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Sumário · 2018. 1. 10. · go levará consigo todo o prestígio e responsabilidade para cuidar de Incisivocity e todos os seus cidadãos, buscando a evolução da cidade e o bem

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Copyright © Fabiano Freire

Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor.

Editor Responsável: Thiago da Cruz SchobaCapa: Editora SchobaDiagramação: Editora SchobaRevisão: Bruna Gomes Cordeiro

Editora Schoba LtdaRua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São PauloCEP 13322-441Fone/Fax: (11) 4029.0396E-mail: [email protected]

Sumário

Capítulo 1 ..........................................................................................7Capítulo 2 ....................................................................................... 15Capítulo 3 ....................................................................................... 28Capítulo 4 ....................................................................................... 36Capítulo 5 ....................................................................................... 49Capítulo 6 ....................................................................................... 60Capítulo 7 ....................................................................................... 71Capítulo 8 ....................................................................................... 92Capítulo 9 .....................................................................................110Capítulo 10 ...................................................................................125Capítulo 11 ...................................................................................149Capítulo 12 ...................................................................................168Capitulo 13 ...................................................................................182Capítulo 14 ...................................................................................199Capítulo 15 ...................................................................................218Capítulo 16 ...................................................................................238Capítulo 17 ...................................................................................251

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Capítulo 1

Tudo era festa. As ruas estavam carregadas de alegria e euforia, indicando que alguma coisa muito boa havia acontecido.

Não era por menos, as eleições haviam terminado e para surpresa dos desleixados o melhor partido ganhara as eleições. O partido da Higiene Bucal.

Havia mais de seis anos desde a formação do complexo e da construção dos muros que a localidade não havia sido gover-nada, mas nem por isso as ordens eram deixadas de ser cumpri-das.

O comando vinha de fora, de um complexo juncional ainda muito em crise, mas com um avanço sistemático muito acelerado. Muitos órgãos já haviam sido colocados em ordem e vários deles já possuíam um sistema político organizado em andamento. Já era tempo daquela localidade estar avançada em seu sistema, e agora que tudo estava preparado, os habitantes da nova Incisivocity sentiam-se mais tranquilos para poder de-sempenhar suas funções com segurança.

Desde que as primeiras estruturas da cidade foram ergui-das, os odontoblastos e apatitas, cidadãos honrosos e respeitá-veis de Incisivocity, viviam trabalhando sem muitos recursos.

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Tudo que vinha era de fora ou então de outros complexos muito distantes, o que dificultava a manutenção do novo complexo, po-rém tanto apatitas quanto odontoblastos trabalhavam duro para um futuro promissor, não só para a Incisivocity, mas para todo o sistema.

Como todo complexo que se inicia, a nova comunidade co-meçou a se ver rodeada de algumas atitudes pouco respeitosas. Alguns odontoblastos começaram a romper ligações com o com-plexo devido ao possível desleixo do sistema principal. Certas vezes, até alguns odontoblastos preocupados com a sujeira e o descaso com que o sistema se comportava em relação à Incisivo-city, enviaram relatórios sobre as condições da cidade sem obter muito êxito, o que gerou a dissociação entre alguns membros de odontoblastos. Surgiram então os que se denominavam odonto-clastos e começaram a agir contra o avanço da cidade. Se já era ruim para o sistema, para Incisivocity seria devastador.

Não demorou muito aparecerem rachaduras, pichações, roubos, pequenos assaltos, levando a desavenças perigosas por todo o complexo. Como o controle vinha do sistema principal, a força de policiamento demorava a aparecer e com isso muito pouco do problema era resolvido. Outro caos enfrentado pela população de Incisivocity era a falta de saneamento, o que com-prometia e muito a limpeza e a saúde de todos no complexo.

Depois de cinco anos da formação do sistema, o primei-ro dano fora causado pelas proximidades devido ao caos que se instalava em Incisivocity. Pulmolândia, um complexo já bem or-ganizado com importantes ligações à Incisivocity sofrera alguns danos. Preocupado com o alastrar do problema, o sistema en-viou uma emenda de urgência para os habitantes de Incisivocity exigindo umanova eleição para a coordenação do complexo. O sistema disponibilizaria recursos para que um pleito fosse rea-

lizado e assim, com o posto preenchido, as verbas seriam envia-das de acordo com as necessidades.

Assim dizia a emenda:

“Eu, Sistema Nervoso Central, venho por meio desta, exigir e outorgar imediata eleição para o cargo de Prefeito de Incisivocity, mediante verbas e recursos enviados pelo próprio requerente. O indicado ao car-go levará consigo todo o prestígio e responsabilidade para cuidar de Incisivocity e todos os seus cidadãos, buscando a evolução da cidade e o bem estar de todo o sistema. Assim sendo, desejo toda a sorte para In-cisivocity e reafirmo que a saúde de todo o sistema depende do sucesso deste complexo.P.S.: Madame Mielina me informará sobre todos os resultados.”

Em questão de um ano, tudo fora preparado com o mais perfeito sucesso e as eleições puderam ocorrer sem que outros problemas viessem atrapalhar.

Imponente e viril, Sr. Esmalte ganhou facilmente as elei-ções sobre sua rival política Sra. Cárie, cujos projetos não ha-viam agradado a todos, a exceção de alguns odontoclastos. Sr. Esmalte era mais audacioso, sonhador e simpático; buscava em suas ideias uma Incisivocity maior e melhor para se viver. Seus ideais emocionaram até mesmo Madame Mielina que dera re-ferências esplendorosas sobre ele ao Sistema Nervoso Central, que ao saber das honradas intenções do Esmalte em relação ao sistema, financiou mais verbas para sua vitória, o que deixou a Cárie ainda mais indignada.

– Como o Sistema Nervoso Central pôde fazer uma coisa

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tão absurda dessas? – dizia a Cárie irritada. – Logo logo, o Es-malte vai querer fazer de Incisivocity o lugar mais importante de todo o sistema.

– Mas não é assim que deve ser, minha cara? – questionou um dos aliados mais forte à campanha de Sra. Cárie, o Sr. Ácido Açucarado.

– Mas não com o Esmalte no comando de tudo – conti-nuava ela. – Eu não gostaria que Incisivocity fosse o lugar mais importante do sistema e sim que precisasse mais dos recursos oferecidos por ele. Imagine! Todo o sistema preocupado com Incisivocity. Aí, sim. Meu caro Ácido Açucarado. Eu mandaria e desmandaria em todo o sistema.

Ácido Açucarado sempre fora aliado de todo o sistema, até porque vinha de uma família muito nobre que sempre ofereceu recursos ao sistema, a família dos Açúcares. Ele fazia parte do alto escalão da família e fora treinado nas mais competentes es-colas estrategistas de defesa do sistema. Já fez várias campanhas bem sucedidas em forças-tarefas juntamente com o pelotão do Suco Gástrico, principal fonte de defesa de Estomagolópolis e um grupo especializado em ajudar outros complexos. Contudo, agora estava envolta de uma situação nada gloriosa, teria de aju-dar sua parceira numa campanha contra a política da higiene bucal.

– Minha cara Cárie – indagou Ácido Açucarado já com as caraminholas saltitantes. – Agora estamos diante de uma luta desigual e pior para nós. Com o Sistema Nervoso Central dando forças à higiene bucal, não teremos campo para atuação de nos-sos projetos nem se tivéssemos ganhado as eleições.

– Meu caro Ácido Açucarado. Muito me impressiona você ser estrategista e não conseguir enxergar o óbvio – continuou a Cárie. – Durante cinco anos desde a criação de todo o sistema,

Incisivocity tem sido deixada de lado em todas as resoluções problemáticas entre os complexos. Nem mesmo Narizínia teve os mais diversos recursos em andamento, e olha que se trata do complexo mais próximo de nós. Isso tudo levantou ideias na po-pulação. E pode ter certeza, as ideias são contrárias ao sistema.

– Tudo bem, mas até agora eu não sei aonde você quer chegar – Ácido Açucarado já se mostrava impaciente.

– Eu quero este lado da população comigo, Ácido Açuca-rado – dava para notar o brilho que envolvia os olhos da Cárie. – Vamos fazer de Incisivocity o pior lugar para se viver em todo o sistema. Com isso vamos colocar não só esta cidade sob nossos pés, mas como também todo o sistema. Vamos derrubar de uma vez por todas o Esmalte e de quebra o Sistema Nervoso Central.

