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Substancialismo versus procedimentalismo: discussões sobre a legitimidade da
jurisdição constitucional
Newton de Oliveira Lima
Mestre em Direito Constitucional pela UFRN.
RESUMO: A legitimidade da jurisdição constitucional passa pela estruturação de uma
jurisdição constitucional que possa abrigar elementos das posições substancialista e
procedimentalista, a primeira ativista e defensora de uma concretização dos valores
constitucionais, a segunda com uma visão democrática no processo de construção dos
direitos fundamentais.
ABSTRACT: The legitimacy of the constitutional jurisdiction passes for the
construction of a constitutional jurisdiction that can shelter elements of the
substancialist and procedimentalist positions, the first activist and defender of a
concretion of the values constitutional, second with a democratic vision in the process
of construction of the basic rights.
PALAVRAS-CHAVE: jurisdição constitucional – substancialismo – ativismo judicial
– democratização constitucional – legitimação constitucional.
KEY-WORDS: constitutional jurisdiction - substancialism - judicial ativism -
constitutional democratization - constitutional legitimation.
SUMÁRIO: 1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional. 2. Jurisdição
constitucional e legitimidade. 2.1. Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição
constitucional. 2.2. Posição de Carl Schmitt sobre a jurisdição constitucional. 3. Fatores
de legitimação da jurisdição constitucional. 3.1. Valor constitucional e hermenêutica.
3.2. Processualismo democrático e processo constitucional. 3.3. Propostas de
reconstrução da legitimidade da jurisdição constitucional: diálogo com o sistema norte-
americano. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional
A idéia de uma jurisdição constitucional passa pela articulação de elementos 1)
Estritamente processuais, como ações e procedimentos previstos diretamente na
Constituição ou em leis infra-constitucionais, mas complementares a matéria
constitucionalmente prevista, a ser desenvolvidos por cidadãos como garantias de seus
direitos; 2) Por competências de julgamento de determinados órgãos jurisdicionais,
expostas num quadro de previsão e divisão legal de funções.
A jurisdição constitucional engloba uma série de estruturas de julgamento sobre
matérias previstas na Constituição, e cujo núcleo fundamental seria exatamente os
direitos fundamentais do cidadão – inseridos na parte de direitos e garantias das Cartas
Constitucionais.
Se a jurisdição constitucional está em estrutura de adequação e proteção
concretizadora de direitos e garantias fundamentais, implica reconhecer a cidadania e a
função social da pacificação de conflitos e de implementação do bem comum como sua
meta primacial.
No Brasil, a jurisdição constitucional como função-estatal de judicatura de
máxima precedência sobre as demais julga a matéria constitucional, devendo ser a
guardiã de uma possibilidade processual de ação do cidadão e conter uma pauta de
textualidade normativa capaz de conferir ao cidadão a sua ação positiva (instrumentação
processual) contra desmandos principalmente do próprio Estado.
A estrutura normativa que integra a Constituição expressa-se principalmente em
termos de direitos subjetivos públicos e garantias individuais como corolários destes
últimos. As garantias devem ser concretizadas mediante instrumentos do processo
constitucional.
A estrutura da garantia constitucional implica, pois, uma esfera judicial
constitucional como espaço de processamento das demandas oriundas da
constitucionalidade da causa de pedir.
Uma jurisdição constitucional deve, portanto, assegurar acessabilidade ao
cidadão a partir da construção de direitos fundamentais oriundos da sua possibilidade de
agir.
Deve ainda, a jurisdição constitucional, possibilitar meios de instrumentação e
defesa, bem como respostas judicativas condizentes com o nível de exigência das
demandas sociais, da cidadania e da dignidade humana – assim far-se-à a construção
de uma legitimidade decisória capaz de ser afeita ao reclamo de justiça presente na
sociedade enquanto sentimento difuso de igualdade e de bem-estar das pessoas, ainda
que tal conceito do ‘justo’ seja provisório e mutável para as concepções desenvolvidas
mais adiante no presente artigo.
Claro que essa processualização de direitos e garantias deve ser construída com
fulcro na implantação de formas de participação do cidadão e de democratização em
máxima extensão possível da interpretação constitucional, seguindo a idéia de Häberle
(1997, p.38).
Ora, a questão central que permeia as discussões sobre a legitimidade da
jurisdição constitucional nas democracias modernas é que deve existir uma abertura de
democratização na sua tutela judicial a fim de interligá-la aos processos políticos
dominantes socialmente e responder às exigências de implementação de condições de
igualdade e oportunidade universais.
Daí a perspectiva discursiva esclarecedora que se busca implementar com a
confrontação das concepções substancialista e procedimentalista de jurisdição
constitucional, pois a construção da legitimidade do judiciário implica num diálogo com
dois caminhos de legitimação: a aceitação de valores formais-procedimentais ‘abertos’
na Constituição, com a processualização de seus conteúdos, e a concretização de
direitos fundamentais por uma atividade hermenêutica concretizante da normatividade
constitucional.
Assim, a hermenêutica da jurisdição constitucional vincula-se genericamente
com sua acepção de concreção de valores constitucionais: se democratizante e
processualista, inclina-se mais para uma idéia de jurisdição procedimental, se axiológica
e ativista-concretista, para a idéia de uma jurisdição substancialista.
Dialogando com os paradigmas de ambas as correntes é que se buscará analisar
adiante, com a colocação das visões em conflito e as posições de convergência e
possibilidades aproximativas de ambas, a referência das mesmas ao problema central da
legitimidade da jurisdição constitucional.
2. Jurisdição constitucional e legitimidade
2.1. Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição constitucional
O tema da legitimidade, enquanto fenômeno jurídico de efetividade global do
ordenamento jurídico e o respeito pelo mesmo no contexto de sua incidência social,
insere múltiplas análises de cunho político, sociológico, axiológico etc, porém no
presente trabalho científico será analisada sucintamente de modo introdutório ao tema a
posição de Hans Kelsen e o confronto da mesma com a visão de Carl Schmitt, ambas
matrizes das discussões que serão conduzidas no âmbito da teoria da legitimação da
jurisdição constitucional no decorrer do século XX e prólogos do século XXI.
