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DANILO SANTOS DE MENEZES A POPULAR COZINHA BAIANA DO DENDÊ Série de reportagens Trabalho de conclusão do curso de Comunicação, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal da Bahia. Orientador: Giovandro Marcus Ferreira Co-orientadora: Nadja Magalhães Miranda SALVADOR (BA) 2003

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DANILO SANTOS DE MENEZES

A POPULAR COZINHA BAIANA DO DENDÊ Série de reportagens

Trabalho de conclusão do curso de

Comunicação, habilitação em Jornalismo, da

Universidade Federal da Bahia.

Orientador: Giovandro Marcus Ferreira

Co-orientadora: Nadja Magalhães Miranda

SALVADOR (BA)2003

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À memória do meu pai, um gourmet, ainda que não se desse conta disso.

A minha mãe e minha irmã.

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador Giovandro Ferreira, pelo acompanhamento, revisão, dispo-

nibilidade e atenção. À co-orientadora Nadja Miranda, pelas sugestões e críticas em

momentos importantes.

A Beto, pelo apoio constante. A Eliane Cardoso, pelo carinho. Aos colegas de

trabalho do Banco do Brasil e aos colegas do curso de Comunicação, especialmente

Amanda, Eliane, Luciana e Tharsila, pelo companheirismo.

A Vivaldo da Costa Lima, que me disponibilizou a sua biblioteca, e de quem me

tornei amigo. A Ericivaldo Veiga, pela atenção. A Vânia Rebelo, pelas fotos. A Luciano

Robatto, pelas dicas de editoração.

A todos os entrevistados, pela disponibilidade e pelo amor à arte culinária. A

Heloísa Sampaio, pelas informações fornecidas. E por suas crônicas gastronômicas,

muitas sobre a região cacaueira, de onde também sou nativo.

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Comer e comunicar são duas funções animais que o homem faz com mais estilo e variedade que os animais. Há quem diga que sexo também, mas nossa espécie não tem nada parecido com o ‘balé’ sexual de certas aves, pelo que eu conheço. É por isso que o texto sobre comida nos dá tanto prazer. Estamos celebrando a nossa superioridade sobre o hipopótamo e ostentando duas artes que só nós temos no planeta dos bichos, a gastronomia e a linguagem.

Luis Fernando Veríssimo

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SUMÁRIO

PARTE I – Memória descritiva e analítica

Apresentação...................................................................................................................6

Escolha do tema...............................................................................................................7

Formato..........................................................................................................................10

Produção.........................................................................................................................14

Conclusão.......................................................................................................................25

Bibliografia.....................................................................................................................28

PARTE II – Série de reportagens

Presença dourada..........................................................................................................31

Tradição e modernidade..............................................................................................35

Dendê popular...............................................................................................................43

Cozinha ambulante.......................................................................................................47

Dendê nosso de toda sexta...........................................................................................50

Gorduras vegetais........................................................................................................53

A banqueteira do dendê...............................................................................................58

Inovações nos pratos.....................................................................................................63

Gourmet do dendê........................................................................................................70

O engenheiro com um pé na cozinha..........................................................................74

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PARTE I

Memória descritiva e analítica

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APRESENTAÇÃO

A presente memória acompanha a série de reportagens A popular cozinha

baiana do dendê, que constitui requisito parcial para conclusão do curso de graduação

em Comunicação, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal da Bahia. Este

trabalho de reportagem aborda basicamente a presença majestosa do azeite-de-dendê na

culinária baiana, e diversos aspectos envolvidos, a exemplo de origens, tradições,

utilizações e inovações nos pratos que utilizam esse ingrediente. O olhar sobre a cozinha

baiana deu-se a partir de pessoas que estudam, preparam e que apreciam os pratos feitos

com azeite-de-dendê.

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ESCOLHA DO TEMA

Na época do meu anteprojeto, pensado enquanto cursava a disciplina Elaboração

de Projeto em Comunicação, com a professora Maria Carmem Jacob, imaginei abordar

a gastronomia, tendo-se em conta o que é veiculado nas colunas de jornais, baianos e de

outros Estados. Da gastronomia em geral, o meu interesse passou a enfocar a

gastronomia na Bahia, até chegar à culinária e à apreciação dos pratos que são feitos

com azeite-de-dendê.

O meu interesse pelo tema parte do prazer de degustar uma boa refeição.

Motivado pela fome, eu me dedico eventualmente à preparação de alguns pratos e à

peregrinação a restaurantes, em busca de novos sabores. Passando, eventualmente, pela

leitura de revistas, jornais e livros sobre culinária e gastronomia. Na Faculdade de

Comunicação da UFBA, elaborei um site sobre acarajé, durante a disciplina Oficina de

Comunicação Audiovisual, do curso de Jornalismo.

De início, a gastronomia significava “estudo ou observância das leis do

estômago”. Hoje está relacionada aos preceitos de comer e beber bem, mais por prazer

do que por necessidade, e à arte de preparar iguarias para obter delas o máximo de

deleite, tornando-as mais digestivas. Gastronomia, portanto, é a arte de cozinhar e

apreciar a boa comida. A arte de cozinhar também é chamada de culinária.

A culinária brasileira é bastante variada, por sua geografia e formação étnica,

basicamente indígena, africana e portuguesa. A cozinha baiana é, entre as de todos os

Estados, talvez o maior espelho dessa mistura de influências. Os pratos de origem

africana são, sem dúvida, os mais famosos da Bahia. Ainda que existam outras heranças

importantes, receitas consumidas até com mais freqüência no dia-a-dia dos baianos.

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Nesse caso, o grande exemplo é a cozinha sertaneja, formada em sua maior parte de

pratos de origem portuguesa, com influência da cozinha indígena.

A gastronomia vai além da preparação e degustação de pratos: envolve a crítica

e pressupõe conhecimentos teóricos e práticos, que permitem avaliar os resultados

obtidos. Isso ficou mais claro para mim ao ler livros e as seções de gastronomia de

jornais impressos de outros locais. Análises e matérias com nível de aprofundamento

maior do que o encontrado nos jornais da Bahia e de outros Estados brasileiros.

Por aqui existem poucos os profissionais da comunicação que se dedicam à

gastronomia. Há pouco espaço dispensado ao assunto, em termos de número de colunas

e páginas. Falta esmiuçar, dar mais informações, mais detalhes. Olhando de forma

rápida os cadernos de finais de semana, nota-se que o jornal A Tarde resume-se a

receitas e um texto curto na coluna Comes e Bebes. O Correio da Bahia vai um pouco

adiante, disponibiliza página inteira, trazendo matérias de culinária com referência a

datas comemorativas (dia dos pais, das mães, dos namorados), tipos de culinária

(natural, light, macrobiótica), de diferentes nacionalidades (chinesa, italiana, francesa),

mas todas com textos curtos, cujo foco também acaba recaindo sobre as receitas. Falta

contextualizar e imprimir impressões críticas e detalhadas dos resultados dos pratos.

Uma opção mais recente produzida na Bahia é o blog (site) Tara do Prato

(www.taradoprato.weblogger.com.br), publicado na internet, produzido pelas jornalistas

Heloísa Sampaio e Majorie Moura, com crônicas, receitas e notícias sobre a

gastronomia no Estado. Heloísa, ou Helô, é cronista de gastronomia e possui livro

publicado sobre o assunto, intitulado Bem comida.

Na bibliografia da cozinha baiana, a maior parte dos títulos é composta de livros

de receitas. Entre algumas exceções: o livro A cozinha baiana, do jornalista Darwin

Brandão, publicado em 1948, e A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas, de

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Hildergardes Vianna, publicado em 1955. O primeiro é uma grande reportagem,

publicada em forma de livro. Mesmo assim, a metade do total de páginas é composta de

receitas. O segundo trabalho, da professora e folclorista Hildegardes Vianna, possui

anotações valiosas a respeito dos costumes baianos da década de 50. Mas também a

maior parte do conteúdo é de receitas.

O antropólogo Vivaldo Costa Lima deu grande colaboração à cultura baiana ao

publicar o artigo Etnocenologia e etnoculinária do acarajé. O texto é a mais importante

referência em termos de análise do “fenômeno cultural” acarajé. E, por conseqüência,

da cozinha baiana atual. O antropólogo promete para breve a publicação de um livro,

totalmente dedicado à iguaria. O livro terá o título O acarajé e o sonho.

A tese de doutorado A cozinha baiana do restaurante escola do Senac do

Pelourinho - Bahia: mudança de contexto e atores, do antropólogo Ericivaldo Veiga,

professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) é também um excelente

registro da cultura baiana. Mas o foco do trabalho é o restaurante e escola, não é a

alimentação.

O engenheiro Guilherme Radel também deu grande colaboração para o registro

da cozinha da Bahia. O livro A Cozinha Sertaneja da Bahia, publicado em 2002,

também traz muitas receitas e boas observações, ainda que breves, sobre a cozinha do

Estado.

A partir da percepção de que há certa lacuna a ser preenchida, sobre a

atualização de um assunto que vem despertando o interesse dos leitores, imaginei em

dar uma pequena colaboração para o registro histórico-cultural da cozinha do azeite-de-

dendê, praticada na Bahia. Pensei em produzir uma série de reportagens, editada na

forma de um caderno especial para ser incluído em jornal impresso.

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FORMATO - Série de reportagens (grande-reportagem)

Noticiar é tornar público um fato, buscando responder as questões o que, quem,

quando, como, onde e por quê. Para diminuir a superficialidade da notícia, fornecendo

para o receptor compreensão de maior alcance, surge a modalidade de mensagem

jornalística chamada de reportagem, que é a ampliação do relato simples para a

dimensão contextual.

A grande-reportagem é o formato que apresenta maior amplitude, possibilitando

mergulho nos fatos e em seu contexto, oferecendo a seu autor ou atores, uma dose

considerável de liberdade para escapar da fórmula convencional do tratamento da

notícia1.

Segundo Lima, uma das formas de expressão da grande-reportagem é o

jornalismo interpretativo, que busca não deixar a audiência desprovida de meios para

compreender o seu tempo, as causas e as origens dos fenômenos que presencia, suas

conseqüências no futuro. Procura elucidar os aspectos da realidade que não estão muito

claros2.

Para tanto, são necessários alguns ingredientes:

- O contexto do fato nuclear, quando se trata de um tema mais duradouro e que

não reflita apenas uma ocorrência menor, isolada;

- Os antecedentes, para resgatar no tempo as origens do problema; o suporte

especializado, através de enquete, pesquisa de opinião pública ou entrevistas com

especialistas e testemunhas do assunto em questão, para dar a sustentação que evita a

informação oca;

1 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p. 24.2 Op. cit., p.25

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- A projeção, visando inferir do presente e do passado os desdobramentos do

caso, suas conseqüências possíveis, seu alcance futuro;

- O perfil, que é o lado de humanização da reportagem, que busca emocionar,

junto com a elucidação racional.

Tudo isso voltado para uma abordagem multiangular, para uma compreensão da

realidade que ultrapassa o enfoque linear, ganhando contornos sistêmicos no esforço de

estabelecer relações entre as causas e as conseqüências de um problema

contemporâneo.3

A reportagem tem as características da predominância da forma narrativa, a

humanização do relato, o texto de natureza impressionista e a objetividade dos fatos

narrados.4

A grande reportagem colabora para o aprofundamento do conhecimento do

nosso tempo, diminuindo o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos

canais cotidianos da informação jornalística5. É na expectativa de encontrar explicações

e informações de ações de bastidores, que o leitor pode motivar-se ao aprofundamento

que a série de reportagens se propõe.

A série de reportagens aqui elaborada é basicamente do tipo documental (quote-

story), cujo relato é acompanhado de citações que complementam e esclarecem o

assunto tratado, ao mesmo tempo em que se apóia em dados que lhe conferem

fundamentação. Também foram utilizados o uso de recursos da reportagem de fatos

(narração de fatos).6

3 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.264 SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo: Summus Editorial, 1986, p. 15.5 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p. 16.6 op. cit., p. 28.

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Quanto à função, a série de reportagens tem as finalidades típicas do jornalismo:

serve para informar, orientar, explicar.7

Costuma faltar ao profissional da comunicação o hábito da pesquisa mais

apurada sobre o tema de sua pauta, antes de partir para a coleta que vai gerar a matéria.

Ou, em certos casos, falta-lhe o domínio de um instrumental de lógica que lhe

possibilite analisar um tema com amplitude, a partir daí podendo estruturar uma pauta

abrangente, de alcance. Este trabalho acadêmico de série de reportagens pode vir ajudar

suprir essa lacuna.

Quanto ao vínculo com a atualidade, há duas categorias de reportagem. Na

primeira, aproveita um fato de repercussão atual, para explorá-lo com maior alcance. Na

segunda, não se limita ao rigorosamente atual, trabalhando temas um pouco mais

distantes no tempo, de modo que possa, a partir daí, trazer explicações para as origens,

no passado, das realidades contemporâneas8. A série de reportagens aqui elaborada é

coerente com o segundo tipo, ainda que ambas as características estejam interligadas.

A série de reportagens tem a função de informar e orientar em profundidade

sobre ocorrências sociais, episódios fatuais, acontecimentos duradouros, situações,

idéias, e figuras humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da

contemporaneidade capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar

o sentido, o significado do mundo contemporâneo.9

A profundidade pode se dar horizontalmente – sentido extensivo -, verticalmente

– sentido intensivo – ou numa mescla de ambos.

O aprofundamento é extensivo, ou horizontal, quando o leitor é brindado com

dados, números, informações, detalhes que ampliam quantitativamente sua taxa de

77 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.308 op. cit., p.349 op. cit., p.37

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conhecimento do tema. O aprofundamento é intensivo, ou vertical, quando o leitor é

alimentado de informações que lhe possibilitam aumentar qualitativamente sua taxa de

conhecimento. Isto é, existe uma análise multiangular de causas e conseqüências , de

efeitos e desdobramentos, de repercussões e implicações. Neste plano, a grande-

reportagem, em forma de livro, vincula-se menos à edificação do tangível imediato, do

concreto, e mais à tecedura do sutil, do que está por materializar-se.10

No primeiro caso, o número e a qualidade dos detalhamentos enriquecem a

narrativa para um grau de informação idealmente superior ao dos veículos cotidianos.

No segundo, a verticalização solidifica a real compreensão do tema e de sua precisa

inserção no contexto contemporâneo.

O jornalismo aprofundado passa pela pesquisa histórica. É a forma de

contextualizar. Segundo Lima, o sentido – ou seja, o rumo, a direção – de um

acontecimento manifesta-se no tempo presente, como efeito do passado, como evolução

para o futuro, e seu significado – o que representa e para quem – só pode ser obtido

quando identificadas as relações que estabelece com os demais níveis hierárquicos11.