• • •

Sra. Dentina abraçou seu marido, Sr. Esmalte, com toda força. Por dentro, ela já sabia que ele levaria a melhor sobre a Cárie, mas depois de tanto tempo vivendo naquele mar de inse-gurança como era Incisivocity, ela adquiriu suas próprias preo-cupações.

– Tinha tanto medo de o sistema desistir de nós, Esmalte – disse Sra. Dentina abraçada ao Sr. Esmalte ainda mais eufórica.

– Não vamos nos precipitar ainda, base da minha vida – respondeu Sr. Esmalte acariciando a Sra. Dentina. – Temos que convencer ainda todo o sistema de que nós podemos ajudá–lo em todas as necessidades. Se tivermos sucesso nessa emprei-tada, tenho certeza de que todos os complexos e órgãos estarão bem mais seguros e fortes para qualquer problema do sistema. Mas ainda temos muito caminho pela frente.

Sra. Dentina olhou profundamente para Sr. Esmalte como

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se pudesse interpretar todos os pensamentos de seu marido. Sa-bia dos riscos que enfrentaria a partir daquele momento já que uma derrota tão esmagadora não iria deixar a Cárie dormir em paz.

– O que pretende fazer em relação ao primeiro ano? – per-guntou muito interessada.

– Tudo o que eu queria era poder começar as obras de ex-pansão da cidade. Novos bairros, saneamento e estrutura, tudo para avançar no projeto de ajuda ao sistema – e respirou. – En-tretanto, não vou poder começar por aí.

Dentina arregalou os olhos ainda encarando–o. Estava agora esperando algo surpreendente e ficou inquieta sacudin-do–o como se quisesse que ele falasse logo.

– Levando em conta que a Cárie não vai deixar esta der-rota barata, vou ter que me preocupar com a segurança de Inci-sivocity primeiro – e olhou pela janela da sede improvisada da nova prefeitura vendo os pequenos prédios brancos da cidade.

Dentina sentiu o arrepiar da espinha somente por ter ou-vido o que acabara de dizer Sr. Esmalte. Mais do que ninguém, ela mesma já fora vítima muitas vezes de ataques indiretos da ambição de Cárie. Sabia muito bem que Incisivocity e a popula-ção de odontoblastos e apatitas enfrentariam um longo período de transição.

Quando a porta se abriu, ela veio toda linda e meiga. Cor-reu para os braços do pai e lhe deu um beijo estalado na doçura de seus cinco anos de idade.

– Ah! Então é assim, não é senhorita Amelodentina? – dis-se Sra. Dentina colocando as mãos na cintura. – Você só está ven-do seu pai nesta sala?

– Desculpe–me mamãe. Eu já iria beijar a senhora tam-bém, mas eu estou tão feliz com a vitória do papai que...

– Que se esqueceu da sua mãe, não é? – interrompeu Sra. Dentina já puxando a filha para um forte abraço seguido de um grande beijo.

Enquanto a mãe agarrava sua filha com todo o amor e ter-nura materna, Sr. Esmalte prestou atenção à outra presença na sala. Madame Mielina estava sorridente de pé à porta de entrada da sala apreciando o momento com toda admiração.

– É tão agradável ver uma família feliz como a sua, Sr. Es-malte – disse ainda olhando para a menina.

– Desculpe–me por intrometer, Madame Mielina. – come-çou Esmalte. – Mas por sermos amigos há tanto tempo acho que posso questionar algumas coisas, como o porquê de você e o Sis-tema Nervoso Central ainda não terem filhos?

Madame Mielina se desconcertou toda, tossiu rapidamen-te e arriscou uma singela brincadeira.

– Sei lá – disse ela. – Talvez por ele ser bastante “sistemá-tico”.

A descontração já era intensa dentro da sala mesmo por-que a vitória nas eleições abria espaço para qualquer euforia, mas Madame Mielina estava disposta a tratar de assuntos sérios, já que era a porta voz oficial do sistema e não poupou tempo.

– Pretende realmente investir no programa de seguran-ça em Incisivocity, Sr. Esmalte? – perguntou Mielina. – Acha que isso é viável agora? Lembre–se de que a população poderia se assustar quanto a essa mudança, sem dizer que alguns odonto-clastos começarão uma campanha afirmando tirania, ou abuso e poder.

– Desculpe–me, Madame Mielina – disse. – Mas estou me-nos preocupado com o que odontoblastos, apatitas e até mesmo odontoclastos irão pensar ou dizer. O que importa é o sistema e a expansão de Incisivocity para uma vida melhor, porém temos

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que nos proteger agora contra tudo o que quiser dar fim a isso, e para tal temos que estruturar nossas defesas. Desculpe–me no-vamente, Mielina, mas as defesas do sistema têm coisas mais im-portantes para se preocupar, assim como no caso de falharmos.

Madame Mielina concordou com a hipótese levantada por Sr. Esmalte e ainda afirmou que o sistema estará pronto para qualquer reforço. Disse também que as verbas para a segurança pública da cidade já estariam à disposição para o momento em que o Sr. Esmalte precisasse.

– Bom, tenho de voltar para o Sistema Nervoso Central, já que tudo parece estar resolvido por aqui. Desejo sorte em seu mandato, Sr. Esmalte – e se despediu de Sra. Dentina e da filha. – Até breve queridas, espero revê–las brevemente e cada vez mais lindas – e partiu.

Naquele momento, Sr. Esmalte interfonou para alguém do lado de fora da sala e não passando muito tempo, entrou cor-rendo uma apatita que fora escalada para o cargo de secretária.

– Por favor, senhorita Anipatita – disse imponente. – Con-voque urgentemente uma reunião com todos os cálcios que se encontram em Incisivocity. Temos muito trabalho pela frente. E teremos que dar início no dia de hoje.

Capítulo 2

Todos os cálcios estavam inquietos no saguão da nova prefeitura, ansiosos pela convocação e curiosos em saber o que Sr. Esmalte teria para falar já como prefeito.

Era um galpão branco enorme, com cadeiras posiciona-das em fileiras e um pequeno palanque improvisado para o pro-nunciamento do prefeito.

Enquanto o Sr. Esmalte não chegava, o Sargento Calcion dava ordens de reagrupamento para que aquele grande pelotão de cálcios se organizasse, já que, por causa da euforia, todos eles estavam desorganizados.

– Atenção cálcios! – gritou Sargento Calcion. – Todos em ordem para o primeiro pronunciamento de nosso prefeito, o Sr. Esmalte Esmaltus.

Quando Sr. Esmalte subiu ao palanque, foi aquela vibra-ção. Uns aplaudiam, outros gritavam, alguns assobiavam, mas todos contentes com a ilustre presença do prefeito.

– Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos pelo apoio e afirmar que essa não foi somente a minha vitória, mas a vitória de toda Incisivocity – disse sorrindo. – Quero lembrar a todos que as funções continuarão sendo desempenhadas sem

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maiores mudanças, porém quero total dedicação para que nun-ca fracassemos em nossos ideais.

Sargento Calcion balançava–se ansioso pelo principal mo-tivo da presença do prefeito. Ele mesmo já sabia do que se trata-va, mas queria ver as reações de toda a tropa.

– Em segundo, e mais importante, venho dizer que o po-liciamento de Incisivocity dependerá do esforço de todos vocês – disse olhando para o sargento. – Eu tenho garantia de verbas do próprio sistema para fazer da Força Policicálcio de Incisivo-city uma das melhores forças no combate à destruição de nosso complexo.

Foi aquela algazarra. Todos os Cálcios pulando e vibrando novamente, como se fosse a maior de todas as notícias nos últi-mos tempos.

– E ele quer isso agora! – gritou o Sargento Calcion in-trometendo–se no pronunciamento. – He! He! Desculpe–me, Sr. Prefeito é que... eu não pude me conter.

Sr. Esmalte balançou a cabeça em sinal de compreensão e voltando–se novamente ao microfone.

– Vamos, Cálcios! – continuou. – Estejam preparados e sempre alertas a qualquer movimento suspeito. Não deixem, em hipótese alguma, que os resquícios da Cárie tomem conta de nossa cidade.

Quando todos deixaram o saguão, somente Sargento Cal-cion e Sr. Esmalte continuaram no palanque.

– Está preocupado com a retaliação que a Cárie poderá iniciar, não é mesmo? – perguntou o sargento.

– Isso já começou há muito tempo e não é de agora, sar-gento. O que mais me preocupa nesta ocasião é a divisão de nos-sa cidade.

– Está falando dos odontoclastos?

– E não é de se preocupar, sargento?O sargento levou as mãos à boca, como era de costume

quando matutava pelos cantos, e sentou–se em uma das cadei-ras do palanque fazendo o maior barulho dentro do saguão.

