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SUBSÍDIOS PARA UMA DIDÁCTICA DA FILOSOFIA A propósito de algumas iniciativas recentes para a constituição de uma Didáctica específica da Filosofia JOAQUIM NEVES VICENTE Introdução A "questão", filosoficamente controversa, de uma didáctica específica da filosofia suscitou, nos últimos anos, e está a suscitar, hoje, sobretudo em França, um vivo debate entre os defensores da sua legitimidade e urgência e aqueles que vêem com suspeita qualquer aproximação da filosofia e do seu ensino às ciências da educação. Para estes últimos, a filosofia é ela própria unia pedagogia e uma didáctica. Deste ponto de vista, o ensino da filosofia não tem nada a pedir de empréstimo às ciências da educação, porque a filosofia contém em si mesma os fundamentos do seu exercício comunicativo. 1 Foi a predominância destas teses adentro da comunidade filosófica que justi- ficou a inexistência, até bem pouco tempo, de qualquer projecto para a constituição de uma "didáctica específica" da filosofia. Na verdade, até três ou quatro anos, a contrastar com a maior parte das disciplinas escolares e decor- ridos cerca de vinte anos sobre o início das investigações no domínio das "didácticas específicas", 2 a filosofia aparecia como a única disciplina escolar que não produzira qualquer reflexão didáctica articulada com as ciências da educação. 1 Cf. AA VV - Philosophie - École . Même Combai . Paris, PUF, 1984 e AA VV - Lu Grève des Philosophes . Paris, Osiris, 1986. 2 Em 1969 foram criados os IREM - Instituts de Recherche pour l ' Enseignement des Muthématique .c. Em 1980 , aparece, com o apoio do CNRS , a revista Recherches en Didactique des Mathématiques. No domínio do Francês - Língua Materna e Língua Estrangeira - tem sido publicada, desde alguns anos , abundante documentação nas revistas Repère.c. Recherche s en didactique du français, langue maternelle ( INRP) e Pratiques . Em 1989 apareceu a obra colectiva Recherches eu Didactique ei Acqui s ition du Français Langue Maternelle , em dois volumes , editada conjuntamente por INRP, PPMF , De Boeck e Éditions Universitaires. No domínio das Ciências Experimentais, destaca - se a publicação anual da revista Aster. Recherche s en didactique des sciences expérimentales. Revista Filosófica de Coimbra - n." 6 (1994) pp. 397-412

SUBSÍDIOS PARAUMADIDÁCTICA DAFILOSOFIA Apropósito … · Impõe-se, concluem os autores, umainvestigação que dê resposta à questão de saber como é que os actuais aprendizes

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SUBSÍDIOS PARA UMA DIDÁCTICA DA FILOSOFIA

A propósito de algumas iniciativas recentes para aconstituição de uma Didáctica específica da Filosofia

JOAQUIM NEVES VICENTE

Introdução

A "questão", filosoficamente controversa, de uma didáctica específica dafilosofia suscitou, nos últimos anos, e está a suscitar, hoje, sobretudo em França,um vivo debate entre os defensores da sua legitimidade e urgência e aqueles quevêem com suspeita qualquer aproximação da filosofia e do seu ensino às ciênciasda educação.

Para estes últimos, a filosofia é ela própria unia pedagogia e uma didáctica.Deste ponto de vista, o ensino da filosofia não tem nada a pedir de empréstimoàs ciências da educação, porque a filosofia contém em si mesma os fundamentosdo seu exercício comunicativo. 1

Foi a predominância destas teses adentro da comunidade filosófica que justi-ficou a inexistência, até há bem pouco tempo, de qualquer projecto para aconstituição de uma "didáctica específica" da filosofia. Na verdade, até há trêsou quatro anos, a contrastar com a maior parte das disciplinas escolares e decor-ridos cerca de vinte anos sobre o início das investigações no domínio das"didácticas específicas", 2 a filosofia aparecia como a única disciplina escolar que

não produzira qualquer reflexão didáctica articulada com as ciências da educação.

1 Cf. AA VV - Philosophie - École . Même Combai . Paris, PUF, 1984 e AA VV - Lu Grève

des Philosophes . Paris, Osiris, 1986.2 Em 1969 foram criados os IREM - Instituts de Recherche pour l ' Enseignement des

Muthématique .c. Em 1980 , aparece, com o apoio do CNRS , a revista Recherches en Didactique desMathématiques.

No domínio do Francês - Língua Materna e Língua Estrangeira - tem sido publicada, desdehá alguns anos , abundante documentação nas revistas Repère.c. Recherches en didactique du français,langue maternelle ( INRP) e Pratiques . Em 1989 apareceu a obra colectiva Recherches eu Didactiqueei Acquis ition du Français Langue Maternelle , em dois volumes , editada conjuntamente por INRP,PPMF , De Boeck e Éditions Universitaires.

No domínio das Ciências Experimentais, destaca - se a publicação anual da revista Aster.Recherche s en didactique des sciences expérimentales.

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No entanto , nos últimos anos, iniciativas diversas testemunham que algo seestá a alterar nesse domínio. 3

De entre todas as iniciativas tendentes à constituição de uma didáctica dafilosofia, uma delas se destaca e merece , por isso , a nossa atenção neste aponta-mento de leitura.

Pretende- se dar notícia e passar aqui em revista (crítica ) os trabalhos produ-zidos no âmbito dos seminários e das universidades de verão ( universités d'été)que, desde 1989, têm tido lugar na Universidade de Montpellier , sob a orientaçãodo Prof. Michel Tozzi, em estreita colaboração com os Departamentos de Forma-ção de Professores e de Ciências da Educação daquela universidade.4

Nos domínios da História, da Geografia e das Ciências Sociais, têm vindo a ser publicadas,desde 1986 , pelo INRP, as Actas dos Encontros ( anuais ) sobre a Didáctica da História , da Geografia,das Ciências Económicas e Sociais.