10 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.3711 op. cit., p.239

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PRODUÇÃO

Iniciei a pesquisa em outubro de 2002, após a definição do tema na disciplina

Elaboração de Projeto. Por sugestão da professora Heloísa Sampaio, fui em busca do

antropólogo Vivaldo da Costa Lima, professor Emérito da UFBA, hoje aposentado. De

início, Vivaldo mostrou-se resistente a dar entrevistas. Mas, depois de alguns encontros,

pediu uma cópia do meu projeto para ler e me convidou a freqüentar a sua ampla

biblioteca de gastronomia. Foi uma grande oportunidade de trabalho.

A biblioteca do antropólogo possui textos raros da cozinha baiana e grande

variedade de títulos da gastronomia internacional. Quanto estava na ativa, como

professor da UFBA, Vivaldo tentou implementar um centro de estudos de alimentação.

É interessado por gastronomia há muito tempo; e me incentivou a ler com profundidade

sobre o assunto. Passei a freqüentar a biblioteca com assiduidade.

A fome foi algo que me acompanhou durante as pesquisas. Por diversas vezes,

ao me dedicar às leituras dos belos livros de gastronomia, deparei-me com algo mais do

que o apetite pelo conhecimento. Era a fome propriamente dita. Saía da biblioteca do

professor Vivaldo literalmente faminto.

A pesquisa histórica e o bom trabalho jornalístico envolvem - ou deveriam

envolver - leituras, antes de qualquer entrevista. Por conta disso comprei livros, fui em

sebos. Consegui raridades. Tive que fotocopiar textos básicos. Entre eles, a bíblia

“História da Alimentação no Brasil”, de 925 páginas, em dois volumes, do historiador

Luis da Camara Cascudo. É inacreditável que um livro daquela qualidade e amplitude

esteja esgotado e sem perspectiva de republicação.

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Também coletei receitas e matérias de jornais. Desde agosto de 2002, venho

recolhendo o que é publicado em A Tarde, Correio da Bahia e na Gazeta Mercantil

sobre gastronomia.

Pautas e entrevistas

Para iniciar o trabalho, combinei com o professor Giovandro Ferreira de elaborar

pautas, o que facilitaria o trabalho. E como elas me foram úteis! Sempre lhes recorria

para elaborar as questões, toda vez que ia partir para qualquer entrevista.

A pauta eficiente e completa deve conter itens como a definição precisa do

assunto a ser abordado e seus objetivos, a formulação dos problemas e um plano de

captação. Esses itens dão conta, entre outras coisas, da localização precisa do assunto a

ser abordado e seus objetivos.12

A partir do projeto do trabalho, concentrei a ação em três linhas de assuntos para

abordar nas entrevistas. A primeira, enfocando as maneiras de comer, verificando

costumes alimentícios relacionados às comidas baianas de azeite. O contexto do

consumo, os lugares, os comilões.

Na segunda linha, as maneiras de preparar, observando os modos de fazer a

comida baiana. A evolução das técnicas, ingredientes e preparo. Novos pratos feitos

com o dendê e o seu parceiro inseparável, o leite de coco. A satisfação de quem prepara

a comida, o que motiva essas pessoas a trabalhar com gastronomia.

Na terceira linha de entrevistas, abordando as maneiras de divulgar, conversando

com pessoas que pensam e divulgam a gastronomia. Jornalistas, escritores,

divulgadores, antropólogos. E estes foram fontes excelentes.

12 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.73.

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Nunca pensei que o jornalismo desse tanto trabalho. Há muitos obstáculos a

serem vencidos durante a confecção de uma grande reportagem. Da dificuldade de

marcar entrevistas, passando pela demorada transcrição das gravações, indo até a edição

do texto. Durante o curso de jornalismo, e de algumas reportagens elaboradas para o

jornal Província da Bahia, tive pouco contato com o uso do gravador. Do mesmo modo,

em minhas atividades de comunicação no Banco do Brasil, que incluíram confecção de

house organ e estágio no Núcleo de Comunicação da superintendência estadual, o

gravador foi algo completamente dispensável.

Nas matérias elaboradas para a agência interna de notícias online do Banco do

Brasil, um simples telefonema é suficiente para elaborar uma matéria, que consta no

máximo de três ou quatro parágrafos. O jornalismo online quase sempre induz à

confecção de textos noticiosos curtos. A opção pela reportagem como trabalho de

conclusão do curso de Jornalismo foi no justamente no intuito de suprir a carência de

experiências em elaborar textos mais aprofundados.

O gravador parece ser uma ferramenta utilizada em casos muito especiais no

jornalismo. É necessário um ambiente tranqüilo, com poucos ruídos externos. Depois,

um demorado período de transcrição. Por ter pouca experiência com o equipamento,

iniciei transcrevendo frase por frase, cada opinião e reação (risos, rispidez,etc.) do

entrevistado. Com receio de perder alguma informação, por não saber exatamente o que

seria aproveitado. À medida que fui adquirindo mais experiência, já fazia a transcrição

junto com a edição do texto, elaborando como se fosse o rascunho da matéria,

registrando somente os aspectos que iriam fazer parte das reportagens.

Junto ao trabalho de transcrição, procurei registrar a minha percepção sobre a

pessoa que estava sendo entrevistada, sobre o local onde ocorreu a entrevista, o

comportamento do entrevistado, seu posicionamento. De forma geral, quem trabalha

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com gastronomia, parece estar de bem com a vida. Todos dão boas risadas. Parecem

saber apreciar o que a vida tem de bom, valorizar as relações entre as pessoas, dedicar-

se a agradar aos comensais e – agradando a si mesmos – ouvir elogios.

Os estudiosos (jornalistas, antropólogos e outros) foram fontes indispensáveis ao

trabalho. Não somente para fornecer informações e iluminar questões, mas para chamar

a atenção sobre os aspectos que mereceriam abordagem aprofundada, e também com

suas opiniões, na discussão de temas polêmicos.

Durante as entrevistas, fui anotando tópicos recorrentes e que me pareceram

mais significativos, tentando achar “ganchos” para as reportagens. Também durante as

entrevistas, os personagens mais interessantes foram se afirmando por conta própria e

“exigiram” os seus perfis. Eu apenas registrei.

Em vista da grande quantidade de informações a respeito dos modos de

consumir, preparar e servir, o quesito de divulgação foi deixado de lado. Acredito que

este é um tópico que pode vir a gerar um outro trabalho, pois envolve aspectos

relacionados ao turismo e ao mercado de restaurantes e estabelecimentos comerciais da

Bahia. As reportagens deste trabalho recaem sobre aspectos culturais da cozinha e

alimentação na Bahia.

Com a boa quantidade de informações obtidas, percebi que a discussão do que é

publicado na imprensa baiana sobre gastronomia não ficaria interessante neste trabalho.

Poderia caber melhor em algum estudo acadêmico, talvez de natureza comparativa. Não

seria o caso da inclusão em um trabalho de reportagem. Por esse motivo não abordei as

maneiras de divulgar. Aproveitei, sim, o conhecimento daqueles que divulgam para

aprofundar aspectos da cultura.

Durante realização das entrevistas e confecção das reportagens, foi ficando claro

para mim que a abordagem da cozinha baiana ficaria restrita aos aspectos de consumo,

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preparação e apreciação de pratos feitos com o dendê. O que já significa um tema

bastante amplo.

O dendê está presente na maior parte da cozinha de origem africana, que é,

efetivamente, a mais celebrada e famosa do Estado. Por mais que se saiba da existência

e do consumo até mais freqüente de outros pratos, a exemplo das carnes da cozinha

sertaneja, a cozinha de origem africana é a que é sempre lembrada como “baiana”.

Na entrevista com o engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel, autor de A

cozinha sertaneja da Bahia, encontrei um acadêmico de peso (sem trocadilho),

conhecedor não só da cozinha sertaneja, mas grande apreciador da cozinha afro-baiana,

como ele mesmo designa.

Além de muito simpático, contador de casos, Radel revelou-se um excelente

observador e crítico de gastronomia. Também fez observações interessantes a respeito

dos assuntos publicados nas colunas de gastronomia dos jornais baianos e nacionais. Ele

comentou sobre os jornalistas atuais e antigos, comprovando que o seu interesse vem de

longa data.

No livro A Cozinha Sertaneja da Bahia, Radel fez anotações baseadas em sua

percepção, leituras, pesquisas e incursões na cozinha. O escritor fala tão alto quanto o

pesquisador. Ele não se furta a opinar e escrever sobre vários aspectos da gastronomia.

Na investigação de algumas das observações de Radel, surgiram questões que

resultaram em algumas reportagens deste trabalho, a exemplo da utilização (para ele)

excessiva do leite de coco nas moquecas e do consumo do dendê na sexta-feira.

Vivaldo da Costa Lima não me concedeu entrevistas, mas me forneceu bastante

material escrito por ele, que revelam as suas impressões. Foram artigos publicados em

livros e anotações de aulas e palestras.

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Fiz entrevistas bastante proveitosas com a jornalista Heloísa Sampaio, com o

antropólogo Ericivaldo Veiga e com a culinarista Elíbia Portela. Além das entrevistas

que se transformaram em perfis, com o cozinheiro Manoel Barbosa, com o geólogo

Arno Brichta e a banqueteria Maria Célia Midlej.

A professora Nadja Miranda foi gentil e acessível, ao me dar idéias para

direcionar a confecção deste trabalho. Em vista do prazo curto disponível, ela me

sugeriu que reduzisse o texto para uma série de reportagens, em lugar do livro-

reportagem inicialmente previsto. Também me emprestou livro e outras séries de

reportagens de alunos da Facom, que foram muito úteis para visualizar a forma de

apresentação deste trabalho. Isso sem contar com idéias para pautas e fontes. Por tantos

préstimos, foi incluída como co-orientadora do trabalho.

O estimado orientador Giovandro Ferreira esteve sempre acessível, com boa

vontade, e me forneceu liberdade irrestrita para trabalhar. Desde o final de 2002, ele me

disponibilizou vários livros e trabalho acadêmico de reportagem, iniciando o

acompanhamento de forma atenciosa e tranqüila, mesmo ainda sem estar oficialmente

designado como orientador. Sempre ajudou com idéias para textos, fotos e diagramação.

É curioso que as entrevistas com pessoas que cozinham, apreciam e estudam a

culinária viram longos bate-papos. As entrevistas duravam no mínimo 40 minutos.

Durante a conversa, entravam em cena as reminiscências familiares, os prazeres da

degustação, as relações amorosas. É um consenso que cozinhar é dedicar amor. Um

prato sai bem feito e saboroso se é feito com atenção, cuidado, entrega e dedicação.

Assim como na elaboração de uma pintura ou de uma música, a dedicação de

amor ao trabalho culinário retorna e adquire significado artístico. O ato de cozinhar

transforma-se em arte culinária.

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Restrições

Um aspecto a ser registrado é a ausência de enfoque sobre a cozinha de azeite

que é herança direta africana, dedicada aos orixás do candomblé. Trata-se de assunto

complexo, provavelmente abordado com mais propriedade por antropólogos, pois

exigiria uma vivência intensa junto às comunidades do candomblé. É uma atividade que

não foi proposta no projeto deste trabalho. Detive-me aos costumes das ruas,

restaurantes e do dia-a-dia das residências baianas. Na cozinha, digamos, profana. Fiz

somente breves referências às tradições religiosas.

Segundo Lima, o antropólogo entrevista um, informante muitas vezes – ao

contrário do jornalista-, cria o relacionamento interativo com este, costura aos poucos a

teia de padrões e conexões que dão o todo de uma “rede intrincada de significados”13.

Não foi esta a perspectiva proposta no projeto deste trabalho.

A escrita

No processo de confecção das reportagens, por diversas vezes tive que

simplificar a linguagem. Procurei utilizar sentenças em ordem direta e linguagem

simples. Procurei levar o pensamento dos estudiosos na forma mais simplificada e direta

possível, para facilitar a leitura.

Para auxiliar a elaboração das reportagens, fiz um resumo esquemático,

contendo tópicos a serem abordados e as fontes disponíveis. Tive que refazer o resumo

várias vezes, pois alguns tópicos mostraram-se mais complexos, exigindo subdivisões,

gerando novas reportagens. O resumo foi refeito à medida que o trabalho tomava corpo.

13 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.252.

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À medida que algumas reportagens foram sendo elaboradas, a busca de

profundidade nas informações proporcionou a inclusão de aspectos inicialmente não

previstos. Surgiram informações inesperadas. Foi o caso da descoberta da pesquisa feita

pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB), sobre o acarajé e abará, que comprova

que o abará tem mais calorias que o acarajé. Uma constatação que muda o senso geral

de que o bolinho frito, o acarajé, teria mais gordura que o abará, que é cozido no vapor.

A princípio, hesitei em publicar receitas. Imaginei que a publicação delas

poderia ser taxada como de menor importância frente ao texto jornalístico. Pois, para

mim, que não sou cozinheiro, colocar receitas neste trabalho estaria representando

apenas copiar um texto de algum livro ou coletar a anotação – ou mesmo a fala - de um

entrevistado.

Ao pensar na série de reportagens, imaginei fazer um trabalho com relatos de

costumes e contextualização, algo ausente nos livros de receitas. Daí a resistência a

incluí-las. Comecei a mudar de idéia ao ler o livro de Luis da Camara Cascudo,

História da Alimentação no Brasil. Lá estão várias receitas, fundamentais para ilustrar

os costumes descritos. Em certos trechos do livro, ao ler sobre os hábitos da

alimentação, o leitor fica curioso para saber o conteúdo dos pratos. E as receitas estão

presentes, complementando um trabalho de grande qualidade.

Assim, fui percebendo que as receitas são algo mais do que simples

procedimentos culinários para obter pratos. Elas mostram a presença ou ausência de

ingredientes e variações em suas quantidades. São diferenças sutis que registram as

mudanças nos gostos e as inovações na culinária, com o passar do tempo. Seguem

características dos seus locais de origem. Retratam principalmente a disponibilidade dos

ingredientes. Em uma região litorânea, por exemplo, haverá grande ocorrência de frutos

do mar em seus pratos.

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A variação de ingredientes, inclusive, foi algo que motivou a confecção de uma

das reportagens. A partir da constatação da importância das receitas, mudei o meu

posicionamento e decidi incluí-las no trabalho. Em reunião com o professor Giovandro,

a minha opinião foi reforçada. O professor me sugeriu inclusive que a receita poderia

vir dentro da reportagem. Mas, ao confeccionar o texto, decidi deixá-las em quadros

separados, para facilitar a visualização e a leitura.

Perfis

O perfil pode focalizar apenas alguns momentos da vida da pessoa retratada. É

uma narrativa curta tanto na extensão (tamanho do texto) quanto no tempo de validade

de algumas informações e interpretações do repórter. (...) É de natureza autoral.

