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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas Faculdade Nacional de Direito Desafios para construção de uma nova práxis extensionista no Direito Amanda Alves de Souza Rio de Janeiro 2010

Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

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Monografia de Amanda Alves de Souza, estudante e assessora universitária, intitulada "Desafios para construção de uma nova práxis extensionista no Direito", do curso de Graduação em Direito na universidade Federal do Rio de Janeiro.Resumo:Neste trabalho de conclusão de curso, serão discutidos os elementos para a construção de uma nova práxis extensionista no Direito, de caráter não-assistencialista, interdisciplinar e fomentadora de uma dinâmica de pesquisa essencialmente participante da dinâmica política, social e cultural quotidiana. Explicitarei os desafios à implantação da nova práxis a partir das experiências vivenciadas na Universidade Federal do Rio de Janeiro e relatadas por educadores e alunos da Universidade de Brasília.Longe de ter a pretensão de esgotar o tema e ciente das deficiências de formação que o atual ensino jurídico deixa como herança, demonstrarei que a construção dessa nova práxis passa pelo fortalecimento do tripé ensino-pesquisa-extensão nos cursos de Direito que, por sua vez, necessitam não apenas do saneamento de vícios metodológicos, mas da adoção de uma nova compreensão acerca do que seja Direito em nossa sociedade.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas

Faculdade Nacional de Direito

Desafios para construção de uma nova práxis extensionista no Direito

Amanda Alves de Souza

Rio de Janeiro

2010

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Amanda Alves de Souza

Desafios para construção de uma nova práxis extensionista no Direito

Trabalho monográfico apresentado à

Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como requisito parcial para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Ms. Marilson Santana

Rio de Janeiro

2010

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Ao meu grande amigo e professor

Marcos Silva e aos meus companheiros

do Núcleo Interdisciplinar de Ações para

Cidadania.

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Agradeço meu orientador, Prof. Ms. Marilson Santana, pela

constante dedicação para que pudesse produzir este trabalho e pela correção de

minhas deficiências de formação.

À minha mãe pelo apoio incondicional em todas as horas.

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Souza, Amanda Alves de.

Desafios para construção de uma nova práxis extensionista

no Direito/Amanda Alves de Souza. – 2010.

50 f.

Orientador: Marilson Santana.

Monografia (graduação em Direito) – Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas,

Faculdade Nacional de Direito de Direito.

Bibliografia: f. 49-50.

1. Ensino Jurídico. I. Santana, Marilson. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e

Econômicas. Faculdade Nacional de Direito.

CDD 340.12

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Amanda Alves de Souza

Desafios para construção de uma nova práxis extensionista no Direito

Trabalho monográfico apresentado à

Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como requisito parcial para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

.

Data de aprovação: ____/ ____/ _____

Banca Examinadora:

________________________________________________

Prof. Marilson Sanatana – Presidente da Banca Examinadora

________________________________________________

Profª Juliana Neuenschwander Magalhães

________________________________________________

Profª Miriam Guindani

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Sumário

Introdução......................................................................................................................... 6

I. Contribuições da Nova Escola Jurídica Brasileira para crítica e reconstrução do ensino

jurídico.............................................................................................................................. 8

1.1 Contextualização..............................................................................................8

1.2 Fundamentos da Nova Escola Jurídica Brasileira..........................................11

1.3 Diagnósticos dos problemas do modelo de ensino jurídico tradicional.........15

II. Diretrizes Curriculares, Reforma do Ensino e Extensão Universitária no Direito.....19

2.1 Breve histórico de propostas para Reforma do Ensino Jurídico....................19

2.2 Estudo das causas da não-reforma.................................................................21

2.3 Portaria 1.886/94 e a Extensão no Direito.....................................................25

2.4 Resolução nº 9 de 2004 do Conselho Nacional de Educação........................28

III. Desafios para implantação do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania na

Universidade Federal do Rio de Janeiro..........................................................................31

3.1 Formação da Equipe Interdisciplinar.............................................................35

3.2 Elaboração do Atendimento no NIAC...........................................................39

3.3 Acompanhamento das demandas pela equipe do Direito..............................44

3.4 Por que ter pesquisa na Extensão? ................................................................48

IV. O que se pensa na colina: breve relato sobre a experiência da Universidade de

Brasília.............................................................................................................................51

Conclusões.......................................................................................................................53

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Introdução

Neste trabalho de conclusão de curso, serão discutidos os elementos para a construção

de uma nova práxis extensionista no Direito, de caráter não-assistencialista, interdisciplinar e

fomentadora de uma dinâmica de pesquisa essencialmente participante da dinâmica política,

social e cultural quotidiana. Explicitarei os desafios à implantação da nova práxis a partir das

experiências vivenciadas na Universidade Federal do Rio de Janeiro e relatadas por

educadores e alunos da Universidade de Brasília.

Longe de ter a pretensão de esgotar o tema e ciente das deficiências de formação que o

atual ensino jurídico deixa como herança, demonstrarei que a construção dessa nova práxis

passa pelo fortalecimento do tripé ensino-pesquisa-extensão nos cursos de Direito que, por

sua vez, necessitam não apenas do saneamento de vícios metodológicos, mas da adoção de

uma nova compreensão acerca do que seja Direito em nossa sociedade.

Será abordada então no primeiro capítulo a importância da Nova Escola Jurídica

Brasileira que, inserida no contexto histórico de crise e efervescência política que vai de 1970

a 1980, inaugura uma nova fase de crítica nas instituições de ensino jurídico e se apresenta

como marco teórico dentro desse novo processo de discussão. Além disso, analizarei

importantes contribuições para o trabalho de reestruturação do ensino jurídico fomentado pela

Ordem dos Advogados do Brasil, a partir de 1990, que representou uma certa continuidade

das discussões travadas pela Nova Escola no interior da academia jurídica brasileira.

No segundo capítulo, serão relatados os desdobramentos de todos os diálogos e

mudanças de concepção ocorridos de 1980 a 1990, com a análise da relação entre as novas

diretrizes curriculares que passaram a ser adotadas em meados da referida década até os dias

atuais, as diferentes proposições para reforma do ensino jurídico e o surgimento de uma nova

práxis extensionista no Direito.

No terceiro capítulo, será abordada a experiência vivenciada na Universidade Federal

do Rio de Janeiro que representa alguns avanços rumo a construção de um ensino jurídico

contextualizado e interdisciplinar. A experiência prática extensionista demonstrou que ainda é

preciso grande esforço para superar não apenas valores e ideiais arcaicos profundamente

arraigados nas Faculdades de Direito, mas também toda uma lógica político-acadêmica ainda

presente na Universidade que a afasta dos problemas concretos da classe trabalhadora ou da

massa excluída do sistema sócio-econômico de privilégios da sociedade brasileira.

Por último, farei uma breve menção à experiência da Universidade de Brasília, como

segundo caso de experiência extensionista avançada que contribui para construção de um

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ensino jurídico mais crítico e interventivo na realidade. Traçarei um breve relato sobre os

temas e projetos sugeridos pela UnB como centrais para o estabelecimento de uma nova

cultura jurídica no Brasil e para a emancipação de setores sociais espoliados e oprimidos.

A expectativa deste trabalho é mostrar como essa nova práxis extensionista tem se

revelado um contraponto dentro de instituições de ensino cuja cultura jurídica formalista

marcada por teorias positivistas, embora ainda dominantes, têm se demonstrado incapazes de

explicar a complexa e contraditória realidade social nem tampouco dão respostas adequadas e

satisfatórias às demandas concretas de amplos setores da sociedade. Além disso, a nova práxis

coloca a possibilidade da adoção de novas formas de produção de conhecimento científico

que assumam, diferentemente das formas clássicas, seus devidos compromissos políticos e

ideológicos.

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1) Contribuições da Nova Escola Jurídica Brasileira para crítica e

reconstrução do ensino jurídico

1.1 Contextualização

Neste capítulo será feita uma breve análise das contribuições oferecidas pela Nova

Escola Jurídica Brasileira para a construção de novas práticas pedagógicas e para superação

do que se convencionou chamar crise do ensino jurídico. Antes de colocar o que vem a ser a

Nova Escola e o que propõe como alternativa às teorias positivistas e jusnaturalistas, é preciso

observar em que contexto histórico-social estavam imersos seus membros.

Destaco, então, dois momentos que podem ter criado condições materiais, históricas e

culturais determinantes para o surgimento desta Escola do Direito que influenciou geração

acadêmica posterior e certamente continuará servindo de marco teórico dada a sua atualidade.

O primeiro momento é aquele que se entitula de período das demandas populares pós-

64. Nesse período de efervescência política que vai de 1970 a 1980, o país ainda se

recuperava dos tempos de autoritarismo que se configuraram com a tomada do Poder

Executivo pelas Forças Armadas em 1964, que contaram inicialmente com o apoio de

parcela significativa da sociedade brasileira, em especial da classe média urbana e, no plano

internacional, com os organismos representantes do imperialismo Norte-Americano.

No plano econômico, observa-se que

“o exercício pleno da hegemonia militar-tecnocrático-empresarial

exigia um processo acumulativo contínuo, um certo progresso

material das classes médias e um elevado grau de autoritarismo em

nome da eficiência do planejamento, o que foi possível até o primeiro

choque do petróleo, no início dos anos 70.” (Luz: 2008: 84)

O processo acumulativo contínuo e o ideal de progresso representado pelas obras de

grande escala iniciaram

“um processo gradativo de identidade coletiva entre aqueles

componentes da massa humana excluídos, reféns, em cada caso, dos

efeitos nocivos de cada projeto implementado pelo governo militar. O

ápice de tal constituição de identidade coletiva ocorreu na década de

1980.” (Luz: 2008: 85)

A constante violação a princípios relacionados aos Direitos Humanos, o monopólio da

produção legislativa pelo Executivo e a formação de uma doutrina jurídica que propunha a

manutenção da ordem estabelecida em nome da segurança nacional restringiram de tal modo a

participação política da massa brasileira excluída que não restava outra alternativa aos

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grandes movimentos de cunho nacional a não ser o confronto direto e aberto com o Estado. A

pauta de revindicação dos movimentos políticos e sociais a partir de 1970 passou, então, a

girar em torno basicamente da luta pela anistia, redemocratização e maior participação

política.

Nesse mesmo período, destaca-se, além da resistência ao regime militar, a importância

dos movimentos sociais cristãos e de inspiração na Teologia da Libertação. Tais movimentos

até o início de 1990 estiveram inseridos nas grandes mobilizações de massa e, após o início da

referida década, se articularam de variadas formas com setores da sociedade que vão de

Organizações não governamentais a partidos políticos. (Gohn: 2003: 19)

De fato, o segundo momento que diz respeito à Nova Escola Jurídica Brasileira é o

chamado período de constituição dos novos movimentos sociais que vai de 1980 a 1990. Com

a redemocratização do país, esse momento foi marcado pela ampliação dos espaços de

participação política e pelo surgimento de outras formas de organização, para além dos

sindicatos e partidos políticos, que eram os pólos principais de resistência do período anterior.

Não se pode negar o impacto da crise que se instalou na União Soviética sobre as

formas de organização popular em todo o mundo. Nesse contexto, os partidos/organizações de

esquerda, em especial o Partido Comunista, recém retirado da ilegalidade, receberam duras

críticas dos mais amplos setores da sociedade brasileira, passando por um momento de auto-

crítica e reformulação dos seus instrumentos de atuação sem abandonar, no entanto, a

orientação Marxista-leninista. (Kurz: 1992: 16)

A afirmação do “fim da história” em 1989 e do American Way of Life como “forma

definitiva racional da sociedade e do Estado”, além de revelar a arrogância e preciptação dos

“vencedores”, também demonstrou o quão fragilizada estava a organização dos trabalhadores

em todo mundo. Falhas em mecanismos de funcionamento interno do socialismo real e a crise

que se abateu também sobre o modelo capitalista revelam que a “vitória do Ocidente” foi um

tanto quanto forçada e irreal.

Kurz reuniu em uma de suas obras para demonstrar o cenário com o qual se deparou a

esquerda com a queda do socialismo real.

“ A RDA terminou com um suicídio e na Hungria “o capitalista passa

a ser figura positiva”. O PC Italiano, que já se tornou social-

democrata há muito tempo, afirma: “Martelo e foice vão para o erro

velho.”, enquanto a classe intelectual da Itália, com sua despedida do

Marxismo, comete “parricídio por falta de interesse”. A líbia de

Kadhafi “tenta o abandono cuidadoso do socialismo restrito da

revolução”. Moçambique e Angola “viram, empobrecidos, as costas

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para o Marxismo” e o governo em Hanói “aposta em John Maynard

Keynes”.” (Kurz: 1992: 17).

Além da queda do socialismo real, assistiu-se à crise do Estado de Bem-Estar nos

países centrais e, na América Latina, a crise do modelo capitalista-desenvolvimentista vinha

se aprofundando gradativamente. Afirma-se que no Brasil, em meio à crise econômica e

social, passou-se a uma nova configuração social que deu origem a novos conflitos e pressões

organizadas. Entende-se que

“o aceleramento industrial, ainda que impactado pelos efeitos da

crise do petróleo vivenciada na década de 1970, passou a produzir no

bojo da sociedade brasileira, urbana e rural, novas dimensões de

conflitos, tensões essas, na maioria das vezes, postas em choque com

o aparato legal tradicional positivado que, via de regra, não atendia

às especificidades e particularidades das reinvindicações

insurgentes”. (Luz: 2008: 98)

Dentre as novas reinvindicações estavam as das mulheres, por uma maior participação

nas esferas de poder político, dos negros, pelo fim das desigualdades históricas e sociais, e

aquelas provenientes do novo sindicalismo.

Para Gohn, os chamados novos movimentos sociais têm constituído desde 1980 até os

dias atuais uma identidade a grupos antes dispersos e projetado em seus participantes

sentimentos de pertencimento ou de inclusão social. Além disso, resgataram uma orientação

de caráter humanista em uma sociedade de orientação mercadológica, fizeram resurgir um

sentido de coisa pública e incentivaram a vigilância sobre a atuação estatal. (Gohn: 2003: 16)

Assim, o período de 1970 até 1989 contribuiu decisivamente, via demandas e pressões

organizadas, para a conquista de direitos sociais novos que foram inscritos mais tarde na

Constituição de 1988. De 1990 até 1999, houve uma desmobilização em massa, reflexo da

crise dos países socialistas e da implantação do modelo neoliberal, com o conseqüente

deslocamento da visibilidade dos movimentos de cunho popular para as ONG’s. Em paralelo,

apesar do cenário desfavorável às mobilizações, assistiu-se à criação da Central dos

Movimentos Populares, a organização dos trabalhadores do mercado informal e grande

adesão social às bandeiras do funcionalismo público contra a supressão de direitos sociais, em

função de ajustes fiscais e da política econômica implantada. (Gohn: 2003: 27)

Outra característica relevante observada no período de 1970 a 1989 é o método de

ação dos movimentos sociais, marcado basicamente pela atuação a margem do instituído. Um

traço marcante é o de que as regras burocráticas e as prescrições jurídicas eram alteradas, não

pelas vias institucionalizadas, mas por ações coletivas e por vias paralelas ao Estado.