É longo o processo de desconstrução da legitimidade em termos de vinculação
com fundamentos absolutos – baseado na religião, na ética, no dever, enfim, tudo isso
na torrente de laicização progressiva e radical que gerou a crise da legitimidade política
do Estado Moderno, e a um tempo a gestação de um direito positivo com validade cada
vez mais auto-referente.
O pós-positivismo em geral buscou estudar o direito em vista de suas
fundamentações pós-metafísicas e predominantemente vinculadas com a problemática
de um direito estatal, não se deixando influenciar pela torrente axiologista, sociologista
ou culturalista predominantemente.
Para conhecer as bases do pós-positivismo aplicável ao constitucionalismo é
necessário remontar a Kelsen, que sintetizou e levou ao máximo desenvolvimento a
posição positivista até sua época, admitia a função legitimadora da norma fundamental
quando se apercebia da questão da necessidade da adesão política à ordem jurídica
vigente por parte dos cidadãos, os quais teriam que aderir ao comando normativo para
fazer valer materialmente o conteúdo do Direito.
Assim, o problema da legitimidade da norma jurídica num sentido social, ao
querer-se definir o campo de incidência tal como aqui pretendido, é realmente uma
questão que assume o fator de uma problemática resolvida por Kelsen num sentido de
enquadramento com a normatividade pressuposta ao sistema do ordenamento, que
através da coerção garante sua eficácia e, conseqüentemente, sua legitimidade.
Para Kelsen, como diz Agra (2005, p. 62), a jurisdição constitucional tutelaria a
defesa da normatividade constitucional de um ponto de vista que resguardasse o
pluralismo democrático e a construção de procedimentos de análise e de descrição dos
conflitos no âmbito da autonomia e sistematicidade do ordenamento jurídico.
A situação em que o positivismo encontra o direito no século XX, e a tentativa
de justificá-lo utilizando categorias da análise estrutural do direito kelseniana, esbarra
nos conflitos intestinos da democracia, voltada para a multiplicidade de
posicionamentos e a crítica dos fundamentos “estabilizados”, bem como nas relações de
poder e suas acomodações (ADEODATO, 1989, p.3).
O fato é que a idéia de construção de uma jurisdição constitucional em Kelsen
estruturou o paradigma da formalidade procedimental, da construção de procedimentos
de análise dos conflitos, de apreço pelo relativismo democrático e pela segurança
jurídica do procedimento discursivo, enfim, na vinculação entre positividade da ordem
constitucional e a sua estruturação processual e democrática.
A idéia de jurisdição constitucional em Kelsen, como assentada na legitimidade
de discussão entre juízes e partes mediante um processo foi ampliada e modificada por
Häberle, principalmente por influencia de Karl Popper e sua idéia de “sociedade aberta”
(SILVA, 2005), para uma sociedade aberta de intérpretes com plena confiança numa
cidadania ativa e participativa, capaz de instrumentalizar conquistas democráticas no
espaço público.
Essa corrente desenvolve-se na preocupação da legitimação do direito em
Habermas (BINENBOJM, 2004, p.114) ao expor a tensão entre faticidade e validade e a
busca pelo aprofundamento crítico-discursivo que desconstrói e reconstrói fundamentos,
buscando legitimar-se no seio de uma sociedade plural e internamente contraditória e
plural (capitalismo pós-industrial, HABERMAS, 2002, p.25) – com certeza valoriza os
âmbitos da validade interna e vinculação sócio-psíquica como topoi discursivos
relevantes, porém não exclusivos e finalizantes para o debate em torno da legitimidade
do direito na pós-modernidade.
Assim, a perspectiva da existência e função da jurisdição constitucional aparece
nesse horizonte de dificuldade e carência da legitimidade jurídica nos séculos XX e
XXI. Se a jurisdição constitucional nasceu exatamente contra as maiorias parlamentares,
como mostra Binenbojm (2004, p.24), em Kelsen emerge o esforço de ligação entre
Estado Democrático de Direito e interpretação e proteção da Constituição como
construção de estratégias no campo democrático e cívico.
A jurisdição constitucional procedimentalista em suas linhas de
desenvolvimento as mais diversas irá beber na fonte kelseniana, desde John Hart Ely até
Carlos Santiago Nino, passando pelo importante reforço em Habermas e sua teoria do
agir comunicativo e da comunidade de comunicação, o que incitou perspectivas
processualistas e democratizantes no âmbito do direito.
O fato é que Kelsen travou com Carl Schmitt, o kronjurist (jurista da coroa) do
nazismo, a batalha central acerca da fundamentação e estruturação da legitimação do
sistema de jurisdição constitucional, pois percebe-se que Schmitt desenvolveu um
sistema de proteção para a Constituição despindo-se da tradição do racionalismo
universalista e democrático kantiano, do liberalismo democrático e do positivismo
formalista e metodológico tão caro a Kelsen.
2.2. Posição de Carl Schmitt sobre a jurisdição constitucional
A partir da crítica à metodologia formalista e positivista de Kelsen, e ao sistema
político-democrático parlamentar e liberal dominante desde o início do Século XX na
Europa, Schmitt traça uma novel visão sobre o sistema de proteção das normas e da
interpretação constitucional, o que remete para a situação da doutrina jusfilosófica
alemã no período das primeiras décadas do século XX.
Hegel, pai do idealismo absoluto, com sua doutrina de que o Estado é o
mediador, é a síntese entre o conflito de dois entes opostos que são a família e a
sociedade civil, levou a uma supervalorizacão do estatismo como instrumento de
resolução dos conflitos sociais na Alemanha desde Bismarck e o fortalecimento do
Estado Alemão unificado.