– Se a sociedade está dividida, teremos uma cidade sepa-rada – continuou Esmalte. – E com isso, iremos encontrar sé-rias dificuldades. Sem falar que o sistema poderá ir aos poucos à falência. Você sabe muito bem disso.

Sargento Calcion fizera parte do comando central da For-ça de Cálcio do sistema e sabia como ninguém que a estrutura de todo o sistema depende dos recursos vindos de fora e que Incisivocity era o meio principal de que o sistema possuía para conseguir estes recursos. Sabia também que se alguma coisa acontecesse à Incisivocity, complexos importantes cairiam junto com ela.

– E o que você espera fazer? – perguntou ainda sentado. – Os odontoclastos nunca se preocuparam com a manutenção da segurança da cidade, pelo contrário, lucram e muito quanto a isso.

– Por isso temos de fazer de Incisivocity o melhor lugar para se viver, mesmo com a possível, e não descartável ideia de um ataque em massa da Cárie. Se tivermos o maior número de odontoblastos e apatitas do nosso lado, neutralizaremos as ações de odontoclastos em todo o complexo.

– Não poderia haver ninguém melhor para o cargo de pre-feito quanto você Esmalte – entusiasmou–se Calcion. – É impres-sionante o sistema não ter percebido isso há mais tempo.

– O importante é que agora temos total apoio dele e não podemos perdê–lo de maneira alguma.

– Não iremos perdê–lo – garantiu o sargento. – Eu mes-mo tomarei conta do sistema de segurança em todo o complexo.

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Dou–lhe minha palavra.Sr. Esmalte ficou observando por alguns instantes antes

de alertar.– Não subestime a Cárie, sargento. Ela possui em seu co-

mando um batalhão muito forte e agressivo. Os Streptos nunca pegaram leve, e não podemos deixar que eles avancem até Co-racity, caso contrário, o sistema todo cairá.

Naquele instante, um rapaz muito esperto adentra cor-rendo pelo saguão se desviando em saltos de algumas cadeiras desalinhadas. Avançava entre o corredor de cadeiras a passos largos.

– Desculpe–me, sargento – disse ele ofegante quando chegou ao palanque. – Desculpe–me Sr. Prefeito – e continuou. – Sargento Calcion, tudo pronto para a primeira força–tarefa em Caninos. O senhor pediu para avisá–lo quando estivéssemos prontos para sair. Pois é, já estamos.

O sargento vagarosamente virava–se com um olhar aca-nhado para o prefeito, envergonhado pela falta de classe do ra-paz.

– Sr. Prefeito, este é o Agente Calcin, meu melhor cálcio. Apesar de destrambelhado, ele sempre me auxilia nas mais di-versas tarefas. Pena ser tão... – e voltando–se para Calcin. –Mal educado!!!

– Nota–se que é um cálcio prestativo – respondeu Esmal-te.

– Muito obrigado, senhor – respondeu Calcin. – Já estou indo e comunico às viaturas de que estamos prontos.

E partiu em disparada da mesma forma com que entrou pelo saguão.

– Bom, é melhor eu ir. Pelo que parece temos um tumulto de odontoclastos agindo em Caninos.

Caninos era um bairro não muito afastado do centro de Incisivocity e pelo que parecia, algo muito sério estava ocorren-do por aqueles lados.

– Com licença, sargento – interveio rapidamente Sr. Es-malte antes que o sargento deixasse a sala. – O senhor se im-portaria se eu fosse desta vez com a guarnição?

O sargento ficou sem reação. Fora pego de surpresa com o estranho pedido e não estava disposto a arriscar o Prefeito em uma campanha justamente naquele período onde os odonto-clastos estavam inquietos.

– Não seria bom se expor nestas horas, senhor Prefeito.– Eu gostaria de estar a par dos problemas que irei en-

frentar sargento, mesmo se tiver de me expor. Não quero ser um prefeito que se esconde dentro de seu gabinete sem saber o que realmente se passa em sua cidade.

– Muito nobre da sua parte, senhor prefeito. Entretanto, reafirmo o risco de que o senhor possa estar se envolvendo.

– Vamos fazer assim mesmo, sargento – disse certo de si. – Eu insisto.

Sem muita escolha o sargento Calcion fez um gesto con-cordante e ambos cruzaram todo o saguão percorrendo o mes-mo trajeto feito pelo agente Calcin.

• • •

Quando as viaturas lá chegaram, uma verdadeira desor-dem já se instalara pelas ruas do bairro Caninus. Muitos odonto-clastos estavam agitados, atirando pedaços de construções con-tra outras obras em andamento. Viam–se muitos odontoblastos e apatitas correndo na tentativa de se defenderem, contudo, pa-recia que o número de odontoclastos era muito grande, lesando

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todas as mediações de Caninus.Naquele instante, até mesmo alguns trechos da rua ha-

viam sido interditados mediante o risco que as estruturas se encontravam. De dentro de uma das viaturas, Sr. Esmalte estava boquiaberto vendo o alvoroço em todo Caninus. Junto com ele estavam o sargento Calcion e o agente Calcin que assumiu o co-mando do megafone avisando a chegada da força policicálcio. Já havia cálcios avançando em direção ao tumulto provocado pelos numerosos odontoclastos.

– O que os cálcios irão fazer? – perguntou Sr. Esmalte um pouco assustado.

– Vamos tentar contê–los antes de um conflito direto – disse o sargento olhando para fora. – Não queremos que este conflito se espalhe para fora das mediações de Caninus. O se-nhor aguarde aqui dentro junto com o agente Calcin.

Calcin olhou indignado para o sargento não aceitando ficar de fora daquela tarefa. Mas por consideração ao prefeito ficou quieto se remoendo.

Quando o sargento partiu, o prefeito colocou as mãos no ombro do rapaz, o que fez com que ele olhasse espantado pelo retrovisor.

– Sei que queria estar lá fora com seus parceiros, Calcin – disse apertando–lhe o ombro.

– Ora, que nada senhor prefeito! – suspirou. – Até que eu gosto de ficar quieto dentro da viatura acatando as ordens do sargento – e sussurrou inaudível. – Mesmo sendo elas ridículas.

– Para ser franco, até achei melhor que ficasse – disse o prefeito.

– Como? – perguntou assombrado o agente.– Você ainda está com o megafone em seu poder? – per-

guntou o prefeito olhando ao redor da viatura.

– Estou, mas por que pergunta?– Vou precisar de sua ajuda daqui para frente – disse o

prefeito ainda olhando ao redor fazendo gelar a espinha do agente. – Você conhece bem as mediações de Caninus?

Calcin começou a olhar também para fora da viatura ain-da sem entender a intenção do prefeito.

– Olhe, senhor prefeito. Eu conheço, porém é bom me di-zer o que pretende, pois as ordens do sargento foram bem claras em ficarmos esperando dentro da viatura.

– O que poderíamos fazer para atingir aquele ponto? – e Sr. Esmalte apontou para a extremidade mais alta do bairro ig-norando o lembrete do agente.

– Lá é o ponto alto do bairro, ou melhor, o ponto mais alto de toda Incisivocity – e voltando–se para o prefeito. – O quê exa-tamente o senhor pretende naquele lugar?

– Pode me levar até lá, Calcin? – ignorando mais uma vez a inquietação do agente.

– Posso, mas...– Então vamos! – disse o prefeito interrompendo um novo

comentário do agente. – Estou no comando agora e ordeno que me leve até lá com o megafone.

– Sim senhor – disse o agente não acreditando no que es-tava acontecendo. – Estou acabado. Quando o sargento retornar à viatura e não nos encontrar, estarei fora da força policicálcio.

– Você se esqueceu que está sob as ordens do prefeito? – completou Sr. Esmalte. – Eu assumo a responsabilidade, Calcin.

E saindo ambos da viatura, Calcin sussurrou mais uma vez sem ser ouvido por Esmalte.

– Agora sim, ficou melhor ainda.A bagunça estava generalizada. Os odontoclastos estavam

avançando em direção aos cálcios com toda a força, o que irri-

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tava ainda mais o sargento Calcion. Os cálcios haviam montado uma barreira na tentativa de isolar os odontoclastos em uma única área, mas eles ainda sim estavam em maior número difi-cultando toda a estratégia.

Alguns odontoblastos se uniam à guarnição de cálcios tentando reparar alguns danos causados pela desordem, mas não estavam obtendo muitos resultados.

– Sargento, o que vamos fazer? – perguntou um dos cál-cios. – Os odontoclastos estão avançando rápido demais e com muita força.