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É importante perceber, portanto, que a formação de uma teoria crítica as teorias

positivistas e a cultura jurídica formalista revela-se como a expressão de profunda resistência

social ao papel que passa a ser desempenhado pelo Estado, no Brasil e em todo mundo com o

processo de crise do socialismo real, de reprodução de estruturas de dominação, sendo as

instituições de ensino jurídico, conforme analisarei a seguir, um dos pólos de sustentação de

todo esse sistema de reprodução de desigualdades sociais.

1.2 Fundamentos da Nova Escola Jurídica Brasileira

Como se pôde observar, houve nos períodos acima relatados quatro elementos

históricos que nos parecem fundamentais para o fortalecimento de uma nova concepção

acerca do Direito, que conseqüentemente desenboracará na busca por novas práticas

pedagógicas sendo eles: (i) o crescimento da resistência aos modelos econômicos implantados

pelas elites nacionais, (ii) a contestação do direito positivado vigente, (iii) a conquista de

direitos sociais pelos movimentos de resistência e (iv) a formação de demandas por novos

direitos.

Observados esses quatro elementos, passo a discutir o posicionamento da Nova Escola

Jurídica Brasileira, chamada por Lyra Filho de NAIR. Utilizarei a própria metodologia

sugerida pelo autor para sintetizar esse posicionamento. Dividirei a nova concepção jurídica

em quinze proposições sintéticas báscias: cinco relativas ao que a Escola não é, cinco relativas

ao que ela combate e cinco relativas ao que ela sugere. Em seguida, será feita a relação entre

as sugestões da NAIR e os desafios impostos para superação da crise por que passa o ensino

jurídico e que perspectivas esse novo marco teórico brasileiro criou para as instituições de

ensino jurídico.

A primeira proposição do bloco do “não-ser” representa uma crítica as doutrinas

positivistas que consideram o Direito um sistema de dogmas encadeados entre si. Além disso,

não se propõe uma adaptação a modelos teóricos anteriores, mas construtora de uma teoria

dialética do Direito, em constante aperfeiçoamento e ciente de suas limitações, que se baseia

em outras cinco proposições negativas que constituem o bloco de combate a noções presentes

no ensino jurídico. A NAIR se propõe espaço democrático para livre produção do saber ao

negar na terceira e quarta proposição tanto a vinculação do seu saber a outros objetivos que

não sejam o avanço teórico na área do Direito quanto a impossibilidade de coexistência de

idéias antagônicas para formulação de princípios comuns a todos os seus membros. A quinta

proposição diz respeito à preocupação de produção de um saber que seja contextualizado e dê

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respostas qualificadas às demandas da sociedade em um dado momento histórico. Assim,

Lyra Filho afirma que a Nova Escola não é “um grupo de gabinete” e coloca a importância da

participação em

“todas as campanhas de vanguarda supra-partidária – anistia,

reconstitucionalização, combate à lei de segurança do poder, que se

disfarça como segurança nacional, Diretas, já!”.

(Lyra Filho: 1984: 09).

Passo agora a analisar o bloco de combate da NAIR que constitui crítica a algumas

noções predominantes nos cursos jurídicos. A primeira linha de “combate” que se abre é em

relação a associação que “normalmente” se faz entre Direito e lei. Se Direito fosse lei

“não existiria Direito Internacional (inclusive supraestatal, na

medida em que traça limites jurídicos para o comportamento dos

Estados), não se entenderia o Direito de que se tratou, nos tribunais

de Tóquio e Nuremberg, após a 2ª Guerra Mundial, nem se

fundamenta o direito de libertação nacional, exercido por maquis,

mesmo quando um governo de fato manda que cessem as hostilidades

ao inimigo.” (Lyra Filho: 1984: 12)

Se assim fosse, não assistiríamos à formação em alguns Tribunais de decisões contra

legem.

O que se observa é que esta associação vai desencadear uma série de outras que

veremos mais adiante nesse mesmo bloco. Ela provoca na realidade a manutenção de muitas

das bases infra-estruturantes do poder estabelecido e propagador das normas bem como

constitui um meio, na verdade ilegítimo, de encontrar sua própria legitimação.

O grande equívoco das teorias positivistas do direito reside exatamente no fato de

reduzir o direito a um de seus aspectos que é a sua positividade. É justamente por isso que

muito se discute sobre o formato adquirido pelo direito (classificação/nomeclatura dada às

normas, padrão de validade das normas, pirâmide de encadeamento das mesmas, etc.) e pouco

sobre o que vem a ser concretamente a sua substância e conteúdo. Reduzir o direito à sua

positividade traz como conseqüência a negação de positividade ao que não é direito estatal, o

que levaria também à negação de fatos históricos como o da existência de normação jurídica

em sociedades em que não há Estado, conforme demonstrou o antropólogo Clastres (Clastres:

1978: 144), ou então, nas sociedades em que houve o surgimento do Estado, do fato de ter

sido o Poder Constituinte fonte de um novo Direito, conforme explicação do eclesiástico

Abade Sieyès (Sieyes: 2001: 69) .

A cultura jurídica positivista, marcada no Brasil pela ampla supremacia do oficialismo

estatal, representante de uma elite econômica adepta do individualismo liberal, ignora que

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houve organizações populares em que se conseguiu estabelecer uma cultura jurídica

diferenciada como é o caso das comunidades indígenas. Chega-se a afirmar que nelas existiu

“um direito insurgente”, o que revelaria a existência de um pluralismo jurídico em nossa

sociedade.

Na verdade, o fenômeno jurídico abarca uma série de aspectos que são mutilados não

apenas pelas teorias positivistas, mas também pelas teorias jusnaturalistas que tentam explicar

institutos jurídicos a partir de uma suposta “essência” ou “ordem natural das coisas”, quando

não acabam por justificar o jurídico pelo divino poder metafísico de Deus.

A NAIR, quando propõe a construção de uma Teoria Dialética do Direito, demonstra

que na realidade o Direito constitui luta constante entre grupos e classes sociais

espoliados/oprimidos e grupos e classes sociais espoliadores/opressores. É esta tensão que

está no cerne da questão jurídica e que reverbera, numa relação dialética, sobre costumes,

instituições, organizações de controle social e sobre a cultura dominante.

Passo a analisar agora outro equívoco positivista na segunda linha de “combate”. Ela

se refere a definição da norma e de sua validade pela sanção ou pelo poder de coercibilidade

que exerce sobre todos. Essa forma de raciocínio quase sempre acaba redundando na falsa

noção de que o efeito da coerção é igual para todos, excluindo-se a influência de condições

materiais, históricas e culturais, e em uma noção restrita de liberdade, sendo esta encarada ou

como algo que o poder constituído “permite” ou como resíduo de todo um conjunto de

normas proibitivas. A liberdade passa a girar, portanto, em torno da norma e do poder que a

emitiu. Essa segunda linha se relaciona com outra que desconstrói exatamente a noção de

liberdade predominante. Afirma Lyra Filho que esta noção consiste em deduzir a liberdade

“do festival irrestrito de normas que só se admitem normas coercíveis

e legitimamente jurídicas enquanto estas atuem, para que a liberdade

dos indivíduos e grupos não ultrapasse o círculo próprio, ofendendo a

liberdade alheia e, conseqüentemente, negando os Direitos

Humanos”. (Lyra Filho: 1984: 14)

Outra proposição de combate que toca na questão da liberdade diz respeito à negação

do chamado “fetichismo jurídico” que concebe a liberdade a partir do direito positivado

(costumeiro ou legal) e não observa os excessos cometidos pelas leituras ultra legalistas da

realidade nem tampouco os excessos cometidos quando não se obeservam limites jurídicos,

inclusive, para a própria atuação do Estado.

A quinta e última linha de combate consiste em não reconhecer o monopólio do

Estado do poder de normar e sancionar. Trata-se de reconhecer que o sistema jurídico só é

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jurídico quando possui legitimidade e acolhe constantemente, numa relação dialética, a

pressão organizada dos que oprime.

Passamos a entender agora o bloco de cinco sugestões da NAIR para o avanço teórico

no Direito. As primeiras proposições consistem em

“repor o Direito, em seu lugar próprio, a fim de cancelar as inversões

positivistas”, “determinar-lhe o critério objetivo, segundo o impulso

libertador, na luta pela justiça histórica, social e concreta” e

“sustentar os direitos das classes, grupos e povos ascendentes,

conforme o vetor histórico indicativo de sua posição vanguardeira”.

(Lyra Filho: 1984: 19)

As inversões positivistas mencionadas na primeira sugestão são aquelas elencadas no

bloco de combate. Repor o Direito em seu próprio lugar significaria, portanto, não apenas

negar suas inversões positivistas, mas analisá-lo e reconstruí-lo segundo a dinâmica histórica

e contraditória da sociedade, reconhecendo todas as estruturas de dominação de classe, a

correlação de forças existentes e sua permanente mutação.

Essa releitura e reconstrução esbarra em limites, dado o processo gradual em que

ocorrem as tranformações, visto que elas próprias guardam resquícios do que havia antes de

ocorrerem. Com base nisso, a NAIR propõe que sejam reconhecidos os limites jurídicos da

práxis transformadora para que o processo de libertação das estruturas de dominação não se

desnature no seu percurso. Vale ressaltar aqui a contribuição da filosofia hegeliana na análise

do processo de transformação da realidade e certa influência marxista que analisa a evolução

revolucionária e seus entraves, indicando três elementos históricos que influem no processo

de transformação da sociedade, sendo eles as forças produtivas, as condições materiais de

vida e o nível de conscientização da classe operária.

A quinta e última sugestão do bloco constitui uma espécie de síntese de todas as

anteriores ao mostrar que

“a positivação dialética do Direito é um processo transformativo

incessante, superior e mais amplo do que qualquer ordem

determinada, conjunto de normas reduzido, instituição ou sistema que

se arroguem o controle do movimento histórico, segundo o seu

próprio modelo de estruturação da convivência e padronização de

condutas.” (Lyra Filho: 1984: 19)

A partir disso, observo que dois dos elementos característicos do tempo histórico da

NAIR (o crescimento da resistência aos modelos econômicos implantados pelas elites

nacionais e a contestação do direito positivado vigente) permeam em grande medida dois

grandes blocos críticos de proposições (não-ser e combate), ao afirmarem um novo espaço de

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construção da Teoria do Direito e a negação de noções predominantes no ensino jurídico.

Além disso, ao comprovar a existência de um Direito contra e supra legem, a NAIR revela

outros dois elementos de seu tempo que são a conquista de garantias jurídicas pelos

movimentos populares de resistência e a formação de demandas por novos direitos.

Diante do passado mais recente e do atual cenário de crise do capitalismo financeiro

internacional-globalizado, o ponto que parece nevrálgico dentro de todas as proposições até

aqui expostas está no combate ao monopólio do Estado de normar e sancionar as relações

econômicas e sociais (segunda proposição da NAIR no bloco de combate a noções

predominantes no ensino jurídico).

O período que vai de 1990 ao ano de 2000, entitulado como o período de

desmobilização dos movimentos sociais (Luz: 2008: 100), foi marcado, no plano econômico,

por elevado índice de desemprego, por um processo de privatização de serviços ligados ao

Estado, pela crise de instituições clássicas da previdência social, pelo endividamento externo,

acumulado desde 1964, e pelo estreitamento das relações políticas entre o Brasil e organismos

internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial.

A crise econômica e institucional que se abateu sobre o Estado Brasileiro a partir de

1990 e a sistemática supressão de princípios e garantias constitucionais consagrados em 1988

nos fizeram ponderar que o combate ao monopólio do Poder Estatal, deve ter como norte o

princípio de que o processo de normatização e regulação das relações sociais deve se dar com

a observância da legitimidade do próprio processo e, conseqüentemente, dos anseios da

sociedade por transformações da ordem social estabelecida. Como bem frisa Roberto Lyra

Filho, a NAIR não propõe o aniquilamento do direito estatal ou uma análise simplista do

Direito, mas o reconhecimento de que o direito positivo e as instituições estatais refletem as

contradições da sociedade e absorvem uma quota de preceitos legítimos quando estão sob a

pressão organizada de espoliados e oprimidos.

Além disso, a Nova Escola Jurídica, ao combater noções predominantes nas

instituições de ensino jurídico, adverte para o fato de que a mudança de práticas pedagógicas

não está somente relacionada com a correção de vícios metodológicos, mas também com a

transformação do seu conteúdo, ou seja, do que se compreende como Direito em nossa

sociedade. Neste sentido, a crítica tanto ao dogmatismo positivista (dever-ser formal) quanto à

concepção metafísica jusnaturalista (dever-ser ideal) vão inaugurar uma nova fase para as

instituições de ensino jurídico, visto que suas práticas e conteúdos não respondiam mais às

demandas latentes no seio de uma sociedade mergulhada em crises e contradições.

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1.3 Diagnósticos dos problemas do modelo de ensino jurídico tradicional

No início do período que vai de 1990 a 2000, dentre as instituições que se propunham

a debater a questão da crise do ensino, destaca-se o Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil que já em anos anteriores combatia a abertura desenfreada de cursos

jurídicos privados formadores, no entendimento da entidade, de profissionais insensíveis à

situação de crise do país.

Através de sua Comissão de Ensino Jurídico, foi desenvolvido relevante trabalho de

elaboração de um diagnóstico de problemas que afetam o ensino do Direito e, a partir desse

levantamento, criou uma série de perspectivas e propostas para superação de obstáculos e

dilemas encontrados.

Como bem sintetizou Sousa Junior, a época Vice-Presidente da Comissão de Ensino

Jurídico,

“tratava-se de empreender um trabalho crítico e consciente apto a

afastar o jurista das determinações das ideologias, quebrar a

aparente unidade ou homogeneidade da visão de mundo constitutiva

de um pensamento jurídico hegemônico produzido por essas

ideologias e romper, em suma, com a estrutura do modo abstrato de

pensar o direito, inapto para captar a complexidade e as mutações

das realidades sociais e políticas.” (Sousa Junior: 2007: 22)

Se conceitua o trabalho desenvolvido pela OAB como “a busca de um diálogo criativo

com todos quantos estivessem refletindo sobre o ensino jurídico”. Acrescenta-se que

“ao definir pressuspostos para este diálogo, a Comissão da OAB

alertava que discutir ensino jurídico implicava, essencialemente, a

reformulação das prórias regras do pensar a ordem jurídica, que

refletia interesses sociais limitados.” (Pôrto: 2000: 26)

A partir da premissa fundamental de que o Direito que se entende mal determina os

defeitos de sua pedagogia, conseguiu-se sintetizar três características/problemas do modelo de

ensino jurídico ainda vigente que abrirão perspectivas para formulação de novas diretrizes

curriculares, práticas pedagógicas e políticas públicas nas áreas jurídicas e educacional.