Para o hegelismo o Estado era o próprio Absoluto encarnado na História, a
entidade máxima que os homens deveriam obedecer se quisessem encontrar a paz. Em
decorrência do historismo hegeliano, mas sem o caráter estatolatra desse último,
desenvolveu-se a ‘Escola Histórica Alemã’ de Savigny e Puchta, a qual apregoava que o
ordenamento jurídico deveria formar-se a partir do “espírito do povo’’ (REALE, 1998,
p.50); só assim ele teria uma legitimidade concreta.
Ora, tanto hegelianos como historicistas viam no direito uma continuação da
política como processo público integral, material, voltado para a construção de uma
interpretação francamente social, favorável à efetivação de valores sociais e
comunitários pela juridicidade coordenada por um processo político dominante,
nacionalista e público, fortemente impregnado de uma carga ideológica e axiológica.
A tradição de valorização do papel da política influiu na própria formação do
positivismo alemão, pois marcou a carga estatista o positivismo, com o
neocontratualismo de Bierling, que concebia no estatismo e seu reconhecimento pelo
indivíduo a origem da atividade jurídica (REALE, 1998, p. 16).
Amparados por tão longa tradição de amor e culto ao Estado e à Vontade, não
era muito difícil que membros da escola neo-romântica do Direito como Hoehn e
Dietrich, aderissem à ideologia nazista (REALE, 1998, p.260), a qual apregoava que a
submissão do indivíduo ao poder estatal era o modo peculiar pelo qual a vontade
popular teria de expressar-se.
Unindo vontade e poder, os hitleristas punham em prática idéias do hegelismo e
do historicismo jurídicos. Não foi à toa que um jurista portentoso como Karl Larenz viu
no Estado hitleriano a realização do “Estado Ético” de Hegel; Carl Schmitt, Otto
Kollreutter, e outros, associaram a teoria da “alma rácica” do ideólogo nacional-
socialista Rosemberg, ao Volksgeist de Savigny, e ao Geinschaft (Comunidade racial)
do sociólogo Ferdinannd Tönnies, formando então a teoria da Volksgemeinschaft
(Vontade da comunidade racial), expressão sócio-política da criação intelectual
adesionista ao nazismo (REALE, 1998, p.261-263).
A tradição axiologista da filosofia alemã deve também possuir um papel
importante nesse sentido, e o reforço que na década de XX a filosofia dos valores
essencialista e fenomenologia de Max Scheler concedeu à teoria axiológica em diversos
campos afetou também o direito gerando uma série de acepções substancialistas e
essencialistas para o Direito, com influências sobre o Tribunal Constitucional alemão,
como mostra Habermas (2003, p.315).
Se para o hegelismo o ser humano é apenas um momento do Absoluto, e para o
historicismo romântico ele é tão-somente o realizador da vontade da comunidade, não
existe idéia de relativismo axiológico democrático nem formalismo legal que resista à
materialidade de tal acepção de direito constitucional. A fenomenologia da norma
revelaria uma essência a ser revelada pelo processo de interpretação (LARENZ, 1997).
Ora, uma concepção de constitucionalidade fica dependente da noção de uma
Constituição material e política, já propalada por Lassalle (1988, p.11) e deve, pois,
fazer-se a proteção da Constituição em função de uma acepção político-material em
consonância com a carga axiológica dominante socialmente.
Oriundo e vinculado a esse contexto jusfilosófico, Carl Schmitt só poderia
contrapor-se a Kelsen em defesa de um pensamento jurídico “autenticamente alemão”, e
não ao positivismo neokantiano de clara ascendência francesa do judeu Hans Kelsen.
Ora, Kelsen defendera uma democracia pluralista e parlamentar, e um órgão
formal em defesa da constitucionalidade. Schmitt, contrariamente, apregoava a noção de
uma “política total”, desconfiava e criticava a capacidade de legitimidade da democracia
parlamentar (SCHMITT, 2007, p.65), daí concebendo que somente um processo
político forte e axiológico seria capaz de implementar uma defesa integral, eficaz e,
conseqüentemente, legítima da constitucionalidade.
O problema da legitimidade parece mais sensível a Schmitt, tanto, que defende
que a guarda da Constituição seja realizada como processo político dominado pelo
Führer (líder) enquanto representante da nação alemã. Quem tem o poder deve decidir;
quem tem a força possui a legitimidade segundo Schmitt (MACÊDO, 2001, p.66).
Assim, somente o homem forte do Estado, guardião da ordem axiológica material e
repositário da legitimidade política, pode ser o protetor da Carta Constitucional
(MACÊDO, 2001, p.67).
Na senda traçada por Schmitt, a força da concepção política, material, social e
axiológica da jurisdição constitucional, por assim dizer substancial, desbastaria a ilusão
da formalidade do individualismo e da relatividade das concepções políticas
democratizantes liberais defendidas por Kelsen (SCHMITT, 2007, p. 62).
Para Schmitt, a jurisdição constitucional é um processo político, porque a
constituição do Estado é da mesma natureza. Ora, a própria noção de substância1
assoma aqui com toda a força, pois ela é substancia de valores resguardados na textura
da lei, mas de modo algum formalista, por outro lado, é material e axiológica, e objetiva
enquanto realidade social e politicamente efetivável. O Estado para Schmitt teria de ser
‘total’ e, conseguintemente, impor valores totalizantes para a sociedade.
Totalmente legítima em suas bases políticas reais e materiais, a jurisdição
constitucional assim concebida seria a efetividade de um processo político de defesa e
implementação de valores substanciais (SCHMITT, 2007, p. 62).
Dürig foi outro jurista alemão que defendeu a jurisdição constitucional
substancialista com base numa ordem de valores que teria por núcleo a dignidade
humana, o que influenciou demasiadamente o Tribunal Constitucional Federal.
Quem defendeu com primor uma jurisdição substancialista refletindo valores
absolutos foi Rudolf Smend, um jusfilósofo vitalista e fenomenólogo, para quem a
Constituição é essencialmente ordem de valores dentro de um Estado como um super-
homem capaz de assegurar a integridade da ordem social (KELSEN, 2003, p.33).