– Não temos muita escolha além de atacar – respondeu o sargento já empunhando sua pistola calcítica. – Atenção, cálcios! Preparar para contra–atacar!

Sendo assim, alguns dos cálcios que estavam posiciona-dos mais atrás começaram a disparar em direção ao núcleo da confusão acertando alguns odontoclastos que caíam mediante ao ataque.

Mesmo sofrendo com o ataque, os odontoclastos tenta-vam avançar para que, com a força que estavam aplicando, con-seguissem se dissipar e começar a destruir outros pontos.

Alguns odontoclastos, que se localizavam no núcleo da confusão e que ainda não tinham sido acertados pelos disparos calcíticos, tentavam desmobilizar os odontoclastos afetados.

– O negócio está ficando difícil – retrucou o sargento enquanto disparava. –Avise à central e peça para enviar os ca-nhões de calcitina. Vamos acabar com esta algazarra.

Enquanto isso, numa das quadras superiores de Caninus, Sr. Esmalte e o agente Calcin continuavam correndo em direção ao ponto alto do bairro passando por alguns odontoblastos que desciam na tentativa de ajudar com o que pudessem na confu-são.

– Você está ouvindo estes barulhos, Calcin? – perguntou o prefeito enquanto continuava a correr.

– Certamente, os cálcios já começaram a disparar contra os odontoclastos – Calcin explicou. – Isso quer dizer que a situa-ção lá não é nada boa.

Instantaneamente, meio atordoado com a resposta, Sr. Es-malte parou de correr e se voltando para o agente, questionou:

– Como assim “disparar contra os odontoclastos”? O sar-gento perdeu a noção? Os odontoclastos também são cidadãos de Incisivocity. O sargento Calcion vai colocar tudo a perder. Te-mos é de converter esses odontoclastos em odontoblastos ao invés de anulá–los.

– Olha, não é querendo colocar mais lenha na fogueira não, mas esse semblante de bom moço não faz muito o gênio do sargento não – disse o agente. – Se ele deu ordens de disparo é porque ele está pensando em eliminar o problema pela raiz.

– Então vamos continuar sem demora – continuou Sr. Es-malte. – Não podemos perder mais tempo.

E continuaram a correr em direção ao setor mais alto dri-blando as ruas que iriam se estreitando cada vez mais enquanto subiam.

Quando os canhões de calcitina chegaram, muitos odon-toclastos já haviam avançado. Sargento Calcion não entendia como tantos odontoclastos estavam se reunindo ali, parecia que já estava armada uma rebelião para logo após o pleito eleitoral.

– Senhor, não estamos conseguindo contê–los – gritou um dos cálcios.

Mesmo com a bravura dos cálcios, a situação estava pen-dendo para a atitude corrosiva em que os odontoclastos esta-vam envolvidos. Sargento Calcion já suspeitava que só pudesse ser alguma intervenção da Cárie naquela bagunça.

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– Atenção, cálcios! – gritou o sargento. – Vamos dar o me-lhor que pudermos para que os canhões acertem o centro do tumulto com precisão.

Todos os cálcios que ali se encontravam fecharam o cerco envolvendo todo o conflito em isolamento. Os canhões de calci-tina se aproximaram o suficiente e estavam agora prontos, so-mente esperando a ordem de ataque.

Quando Sr. Esmalte e o agente Calcin finalmente alcança-ram o cume de todo Caninus, eles se depararam com aquela cena toda complicada lá embaixo, o que os deixou bastante perplexos.

– O que é aquilo lá embaixo? – perguntou Sr. Esmalte.– Opa! São canhões de calcitina.– Canhões? – assustou–se o prefeito. – O quê isso quer di-

zer?– Que irão atingir os odontoclastos de uma vez – respon-

deu o agente.Com um único golpe, Sr. Esmalte arrancou o megafone das

mãos do agente Calcin e correu para uma estrutura de onde ele pudesse ser visto por todo o bairro de Caninus.

– Atenção cidadãos de Incisivocity! – falou ao megafone o prefeito fazendo com que sua voz ecoasse bem distante. – Aqui quem vos fala é o seu novo prefeito, Sr. Esmalte Esmaltus.

Naquele instante o sargento Calcion se vira para o local de onde vinha a voz do prefeito e com uma expressão indignada leva suas mãos à cabeça.

– Ai, ai, ai... – resmungou. – Não me digam que estou ven-do o que vejo!

Um dos cálcios que estava próximo a ele, também perple-xo, disse:

– Realmente o senhor está vendo o que não pretendia ver. É o prefeito e o agente lá em cima com o megafone.

– Calcin! – continuou o sargento. – Vou mandar aquele cal-ciozinho de volta para as estruturas de base num piscar de olhos quando ele descer.

– O que vocês pretendem com esta desorganização toda, caros odontoclastos? –continuou o prefeito. – Esqueceram que esta é a casa de vocês? Tudo bem, eu não sou quem vocês que-riam para governar esta cidade, porém isso não quer dizer que não terão voz ativa e nem utilidade em meu mandato.

Calcion não sabia qual parte do pronunciamento tinha servido e se encaixado naquela bagunça, mas de certa forma os odontoclastos começaram a ceder.

– Tenham a certeza de que vocês são indispensáveis à In-cisivocity – continuou o prefeito. – Existem certas tarefas que cabem somente a vocês e não a outros cidadãos.

– Então nos diga onde poderíamos atuar em um governo de expansão? – gritou uma voz entre os odontoclastos.

– Para que haja expansão, meus caros, teremos de conci-liar tarefas e a de vocês será indispensável para que odontoblas-tos e apatitas possam desempenhar seus papéis com sucesso – e acrescentou. – Vou criar um conselho de infra–estrutura e vocês serão de suma importância para os projetos que tenho em men-te.

– Dê–nos um prazo para pensarmos! – gritou outra voz.– O quanto precisarem – respondeu o prefeito. – Quando

estiverem prontos ou chegarem a um veredicto entre em conta-to comigo. Estarei pronto para recebê–los.

Um a um, os odontoclastos iam se retirando conformados com o acordo e cientes de que chegariam em breve a um vere-dicto para o possível acordo. De certa forma, acreditavam que algo a favor deles poderia brotar de um conselho.

– Excelente estratégia, senhor prefeito! – disse Calcin. –

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Confesso que não teríamos ideia melhor de persuasão.– Não estou persuadindo ninguém, meu caro Calcin – res-

pondeu o prefeito. – Eu realmente quero os odontoclastos no conselho.

• • •

Sargento Calcion já estava encostado à viatura esperando seu agente chegar juntamente com o prefeito. Mesmo depois de tudo ter terminado bem, ele não admitia que suas ordens fos-sem ignoradas e quando apontaram Calcin e o Sr. Esmalte na esquina, o sargento saiu como uma locomotiva fora de controle batendo com as mãos na cintura.

– É bom saber que o meu agente é um maluco sem nenhu-ma noção de perigo! – falou em voz alta.

– Calma sargento – interveio o prefeito. – Eu posso expli-car. Na verdade, as ordens de sair da viatura foram minhas, o que faz do agente Calcin inocente.

– Desculpe–me senhor prefeito, mas o senhor tem ideia do risco que estava correndo? – avançou o sargento. – Não tínha-mos a noção de quantos arruaceiros existia em Caninus, o que faz do agente Calcin um inconsequente.

– Escute, meu caro sargento. Com todo o respeito que te-nho pelo senhor, fui eu mesmo quem passou por cima de suas ordens e com toda a consciência de risco, mas eu precisava ten-tar. E ainda peço desculpas ao agente por fazê–lo se arriscar junto comigo – e colocando as mãos sobre o ombro do agente acrescentou. – Este cálcio merece uma condecoração por sua bravura.

O sargento ficou todo desconcertado, tossindo e olhando para os lados inquieto. Na verdade, reconhecia que sair sozinho

pelas ruas de Caninus no meio de uma revolução, sem nenhum reforço, era ato de muita coragem, mas não queria aceitar o fato de ter sido desobedecido.

– Com certeza ele será condecorado por honra ao mérito – e tossiu novamente. – Mas terá punição cabível ao fato.

– Com sua licença, sargento – interrompeu o Sr. Esmalte. – Peço sua autorização para que a punição seja dada por mim, já que eu o obriguei a desobedecer a suas ordens.

– Eu nunca ouvi uma coisa dessas, mas... – e se sentiu con-fortado por dar a autorização. – Tudo bem, eu autorizo, mas que seja estabelecido o prazo mínimo de três semanas e não menos que isso.