A primeira característica observada é a descontextualização do ensino que o coloca

como lugar de reprodução de um conhecimento que tem como pressuposto o ocultamento de

conflitos e complexidades em nome de crenças relativas a uma suposta paz e segurança social.

Esse tipo de conhecimento não pode ser transmitido senão também pelo ocultamento de seus

pressupostos, adotando-se para isso um conjunto de esquemas fundamentais extremamente

interiorizado que enclausura o aprendizado e reproduz valores, idéias e estereótipos.

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17

Constatou-se que o aluno era diretamente afetado pelo referido método, visto que o

conhecimento torna-se um tanto quanto estranho a sua vida cotidiana. Na maioria dos casos,

só se enxergará aplicação prática dos conceitos acumulados já no pleno exercício da vida

profissional, ou seja, cinco ou seis anos depois de iniciados os estudos na Graduação. (Pôrto:

2000: 39)

Se para o universitário o conhecimento adquirido lhe é estranho, imaginemos para o

leigo que encontra-se no lado de fora dos muros da Universidade? Como promover novas

indagações jurídicas, tendo em vista as demandas sociais latentes, se o Direito é tido sempre

como um dado a ser apreendido de maneira dogmática e inquestionável?

Embora não queira dar uma série de respostas imediatas para esses questionamentos

para não fugir do foco deste trabalho monográfico, os desafios não deixam de estar colocados.

Neste sentido, promover a contextualização do ensino exige a apreensão da realidade

circundante de forma a reconstruí-la e recriá-la a partir de novas referências. Além disso, a

aprendizagem não alienante pressupõe mobilização dos alunos a partir de outros saberes que

não são estranhos nem a eles e nem, portanto, ao senso comum. (Pôrto: 2000: 39)

Com isso, chegamos a segunda característica básica do modelo de ensino vigente que

é a unidisciplinaridade. Observou-se que tal modelo parte de premissa relativa ao

conhecimento científico com um todo de que para melhor conhecer o mundo, o conhecimento

deve se subdividir em pequenas partes. Transportando-se tal premissa para o universo da

ciência jurídica, o Direito passaria a se afirmar em relação a outros saberes como ciência, a

partir do momento em que estabelece fronteiras disciplinadas e disciplinadoras. As fronteiras

passam a ser vigiadas e nenhum contato com outros saberes é permitido, visto que desse

diálogo se produziria um outro saber “não-jurídico” e “desinteressante” ao Direito. Os temas

normalmente estudados, portanto, pelo Direito parecem não dizer respeito ao conjunto da vida

coletiva e cotidiana e é exatamente por isso que seus conteúdos ou ficam adstritos ao

privilegiado campo a que apenas os juristas conseguem ter acesso ou causam certa

perturbação aos alunos e à boa parte da sociedade pela sua falta de comunicabilidade.

A terceira e última característica levantada pelos estudos mencionados se relaciona

com as anteriores ao colocar o dogmatismo como estruturante do ensino jurídico atual.

Conforme vem demonstrando a experiência prática,

“ a competência jurídica é um poder específico que permite que se

controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que

merecem entrar nele e a forma específica de que devem se revestir

para se constituirem em debates propriamente jurídicos.”

(Pôrto: 2000: 50)

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18

Com isso, os conflitos sociais saem do alcance das pessoas envolvidas para as mãos

dos especialistas que criam com os leigos uma relação assimétrica e hierárquica, visto que

estes últimos não conhecem as regras de funcionamento do campo jurídico. Esta relação não

passa de reflexo da hierarquia criada entre o pensamento dogmático acadêmico e os outros

saberes, sejam eles acadêmcios ou do senso comum.

O pensamento dogmático se mantém pela exclusão não apenas de outros saberes, mas

também pela exclusão/ocultamento de contradições sociais para manter intactas suas

premissas. Conforme já mencionamos anterioremente, foi constatado que esse pensamento é,

por sua vez, transmitido pelo encadeamento de dogmas, ou seja, pressupostos inquestionáveis,

que tornam o campo jurídico privilegiado e afastado de saberes que o tornaríam comunicável.

O levantamento dessas três características abriu para as instituições de ensino jurídico,

portanto, algumas perspectivas para o início de um processo de mudança iniciado pela Nova

Escola Jurídica Brasileira desde 1970. As novas perspectivas permitirão às instituições

universitárias

“criar condições para romper com o positivismo normativista,

superar a concepção de que só é profissional do Direito quem se

adequa e exerce a atividade forense, negar a auto-suficiência

disciplinar do Direito, superar a concepção de educação tradicional

das salas de aula e formar um profissional com perfil interdisciplinar,

teórico, crítico, dogmático e prático.”(Sousa Junior: 2007: 26).

A formação de uma nova concepção acerca do direito exposta em tópico anterior

permitiu, assim, o diagnóstico da crise de um modelo de ensino que não atende demandas

sociais e enclausura o conhecimento jurídico num campo dogmático. Tal diagnóstico

constituiu passo fundamental para se chegar a propostas de reformulação do ensino jurídico e

a novos espaços de aprendizagem como o da extensão universitária.

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19

2) Diretrizes Curriculares, Reforma do Ensino Jurídico e Extensão

Universitária no Direito

2.1 Breve histórico de propostas para Reforma do Ensino Jurídico

Neste capítulo, analisarei a relação entre as diretrizes curriculares adotadas no passado

mais recente, o impulso que essas diretrizes deram rumo a construção da Reforma do Ensino

Jurídico e o conseqüente surgimento de uma nova práxis extensionista nos cursos jurídicos.

Antes de chegarmos a esta análise, traçaremos um breve histórico de propostas sugeridas

tanto pelo Estado Brasileiro quanto pela Universidade que vai de 1970 até meados dos anos

de 1980 para superação da crise do ensino jurídico. Tal histórico nos trará uma visão

panorâmica dos equívocos cometidos ao longo dessas duas décadas e que acabaram por

arrastar a crise do ensino até os dias atuais.

Embora tenhamos uma riqueza de propostas que visam diversificar a metodologia

utilizada nas instituições de ensino, o que se observou na prática ao longo de todo período

mencionado é que o método expositivo das aulas-conferência predominava sistematicamente

nos cursos jurídicos. Esse método era o mesmo utilizado desde a criação de cursos jurídicos

no Brasil e tomava como referência o modelo da cidade de Coimbra em Portugal. Junto com o

método vêm também conteúdos que guardam dentro de si objetivos semelhantes àqueles de

11 de agosto de 1827, data da criação das Faculdades de São Paulo e Olinda, quais sejam: a

formação de quadros para gestão do Estado Nacional Brasileiro e de guardiões dos ideais

liberal-burgueses sustentados em todo o mundo. (Rodrigues: 1987: 34)

De acordo com essas raízes históricas, no ensino jurídico persiste a idéia de que, para

seu funcionamento, bastam “professores”, alunos, códigos, um ou mais livros-textos, e uma

sala de aula fechada. A expressão professores vem entre aspas, posto que muitos dos

profissionais que assumem esse papel não tem formação pedagógica alguma e estão alheios

ao debate acerca da Reforma do Ensino Jurídico, o que os faz reproduzir alienadamente

metodologia que perpetua de geração em geração a crise do ensino jurídico. (Rodrigues:

1987: 35)

No entender de Demo, a persistência desta forma de ensinar abrange o sistema de

ensino como um todo, posto que nossas entidades universitárias carregam o vício do

instrucionismo, no sentido de basearem em geral as suas atividades em procedimentos

reprodutivos. As Faculdades de Direito, além de carregarem consigo todas as características

Page 22: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

20

do sistema educacional, têm especificidades que devem ser levadas em consideração, posto

que o seu instrucionismo produz efeitos diferenciados, diante de objetivos, condições e

formatos institucionais históricos que são destacadamente distintos das outras ciências sociais.

(Demo: 2008: 15)

No início do período que vai de 1970 a 1980, o Ministério da Educação tomou

algumas iniciativas no sentido de reformular os cursos jurídicos. A discussão, porém, não

tratou, em seu conjunto, de questões históricas e teórico-metodológicas, se resumindo a tão

somente estabelecer um currículo mínimo de disciplinas, carga horária, duração do curso e

normas gerais pertinentes a sua estruturação mínima. Assim, o currículo mínimo passou a

compreender as seguintes matérias: Introdução ao Estudo do Direito, Economia, Sociologia,

Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial, Direito do Trabalho,

Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Direito Processual Penal. A instituição

também poderia optar por ministrar duas dentre as seguintes matérias: Direito Internacional

Privado, Direito Internacional Público, Direito das Navegações, Direito Romano, Direito

Agrário, Direito Previdenciário e Medicina Legal. Além disso, poderia criar habilitações

específicas que possibilitassem a formação de profissionais com um diferencial no mercado

de trabalho. (Rodrigues: 1987: 38)

A chamada Prática Forense passou a ser vista como complementar a formação, junto

com outras disciplinas como Educação Física. Os estágios de prática passaram a ser

desempenhados nas dependências das Faculdades, sob a supervisão da Ordem dos Advogados

do Brasil.

Constatou-se que a visão predominante no ensino era a de que o profissional do

Direito era um técnico em resolver conflitos. Com isso, se desenvolvou uma assistência

judiciária sem a preocupação com outras formas de realização do Direito. Além disso, havia

uma “obsessão praxista” caracterizada como “uma febre por saber fazer” vinda dos alunos,

sem a preocupação com “o porquê de fazer” de determinada forma. (Rodrigues: 1987: 54)

De fato, observou-se de uma maneira geral que a grande maioria das instituições de

ensino adotou o currículo mínimo como pleno, deixando de discutir disciplinas e atividades

práticas que se adequariam a demandas dos alunos e da sociedade em âmbito regional e

nacional. Além disso, as iniciativas do Ministério da Educação não foram suficientes para

responder alguns fenômenos sociais ocorridos na época que serviram como pano de fundo,

além da pressão organizada de setores da sociedade que demandavam mudanças na ordem

social, política e econômica. Restou claro que o problema dos cursos não se resumia a uma

Page 23: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

21

questão de alteração curricular, mas abarcava discussões políticas, teóricas e metodológicas

mais profundas.

A partir de 1980, o Ministério da Educação nomeou uma Comissão de Especialistas

em Ensino do Direito para formular proposta diferenciada daquela de 1972. A proposta

estabelecia como matérias básicas a Ciência do Direito, a Sociologia Geral, a Economia, a

Ciência Política e a Teoria da Administração. No bloco de formação geral em Direito,

estavam as matérias Teoria Geral do Direito, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito,

Hermenêutica e Teoria Geral do Estado. A formação profissional abarcava o ensino da

dogmática Constitucional, Civil, Penal, Comercial, Administrativa, Internacional Pública,

Tributária, do Trabalho e Processual.

Se por um lado houve um equílibrio entre disciplinas não-dogmáticas e dogmáticas,

por outro, permaneceu a visão de que Teoria e Prática são estanques e opostas, o que obstrui

a criação de um hábito dentre os alunos de analisar a totalidade dos fenômenos jurídicos e

enxergar o Direito nas suas relações com a vida social. (Pôrto: 2000: 42)

Alguns professores, numa tentativa de transformar essa dicotomia, propunham

basicamente como método de investigação prática uma pesquisa calcada em um conjunto de

jurisprudências e, portanto, de interpretações que os Tribunais davam a leis e conflitos sociais.

O grande problema da proposta residia no fato de que mesmos as interpretações dadas às leis

e aos conflitos sociais estão alicerçadas numa formação essencialmente dogmática, formal e

afastada da realidade. Se não aliarmos este estudo com o de outros saberes científicos,

estaremos fatalmente promovendo uma investigação de interpretações que podem não estar

propondo algo novo acerca do que se compreende como Direito e reproduzindo exatamente

dicotomias que visaríamos superar.

2.2 Estudo das causas da não-reforma

Através de pesquisa empírica, constatou-se um momento de transição dentro do

processo de transformação do ensino jurídico. A esta altura ninguém defende mais o ensino

jurídico estabelecido, mas ninguém consegue reformá-lo de fato. (Rodrigues: 1987 :72).

As causas da não-reforma vão muito além do simples convencimento das autoridades

competentes e dizem respeito ao mercado de trabalho, à função histórica das faculdades de

direito e à função político-ideológica que o Direito cumpre em nossa sociedade. É este um dos

pressuspostos básicos para o debate acerca da reforma do ensino jurídico que deve ser calcada

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22

na crítica a separação método-conteúdo, estabelecida pelo positivismo na República Velha

Brasileira, e na relação de influência recíproca método-conteúdo-sujeito.

Dentre as causas da não-reforma está a forma como a maioria dos profissionais do

Direito trata a reforma do ensino. Assim como o método lógico-formal da Dogmática afastou

do conhecimento jurídico qualquer preocupação com o conteúdo das normas, tendo em vista

seus aspectos sociológicos, políticos, econômicos ou culturais, e, portanto, “não jurídicos”, as

propostas de reforma são para esses profissionais apenas propostas “jurídicas”. Há, portanto,

uma relação entre a pretensão da Dogmática em se afirmar como ciência e a ausência de

outros profissionais (economistas, sociólogos e cientistas políticos) fundamentais para o

avanço dos debates sobre a reforma do ensino jurídico.

O perfil do corpo docente e discente não estabelece também um ambiente propício

para o debate acerca da reformulação do ensino. Dentre as características do corpo docente é

interessante observar que a grande maioria relega a atividade docente para o status de

secundária e exerce atividade profissional principal que pode ser de Defensor, Promotor,

Procurador, Juiz ou Advogado. O título acadêmico não é para estes a expressão de todo um

trabalho a ser continuado, mas mais um instrumento de influência nas carreiras que adotaram

como principais.