Em 1 de Outubro de 1990 foi criado no INRP - Institui National de Recherche Pédagogique -o Departamento das "Didácticas das disciplinas ", constituído por nove "unidades de investigação-:Unidade "Didáctica das Matemáticas". Unidade "Didáctica do Francês e da Filosofia ', Unidade"Didácticas da História , Geografia e Ciências Sociais", Unidade "Didácticas das Línguas Vivas",Unidade " Didáctica das Ciências Experimentais ", Unidade " Didáctica da Educação Física eDesportiva e dos Ensinos Artísticos ", Unidade " Processos Cognitivos e Didácticas dos EnsinosTecnológicos ", Unidade " Didáctica das Aprendizagens de Base", e Unidade " Didáctica e Formaçãode Professores".

Sobre a controvérsia em tomo das didácticas específicas veja-se: BAILLY , D. - "A proposde Ia didactique " in Les Sciences de l'E,ducation , n° 1-2/1987 : 37-51; MARTINAND. J.-L. -"Quelques remarques sur les didactiques de disciplines " in Les Sciences de l'Éducation , n° 1-2/1987:23-35; e MIALARET, G. - "Les sciences de I'éducation et les didactiques " in Les Sciencesde l'Éducation , n° 1-2/1987:13-22; e ROPE , F. - "Didactiques spécifiques , didactique générale etsciences de I'éducation " in Les Sciences de l'Éducation , 2/1989:5-21.

3 O relatório elaborado por J . Derrida e J . Bouveresse sobre o ensino da filosofia , publicadoem 1989, refere -se explicitamente à necessidade de uma reflexão didáctica.

Nos recém -criados IUFM - Instituis Universitaires de Formation des Maitres - os candidatosao concurso de recrutamento de professores são obrigados a abordar os problemas didácticosdisciplinares respectivos.

Nos estágios do MAFPEN , em Montpellier , em Toulouse , em Nice, em Creteil , etc, tem sidoposta com insistência a questão da possibilidade e da necessidade de uma didáctica específica dafilosofia.

Na sequência de muitos cursos de pós-graduação conducentes aos DEA - Diplome d'ÉtudesAprofondis - e aos doutoramentos , começam a surgir trabalhos que contêm elementos relevantespara uma didáctica da filosofia.

No INRP - Institui National de Recherche Pédagogique - a instituição francesa maisimportante nos domínios da investigação em educação - foi criada recentemente uma unidade deinvestigação designada "Didáctica do Francês e da Filosofia".

Em diversas publicações periódicas vêm aparecendo , desde há já vários anos, "dossiers"temáticos sobre o ensino da filosofia que tratam explicitamente de uma didáctica da filosofia. Cf.Zeitschrift für Didaktik der Philosophie , Philosopher (Lavai), Cahiers Pédagogiques , Dialogue(GFEN ), Revista de Filosofia y Didáctica Filosófica, e Paideia ( Soc. Esp . de Prof. s de Filosofia deInstituto).

4 Durante os anos lectivos de 1989/ 1990 e 1990/1991 , M. Tozzi orientou , na Universidade PaulValery- Montpellier III, dois seminários sobre didáctica da filosofia , donde sairam as brochuras"Enseigner Ia philosophie aujourd ' hui / (89-90) e // (90-91), publicadas pelo Departamento deCiências de Educação daquela universidade . Nos meses de Julho de 1991 e de 1992 , M. Tozzicoordenou , em colaboração com Yveline Fumai , responsável pelos Departamentos de Formação de

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Várias são as razões invocadas por M. Tozzi e seus colaboradores parajustificar a necessidade e a urgência de uma didáctica da filosofia. Destacam-seduas delas: I °- a alteração quantitativa e qualitativa dos alunos da "classeterminal ", 2' - o irresistível desenvolvimento das didácticas específicas.

Enquanto, em 1950, só 5% dos jovens franceses, com idade para frequentaro BAC - último ano do ensino secundário -, o frequentavam efectivamente,em 1992 a percentagem é de 50% e estima-se que no ano 2000 será cerca de80%. Assim, a filosofia, que antes era uma matéria reservada a uma minoria,socialmente seleccionada pela escola, passa a ser uma disciplina generalizada.De um ensino filosófico de elite passou-se a um ensino filosófico de massa.E ninguém de entre os defensores de uma nova didáctica da filosofia põe emcausa a "educabilidade filosófica de todos", assim como o "direito à filosofia paratodos".

Tão importante ou mais ainda é a alteração qualitativa. Os alunos quefrequentam hoje o BAC são linguística e culturalmente muito mais deficitáriosque a elite das décadas anteriores. Não se pode ignorar um facto inquestionável:alteraram-se substancialmente as condições de possibilidade do ensino dafilosofia na educação secundária. O modo como até ao presente se tem ensinadoa filosofia pressupunha da parte dos alunos o domínio da língua e da gramática,assim como a capacidade de leitura e compreensão de um texto, das suasarticulações internas e dos seus mecanismos de argumentação.

A estas razões, só por si suficientes para justificar uma renovação profundado ensino da filosofia e da sua didáctica, os autores acrescentam outras tais como:o baixo reconhecimento social e institucional da disciplina, a perda de prestígioda "classe de filosofia" e ainda os resultados catastróficos das notas de exame,cuja média nacional se situa, desde há alguns anos, em 8 valores sobre 20, muitoabaixo, portanto, das médias nacionais nas demais disciplinas.

Este mal-estar do ensino da filosofia suscita a questão de saber se os alunostêm capacidade para acompanhar um tal ensino, ou se os professores são capazesde o ministrar ou o ministram convenientemente.

Professores e de Ciências da Educação, as Universités d'Été, jornadas que deram lugar a uma vastadocumentação reunida nos volumes Apprendre à Philosopher 1. Contributinn à une Didactique deIa Philosophie (Université d'Été 91) e Apprendre à Philosopher. 11- La prise en compte desrepré.sentatians de l'élève. (Université d'Été 92). Retomando alguma documentação já publicada nasbrochuras anteriores, acrescida de outros textos, saiu, ainda em 1992, a brochura 88-92: Contributionà une Didactique de l'Apprenti.ssage du Philosopher. Trace d'une recherche collective. UniversitéPaul Valery- Montpellier 111.