A concepção de Smend foi também atacada por Kelsen em função de sua visão
essencialista e metafísica, sendo Kelsen (2000, p.166) um relativista democrático que
fundamentou a jurisdição constitucional na legitimação democrática e na legalidade
(KELSEN, 2003, p.110).
1 Substância, filosoficamente expondo, é categoria da metafísica da tradição aristotélico-tomista para definir propriedades de algo que é constante, determinado, em–si. Assim, o homem é substância racional, possui a determinação de substancialidade intelectiva (Aristóteles-Tomás de Aquino). Na teologia cristã, Cristo é consubstancial (consubstancialem patris, está no Credo) ao Pai, então, é substância e não acidente, assim, substantivo é aquilo que linguisticamente é próprio, definido. A vinculação do conceito de substância com o conceito de essência é também patente: a essência de algo é substantiva, tem por propriedade a constância, a imutabilidade, isso também na tradição platônica a essência ideal do mundo é substancial num sentido de fundamento transcendente. Não é por acaso que a concepção de essência de valores desenvolvida por Scheler é ideativa-essencialista, porque são substâncias e não acidentes os valores ideais. Para quem aplica isso ao direito, os valores jurídicos são essenciais como uma concepção de valores materiais do justo, da dignidade humana, da moralidade, como no Radbruch da segunda fase fenomenologista e metafísica, especificada em sua Filosofia do Direito. Trad. Luis Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p.214.
O fato é que a tradição de encarar a Constituição de maneira substancialista
perdurou na visão dos chamados juristas concretistas e a vitória do constitucionalismo
como movimento ideativo do direito na década de 70 do século passado perfez um
itinerário de construção de teorias concretistas e estruturantes da norma constitucional,
levando em conta o sistema de valores por ela propugnado, principalmente na
concepção de densificação de princípios como vontade de concretização constitucional
em Konrad Hesse (1991, p. 19).
O que ficou como conseqüência do debate entre Kelsen e Schmitt ? Essa é
pergunta que deve nortear o estudo daqui em diante. Ora, se do debate perdura a posição
que uma construção de direitos fundamentais com fulcro na interpretação da
constitucionalidade, numa clara hermenêutica de concreção de normatividade, então,
quem defende a concretização antes do debate e da problematização hermenêutica e
democrática (por assim dizer constantemente reconstrutiva do texto constitucional),
pode ser considerado um substancialista, pois entende que o texto da norma
constitucional ‘porta’ valores – isso continua a tradição hegeliana-scheleriana da norma
jurídica como realidade que possui wertränger (portar, conter valores).
Concebendo-se a norma constitucional como portando valores, possuindo
valores intrínsecos, ela então constituiria, à luz da tradição filosófico-metafísica, algo
substancial.
Nesse sentido, enquanto Kelsen defendia uma jurisdição “aberta” a sínteses
hermenêuticas na estrutura da pluralidade democrática, mas tutelados e protegidos
através de um processo constitucional estruturado perante e através de uma jurisdição
constitucional, Schmitt apregoava uma jurisdição “substancial”, portadora de valores a
ser defendidos e concretizados pelo processo político.
Ora, assim concebendo a questão é importante o debate entre a tópica de
Viehweg e o sistematicismo de Canaris, pois enquanto o primeiro problematiza os
valores constitucionais (CANARIS, 1996, p.252), o que deu origem ao método de
pluralidade hermenêutica em Häberle, o segundo sistematizada e constrói o sistema
constitucional em uma hermenêutica unificadora da estrutura de sentido
(fenomenologia) dos valores, interpretando-os em consonância com a globalidade do
sistema jurídico (CANARIS, 1996, p.86).
Essa hermenêutica estruturante de valores influencia o debate sobre a
concretização constitucional, e reforça a filosofia de uma Constituição “portadora de
valores”. Quem concretiza, concretiza algo, então, algo há de pré-decidido na
normatividade constitucional, cabendo à jurisdição substancialista, por vezes aclamada
de socialmente ‘protetora’ sob o influxo do Welfare State, concretizar valores
constitucionais num processo que, assim como nos regimes políticos autoritários,
continua ser de mão única: de cima para baixo, do judiciário constitucional ético-
axiológico para a desprotegida e injustiçada sociedade.
Pergunta-se : e o papel de co-construção desses direitos que essa última deve
exercer através da cidadania participativa e interpretativa-construtiva dos direitos
fundamentais e sociais, onde situa-se ?
No Brasil, as correntes concretistas deixam-se seduzir pela ideologia do poder ao
apregoarem uma jurisdição constitucional substancialista, axiologista, com um
judiciário constitucional atuante, ético, valorativo. Pergunta-se com Bruce Ackerman
(1998, p.4): E nós, o povo ?
Na verdade, como assevera Mônia Leal (2007, p.143) continuamos a tradição da
jurisdição constitucional alemã, seguida pela maioria das jurisdições constitucionais do
Ocidente no pós-II Guerra, de preconizar uma constitucionalidade valorativa e
“material”, à exceção da jurisdição constitucional norte-americana, do tipo democrático-
liberal-organizatória2.
O fato, assim, sinteticamente, é que o fundamento último das concepções sobre
jurisdição constitucional que possuem o viés substancialista é serem “racionalmente
fortes” como diz John Rawls (2000, p.35), ou axiologicamente ‘materiais’, como
expressa Habermas (1997, p. 315).
Numa sociedade multicultural e pós-metafísica, conceber-se valores absolutos e
substanciais, é uma posição difícil de ser defendida à luz de uma racionalidade
procedural e crítica, exatamente porque não existem mais fundamentos gnoseológicos
2 O que, segundo a autora, não impediu a Suprema Corte de atuar com poder normativo e construtivo da legislação, citando para isso o caso Allgeyer v. Louisiana, 165 U. S. 578, 589 (1987). Cf: LEAL, Mônia Clarissa Henning. Jurisdição Constitucional Aberta: Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.143.
que garantam tal posicionamento. Não é possível falar de fundamentações num sentido
rigoroso filosoficamente, mas apenas de argumentações, como diz o maior
neopragmático norte-americano, Rorty (2001, p.32), só existem justificações e fatos.