Impossível que as experiências pessoais de um repórter não se confundam com a

temática que estiver trabalhando.14

A narrativa de um perfil não pode prescindir de todos os conceitos e técnicas de

reportagem conhecidas, além de recursos literários e outros. Mas ela também está atada

ao sentimento de quem participa. (...) Os perfis cumprem um papel importante que é

exatamente gerar empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a

tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e

circunstâncias experimentadas pelo personagem. 15

Segundo Vilas Boas, os perfis jornalísticos expressam uma trajetória sintética. O

perfil é explicitado pela história narrada, com um passado e um presente16.

Apesar da durabilidade menor (comparados com as biografias em livro), os

perfis têm grande relevância como gênero jornalístico, mesmo que meses ou anos

14 VILAS BOAS, Sérgio. Perfis: e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003, p. 13.15 op. cit., p. 1416 op. cit., p. 19

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depois da publicação do texto o personagem tenha mudado suas opiniões, conceitos,

atitudes ou estilos.17

O fato de os atos e as reações de uma personagem deixarem transparecer, ainda

que de maneira fluida, as suas características, tem enorme importância na estruturação

de um perfil. É a possibilidade de descrever uma pessoa contando o que ela faz e como

faz, permitindo a incorporação num texto descritivo de trechos narrativos. São recursos

consideráveis.18

Os perfis presentes nesta série de reportagens não foram escolhidos

aleatoriamente. Cada um deles representa um tipo de personagem da gastronomia

baiana, que apresenta riqueza de detalhes em seus relatos, ou que apresenta aspectos

inusitados, como é o caso de Manoel Barbosa, o cozinheiro que vende comida na rua.

Assim, o perfil de Guilherme Radel é o do estudioso, pesquisador e divulgador

da cozinha do Estado. O de Arno Brichta é o do conhecedor, gourmet, apreciador que

também prepara pratos. O perfil de Maria Célia é o da especialista em servir refeições.

A confecção de perfis foi para mim um excelente exercício de jornalismo

enriquecido com alguns elementos literários. Deste modo, o lead desaparece. O texto

pode conter diálogos e há muitas impressões do autor.

O suporte

Logo de início, estava disposto a contratar um profissional para fazer a

editoração do trabalho. Mas, apesar da minha pouca experiência no assunto, resolvi

enfrentar o desafio, em vista de que poderia ser uma boa aprendizagem. Nesta atividade,

contei com sugestões do designer Luciano Robatto. Foi utilizado o programa de

editoração Page Maker 6.5

17 VILAS BOAS, Sérgio. Perfis: e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003, p. 21-2218 op. cit., p. 29

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Em minha carreira profissional, até agora, tive oportunidade de fazer trabalhos

impressos, house organs, no ambiente empresarial. E nessas ocasiões não havia verba

para pagar um profissional de design gráfico. O jornalista tinha que fazer a editoração,

muitas vezes utilizando somente editor de texto (Word) ou de apresentação (Power

Point). Diante desses fatos, quanto mais conhecimento e experiência o profissional tiver

no assunto, melhor qualidade haverá no trabalho final.

A maior parte das fotos foi feita por mim mesmo, com a velha e boa Pentax

K1000, companheira de aventuras. Algumas fotos foram cedidas pela fotógrafa Vânia

Rebelo, de seu arquivo pessoal. Digitalizadas em scanner, foram tratadas com o

programa Adobe Photoshop 6.0.

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CONCLUSÃO

A série de reportagens, aqui desenvolvida, aborda diversos aspectos da culinária

baiana que utiliza o azeite-de-dendê como peça indispensável. O trabalho procurou

elaborar textos com um nível de informações relativamente aprofundado. Para isso

recorrendo à pesquisa bibliográfica ampliada e a um maior número de fontes que o

utilizado no jornalismo periódico.

Fazer este trabalho foi muito gratificante, foi uma grande experiência. Também

acredito ter colaborado para fazer um pequeno mas consistente registro, em forma de

reportagem, de alguns aspectos pouco divulgados da cultura baiana no âmbito da

culinária e da alimentação.

Ao confeccionar as reportagens, tive muito cuidado com minhas afirmações.

Procurei sempre avaliar se o que estava afirmando estava fundamentado em

observações ou se eram meramente opinativas.

Uma das críticas mais ouvidas ao jornalismo diário é que os jornalistas são

pouco especializados nos assuntos que abordam, que fazem pesquisas muito rápidas

para a confecção de matérias e reportagens. Um dos meus objetivos com este trabalho

foi o mergulho em um tema que é passado, presente e futuro: a gastronomia. E com este

aprofundamento, obter subsídios para elaborar outros trabalhos jornalísticos de

qualidade, principalmente neste mesmo assunto.

Outros itens que podem servir para futuros trabalhos de reportagem: a cozinha

sertaneja, a herança árabe na cozinha do sul da Bahia, a culinária da Chapada

Diamantina, a cozinha dos derivados da mandioca, a cozinha das praias.

A alimentação é necessidade básica do ser humano. E um grande prazer, tanto

para quem gosta de preparar quanto para quem consome. A grande maioria dos

periódicos tem a sua seção de gastronomia inserida nos cadernos culturais de final de

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semana. É rara a bibliografia em português que diga algo a respeito do modo e do que

escrever nessas seções. Pelo menos, foi o detectado em pesquisas na biblioteca da

UFBA, na internet e consultando jornalistas que trabalham com o assunto.

De forma geral, o que se vê nas colunas (ou páginas) de gastronomia são

matérias, entrevistas, perfis, reportagens, crônicas, notas, críticas - e receitas.

Abordando restaurantes, bares, pratos, chefs famosos, vegetais da época, equipamentos

de cozinha, produção de alimentos (a matéria-prima dos pratos), a cozinha das

celebridades, lançamento de novos produtos nos mercados, livros de gastronomia,

cardápios de datas comemorativas, eventos de gastronomia, hábitos de alimentação,

informações nutricionais. Podendo haver o enfoque de aspectos históricos e culturais

sobre tudo isso.

Tenho a intenção de ampliar e editar esta série de reportagens posteriormente em

formato de livro. Em minhas pesquisas, verifiquei que grande parte dos registros

históricos de culinária e alimentação, pelo menos em sua primeira edição, foi feita por

meio de livros editados pelo próprio autor, ou por alguma editora local. É o caso dos

livros de Manoel Querino, Sodré Vianna, Hildegardes Vianna e de Darwin Brandão,

sobre a cozinha baiana. Depois, com a divulgação, alguma grande editora acabou se

interessando, a exemplo dos livros de Hildegardes Vianna e Darwin Brandão. O velho e

surrado caderno de receitas, quem diria, vira documento da História.

Este trabalho, mais do que um ponto de chegada, é o registro de um percurso.

Por conta desta série de reportagens, novas percepções se abriram para mim. Conheci

pessoas e tive acesso a livros de valor histórico. Ao pesquisar sobre os pratos que levam

dendê, verifiquei que vários outros aspectos da culinária baiana merecem atenção. E que

o jornalismo pode colaborar muito no registro desses aspectos. Espero que este trabalho

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de conclusão de curso, mais do que uma etapa final, ou mesmo um ápice, seja um ponto

de partida para novos horizontes.

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PARTE II

Série de reportagens

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Presença dourada

O azeite-de-dendê está presente na maior parte dos pratos baianos de origem africana

“Quando estiver quase cozido e só entãojuntem o leite de coco e no finzinho o azeite de dendê, pouco antes de tirar do fogo.(Ia provar o molho a todo instante, gosto mais apurado ninguém tinha)

Aí está esse prato fino, requintado, da melhor cozinha,Quem o fizer pode gabar-se com razãoDe ser cozinheira de mão cheia.Mas, se não tiver competência, é melhor não se meterNem todo mundo nasce artista do fogão.”

A receita da moqueca siri mole, feita por Dona Flor, magistralmente registrada

pelo escritor Jorge Amado no livro Dona Flor e seus dois maridos, dá provas da

grandiosidade e do grau de importância da culinária na vida baiana.

A cozinha é um grande elemento cultural de um povo. Quanto mais dela se

conhece, mais se conhece dos costumes de uma população. Na Bahia, o caldeirão

cultural que mistura influências portuguesas, africanas e indígenas, está muito bem

representado em sua culinária.

No universo de ingredientes dos pratos da cozinha baiana, e sua vertente mais

famosa, a cozinha de origem africana, chamada de afro-brasileira ou afro-baiana,

emerge a importância do azeite-de-dendê. Mais do que um componente dos pratos, o

dendê é uma das marcas mais importantes da cultura baiana.

Extraído do fruto da palmeira Elais Guineensis, de origem africana, o azeite-de-

dendê, também chamado simplesmente de dendê, incorporou-se à cultura baiana. As

receitas herdadas dos escravos negros transcendem os limites do Estado e passam a

fazer papel de pratos típicos do país. As moquecas e o vatapá são conhecidos fora do

Brasil como “pratos brasileiros”, ainda que não sejam pratos consumidos por todos os

habitantes do país.

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A fama é uma amostra da importância da cozinha baiana. A princípio regional,

típica somente de um Estado do país, torna-se significativa, talvez a mais representativa,

da cozinha brasileira. Em eventos internacionais de gastronomia, as cozinheiras do

dendê são sempre convidadas a representar o Brasil.

O óleo dourado do dendê é componente essencial dos pratos da cozinha afro-

brasileira. É nele que é frito o acarajé, exalando um aroma que invade os fins de tarde

da Bahia. É ele que é adicionado à massa do abará, para fornecer a bela cor amarelada.

Do amarelo pálido ao dourado quase vermelho, o dendê alegra olhos e paladares.

O dendê está na base da cozinha baiana de origem africana. “Contam-se nos

dedos pratos afro-baianos que não levam azeite-de-dendê”, diz o engenheiro e professor

aposentado Guilherme Radel, estudioso de gastronomia, com livro publicado sobre a

cozinha baiana. Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, estudioso da cultura

baiana, “até mesmo aqueles pratos que não levam ou não ‘pegam’ azeite-de-dendê,

estão com ele comprometidos”.

Em Salvador, os pratos feitos com dendê são consumidos em todos os lugares.

Nos mercados, nas praças, ruas, nas residências ricas e nas mais modestas, nos

restaurantes turísticos. Em datas sagradas e dias comuns, especialmente na sexta-feira.

A comida feita com dendê é vistosa, colorida e bela. Tem apelo turístico e é utilizada

como principal atrativo gastronômico no Estado. Mesmo assim, o dendê não é

unanimidade em todas as regiões da Bahia. “Está presente em Salvador, no Recôncavo

Baiano e no litoral do Estado”, diz Guilherme Radel

A jornalista Heloísa Sampaio, gourmet e cronista de gastronomia, chama a

cozinha baiana de “culinária do ouro”, em razão da bela cor que os pratos adquirem. Ela

lembra que, nos locais onde o dendê é encontrado com facilidade, o ingrediente é

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utilizado em uma grande quantidade de pratos. “Na Bahia, região do Baixo Sul, ali por

Valença, faz-se tudo com dendê. É ingrediente fácil, disponível”, diz.

À primeira vista, para aqueles que visitam a Bahia, parece que o dendê é uma

rotina na cozinha baiana. No entanto, os pratos feitos com dendê não são consumidos

diariamente. “Na Bahia não se come moqueca, caruru, vatapá ao almoço de todo dia”,

escreveu o folclorista Luis da Camara Cascudo, no livro História da Alimentação do

Brasil. Para ele, é o que se costuma chamar de “comida de festa”, consumida em

ocasiões especiais. “Como acontece quando há hóspedes e convidados para refeições

domésticas. Arranja-se um cardápio especial, meticuloso, fora de todo o dia”, escreveu.

O antropólogo Vivaldo da Costa Lima confirma a observação. “Mas a ‘comida

de azeite’ não é, para o baiano, a cozinha de todo-dia. É uma comida requintada, de

ingredientes nem sempre fáceis de encontrar, demorada no fazer e, portanto, uma

comida dispendiosa”, registrou.

As comidas feitas com dendê mais conhecidas são as moquecas, o caruru,

vatapá, o acarajé, o abará, xinxim de galinha, farofa, feijão fradinho, bobó de camarão.

São os pratos consumidos com mais freqüência nos restaurantes típicos e nas

residências baianas.

Elais Guineensis

A palmeira chamada de dendezeiro ou dendê não existia no Brasil. A Elais

Guineensis é originária da África Ocidental. Do fruto da palmeira – também chamado

de dendê - se extrai o óleo chamado de azeite-de-dendê, ou, simplesmente, dendê. No

passado, costumava-se chamá-lo também de azeite de cheiro. Para obtê-lo, é necessário

fazer o cozimento dos frutos, espremendo-o em seguida. Depois, separa-se o óleo da

água e coloca-se o azeite para cozinhar até fazer evaporar toda a água e restar o líquido

oleoso.

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É na Bahia, na região que vai de Salvador a Ilhéus, que o dendê é extraído de

forma quase artesanal. É cozido em grandes tachos de ferro e depois espremido por uma

imensa roda de pedra, puxada por tração animal. É este o chamado azeite de roldão. O

azeite-de-dendê, extraído dessa forma é encontrado nas feiras livres, e colocado em

garrafas de vidro e arrolhado. Há algumas indústrias modernas de extração do azeite-de-

dendê. Nos supermercados, o azeite industrializado é facilmente encontrado.

Os conhecedores dizem que o bom dendê é aquele que fica dividido em duas

partes. Uma parte de sólidos, que se deposita no fundo da garrafa, é chamada de

“bambá”. A outra parte, conhecida como “flor”, é o óleo propriamente dito, que se

solidifica no frio e fica líquido ao ser aquecido.

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Tradição e modernidade

Pratos feitos com dendê conservam tradições e ensaiam algumas inovações

Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo são Estados que também

receberam escravos negros africanos. Mas somente na Bahia, a herança negra conseguiu

notoriedade para sua culinária. Em nenhuma outra região do Brasil, a cozinha

conservou as características que possuem os pratos da culinária baiana.

Segundo o folclorista Camara Cascudo, em Salvador ficou uma concentração

negra mais homogênea, possibilitando a “defesa das velhas comidas africanas”, mais do

que em outros locais. Uma das razões para isso, seria por causa “dos candomblés, do

culto jeje-nagô, que a cozinha pôde manter os elementos primários de sua

sobrevivência”. O termo candomblé designa grupos religiosos caracterizados por um

sistema de crenças em divindades chamadas de santos ou orixás.

Com a chegada da mão de obra escrava no Brasil, a “presença da cozinheira

negra na cozinha era considerada indispensável e absolutamente normal”, segundo

Camara Cascudo. “À cor e à força da culinária africana, foram acrescidos os elementos

indígenas e portugueses, transformando a gastronomia baiana e brasileira, numa

expressão única de arte e sabor”.