Calcin ficou apreensivo por esperar o que lhe aguardava. Não acreditava que seria uma punição tão severa, já que o nobre prefeito foi o real causador da discórdia, mas sabia também que estaria fora das ruas por aquele período.

– O agente Calcin montará guarda em meu gabinete nas próximas semanas. De acordo sargento?

– Vá lá – disse o sargento. – Contanto que esteja fora das forças-tarefas por esses dias.

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Capítulo 3

A Cárie estava se sentindo toda ofendida quando Áci-do Açucarado trouxera o relatório do motim em Caninus. Mais uma vez o Sr. Esmalte, agora prefeito legítimo, levara uma consi-derável vantagem em relação a ela.

− Pobres odontoclastos, susceptíveis a tudo – disse ela an-dando de um lado para outro. – Precisamos jogar melhor com eles.

– E o que pretende fazer agora? – perguntou Ácido Açu-carado. – Parece–me que a ideia de emprego na demolição de Caninus não foi muito bem aceita.

– Mas é óbvio que não, meu caro Ácido Açucarado – res-pondeu em fúria. – Como espera que eles vão partir para uma destruição em massa em Incisivocity, sendo este o único am-biente onde podem atuar? Eles dependem daqui. O que eu real-mente esperava era que alguma desordem fosse concluída para dar margem ao meu próximo passo.

– E qual seria este próximo passo, minha cara? Foi então que em meia volta, a Cárie foi até a mesa ao

fundo de sua sala e apertou um botão fazendo acionar uma se-cretária.

– Pois não senhora Cárie? – perguntou a voz no interfone.– Queira deixá–lo entrar – disse a Cárie sorridente.Quando a porta de entrada se abriu, um ser todo estranho

adentrou no recinto. Ácido Açucarado levou suas mãos ao nariz devido ao forte odor que emanava da criatura.

– Meu caro Ácido Açucarado – disse a Cárie apontando para o desagradável ser. – Queira conhecer um legítimo Strep-tococos Mutants.

Ácido Açucarado estava sem jeito, pois aquilo que acabara de entrar na sala era horrível e fedorento.

– Ele faz parte de uma legião de Streptos famintos por destruição em massa – continuou ela. – E sabe qual é a verda-deira vontade desses indivíduos?

Ácido Açucarado balançou a cabeça em sinal de negação.– Alcançar Coracity – e a Cárie soltou uma gargalhada his-

térica. – Isso não é o máximo?– E o quê espera fazer, Cárie? – perguntou o ácido sem

entender como aquelas criaturas chegariam intactas às ruas de Incisivocity.

– É claro que Incisivocity já deve ser prioridade. Se esses streptos forem treinados e nutridos por você, caro Ácido Açu-carado, eles não encontrarão resistência eficaz com um sistema sanitário ainda em formação como é o de Incisivocity – ela ainda acrescentou. – Quer ser o capitão desta tropa, caro Ácido Açu-carado?

Ele ficou todo pomposo, afinal capitão seria exuberante demais. “Capitão Ácido Açucarado”, era tudo o que precisava para vangloriar seus tempos de quartel.

– Não será da noite para o dia que esses monstrengos estarão prontos para um ataque, minha cara – disse com uma expressão de concordância já se sentindo o próprio capitão. –

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Será que podemos contar com alguns odontoclastos?A Cárie bem sabia que ainda era cedo para essa estratégia,

já que possivelmente uma convenção de odontoclastos se inicia-ria em pouco tempo. Teria de esperar pelo menos a conclusão desse fato para que então pudesse pôr novos planos em prática. Ela deveria saber tirar proveito da situação, pois se tentasse algo tão recente os odontoclastos poderiam suspeitar de sua real in-tenção e o que ela realmente precisava era de toda a confiança a seu favor.

– Você terá o seu tempo, Capitão Ácido Açucarado – res-pondeu maliciosamente astuta. – Enquanto isso planejarei algo para pôr fim a este conselho que Esmalte quer montar. Se os odontoclastos se associarem agora, nossos planos se tornarão mais difíceis de concretizarem.

A Cárie também sabia que poderia agir se conseguisse inibir o sistema, mas para isso, alguma coisa terrível deveria acontecer para provar que o sistema de defesa em Incisivocity era falho.

O Sistema Nervoso Central tinha um primo muito pró-ximo e que sempre tentou dar as ordens por cima, porém não tinha tanta influência e vivia em função disso, atormentando o Sistema Nervoso Central para que alguma de suas ordens fosse levada em consideração. Seu nome era Sistema Nervoso Perifé-rico. E a Cárie poderia agir nesse campo, mas ela não consegui-ria enviar uma mensagem pelo sistema já que Madame Mielina cuidava disso.

– Acho que sei exatamente como alertar o sistema de que alguma coisa está errada –disse a Cárie se enchendo de espe-rança. – Como a estrutura básica em Incisivocity ainda está em construção, poderei agir por lá. Molares é um bairro muito dis-tante e de difícil acesso até mesmo para o policiamento. Vamos

inibir a força policicálcio acionando toda ela para Molares Di-reitus em um ataque surpresa de alguns odontoclastos. Quando isso ocorrer, em seguida, avançaremos com uma desordem em Molares Esquerdus.

Em Incisivocity realmente haviam bairros muito afas-tados como era o caso dos Molares. Tratava–se de uma tática bastante arriscada mediante a formação do conselho de odonto-clastos e Capitão Ácido Açucarado sabia bem disso.

– Eu não entendo – arriscou Ácido Açucarado. – Você mes-ma disse que não seria viável um ataque agora? Por qual razão os odontoclastos iriam formar aliança antes da formação do conselho?

– Não atacaremos Incisivocity desta vez, meu caro capi-tão – disse ela se empolgando com a nova ideia. – Vou enviar uma pequena tropa de Actinomyces para atacar diretamente os próprios odontoclastos.

Os actinomyces eram bactérias de um alto escalão, peri-gosos e impiedosos. Já eram organismos muito bem treinados em atacar o sistema sem alertar o sistema de defesa, ou seja, eram verdadeiros microorganismos ninjas. Ácido Açucarado co-nhecia muito bem essa raça, pois há muito tivera uma participa-ção em uma força–tarefa de rastreamento desses hospedeiros e sabia como ninguém da astúcia desses pequenos monstros.

– Já estou começando a entender – adiantou Ácido Açuca-rado. – Vai colocar os odontoclastos em xeque contra o sistema de segurança em Incisivocity. Com isso, você vai dividir a opinião sobre o conselho de odontoclastos, não é mesmo? Mas que ideia genial.

– Se colocarmos a população de Incisivocity em dúvida sobre sua segurança, o quê dirá o próprio sistema? – completou a Cárie. – Com certeza, o Sistema Nervoso Periférico pressionará

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o Sistema Nervoso Central para agir em defesa de outros com-plexos e sendo assim reduzirá suas verbas, o que nos dará chan-ces de ampliarmos nossas forças e atacar com muito mais efici-ência. Se o sistema ficar desleixado em relação à Incisivocity, o que provavelmente ocorrerá, o domínio de nossas forças sobre o complexo inicial será eminente.

• • •

Não eram muitos que estavam reunidos em Molares Di-reitus naquela noite. Apenas um pequeno grupo de odontoclas-tos havia se reunido para colocar em discussão as propostas co-mentadas pelo prefeito em Caninus. Aquela era apenas uma das muitas reuniões que eram realizadas naquela noite, pelos odon-toclastos, em toda Incisivocity. Muitos se mostravam a favor do conselho, porém uma parte relevante ainda se mantinha contra.

– Isso é papo furado! – dizia um.– Tudo que o prefeito realmente quer é favorecer apatitas

e odontoblastos –completava outro.Contudo havia também a presença de odontoclastos que

estiveram em Caninus no dia da revolta e esses comentavam so-bre as vantagens de um conselho.

– Estivemos lá e ouvimos pessoalmente as palavras do Sr. Esmalte – afirmava um deles. – Não parecia haver mentira na-quelas palavras. Pelo que parece, ele está realmente querendo um conselho de nossa parte na prefeitura.

– Este conselho, caso realmente seja formado, em nada nos favorecerá em Incisivocity – outro odontoclasto comentou.

– Vejam bem, amigos – continuava o odontoclasto favorá-vel ao conselho. – Hoje não temos força alguma em Incisivocity, porém com um conselho formado, poderemos debater nossas

ideias. Não temos outro lugar para viver, isso é uma verdade, e precisamos de Incisivocity inteira. Contudo, também temos a consciência de que nosso valor para o complexo é tão significan-te quanto ao de odontoblastos e apatitas e não vamos nos deixar desmerecer. E só teremos nossas ideias ouvidas, se tivermos um conselho atuante na prefeitura.

