma tentativa de suicídio – continuou você – e sim de assassinato.

A quem pertence este revólver, Valdo, há quanto tempo se acha ele exposto a

todos os olhares, ocupando o lugar mais visível, tentando-o, induzindo-o ao

gesto daquela noite? (p. 125)

Ainda nessa mesma página, Valdo conta que Demétrio comprou essa arma a Seu

Aurélio, o que comprova que é a mesma arma do farmacêutico e conta também em que situação

Demétrio fez questão de deixar a arma em cima do aparador, alegando que armas devem ficar

expostas para serem rapidamente apanhadas quando surgir necessidade. Mesmo apresentado

esses fatos anteriores à tentativa de suicídio, Valdo confirma que acredita na tentativa de

indução, mas não acha que ele era o alvo, mesmo assim Nina insistia que Demétrio tentou

assassiná-lo e Valdo reafirma que ele mesmo tentou tirar sua própria vida e não o irmão dele.

Ana é a narradora que se apresentou mais precisa quanto aos detalhes do acontecimento

com Valdo. Ela em sua segunda confissão, que está transcrita no capítulo 14, informa-nos:

“Eram exatamente quatro horas da tarde [...]” (p. 156), e contrariando a versão apresentada por

Demétrio ao médico, que ninguém mais da casa ouvira o tiro, a sua esposa Ana relata ao Padre

Justino que ouviu não uma detonação, mas duas:

Do lugar em que me postara, ouvi distintamente um tiro – um único, seco,

rompendo o silêncio como uma espada vibrada no espaço – e Alberto passou

correndo pela estrada. Não decorreu muito tempo e escutei o rumor de outra

detonação. (14. Segunda confissão de Ana, p. 157)

Ana achava que os tiros tinham sido disparados por Alberto contra Nina, e assim seria

o fim daquela que a incomodava com o seu modo diferente de ser. Mas quando Alberto passou

correndo para chamar o médico, Ana descobriu que foi Valdo que estava ferido e não Nina.

Alberto ao dizer: “O patrão: feriu-se.”, utiliza o pronome reflexivo “se”, o que reafirma que

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Valdo tentou atirar contra si mesmo e que não foi um ato de outra pessoa.

Apesar do leitor a essa altura da narrativa já saber pelo próprio Valdo o que aconteceu

naquela noite, Ana demonstrava não saber o que realmente havia acontecido:

Assim, pois, fora Valdo. Talvez tivesse tentado contra a vida. Talvez fosse a

vítima, a vítima inesperada do crime que tanto aguardava. (14. Segunda

confissão de Ana, p. 158)

Essa ideia de repetição de informações ocorre para o leitor, porque cronologicamente a

segunda confissão de Ana deveria estar localizada entre os cinco primeiros capítulos do

romance, mas se o autor implícito assim tivesse optado, não teria obtido o efeito de mistério e

dúvida que ele conseguiu ao alterar a ordem cronológica.

Muitos capítulos depois, cronologicamente, cerca de quinze a dezesseis anos depois da

primeira versão relatada na “3. Primeira narrativa do farmacêutico”, tem-se no capítulo “50.

Quarta narrativa do farmacêutico”, uma nova versão do farmacêutico sobre esse mesmo fato.

Ao ler essa quarta narrativa do farmacêutico, entendemos por que esse revólver estava exposto

aos olhos de todos e confirmamos as palavras de Valdo no capítulo 10, que a arma com a qual

ele se referiu é a mesma que Demétrio adquiriu com o farmacêutico.

No capítulo 50, “Quarta narrativa do farmacêutico”, Valdo indaga Aurélio sobre a visita

que o irmão primogênito dos Meneses fizera ao estabelecimento anos atrás. Percebe-se essa

passagem do tempo quando Aurélio pergunta sobre Nina e Valdo o informa que ela está morta.

Outro fato que indica a passagem no tempo é quando o farmacêutico diz que foi a esposa dele

que apareceu à porta e avisa que Valdo está à espera dele, além de revelar que tem três filhos

(p.447). Esse casamento ocorreu entre o intervalo de tempo compreendido entre a terceira e

quarta narrativa do farmacêutico, mas não é possível identificar com precisão, pois Aurélio

afirma na terceira narrativa que é “um velho celibatário” (CARDOSO, p.127).