Os pratos chegaram e foram mantidos com a dedicação dos pratos às tradições

religiosas dos escravos. Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, é a cozinha que

se formou principalmente com a comida dos africanos dos grupos étnicos nagô e jeje,

que predominaram na Bahia do século XIX, e criaram o modelo ritual dos candomblés.

“É precisamente nos terreiros de candomblé onde se encontram as iguarias originais

africanas”, registrou.

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Da dedicação aos orixás do candomblé às mesas da população, os pratos feitos

com o azeite-de-dendê são sempre bem recebidos. Há sempre o clima festivo de

celebração – e de comilança.

Vatapá

O vatapá é uma espécie de creme ou purê, de consistência pastosa, a meio termo

entre mole e duro. Pode ser feito de feito de farinha de trigo, farinha de mandioca ou

pão dormido. É temperado com cebola, alho, tomate, coentro, cebolinha e gengibre,

além de amendoim e castanha. Os dois últimos torrados e moídos. E dendê e leite de

coco, é claro. Pode haver um pouco de camarão seco na massa. O vatapá não tem

origem africana. É uma invenção brasileira. Representante nacional do esplendor da

cozinha baiana.

Os africanos desconhecem a palavra vatapá, segundo Câmara Cascudo. “Na

culinária, como em outras manifestações culturais africanas no Brasil, está ocorrendo o

fenômeno de torna-viagem. Quitutes africanos voltam à África como se dali não

tivessem nascido, voltam brasileiros”. Câmara Cascudo viu na África pratos que, aqui

chamados de africanos, são conhecidos por lá como brasileiros.

O vatapá acompanha moquecas e o xinxim de galinha. É servido sempre junto

com arroz branco e também caruru. Está sempre presente no tabuleiro dos vendedores

de acarajé e abará, que utilizam o vatapá como recheio dos bolinhos de feijão.

Há algumas variações do vatapá, como no caso em que a ele é adicionado

bacalhau desfiado. Nesse caso, serve como prato principal. Nos livros de receitas mais

antigos, há registros do vatapá feito com galinha. Essa versão é pouco conhecida hoje

em dia.

O jornalista Darwin Brandão, que na década de 40 publicou em Salvador o livro

A Cozinha Baiana, inspirado no vatapá, afirmou: “Temos portanto aí a comida africana

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da Bahia, já nacionalizada, resultante da matriz negra com as influências naturais do

índio e do português. A mais famosa cozinha do Brasil, a de maior caráter”.

Caruru

O caruru é um prato feito com quiabo cortado e cozido, a que se adicionam os

temperos e o azeite-de-dendê. Na Bahia, quando se fala em caruru, pode haver três

sentidos. O caruru é o prato, propriamente dito, feito com quiabos e dendê. Pode ser a

refeição inteira, também chamada de “caruru completo”, que inclui o caruru junto com

vatapá, xinxim de galinha, arroz branco, farofa de dendê, feijão fradinho refogado com

dendê, feijão preto, acarajé, abará, banana-da-terra frita, milho branco, pipoca, inhame,

rapadura e rolete de cana.

O caruru também pode ser o evento em que a refeição é servida para grande

quantidade de pessoas, sempre gratuitamente, pois é ofertado aos comensais como

pagamento de alguma promessa. As pessoas costumam dizer: “Vai ter um caruru em tal

lugar”. E isso acontece em vários locais, das casas pobres às residências abastadas,

passando por associações de trabalhadores, empresas e organizações públicas.

Convencionou-se calcular 10 quiabos por cada prato de caruru, na preparação.

As demais porções são proporcionais a este número. Por isso, é costume falar-se em

“caruru de 1.000 quiabos”, por exemplo.

A tradição de servir caruru tem origem no candomblé. “Impossível não desejar

um convite especial no mês de setembro para comer o banquete feito em homenagem

aos santos gêmeos Cosme e Damião, sincretizados com os ibejis orixás”, escreveu

Camara Cascudo. Ibejis são orixás, deuses africanos. A data de comemoração de São

Cosme e São Damião é 27 de setembro.

O caruru completo é oferecido nessa ocasião e servido em forma especial. Nos

lugares mais tradicionais, principalmente com ligação com o candomblé, é servido

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primeiro às crianças. Depois é que os adultos têm acesso à refeição. Mas o caruru

também é servido sem exigências rituais, em eventos comemorativos para grande

quantidade de pessoas.

Há uma tradição que recomenda que na panela do caruru sejam colocados

quiabos pequenos inteiros. A pessoa que recebeu em seu prato pelo menos um dos

quiabos terá por obrigação que dar um caruru completo no ano seguinte, ou pagar uma

promessa exigida pelos santos.

Se os carurus são servidos a partir de setembro, por pessoas que pagam as

promessas religiosas, em dezembro, em torno do dia 4, data de Santa Bárbara,

sincretizada com o orixá Iansã, também há oferta da iguaria, por pagamento de

promessas. São as épocas em que os baianos correm atrás dos carurus. Seja preparando

ou em busca da chamada “boca-livre”, ou seja, da refeição gratuita.

Um pouco antes da homenagem aos santos de setembro, é servido um grande

caruru, que movimenta a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Bahiano, durante a festa

da Irmandade da Boa Morte, que ocorre no dia 15 de agosto.

Desde 1997, o Sindicato dos Bancários da Bahia promove um caruru, servindo

em torno de 1.000 pratos, próximo à sede da associação, na Avenida Sete de Setembro,

no centro de Salvador. Setembro é o mês da data-base do acordo salarial dos bancários.

De início, o caruru foi servido para “abrir os caminhos” da negociação. Desde então,

virou tradição. As refeições são distribuídas gratuitamente, atraindo uma grande fila de

comensais.

Há um outro prato, chamado de efó, bem semelhante ao caruru. Só que desta

vez, em lugar do quiabo, utiliza-se a erva língua de vaca. O efó não tem a fama, nem é

tão freqüente na mesa dos baianos quanto o caruru.

Moquecas

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A moqueca, de peixe ou mariscos, é uma espécie de guisado ou ensopado, com

cebola, alho, tomate, pimentão, temperos verdes, em que são adicionados azeite-de-

dendê e leite de coco. Parece simples de fazer, mas implica em conhecimento e técnicas.

É uma criação brasileira, que tem origem no cozimento e na adição de temperos e dendê

ao peixe moqueado, seco, preparado pelos índios. Para moquear o peixe, é necessário

colocá-lo sobre varas de madeira, e secá-lo a certa distância de um braseiro, que

possibilite o cozimento parcial.

Para preparar a moqueca, é ideal utilizar em panela de barro larga e rasa,

semelhante a uma caçarola, o que possibilita cozinhar e servir no mesmo recipiente. E

levar o prato ainda borbulhante à mesa, causando festa aos olhos e ao olfato. Para logo

em seguida agradar ao paladar.

A moqueca é normalmente feita de frutos do mar, mas o baiano costuma

também prepará-la com charque, ovos, vegetais ou aproveitando sobras de comida. É o

caso do prato “roupa velha”, que utiliza a carne assada do dia anterior. Desfia-se a

carne, adiciona-se temperos e azeite-de-dendê. Outro prato conhecido, principalmente

na região de Valença, é a moqueca de feijão, feita com sobras de feijoada. (Ver receita

no box)

A moqueca existe em outros Estados do país, a exemplo do Espírito Santo. Em

lugar do azeite-de-dendê, a moqueca capixaba leva colorau, condimento que tem por

base o pó de urucum, que confere cor avermelhada ao prato.

Bobó de camarão

O saboroso resultado de ingrediente caro - o camarão-, unido com a textura

suave do purê de aipim, talvez seja o motivo pelo qual o prato alcançou certa distinção

de fama e refinamento. É utilizado em almoços e jantares, muitas vezes como prato

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principal, servido em panelas aquecidas – os rechauds - e acompanhado somente de

arroz branco.

O bobó original, proveniente das receitas africanas, era feito com inhame

amassado. O inhame é nativo da África. O aipim, também chamado de mandioca doce

ou macaxeira, é ingrediente nativo do Brasil. O bobó, da forma como servido

atualmente, faz a união do dendê, de origem africana, com o aipim, ingrediente

proveniente da herança alimentar indígena.

Xinxim de galinha

É feito de frango temperado com limão, alho e sal, cozido com cebola, tomate,

tempero verde e azeite-de-dendê. É semelhante à moqueca, mas leva também camarão

seco, amendoim, castanha de caju. O xinxim também pode ser feito de bofe, víscera

bovina de cozimento demorado e consistência borachenta.

O xinxim é sempre acompanhado de caruru e vatapá. Dificilmente é encontrado

servido como prato único, somente acompanhado de arroz e farofa, como é o caso das

moquecas.

Acarajé

É um bolinho de feijão fradinho moído, com cebola, sal, e frito no azeite-de-

dendê. É uma unanimidade entre baianos e turistas. O acarajé é preparado e vendidos

nas ruas, praças e praias por mulheres vestidas em trajes típicos, chamadas de “baianas”.

Atualmente também há alguns homens vendendo. O acarajé tem origem africana, nos

terreiros de candomblé. Mas atualmente também há protestantes evangélicos vendendo

o petisco em alguns pontos da cidade.

A iguaria deve ser comida ainda quente, quando está crocante. O acarajé bem

feito tem crosta dourado-avermelhada e crocante. O interior é branco, o dendê não

penetra. Quando mais leve a massa, mais saboroso o petisco.

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Também há alguns bares e restaurantes que produzem e vendem o acarajé em

grande escala. O cliente senta-se em mesas e, enquanto toma alguma bebida, saboreia o

acarajé. Do mesmo modo, nas baianas instaladas nas ruas, calçadas e praias, os clientes

compram o acarajé e procuram algum bar das redondezas para apreciar calmamente a

iguaria, acompanhada de alguma bebida. Sair para comer acarajé é uma das atividades

favoritas dos baianos e turistas de Salvador.

Abará

O abará tem a mesma receita do acarajé, com a adição de azeite-de-dendê e leite

de coco à massa. Às vezes também leva camarão seco moído. O abará é envolvido em

folha de bananeira e cozido no vapor ou na água fervente. A folha de bananeira é

dobrada, dando forma de pirâmide ao embrulho da massa. As baianas típicas já trazem o

abará cozido de casa ou terminam de cozinhar na rua, no vapor. A embalagem na folha

de bananeira ajuda a conservar a temperatura e dá sabor especial ao quitute.

O abará é menos famoso que o acarajé, mas tem boa vendagem. Além da possui

textura mais macia que o acarajé, é especialmente procurado por quem procura evitar as

frituras. Para serví-lo, retira-se a folha de bananeira. O abará é partido ao meio e a ele é

adicionado o recheio desejado pelo consumidor.

Farofa de dendê

Também chamada de farofa amarela, pela coloração dada pelo dendê.

Representa a miscigenação de culturas, pois é a união da mandioca, nativa do Brasil e

alimento originalmente dos indígenas, com o azeite-de-dendê, de origem africana. A

farofa de dendê significa o entrelaçamento da cultura africana e da indígena.

Para prepará-la, acrescenta-se cebola picada ao dendê. Refoga-se e depois

adiciona-se a farinha e o sal a gosto. Mexe-se sem parar para misturar tudo, ficar toda

por igual e torrada. Simples e fácil de fazer.

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Box

Moqueca de Feijão(Receita de Guilherme Radel)

IngredientesSobra de feijoada do dia anterior1 cebola picada tempero verde (coentro, cebolinha)4 colheres de camarão secosal1 xícara de azeite-de-dendê1 tomate em rodelas 1 cebola em rodelas

PreparoSepare as carnes dos caroços de feijão. Soque os temperos, com exceção do tomate e da cebola em rodelas, em pouquíssimo sal. Aqueça numa caçarola metade da xícara do azeite-de-dendê.Refogue os temperos no dendê, mexendo bem. Junte as carnes ao refogado e continue mexendo.Junte o feijão, ponha água aquecida e continue mexendo. Quando o conjunto ferver, ponha o tomate em rodelas, a cebola em rodelas e o resto do azeite-de- dendê e ponha 1 copo de água aquecida. Tampe a panela e desligue o fogo após 10 minutos.

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Dendê popular

Nas ruas e feiras, pratos que levam dendê têm preços para bolsos de vários tamanhos

Na década de 20 do século XX, a Bahia já era conhecida como a Terra do

Vatapá. Mas nas feiras e mercados de Salvador, não era comum encontrar nem o vatapá

nem o caruru. Os petiscos populares eram o acarajé e o acaçá, um bolinho feito de

milho, pouco encontrado hoje em dia. “Via-se feijão mulatinho fervendo e saboreado

em pratos de alumínio, com farinha de mandioca, carne ou peixe assado em postas e

molho de pimenta”. É o que conta o folclorista e historiador Luiz da Câmara Cascudo,

em História da alimentação no Brasil. Segundo o autor, os freqüentadores do Mercado

Modelo e da feira de Água de Meninos preferiam “comida portátil”, a qual podiam

comer enquanto iam andando.

A feira de Água de Meninos hoje se chama Feira de São Joaquim. Está situada

na Cidade Baixa, em Salvador. É lá que fica o bar e restaurante São Joaquim, de

propriedade de Antônio Carlos de Souza, 54 anos, ex-funcionário público e há dois anos

estabelecido no local. O restaurante está situado em um box da feira, em meio à

movimentação dos feirantes e consumidores. O cliente senta-se em uma banqueta alta e

almoça no balcão. A chamada “comida baiana”, com azeite-de- dendê, só é encontrada

na sexta-feira.

Por comida baiana entende-se ali o prato composto de caruru, vatapá, arroz,

feijão fradinho e xinxim de galinha ou moqueca de peixe. Vendido por R$ 5,00, o prato

tem grande procura. Nos outros dias da semana, “seu” Antônio Carlos vende galinha

assada e cozida, assado de boi e bife. Na sexta e sábado tem mocotó e rabada. O

domingo é o dia da feijoada. Engana-se quem pensa que a refeição mais procurada é a

que leva dendê. “O prato mais vendido é o mocotó”, conta o dono do restaurante.

“Mas o meu preferido é a feijoada”, completa.

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As comidas são preparadas no próprio local, por uma cozinheira. No box em que

fica o restaurante, há fogão, geladeira e pia com água corrente. Antônio Carlos Souza

compra os ingredientes na própria feira. O almoço começa a ser preparado às 7h30 e às

9 já está pronto. A procura pela refeição começa lá pelas 11 da manhã. O restaurante

vende em média de 30 a 40 refeições por dia.

A comida feita com azeite também está disponível somente nas sextas-feiras nas

panelas de Célia Bacelar, cozinheira e proprietária do restaurante Encontro das Águas,

situado em um dos quiosques da Praça Marechal Floriano, no Comércio, em Salvador.