Então, nessa senda, seguida por Alexy, Nino entre outros, somente pode fazer-se
de uma filosofia jurídica procedimentalista e racionalista-argumentativa, assim como no
constitucionalismo o paradigma racional-discursivo predomina, devendo
institucionalizar-se o direito constitucional como discursivo (ALEXY, 2007, p.12).
A razão em uma jurisdição constitucional deve ser procedimental, aberta a sínteses
construtivas de valores, pois o conteúdo não é de modo algum dado previamente por
uma pauta político-axiológico determinante, mas é re-construído a cada momento como
fator de recuperação racionalista dos sentidos de aplicação da norma constitucional pelo
processo de argumentação, seja na comunidade ideal de comunicação (Habermas) seja
no auditório universal (Perelman), conforme mostra ATIENZA (2000, p. 110).
Como fator de legitimação da jurisdição aberta não é mais valores ou ideologia
política dominante, é assaz relevante discutir o paradigma de legitimação na visão
procedimentalista ou ‘aberta” da jurisdição constitucional.
3. Fatores de legitimação da jurisdição constitucional
3.1. Valor constitucional e hermenêutica
O fator de legitimação jurídica pelo procedimento (Luhmann) ou pelo processo
de racionalidade comunicativa (Habermas) implica no reconhecimento de
institucionalização da racionalidade jurídica. Ora, a concepção de se construir um
direito pela racionalidade procedimental implica necessariamente uma abertura no
sentido argumentativo a todos os partícipes do processo democrático, à totalidade dos
cidadãos, o que para alguns autores, implicaria na própria supressão da idéia de
jurisdição constitucional (LEAL, 2002, p.98) e sua substituição por constantes
procedimentos lingüístico-argumentativos de institucionalização da linguagem jurídica.
É de se colocar que, efetivamente, os ideais de democratização e de
racionalização do direito e da política, bem como de universalismo dos direitos
humanos e de racionalidade ética universal com o respeito inconteste à dignidade da
pessoa humana são idéias-força de fundo kantiano que inspiraram e fundamentaram
sistemas de cunho racional como o de Habermas e sua ideal de uma comunidade ideal
de comunicação na pragmática universal, e de Perelman, com a idéia do auditório
universal.
A radicalização da democracia, o aprofundamento da razão e do poder social
sobre as instituições, é meta mor de todo racionalismo pós-metafísico aberto e
procedimental, até como condição-limite do desenvolvimento de um humanismo
democrático e de um republicanismo de caráter laico e politicamente sustentável.
Todavia, não se pode esquecer que o poder e suas estratégias e ideologias de
legitimação são bastante fortes (FOUCAULT, 2002, p.120), e as simbologias
dominantes não são facilmente desbastadas, pois são estratégias de legitimação do poder
soberano (MARSHALL, 2008, p.35).
O próprio Habermas admite que o discurso não se aparta do poder (2003, p.126).
Assim, a idéia de institucionalizar procedimentos argumentativos por uma
democratização radical com a supressão da garantia da jurisdição constitucional, revela-
se perigosa para a própria democracia, pois pensando nas hipóteses de domínio das
elites sobre o poder, dificilmente a implementação da democratização pode dar-se sem
possuir tal movimento democrático, ele próprio, um instrumento de poder.
A jurisdição constitucional é um meio de poder da sociedade aberta. Como
asserta Rawls (2000, p.288), constitui o foro da razão pública, seu lócus de
processualização. Assim, não se pode fazer a racionalidade processual “aberta” aparecer
por meio de uma supressão da jurisdição constitucional predominantemente
substancialista. Pelo contrário, é na transformação da jurisdição constitucional em local
da democracia e da racionalidade argumentativa que pode vencer a sociedade “aberta”.
Se o inimigo da ‘sociedade aberta’, para usar um termo popperiano, é ausência
de democratização do poder, o entrave da racionalidade procedimental é a falta de um
local de discussão. Reformas na lei no sentido de desconcentrar poderes na cúpula da
Corte Constitucional, vontade política do parlamento de produzir uma legislação que
garanta autonomia para a cidadania, enfim, as reformas institucionais num sentido lato
são um caminho para a descentralização de poder do Tribunal Constitucional e
aprimoramento da cidadania participativa. Acima de tudo, a questão é a epistemologia
jurídica que deve ser construída sob um enfoque processualista e crítico.
Longe de suprimir, reformular gnoseológica e epistemologicamente em termos
hermenêuticos e processuais a jurisdição constitucional é o que deve ser feito a fim de
democratizar sua estrutura e efetivar valores constitucionais, ampliando sua legitimação
democrática.
O diálogo entre os dois modelos de jurisdição, longe de ser infrutífero, aponta a
diversas soluções e transformações de paradigmas. Como asserta Stamato (2005, p.
237): “enquanto a teoria procedimentalista é cética quanto à reflexão moral individual, a
teoria substancialista desconfia da reflexão coletiva.”
Ora, deve haver um equilíbrio entre a dignidade humana e as posições do
individualismo de um lado, e a teoria moral de auto-determinação coletivista e aos
processos de construção da racionalidade pela argumentação inter-subjetiva na outra
vertente.
Defende-se uma jurisdição constitucional calcada em defesa de valores, não
fechados hermeneuticamente, mas abertos a sínteses de compreensão, o que passa pelos
topos argumentativos e axiológicos da dignidade humana, liberdade, propriedade
individual, democracia, moralidade pública etc. Tais valores são idéias-símbolos
institucionalizadas nas Cartas Constitucionais exatamente para se funcionalizarem como
garantias do cidadão.