Também em 1992, da autoria de M. Tozzi e outros foi publicada, na Librairie Hachette, a obraApprendre à Philosopher dans le s Lycées d'Aujoud'hui.

Para dar sequência a este projecto foi criada entretanto a ARDAP - A.ssociation pour IaRecherche en Didactique de l'Apprenti.ssage du Philosopher

M. Tozzi, o principal responsável por estas iniciativas, que apresentara , já em 1989, naUniversidade Lyon 11, para a obtenção de um DEA, a tese Enseigner Ia philosophie aujourd'hui,apresentou , em Junho de 1992, na mesma Universidade, sob a orientação do Prof. Philippe Meirieu,

a sua tese de doutoramento intitulada justamente Vers une Didactique de l'Apprentissage duPhilosopher.

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Pergunta-se naturalmente se não será necessário ensinar a filosofia aos alunosactuais de outro modo.

Impõe-se, concluem os autores, uma investigação que dê resposta à questãode saber como é que os actuais aprendizes de filósofos se podem apropriar doconteúdo e das "démarches" do filosofar.

Perante tamanho mal-estar da filosofia no ensino secundário, dizem, apre-senta-se como paradoxal a vitalidade da investigação filosófica por oposição àfraqueza da reflexão didáctica em filosofia. E é tanto mais incompreensívelquanto, na maior parte das disciplinas escolares, se assiste desde há vinte anosa uni grande interesse e desenvolvimento das didácticas específicas, apoiadasna investigação pedagógica resultante da institucionalização das ciências daeducação.

A filosofia aparece como a lanterna vermelha da investigação didáctica. 5Há que dar ao ensino da filosofia na educação secundária a didáctica de que

ela precisa.

1. Proposições para uma Didáctica da Filosofia

Existem, é certo, circunstâncias externas que ajudam a compreender ainexistência de uma didáctica da filosofia tais como o facto de a filosofia, emFrança, só ser objecto de ensino durante um ano e já no terminus do ensinosecundário, o que deixa de trazer muitos dos problemas que se colocam nasdemais didácticas específicas: o nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos,a progressão nos conteúdos, etc. Mas são sobretudo razões de ordem interna,como reconhece M. Tozzi, 6 que justificam a resistência dos filósofos e dacomunidade dos professores de filosofia ao desenvolvimento de uma didácticaespecífica da disciplina. Para a grande maioria, como se observou já, a filosofiaé intrinsecamente didáctica e tem em si a sua própria pedagogia, pelo que nãonecessita de qualquer didáctica constituída a partir de fora (das ciências daeducação ou da pedagogia), como acontece com as outras disciplinas. Bastafilosofar. A melhor formação pedagógica de um professor de filosofia serásempre uma sólida formação filosófica. Esta é, de resto, a argumentação maisutilizada por alguns professores e investigadores em filosofia que não têmpoupado as suas críticas contra os actuais defensores de uma didáctica da

5 Para além do presente projecto de uma didáctica específica da filosofia não temosconhecimento , em França, de qualquer outro . Até no INRP, onde foi criado e funciona desde háalguns anos o referido Departamento de "didáctica das disciplinas ", presentemente em grandeactividade , nunca existiu nem existe qualquer projecto de investigação em didáctica da filosofia, nãoobstante uma das unidades de investigação do departamento de didácticas das disciplinas sedenominar precisamente " Didáctica do Francês e da Filosofia". A única actividade em curso, noINRP, no âmbito do ensino da filosofia é um seminário que vem decorrendo , desde 1991 , subordinadoao tema "Philosophie : dissertation sur texte", sob a orientação de M11c F. Raffin.

6 Cf. TOZZI, M. et al. - Apprendre à philosopher dans les lycées d' aujourd ' hui. Paris,Hachette/CRDP Lille, 1992, pp. 24-26.

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filosofia, como o haviam já feito contra um ensino da filosofia segundo oscânones da pedagogia por objectivos. 7

A estas objecções M. Tozzi e seus colaboradores respondem com a afirmaçãode que já não é admissível uma identidade ou um isomorfismo, frequentementesupostos, entre a filosofia como disciplina de investigação e a filosofia comomatéria escolar do ensino secundário. Existe um corte e uma distância abissalentre o filosofar por parte do professor diante do aluno e o ensiná-lo a filosofar.O ensino filosófico por parte do professor não pode, por isso, ser tomado comocondição suficiente, embora seja condição necessária, da aprendizagem dofilosofar por parte do aluno. É no intermeio destes pólos que tem sentido e setorna hoje, mais do que nunca, pelas razões invocadas, necessária e urgente umadidáctica da filosofia, ou seja, uma reflexão sobre as mediações necessárias entrea filosofia e o filosofar do professor e o fazer aprender a filosofar por parte doaluno. 8

Admitida a hipótese de uma didáctica da filosofia, coloca-se, de pronto, aquestão de saber qual o seu objecto, de definir quais os seus objectivos funda-mentais e de investigar quais os suportes teóricos mais adequados, assim comoas metodologias mais apropriadas.

M. Tozzi reconhece a dificuldade e a complexidade do problema. Ciente deque nem sequer existe, entre filósofos, um consenso filosófico sobre o que sejaa filosofia e o filosofar, insatisfeito com as formulações muito vagas que apare-cem nos programas acerca dos objectivos do ensino da filosofia na educaçãosecundária tais como: "desenvolvimento de um espírito crítico", "educar para aliberdade" ou "esclarecer o cidadão", dos quais não se depreende qualquer orien-tação para as práticas pedagógicas, M. Tozzi pergunta se, apesar disso, não serápossível, desejável e sobretudo necessário estabelecer um acordo entre pro-fessores sobre o que deve ser e em que deve consistir na prática o ensino dafilosofia na educação secundária. Lamenta que a filosofia seja actualmente aúnica disciplina escolar onde não são definidos com rigor objectivos pedagógicosa prosseguir. Propõe que esses objectivos sejam definidos em termos decapacidades, depois de caracterizados os processos de pensamento necessáriosao filosofar e acessíveis aos alunos.