O olhar simpático da baiana negra corpulenta, nascida no bairro da Liberdade,

em Salvador, deixa transparecer um tanto de timidez, que fica mais clara com a

economia de palavras, durante a entrevista. A concentração durante o preparo, enquanto

mexe o vatapá também não deixa a cozinheira livre para conversar à vontade. Célia está

no local desde abril de 2003. Ela é ex-funcionária da Embasa e desligou-se em um

plano de demissão voluntária.

Entre os restaurantes situados na praça, o de Célia é o único que anuncia

“comida baiana”. Mais uma vez, é o caruru completo que está disponível. O prato é

composto de caruru, vatapá, arroz branco, feijão fradinho – temperado com camarão,

coentro, cebola e dendê - e moqueca de peixe. O prato feito custa R$ 3,50 e o almoço

executivo, para duas pessoas, custa 6 reais. Célia conta que o prato mais pedido é a

feijoada. “A comida baiana tem boa saída, assim como o sarapatel”.

No cardápio da sexta-feira, acha-se comida baiana, sarapatel, mocotó, feijoada.

“É o dia em que mais se vende”, conta Célia. Nos demais dias, as opções são ensopado

de carne, frango assado e carne do sol com pirão de leite.

Ainda há opções mais baratas no Comércio. Por 2 reais é possível comer,

também somente nas sextas, um prato de moqueca do marisco chumbinho ou de peixe,

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acompanhada de arroz e farinha e feijão. A refeição é servida por Manoel Barbosa, 50

anos, aposentado, que instala suas panelas em uma calçada, próximo a um armazém.

Entre os clientes do cozinheiro ambulante, estão guardadores de carros, seguranças,

trabalhadores de escritórios, operários, até mendigos, que juntam as suas moedas para

comprar o “rango”. Na sexta-feira, são duas opções de pratos: feijoada e moqueca.

Comida do sertão

A comida baiana não é barata nem fácil de ser elaborada. É comida mais

facilmente encontrada em Salvador, na região do Recôncavo Baiano e nas cidades

litorâneas da Bahia. Ao mesmo tempo, é comida refinada, festiva, especial. Não é

facilmente encontrada todos os dias nas ruas, à exceção da sexta-feira e dos restaurantes

turísticos especializados.

A preferência do consumo popular por outros pratos tem uma explicação para o

engenheiro Guilherme Radel, estudioso de gastronomia e autor de livros sobre o

assunto. Radel arrisca uma explicação para a preferência de outros pratos, em lugar da

comida baiana de dendê, nas feiras, ruas e mercados de Salvador. “O pessoal que

trabalha nas feiras de Sete Portas e Água de Meninos é, em grande parte, proveniente do

interior do Estado, do sertão. Por isso a preferência é pelo mocotó, pela buchada. A

Feira de Sete Portas vende mais caprinos e ovinos do que em qualquer outro lugar”, diz

Radel conta que no Mercado Modelo, na Praça Castro Alves e nas Sete Portas,

havia pessoas que vendiam na madrugada, de sábado para domingo, feijoada, sarapatel,

mocotó. Comida muito consumida no interior e no sertão, e nem sempre lembrada como

comida baiana. “Até recentemente havia também uma Kombi que vendia esses pratos.

Abria as portas e vendia nas ruas. Era muito procurada. O pessoal gosta muito da

comida do sertão”.

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Então, apesar do passar do tempo e das mudanças nos hábitos alimentares, a

comida feita com azeite-de-dendê, mais facilmente encontrada, ainda é o acarajé e o

abará, junto com os seus acompanhamentos – vatapá, caruru, molho de camarão, salada

e molho de pimenta -, consumidos em forma de refeição. De certa forma, ainda é a

“comida portátil”, na designação de Câmara Cascudo, feita com azeite-de-dendê, que é

consumida nas ruas da Bahia. Sai a preço acessível e já está pronta para o consumo. A

“comida portátil” transformou-se em fast-food.

Endereços:

Restaurante Encontro das Águas – Praça Marechal Floriano, Comércio. Próximo ao

final da Rua Miguel Calmon.

Restaurante São Joaquim – Feira de São Joaquim, na Avenida Oscar Pontes, Calçada.

Logo após o Terminal São Joaquim (ferry-boat).

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Cozinha ambulante

O cozinheiro Manoel Barbosa leva as panelas para a rua e serve refeições

No Comércio, em Salvador, o meio-dia vai chegando e eles vão se aproximando.

São guardadores de carro, seguranças, operários, trabalhadores daquela região. Até

mendigos. Eles vêm provar a comida de Manoel Barbosa, aposentado, 50 anos.

Cozinheiro ambulante, camelô de refeições.

No final da avenida Estados Unidos, próximo à rua da Suécia, sob a sombra de

uma árvore, na calçada de uma rua de pouco movimento, que serve de estacionamento

de carros, uma mesa com cadeiras é colocada. As panelas ficam sobre um fogareiro logo

ao lado, alimentado pelo gás de um botijão. Seu Manoel termina de preparar as comidas

ali mesmo na rua. É na calçada que o feijão completa o cozimento e fica macio.

Uma lona plástica preta, presa na árvore, ajuda a impedir que as folhas miúdas

caiam nos pratos dos clientes. A depender da força e do sentido do vento, a estrutura

não tem lá muito sucesso. Alguns clientes são bem vestidos, parecem trabalhar nos

escritórios e bancos da região. Antes de provar a comida, tomam uma dose de cachaça,

acompanhada de um pedaço de caju. Para abrir o apetite e relaxar das tensões do

trabalho. É esse momento de relax que falta nos restaurantes fast-food, de comida a

quilo?

Seu Manoel Barbosa mora no conjunto ACM, no bairro de São Marcos, em

Salvador. Tem cinco filhos. Ele chega no comércio às 6 horas da manhã. Vem de

ônibus, com os ingredientes do almoço em uma sacola. O arroz já vem pronto. É

colocado em uma bacia plástica, de onde é servido para os pratos. A bacia tem cara de

vários anos de uso.

Na rua, ele termina de preparar a feijoada e a moqueca. É sexta-feira, a moqueca

não pode faltar. Naquele dia, o prato com dendê era feito com o marisco que se chama

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popularmente de chumbinho. Mas também pode ser de peixe. Nesse caso, o cozinheiro

ambulante sempre usa corvina. Para fazer a moqueca, ele usa tomate, cebola, limão,

coentro, leite de coco e dendê.

No cardápio de Manoel Barbosa, a comida feita com azeite-de-dendê só está

presente na sexta-feira. Durante o restante da semana, os pratos servidos são galinha de

ensopado e feijoada. Cada prato custa 2 reais. Os comensais sentam-se em torno da

mesa, sob a sombra da árvore e iniciam a refeição. Alguns são clientes há muito tempo.

“Tenho freguesia de 10, 15 anos”, conta Manoel Barbosa, enquanto lava os pratos.

Para servir os clientes seguintes, os pratos são lavados em uma ou duas bacias

com água, já que não há água corrente. Nas últimas lavagens, os últimos clientes têm

pratos que saem do enxágüe com uma qualidade, digamos, inferior aos que foram

lavados antes. Melhor sorte leva o mendigo que se aproxima. Ele junta as suas moedas,

provavelmente ganhas em doação, compra a sua comida e a transporta em sua própria

caixa plástica.

Antes de vender refeições na rua, Manoel conta que foi proprietário de barracas,

daquelas de metal, que ficam nas calçadas de Salvador, nas quais também servia

refeições. Ali mesmo na região do Comércio. “A Prefeitura tirou todas”, reclama. No

entanto, ele não explica o motivo. Possivelmente por conta de taxas não pagas.

Quando tinha barraca, ele preparava a comida do mesmo modo, utilizando um

fogareiro para terminar de cozinhar o feijão e as moquecas. O arroz sempre vinha

pronto de casa, e também colocado em uma bacia plástica. Hoje, deixa alguns dos

apetrechos de cozinha em uma garagem que fica ali perto.

Manoel Barbosa trabalhou no SESC (Serviço Social do Comércio) como chefe

de cozinha. Mesmo com o emprego fixo, vendia comida na rua. Só que antes tinha uma

pessoa para ajudá-lo. No SESC, ele diz que fazia “a pré-preparação dos alimentos,

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durante a noite, e administrava o pessoal”. Ele trabalhou no prédio que fica no

Comércio, na rua Torquato Bahia, e eventualmente na Colônia de Férias, na orla de

Salvador. Hoje é aposentado pelo INSS e continua a vender comida na rua.

Ele diz que gosta de trabalhar vendendo comida e chega a fornecer 60 pratos por

dia. E afirma, com um sorriso: “Cozinhar é a coisa que mais gosto na vida”. Mas ele

deixa escapar que em casa quem cozinha é a patroa. Manoel Barbosa conta que tem 5

filhos. “A venda da comida ajuda a pagar as despesas domésticas, complementando a

aposentadoria”, diz. A idade dos filhos varia dos trinta aos onze anos de idade. Se

algum deles ajuda no trabalho? A resposta é não. “Estão bem empregados”, justifica.

“Um é sargento da polícia, o outro é professor e uma é gerente de uma madeireira”,

completa.

Ele diz que gostaria de se estabelecer em um daqueles quiosques da Praça

Marechal Floriano, lá no Comércio, mas que para conseguir alugar um deles é preciso

“ter conhecimento com algum político”. Enquanto lava pratos na bacia com água, corre

para servir o próximo cliente, que já reclama pela refeição.

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Dendê nosso de toda sexta

O consumo do dendê na sexta-feira tem origem religiosa

É sexta-feira na Bahia. Os restaurantes e as residências servem os pratos

coloridos pelo dendê. Que a Bahia é a terra do vatapá, ninguém duvida. Mas o baiano

não come as comidas do azeite dourado todos os dias. Nas feiras populares, nas ruas,

nos restaurantes de comida a quilo, praticamente só é possível encontrar os pratos feitos

com dendê nas sextas-feiras.

Os restaurantes turísticos – e caros -, que em sua grande maioria servem à la

carte, as comidas douradas estão disponíveis em qualquer data. No dia-a-dia dos

baianos, estão presentes o acarajé e o abará, que as pessoas comem em pé, nas calçadas,

ou sentados em mesas de bares, na cidade ou nas praias.

Na Bahia, nos restaurantes de comida a quilo, o fenômeno da sexta dourada pelo

azeite está sempre presente. E os consumidores aguardam ansiosos pela comida baiana,

para variar o cardápio do resto semana. Grandes panelas ou recipientes aquecidos, com

vatapá, caruru e moquecas são atacados pelos baianos e turistas famintos.

Até quem opta por uma opção mais barata, nos bares ou restaurantes populares,

os famosos PFs (pratos feitos), tem direito a escolher, na sexta, pelo menos um prato

feito com dendê.

Origem da tradição

O consumo de comida feita com azeite-de-dendê na sexta-feira tem origem

distante: a abstinência imposta pela Igreja Católica, desde a Idade Média. Abstinência e

jejum são restrições alimentares em datas consideradas sagradas. São homenagens

prestadas pelos fiéis.

Abstinência significa evitar o uso da carne de mamíferos, aves e répteis na

alimentação. Nas datas em que é instituída, só é permitido o consumo de peixes,

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mariscos, ovos, massas, pães, cereais, verduras e legumes. O jejum, por sua vez, é mais

rigoroso. Implica em fazer uma única refeição diária, e ao longo do dia apenas refeições

leves. Ou seja, é possível “beliscar” um lanche leve pela manhã e à noite

Durante a Idade Média, os católicos tinham dias de abstinência e de jejum.

“Todas as sextas eram os dias de abstinência. Havia também a abstinência de quaresma,

isto é, da Quarta-feira de Cinzas até a Sexta-Feira Santa – chamada de Sexta Maior.

Todos os dias deste período eram dias de abstinência. A Sexta-feira Santa é que era o

dia de jejum”, explica o gastrônomo Guilherme Radel. Para a religião Católica, a

Quaresma simboliza os 40 dias em que Jesus Cristo permaneceu no deserto, que tem

uma semelhança simbólica com os 40 anos de travessia do deserto, realizada pelo povo

judeu no Antigo Testamento.

A cozinha praticada na Bahia, de origem africana, com base no azeite-de-dendê,

utiliza basicamente peixes, mariscos e alimentos de origem vegetal. Os temperos são:

pimentão, cebola, tomate, pimentão, coentro, cebolinha, gengibre, limão, amendoim,

castanha de caju e pimenta. O camarão seco também é utilizado como tempero. O

caruru e o efó têm como base as hortaliças quiabo e língua de vaca, respectivamente.

Pelo tipo de ingredientes, os pratos da cozinha baiana passaram a ser admitidos

como alimentos em dia de abstinência. “A partir do século XVIII, com ênfase no século

XIX e em decadência a partir do meio do século XX, firmou-se uma tradição do uso dos

pratos da culinária afro-baiana”, escreveu o gastrônomo Guilherme Radel. “Fazia-se a

abstinência, pois não se comiam carnes. Mas virava um banquete, pela variedade e

fartura dos pratos”, completou.

Atualmente, a Igreja Católica é mais enfática na abstinência na Quarta-feira de

Cinzas e no jejum atenuado na Sexta-feira Santa. As autoridades católicas costumam

liberar para as populações de baixa renda a abstinência na Quarta-feira de Cinzas. E,

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mais recentemente, até na Sexta-feira Santa, devido ao alto custo do peixe e pela

abstenção alimentar, já praticada por estas populações ao longo do ano.

O que se percebe nos dias atuais, entre as classes mais abastadas, é que a

restrição ao consumo de carnes acaba virando uma festa. Os pratos da cozinha afro-

baiana são servidos em grande quantidade e variedade. O que era para ser abstinência e

jejum se transforma em lauta refeição. A Sexta-feira Santa é uma das datas em que se

mais come na Bahia a comida feita com azeite-de-dendê.

No restaurante Fora do Comum, que vende comida a quilo, instalado há quatro

anos no largo do Rosário, centro de Salvador, na sexta-feira há sempre dois tipos de

moqueca: marisco (chumbinho, ostra, siri) e peixe. Além de vatapá, caruru, xinxim de

galinha e feijão fradinho, “refogado com dendê, camarão, cebola e temperos”, ensina a

proprietária Alaíde Barbosa. O quilo da refeição custa R$10,90.

Desde que iniciou as atividades do restaurante, dona Alaíde serve comida de

azeite na sexta-feira. “É tradição na Bahia, o pessoal sempre pede”, conta. “Qualquer

dia que tiver moqueca, o prato sai todo. O peixe, principalmente, em qualquer dia é

bem-vindo. Os clientes também gostam muito do ensopado, com leite de coco”. Para

fazer a moqueca de peixe, a cozinha do restaurante utiliza bacalhau, corvina, vermelho

ou arraia..