Além disso, a grande maioria não dispunha de tempo para ministrar mais de uma

disciplina ou para desenvolver trabalho de pesquisa, o que muitas vezes lhes fazia reproduzir

o que lhe foi ensinado quando estudante, acrescido da experiência profissional. Reproduz-se

uma espécie de senso comum teórico e uma série de conceitos desatualizados, anacrônicos e

um tanto quanto vazios de conteúdo. Mas dentre todas as características, a mais marcantes é a

da não participação na vida social e política da Faculdade e da Universidade, característica

essa também encontrada entre os discentes, conforme veremos a seguir. (Rodrigues: 1987: 76)

Entre os discentes ressalta-se que a maioria esmagadora trabalha (nas mais diversas

atividades econômicas) em média de 6 a 8hs por dia, além de cumprir a carga horária exigida

obrigatoriamente pela Faculdade, não dispondo de tempo para pesquisa, atividades extra-

classe e principalmente para participação em discussões como a da reforma do ensino jurídico

ou da reforma universitária.

Cabe acrescentar a esta análise um fenômeno contemporâneo que é o da substituição,

por questões mercadológicas, de mão-de-obra profissional pela mão-de-obra estudante em

escritórios privados de advocacia, nos setores jurídicos ou de recursos humanos de empresas

multinacionais e também em repartições públicas. Nesses casos, o que se chama de estágio é,

na verdade, a submissão dos alunos, induzidos a erro pela formação que possuem, pelos que

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23

se propõem a recrutá-los e pelos valores/estereótipos reafirmados por seus familiares, a uma

carga horária elevada e equivalente a de um profissional do ramo e a tarefas/responsabilidades

que geram esforço repetitivo, sacrificante e alienante.

Os discentes passam então a freqüentar a Faculdade somente para assistir aula, não

utilizam a biblioteca, não desenvolvem trabalho de pesquisa, não freqüentam os mais variados

espaços da Universidade e têm como única fonte de conhecimento o discurso do professor.

Por conta do enorme poder que veio ganhando o discurso docente, há interessante

discusão acerca da semiologia do poder, essencial para compreender os efeitos sociais deste

discurso propagado nas Faculdades de Direito. Discute que os discursos têm

comprometimento com um sentido ideológico e são moldados segundo técnicas que conferem

poder a todos àqueles que as dominam. Não é por acaso que os dicursos de professores e

juristas em geral estão mais ou menos em sintonia e geram na sociedade um senso comum em

torno dos mesmos, disciplinando alunos no âmbito da universidade ou indivíduos no âmbito

da sociedade e assegurando a reprodução de estruturas sócio-econômicas e culturais

dominantes.

“O discurso docente, mais que um discurso de poder, é um lugar de

poder, um ponto de convergência, condensação e reorganização dos

discursos produzidos nas diferentes instituições de significações

jurídicas.” (Rodrigues: 1987: 95).

Warat também critica o perfil um tanto quanto narcisista de determinados docentes,

cuja postura é de colocar o aluno como simples espelho para que consiga reconhecer-se,

negando suas possíveis fraquezas. (Warat: 1988: 25)

Essa postura de certos professores aliada a uma estrutura de ensino que concentra

poderes nas mãos do docente, constitui séria dificuldade a ser superada para se construir nos

alunos um espírito crítico e, conseqüentemente, uma nova cultura jurídica.

De fato, o não engajamento da maioria dos alunos com a questão da Reforma do

Ensino Jurídico é outro obstáculo a ser superado, visto que muitos vêm relegando ao corpo

docente e ao discurso hegemônico o papel de protagonizar a discussão, o que só faz perpetuar

sucessivas frustrações e reprimir anseios históricos de mudanças no interior dos cursos

jurídicos.

Outra causa da não-reforma está intimamente ligada à relação entre as faculdades de

direito e o mercado de trabalho. As faculdades, dada a manutenção de muitos problemas

estruturais, não estão tendo condições de angariar recursos porque o Estado vem se

satisfazendo com a estrutura de fornecimento de mão-de-obra para compor seus quadros. Ao

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24

mercado, também não cabe pressionar as faculdades para que implementem mudanças, pois já

criou mecanismos de aperfeiçoamento da mão-de-obra aos seus interesses independentemente

das instituições de ensino tradicionais, através de “estágios”, conforme mencionamos em

parágrafos anteriores, e especializações privadas. Com isso, não se criam condições que

impulsionem mudanças nas instiuições de ensino e, ao mesmo tempo, não se criam novas

oportunidades no mercado de trabalho, posto que não se investigam cientificamente ao menos

as causas de sua saturação. (Rodrigues: 1987: 79)

Constatou-se que uma das causas de saturação do mercado de trabalho para juristas

está na não ampliação de mecanismos de acesso a direitos fundamentais e à Justiça ainda

restritos a determinados setores sociais. Mas não haveria ampliação desses mecanismos sem

que houvesse uma opção política clara do Estado Brasileiro de democratizar política e

socialmente suas próprias estruturas.

Reorganizar o curso jurídico significa reorientá-lo em direção a novos objetivos

sociais de transformação. A Reforma tem que começar da análise e da determinação das

condições sócio-econômicas e político-culturais em que se processem as relações entre a crise

do direito positivo e o ensino jurídico. A reformulação curricular não se trata de agregar de

maneira assistemática disciplinas a uma grade curricular, mas de resgatar a própria

organicidade do curso à vida social. Além disso, a criação da interdisciplinaridade nos cursos,

fundamental para uma melhor compreensão de seus próprios problemas, não se limita ao

mero relacionamento entre Direito, Economia e Sociologia, mas na valorização do estudo do

Direito, adotando-se marcos teóricos em condições de oferecer uma perspectiva histórica e

crítica dos institutos jurídicos e das relações que lhes deram origem e função.

Neste sentido, de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica, da

Antropologia ou da Economia, se as disciplinas dogmáticas permanecem dogmáticas.

“Um modelo dialético há de ser aberto e com a preocupação

constante de encarar os fatos, dentro de uma perspectiva que enfatiza

o devir (a transformação constante) e a totalidade ( a ligação de

todos os segmentos da realidade em função de conjunto ).”

(Rodrigues: 1987: 122)

As atuais propostas de Reforma destacam a importância da profissão e especialização,

transformando o ensino jurídico num mero ensino técnico e, portanto, dogmático.

“O destino do prático/técnico sem visão teórica é fazer o que manda o

patrão prepotente.(...) Um ensino de práticos e técnicos puros

redunda em calibrar as armas pedagógicas para o tiro mortal no

ânimo de combate progressista”. (Rodrigues: 1987: 133).

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25

Com tais críticas e questionamentos, resgatou-se a importância da observância da

relação recíproca entre teoria e prática no Direito, para que não se reproduza uma teoria

alienada e a serviço da ideologia dominante nem tampouco uma práxis pragmática e refém da

ordem social estabelecida.

2.3 Portaria 1.866/94 e a Extensão no Direito

A partir de 1990, atenta às críticas e diagnósticos elaborados por professores que se

tornaram referência no assunto e ciente dos equívocos teórico-metodológicos cometidos em

décadas anteriores, a Ordem dos Advogados do Brasil, além de produzir materiais

bibliográficos como “OAB – Ensino Jurídico: O Futuro da Universidade e os Cursos de

Direito” e “OAB - Ensino Jurídico: Diagnósticos, Perspectivas e Propostas”, passou a

construir também um modelo de avaliação dos cursos jurídicos a fim de superar a crise que já

havia sido confirmada.

Estabeleceu-se nesse modelo avaliativo critérios quantitativos que constituíam a faceta

objetiva do método avaliativo e critérios qualitativos que possuíam um certo grau de

indefinição, mas que criavam, pelo seu aspecto também crítico e provocativo, perspectivas de

aproveitamento de potencialidades existentes nos próprios cursos. A combinação ou

articulação desses critérios revelou parâmetros de qualidade que serviriam de norte para

dicussões fomentadas no interior dos cursos acerca das concepções de ensino de seus projetos

pedagógicos. Essas discusssões revelaram uma procupação de modo geral com o conteúdo e

destinação dos saberes transmitidos e produzidos, o que constitui um certo avanço, visto que

estas procupações fogem do campo dogmático para dar lugar a outras questões referentes ao

mercado de trabalho, perfil profissional, responsabilidade e necessidade social dos cursos.

Depois de elaborados diversos projetos pedagógicos, foram eles analisados e

constatou-se que, mesmo diante de alguns avanços, eram eles estruturados a partir da grade

curricular e disciplinas básicas. Assim, outras atividades como a pesquisa e a extensão

continuavam sendo relegadas a segundo plano e ficavam esmaecidas no quotidiano

acadêmico.

A partir dessas percepções e dos diálogos travados com as mais diversas instituições

de ensino do país, o Ministério da Educação publicou em 1994 a Portaria 1.886, cuja

finalidade precípua era então estabelecer novas diretrizes e parâmetros de qualidade. Não se

tratavam de normas fechadas às quais deveriam se acomodar os cursos, mas instrumentos para

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26

nortear uma transição entre um modelo anterior de ensino e um modelo a ser construído mais

ampla e democraticamente. (Pôrto: 2000: 72)

No entanto, muitos dos parâmetros de qualidade instituídos pela nova Portaria, embora

representassem um avanço das dicussões acerca da reforma do ensino jurídico, permaneceram

em plano meramente formal nas Faculdades de Direito, em especial nas públicas, visto que no

plano material a Universidade como um todo sofreu, a partir de 1990, seguidas crises

estruturais.

No caso das Faculdades Públicas de Direito, o quadro de crise político-institucional foi

bastante delicado. Na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por

exemplo, consoante o relato de lideranças estudantis publicadas no livro “CACO: 90 anos de

história”, a inexistência de democracia interna e a escassez de recursos praticamente

impossibilitaram qualquer debate institucional acerca de uma nova concepção de ensino a ser

construída e implantada. Não havia nenhum professor concursado, até o ano de 2009, para

assumir efetivamente o chamado Escritório Modelo de Atendimento (atual Núcleo de Prática

Jurídica), sendo todos os professores de prática contratados temporariamente por período de

um ou dois anos com pouca ou nenhuma experiência docente ou no desenvolvimento de

pesquisas, sem falar na total incompreensão dos reais propósitos da extensão universitária.

No contexto de crise institucional da Universidade, houve um aumento vertiginoso de

instituições privadas de ensino que integravam um mercado altamente lucrativo,

antidemocrático e despreocupado com a formulação de mecanismos para o alcance mínimo

dos parâmetros de qualidade até então estabelecidos pelo Ministério da Educação. De acordo

com o Resumo Técnico do Censo Nacional da Educação Superior de 2008, o maior número

de faculdades privadas (93,1%) e de centros universitários (96%) está vinculado ao setor

privado, enquanto as universidades estão distribuídas em proporção aproximada entre

setor público e o privado, 53% e 47% respectivamente, conforme dados do Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP1.

Na realidade, a crise institucional da Universidade está intimamente relacionada à

crise do modelo capital-desenvolvimentista e do chamado Estado-Providência. Com o

enxugamento do orçamento social e, conseqüente deterioração de políticas sociais, o sistema

de ensino superior sofre cortes de financiamento público. As áreas de ciências humanas e

sociais são as mais afetadas, posto que, na escala de prioridades do Estado, passam a figurar

num plano secundário. (Santos: 2008: 214)

1Cf.www.inep.gov.br

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27

Apesar de toda a crise político-institucional por que passaram em maior ou menor

escala as Faculdades de Direito, é preciso reconhecer alguns méritos da política educacional

em questão para o ensino jurídico. A proposta estabelecida pela Portaria 1.886 inovou em

relação a outras anteriores principalmente no que diz respeito ao eixo de integração teoria-

prática. De fato, foi dada mais ênfase à questão da prática jurídica, o que, não por acaso,

fomentou a implantação de núcleos de prática nas mais diversas instituições do país. Restou

clara a intenção do Ministério de buscar construir uma nova relação entre conhecimento

teórico e prático, através da reafirmação da necessária articulação entre ensino, pesquisa e

extensão e da idéia da interdisciplinaridade como principio norteador das atividades

pedagógicas, procurando oferecer uma formação multifacetada.

O Art. 3º revela uma preocupação com o respeito às especificidades dos cursos ao

ressaltar a autonomia e democracia interna que devem ter para planejar e estruturar a maneira

como pretendem promover a integração entre as diversas disciplinas e entre teoria e prática.

“Art. 3º O curso jurídico desenvolverá atividades de ensino, pesquisa

e extensão, interligadas e obrigatórias, segundo programação e

distribuição aprovadas pela prórpia Instituição de Ensino Superior,

de forma a atender às necessidades de formação fundamental, sócio-

política, técnico-jurídica e prática do bacharel em Direito.”

Outro traço inovador está na importância dada às atividades de natureza “não

curricular” que passam a compor de 5 a 10% da carga horária total do curso. Além de

incentivar o diálogo com outros espaços intra e “extramuros” institucionais, interessantes à

construção de uma nova concepção acerca do Direito, procurou-se dar liberdade ao aluno para

escolher o tipo de atividade que gostariam de desenvolver, restando clara a flexibilidade das

diretrizes, diante das mais diversas demandas do alunado.

Embora as diretrizes revelem alguns avanços no processo de construção de um ensino

interdisciplinar e contextualizado, cabe destacar algumas críticas à Portaria com relação à

questão do desenvolvimento das atividades práticas supervisionadas. Em seu Art. 11, a

Portaria menciona que as atividades de estágio serão exclusivamente práticas, o que inclui a

redação de peças processuais, acompanhamento de rotinas processuais, comparecimento a

audiências, visitas aos órgãos do Judiciário e a utilização de técnicas de conciliação e

arbitragem.

Isto quer dizer que ao mesmo tempo em que se propõe a idéia de interdisciplinaridade

e o fortalecimento do tripé da educação como princípios norteadores, se reafirma um espaço

exclusivamente prático que, apesar de propiciar o diálogo com os mais variados setores da

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28

sociedade, se propõe apenas espaço de manipulação do aparato formal e dogmático do

Direito.

Conforme já mencionado em tópicos anteriores, não haverá prática realmente

avançada sem uma teoria crítica e dialética que a leve de fato em consideração. Se partirmos

do pressuposto que toda práxis não é mais do que práxis da teoria e vice-versa, não caberá a

afirmação de um espaço exclusivamente prático. Ou se opta político-pedagogicamente pela

efetiva interação dialética entre teoria e prática ou se reafirma a arcaica separação dogmática,

perpetuando-se equívocos históricos e, por conseguinte, a crise por que ainda passa o ensino

jurídico.

A experiência na Universidade de Brasília reforça a importância da opção pela efetiva

integração dialética entre teoria e prática, por terem os estudantes defendido uma nova práxis

extensionista transformadora e seus objetivos principais de investigação, conforme exposto a

seguir através do trecho de um documento escrito pelos mesmos.