Durante toda a reunião, em um local distante de Molares Direitus, a tensão se manteve, porém todos saíram concordantes quanto à necessidade do conselho.

Daquela reunião, dois odontoclastos saíram por um cami-nho diferente dos demais a fim de pegar atalho até suas respec-tivas casas. Era a situação ideal para que, naquele instante, qua-tro vultos adentrassem em um dos becos do bairro sem serem percebidos pelos odontoclastos.

– O que você achou disso tudo? – perguntou o primeiro dos odontoclastos.

– Não tenho muita certeza de que faremos um bom ne-gócio nos entregando logo assim de início – argumentou o se-gundo. – Mas poderemos levantar algumas de nossas exigências com maior poder de voz.

As pequenas ruas as quais tiveram acesso os dois odonto-clastos, estavam completamente desertas o que tornou o silên-cio daquela noite completamente incômodo para eles.

– Não gosto de andar por essas vielas à noite, meu amigo – comentou o primeiro. – Quanto mais Incisivocity parece crescer, mais esquecida ela fica.

– De seis anos para cá sempre foi assim – retrucou o se-gundo. – Não creio que vai ser diferente nos próximos anos.

– Está aí! – exclamou o primeiro. – Podemos pedir no con-selho um policiamento reforçado para os bairros mais distan-tes.

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– Deixe isso para os odontoblastos e apatitas – novamente respondeu o relutante odontoclasto. – Com a insegurança eles serão os prejudicados. Com a confusão que estamos aprontan-do, será muito difícil alguém se meter com a gente.

Foi quando um sinistro barulho vindo da escuridão da-quela viela cortou todo o silêncio da noite.

– O que foi isso? – perguntou o segundo odontoclasto se preocupando.

– Não faço a mínima ideia, mas seja lá o que for está vin-do da escuridão mais à frente – respondeu também intrigado o primeiro.

– Vamos voltar – disse o segundo se recuando. – Não estou sentindo boas vibrações por aqui não. Talvez seja melhor seguir pelo caminho mais comprido, ou seja, o de sempre.

E novamente o barulho rastejante recomeçou, desta vez, vindo por trás, justamente na direção que os odontoclastos ha-viam tomado.

– Acho que já não é mais uma boa ideia – comentou o primeiro percebendo de onde vinha o barulho.

Em poucos segundos, aquele som rastejante se transfor-mou em um barulho envolvente e de repente os dois odontoclas-tos estavam cercados por quatro criaturas aterrorizantes que os encarava friamente.

– Os dois virão com a gente daqui para frente – sussurrou a voz de uma das criaturas.

Quando um dos odontoclastos ameaçou a sair em dispa-rada por um dos lados, foi golpeado rapidamente e atirado ao chão.

– E é melhor não correrem, pois não estamos com paciên-cia para aturar odontoclastos rebeldes – sussurrou agora a voz da criatura que havia golpeado o odontoclasto.

– Ei, quem disse que somos rebeldes? – gritou o odonto-clasto que continuava parado. – Estamos lutando por um direito que nos cabe e não nos rebelando. É direito de qualquer cidadão se manifestar a favor de uma causa.

E com aquele depoimento, outra voz sussurrou maliciosa-mente mostrando certo grau de irritação.

– Pois daqui em diante não caberão mais manifestações contra o sistema. E quem for contra, será eliminado de todos os complexos.

Indignado, o odontoclasto assustado e que ainda se esta-va de pé, não acreditava no que estava ouvindo. Poderia o siste-ma interferir, assim, brutalmente nos assuntos dos complexos? E se pudesse, onde estaria a ordem tão almejada?

Sem maiores esclarecimentos, as quatro criaturas arras-taram para dentro da escuridão da viela o odontoclasto des-maiado deixando para trás o outro muito abalado.

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Capítulo 4

Era um novo dia em Incisivocity e naquela manhã o Sr. Esmalte havia acordado mais cedo que de costume. Estava pa-rado em frente à janela de seu gabinete observando de longe as novas obras que há pouco se reiniciaram. Tudo andava nos conformes, e máquinas, todos os dias, trabalhavam a todo vapor para o crescimento da cidade e os cidadãos pareciam satisfeitos. Somente os odontoclastos não haviam se manifestado ainda em relação ao conselho e essa demora atormentava o prefeito.

– Senhora Anipatita – disse ao interfone. – Entre em con-tato com Oncoblasto na administração. Peça a ele que, assim que puder, venha até meu gabinete.

Oncoblasto era um odontoblasto muito popular e tomava conta dos assuntos sociais de maior importância em Incisivo-city. Desde que o Sr. Esmalte tomara posse, sempre ao fim do expediente, passava no gabinete para recolher os assuntos pen-dentes para o próximo dia. O que realmente iria fazê–lo estra-nhar o chamado ao gabinete tão cedo.

Não demorou muito e a porta do gabinete do prefeito se abriu com o Sr. Oncoblasto entrando todo ofegante.

– O quê houve senhor prefeito?

– Desculpe–me por tê–lo de trazer assim tão cedo ao meu gabinete, mas algo está me tirando o sono.

– E o quê poderia ser, Sr. Esmalte?O prefeito sentou–se lentamente cruzando as mãos e sol-

tando o ar preso nos pulmões.– Algum odontoclasto já lhe procurou para dar início ao

conselho?– Nenhum, senhor – respondeu também se sentando. –

Até o presente momento, em nenhum bairro, os odontoclastos em nada se manifestaram.

Sr. Esmalte se encostou novamente na cadeira decepcio-nado. Não era a notícia que estava esperando.

– Estou preocupado com a falta de resposta, meu amigo Oncoblasto.

O odontoblasto permaneceu em silêncio por alguns ins-tantes olhando de um lado para outro pensativo até que, então, resolveu falar.

– Sua preocupação realmente tem fundamento, senhor prefeito.

Aquele argumento fizera gelar as costas de Sr. Esmalte. Oncoblasto estava sabendo de alguma coisa e não iria contar fa-cilmente.

– Diga-me, Oncoblasto – disse o prefeito se erguendo para frente. – O quê está se passando que eu não estou sabendo?

Oncoblasto coçou o nariz, remexeu–se na cadeira e vol-tando o olhar ao prefeito disse passando a mão sobre os cabelos brancos.

– Há rumores de que os odontoclastos estariam abando-nando seus postos.

– E de onde vêm esses rumores?Oncoblasto parou por outro instante e começou a olhar

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para a janela.– Ora, senhor prefeito – disse olhando a cidade sentado.

– Basta o senhor sair e dar apenas uma volta por Incisivus Cen-tralis, que é nosso centro urbano e procurar algum odontoclas-to trabalhando.

Sr. Esmalte se levantou preocupado e dirigiu–se até a ja-nela. Se os odontoclastos não estavam em seus devidos lugares, onde então poderiam estar?

– Isso é verdade, Oncoblasto?O odontoblasto se ajeitou na cadeira coçando a testa e fa-

zendo um gesto afirmativo com a cabeça.– O senhor ficaria surpreso se fosse pessoalmente averi-

guar.Esmalte voltou–se rapidamente para a direção da porta

pondo–se a caminhar. Ao abrir a porta olhou para os lados como se estivesse buscando alguma coisa até que gritou pelo agente Calcin.

Imediatamente o agente se prostrou frente à porta em continência tentando esconder os sinais do cansaço de quem estava muito além dos corredores do qual deveria estar guar-dando.

– Eu não sabia que sua presença em meu gabinete seria tão válida – disse o prefeito ignorando a inquestionável ausência do agente. – Com o seu conhecimento dos bairros de Incisivocity, preciso que faça sigilosamente uma varredura pela cidade e des-cubra onde estão se reunindo os odontoclastos.

– Isto é um problema – retrucou o agente murchando o peito em sinal de desânimo. – Se os cálcios do sargento Calcion me pegam desfilando por aí em pleno período de punição, eu serei o próximo cuneiforme eliminado do sistema.

– Caso isto aconteça, você alegará estar sob minhas or-

dens prestando serviços de levantamento público – acrescentou o prefeito. – Além disso, o senhor Oncoblasto estará com você. O álibi perfeito, não acha Sr. Oncoblasto?

O odontoblasto que estava sentado somente assistindo àquele diálogo, até então interessante, deu um salto e ficou de pé, surpreso.