A tradição da abstinência religiosa na Bahia é mantida, ainda que os baianos não

se dêem conta disso, toda sexta-feira, com a presença marcante dos pratos feitos com

azeite-de-dendê. Os clientes não percebem que a bela refeição da sexta, há muito tempo

atrás, era um costume indicado pela dieta.

Endereço:

Restaurante Fora do Comum – Rua do Rosário, 7 - Mercês. Próximo à Avenida Sete de

Setembro, Centro, Salvador.

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Gorduras vegetais

Pratos com dendê e leite de coco precisam ser bem feitos para não causar indigestão

O turista chega na Bahia já vai se preparando. A recomendação feita pelos

amigos que já visitaram a terra é: “cuidado com o dendê e as pimentas!”. Naqueles

pratos belos e coloridos, o azeite de dendê é o principal acusado de ser calórico e –

principalmente - indigesto. Alguns acusam o leite de coco, outro ingrediente também de

alto teor de gorduras. A junção dos dois, na moqueca, então, nem se fala.

O engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel defende o azeite de dendê,

justificando a sua posição de acordo com um apanhado histórico. Ele conta que a

introdução do leite de coco na culinária baiana é relativamente recente, não faz parte da

herança africana direta dos escravos. E, para ele, é o leite de coco que tornaria a cozinha

baiana indigesta.

“Não se conhece, aliás, nenhum prato africano em que se misturem azeite de

dendê e óleo de coco. Quem ler os trabalhos de Manoel Querino e de Sodré Viana vai

saber que até o início do século XX não se usou jamais leite de coco em moqueca”,

conta no livro A cozinha sertaneja da Bahia. E ele afirma isso com a experiência de

quem já visitou vários países da África.

Nos livros da década de 30 e 40, que fazem registro histórico da culinária

baiana, a moqueca tradicional é feita com bastante limão, tem base azeda. “Tornou-se

enjoativa com a introdução do leite de coco, com o agravante de torná-la laxativa.

Característica atribuída ao azeite-de-dendê, que nada tem a ver com isso”, afirma Radel.

Segundo Radel, “a invenção heresíaca de misturar o leite de coco ao azeite-de-dendê

para condimentar moquecas é recente, no início da última metade do século XX, com

orientação comercial para atender aos turistas”. Para ele, isto é uma “falsificação

perpetrada contra a moqueca. A moqueca tornou-se doce”.

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O que se nota é que os restaurantes turísticos e os cozinheiros têm reduzido as

quantidades de dendê e leite do coco nas comidas. “Quando as pessoas procuram fazer

comida para o turista, querem muito brilho, muito dourado. Para isso tem-se que lançar

mão de muito dendê. Isso é perigoso, porque, principalmente o turista não está

acostumado com este tipo de alimento, às vezes não se sente bem. Aconselho sempre

que se use pouco dendê”, prega Elíbia Portela, culinarista baiana, apresentadora de TV e

autora de livros de culinária. Segundo Elíbia, antes de ser colocado na comida, o dendê

tem que ser aquecido, para poder “queimar a ferrugem”, isto é, reduzir a acidez. Para

isso, esquenta-se um pouco, até começar a sair uma leve fumaça. “Aí já se pode pôr no

alimento”. É também necessário ferver o leite de coco, por cinco minutos. “Para não

fermentar”, ensina.

Para Elíbia, a maior preocupação é divulgar uma comida baiana leve. Que não

seja tão gordurosa e carregada no dendê, leite de coco e pimentas. “A pimenta deixa-se

à parte. Põe quem quer, quem gosta”, diz. Ou, como costuma-se dizer, “a gosto”.

A banqueteira Maria Célia Midlej, que mora em Itabuna, no sul do Estado, e é

dona de um concorrido bufê, também diz usar pouco dendê na preparação dos pratos.

“Eu o acho um pouco indigesto”. Ela conta que, de modo geral, as pessoas se queixam

mais do dendê que do leite de coco: “Não acho que o leite de coco seja indigesto, pois é

utilizado no bolo, no mingau e ninguém se queixa”, afirma. “A comida baiana é

tradicional. Não se pode tirar o azeite-de-dendê do caruru, se não vai virar outro prato”.

O cozinheiro Beto Pimentel, dono do restaurante Paraíso Tropical, em Salvador,

procura utilizar ingredientes recém extraídos da horta e do pomar em suas receitas. Para

compor alguns pratos, o fruto do dendê é despolpado e a polpa é passada por uma

peneira. O líquido extraído vai direto para a panela. Para substituir o leite de coco, ele

utiliza a água do coco verde, batida com um pouco da polpa. “Eu não podia mais comer

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dendê em moquecas, que me fazia mal. Deste modo, não tenho mais problemas”,

afirma.

Saturação

O dendê é vegetal, portanto não contém colesterol, substância encontrada em

produtos de origem animal. Contém gorduras insaturadas, que são saudáveis. O

cozimento do dendê é que provoca a saturação, uma reação química que modifica a

estrutura da gordura. “A reutilização, na fritura, é que o satura”, afirma a nutricionista

Sandra Soares. Por isso, recomenda que deva ser colocado no final da preparação da

moqueca, sem ferver.

A nutricionista concorda que o leite de coco natural tenha possibilidade de ser

mais prejudicial do que o dendê. “O leite de coco tem que cozinhar, ferver, para não

fermentar”, diz. Tem gente que coloca o leite de coco no final da preparação da

moqueca, “para dar gosto”. O procedimento não é recomendado por Sandra Soares. “O

leite de coco tem que ser colocado no início e deixar cozinhando. O dendê, no final do

cozimento”.

Sandra afirma que o óleo do coco natural, contido no leite de coco, extraído da

polpa do fruto, não provoca diarréia. Ele tem, sim, propriedades ligeiramente laxativas.

“Não é prejudicial, caso haja costume de consumo. Já um turista americano, por

exemplo, pode vir a sentir algum desconforto”.

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Para diminuir o teor de gordura, algumas cozinheiras misturam leite de vaca e o

adicionam em alguns pratos, junto com o leite de coco. Sandra Soares faz ressalvas a

este procedimento: “O leite de vaca também tem gordura, mas pode ser adicionado a

bolos, por exemplo. Não na moqueca, pois o leite natural, ou desnatado, não dá sabor.”

Propriedades

O azeite-de-dendê e o óleo de coco, contido no leite de coco, têm quantidades

variáveis de gorduras saturadas e insaturadas. As gorduras insaturadas são essenciais ao

organismo, precisam ser ingeridas. São elas que transportam pelo organismo humano as

vitaminas lipossolúveis, que só se dissolvem em gorduras.

O azeite-de-dendê possui 51% de gorduras saturadas, 39% de monoinsaturadas e

10% de gordura insaturada. Já o leite de coco possui 92% de gorduras saturadas, 6% de

monoinsaturadas e 2% de insaturadas. O alto teor de gorduras saturadas é que provoca

restrição ao uso exagerado do dendê e do óleo de coco.

A gordura saturada na temperatura ambiente é sólida. A porção que se acumula

no fundo da garrafa de dendê, comumente chamada de “bambá”, é composta em grande

parte de gorduras saturadas, junto com partículas sólidas. Este tipo de gordura não se

mistura com o sangue humano, durante o transporte do sistema digestivo para as

células. Quando a quantidade ingerida de gorduras saturadas é maior do que o corpo

consegue transportar, é que começam as complicações para a saúde. Portanto, mesmo

que os óleos vegetais possuam componentes saudáveis, o ideal é não exagerar no

consumo.

Pesquisa

Jemima Nascimento dos Santos é estudante do curso de Nutrição da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bolsista de pesquisa, ela concluiu um

trabalho sobre o teor de gordura do acarajé e do abará, que está prestes a ser publicado

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em uma revista científica. Na análise feita por Jemima, foi detectado que o abará tem

uma quantidade de calorias maior do que o do acarajé. A constatação é de certa forma

surpreendente, pois há um certo consenso de que as frituras, como é o caso do acarajé,

têm maior teor de gordura do que pratos cozidos no vapor, como é o caso do abará.

Na pesquisa de Jemima, acarajés e abarás de 30 baianas de Salvador foram

triturados e analisados em laboratório. Foi detectado que o acarajé puro, sem nenhum

recheio, tem em média 265 calorias. O abará mostrou-se mais calórico, em média 327

calorias por unidade. A média foi feita entre 60 amostras de cada tipo de bolinho.

Quanto mais gordura está presente, maior o número de calorias.

O acarajé e o abará têm receita parecida. Os ingredientes principais de ambos

são feijão fradinho e cebola. A razão para o maior teor de gordura é que na massa do

abará são adicionados dendê e leite de coco. Além de amendoim e castanha, que

também são oleosos. O acarajé não leva esses ingredientes. Ele é somente frito no

dendê. O óleo concentra-se na parte externa, na casca dourada produzida pela fritura.

Enquanto no abará as substâncias gordurosas estão distribuídas por toda a massa. Por

esse motivo, o abará têm textura mais macia que o acarajé. São justamente as

substâncias oleosas que dão a maciez. “O acarajé tem mais proteínas e menos gordura

do que o abará, portanto é mais nutritivo, mais ‘leve’. O abará é mais calórico”, afirma

Jemima.

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A banqueteira da região cacaueira

Maria Célia Midlej é conhecida na terra de Jorge Amado pelo preparo de festas e

banquetes

“Minha avó, a senhora é muito importante, sabia?”. A pergunta do neto chamou

a atenção da professora aposentada, cozinheira e dona de bufê Maria Célia Midlej,

natural de Itabuna, no sul da Bahia. Por alguns instantes, ela esperou uma declaração de

carinho. “Tem uma foto sua na exposição que está no shopping, das mulheres

importantes de Itabuna”, completou o neto logo a seguir. Ela parou e pensou

imediatamente, um tanto surpresa: “Logo eu que não gosto de tirar fotos!”.

A exposição fotográfica, de várias mulheres importantes na região, estava

coroando o trabalho de Maria Célia Midlej, descendente de libaneses. Ela começou

dando aulas de culinária na disciplina “Educação para o lar”, no colégio Polivalente, em

Itabuna, após fazer um curso de extensão na Universidade de Viçosa, em Minas Gerais.

O colégio tinha uma cozinha completa, onde as alunas aprendiam a cozinhar. Lá e em

sua própria casa, pegava as receitas e ia testando. “A receita tem que ser testada”,

afirma.

Maria Célia conta que aprendeu a cozinhar com a mãe. “Era uma cozinheira

perfeita. Não usava muitos condimentos e fazia comidas árabes”, lembra. Ela se casou

em 1960, mas não cozinhava em casa. Tinha uma boa cozinheira para fazer o trabalho.

Enquanto isso, dedicava-se a ensinar o trabalho culinário para suas alunas. À medida

que os pratos iam sendo feitos, as receitas eram colecionadas. Acabaram por virar

apostilas mimeografadas, vendidas para gerar fundos para o colégio. Em 1988, coleção

de receitas transformou-se no livro “Meu Caderno de Receitas”.

Mas o que ela sonhava mesmo era ter um bufê. Sonhava em servir jantares e

bolos de casamento, iguais aos que via nas festas da cidade. Ela já fazia de graça para os

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amigos. Fazia docinhos, bolos de noiva e decorava as igrejas para casamentos. E foi

também em 1988 que ela iniciou as atividades do bufê Saborearte. O mesmo nome da

lendária escola de culinária da personagem Dona Flor (ver box), do famoso livro de

Jorge Amado. Assim como Maria Célia, o escritor é filho ilustre da região do cacau.

O bufê é responsável por servir concorridas festas. Ela conta que a comida

baiana, feita com dendê, tem ótima aceitação. “O povo adora vatapá, caruru, bobó, as

moquecas, acarajé, abará”. Para se dedicar ao bufê, ela pediu demissão de um dos dois

empregos como professora. Abandonou o municipal e ficou só trabalhando como

professora estadual.

Caderno vira livro

Maria Célia está aposentada, mas continua a dedicar-se às recepções. O

Saborearte segue firme. Por sua vez, o livro “Meu Caderno de Receitas” continua a

ajudar desde as cozinheiras e cozinheiros novatos até aos experientes, que querem variar

o cardápio. As receitas são impressas com letras grandes e espaçamento maior do que o

normalmente encontrado nos livros de culinária. “Tudo para facilitar a vida de quem

cozinha. “Nas receitas, é tudo seguido, seqüenciado. Os ingredientes e os procedimentos

estão bem claros. As comidas são saborosas e os ingredientes fáceis de encontrar. É

uma cartilha”, diz Maria Célia.

Logo de ínicio, no lançamento do livro, foram impressos 1.000 exemplares.

Depois foram feitas várias reimpressões. O livro já foi utilizado como presente de fim

de ano para os clientes de uma empresa da região. Mas ela não tem idéia de quantos

exemplares já foram impressos. “Meu marido está cuidando de fazer esse

levantamento”, conta.

O livro já está em sua segunda edição, ampliada. Isto é, terceira, se for contada a

edição mimeografada. Abrindo a edição, estão presentes as receitas dos pratos da

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cozinha baiana, feitos com azeite-de-dendê. Também estão lá vários pratos da culinária

árabe. Como não podia deixar de ser, para uma descendente de libaneses. No Brasil, ao

se falar em culinária árabe, faz-se referência aos pratos de vários países do Oriente

Médio, a exemplo de Síria, Líbano e Turquia.

Grandes eventos

“A gente faz uma comida internacional, requintada. Mas o pessoal come mesmo

é comida baiana”, conta Maria Célia. Para servir os pratos típicos, o bufê utiliza panelas

de barro, de cor preta. Os mariscos ela costuma servir em travessa em forma de conchas.

“A comida baiana é muito grande, com muitos pratos. Caruru, vatapá, farofa, fritada,

moqueca de peixe, mariscada. Sirvo tudo, em almoço ou jantar baiano”, diz.

Para quem não gosta de dendê, o bufê costuma servir frango ensopado e

escabeche de peixe. Este último é feito com o peixe inicialmente frito e depois cozido

com tomate, coentro, cebola, pimentão, salsa, folha de louro.

Para utilizar a panela de barro, Maria Célia assinala que é necessário “queimá-la,

para tirar o gosto do barro e impermeabilizá-la”. Para isso, coloca-se farinha de

mandioca na panela, e queima-se até a farinha ficar preta. “Depois de servir os pratos

nas panelas de barro, é preciso lavá-las bem”, recomenda. No caldeirão é servido o

feijão, o caruru, o vatapá. Na panela rasa, do tipo frigideira, é servida a moqueca.

“Eu gosto de fazer eventos grandes. Quanto mais comida, mais pratos, eu fico mais

feliz. E fico calma, não importa o tamanho do evento”, afirma. E em tom de confissão,

ela diz: “Eu gosto mesmo é de comer bife e ensopado”.