“Reforçando o sentido de praxis social, a assessoria jurídica tem o

objetivo de desenvolver linhas de pesquisa a partir desse diálogo com

os grupos sociais, para identificar e fundamentar nessas novas

demandas o seu Direito insurgente.(...)É pertinente, pois, que se

desenvolva esse tipo de trabalho sobre uma realidade, a qual não se

pode escapar do alcance do jurista, que procura realizar sua praxis

orientando sua formação profissional com um conhecimento mais

aprofundado do fenômeno jurídico.” (Sousa Junior: 2007: 35)

Através das parcerias entre pesquisadores, estudantes e as mais variadas organizações

sociais, houve o desenvolvimento de uma práxis que, além de buscar o diálogo com a

sociedade e os movimentos sociais, discute e procura dar respostas às novas demandas de

diferentes sujeitos coletivos que buscam o acesso à justiça.

Com isso, revela-se o contraponto a arcaica noção de que deve existir um espaço que

se proponha exclusivamente prático e que perpetue a “obsessão praxista” de saber “operar o

Direito” sem grandes preocupações com o porquê se “opera” de determinada maneira e não

de outra. O exemplo da Universidade de Brasília e de outras instituições, conforme veremos

mais adiante, demonstrou que é possível criar e ensinar novas formas de atuação através do

resgate do diálogo com os reclames da sociedade, com outros saberes e de uma abordagem

crítica do Direito.

O fato é que a Portaria 1.886/94 representa certo avanço nos debates acerca da

Reforma do Ensino Jurídico ao resgatar a necessidade de maior integração entre teoria e

prática, essencial, conforme afirmado anteriormente, para crítica ao dogmatismo positivista

que afasta o direito de contradições reais e concreta. Por outro lado, ao afirmar a existência de

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29

um espaço de aprendizagem exclusivamente prático a Portaria entra em contradição

justamente com a concepção de ensino que em tese se quer construir.

2.4 Resolução nº 9 de 2004 do Conselho Nacional de Educação

Houve em setembro de 2004, com a Resolução nº 9 do Conselho Nacional de

Educação, uma reformulação da proposta inserida na Portaria 1.886.

O parágrafo primeiro do Art 2º da Resolução abre a perspectiva para os cursos de não

mais formularem seus Projetos Pedagógicos apenas com base na grade curricular obrigatória,

mas, conjugando a existência desta, com outros elementos estruturantes do curso. São estes os

elementos:

“ I - concepção e objetivos gerais do curso, contextualizados em

relação às suas inserções institucional, política, geográfica e social;

II - condições objetivas de oferta e a vocação do curso;

III - cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do

curso;

IV - formas de realização da interdisciplinaridade;

V - modos de integração entre teoria e prática;

VI - formas de avaliação do ensino e da aprendizagem;

VII - modos da integração entre graduação e pós-graduação, quando

houver;

VIII - incentivo à pesquisa e à extensão, como necessário

prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a

iniciação científica;

IX - concepção e composição das atividades de estágio curricular

supervisionado, suas diferentes formas e condições de realização, bem

como a forma de implantação e a estrutura do Núcleo de Prática

Jurídica;

X -concepção e composição das atividades complementares; e,

XI - inclusão obrigatória do Trabalho de Curso.”

No que tange ao eixo de formação prática, de acordo com explicação de Sousa Junior,

empreendeu a Resolução um atualizado refinamento conceitual para acentuar que o

determinado eixo objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos

nos demais eixos, especialmente das atividades do Estágio Supervisionado, Trabalho de

Curso e Atividades Complementares. (Sousa Junior: 2007: 26)

A Secretaria de Educação Superior, através de relatório elaborado por profissionais da

educação em 2005, estabeleceu ainda que a concepção de organização das atividades prática

deve se adequar tanto ao perfil profissional sugerido pelo Projeto Pedagógico quanto aos

conteúdos dos eixos de formação fundamental (que abrange os conteúdos da Antropologia,

Page 32: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

30

Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia) e profissional

(que abrange os conteúdos dogmáticos tradicionais), o que traz ao discente uma perspectiva

integrada da formação teórica e prática.

Como se pôde observar, não se encaixam, pelo menos em tese, na política educacional

recentemente iniciada estruturas exclusivamente práticas ou puramente teóricas de

apredizagem. Pelas limitações deste trabalho de pesquisa, ainda não é possível promover um

balanço geral dos resultados obtidos a partir das novas diretrizes democraticamente

instituídas. Entretanto, observo que por ser recente esta política pública, assiste-se dentro das

instituições de ensino jurídico uma tensão entre o novo e o tradicional, configurando-se um

momento de transição para uma nova estrutura de ensino que representará a síntese deste

contraditório.

Nas instituições de ensino público, esta tensão é mais evidente, visto que sua

estruturação e organização interna propiciam um debate mais aberto e democrático. Nas

instituições de ensino privado, esta tensão está sendo reprimida dentre outros fatores pela

existência de uma estrutura altamente verticalizada de organização interna, pela falta de

espaços de diálogo entre discentes, docentes e demais trabalhadores em educação, pelo

controle e vigilância da fronteira Universidade-Comunidade e pela implementação de práticas

pedagógicas ao arrepio das discussões amadurecidas em espaços públicos e das orientações

dadas pelo Ministério da Educação.

A experiência de duas Faculdades de Direito de Universidades Públicas como a UFRJ

e a UnB revela que a extensão universitária tem sido o setor da Universidade que mais

problematiza a questão da integração teoria-prática, integrando o Direito a outras áreas do

saber científico como a Psicologia, Serviço Social e Arquitetura. A problematização dos

conteúdos teóricos ensinados em sala de aula tem permeado, conforme veremos a seguir, a

discussão de novos projetos bem como contribuído para a formação de um perfil diferenciado

de profissionais.

Page 33: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

31

3) Desafios para a implantação do Núcleo Interdisciplinar de Ações para

Cidadania na Universidade Federal do Rio de Janeiro

No ano de 2006, em um contexto de reestruturação da Faculdade Nacional de Direito,

após crise interna em que o movimento estudantil retirou do cargo o então Diretor Armênio

Albino Cruz, por conta de atos de improbidade administrativa, começa a ser redefinida sua

dinâmica institucional e repensada a estrutura do ensino ministrado bem como formas de

fomento a atividades de pesquisa através da discussão do novo Projeto Político Pedagógico.

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Pró-Reitoria de Extensão continuou a

desenvolver debate iniciado dois anos antes acerca do processo de institucionalização da

extensão universitária. É importante ressaltar que a criação do Programa de bolsas PIBEX em

20052, com o objetivo de selecionar 500 alunos para participar de programas de extensão,

mediante a concessão de bolsas, contribuiu em grande medida para fomentar o debate no seio

da comunidade acadêmica. Entre as diversas diretrizes colocadas pela Universidade para

formulação de políticas de extensão destaco

a) a proposição de atividades de extensão que permitam maior articulação entre as

atividades de pesquisa e ensino, estimulando, também, a interdisciplinaridade;

b) articulação das diferentes iniciativas e projetos das Unidades Acadêmicas em

programas de extensão;

c) flexibilização curricular e implementação de créditos de extensão nos cursos de

graduação, conforme determinação do Plano Nacional de Educação;

d) cumprimento das diretrizes do Plano Nacional de Extensão Universitária,

contribuindo com a reformulação das mesmas através do debate permamente sobre

a Política Nacional de Extensão;

e) participação na formulação de políticas públicas de desenvolvimento social e

econômico que atendam às demandas das esferas federal, estaduais e municipais.

Em relação ao item d, vale ressaltar a importância do Plano Nacional de Extensão

Universitária como fruto de discussão entre Pró-Reitores de Universidades Públicas e a

Secretaria de Educação Superior, que se propõe documento norteador de políticas de

extensão, criando condições para o desenvolvimento de novas atividades dentro de cada

Universidade. A versão do Plano que data de 2000 possui seis princípios básicos e

norteadores de uma Política Nacional a ser construída.

2Cf. Anais do 3º Congresso de Extensão da UFRJ. In: www.pr5.ufrj.br/congresso/Anais

Page 34: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

32

Princípio 1. A ciência, a arte e a tecnologia devem alicerçar-se nas prioridades do local, da

região, do país;

Princípio 2. A universidade não pode se imaginar proprietária de um saber pronto e acabado,

que vai ser oferecido à sociedade, mas, ao contrário, exatamente porque participa dessa

sociedade, a instituição deve estar sensível a seus problemas e apelos, quer através dos grupos

sociais com os quais interage, quer através das questões que surgem de suas atividades

próprias de ensino, pesquisa e extensão;

Princípio 3. A universidade deve participar dos movimentos sociais, priorizando ações que

visem à superação das atuais condições de desigualdade e exclusão existentes no Brasil;

Princípio 4. A ação cidadã das universidades não pode prescindir da efetiva difusão dos

saberes nelas produzidos, de tal forma que as populações cujos problemas tornam-se objeto da

pesquisa acadêmica sejam também consideradas sujeito desse conhecimento, tendo, portanto,

pleno direito de acesso às informações resultantes dessas pesquisas;

Princípio 5. A prestação de serviços deve ser produto de interesse acadêmico, científico,

filosófico, tecnológico e artístico do ensino, pesquisa e extensão, devendo ser encarada como

um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se constitui a partir da realidade e sobre a

realidade objetiva, produzindo conhecimentos que visem à transformação social;

Princípio 6. A atuação junto ao sistema de ensino público deve se constituir em uma das

diretrizes prioritárias para o fortalecimento da educação básica através de contribuições

técnico-científicas e colaboração na construção e difusão dos valores da cidadania.

(Fonte: Plano Nacional de Extensão Universitária de 2000, elaborado no Fórum de Pró-

Reitores de Universidades Públicas e Secretaria de Ensino Superior).

A preocupação com a questão da integração entre Teoria e Prática, presente nos

princípios acima mencionados, tem partido sistematicamente de profissionais e alunos que

compõe o corpo extensionista das mais diversas instituições de ensino superior do país. Na

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a situação não foi diferente,

posto que, em meio as discussões do novo Projeto Político Pedagógico, o corpo extensionista

incorporou ao Projeto reflexões da Comissão de Ensino Jurídico da OAB, mencionadas em

Page 35: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

33

capítulo anterior, e da Secretaria de Ensino Superior, revelando um esforço de inserir a

instituição no projeto de Reforma do Ensino Jurídico construído em âmbito nacional e uma

preocupação com a construção de profissionais mais atualizados com as transformações da

sociedade brasileira e com seu anseio pela consolidação de um verdadeiro Estado

Democrático de Direito.

Ao discorrer sobre os pressupostos de um novo método de produção de conhecimento

chamado Pesquisa Participante e sobre o desgaste do modelo de pesquisa tradicionalmente

seguido nas ciências sociais, Demo coloca a Extensão como o setor da Universidade que

historicamente promove crítica aos modos de produção e acesso ao conhecimento.

“Na academia, o termo pesquisa está desgastado, porquanto

predomina o estereótipo americano do mero manejo de técnicas de

coleta e tratamento de dados empíricos em ambiente tipicamente

positivista. (...) Por outra, encontra-se o estereótipo do teoricismo,

avesso à prática, perdido em diatribes lógicas de metanarrativas

incontroláveis, o que tem qualificado a Universidade como “torre de

marfim”. À sombra desta preocupação, nasceu a “extensão” como

típica má consicência da universidade: percebendo-se no mundo da

lua, imagina dele sair pela via da extensão, ao dedicar-se, por

exemplo, a uma favela.” (Demo: 2008: 17)

Percebendo que, ao estar fora do currículo, a Extensão não passa de atividade

voluntária, eventual ou mero ativismo e assumindo o compromisso político de promoção de

cidadania a Universidade Federal do Rio de Janeiro iniciou processo de institucionalização

das atividades extencionistas. Nesse contexto, começa a ser resgatado o Projeto de Escritório

Modelo de Atendimento Interdisciplinar, vulgarmente conhecido na Faculdade de Direito

como Projeto Maré, cuja origem está nas dicussões políticas travadas entre estudantes no

interior do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira.

O Projeto partia de uma compreensão não assistencialista da Extensão, por ter como

um dos objetivos principais a produção de conhecimento a partir da integração entre 3 áreas

do saber, sendo elas o Direito, Psicologia e Serviço Social, e a construção de um diálogo

permanente com a sociedade. Seus princípios norteadores básicos eram a

interdisciplinaridade, a ênfase na integração ensino-pesquisa-extensão, a identificação e

construção do discurso jurídico informal, o respeito às dessemelhanças, a preparação de corpo

de extensionistas-pesquisadores e a publicização do conhecimento por meio da produção de

materiais bibliográficos.

Em sua justificativa, o Projeto aponta o Complexo de Favelas da Maré como área

principal de atuação com base na análise de indicadores sociais tais como densidade

Page 36: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

34

demográfica, analfabetismo e trabalho infantil. O objetivo principal traçado era a implantação

de um escritório modelo para atendimento jurídico e judicial aos moradores das comunidades

da Maré e adjacências do campus Fundão da UFRJ para desenvolver ações de cidadania

capazes de integrarem o reconhecimento do Direito como algo pertinente também àquela

localidade. Dentro desse objetivo, cabe ressaltar a distinção conceitual inserida no projeto

entre assessoria jurídica e judicial. Tal diferenciação reside no fato de os idealizadores do

Projeto entenderem a assessoria jurídica como atividade mais ampla que extrapola o caráter

essencialmente formal da advocacia exercida perante os Tribunais, por possuir elementos de

outros saberes que se comunicam em maior ou menor grau com a dogmática jurídica que

aparece no campo judicial.

Contribuiu para a compreensão desta diferenciação conceitual a Universidade de

Brasília, através do Projeto O Direito Achado na Rua, conforme observado no trecho do

relatório feito por estudantes que reproduzo a seguir

“Ocorre que, não obstante a sua importância, a assistência judiciária

desenvolve de fato um contato muito reduzido com a comunidade

devido à sua metodologia de trabalho individualizante, que se esgota

com a prestação de um serviço imediato, assumindo um caráter um

tanto paternalista, pois, na maioria dos casos, não se preocupa

educar as pessoas para o exercício de sua cidadania. (...) Sendo

assim, é objetivo da assessoria jurídica suprir a carência deixada

pela assistência judiciária, no que tange a estabelecer uma relação de

diálogo mais intenso com a sociedade, preferencialmente os grupos

excluídos”.(Sousa Junior: 2007: 34)

Traçadas as características principais desse Projeto, que foi embrião da construção de

um Pograma de Extensão que mais tarde foi nomeado Núcleo Interdisciplinar de Ações para

Cidadania, passo a expor as complexidades inerentes a cada etapa de seu desenvolvimento e

as dificuldades encontradas no seio desse processo que ainda precisam ser superadas até os

dias atuais.