A visita de Valdo ao farmacêutico tinha o intuito de saber detalhes sobre uma transação

em que Demétrio fizera com ele: “Senhor Aurélio – e sua voz, decidida, retiniu – ouvi meu

irmão dizer, há muitos anos, que houvera uma transação entre o senhor e ele; verdade?” (p.

444). O farmacêutico menciona que já ocorreram várias transações entre ele e os Meneses, mas

Valdo refere-se a uma transação específica: a que envolvia um revólver. Nota-se que Aurélio

demonstra ser um interlocutor com intenções persuasivas:

– Não se lembra de ter vendido um revólver ele? – indagou, e sua voz era a

mais insinuante possível. Olhei-o de novo, e senti que podia conduzi-lo até onde desejasse.

– Lembro-me – respondi. – Era um pequeno revólver, azulado, com

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110

incrustações de madrepérola no cabo.

[...] O Sr. Valdo atalhou-me com certa aspereza:

– É bastante, Senhor Aurélio, que se lembre de tê-lo vendido.

- Por quê? Aconteceu algum acidente? Neste caso – e fiz um gesto de quem

salvaguardava sua responsabilidade. (50. Quarta narrativa do farmacêutico, p. 445)

Diante desse questionamento ao farmacêutico, Valdo, que havia se dirigido a Aurélio

com aspereza, percebe que se continuasse a se portar daquela forma não conseguiria mais

informações e acaba omitido o que realmente aconteceu com a arma: “Não, não aconteceu

nenhum acidente. Sossegue” (p. 445). Notando o nervosismo de Valdo, Aurélio já ficou

pensando no que pediria em troca das informações, assim como fez com Demétrio anos atrás.

Ao narrar a história, Aurélio praticamente faz um pequeno resumo da conversa que ocorreu na

sua primeira narrativa, mas ao ser questionado por Valdo se viu Demétrio em outra ocasião

depois daquela, o narrador demonstra hesitação e neste momento percebe-se que ocorreram

mais fatos que o farmacêutico também não havia revelado ao leitor:

Hesitei: deveria narrar o que se dera depois, durante a segunda visita?

Instintivamente senti que ali se encontrava o núcleo vital da narrativa, o que

poderia realmente causar o interesse do Sr. Valdo pela história do revólver.

Mas, por um curioso contraste, que não me seria fácil explicar, era exatamente

aquilo que eu sentia que me era vedado – em sua revelação havia, sem que eu

soubesse como, uma traição implícita ao Sr. Demétrio. Ou de modo mais

obscuro, àquilo que precisamente nos ligava, e cuja única manifestação era o

olhar que me lançava quando nos encontrávamos na rua. (50. Quarta narrativa

do farmacêutico, p. 447)

Valdo acaba oferecendo uma recompensa para Aurélio lhe contar o resto da história e

assim o farmacêutico consegue uma contrapartida de outro irmão Meneses. Diante da

recompensa, Aurélio acaba contando o que houve depois desse primeiro encontro com

Demétrio. Ele confessa que cerca de um ano depois da venda do revólver, Demétrio voltou ao

estabelecimento do farmacêutico aparentando nervosismo e Aurélio acaba perguntando se a

arma já havia lhe servido e ele lhe informa que ainda não, pois o lobo não voltara mais. Aurélio

responde que nunca ouvira falar de lobos rondando pela região, assim como dissera da primeira

vez que Demétrio se queixou da existência desse tipo de animal. Num tom de brincadeira, talvez

na tentativa de demonstrar que entendeu que o lobo na verdade não era o animal, mas na verdade

um humano inconveniente, Aurélio acaba dando uma sugestão a Demétrio: “Sugeri com ironia

que talvez os lobos adivinhassem onde existiam armas” (p. 448) e que ele acaba achando muito

boa: “O senhor está fazendo uma boa sugestão – preciso deixar a arma bem à mostra.” (p. 448).