Moqueca de jaca

Maria Célia conta que gosta de fazer misturas, coisas novas nos pratos. Para ela,

é muito difícil criar um prato novo, o que existe são inovações. “As receitas vão

passando de mão em mão. O que a gente faz é acrescentar novos ingredientes. Por

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exemplo, se coloco páprica em um assado, não estou criando um prato novo. Estou, sim,

inovando”

E inovar foi o que ela fez ao testar uma moqueca feita com jaca. “Fui eu que fiz

pela primeira vez”. Uma senhora, esposa de um trabalhador rural da região, lhe falou

que era muito boa. Ela então testou e fez o prato. A receita acabou ficando famosa. “A

moqueca de jaca ganhou o primeiro prêmio de prato típico, representando a cidade de

Itajuípe na Feira dos Municípios, ocorrida em Salvador”. Representantes de Itajuípe,

que fica próxima a Itabuna, viram a receita em seu livro e lhe pediram autorização para

prepará-la.

A receita da moqueca de jaca tornou-se famosa na região cacaueira. “Para fazê-

la, a jaca deve estar bem verde”, diz. Retira-se os caroços, corta-se bem miudinho.

Acrescenta-se os temperos. “Dá trabalho. O visgo da jaca pega nos dedos”. Confira a

receita da moqueca de jaca no box1.

Box 1 - Moqueca de jaca Maria Célia Midlej Silva de Araújo

Ingredientes:1 jaca verde, pequena3 tomates maduros1 cebola1 garrafa (200 ml) de leite de coco1 garrafa (200 ml) de azeite-de-dendêalho socado com sal;tempero verde à vontade;coentro e cebolinha.

PreparoDescasque a jaca e corte-as em rodelas finas. Ponha para cozinhar em água e sal. Depois de cozida, escorra e desfie a jaca, dentro de uma vasilha com água fria, e escorra novamente. Ponha os tomates e cebolas, já cortados, para refogar no óleo quente. Coloque a jaca, o leite de coco e o dendê. Deixe cozinhar bem. Por último, coloque o tempero verde. Experimente o sal.Sirva quente com arroz, farofa ou farinha.

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Box 2 – Dona Flor

Florípedes, ou simplesmente Dona Flor, era cozinheira, professora de culinária e

proprietária da Escola de Culinária Sabor e Arte, no livro de Jorge Amado. Quituteira

prendada, Dona Flor foi casada com o malandro Vadinho, que morre durante o Carnaval

de Salvador. Viúva, ela se casa com o farmacêutico Teodoro. No entanto, mesmo depois

de morto, Vadinho volta a assediá-la em sonhos e visões, formando um inusitado

triângulo amoroso.

Dona Flor é um dos personagens mais conhecidos de Jorge Amado. O livro

Dona Flor e seus dois maridos se transformou em filme de grande sucesso no cinema

nacional.

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Inovações nos pratos

Os pratos com dendê se renovam, com a aceitação de uns e a reprovação de outros

Os cozinheiros, famosos ou não, estão sempre à procura de novas receitas. Da

criatividade, uma pitada a mais de um tempero, surgem novos pratos com ingredientes

já consagrados. Existem os pratos tradicionais e suas adaptações, devido a maior ou

menor facilidade de acesso aos ingredientes.

A cozinha baiana, centrada no uso do azeite-de-dendê, à primeira vista parece

não permitir muitas inovações, devido ao sabor forte do dendê. Por outro lado, a

mudança nos pratos típicos não é permitida – ou desejada pelos consumidores. Sob o

risco de descaracterização ou de transformação em novos pratos.

“O dendê tem sabor muito forte. Ele não é utilizado somente para colorir. Ele dá

sabor, se for utilizado, então muda completamente o prato original. Se um suflê for feito

com dendê, vai virar um prato baiano”, assinala a culinarista Elíbia Portela. “Não se

pode usar o dendê com creme de leite, ou queijo, por exemplo. Não dá”, reforça ela.

O que Elíbia se permite de inovação é fazer alguns procedimentos novos, em

pratos tradicionais. Um exemplo é a receita “Moqueca de Peixe à Minha Moda” (confira

no box). Elíbia conta que as pessoas se assustam quando ela fala em usar farinha de

trigo. “Para fazer a moqueca, o peixe é empanado na farinha antes de ser cozido. A

primeira vantagem é que as postas ficam intactas, sem desmanchar. E a segunda é que

fica o caldinho mais grosso, que todo mundo adora”. A moqueca de Elíbia também leva

um pouco de gengibre.

A cozinheira Dadá, dona de restaurantes em Salvador e famosa pela culinária

feita com azeite-de-dendê, não tem receio de ousar. Utiliza bastante leite de coco em

suas receitas. E chega a misturar dendê com ingredientes inesperados. Um exemplo é a

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receita “Bacalhau da Dadá”, que une azeite-de-dendê, leite de coco e creme de leite

(veja receita no box). O prato é para quem gosta de novidades.

Tradição do dendê

Para alguns apreciadores dos pratos típicos da cozinha baiana, de origem

africanas, essas mudanças não são facilmente, digamos, digeríveis. “Culinária é um dos

pilares da cultura de um povo, talvez um dos mais importantes. Se você começa a

deteriorar essa cozinha, você perde a base da cultura geral. Não me agrada essa maneira

de proceder, de fazer inovações. Você pode fazer um prato novo, baseado em um prato

tradicional. Agora não se deve deturpar o caruru, o vatapá, a moqueca, produzindo

coisas diferentes. Isso não deve acontecer”, opina Guilherme Radel.

A discussão em torno de modificações nos pratos da cozinha baiana é antiga. No

prefácio do livro “Cadernos de Xangô”, publicado em 1939, o autor Jerônimo Sodré

Viana já reclamava sobre a “deturpação que estava ocorrendo na concepção da cozinha

baiana”. Para lutar contra isso, ele resolveu instalar-se em um terreiro de candomblé

para resgatar as receitas originais. Foi o trabalho que resultou no livro, considerado de

importância histórica para a cultura baiana.

Na década de 50, segundo registro da folclorista Hildegardes Vianna, o leite de

coco já aparece como opcional no cozimento do peixe da moqueca. “Pode-se cozinhá-lo

em água ou leite de coco, conforme o gosto”, é o que consta na receita de “Moqueca de

peixe miúdo”, na primeira edição do livro A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas.

Acarajé e abará

Os acarajés e abarás são iguarias disputadas na Bahia. Nas calçadas, praças e

praias as baianas típicas fritam os acarajés, espalhando o cheiro delicioso do dendê, a

partir do final da tarde. Para conseguir os petiscos, nas baiana famosas, há filas que o

cliente tem que enfrentar. Originalmente, o acarajé e o abará eram acompanhados

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somente de pimenta. Atualmente, é possível consumi-los acompanhados de molho de

camarão, vatapá, caruru e molho de tomate picado, uma espécie de vinagrete.

Alguns estudiosos da cultura baiana atribuem ao turismo a inclusão de outros

recheios no acarajé e abará, de acordo com observações das baianas. Ao consumir os

bolinhos, os visitantes passaram também a pedir os outros pratos, a exemplo do vatapá e

do caruru. A inovação caiu também no gosto dos nativos.

A baiana Maria Emília Bittencourt, do alto de quase 4 décadas de vendas de

acarajés e abarás no Quiosque de Amaralina, não acredita que seja uma imposição do

turismo. “Eu não sei quem foi que começou a colocar caruru no acarajé. O caruru é um

prato. É comida de santo. Acompanha xinxim, moqueca de peixe”, explica. “Mas não

foi o turista que pediu. Foi o próprio baiano, que é ‘inventador’ de moda”.

Ela acha que a inovação foi feita por baianas novatas, para atrair os clientes. E

reclama da mudança: “Antigamente, o acarajé era um lanche, de fim de tarde. Hoje as

pessoas comem como se fosse um almoço. É sabedoria de cliente e besteira de baiana.

O freguês pede um prato, de acarajé cortado, com um monte de acompanhamento. A

baiana fica no prejuízo”. Maria Emília cobra R$ 1,50 o acarajé, com camarão ele sobe

para 2 reais.

Inovações

É a própria baiana que conta as mudanças ocorridas. “Antigamente, o acarajé só

levava pimenta, o camarão já vinha dentro do molho”. O molho, a que Maria Emília se

refere, é feito com pimenta malagueta, camarão e azeite-de-dendê. Tem cor escura e

consistência de pasta. Mas algumas pessoas não gostavam da ardência. “Para agradar o

cliente, o camarão foi separado. É daí que vem o molho de camarão”, explica a baiana.

A salada, ou molho vinagrete, segundo Maria Emília, “era para o peixe, para a

passarinha frita e para o caranguejo. Acabou também ficando para o acarajé”. A baiana

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vasculha a memória e lembra que foi a partir de 1986 que as baianas começaram a servir

caruru no acarajé, e que o vatapá veio um pouco antes, mas ela não se recorda quando.

“As baianas vêm criando, inventando novos molhos ou, mais recentemente

ainda, utilizando antigas comidas de azeite, como o vatapá e o caruru, como molhos

recheios do acarajé. Especialistas em culinária clamam contra essas ‘heresias’, mas elas

afinal se legitimam com o uso”, segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima.

O engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel não gosta de inovações. “Acarajé

com vatapá, caruru, com salada, são deturpações”. Para ele, o uso camarão é novidade,

mas não é tão chocante. “O pior é colocar salada dentro do acarajé”. “Se o acarajé é um

patrimônio da cultura baiana, ele deve remontar às origens. Perder essas coisas falsas de

atualmente”, apregoa. Dizem por aí que são as querelas que mantêm viva a gastronomia.

Parece ser uma verdade na culinária baiana.

Box 1

Moqueca de peixe a moda de Elíbia Portela

Ingredientes1 ½ k de peixe em postas ( garoupa, vermelho, pescada amarela etc. )Tempero : 1 colher de sobremesa de sal,1 colher de café de pimenta branca em pó, 1 colher de café de raiz de gengibre ralada, 2 colheres de sopa de coentro picado, 2 colheres de sopa de azeite de oliva, suco de 1 limão.Complementos: 2 dentes de alho picados, 3 tomates sem sementes, 2 pimentões, 2 cebolas ( todos cortados em fatias), ½ xícara de chá de cheiros verdes picados ( salsa, coentro e cebolinha verde), 4 colheres de sopa de amendoins e castanha de caju moídos, ½ xícara de chá de camarões secos limpos e reidratados, 1 xícara de chá de leite de coco,½ xícara de chá de azeite-de-dendê, 1 pimenta de cheiro( opcional), 250g de camarões frescos limpos e temperados com sal, pimenta branca em pó, coentro picado e azeite de oliva.

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PreparoLimpar bem o peixe, retirando as escamas, guelras, olhos, ponta da cauda, etc. Lavar bem com água e suco de limão. Cobrir com leite e reservar por 15 minutos. ( Para perder o cheiro de maresia).Lave mais uma vez, enxugue com papel absorvente e tempere com o sal, pimenta, gengibre, coentro azeite de oliva e suco de limão. Reservar por 1 hora ( na geladeira).Ponha umas duas colheres de sopa de azeite de oliva em um tacho, e frite o alho picado. Acrescente a metade do azeite-de-dendê já aquecido.Arrume as postas de peixe, fatias de tomates,pimentões e cebolas, cheiros verdes, castanha, amendoins , camarões secos, camarões frescos, e o restante do dendê. Se gostar, junte uma pimenta de cheiro inteira. Tampe a panela, e leve ao fogo para que cozinhe até o peixe amaciar .

Box 2Bacalhau da Dadá

Ingredientes1kg de bacalhau limpo, tratado e sem sal 5 cebolas grandes 4 tomates 2 mamões verdes 6 bananas da terra ½ litro de leite de coco 2 copos de creme de leite fresco6 colheres de sopa de salsa picada3 colheres de sopa de coentro picado6 colheres de sopa de cebolinha picada½ colher de sobremesa de sal1 xícara de chá de azeite de oliva3 colheres de sopa de dendê1 vidro de palmitos (grandes e frescos)Para decoração: 2 cebolas2 tomates1 pimentão amarelo e 1 vermelho1 molho pequeno de coentro, 1 de cebolinha e 1 de salsa

PreparoDescasque e corte os mamões em cubos e coloque para cozinhar, não deixando ficar nem muito mole nem muito duro. Pique todos os temperos e os machuque, dividindo os temperos em duas partes. Uma parte é colocada numa panela funda, e levada ao fogo com o leite de coco e o azeite de oliva. Junte o bacalhau e o mamão que já está pré-cozido e mexa sem parar. Assim que subir a fervura, acrescente a segunda parte dos temperos, o dendê, o creme de leite e deixe ferver bem. Experimente o sabor e retire do fogo.Dicas: Quando for servir, coloque camadas de bananas-da-terra (cozidas só em água e cortadas em fatias), e uma camada do bacalhau. Este prato é para ser arrumado no fogo e depois decorado. Sirva com arroz de leite.

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Box 3Acarajé(receita de Maria Célia Midlej)

Ingredientes1 kg de feijão fradinho4 cebolas grandessaldendê

PreparoBata no liquidificador o feijão seco, só para quebrar. Ponha de molho em bastante água, por mais ou menos 1 hora e meia, para soltar as cascas e os pontinhos pretos que ficam boiando. Mude sempre a água e vá tirando as cascas e os pontinhos pretos que ficam boiando. Depois de catar toda a casca e os pontinhos pretos, escorra a água.Bata no liquidificador com as cebolas para fazer a massa. Se precisar, ponha um pouco de água para bater melhor. Coloque o sal. Ponha a massa em uma vasilha e bata bem, com uma colher de pau, para ficar bem macia.Ponha bastante dendê em uma frigideira para esquentar bem. Com uma colher, vá pegando a massa e pondo para fritar. Depois de frito, vá colocando em uma vasilha forrada com papel absorvente, para eliminar o excesso de dendê.Sirva quente com um pouco de vatapá e molho de acarajé.

Box 4 Dandá de camarões(receita de Beto Pimentel, do restaurante Paraíso Tropical, retirada do livro Viagem gastronômica pelo Brasil)

Ingredientes500 g de camarões limpos2 xícaras de leite de coco3 folhas de coentro1 tomate médio sem sementes picado1 cebola média picada5 camarões defumados limpos1 colher (sopa) de azeite de oliva1 colher (sopa) de azeite-de-dendêsal a gosto100 g de maturi (castanha de caju verde)100 g de palmito cozido100 g de aipim (mandioca) cru

Preparo

Ponha os camarões numa panela média e reserve. No liquidificador, bata o leite de coco com o coentro, o tomate, a cebola e os camarões defumados, até obter um creme bem homogêneo. Derrame o creme sobre os camarões, junte o azeite de oliva e o de dendê e cozinhe, com a panela tampada por 3 minutos. Enquanto isso, bata no liquidificador ou processador o maturi com o palmito, até ficar bem cremoso. Reserve.