– Desculpe–me, senhor prefeito – disse o Sr. Oncoclasto engolindo as letras. – Não é querendo me opor a essa ideia, mas o que aconteceria se formos pegos em alguma revolta? Um odontoblasto juntamente com um cálcio sozinhos seria um grande motivo em um inevitável combate.

Sr. Esmalte se voltou para o agente Calcin sorrindo e co-locando as mãos em seus ombros com toda a tranquilidade, ato que deixava o agente esperando outra confusão, já que se lem-brava muito bem do ocorrido em Caninus, e ponderou:

– O agente Calcin é muito astuto, Sr. Oncoblasto. Tenho plena certeza de que sabe prevenir muito bem um incidente como esse. Basta ficar atento a tudo que este agente fizer.

Os dois, Oncoblasto e Calcin, ficaram se entreolhando por alguns segundos. O odontoblasto desconfiado de um cálcio novo enquanto Calcin estava sentindo–se todo orgulhoso de si mes-mo.

– Basta somente saber por onde vamos começar – iniciou Sr. Oncoblasto cruzando os braços. – De Incisivos até Molares nos bairros inferiores não há sinal de nenhum deles.

– Por isso nos restam os bairros superiores – interveio o agente.

– De acordo – foi a vez do prefeito. – Porém, deverão ficar muito atentos, pois não há sinais de muito policiamento naquela região.

Os bairros superiores eram a grande continuação de In-

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cisivocity e realmente o sistema não se preocupava o suficiente com sua manutenção, o que seria um dos principais obstáculos do novo prefeito. Como era uma região não muito iluminada, até mesmo devido a sua posição geográfica no sistema, muitos dos problemas de vandalismos registrados viam de lá, e isso preocu-pava o prefeito quanto à segurança de seus novos encarregados.

Calcin realmente conhecia Incisivocity como ninguém, mas Sr. Esmalte tinha a certeza de que, mesmo assim, o agente não conhecia muito bem aquelas partes da cidade e novamente se dirigiu ao interfone chamando pela senhorita Anipatita.

Quando ela entrou na sala, o agente ficou todo desconcer-tado, parecia que tinha lhe entrado pulgas pelo corpo, o que fez Sr. Oncoblasto se divertir um pouco.

– Descontrolado com a beleza da moça, agente? – pergun-tou o odontoblasto com um sorriso malicioso no rosto. – Esses rapazes e seus hormônios aflorados!

– Ora, não seja ridículo! –disse o agente ainda sem saber onde punha suas mãos.

Naquele momento, a situação do agente passava desper-cebida pelo prefeito, que começou a dialogar com a secretária.

– Senhorita Anipatita – disse o prefeito se aproximando da jovem apatita. – Sei que você vem dos bairros superiores, não é mesmo?

Tanto o agente quanto o odontoblasto administrador a olharam espantados com aquela inesperada indagação. A moça simplesmente acenou com a cabeça afirmativamente admirada com a memória do prefeito. Nunca havia lhe contado de onde era e essa informação só poderia constar no currículo que há muito tempo deixara em um gabinete eleitoral, muito antes das eleições. Esse prefeito era realmente cuidadoso em seu manda-to, era o que pensava naquele momento.

– Estaria disposta em ser útil para sua cidade, minha inestimável secretária? –perguntou o prefeito em tom desafia-dor.

A apatita rapidamente olhou para o lado na direção do agente que ficou ainda mais sem jeito e disse meio acanhada.

– O que teria eu a oferecer para a cidade, senhor prefei-to?

– Você já oferece muito somente por estar trabalhando aqui na prefeitura, senhorita –respondeu sabiamente o prefei-to. – Creio eu que sua presença junto a esses senhores em uma missão será muito valiosa.

Calcin só não foi ao chão naquele momento porque havia se encostado à parede, o que provocou certa desconfiança em Oncoblasto.

– Vamos iniciar uma varredura em busca dos odontoclas-tos nos bairros superiores – continuou o prefeito.

– Não é um pouco arriscado, Sr. Esmalte? – perguntou ela já sabendo dos riscos do bairro em questão.

– Correção! – interrompeu o Sr. Oncoblasto. – É muito ar-riscado, senhorita.

– É exatamente por isso que nesta tarefa eu tenho o me-lhor agente da cidade, um grande doutor “honoreis relações causa”, que é o senhor, e a mais competente apatita dos bairros superiores – completou o Sr. Esmalte evitando daquela maneira os possíveis comentários que poderiam se seguir.

– Tudo bem, Sr. Esmalte – concordou Anipatita. – Mas me pergunto quem vai secretariar nosso prefeito na minha ausên-cia.

Novamente a porta do gabinete se abre dando entrada àquela sala mais um membro, muito ilustre por assim dizer.

– Eu mesma, senhorita – disse com toda segurança, Sra.

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Dentina. – É assim que comecei minha vida, e é assim que darei minha contribuição nesta missão.

Todos na sala ficaram ainda mais espantados. Na opinião do agente Calcin, aquela manhã estava acontecendo tudo o que poderia acontecer, o que prometia um dia muito longo. Já Onco-blasto, sentando–se todo abismado, já não esperava mais nada.

Sr. Esmalte se aproximou da esposa e abraçando–a, olhou–a firmemente.

– Não esperaria nada diferente de você, minha querida. E por falar nisso, há quanto tempo está aí fora escutando nossa rápida reunião?

– Tempo suficiente para dar o meu maior apoio a vocês três – disse a primeira dama olhando para eles com admiração.

• • •

Quando o carro da prefeitura se aproximou de Caninus Direitus do bairro superior, os novos encarregados do prefeito sentiram na pele o que, desde a prefeitura, vinha falando a se-cretária. Era verdade que dali para frente, os bairros superiores não significavam muito para o sistema.

– Daqui em diante teremos de ficar atentos, pois se exis-te algum lugar onde os odontoclastos possam estar se reunindo sem maiores problemas, este lugar é de Molares em diante – dis-se Anipatita olhando pela janela do veículo.

– Sendo assim é melhor seguirmos a pé daqui em diante – disse o agente já freando o carro.

– As coisas já estão difíceis e você quer complicá–las ain-da mais? – foi a vez de Oncoblasto. – E se precisarmos bater em retirada?

– Calcin tem razão – afirmou Anipatita. – Não podemos

ser vistos por aqui, ainda mais dentro de um veículo público da prefeitura.

Sr. Oncoblasto concordou, afinal não havia pensado da-quela maneira. Porém, algo ainda não estava certo para ele. Se naquela missão eles não pudessem ser vistos, o que ele estava fazendo lá? Contudo, resolveu aguardar para ver no que daria.

– De agora em diante vocês dois me seguem – ordenou o agente saindo do carro e seguindo em direção a um dos becos. – Vamos seguir pelos caminhos mais impensáveis, que os odon-toclastos menos gostam. O lugar que já foi devastado por eles.

E todos os três entraram em um beco escuro e totalmente aniquilado. As paredes estavam corroídas de um branco acin-zentado e alguns restos de lixo jogados aos cantos.

– Este é o primeiro grande sinal de que a Cárie pretende dominar esta região – disse o Sr. Oncoblasto. – E muito em breve pelo que está parecendo.

– É por isso que não encontraremos odontoclastos por aqui – completou o agente. – Por mais que estejam agindo em favor da Cárie, eles não gostam dela. Assim como todo odonto-blasto e apatita de Incisivocity.

– É, parece que o Sr. Esmalte não estava brincando quan-do comentou de sua astúcia, Calcin – indagou o administrador admirado.

– E precisa tomar alguns cuidados nesta astúcia também! – completou Anipatita. – ele quase se denuncia ao prefeito hoje pela manhã.

Calcin apenas tossiu tentando alertá–la quanto ao lapso do qual acabara de dar a senhorita Anipatita na presença do Sr. Oncoblasto. Porém, alertou também as ideias do odontoblasto.

– Espera aí, como assim? –perguntou Sr. Oncoblasto in-terrompendo a caminhada. – Que tipo de mancada poderia o

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agente dar em relação ao prefeito?E notou também os olhares atravessados da apatita com

o agente parecendo duas crianças pegas em suas travessuras.– Opa, aí tem coisa! – exclamou levando sua mão à testa

como era de costume. – É claro! Tão óbvio quanto dois mais dois são quatro. Vocês dois estavam juntos antes do prefeito requisitar a presença do agente. Agora está explicado o porquê da agitação de Calcin quando a senhorita entrou no gabinete.

Houve um silêncio momentâneo até que o agente resol-veu, por fim, quebrá–lo.