Apoiando-se na documentação produzida e nos trabalhos realizados noâmbito dos seminários de 1989-1990 e de 1990-1991 e nas universités d'été de1991 e 1992, que decorreram na Universidade de Montpellier, com a participaçãode algumas dezenas de professores do liceu, o autor propõe, a título de hipóteseheurística e método de investigação, o estabelecimento de um acordo didácticoque assente nas seguintes proposições:

1. O ensino da filosofia na educação secundária terá por finalidade eobjecto a aprendizagem do filosofar.

Cf. AA VV - Philosophie-École. Même Combat, Paris. PUF, 1984 e AA VV - La Grèvedes Philosophes. Paris, Osiris, 1986.

8 TOZZI, M. - "Contribution à I'élaboration d'une didactique de l'apprentissage duphilosopher" in Revue Française de Pédagogie, 103 (1993), p. 20.

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Uma proposição que, ao privilegiar a actividade do filosofar sobre atransmissão da(s) filosofia(s), diz M. Tozzi, encontra a sua legitimidade filosóficana distinção kantiana entre aprender filosofia(s) e aprender a filosofar.

Uma proposição que, ao centrar o ensino da filosofia na aprendizagem,encontra a sua legitimidade pedagógica nas recentes investigações em ciênciasda educação que, desde há alguns anos, privilegiam uma lógica da aprendizagemsobre uma lógica do ensino, o mesmo é dizer uma lógica do aluno sobre umalógica do professor.

Uma proposição que, ao centrar a aprendizagem do filosofar na actividadedo aluno e nas suas capacidades efectivas, encontra a sua legitimidade ética epolítica no "direito à filosofia para todos", direito que assenta no "postulado daeducabilidade filosófica de todos".

Só uma tal "revolução copernicana" no ensino-aprendizagem da filosofia na

educação secundária poderá garantir a acessibilidade do ensino filosófico a um

público de massa.2. O filosofar- um processo de pensamento incontestavelmente com-

plexo - pode e deve, para efeitos didácticos, desdobrar-se em três operaçõesintelectuais maiores: conceptualizar, problematizar e argumentar.

Este deverá ser o paradigma organizador do ensino filosófico na educaçãosecundária.

A aprendizagem dos processos fundamentais do pensamento filosófico impli-cará da parte do aprendiz-filósofo o desenvolvimento das seguintes capacidades:

a) ser capaz de conceptualizar filosoficamente uma noção;b) ser capaz de problematizar filosoficamente uma questão ou uma noção;c) ser capaz de argumentar filosoficamente uma tese ou uma dúvida.Estes seriam, no entendimento de M. Tozzi e seus colaboradores, os objec-

tivos nucleares (noyaux) do ensino da filosofia na educação secundária.3. Uma didáctica da filosofia adequada à educação secundária deverá

didactizar essas três figuras fundamentais do filosofar. Ou seja, deverá investigaros métodos, os procedimentos, as actividades e os dispositivos que hão-deproporcionar o desenvolvimento e a aquisição dessas competências fundamentais.

No parágrafo seguinte passar-se-ão em revista algumas das actividades edispositivos propostos pelos autores para levar à prática as tarefas de concep-tualizar , problematizar e argumentar.

4. Em consonância com as proposições anteriores, a avaliação em filosofiadeverá ser de natureza predominantemente formativa e não tanto ou apenassumativa. A avaliação deverá fazer parte integrante do próprio processo deensino-aprendizagem.

5. Conhecida a crescente heterogeneidade sócio-cultural e cognitiva do novopúblico escolar, em nome do "direito à filosofia para todos", e em conformidadecom o "postulado da educabilidade filosófica de todos", um imperativo ético edidáctico se impõe: a diferenciação pedagógica.

Enquanto alguns alunos preferem trabalhar em grupo, outros preferemtrabalhar individualmente, enquanto uns retiram mais proveito de uma orientaçãoforte, outros beneficiam mais de um trabalho independente. Os estilos cognitivose as estratégias pessoais de aprendizagem também variam substancialmente de

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aluno para aluno. Por estas razões exige-se do professor de filosofia que diver-sifique os seus métodos e as suas estratégias pedagógicas. A aula expositiva, achamada lição, não pode ser tida senão como uma das muitas possibilidades degerar situações de ensino-aprendizagem.

2. Algumas propostas de concretização dos objectivos nucleares

Eis algumas das propostas de concretização (actividades, procedimentos edispositivos) de cada um dos objectivos nucleares da aprendizagem do filosofarque foram apresentadas nos referidos seminários e "universidades de verão", emMontpellier, entre 1988 e 1992, retomadas na sua maioria por M. Tozzi emApprendre à philosopher dans les lycées d'aujoud'hui.

2.1. Propostas de concretização para a aprendizagem da conceptua-lização

Não há reflexão, nem trabalho filosófico, sem conceptualização. Elevar asnossas ideias ou noções ao nível do conceito é uma exigência básica de todo opensamento rigoroso e, em particular, do filosófico.

Que actividades, procedimentos e dispositivos podem ser utilizados para queos alunos adquiram a capacidade de conceptualizar?

São propostos, de entre outros, os seguintes dispositivos de aprendizagem:1° tipo de exercício . Aproximação linguística. Trabalho sobre a linguagem.

Objectivo: - Clarificação do sentido de uma noção pela explicitação das

palavras que exprimem o conceito.

Tarefas: - Explicitação do significado linguístico corrente de uma noção.

- Exploração da etimologia, da história e/ou da evolução semântica de uma

noção.

- Explicitação do sentido de uma noção mediante a análise dos seus sinó-

nimos e antónimos.

- Distinção dos usos correntes e filosófico de uma noção.

2° tipo de exercício . Aproximação predicativa. Trabalho sobre os atributosde uma noção.

Objectivo: - Elaboração conceptual de uma noção pela determinação da suacompreensão.

Tarefa: -Determinação dos atributos de um conceito e clarificação dasrelações entre esses atributos.

3° tipo de exercício . Aproximação representativa. Trabalho sobre as repre-sentações.

Objectivo: - Superação das representações espontâneas dos alunos porelaborações conceptuais.