Antes de passar às etapas, cabe salientar que a mudança de nomeclatura de Escritório

Modelo de Atendimento Interdisciplinar para Núcleo Interdisciplinar de Ações para

Cidadania (NIAC) representou o amadurecimento da concepção não assistencialista presente

no Projeto original e criou uma diferenciação entre a estrutura tradicional do Escritório

Modelo, que nesta época atravessou por grave crise.

Cabe ressaltar que a constatação da crise da estrutura tradicional, na verdade, ganhou

corpo antes mesmo do amadurecimento do Programa de Extensão, visto que já havia no novo

Projeto Político Pedagógico da FND - PPP espaço reservado à reforma do eixo de integração

Page 37: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

35

Teoria-Prática. Embora não coubesse mais nem nas novas diretrizes curriculares publicadas

pelo MEC em 2004 nem na concepção de ensino do novo PPP a idéia de um espaço de

aprendizagem exclusivamente prático, o fato é que a estrutura tradicional do Escritório

Modelo, embora tenha modificado apenas sua nomenclatura para Núcleo de Prática Jurídica,

permanece sem grandes alterações até os dias atuais.

Ainda vigora a noção de que o Escritório Modelo é espaço de manipulação da

dogmática, em que o aluno redige peças processuais, acompanha processos judiciais e

comparece às audiências. A postura com a população é extremamente paternalista, não se

extraindo desse contato preocupações maiores que não as estritamente relacionadas as

questões judiciais. Para o Escritório Modelo, basta oferecer assistência judiciária “gratuita”,

que a Faculdade estaria cumprindo com suas responsabilidades sociais. Embora tenha esta

estrutura atravessado crises infra-estruturais oriunda de todo um contexto de “precarização”

da educação pública, não é somente a esta crise a qual me refiro. A crise é mesmo do modelo

de educação instalado, tendo a estrutura do Escritório Modelo sentido seus reflexos.

De fato, o NIAC representa uma compreensão diferenciada desse espaço de

aprendizagem. Observou-se no contato com os projetos do Instituto de Psicologia, da Escola

de Serviço Social e da Escola de Arquitetura e Urbanismo que o Projeto da Faculdade

Nacional de Direito possuía uma maior abrangência por prever na sua origem uma atuação

interdisciplinar, o que o levou a servir de base de sustentação do Programa de Extensão

nomeado Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania - NIAC. O Projeto original passou,

então, a fundamentar todo um Programa e, em seguida, congregou elementos, conceitos e

nomenclaturas dos projetos das outras áreas de conhecimento que inicialmente compuseram

sua equipe de implementação.

Embora o Projeto original tivesse como referência a atuação interdisciplinar, não

estabelecia de antemão os métodos para aplicação do conceito de interdisciplinaridade, ou

seja, de que forma se poderia implantar uma práxis diferenciada daquela existente no

Escritório Modelo da FND. Essa nova práxis passou por processo de amadurecimento e auto-

avaliação fundamentais para sua construção, conforme veremos a seguir.

3.1 Formação da Equipe Interdisciplinar

O corpo de docentes que assumiu a Coordenação das atividades estabeleceu de

antemão que o compromisso assumido não era apenas quantitativo, isto é, cada atividade

desempenhada tal como a participação em reuniões, formulação de questionários ou

Page 38: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

36

cronogramas de atuação e a organização de visitas ao Complexo de Favelas da Maré não

poderia ser contabilizada apenas como um dado numérico. Haveria de ser formulada também

uma compreensão qualitativa das atividades, que passou a impulsionar, por sua vez, a equipe

a se auto-avaliar e criticar constantemente a fim de construir métodos próprios e adequados

que pudessem garantir uma intervenção cada vez mais qualificada e adequados às demandas

de sujeitos da região.

Tal compromisso com o aspecto qualitativo das atividades decorre de recente crítica

formulada para as ciências sociais, por terem tentado sistematicamente deduzir a realidade de

dados quantitativos. Alguns adeptos da pesquisa empírica acabaram por cometer abusos,

extraindo conclusões de dados quantitativos que não expressavam a realidade concreta,

embora estivessem se referindo sempre a ela.

Sobre esses abusos, Demo explica que o problema não esteve em formular medidas,

mas em como foram elas interpretadas, visto que nem todos os aspectos da complexa

realidade social cabem em padrões rígidos de quantificação. De fato, não se pode negar a

importância dos dados empíricos, posto que podem expressar facetas da realidade que nem

sempre a teoria com suas abstrações explicaria (Demo: 2008: 39)

Por outro lado, o que esteve por traz dos abusos cometidos foi uma tentativa de

empreender postura isenta e objetiva às ciências sociais para “afastar” suas naturais raízes

políticas e ideológicas. Ocorre que nem mesmo as ciências naturais, repletas de números,

fórmulas e quatificações se demonstraram tão objetivas e isentas assim, não cabendo mais ao

conhecimento científico de um modo geral tentar camuflar posicionamentos filosóficos,

políticos e ideológicos, inerentes ao seu processo de produção. (Demo: 2008: 86)

Sendo assim, constatou a equipe do NIAC que não há problema em produzir dados

empíricos ou quantitativos. O que não se pode perder de vista é que é preciso produzir uma

análise qualitativa das experiências vivenciadas, o que implica necessariamente politizar a

realidade, bem como construir, num diálogo constante com a comunidade, posicionamentos e

propor intervenções frente a demandas e problemas encontrados.

Em relação ao constante exercício de autocrítica e avaliação coletiva, cumpre destacar

que este proporcionava a construção de métodos e linguagens comuns ao Direito, à Psicologia

e ao Serviço Social mas, em paralelo, fazia transparecer limites e complexidades de uma

atuação de áreas do conhecimento diversas que guardavam dentro de si conteúdos e formas

acadêmicas que lhes eram peculiares.

De fato, o processo de construção da nova práxis esbarrou nos limites da própria

formação acadêmica dos alunos e profissionais envolvidos e na estrutura fragmentada da

Page 39: Souza, Amanda Alves Ufrj 2010

37

Universidade que remonta ainda ao século XIX. Há na Universidade uma espécie de “pacto

federativo”, fruto de uma cultura profissionalizante existente desde a sua criação, que garante

a autonomia das partes e impede a formação de um verdadeiro tecido universitário. Isso

explica em parte o porquê da dificuldade de se construir projetos de pesquisa e/ou extensão

como o NIAC, mas não encerra a questão conforme veremos a seguir.

A construção da nova práxis extensionista se torna mais complexa quando são

debatidas questões éticas do NIAC e da prática de cada profissional ou estudante envolvido.

Esse embate ético, que compreendo também como debate teórico, será analisado mais adiante

quando for apresentado o modelo de atendimento interdisciplinar. Por enquanto, passo a

analisar os focos de interesse de cada área que compôs inicialmente a equipe do NIAC.

O foco de atuação dos alunos e professores do Serviço Social era, na formação inicial

da equipe, basicamente investigar as circunstâncias que levam a maioria da população aos

chamados processos de “vitimização e criminalização da pobreza”. O trabalho inicial

consistia na aplicação de formulários, visitas às mais diversas instituições localizadas no

Complexo de Favelas da Maré e no levantamento de dados estatíticos oficiais ou de institutos

de pesquisas que já haviam feito uma análise das condições sócio-econômicas da região. A

Criminologia era, portanto, a grande área de conhecimento para a qual se voltava a equipe do

Serviço Social, o que provocou, em período mais avançado de amadurecimento do Programa,

o incentivo à construção de um Fórum de debates com professores, estudantes, magistrados,

policiais e agentes penitenciários sobre os problemas enfrentados nas regiões em que o papel

do Estado tem sido de reproduzir sistematicamente uma rede de violência e de aprofundar

desigualdades sociais.

Em relação ao trabalho desempenhado pela equipe da Psicologia, já havia uma

dinâmica de atendimento estabelecida pelo Programa Integrado de Ensino, Pesquisa e

Extensão em Avaliação, Diagnóstico e Intervenção Psicológica - PROIPADI. Esses

atendimentos, sempre com ênfase em demandas individuais, consistiam na avaliação e

encaminhamento do paciente para acompanhamento em áreas mais específicas dentro do

ramo da Psicologia. Problemas como depressão em adultos e dificuldade de aprendizagem por

crianças eram inicialmente enfrentados através de intervenções individuais por uma equipe de

profissionais especializados e alunos do Instituto de Psicologia.

A criação de uma dinâmica calcada em atendimentos individuais, aliada a uma

formação disciplinar e “especializante”, representou grande obstáculo não apenas à

incorporação do Instituto de Psicologia ao novo Programa Interdisciplinar em fase de

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38

construção, mas também de compreensão dos saberes acumulados por aquela equipe que,

pelas linguagens e metodologias adotadas, se mantinham restritos a ela mesma.

Em um estágio mais avançado da construção do NIAC, após uma série de debates com

as equipes do Direito, Serviço Social e Arquitetura, a equipe de Psicologia passou a adotar

novas linguagens e metodologias que foram fundamentais para estabelecimento de uma

dinâmica mais coletiva e interdisciplinar com as outras áreas. Além disso, o acompanhamento

das demandas dos usuários sofreu radical transformação, visto que foram construídas novas

formas de intervenção, para além das tradicionais intervenções individualizadas, com a

criação do grupo terapêutico que proporcionava o diálogo e interação entre usuários com

demandas semelhantes.

O Instituto de Psicologia também contribuiu em grande medida na construção do

Fórum de Criminologia ao propor a análise dos métodos de avaliação psicológica no Sistema

Prisional e fomentar um debate crítico acerca dos modelos de aplicação de medidas de

segurança e sócio-educativas para menores infratores.

A equipe da Escola de Arquitetura diferentemente das outras áreas possuía um

histórico mais amplo de intervenções voltadas para o Complexo de Favelas da Maré. Por atuar

em busca do redesenho e re-qualificação de espaços públicos e áreas de uso coletivo na Maré,

a equipe havia mapeado grande parte dos espaços físicos que compunham o complexo de

favelas e traçado um histórico sobre o movimento de migração de pessoas para aquela área

geografia e sobre como ocorreu o processo de “favelização” da região. Além disso, promovia

reflexão de cunho mais teórico em torno das relações entre configuração físico-espacial e

violência em dois planos distintos, um internamente ao assentamento da população e outro

nas suas relações com “a cidade”.

Conforme visto anteriormente, a diferença entre a equipe do Direito e as demais

equipes residia no fato de ter elaborado um Projeto que na sua origem previa o interesse em

uma atuação de cunho interdisciplinar. A preocupação da equipe do Direito era não apenas

investir em uma assessoria jurídica adequada às demandas da região da Maré, mas também de

qualificá-la tendo por base a crítica ao paradigma positivista e o diálogo permanente com

outras áreas do conhecimento. A partir desse processo de qualificação e diálogo, se extrairiam

práticas pedagógicas diferenciadas das que predominam na maioria dos cursos de formação

em Direito e materiais bibliográficos para aprofundamento de estudos sobre as mais variadas

demandas concretamente enfrentadas.

Outra diferença essencial em relação às outras equipes encontrava-se no fato de a

Faculdade de Direito, por problemas históricos, políticos e estruturais, não ter tido condições

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39

internas de poder se articular dentro da própria Universidade, o que dificultava

conseqüentemente uma articulação mais orgânica em atividades ou fóruns de pesquisa e

extensão.

Para se ter uma noção do isolamento político-acadêmico em que se encontrava

confinada a Faculdade de Direito, é importante observar seu histórico de participação no

Congresso de Extensão da UFRJ. Enquanto as unidades de Psicologia, Serviço Social e

Arquitetura começaram a participar do Congresso desde a sua primeira edição em 2004, a

Faculdade Nacional de Direito passou a dar sua contribuição somente na sua 4ª edição em

2007 com apenas três trabalhos inscritos integrados a apenas um Programa de Extensão (o

NIAC). A 4ª Edição do Congresso de Extensão reuniu em seus Anais mais de 378 trabalhos

acadêmicos inscritos, sendo 36 deles dentro do tema Direitos Humanos e Justiça, em que

questões jurídicas eram debatidas sem a participação da FND.

3.2 Elaboração do Atendimento no NIAC

A questão da elaboração de um atendimento mais integrado entre as diferentes áreas

do conhecimento ocupou a maior parte do tempo de todas as equipes. O Direito, cuja tradição

histórica é de se fechar hermeticamente em si, conforme já demonstrado pela análise dos

fundamentos da Nova Escola Jurídica Brasileira, assumiu, neste caso, a peculiar tarefa de

propor um modelo de atendimento que propiciaria de forma inevitável uma reunião mais

orgânica entre diferentes saberes. A proposta de atendimento se subdividia em cinco etapas

básicas: a) escuta interdisciplinar da demanda; b) registro da demanda em uma base de

dados eletrônica; c) identificação das possibilidades de intervenção; d) acompanhamento da

demanda.

A etapa inicial consistia em um primeiro contato de três áreas do conhecimento

(Direito, Psicologia e Serviço Social) com a demanda do usuário. Vale ressaltar que a

Arquitetura somente seria chamada a compor a equipe interdisciplinar de atendimento, caso a

demanda fosse de caráter coletivo e relacionada a questões sócio-espaciais. As três áreas

promoveriam uma escuta de caráter literário, ou seja, sem se preocupar de antemão em

enquadrar a demanda a conceitos, institutos ou premissas teóricas. Por isso, o registro da

demanda no banco de dados deveria ser o mais fiel possível ao que era narrado pelo usuário.

O intuito destes primeiros procedimentos era o de evitar ao máximo respostas ou

intervenções precipitada, inadequadas e até mesmo de conseqüências desastrosas para

aquele(s) envolvido(s) na situação narrada. Outra preocupação da equipe, suscitada

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principalmente pelos componentes da Psicologia, era o resguarde da intimidade e a não

exposição dos usuários.

Para a Psicologia, a partir do momento em que se registra uma narrativa em uma base

de dados que estará a disposição de estudantes, professores e pesquisadores, corre-se o risco

de uma superexposição dos usuários bem como de uma não preservação da ética profissional

que norteia suas ações. De fato, a preocupação com o resguarde da intimidade do usuário não

foi privilégio de uma área do conhecimento como a Psicologia, mas de todas as áreas, pois

cada qual com suas especificidades se norteia por um conjunto de valores morais e éticos.

Não significa que, por conta disso, toda e qualquer informação contida na narrativa

deveria ser considerada sigilosa, caso contrário ocultaríamos da comunidade acadêmica e da

sociedade em geral problemas reais vivenciados por determinada classe social que muitas

vezes são negligenciados pela academia e pelo Poder Público. Não apenas essas informações

estariam disponíveis, mas também como se pretende intervir na realidade a partir delas ficaria

à disposição da comunidade para um debate amplo e aberto.