Valores são idéias-símbolo que devem ser efetivados (RESWEBER, 2002, p.51)
e não essências metafísicas a ser descortinadas em processos de concretização
dominados pela mente de indivíduos privilegiados (paradigma da filosofia da
consciência aplicado ao direito). Como diz Streck (2006, p.165), segundo as lições da
hermenêutica existencialista gadameriana-heideggeriana, desmistificar e des-coisificar
os valores é cumprir a missão de superação a filosofia da consciência e sua estrita visão
hermenêutica.
Um paradigma deve ser estabelecido: não existem valores substanciais. Há tão-
somente valores procedimentais, simbólicos, construíveis dentro de uma racionalidade
processual, principalmente a noção de justiça e, outrossim, a de justiça constitucional.
Tem-se que ‘relativizar direitos’ como apregoa West (2003, p.71), fugindo da
matriz cristã axiológica jusnaturalista, como também do jusnaturalismo do liberalismo
clássico, que ainda serve para justificar posições conservadoras na jurisprudência
constitucional norte-americana. A idéia de lei, conforme West (2003, p.165), deve ser
entendida progressivamente, e não conservadora e estaticamente como no pensamento
metafísico e jusnaturalista.
3.2. Processualismo democrático e processo constitucional
Para a construção da racionalidade procedimental do direito faz-se necessária a
institucionalização de procedimentos jurisdicionais que assegurem ao cidadão a
construção pela iniciativa própria, cidadã, de direitos fundamentais, a partir da
interpretação dos conceitos ínsitos e dos valores abertos estatuídos na Carta
Constitucional.
Alexy (2007, p.12) defende um constitucionalismo democrático, mas toma
como critérios de efetividade o manuseio direto pelo juiz constitucional de
procedimentos argumentativos calcados no princípio da proporcionalidade e na
razoabilidade e ponderação.
A crítica de Habermas (1997, p.318) ao procedimento de argumentação
alexyano demonstra que não se pode adotar a proporcionalidade diretamente como
poder judicial de sopesamento de princípios como valores (afinal, há uma vinculação
com os demais princípios e com o sistema constitucional globalmente considerado) e re-
construtor da normatividade, apesar dela ser o principio fundamental da discursividade
constitucional contemporânea, ainda que não escrito, na maioria das Constituições,
diretamente na argumentação jurídica.
Um critério de razoabilidade pautado em valores como defendido por Alexy
(2007) implica no sopesamento dos mesmos por outros elementos axiológicos,
debilitando a normatividade e favorecendo a manipulação da normatividade
constitucional, fugindo a critérios de análise em termos de falibilidade da construção
argumentativa (LEAL, 2002, p.121), relativizando e enfraquecendo a aplicação do
direito constitucional enquanto principiologia normativa com certeza de aplicação
enquanto garantia democrática.
O fato é que o elastecimento de interpretações axiológicas leva a usurpação do
respeito ao poder legislativo e sua legitimidade democrática e função estatal. A
construção de direitos deve dar-se mediante não opção de valores ou sopesamento
destes, mas dentro da estruturação de procedimentos de discussão dos casos complexos,
como o STF no Brasil fez ao admitir ampla discursividade democratizante e técnica da
ADIN 35103, que versou sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco,
ao admitir vários amicis curiae na lide.
Pode-se até dizer que o excesso de ponderação do direito é um instrumento de
uma interpretação substancialista da jurisdição constitucional que conjuga mais poder à
interpretação do juiz do que à auto-determinação da sociedade na hermenêutica
constitucional.
O fato é que a criação de direito no ativismo e a interpretação política da
Constituição devem ser estruturadas com assaz cautela, e de modo suplementar ao
processo constitucional como uma visão hermenêutica e gnoseológica da norma
constitucional estruturada como uma hermenêutica participativa, uma endo-
processualidade constitucional democrática, que, aliada a um número de crescente de
possibilidades objetivas em termos de instrumentos e ações constitucionais (exo-
processualidade constitucional democrática) capazes de garantir o acesso ao cidadão à
criação de direitos e ao processo de construção da decisão judicial (LEAL, 2002, p. 56).
Não se pode reduzir a complexidade de certas matérias e considerar que a
processualidade democrática da Constituição possa resolver todas as questões e
principalmente os casos difíceis, como coloca Dworkin (2003), os casos constitucionais
são assaz complexos para se confiar apenas na capacidade de auto-tutela da sociedade,
exigindo-se a presença de um corpo técnico não apenas de juristas constitucionais, mas
de diversos campos do saber que versem sobre aspectos técnicos inerentes aos fatos das
demandas constitucionais. Entende-se que o processo constitucional deva ser
concretizado com base na conjugação entre técnica e participação popular sempre que
possível.
3Disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3510&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso : 03 jul. 2008.
Nesse ponto, a complexidade do processo constitucional demonstra a própria
necessidade de vinculação da jurisdição a um paradigma calcado na segurança jurídica,
na impessoalidade, no devido processo constitucional e também na proporcionalidade e
razoabilidade, o que indica que deve haver uma presença de concretização de princípios
e de garantias pelo juiz constitucional. Ora, essa é uma bandeira da visão substancialista
(numa linha concretista e garantista) da jurisdição constitucional que deve ser levada em
conta.
Não adianta impingir o ideal de constitucionalismo democrático sem respeito
aos problemas técnicos da demanda constitucional – a segurança jurídica, a própria
racionalidade procedimental e o contraditório e ampla defesa inerentes ao processo
constitucional estariam em perigo. Como dizia Abraham Lincoln em proverbial frase,
‘nada ameaça mais a democracia que o excesso dela’.
As teses pós-metafísicas e pós-modernas do direito por vezes olvidam a
complexidade técnica e as peculiaridades hermenêuticas do direito e pensam poder
processualizar democraticamente todas as matérias da jurisdição constitucional
(HABERMAS, 1997).