Mesmo fazendo a ironia, Aurélio confessa que não sabia exatamente sobre o quê e até

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111

mesmo sobre quem eles falavam. Valdo ainda instiga o farmacêutico a lembrar mais detalhes

daquela conversa e ele acaba lembrando que Demétrio estava muito agitado, amedrontado,

como se estivesse com medo de alguma coisa. E uma fala de Demétrio que Aurélio acaba

lembrando deixa Valdo satisfeito:

− Não disse nada?

− Disse. Uma única vez voltou-se para mim e indagou: “Tem certeza de que

aquele revólver funciona?” “Tenho”, respondi. E ele: “Então o rato não

deixará de cair na ratoeira.”

− Nada mais?

− Nada mais, tenho certeza.

O Sr. Valdo suspirou fundamente, como um homem aliviado, encarou-me

ainda uma vez, fixamente, depois meteu a mão no bolso, retirou a carteira,

percorreu algumas notas, estendeu-as:

− Acredite. O senhor acaba de me auxiliar imensamente. (50. Quarta narrativa

do farmacêutico, p.449)

O que se subentende que Valdo ficou satisfeito com essa revelação de Aurélio, pois foi

como se as peças do quebra-cabeça tivessem todas se encaixado. É provável que Demétrio havia

adquirido a arma e a deixou talvez guardada em um local escondido, por isso talvez o efeito

que Demétrio esperava não foi logo obtido. Então a ideia do farmacêutico de deixar a arma

amostra contribuiu para a tentativa de suicídio de Valdo, ao se ver diante da situação de

desespero na qual Nina iria deixar a Chácara.

Dessa forma, constata-se que deixar a arma amostra foi uma estratégia do próprio

Demétrio, sugerida indiretamente pelo farmacêutico, por volta de um ano depois desse encontro

em que ele adquiriu a arma. Porém, o leitor só vai ter acesso a essa informação no capítulo 50,

ou seja, quarenta e sete capítulos depois em que a arma apareceu pela primeira vez na narrativa.

Sobre o episódio do suicídio de Valdo, pelo menos cinco dos dez narradores contribuíram

para a elucidação sobre o que realmente aconteceu naquele final de tarde na Chácara dos

Meneses, foram eles: o farmacêutico, o médico, Ana, Nina e o próprio Valdo. Além dos

cinco narradores, a fala do personagem Demétrio que surge dentro das narrativas do

farmacêutico e do médico, também contribuíram para o esclarecimento de tal fato. Nota-se que

tanto houve dissonâncias entre alguns discursos, como também consonâncias, e que todos se

dispuseram a apresentar a sua versão sobre o mesmo fato acabaram estabelecendo um diálogo

provido pelo autor implícito, o regente de todas essas vozes, dessa forma podemos afirmar que

realmente há polifonia em Crônica da Casa Assassinada.

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112

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No romantismo, José de Alencar dava aos primeiros passos do romance psicológico na

literatura brasileira, mas na estética realista/naturalista esse fluxo foi interrompido, pois pouco

se desenvolveu o psicológico dos personagens. Essa estética foi revisitada pelo romance de

1930, na qual se caracteriza o romance Salgueiro, e tinha a sociedade como ponto de partida

para a composição das personagens. Elas eram moldadas ou determinadas pelo contexto social

do qual elas faziam parte, estabelecendo assim um movimento de fora para dentro, ou seja, do

externo para o interno. Nessa perspectiva, a personagem era apenas um reflexo da sociedade da

qual ela fazia parte. Enquanto em Crônica da casa assassinada, o movimento é contrário, pois

a sociedade é recuperada a partir das falas e pensamentos das personagens. Então o movimento

passa a ser dentro (da mente das personagens) para fora (contexto social), isto é, o movimento

se modifica e passa a ser do interno para o externo. Dessa forma, seguindo a perspectiva de

Georg Lukács, as modificações ocorridas nos textos literários decorrem do momento social em

que elas são produzidas, pois para o autor um “o novo estilo brota da necessidade de configurar

de modo adequado as novas formas que se apresentam na vida social” (LUKÁCS, 2010, p.

155).