Sobre essa questão do acesso ao conhecimento e informação produzida na

Universidade, Demo coloca que a postura dos pesquisadores clássicos tem sido de apenas

informar à população dos resultados obtidos, traduzindo certo descompromisso com os

anseios daquele determinado conjunto de pessoas e reduzindo-as à condição de objeto de

análise. (Demo: 2008: 53)

Isto não leva à população a responder ativamente às provocações efetuadas pelo

pesquisador, encerra a questão no âmbito dos especialistas e os resultados acabam por

interessar somente ao círculo de pesquisadores que estão mais ou menos interados sobre

aquele tipo de produção de conhecimento. Além disso, esse distanciamento, revelador da

ausência de um diálogo mais aberto com a população, traduz certa intolerância com os saberes

populares não menos importantes que os saberes científicos, embora aparentemente caóticos

ou desordenados.

A questão da linguagem funciona neste debate como peça essencial para o acesso ao

conhecimento que é dito científico. Para que a classe social ou grupos “observados”

compreendam que a pesquisa não é apenas sobre eles, mas deve ser feita com eles, precisam

encontrar certa identidade com o que está sendo proposto. No Direito, por exemplo, temos o

vício de manipular nomenclaturas rebuscadas ou mesmo em idioma não popular como o latim

que traduzem os direitos das pessoas, sem que elas se dêem conta disso. Por outro lado, se

essas nomenclaturas/institutos não passarem de direito num plano meramente formal, a

situação fica ainda mais complicada, pois, além de travarmos uma discussão inteligível,

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41

estaremos debatendo direitos inacessíveis, posto que inteligíveis. Em outras palavras, não se

pode reivindicar, criticar ou propor alternativas àquilo que não se compreende. Por conta

disso, entende-se que o papel do pesquisador-extensionista é também o de encontrar, num

diálogo constante com trabalhadores e lideranças comunitárias, formas de desmistificar o que

parece ou é mesmo estranho à realidade daquela população.

O NIAC chegou à conclusão de que deveria disponibilizar a narrativa dos usuários na

íntegra, bem como as soluções construídas para determinados problemas, por meio de uma

base de dados eletrônica, desde que não fossem mencionados nomes, apelidos, endereços ou

quaisquer outras informações que retirassem do anonimato o(s) autor(es) da narrativa. Apenas

a equipe que promoveu a escuta e, conseqüentemente, o registro da demanda teria acesso

irrestrito às informações mais sigilosas, enquanto a comunidade acadêmica e a população em

geral encontrariam nos demais dados uma imensa base a ser estudada e debatida.

Registrada a demanda, passaria a equipe a debater as possibilidades de intervenção de

apenas uma, duas ou pelas três áreas de conhecimento. Cabe ressaltar que a eleição das

possibilidades de intervenção não se daria de forma unilateral pela equipe, posto que,

conforme dito anteriormente, a postura do não é de “adotar” a população ou “usá-la” como

objeto. O reconhecimento pela equipe de que não há como se impor determinado(s) tipo(s) de

intervenção na realidade do usuário possibilita ao próprio a capacidade de refletir sobre seus

próprios problemas e, assim, também aplicar o seu saber em conjunto com outros saberes

acadêmicos permanentemente construídos. Por outro lado, o reconhecimento da capacidade

reflexiva do usuário sobre a sua própria realidade permitiu à equipe interdisciplinar perceber

que é incapaz de responder de forma auto-suficiente toda a indagação suscitada pela demanda.

O acompanhamento da demanda permitiu à equipe traçar um histórico do

desenvolvimento da situação inicialmente narrada, das intervenções construídas e dos

resultados obtidos com elas. Não esteve descartada a hipótese de que da permanente interação

entre a equipe e o usuário surgisse novas demandas e a partir de então se reiniciariam todas as

etapas do atendimento até aqui descritas.

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Fonte: Apresentação coletiva feita ao 4º Congresso de Extensão da UFRJ

Fonte: Apresentação coletiva feita ao 4º Congresso de Extensão da UFRJ

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Fonte: Apresentação coletiva feita ao 4º Congresso de Extensão da UFRJ

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44

3.3 Acompanhamento das demandas pela Equipe do Direito

Conforme já mencionei na página anterior, concluiu-se que é do debate dentro da

equipe interdisciplinar e desta com o usuário que se extrai as possibilidades de intervenção e,

conseqüentemente, o acompanhamento da demanda pelas diferentes áreas. Além disso,

chegou-se à conclusão de que poderia ocorrer a identificação da necessidade de intervenção

apenas da equipe do Direito, o que não excluiria de todo a possibilidade desta estar

dialogando de forma permanente com as outras áreas que não estão intervindo diretamente.

Aliás, constatou-se, no curso da implementação do Projeto, que as causas de maior

complexidade demandam em sua maioria uma intervenção interdisciplinar, sob pena da

equipe intervencionista adotar práticas equivocadas ou até mesmo desastrosas.

Diante de determinado caso concreto, o desafio não estaria apenas em encontrar

respostas para questões eminentemente jurídicas, mas em encontrar as relações que estas

questões guardam com muitas outras de cunho político, cultural e social que podem não estar

expressamente colocadas na doutrina ou na jurisprudência, mas que estão inseridas nas

questões jurídicas como um “pano de fundo”.

De fato, este desafio é também pedagógico, pois, para que os estudantes

problematizem as demandas que lhes são encaminhadas e busquem uma intervenção mais

adequada, não podem estar adstritos a uma formação descontextualizada, dogmática e

unidisciplinar. Se assim estiverem, poderão cometer o equívoco de tratar como sinônimas

questões jurídicas e questões judiciais, assunto este que foi debatido exaustivamente neste

trabalho monográfico.

Estariam, portanto, agindo como “míopes” e passariam a enxergar questões jurídicas

apenas dentro de processos judiciais, o que os poderia levar a desprezar, por exemplo, formas

alternativas de resolução de conflitos em que também são tratadas questões jurídicas de

grande relevância. Formas alternativas de composição não lhes pareceriam familiares porque

estariam distantes do limite de alcance de sua visão.

Além dos desafios até aqui levantados, cabe ressaltar ainda que a equipe do Direito

buscou desenvolver a formação de Grupos de Pesquisa a partir das demandas trazidas pelos

usuários. Esses grupos teriam a tarefa de consultar a base de dados do NIAC, promover

análise quantitativa e qualitativa de dados, desenvolver novas metodologias de pesquisa,

ensino e extensão, reunir material bibliográfico pertinente a determinados temas ou demandas,

produzir novos trabalhos acadêmicos e, assim, aprofundar seus conhecimentos teórico-

práticos

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45

3.4 Problemas a serem superados

Toda a experiência narrada se deu no período de meados de 2006 até meados do ano

2009, isto é, durante os três primeiros anos de existência do NIAC. É partir dessa experiência

que devem ser extraídas perspectivas de mudança e aperfeiçoamento da dinâmica até aqui

estabelecida, tendo como objetivo mais estratégico a concretização de princípios

fundamentais presentes no Plano Nacional de Extensão Universitária. Além desses princípios,

outro objetivo é também o cumprimento das diretrizes estabelecidas democraticamente pela

Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ.

Um dos problemas que nos parecem central é a questão do registro não apenas de

atendimentos, mas de outras atividades desempenhadas por alunos e professores do Programa,

o que incluiria reuniões internas, reuniões externas, isto é, com entidades/orgãos parceiros do

NIAC e participação em fóruns científicos, universitários ou do movimento social. Embora

encontremos uma dinâmica de registro dos atendimentos em uma base de dados, outras tantas

atividades que influenciaram nas formas de agir e pensar dentro do NIAC não foram

registradas, o que demonstra que houve a produção de saberes relevantes tanto para a

universidade quanto para a sociedade que não foram sistematizados e que possivelmente se

perderão no tempo e no espaço, caso não sejam reunidos em uma base mais organizada de

dados.

Com isto se relaciona o princípio presente no Plano Nacional de Extensão que afirma

que

“a ação cidadã das universidades não pode prescindir da efetiva

difusão dos saberes nelas produzidos, de tal forma que as populações

cujos problemas tornam-se objeto da pesquisa acadêmica sejam

também consideradas sujeito desse conhecimento, tendo, portanto,

pleno direito de acesso às informações resultantes dessas pesquisas.” 3

Apesar do reconhecimento pela equipe do NIAC de que é preciso construir de forma

integrada com a sociedade novas possibilidades de intervenção universitária e do

reconhecimento das populações como sujeitos de conhecimento, o não registro de como se

deu esse alguns desses processos de reconhecimento impossibilitou maior difusão dessas

novas práticas pedagógicas.

3Cf. Plano Nacional de Extensão Universitária elaborada pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão de

Universidades Públicas. www.renex.org.br

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No 4º Congresso de Extensão da UFRJ (2007), houve um breve registro sobre algumas

das dificuldades enfrentadas no processo de implementação do NIAC nos seus Anais através

dos trabalhos “Os desafios da Interdisciplinaridade na Práxis Extensionista no Núcleo

Interdisciplinar de Ações para Cidadania” e “Reflexões Metodológicas sobre a Atuação dos

Estudantes no Primeiro Atendimento do NIAC”. Esse registro não transmitia, no entanto, a

riqueza de detalhes que esta experiência guarda dentro de si e um aprofundamento de

conceitos e elementos mencionados de maneira ainda muito precária, mas que seguramente

influenciaram na formação dos estudantes e profissionais envolvidos nas atividades de

implementação4.

Assim como não houve o registro de uma série de atividades, não há ainda um

levantamento de todos os resultados produzidos com as intervenções construídas, o que

dificulta uma maior reflexão e clareza sobre o impacto destas na realidade trabalhada. As

intervenções do NIAC carecem de uma avaliação quantitativa e qualitativa mais profunda que

só poderá ser efetuada quando estabelecida uma dinâmica mais orgânica de pesquisa no

próprio Núcleo.

Antes de entrar nesse mérito, cabe salientar que em apenas dois anos a equipe foi

surpreendida pela multiplicação de atendimentos em período relativamente curto de existência

do Programa. A carga de intervenções essencialmente práticas consumiu boa parte do tempo

de trabalho de todas as áreas. Assim, o crescimento do número de demandas em período de

amadurecimento do Programa representou, portanto, fator de grande influência na produção

de problemas como o da falta de registro de uma série de outras atividades e o da dificuldade

de criação de uma dinâmica mais orgânica de pesquisa. Por outro lado, o grande volume de

demandas em curto lapso temporal aponta que o NIAC se tornou referência para grande parte

dos moradores do complexo de favelas. Houve no contato com a população uma espécie de

identificação com os métodos, linguagens e propostas construídas pela equipe interdisciplinar.

Neste momento, deparo-me com um segundo problema que é a criação de Grupos de

Pesquisa-Ação que, por sua vez, se relaciona com uma das diretrizes colocadas pela

Universidade que é “a proposição de atividades de extensão que permitam maior articulação

entre as atividades de pesquisa e ensino, estimulando, também, a interdisciplinaridade”.

Para além do crescimento abrupto das demandas e das deficiências de formação já

identificadas, de fato, o fortalecimento do tripé ensino-pesquisa-extensão no NIAC esbarrou

nos limites de uma estrutura universitária precarizada e um tanto quanto conservadora. Há

4Cf. Anais do 4º Congresso de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. In:www.

www.pr5.ufrj.br/documentos/pne.doc

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dentro da Universidade uma lógica de forte concentração de financiamentos em outros tipos

de pesquisa ou atividades não relacionadas ao trabalho hoje desenvolvido na Extensão

Universitária. Sem querer desmerecer a importância do trabalho de alguns setores da

Universidade, observa-se ainda gritante disparidade entre os investimentos públicos

oferecidos às pesquisas tradicionais e àquelas desenvolvidas na Extensão.

Além disso, saberes como a Engenharia ou relacionados à Saúde recebem em média

mais investimentos do que projetos de pesquisa/extensão em Educação, Cultura, Serviço

Social e Direitos Humanos. Vale ressaltar que muitos desses investimentos são oriundos de

empresas públicas e sociedades de economia-mista, considerados aqui como investimentos

públicos por serem estas alimentadas em grande medida pelos cofres da União e demais entes

federados. Na realidade, esta opção política por investir mais nas chamadas ciências naturais e

ciências tecnológicas reflete de certa maneira uma opção histórica do Estado Brasileiro por

um determinado modelo econômico e social. Sem querer desmerecer qualquer campo

científico, a disparidade de investimentos acadêmicos é questão política que deve ser mais

amplamente debatida e que tem sido um problema para setores da sociedade que têm

referência em atividades e ciências relegadas a um plano secundário dentro do quadro de

prioridades de investimento da Universidade e do Poder Público.

Sendo assim, o crescimento das demandas das atividades de extensão nas áreas de

Educação, Cultura não é acompanhada na mesma proporção por uma política de

investimentos públicos mais freqüentes. Aliado a isso, está o processo de reestruturação ainda

em curso das Universidades Públicas Federais, embora tenham conquistado nos últimos 8

anos um aumento do seu orçamento e de recursos necessários ao seu pleno desenvolvimento.

Algumas unidades da UFRJ ainda possuem estrutura extremamente precarizada como

é o caso da Faculdade de Direito. O grande número de professores contratados

temporariamente no Direito, por exemplo, dificultava o desenvolvimento de pesquisas e uma

avaliação mais contínua e aprofundada dos trabalhos desenvolvidos. Além disso, os debates

acerca do novo Projeto Político Pedagógico ainda prematuro não proporcionaram uma

consolidação de uma política voltada para o fortalecimento da pesquisa na extensão, pesquisa

esta que tem proposta diferenciada dos demais tipos de pesquisa conforme tentarei mostrar

mais adiante.

Embora tenham ocorrido esforços por parte de todas as equipes de criarem uma

dinâmica mais orgânica de pesquisa em um programa extensionista, as condições materiais

impostas ao Programa foram também determinantes para o aparecimento de problemas aqui

colocados. Cabe lembrar o esforço da equipe do Serviço Social no desenvolvimento de

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48

pesquisa relacionada à Educação em Direitos Humanos e Sociais que culminou na publicação

da Cartilha “Nossos Direitos de Todos” e na construção de outros projetos como o Pacificar e

o Balcão de Direitos.

3.5 Por que ter Pesquisa na Extensão?

Diferentemente de outros tipos de pesquisa voltados mais para o campo teórico ou

mais metodológico, a pesquisa na extensão possui alguns aspectos que lhe são peculiares. A

pesquisa teórica, preocupada em construir uma sistematização rigorosa da realidade, em

compreender as obras clássicas e o conjunto da produção intelectual vigente, se por um lado

tem grande relevância por criar referências explicativas coerentes com a realidade, por outro,

pode recair no vício do afastamento da prática ou em abstracionismos que muitas vezes soam

como inúteis para parcela significativa da sociedade. Já a pesquisa metodológica, preocupada

com o caminho que se percorre na produção de conhecimento e com a criação de novos

caminhos através da crítica devidamente fundamentada, se por um lado trabalha com a

relevante questão dos meios de acesso ao conhecimento e estimula a criatividade científica,

por outro pode recair em discussão infrutífera e acrítica se não questionadas noções prévias

que deram origem a determinado método.