Tarefa: - Expressão, por parte do aluno, das suas representações pessoaisespontâneas, seguida de questionamento por confrontação com as dos seus cole-gas, com o professor ou com textos dos grandes autores. Recorre-se ao que hojese designa por conflito sócio-cognitivo.

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4° tipo de exercício . Aproximação extensiva. Trabalho sobre os campos de

aplicação de uma noção.

Objectivo: - Reconstrução conceptual de uma noção como instrumento deinteligibilidade do real.

Tarefa: - Exploração extensiva de um conceito, pela análise da diversidadedos seus campos de aplicação, com vista à sua reconstrução.

5° tipo de exercício . Indução guiada por contrastes.Objectivo: - Construção do conceito de uma noção por identificação lógica

dos seus atributos.Tarefa: - O aluno constrói, por via indutiva e por aproximações e oposições

de exemplos e contra-exemplos, os atributos de um conceito.Diz-se indução guiada por contrastes por se tratar de dispositivos, pre-

viamente concebidos pelo professor, constituídos por conjuntos de elementoscontrastantes a partir dos quais o aluno é levado a organizá-los segundo critériosimplicitamante contidos nos materiais fornecidos.

6° tipo de exercício . Aproximação metafórica. Trabalho sobre materiaissimbolicamente polissémicos.

Objectivo: - Desenvolver a capacidade de pensar por imagens, metáforas,símbolos, etc. com vista ao desenvolvimento do pensamento analógico.

Tarefa: - Formulação do sentido implícito conotado por imagens, símbolos,alegorias, mitos, etc. que evocam certas noções.

O conceito de felicidade, por exemplo, pode ser conotado (ou não) melhor(ou pior) com:- uma cor, como o castanho, por ser uma cor quente, que proporciona

conforto?

- uma música, como a 9° Sinfonia, por ser alegre, que dispõe bem?- um gosto, como o do gengibre, que sendo forte, conota intensidade?- uma emoção, como o amor, que sendo precisas duas pessoas, deseja a

presença dos outros?

Cf. - Apprendre à philosopher dans les lycées d'aujourd'hui, pp. 37-47; e88-92: Contribution à l'Elaboration d'une Didactique du Philosopher, pp 81--101.

2.2. Propostas de concretização para a aprendizagem da problematização

Em filosofia tão importante como a conceptualização é a problematização.A filosofia define-se em boa verdade pelo seu modo específico e rigoroso deformular os problemas - condição prévia e necessária da sua abordagem rigo-rosa e crítica.

Em termos didácticos, ou seja, com vista ao desenho de actividades e dispo-sitivos que permitam a aquisição da capacidade de problematizar por parte dosalunos, pode operacionalizar-se uma tal aprendizagem mediante o percurso dasseguintes etapas:

]'etapa. Questionar , ou seja, tornar problemática ou duvidosa uma deter-minada afirmação, seja ela uma evidência do senso comum ou uma definição.

2° etapa. Descobrir , a partir de uma noção, por detrás de uma questão ou

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na relação entre dois ou mais conceitos, a existência de um problema filosofica-mente relevante.

3° etapa. Formular um problema sob forma alternativa, ou seja, sob uma for-ma que admita mais do que uma resposta ou solução para esse mesmo problema.

4° etapa. Explorar a diversidade das respostas possíveis para um determi-nado problema.

Com esta metodologia pretende-se ajudar o aluno a superar três obstáculosmaiores e mais frequentes:- a suficiência da certeza preconceituosa;- a ignorância ou desconhecimento do que seja um problema filosófico;- a resistência a tomar em consideração o ponto de vista do outro.

Dispositivos didácticos propostos para a aprendizagem da problematização:

1° tipo de exercício.

Objectivo: - Desenvolver a capacidade de questionar filosoficamente umapseudo-evidência ou uma "ideia feita".

Tarefa: - Dada uma "opinião-resposta", encontrar a questão filosófica nelaimplícita.

Exemplo: - Diz-se: - A vida está pré-destinada. O aluno formulará ques-

tões do tipo: - O homem inventa a sua vida?

O exercício decorre em 3 momentos. Num primeiro, individualmente, cadaaluno procurará formular uma ou várias questões perante o enunciado dado(a opinião-resposta). Num segundo momento, em pequenos grupos, cada grupoapurará as melhores questões para a "opinião-resposta" em apreço. Num terceiromomento, em plenário de turma, proceder-se-á à discussão daquelas que são, defacto, questões formuladas filosoficamente.

2° tipo de exercício.Objectivo: - Desenvolver a capacidade de se auto-questionar filosofica-

mente.Tarefa: - Encontrar as questões filosóficas subjacentes às respostas que se

dão comummente acerca de problemas como Deus, a vida, a morte, a liberdade,

o outro, o amor, etc.Exemplo: - Deus é uma invenção do homem. Questão filosófica: - Deus

existe?O exercício decorre como o anterior, em três momentos, com objectivos

semelhantes.3° tipo de exercício.Objectivo: - Desenvolver a capacidade de questionar deforma alternativa.Tarefa: - Cada aluno procura encontrar respostas diferentes das suas para

questões correntes.Exemplo: - Questão: - Há vida depois da morte? Respostas alternativas:

- Não, a morte é o fim. - Sim, pela reencarnação. - Não, pela ressurreição.

4° tipo de exercício.

Objectivo: - Desenvolver a capacidade de explorar diferentes respostas para

uma mesma questão filosófica.Tarefa: - Encontrar respostas diferentes para uma questão filosófica dada.

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Exemplo: - Que atitude perante a morte?Cf. Apprendre à philosopher dans les lycées d'aujourd' hui, pp . 48-52.

2.3. Propostas de concretização para a aprendizagem da argumentação

Uma primeira tarefa da aprendizagem da argumentação consiste em clarificaro que se deve entender por uma argumentação especificamente filosófica.

Complementarmente será necessário discutir o estatuto da prova em filosofiarelativamente a outros modelos de argumentação tais como a demonstraçãomatemática, a verificação experimental, a argumentação jurídica, a persuasãopublicitária, etc. A estas questões foi dedicada atenção particular na "universitéd'été" de 1991, em Montpellier.