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Bata o aipim no liquidificador ou processador até ficar muito bem moído. Acrescente os ingredientes batidos ao camarão e mexa até ficar cozido e cremoso. Sirva em seguida.

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Gourmet do dendê

O geólogo Arno Brichta conhece, aprecia e prepara pratos da cozinha baiana

Os pratos da cozinha baiana são como diamantes. “De longe são parecidos, mas

a curta distância são diferentes”. Os diamantes, por causa da origem geológica. Os

pratos da cozinha baiana, pelo local de origem dos pratos, o que implica em suaves

graduações dos ingredientes dos pratos, como o azeite-de-dendê e o leite de coco.

A afirmação, cheia de preciosismos, é - como não poderia deixar de ser - de um

geólogo e conhecedor de gastonomia. Ou, como dizem os franceses e o resto do mundo,

de um gourmet. Arno Brichta é paulista, professor doutor e pesquisador do Instituto de

Geociências da UFBA, cozinheiro eventual e gourmet sempre. Mora há muitos anos na

Bahia. A comparação entre diamantes e pratos da cozinha baiana também tem um

sentido de riqueza e valor, além da diferenciação devido ao uso de ingredientes.

“A cozinheira Dadá usa bastante leite do coco nos pratos. Em outros locais, usa-

se menos. Em Cachaprego, na Ilha de Itaparica, há uma famosa moqueca de aratu com

quiabo, chamada de ‘aratuabo’. Nela, praticamente não se usa o leite de coco. E come-

se com feijão e arroz”, precisa ele. “A impressão é que os pratos são todos iguais, mas

não são. Há diferenciações. Quando se usa mais dendê, usa-se menos leite de coco”,

ensina.

Arno Brichta costuma consumir comida feita com azeite-de-dendê pelo menos

uma vez por semana. Geralmente nas sextas-feiras, em restaurantes de comida a quilo.

Quando recebe algum hóspede ou chega algum visitante amigo na cidade, ele sempre

leva para algum restaurante de comida típica. E ele conhece muita gente, de outros

Estados e outros países. Atualmente sempre vai a restaurantes comer moqueca.

O acarajé é outro item que não pode passar despercebido. Brichta mora na

Graça, perto do quiosque da baiana Regina. “O vento traz o cheiro. Periodicamente

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tenho que comer acarajé”, diz. Ele gosta tanto da culinária baiana, que comprou um

fogão tipo industrial, de uma boca. E explica a utilização: “A moqueca é muito rápida

de cozinhar. Frutos do mar são rápidos de fazer, até mesmo a moqueca de carne

desfiada, chamada de roupa velha. O fogão é por causa da panela de barro, que demora

de esquentar”. E o fogão é socializado. Participa até do bazar de final de ano da Igreja

Luterana, na Federação, em Salvador.

Para Brichta, o dendê não é indigesto. “Não me sinto mal quando o consumo”.

Mas ele faz a advertência: “Com se usa muito, o prato fica enjoativo”. Ele adora farofa

de dendê. “Para mim, o casamento perfeito é o dendê e a farinha. A junção do elemento

negro e o indígena”. Arno também lista a moqueca de siri mole e o vatapá – “bem

feito”, ressalta – como os seus pratos prediletos, entre os feitos com azeite-de-dendê.

De gourmet a cozinheiro

Arno Brichta diz que aprendeu a cozinhar “na prisão”. Isso mesmo. Ele foi preso

político, durante um ano, na época da ditadura. Na prisão, utilizou os conhecimentos

herdados da mãe, gaúcha, descendente de alemães, que gostava de cozinhar. Enquanto

esteve preso, Arno cozinhava e também fazia artesanato.

Além da herança culinária familiar e da prisão, outras circunstâncias

aproximaram Arno da cozinha. Na época em que o seu casamento foi desfeito, ele teve

que cozinhar para os três filhos pequenos, que ficaram sob seus cuidados: Maurício,

Laila e Wladimir, de 6, 5 e 3 anos, respectivamente. Wladimir Brichta, ou Wlad, é o

famoso ator de novelas da rede Globo. É evidente que se o geólogo não gostasse de

cozinhar, teria outras opções de alimentação para a família.

“Cozinhar é um ritual, um saber”, afirma Brichta. “Com o passar do tempo a

gente apura o paladar. Gosto de fazer uso ousado de temperos”. Segundo ele, à medida

que o tempo passa, a necessidade de grande quantidade de alimentação diminui, em

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função de menor necessidade de queima de calorias. Por isso “o gosto vai apurando e o

aprimoramento vem junto com a alegria de viver”, completa.

Para dar provas de diferenças sutis no paladar, detalha: “O modo diferente de

cortar um vegetal dá outro sabor. Existe uma relação com o processamento da comida.

Por exemplo, os orientais só cortam os legumes ‘ao comprido’”, ou seja, no sentido

longitudinal.

Entre os segredos de preparação, Brichta cita “a escolha dos ingredientes é o

principal para fazer bons pratos. Produtos de primeira qualidade. Peixe e camarão

fresco, siri bem catado, sem cascas”. O dendê, ele compra em feiras livres. E ensina:

“Tem que ter duas partes: o óleo, chamado de flor, e uma parte de sólidos, que se chama

bambá”. Arno diz que o dendê bom é aquele prensado a frio. Em processo semelhante à

obtenção do azeite de oliva, que é dessa maneira considerado de melhor qualidade.

Para muita gente

Em suas incursões pela cozinha, Arno Brichta adquiriu conhecimento e

experiência. Suas moquecas são famosas. O prato preferido do filho Wladimir é a

moqueca de arraia, especialmente se preparada pelo pai. No aniversário do ator, este

ano, Arno Brichta foi para o Rio de Janeiro, onde mora Wladimir especialmente para

preparar o prato. Ele rememora como foi.

“Compramos uns 8 quilos de arraia aqui em Salvador. Transportamos de avião

em uma caixa de isopor para o Rio de Janeiro. Também foi o dendê e a farinha”.

Detalhe: no trajeto do aeroporto para casa, o líquido do peixe vazou e inundou o carro

novo de Wlad. “Foi usada arraia do tipo ‘não-mijona’ (como é conhecida

popularmente). Do Rio de Janeiro só entrou tomate, cebola, coentro, cebolinha e

pimentão”.

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A moqueca foi feita na casa da atriz Drica de Moraes. “Casa com cozinha

espaçosa, incrementada e instrumentalizada. Ia ser uma moqueca para umas 40

pessoas”, diz. O número de convidados foi crescendo e o serviço teve que ser reforçado.

“Fizemos mais 5 quilos de caçonete. No total, foram servidas umas 50 pessoas. Não

sobrou nada, foi tudo embora. A moqueca foi um sucesso”, afirma ele, vitorioso.

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O engenheiro com um pé na cozinha

Apaixonado pelo sertão e pelo dendê, o engenheiro Guilherme Radel estuda a cozinha

baiana.

O escritório não poderia estar em local mais adequado: em frente ao prédio da

Escola Politécnica da UFBA, no bairro da Federação, em Salvador. Faculdade em que

ele ensinou por vários anos. Para ter acesso ao escritório, sobe-se dois lances de

escadas. Não se trata de um prédio grande. São três andares, sem elevador. Uma porta

fechada pela frente, uma campainha e a placa da empresa R&A Engenheiros

Consultores. Em um escritório de engenharia para tratar de gastronomia.

A campainha é acionada e soa do outro lado. Alguém investiga através do olho

mágico. A porta é aberta. “Pode entrar. Só um instante, que o senhor Radel já vem

atender.”, diz a recepcionista.

Alguns minutos depois, o engenheiro Guilherme Radel aparece. É um senhor de

73 anos, simpático e gentil. O escritório de engenharia é quase um labirinto, com muitas

divisórias e algumas pessoas trabalhando em computadores e debruçadas sobre

pranchetas. O engenheiro conduz a reportagem a uma sala com mesa redonda e

inúmeras caixas de arquivos. O ar condicionado é barulhento. A impressão era de que a

gravação não ia sair de boa qualidade.

O engenheiro civil e eletricista Guilherme Requião Radel é dono de um

currículo extenso. É professor aposentado da Escola Politécnica da UFBA, onde

ensinou, de 1965 a 1994, as disciplinas Hidráulica e Obras Hidráulicas. Lecionou

também na Escola Técnica Federal da Bahia, de 1961 a 1968. Foi diretor da Embasa

(Empresa de Águas e Saneamento da Bahia). Fez inúmeros trabalhos de hidráulica e

saneamento em várias cidades do país. Também desenvolveu vários trabalhos no

exterior, incluindo Estados Unidos, Uruguai, França, Congo, Iraque, Moçambique,

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Austrália, Peru e Costa Rica. E continua trabalhando até hoje. Enquanto engenheiro,

publicou vários trabalhos técnicos.

Nascido em Salvador, na Península de Itapagipe, Radel sempre passava férias no

sertão. Em 1970, tornou-se pecuarista. Comprou fazenda em Ipirá, na Bahia, onde

desenvolve criação de bovinos, eqüinos, asininos, caprinos e ovinos. Foi autor de vários

trabalhos na área de pecuária, incluindo “A Carne-de-Sol” e “Aprendiz de Fazendeiro”.

Entre tantas atividades, Radel sempre achou um tempinho para apreciar e

conhecer mais profundamente a cozinha da Bahia e de outros lugares. Ele também

demonstra bastante conhecimento sobre o que se escreve sobre gastronomia nos jornais.

Em 2002 lançou o livro “A cozinha sertaneja da Bahia”, um verdadeiro tratado de 723

receitas da culinária praticada no sertão do Estado. Culinária que é herança direta da

cozinha portuguesa, adaptada às condições da Bahia, com algumas influências indígenas

e africanas. Um assunto até então pouco explorado pelos estudiosos, mas que compõe

parte substancial da alimentação no Estado.

Além das receitas e de belas fotografia, o livro traz um apanhado de técnicas de

cozinha e anotações importantes sobre aspectos históricos e culturais da cozinha baiana.

Radel apresenta-se no livro como grande interessado e conhecedor dos hábitos da

alimentação no Estado.

A maior parte das receitas que é praticada no sertão é baseada no uso de carnes,

principalmente de bovinos, caprinos e ovinos, mas também é possível encontrar receitas

feitas com azeite-de-dendê. Apesar do livro ser a respeito da cozinha sertaneja, há

observações importantes sobre os pratos feitos com o azeite dourado.

Durante a pesquisa para o livro, Radel acumulou 1.452 receitas. Eliminou quase

50% do que obteve, para o livro não sair muito caro. “Eu vinha fazendo anotações há

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quase 20 anos dessas receitas. Cheguei a mais do dobro do que está publicado. Incrível

a riqueza da cozinha sertaneja da Bahia.”, diz.

Durante a confecção do livro, Radel preparou vários pratos, alguns dos quais

serviram como modelos para as fotos. “Ao longo desses anos venho anotando,

pesquisando, testando. No passado, os livros de receitas não vinham com as

quantidades. Algumas receitas que adquiri na região com os vizinhos eram desse tipo,

então tivemos que fazer experimentações em nossa própria cozinha”, diz.

Família na cozinha

O gosto de Radel pela culinária veio da família. “Minha mãe era excelente

cozinheira. Desde cedo eu ficava ao lado dela aprendendo”, recorda. Ele conta costuma

ir para a cozinha, na fazenda que possui em Ipirá, em boa companhia. “Vou com a

família inteira. Minhas filhas estão ao meu lado, nós brincamos muito com isso”.

A paixão pelo dendê vem de longa data. “Lá em Itapagipe, onde eu morava,

havia facilidade incrível de pesca de mariscos. Quando era época de lua cheia, que a

maré se espraiava, havia uma abundância de crustáceos e moluscos. E a gente sempre

fazia tudo na base do dendê”, recorda.

Outra lembrança significativa é dos seus tempos de juventude. Em Salvador, na

extinta Feira do Bonfim, na Praça da Natividade, junto ao mar. “Era uma feira muito

importante para a península Itapagipana”, ressalta. “Havia uma barraca de comida

baiana. Meu pai alugava um táxi e íamos todos para lá. A gente morava na Ribeira e ia

para lá no sábado à noite, íamos saborear comida de dendê. Caruru, vatapá, moqueca de

peixe. “Isto na metade da década de 40, metade da década de 50. Eu tinha os meus15

anos”, relembra.

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Mesmo com toda a satisfação com o trabalho sobre a cozinha sertaneja, Radel

não esconde a paixão com a cozinha baiana, feita com dendê. Ou, como ele faz questão

de enfatizar: “cozinha afro-baiana”.

Radel está com outro livro de culinária pronto para ser lançado, aguardando

verba para a publicação. Desta vez, é sobre a “cozinha praiana” da Bahia. Isto é, um

livro que reúne pratos que são consumidos nas praias, basicamente feitos com frutos do

mar. E também mantém, em fase de estudos, um outro livro sobre a cozinha afro-

baiana. É só aguardar.

Enquanto isso, o telefone toca. É uma pessoa do Ministério das Relações

Exteriores, para acertar detalhes. Algumas receitas de “A cozinha sertaneja da Bahia”

serão selecionadas para um livro ou catálogo de divulgação do Brasil no exterior. A

cozinha praticada no sertão adquire o seu devido espaço, representando a Bahia, junto

com a cozinha de origem africana.

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Crônica

Coisas da Bahia

O final de semana se aproxima, é sexta-feira à tarde, a noite inicia. Baianos e turistas

dirigem-se à hora feliz: direto à cerveja e ao popular acarajé. As baianas Dinha e Cira,

no Rio Vermelho, recebem os clientes, as filas começam a ser formar. Ponto para os

barzinhos ao redor, que acolhem os consumidores em suas mesas. Para cervejas,

refrigerantes e drinques, meros coadjuvantes da magia do acarajé e abará.

Inteiros, para comer com guardanapo, ou cortados no prato, acompanhados de vatapá,

molho de camarão, salada de tomate picado, molho de pimenta e até caruru, os acarajés

e abarás servem de refeição completa, ou de tira-gosto a preço acessível. Ao mesmo

preço, ou mais em conta que batatas fritas, carne-de-sol, filezinho ou caldos. Os clientes

encaram filas demoradas para conseguir os petiscos democráticos. Para distrair, há

sempre um pedinte requisitando ajuda para comprar o seu almoço ou jantar – o próprio

acarajé.

O acarajé e o abará são ícones da cozinha baiana. Quem imagina em São Paulo, em

plena Avenida Paulista, uma senhora trajando trajes típicos e calmamente fritando

bolinhos de feijão? Em Salvador, na avenida Sete de Setembro, existem baianas estão

por lá há mais de 30 anos. Trabalhando diariamente, fazem da venda de comida o

sustento para suas famílias. Em papel típico de filhas de Iansã, orixá a quem o acarajé é

normalmente dedicado.

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