A pesquisa no ambiente extensionista tem outros propósitos. É preciso entender que

sua finalidade é a princípio resolver questões emergenciais concretas do quotidiano dos

envolvidos e propor transformações para o alcance de objetivos mais estratégicos para àquelas

populações que redundarão na melhoria de sua qualidade de vida. O problema que vira a

razão de ser da pesquisa se origina nas experiências concretas da comunidade, envolvendo-a

no processo de produção científica porque torna-se parceira dos pesquisadores-extensionistas.

O debate político e ideológico, embora sofra algum controle para que não se percam

os objetivos da pesquisa, torna-se mais acessível e aberto. Em outras palavras, colocam-se na

mesa as cartas existentes no jogo social para que todos os atores envolvidos compreendam os

caminhos que podem ser trilhados na resolução de determinado impasse.

Sobre essa questão, Demo afirma que

“A ciência social que nega suas vinculações ideológicas ou com elas

não se preocupa, as mascara e não tem condições de as controlar. Ao

rejeitar envolvimentos políticos, não só os mistifica, como sobretudo

enreda-se com a possibilidade sempre aberta de manipulação por

parte dos poderosos.” (Demo: 2008: 57).

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Warat também coloca que o discurso das ciências sociais está impregnado de uma

visão óptica de mundo. O termo “óptica” traduzido para o grego vira “theorem” que, por sua

vez, se assemelha à palavra “teoria” em português. “Theorem” era o nome que vulgarmente se

utilizava para os comentários dos jogos olímpicos feitos por comentaristas que os observavam

sem, no entanto, nunca terem participado de uma olimpíada como jogadores. A partir dessa

compreensão, Warat propõe o fim do “pensador-voyer” que não se compromete politicamente

nem “suja as mãos” com a prática. (Warat: 1988: 23)

Voltando aos propósitos da pesquisa na extensão, é preciso compreender que o

constante diálogo com os trabalhadores e lideranças comunitárias é ao mesmo tempo meio de

pesquisa e fim da mesma. É meio, posto que um dos pressupostos básicos para se conseguir a

longo prazo uma melhoria da qualidade de vida da população é a conscientização de sua

capacidade reflexiva e interventiva, conseguida através desse diálogo. A percepção de que os

envolvidos podem ser sujeitos e protagonistas de sua própria história é fundamental para sua

emancipação e para a construção de um modelo de sociedade que lhes proporcione uma

existência condizente com sua capacidade laborativa, produtiva ou criativa. É fim, posto que

sua outra finalidade é romper os muros da torre de marfim, numa constante interação dialética

com as tensões existentes no seio da sociedade.

Cabe aqui uma reflexão aos acadêmicos de que é preciso aprender a pensar com

aqueles que de cientistas propriamente ditos não tem nada, mas que nem por isso deixam de

produzir saberes relevantes. Tal reflexão pode fazer a Universidade retomar um papel

fundamental e central, por passar a produzir um saber com o qual criaríam uma identidade as

comunidades envolvidas ou aquelas que, mesmo não envolvidas diretamente, passam por

experiências semelhantes. A pesquisa na extensão pode ser também um campo fértil para a

criação de políticas públicas mais eficazes no tratamento das necessidades de determinados

setores sociais.

Para o Direito, este tipo de pesquisa é prática pedagógica que inova frente ao modelo

tradicional. Representa a oportunidade de confrontação entre o saber dogmático e outros não-

dogmáticos bem como a elaboração de um saber mais contextualizado e comprometido com

as demandas por efetivação de Direitos Fundamentais Sociais. Além disso, constitui ambiente

propício à formulação de críticas às teorias positivistas clássicas que insistem em atribuir à

ciência do Direito certo purismo ideológico que o afasta ou mascara a realidade e de

determinados tipos de relações sociais, envolvendo necessidades, produção e distribuição de

riqueza.

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4) O que se pensa na Colina: breve relato sobre a experiência da

Universidade de Brasília

No ano de 2007, por ocasião do Congresso de 180 anos do Ensino do Direito

no Brasil e Democratização do Acesso à Justiça, ocorrido na Universidade de Brasília

em parceria com o Ministério da Educação, Ministério da Justiça e Associação

Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi).

O Congresso, que reuniu professores, alunos e autoridades públicas de diversas

regiões do país, teve três dias de duração e debateu dentre outros temas a Reforma do

Judiciário, Reforma do Ensino Jurídico e o desenvolvimento de políticas públicas na

área de Direitos Humanos.

Foram apresentados projetos pioneiros em Extensão Universitária tal como o

Projeto Pólos Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais. As propostas de

atuação da Universidade de Brasília em especial me chamaram atenção pela

capacidade de mobilização não apenas acadêmica, mas social que conseguiram

empreender ao longo dos últimos anos. Além disso, os resultados obtidos nas

localidades escolhidas como público-alvo têm demonstrado o papel central que a

Universidade pode desempenhar na construção de novas formas de pensar e agir e na

revelação de um novo projeto de sociedade, calcado no resgate de valores

humanísticos e no acesso efetivo a Direitos Humanos e Sociais.

A Universidade de Brasília é uma instituição com vasta experiência

extensionista. Na Faculdade de Direito, essa experiência foi provocada historicamente

pelo movimento estudantil reivindicante de uma responsabilidade que deve ser

assumida pela Universidade com os problemas sociais. Aliado a isso, o movimento

científico do Direito Achado na Rua, por dar ênfase à perspectiva de integração

teórico-prática do humanismo dialético, construído, principalmente, por Lyra Filho,

constituiu elemento chave para alavancar esta experiência.

Assim, um número cada vez maior de professores e alunos têm se dedicado ao

trabalho extensionista e à elaboração de novos debates, projetos e disciplinas. Mesmo

assim, dentro do universo geral de docentes que se dedicam a esta tarefa, ainda é

preciso um esforço de mobilização.

“De nada adianta repetirmos que a Constituição consagra o

trinômio “ensino-pesquisa-extensão” como linha que deve nortear a

política universitária se, na prática, o compromisso com a extensão é

quase nenhum. São muito poucos os professores e alunos que

efetivamente realizam extensão universitária, por que falta aos atores

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pedagógicos a compreensão do exato papel que a extensão pode e

deve cumprir no ambiente acadêmico.” (Said Filho: 2007: 29)

Nesta vasta experiência, encontramos o Curso de Promotoras Legais Populares

que trabalha com a questão da educação jurídica popular, debatendo noções de

cidadania e direitos sociais com trabalhadoras e lideranças comunitárias; o Núcleo de

Prática Jurídica em Ceilândia, região que abriga grande número de trabalhadores

nordestinos e imigrantes, com o atendimento de suas demandas individuais e coletivas

em diferentes ramos do Direito; o Projeto Tribuna do Brasil que se propunha a dar

respostas a demandas enviadas por pessoas por meio do Jornal Tribuna do Brasil e o

Projeto Cabaret Macunaíma, cuja prosposta era fortalecer uma cultura jurídica

interdisciplinar, através da integração entre Direito e Arte.

Os resultados dessa experiência foram reciprocamente sentidos pela

Universidade e pela Sociedade, conforme explicita Bernardino Costa ao colocar que

“a sociedade ganha por desenvolver processos de autonomia na sua luta

emancipatória, e a Universidade ganha na medida em que aprende com a

comunidade suas formas de realização social”. (Bernardino Costa: 2007: 11)

A Extensão, além de recuperar um verdadeiro sentido de Universidade,

constituiu a oportunidade do saber científico se abrir para a sabedoria criada e posta

em prática na dinâmica social, bem como propiciou uma oportunidade de criação de

um aprendizado na sua concepção mais ampla, posto que articulado e interdisciplinar.

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53

Conclusões

I. A Nova Escola Jurídica Brasileira, ao atacar os fundamentos das teorias positivistas e

jusnaturalistas, propõe uma nova Teoria do Direito que observe a sua positivação dialética e o

fenômeno jurídico como expressão de todo um conjunto de contradições históricas,

econômicas, sociais e culturais.

II. Essa Nova Teoria, ao combater noções predominantes nas Faculdades de Direito,

inaugurou uma nova fase de discussão acerca do modelo de ensino jurídico implantado pelas

elites nacionais, cuja função principal era a formação de quadros para compor a máquina

estatal burocrática bem como o resguarde de valores liberal-burgueses essenciais à

manutenção de toda uma estrutura de dominação instaurada.

III. Apesar dessa nova fase de discussão ter se iniciado, estudos e debates recentes

diagnosticaram não apenas a continuidade do antigo modelo de ensino como também uma

crise desse mesmo modelo, em virtude do surgimento de novas demandas sociais

reivindicantes de uma resposta para a crise do modelo capital-desenvolvimentista e,

posteriormente, do modelo capitalista neoliberal implantado no Brasil a partir de 1989.

IV. O diagnóstico demonstrou que o modelo de ensino jurídico possui três características

básicas quais sejam: a unidisciplinaridade, criadora de fronteiras entre o Direito e outros

saberes científicos; a descontextualização, que afasta a Teoria da Prática ou o Direito dos

problemas sociais mais latentes e o dogmatismo, mantenedor de uma visão formalista do

fenômeno jurídico e do status quo social.

V. Outra constatação importante para entender a continuidade desse modelo é a de um

perfil docente e discente que não dedica maior parte de seu tempo a outras atividades,

essencias para o avanço teórico no Direito, como as de pesquisa e extensão. Soma-se a isso o

não engajamento no debate de propostas para reformulação do ensino jurídico, apesar das

constantes reclamações e frustrações do corpo acadêmico. Com isso, criam-se consensos em

torno do discurso docente proferido nas aulas expositivas que, não por acaso, reproduzem

discursos jurídicos representantes da máquina burocrática estatal e que nem sempre estão de

acordo com os anseios de transformação social.

VI. A partir desse panorama e dos debates ocorridos nas instituições, o Ministério da

Educação formulou uma tentativa de reforma do modelo de ensino representada pela Portaria

1.886. A proposta inovou ao tocar na necessidade de maior integração entre as atividades de

ensino, pesquisa e extensão. Além disso, revelou uma preocupação com a formação de um

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perfil profissional que contemplasse não apenas as demandas do mercado de trabalho, mas

também as demandas sociais mais latentes.

VII. A partir da Portaria, fomentou-se nas Faculdades de Direito a criação de estágios de

prática e escritório de atendimento gratuito à população. Ocorre que essas estruturas de

aprendizado reproduziram e continuam a reproduzir até os dias atuais exatamente a postura

dogmática das salas de aula. Despreocupadas com a problematização do Direito a partir do

contato com a realidade concreta, essas estruturas não tem contribuido para o avanço teórico e

também metodológico no Direito, o que só faz arrastar a crise do modelo central de ensino e

impede a formulação de respostas mais qualificadas aos problemas sociais enfrentados.

VIII. Preocupadas com a superação da crise por que passa o ensino jurídico, algumas

Universidades têm se esforçado, seja através de seus Projetos Pedagógicos seja através de

Projetos de Pesquisa e Extensão, para apresentar propostas de mudança da estrutura de ensino

vigente. Neste trabalho monográfico, foram apresentados dois exemplos de instituições que

tem inovado rumo a construção de um ensino interdisciplinar e contextualizado e,

conseqüentemente, para uma nova compreensão acerca do Direito em nossa sociedade.

IX. A Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, embora tenha

enfrentado uma série de problemas políticos internos e infra-estruturais, propôs, no ano de

2006, não apenas um Projeto Pedagógico que contemplava uma série de revindicações do

movimento social e estudantil como também atividades de pesquisa e extensão que

funcionavam como contraponto a uma visão tradicional de aprendizagem.

X. Dentre essas atividades, destaca-se a de implantação de uma nova práxis extensionista

com o Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania na Ilha do Fundão, cuja finalidade

precípua era oferecer atendimento integrado entre três áreas do conhecimento (Direito,

Psicologia e Serviço Social) ao Complexo de Favelas da Maré, população circunvizinha do

campus da Ilha do Fundão. Procurou-se estabelecer no NIAC uma dinâmica de atendimento

diferenciada daquela das estruturas tradicionais, em que houvesse o respeito aos saberes e

anseios da população. Além disso, procurou-se a utilização de uma linguagem que tornasse as

informações/conhecimentos, sempre disponíveis ao público, também inteligíveis.

XI. Embora seja inovadora a proposta da nova práxis extensionista, constata-se ainda uma

certa dificuldade de integração desta com uma dinâmica mais orgânica de pesquisa. Embora

haja um esforço institucional para o fortalecimento do tripé da educação em todas as

atividades acadêmicas, há ainda uma lógica universitária de pouco investimento em projetos

essencialmente extensionistas propostos pelas ciências humanas e sociais. Aliada a isso,

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encontra-se uma formação acadêmica ainda especializadora nestas ciências e supostamente

desvinculada de compromissos políticos ou ideológicos. Nas Faculdades de Direito, esta

formação especializadora, que encontra na reprodução da dogmática a sua estruturação,

perpetua de forma mais direta as estruturas de dominação social, posto que sua finalidade

histórica é a formação de quadros para compor a Administração do Estado.

XII. Cabe ressaltar que a dinâmica da pesquisa na extensão diferencia-se dos modelos

clássicos de pesquisa por tratar mais diretamente das condições materiais de vida da classe

trabalhadora. Além disso, no diálogo com os envolvidos, esta pesquisa propõe um debate

político e ideológico mais amplo e aberto, essencial para que sejam trilhados caminhos mais

adequados ao pleno atendimento das demandas vindas daquelas populações.

XIII. A vasta experiência extensionista da Universidade de Brasília demonstrou por um lado

que a sociedade tem ganhado por desenvolver processos de conscientização da classe

trabalhadora acerca de suas condições materiais e de direitos a que faz jus e que a

Universidade tem recuperado um papel central neste processo, além de aprender com a

população suas formas de lidar com os problemas enfrentados. Por outro lado, a experiência

demonstrou que ainda há um longo caminho a ser percorrido rumo a construção de um novo

modelo de ensino jurídico em que atividades como essas ganhem maior atenção e

centralidade.

XIV. Os desafios estão colocados. Por enquanto, observa-se nas instituições de ensino

jurídico, muito por conta da pressão política exercida pelo setor extensionista, um momento

de transição em que o novo convive e tensiona com o velho e tradicional.

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