Clarificadas estas questões, uma terceira deve ser debatida: - O que podee deve ser exigido aos alunos do ensino secundário em matéria de argumentaçãofilosófica.

Da reflexão havida, chegou-se a um certo consenso sobre as seguintesexigências:- um argumento não pode contradizer-se a si mesmo;- um argumento deve ser coerente com a tese sustentada;- um argumento deve ser coerente com os outros argumentos utilizados na

defesa de uma mesma tese;- um argumento não pode ser reduzido a um exemplo, assentar em expe-

riências pessoais, ou ser constituído por referências ou citações (elementos quepodem ilustrar e ajudar à compreensão, mas que não têm valor filosófico).

Entre os obstáculos mais difíceis de ultrapassar pelos alunos, quando têm deargumentar filosoficamente, encontram-se:- a dificuldade de se descentrarem dos seus próprios pontos de vista (donde

a importância estratégica do recurso pedagógico ao conflito sócio-cognitivo);- a dificuldade de passar da sua particularidade empírica para a razão

universal;- a dificuldade, sobretudo na argumentação oral, de assumir uma postura de

abertura e diálogo, dispondo-se mais a procurar a verdade do que a dominar o,outro.

É proposta até uma "moral provisória" do diálogo argumentativo.Quanto aos dispositivos didácticos para o desenvolvimento da capacidade

de argumentar são propostos quatro tipos de exercícios.1° tipo de exercício.Objectivo: - Compreender o que é argumentar filosoficamente.Tarefa: - Recorrendo à "indução guiada por contrastes", já utilizada para

a aprendizagem da conceptualização, ante uma listagem de argumentos diversos,fazer descobrir ao aluno, pela análise dos contrastes entre argumentos filosóficose não filosóficos, o que diferencia uns dos outros.

2° tipo de exercício.Objectivo: - Argumentar a dúvida.Tarefa: - Encontrar argumentos ou objecções racionais contra uma tese

preconceituosa.

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Exemplo: - Descobrir que o facto de os sentidos nos enganarem algumasvezes é uma objecção à tese que diz que conhecemos a realidade pelos sentidos.

3° tipo de exercício.Objectivo: - Encontrar as teses a argumentar.Tarefa: - Ante um tema-problema sobre o qual são possíveis várias teses,

proceder ao levantamento e formulação das várias teses possíveis.Exemplo: - Perante a questão: - O homem é livre?, que teses se poderão

formular?4° tipo de exercício.Objectivo: - Trabalhar sobre os argumentos.Tarefas:- Encontrar uma contradição de ordem lógica num argumento (nos seus

próprios termos).- Contradizer um argumento mediante um outro argumento do mesmo tipo.- Encontrar argumentos de ordens diferentes. Por exemplo, contradizer um

argumento de ordem económica ou técnica através de um argumento de ordemética.- Encontrar argumentos mais fortes. Por exemplo, contradizer um argu-

mento de ordem legal pelo recurso a um argumento de ordem legítima.Outros exercícios.- Dada uma listagem de argumentos , proceder à sua seriação gradual.- Proceder ao levantamento e hierarquização dos argumentos dum texto

argumentativo.- Construir o esquema geral (ou plano) de argumentação para um exercício

de dissertação.Cf. Apprendre à philosopher dans les lycées d'aujourd'hui, pp. 53-59.

3. Apreciação crítica . Virtualidades e limites do projecto

1. O ensino da filosofia na educação secundária, tanto em França, como noQuebec, ou até em Portugal, vive um dilema grave e encontra-se num certoimpasse.

Ou mantém a sua fidelidade à filosofia e às práticas tradicionais do seuensino, por certo mais consentâneas com a natureza da própria filosofia,

arriscando-se a não atingir senão uma pequena elite culturalmente privilegiada;

ou procura adaptar-se ao novo público, um público de massa, cultural elinguisticamente deficitário, cedendo na sua especificidade, rigor e nível de

exigência intelectual. A escolarização da filosofia é, de resto, uma questão

controversa desde há muito.9Michel Tozzi e seus colaboradores já fizeram uma opção. Decididamente

preferem o compromisso com o novo público e aceitam os custos da democratiza-

9 VICENTE, J. N. - "Subsídios para uma Didáctica Comunicacional no Ensino-Aprendizagem

da Filosofia" in Revista Filosófica de Coimbra, vol.t, n° 2 (1992), pp. 346-348.

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ção do ensino da filosofia, tendo traído, de algum modo, a "filosofia", com asua opção. Uma crítica na qual obviamente se não reconhecem, mas da qual senão podem já esquivar. Ela já chegou. E veio com veemência. 10

Reconhece-se, por isso, neste projecto de uma didáctica específica dafilosofia um grande voluntarismo e um acto de coragem para, por um lado, enca-rar de frente o mal-estar do ensino da filosofia no ensino secundário francês, e,por outro, para desafiar uma pesada herança quanto às metodologias consagradasdo ensino da filosofia.

É na atenção comprometida com o novo público do ensino secundário e na"traição" a urna tradição de 200 anos de ensino da filosofia nos liceus francesesque se hão-de perspectivar as virtualidades e os limites do projecto em apreço.

2. Urna segunda nota de apreciação que nos merece o presente projecto de

uma didáctica específica da filosofia tem a ver com a questão institucional, maisexactamente com a questão dos lugares onde ele está em curso. Parece-nos que

seria mais correcto que o projecto estivesse em marcha num departamento de

filosofia, isto é, adentro de uma UFR. Porque uma didáctica da filosofia deveser antes de mais filosófica, conviria que, de um ponto de vista institucional, ela

esti- vesse na proximidade e sob a vigilância da própria filosofia. 11 Esta mesmatese é defendida por Charles Coutel no texto "Didactique, Pédagogie, Philoso-

phie" publicado em La Philosophie et sa Pédagogie. A reflexão acerca do ensino

e da didáctica da filosofia deve ser considerada um momento da própria reflexão

filosófica. Assinalámos já algumas das razões que explicam a resistência dosfilósofos à didáctica da filosofia.

3. Mais importante do que a questão dos lugares e das instituições onde oprojecto faz o seu caminho é o dos seus fundamentos e suportes teóricos. Porisso, uma terceira nota de apreciação crítica vai para as proposições para umadidáctica da filosofia, antes assinaladas, e para os seus pressupostos.