Na fase do realismo/naturalismo, e posteriormente do romance de 1930, pouco se

desenvolvia o psicológico das personagens. Com o modernismo essa preocupação com o

psicológico aumentou substancialmente, como uma espécie de resposta ao que acontecia no

ambiente social europeu, pois, aproximadamente, na segunda década do século XX, o romance

psicológico começou a ser produzido, com o uso do monólogo interior e do fluxo de consciência

nas obras de Virginia Woolf e James Joyce. Nesse momento, o narrador onisciente é posto em

questão por ser uma perspectiva genérica da realidade exterior e até mesmo pouco convincente

do ponto de vista interior, por ser impessoal. Dessa forma, podemos estabelecer uma analogia

entre o caso dos estilos dos romances em estudo e a ideia de Lukács de que um novo estilo

surge de acordo com as necessidades de representar um novo momento social e para isso novas

formas estilísticas são criadas.

Isso geralmente ocorre quando uma velha sociedade vai morrendo e dando lugar a outra

que vai nascendo. Geralmente essa passagem é marcada por diversas crises, sejam guerras por

motivações territoriais ou ideológicas, mudanças no modelo econômico, dentre outras. A

literatura acaba dando uma resposta a esses momentos e procura representar esse novo ser

humano inserido em uma nova práxis social.

Nota-se que Crônica... , como representante do romance modernista, acaba

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113

efetivando mais a participação do leitor na obra, que na época do realismo, naturalismo e no

romance de 1930 atuava como um sujeito passivo diante da condução do narrador único, que

muitas vezes utilizava uma cronologia linear, em que a diegese seguia geralmente a mesma

sequência da história. No romance moderno do século XX, o leitor é um sujeito ativo, cabe a

ele preencher as lacunas deixadas pelo texto do autor, diferentemente do narrador tradicional

que dava tudo detalhado para o leitor: o espaço, o ano e se possível até a data, bem como as

características físicas e psicológicas das personagens, além de facilitar o trabalho do leitor ao

utilizar a sequência começo-meio-fim.

Sendo assim, podemos concluir que Lúcio Cardoso iniciou sua produção romanesca

com Maleita seguindo o modelo de narrativa de acordo com aquela em voga na época, com a

focalização fixa, a cronologia linear, as personagens sendo influenciadas pelo meio em que

viviam, traços que ainda encontramos em Salgueiro em suas duas primeiras partes. Porém, a

partir da terceira parte de Salgueiro percebe-se a focalização se modificando do externo para o

interno, isto é, Geraldo deixa de ser apenas uma marionete de seu destino e passa a usar o

livre arbítrio sobre a sua própria vida. Isso vai ser obtido através do desenvolvimento do

psicológico do personagem, reflexo na literatura do que vinha acontecendo na sociedade nas

primeiras décadas do século XX, como os significativos estudos sobre a mente humana de

Sigmund Freud.

A partir de A luz no subsolo, o estilo intimista de Lúcio Cardoso foi dando seus próximos

passos e a focalização passou de fixa, para variável, pois o narrador através do recurso da

onisciência seletiva múltipla foi alternando a focalização da diegese entre as mentes das

personagens. Em Crônica da casa assassinada, o ápice do intimismo ocorre através da

fragmentação discursos, pois a relação entre as personagens era marcada pela

incomunicabilidade, o que acabava reforçando o intimismo de cada personagem/narrador.

Dessa fragmentação estrutural dos discursos dos personagens/narradores, eles acabavam muitas

vezes se completando e se contradizendo como peças de um quebra-cabeça que não tinha como

resultado formar uma imagem única, pelo contrário, o principal intuito era mostrar o

estilhaçamento da família tradicional mineira.

Portanto, concluímos que a mudança no tipo de focalização e na opção pela

variabilidade de narradores contribuiu substancialmente para constituir o estilo de Lúcio

Cardoso. Com essa alteração, Cardoso entrou em consonância com narrativa moderna do século

XX, pois além dele outros autores da literatura brasileira e estrangeira passaram a utilizar o

recurso da diegese narrada por pontos de vista múltiplos com o fim de representar a era da

certezas voláteis, a exemplo de Jogo da amarelinha (1953), de Julio Cortázar; As meninas

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114

(1973), Lygia Fagundes Telles; A ostra e o vento (1997), de Moacir Costa Lopes (1997);

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