Todavia, é de colocar que Streck (2006, p.165) faz pertinente crítica contra a
redução da hermenêutica à procedimentos lingüísticos, pois o problema do Ser e a
historicidade da estrutura de pensamento epocal, bem como a questão do sentido
histórico da cultura e da existência humana objetivada historicamente se impõem ao
âmbito do direito, mormente no jus constitucional, daí porque não se poder reduzir a
gnoseologia jurídica à “procedimentalização e processualização absolutas e totais da
juridicidade”, criando contraditoriamente, à luz do próprio pensamento pós-metafísico
racionalista processual, um novo paradigma açambarcador do fenômeno jurídico.
Existe um espaço próprio para uma hermenêutica histórico-existencialista
(Gadamer), construtiva (Dworkin), estruturante (Friedrich Müller) que assegure uma
interpretação concretista (Bonavides) para a norma constitucional, na impossibilidade
gnoseológica (pela própria especificidade técnica da matéria constitucional tratada) e
política, pela ausência de condições político-democráticas mais ou menos transponíveis
de democratização da jurisdição constitucional, como acontece no elitista cenário social
e no Estado brasileiros, conjugados ao espaço público carente de discursividade, com
cidadania e participação política debilitadas.
Uma jurisdição concretista e ativista é necessária e possível, até como garantia
do processo democrático. Vê-se que a oposição entre substancialismo e
procedimentalismo da jurisdição não pode assumir feições maniqueístas, devendo haver
uma conjunção de métodos de trabalho hermenêutico-científicos e democráticos na
construção da justiça constitucional, essa sim, processualmente construída na tensão
fático-validativa (HABERMAS, 1997, p.23) e, nos termos aqui propostos, técnico-
democráticos.
3.3. Propostas de reconstrução da legitimidade da jurisdição constitucional: diálogo
com o sistema norte-americano.
As correntes de hermenêutica da Constituição operam, em geral, por dois
caminhos: o procedimentalista-democrático, na matriz pós-positivista geralmente
alinhados com a idéia kelseniana e habermasiana de uma normatividade constitucional
construída dentro da positividade e através de uma racionalidade processual ou de uma
democratização processual progressiva, e o caminho substancialista, com a preocupação
premente de reconstruir a norma sob a concretização de valores constitucionais. Os
substancialistas indicam mais simpatia, em geral, pela apreensão ou intuição de um
direito comunitário associado aos valores consagrados constitucionalmente.
Identificamos em Carl Schmitt e Konrad Hesse a matriz dessa visão
substancialista quanto à herança das idéias de um juiz hermeneuta, de uma norma
constitucional carregada de valores e de uma ordem de valores a ser desenvolvida in
concreto, materialmente.
Adentrando na tradição do constitucionalismo estadunidense, observamos que
desde a fixação da competência da jurisdição em rever atos do poder Executivo no caso
Marbury v. Madison, que o judicial review, o poder de revisão de atos administrativos e
legais pelo judiciário constitucional foi-se assentando na constitucionalidade norte-
americana.
Com base nesse poder de reavaliação, concretização e interpretação
constitucionais a Suprema Corte, tanto em controle difuso como concentrado, atuou no
sentido de estender direitos fundamentais a determinados grupos e de concretizar
direitos sociais universais, como também em momentos considerados, analisando como
base em um viés esquerdista, politicamente mais conservador, restringiu direitos em
casos concretos, tal como o leading case Dred Scott, 1857 (LEAL, 2007).
Procedimentalistas como John Hart Ely (2002, p.73) apregoam que mediante
uma teoria da democratização da interpretação constitucional, pode haver uma
reavaliação dos valores jurídicos insertos na Constituição, como fizeram a “Corte
Warren” e a “Corte Burger” nos EUA nas década de 50 a 80 do século XX.
Por isso Ely (2002, p.73) não considera a Suprema Corte no período em que foi
presidida por Earl Warren (1954-1964) e por Warren Burger (1964-1986) ativista ou
substancialista, mas democrática, mesmo porque ouviu os reclamos sociais e tendeu a
ser procedimentalista, pois funciona como árbitra dos conflitos provenientes da
representação política, devendo ouvir as minorias e suas reivindicações de direitos
(ELY, 2002, p.135).
Como assevera Ackerman (1998, p. 345), o dilema sobre o originalismo e o
criacionismo, correntes dominantes dentro da visão ‘substancialista’ da jurisdição
constitucional, implica na pergunta : valores constitucionais são redescobertos (a partir
de uma cabedal axiológico objetivo e implícito na Constituição) ou criados (com base
em procedimentos construtivos e democrático-participativos) ?
Na verdade, o ativismo na Suprema Corte parece transcender o
“substancialismo” constitucional e aproximar-se de uma jurisdição democrática, pois
correspondeu a iminente exigência de concretização de políticas públicas reclamadas
socialmente, o povo se mobilizou e debateu o momento político e econômico da crise de
1929 e apoiou o New Deal (ACKERMAN, 1998, p.384), o que implicou transformações
nas interpretações formalistas da Constituição pela Suprema Corte, ainda que o
presidente Roosevelt tivesse que ameaçar até cassar ministros intransigentes para
modificarem visões interpretativas conservadoras (GODOY, 2007).
Claro que posições controversas podem advir da Suprema Corte, como no case
Bush v. Gore, que gerou o protesto de 700 professores de direito no país (WEST, 2003,
p.14). Isso indica que, segundo os ativistas o judiciário deve ser forte e não
simplesmente procedimental, pois ele pode manter o judicial review devido exatamente
à sua função incitadora de pluralismo democrático e de resolver conflitos políticos, e
não de compromissos com ideologias políticas.
Segundo Leal (2007, p.182), o ‘substancialista’ Lawrence Tribe considera
improvável a institucionalização de processos de decisão democratizados na jurisdição
constitucional sem que haja referência a valores objetivos. Tribe defende um ativismo
com base na identificação de valores objetivos na Constituição, e diz que quem
considera como Ely, que a Constituição prevê apenas procedimentos e não substância,
não está em seu juízo perfeito (LEAL, 2007, p.183).