Ao afirmar-se que o objecto do ensino da filosofia na educação secundáriaé a aprendizagem do filosofar, atribui-se a cada um dos termos um significadomuito particular que importa discutir criticamente.

Diga-se, em primeiro lugar, que não se encontra em toda a documentaçãoproduzida uma explicitação suficiente do que se entende por filosofar. Ficaapenas uma definição operativa: - Pensar filosoficamente é ser capaz de trêsoperações intelectuais coordenadas: conceptualizar, problematizar, argumentar.

111 COUTEL, Charles - "Pédagogie , Didactique , Philosophie " in AA VV - La Philosophie etsa Pédagogie . CRDP de Lille, 1991, pp . 53-73; e BILLARD, J. - "Sciences de l'éducation etpédagogie de Ia philosophie " in L'Enseignement Philosophique , 43/4 (1993), pp. 39-63.

11 Entre nós , a solução institucional encontrada há alguns anos com a criação do RamoEducacional das Faculdades de Letras é, por estas razões, mais acertada. Sempre nos pareceu queas Faculdades de Letras ( e as outras também) se não podem alhear do destino e do modo como sãotranspostos para os outros níveis de ensino os saberes que nelas são investigados . De resto, a soluçãoencontrada entre nós é reconhecida por várias autoridades universitárias estrangeiras como a maisapropriada . Presentemente , em França , a solução encontrada com a criação dos IUFM que gozamde autonomia relativamente aos departamentos de formação científica original está a revelar - se muitopreocupante.

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O mínimo que se poderá dizer é que uma tal definição é controversa e insu-ficiente.

Controversa e insuficiente por reduzir o pensamento, independentemente deser filosófico ou não, às três operações referidas. O pensamento é uma totalidadecomplexa, global e unitária, não decomponível mecanicamente numas quantasoperações intelectuais ou nuns tantos processos cognitivos.

Controversa e insuficiente também por pressupor uma independência dasoperações e dos processos cognitivos relativamente aos conteúdos. Em todas asáreas disciplinares há conhecimentos básicos que configuram epistemolo-gicamente esses saberes específicos e sem os quais já não se pode falar em Física,Matemática, Geografia ou Filosofia. Em filosofia esta separação é particular-mente grave. Não há iniciação ao filosofar que não exija uma cultura e umainformação filosóficas que incida sobre os textos e os autores clássicos e actuais.Sem esta referência fundamental já não estamos em filosofia, mas fora dela.

Controversa e insuficiente ainda por reduzir a aprendizagem do filosofar àsua dimensão puramente formal ou técnica. Reduzir os objectivos do ensino dafilosofia aos três objectivos nucleares assinalados (conceptualizar, problematizare argumentar), por mais importantes que sejam (e são-no efectivamente), seriareduzir a filosofia a uma sofística. De resto, essas operações constituiram já abase curricular do programa sofista. Elas podem também ser tomadas, hoje, comoos grandes objectivos de um qualquer programa de retórica ou de um qualquercurso de argumentação persuasiva. O Programa "Filosofia para Crianças"de Matthew Lipman ou o "Projecto Inteligência" da Universidade de Harvardregem-se por objectivos e pressupostos semelhantes.

Controversa e insuficiente, para terminar, porque, mesmo do ponto de vistaformal ou técnico, seria necessário acrescentar aos três objectivos nuclearesoutros igualmente indispensáveis ao trabalho filosófico, tais como a análise ecomentário de textos, a dissertação, etc.

Diga-se, em segundo lugar, que não se encontra em toda a documentaçãopublicada até ao presente uma resposta para as questões primeiras que umadidáctica da filosofia levanta e que o próprio M. Tozzi, num artigo publicado

em 1989, no n° 270 dos Cahiers Pédagogiques, 12 colocou nos seguintes termos:" - Uma investigação em ciências da educação será filosoficamente

autorizada em didáctica da filosofia?- Uma vez que a filosofia se situa ao nível do fundamento e não podendo

receber fundamento senão de si mesma, poder-se-á fazer uma investigação em

didáctica da filosofia que não seja filosófica?- Poderá haver lugar a uma didáctica da filosofia que não seja

prioritariamente filosófica?- Poderá haver lugar a uma didáctica da filosofia que não pressuponha uma

determinada filosofia da educação?

12 TO2ZI, M. - "Vers une didactique de Ia philosophie" in Cahiers Pédagogiques , 270 (1989),

p. 17.

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- Que seria um ensino da filosofia subordinado a uma técnica ou a umaciência senão um positivismo?"

A estas dificuldades a documentação produzida nos últimos anos ainda nãodeu, de facto , resposta satisfatória . Aquilo a que assistimos , de 1989 para cá, foia uma fuga para a frente com a elisão destas questões. E enquanto elas nãotiverem uma resposta e uma solução filosoficamente aceitáveis , corre -se o riscode edificar uma bonita construção sobre terrenos movediços ou uma linda estátuacom pés de barro. A didáctica que nos é proposta - uma didáctica construída amontante da filosofia - é uma didáctica que ainda só está edificada em sede derazão técnica ou instrumental, mas não ainda em sede de razão filosófica . Poder--se-á dizer que é urna didáctica para a filosofia (e reúne elementos relevantespara o efeito, que não pomos em causa ), mas não será, por certo, ainda umadidáctica (própria) da filosofia.

4. A centração da aprendizagem do filosofar nos processos cognitivos e nas

destrezas intelectuais , praticamente à margem dos conteúdos , encontra o seu

suporte teórico no paradigma cognitivo (J. Piaget , J. Bruner , D. Ausubel,

E. Eisner e outros) que veio substituir , nos anos 70, o paradigma condutista

(B. Bloom e "Pedagogia por Objectivos"), vigente nos anos 60 e centrado nos

comportamentos e resultados esperados, paradigma que havia substituído , por sua

vez, o paradigma tradicional (centrado nos conteúdos ). À luz do paradigma

tradicional , eram os conteúdos que tinham carácter formativo. Privilegiava-se

uma lógica epistemológica . A educação escolar sobrevalorizava a instrução ou

transmissão de conhecimentos . À luz do paradigma cognitivo, aquilo que a

educação escolar deve privilegiar é antes o desenvolvimento cognitivo, ou seja,

o desenvolvimento dos processos da cognição e a aquisição de destrezas inte-lectuais e estratégias de aprendizagem . Foi à luz deste modelo que surgiramdeclarações pedagógicas do tipo: O que é preciso é "aprender a aprender","aprender a pensar" . Trata-se, com certeza , de uma proposta merecedora de todaa atenção , ainda que crítica.

A investigação dos processos cognitivos e das destrezas intelectuais exigidaspelas aprendizagens escolares , seguida da concepção de instrumentos , dispositi-vos e actividades que levem à aquisição desses processos cognitivos e destrezasintelectuais apresenta -se-nos como uma área que deve merecer por parte dasdidácticas uma atenção particular . Este é um dos méritos do projecto em apreço.

As práticas tradicionais do ensino da filosofia ( e das outras disciplinastambém ) ignoravam por inteiro a questão dos processos cognitivos, centrando--se apenas nos conteúdos . As investigações no domínio das ciências cognitivase em particular na Psicologia Cognitiva (um dos suportes teóricos maiores dasdidácticas específicas) trouxeram - nos uma outra consciência da sua importânciae da necessidade de os trabalhar didacticamente . A par de objectivos cognitivos(relacionados com os conteúdos ) é necessário atender e formular objectivos decarácter metacognitivo , relativos ao desenvolvimento dos processos da cognição,à apropriação de estratégias de aprendizagem e à aquisição de técnicas einstrumentos de trabalho intelectual.

Nisto reside a maior virtualidade do projecto de uma didáctica da filosofiatal como está a ser desenvolvido por Michel Tozzi e seus colaboradores.

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O reconhecimento desta virtualidade não nos pode, no entanto, fazer esqueceros limites apontados.

5. À parte as virtualidades e os limites do projecto, uma das questões maio-res que ele suscita, com interesse redobrado para o caso português, pelas razõesque se adiantarão, é naturalmente a do lugar e do papel da filosofia na escolae, mais concretamente, na educação secundária. O ensino da filosofia no secun-dário é uma especificidade genuinamente francesa, acompanhada de perto porpaíses ou regiões de influência francesa como o Quebec, alguns cantões suiçose um ou outro país do norte de África; e acompanhada de longe por outros paísescomo a Espanha ou a Itália que só incluem a filosofia no curriculum escolar dosalunos de humanidades. Portugal será o país do mundo onde a filosofia ocupamais importância curricular no ensino secundário. Todos os alunos do ensinosecundário português frequentam, pelos menos durante dois anos a disciplina deIntrodução à Filosofia, e alguns podem frequentá-la durante três anos. EmFrança, como no Quebec e em alguns cantões suiços, a filosofia é, de facto,disciplina curricular para todos os alunos do secundário, mas apenas durante umano e com carga horária semanal muito diferenciada (desde 2 a 8 horas semanais,consoante as áreas de estudo). Relevante é ainda o facto de a Filosofia ser objectode ensino-aprendizagem naqueles países apenas no último ano do ensino secun-dário, no BAC, cuja idade média dos alunos anda à volta dos 17/18 anos. EmPortugal, os alunos têm a sua Introdução à Filosofia aos 15 anos de idade, logono 1° ano do ensino secundário.

Esta especificidade portuguesa traz acrescidas dificuldades e levanta proble-mas muito particulares. Os deficits linguísticos e culturais dos alunos saídos daescolaridade obrigatória são maiores, a maturidade cognitiva e intelectual estáainda em fase de consolidação, as capacidades de abstracção são ainda precárias,os hábitos de estudo, as estratégias de aprendizagem, assim como as compe-tências de leitura compreensiva e de expressão discursiva estão ainda, em boaparte, por adquirir.

Ora, o ensino da filosofia e o filosofar pressupõem como suas condições depossibilidade a aquisição daquelas exigências e competências intelectuais. Nãoestando adquiridas, uma didáctica da filosofia adequada aos nossos jovens temde re-equacionar o que fazer da e com a filosofia. A argumentação de M. Tozzie seus colaboradores a propósito da alteração quantitativa do público escolarfrancês é também pertinente entre nós e é-o mais ainda no que diz respeito àqualidade, consideradas a diferença de idade (2 anos) e sobretudo a diferençaintelectual e cognitiva. Convenhamos que frequentar filosofia logo após a escola-ridade básica ou no ano terminal do ensino secundário acarreta consequências

pedagógicas enormes.

Por estas razões, cremos que está cometida à disciplina de Introdução àFilosofia, a par do ensino-aprendizagem da filosofia e do filosofar e por seuintermédio, o desenvolvimento das competências atrás referidas como condiçõesde possibilidade do próprio ensino-aprendizagem da filosofia e até de outrasmatérias que exigem maior maturidade intelectual.

Cremos também, pelas mesmas razões, que os objectivos da Introdução àFilosofia têm de ser não apenas de natureza estritamente filosófica, mas também

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de natureza metacognitiva . A par dos conteúdos programáticos impõe-se umaatenção particular ao desenvolvimento de competências cognitivas e intelectuaisdiversas.

E cremos ainda que os professores de filosofia , uma vez sensibilizados e pre-parados para trabalhar esta outra dimensão do ensino-aprendizagem , poderão(e deverão ), sem trair a especificidade da filosofia , contribuir para o desenvol-vimento e aquisição daquelas competências.

O problema a equacionar em Introdução à Filosofia deixa assim de ser

apenas o de saber qual a função de uma educação e de uma formação filosóficas,

mas também o de saber qual o lugar e a função da disciplina na educação e naformação geral dos alunos no nosso ensino secundário . De resto, institucio-nalmente, o desafio está feito. Quando o curriculum atribui às disciplinas dePortuguês e de Introdução à Filosofia o lugar de disciplinas de formação geral,os professores de Filosofia e de Português não podem deixar de equacionar o

que é que lhes é assim pedido.

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