O fato é que os defensores do judicial review e de uma jurisdição substancialista,
geralmente republicanos como Frank Michelman, Cass Sustein e Philip Petit, em
oposição aos procedimentalistas geralmente ligados ao Partido Democrata, separam
direito e política e encaram o Tribunal Constitucional com a função de proteger a
democracia deliberativa (SILVA, 2005).
Habermas (2003, p. 312) assevera que Sustein adere ainda a uma busca de
reconstrução política do consenso sobre os valores constitucionais na era do Estado
regulatório, e que Michelman trabalha com a idéia de um judiciário procedimentalista,
mas construtivo de valores implícitos na sociedade prosseguindo a tradição republicana
de civismo participativo, mas de valores conservadores (HABERMAS, 1997, p.338).
Cass Sustein (1987, p.19) em artigo que analisa a posição de Mangabeira Unger
acerca da democracia deliberativa e o poder das minorias, assevera que:
Institutional arrangements that can be taken for granted
help to facilitate democracy; they need not undermine it.
The task for the future is not to ensure that everything is
constantly up for grabs, but to design mechanisms to limit
factional power and self-interested representation, to
facilitate deliberative approaches to democracy, and to
promote participation in government in an era in which the
traditional constitutional goal of "limited government" has
lost some of its appeal4.
4. Conclusão
Na verdade, o que está no fundo da discussão entre democratização
procedimentalista versus substancialismo concretista, e ativismo progressista versus
conservadorismo originalista, como se observa no debate dos constitucionalistas norte-
americanos entre si, é que a jurisdição constitucional implica em campo de discussão
entre as posições conflitantes sobre : 1) Como uma atividade crítica da legalidade estrita
ou da normatividade enrijecida em seu conteúdo por ideologias políticas ou valores
absolutos pode ser exercida e 2) Como pode-se institucionalizar a democratização do
poder e as conquistas de direitos sociais. Isto é: a crítica da norma e as construções de
direitos sociais são arena de debates políticos e não apenas especificamente jurídicos.
É assente o caráter político da interpretação constitucional. As dimensões
políticas das decisões do Supremo Tribunal Federal no Brasil, por exemplo, são
analisadas por Vilanova (1997, p.38), no sentido de entender a presença de um elemento
político na decisão constitucional.
Ronald Dworkin (2000, p. 103) também considera um caráter político inerente à
matéria constitucional, ainda que em caráter genérico de responsabilidade social acerca
da decisão. Metodologicamente, é de considerar que deve existir uma distinção entre a
pretensão política e a apreciação técnica da demanda pelo órgão jurisdicional
constitucional (VILANOVA, 1997, p.43).
Todavia, é de se considerar que as pressões políticas de grupos sociais sobre as
questões controvertidas postas à apreciação da jurisdição constitucional não podem ser
olvidadas, nem muito menos o sentido histórico da realizabilidade da efetivação da
norma constitucional pela Corte jurisdicional.
4 Tradução livre: “Arranjos institucionais podem ser tomados para que a ajuda concedida facilite a democracia; não precisam miná-la. A tarefa para o futuro não é assegurar-se de que tudo seja constantemente posto para ser ‘agarrado’, mas projetar mecanismos de limitar o poder factual e a representação interesseira, facilitar aproximações deliberativas à democracia, e promover a participação no governo em uma época em que o objetivo constitucional tradicional era o "government" limitado; isso perdeu algo de sue apelo.”
Assim sendo, a estrutura de julgamento deve ser democratizada para adequar-se
à transformação histórica das demandas sociais. Deve-se ainda observar que uma visão
relativizadora da normatividade com o enfraquecimento hermenêutico da mesma (como
faz Alexy e sua metodologia de ponderação de valores), ou a ‘prisão’ da interpretação
da norma calcada em uma percepção essencialista de axiologia fundamentativa do
sentido da norma (visão do positivismo em geral, da axiologia ‘material’ de valores, do
‘originalismo’).
Assim, uma concepção ‘conservadora’ ou essencialista de valores
constitucionais possui uma ideologia política igualmente conservadora ou elitista por
trás de sua estruturação, haja vista que perde o foco da visão do processo histórico
efetivo que acomete a cultura e, dentro dela, o direito.
Assim, ou a jurisdição constitucional assume a função de democratizar seu
sistema de decisão e de ampliar as técnicas hermenêuticas da concretização da
normatividade constitucional, ou a legitimidade de sua posição política ficará abalada.
A dosagem entre democratização da construção da norma constitucional e as
técnicas e processos hermenêuticos concretizadores desenvolta no âmbito da jurisdição
constitucional é processo dialético-discursivo no qual deve participar toda a sociedade
idealmente ou os grupos da sociedade que possam fazê-lo com eficácia, buscando o bem
comum, entendido este, principalmente, na construção de direitos sociais, ainda mais no
Brasil, onde a fase de implementação do bem-estar social pelo Estado ainda nem se
completou (STRECK, 2006, p.165).
Na verdade, a questão hermenêutica e a questão política se impõem sobre a
legitimidade da jurisdição constitucional. Além do maniqueísmo entre substancialismo
e procedimentalismo, mesmo porque ambas as posições, se aprioristicamente
identificadas com um ‘progressismo construtivo’ ou ‘conservantismo originalista’,
podem ser mutáveis (DWORKIN, 2003, p.449).
Deve existir um compromisso político (e as Cortes Constitucionais assim podem
atuar) com posições hermenêuticas concretas e históricas que percebam a necessidade
de conservar certas estruturas e modificar outras, a bem do interesse público e tendo em
vista o horizonte e o sentido histórico da concretização normativa.
Vontade e responsabilidade política de modificar estruturas de poder dominantes
e espoliadoras, e discussão incessante da estruturação hermenêutica constitucional e de
procedimentos discursivos, participativos e democráticos de estruturação do processo
constitucional, são balizas de atuação e meios de aprimoramento da legitimidade da
jurisdição constitucional.
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