– Tudo bem, você descobriu tudo – disse ele envergonha-do. – Eu estava na companhia da senhorita Anipatita ao invés de estar grudado na porta do escritório do prefeito.

Anipatita estava como um pimentão olhando paralisada para o odontoblasto que também a observava.

– Ora, ora! – continuou Oncoblasto. – Quem diria? Não se preocupem, pois não sou a favor de intrigas.

E continuaram a seguir pelo beco, Calcin e Anipatita des-concertados e Oncoblasto descontraído.

A cada minuto que se passavam eles observavam que as ruas também se degradavam e aquilo gelava as extremidades de Oncoblasto. Senhorita Anipatita dava as informações necessá-rias para que o agente Calcin não se perdesse, mas em certos pontos até ela se confundia.

– Não me leve à mal, senhorita, mas como consegue morar em um lugar tão sombrio como este? – perguntou Sr. Oncoblas-to.

– Eu já não moro aqui desde que consegui trabalho no centro do complexo. Na verdade, saí daqui desde que perdi os meus pais.

Agente Calcin se virou rapidamente surpreso com a no-

tícia.– Disso eu não sabia – disse o agente. – O que aconteceu

a eles?– Como vocês bem podem notar as estruturas desses bair-

ros não são muito boas, o que provavelmente está expulsando seus moradores daqui – disse ela. – Mas não era sempre assim. Tanto Molares Superiores quanto os demais bairros eram fortes e bem estruturados e nós vivíamos aqui antes de nossa casa de-sabar pela falta de manutenção do sistema.

Senhorita Anipatita fora a única sobrevivente quando o complexo residencial onde morava foi ao chão. Desde então ela foi para o centro e começou a auxiliar nos projetos da nova câ-mara. Sua competência levantou os ânimos de alguns odonto-blastos e apatitas que queriam uma cidade melhor e quando Sr. Esmalte foi eleito, ele mesmo pediu seu currículo, contratando–a em seguida para trabalhar como secretária.

– Uma estória interessante para ser contada a estes odon-toclastos ingratos – opinou o agente. – Se fosse para formar uma revolta, você é quem teria os melhores motivos.

– Porém, isso a motivou querer sempre o bem da cidade – completou Sr. Oncoblasto.

– Mas não é hora para ficarmos nos preocupando com o passado – interrompeu Anipatita. – Temos uma missão muito importante para o futuro de Incisivocity.

Porém, no momento em que estavam prestes a reiniciar a caminhada, o agente ficou em silêncio observando o escuro. Anipatita e Oncoblasto ficaram sem entender a reação de Calcin, mas puseram–se em silêncio também a esperar alguma reação do agente.

– Rápido, por aqui! – sussurrou o agente Calcin entrando num buraco entre as paredes do beco.

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Prontamente, os outros dois que o seguiam fizeram o mesmo, se atirando em um lugar mais obscuro ainda.

– O que foi? – perguntou sussurrante o odontoblasto.– Esperem alguns segundos e verão – disse o agente

olhando para fora.Não demorou muito e um grupo de seis seres completa-

mente estranhos aos encarregados da prefeitura passou pelo beco lentamente sem fazer muito barulho. Eram tenebrosos fa-zendo com que Anipatita se jogasse pescoço do agente em sinal de medo. Em seus corpos, prendia uma carapaça escura muito desagradável à vista e fazia um som ligeiramente baixo, porém incômodo aos ouvidos.

– Que criaturas são estas? – perguntou em um tom ainda mais ponderado Sr. Oncoblasto.

– Não sei dizer ao certo, mas estão parecendo Actinomyces – respondeu Calcin. – Mas se for, o quê eles estão fazendo por aqui?

Era estranho ao agente a presença daquelas bactérias em Incisivocity já que a força policicálcio não estava informada. Com certeza não era de se esperar coisa muito boa vindo dessas criaturas e a preocupação começara a tomar conta de Calcin.

– Tem algo errado por aqui! – exclamou Anipatita. – Esses seres jamais andaram por estas bandas.

– Você tem certeza disso? – perguntou Calcin sem tirar os olhos das criaturas.

– Bom, pelo menos eu nunca as vi, em todo o tempo que morei aqui, nenhuma delas.

– É melhor informarmos à força policicálcio antes de se-guir em frente – argumentou Sr. Oncoblasto. – As coisas começa-ram a ficar estranhas demais por aqui e tenho certeza de que o risco de colocarmos tudo a perder se tornou grande.

O agente Calcin, mesmo concordando com o odontoblas-to, sabia que teriam de descobrir ao menos onde estariam reu-nidos os odontoclastos antes de retornar e avisar ao sargento Calcion sobre a presença dos actinomyces, pois os cálcios já de-veriam estar sabendo do sumiço dos odontoclastos e com certe-za começariam uma caçada sem fim.

– Vamos fazer o seguinte: – arriscou o agente – vocês dois ficarão aqui. Já eu seguirei essas criaturas para entender o que se passa. Se eu não retornar até o escurecer, os dois voltarão à prefeitura e alertarão sobre tudo.

– Você está pedindo para que o deixemos seguir sozinho enquanto esses actino... sei lá o quê estão rondando por aí? – avançou a apatita perdendo sua calma. – Ora, o que você está pensando que nós somos?

– Vocês são cidadãos que não têm a mínima chance con-tra essas criaturas – respondeu o agente acenando para que ela falasse em baixo tom.

Sr. Oncoblasto estava apenas olhando para fora esperan-do que algum daqueles seres retornasse com aquela discussão tola.

– Olha, se vamos seguir ou ficar, é melhor decidir rápi-do – disse Oncoblasto olhando para fora. – Acho que eles estão retornando.

Todos ficaram paralisados por alguns instantes quando foram surpreendidos por um barulho muito próximo de onde estavam escondidos. O agente sacou sua pistola de calcitina já temendo o fato de tê–los alertados com seus sussurros. Anipa-tita estava quieta com as mãos sobre a boca se remoendo pelo fato de ter perdido o controle.

Eis que de repente alguma coisa cai em frente ao buraco onde estavam, fazendo com que os três se recuassem temerosos.

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Para a surpresa de Sr. Oncoblasto, o que acabara de ir ao chão era um dos odontoclastos.

– Calma aí! – disse Oncoblasto. – Eu o conheço.Ao dizer essas palavras, Sr. Oncoblasto se atirou para

fora do buraco e aproximou–se do indivíduo. Percebendo que o odontoblasto estava correndo perigo do lado de fora, Calcin também correu ao seu encontro seguido pela secretária.

– Que coisa, Oncoblasto! – resmungou Calcin. – O que acha que está fazendo?

– Este odontoclasto caído é meu primo – disse ele erguen-do o odontoclasto do chão.

– Como assim, seu primo? –foi a vez de Anipatita.– Este é meu primo Oncoclastos e trabalha em Molares

Direitus no setor inferior. Mas ele está todo machucado, e o que tenha acontecido a ele, poderá ocorrer conosco também.

– Oncoblasto tem razão – disse o agente olhando os arre-dores. – Vamos retornar ao buraco trazendo o primo do Sr. On-coblasto e pensar melhor no que iremos fazer.

Capítulo 5

– Eu só me lembro de estar caminhando com um colega pelo beco em Molares Direitus no setor inferior, depois da reu-nião de odontoclastos há alguns dias, quando fomos atacados e eu fui golpeado.

Foram as primeiras palavras do odontoclasto após algu-mas perguntas do agente.

– O que está acontecendo? – perguntou Sr. Oncoblasto. – Por que vocês pararam o serviço em toda a cidade?

Oncoclastos olhou assustado para o primo como se esti-vesse surpreso com a pergunta.

– Como assim? – perguntou o odontoclasto. – Você disse que o serviço dos odontoclastos está parado? Isso não pode es-tar acontecendo.

Calcin e Anipatita entreolharam–se sem entender o que dizia o odontoclasto.

– Calma aí! – interrompeu Calcin. – O que você está fazen-do aqui no setor superior se foi atacado nos bairros inferiores?

– Eu acordei há alguns dias atrás em um lugar estranho por aqui perto. Muitas destas criaturas estavam reunidas, mas o que me chamou atenção foi a chegada de alguém muito alto e

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forte dando ordens a todos. Percebi que ele comentou algo so-bre os odontoclastos e o sistema, mas eu ainda estava atordoado pela pancada. Tempos depois, ele não estava mais lá e tampouco as criaturas que nos acertaram, mas sim outros seres bem mais estranhos.

– Outros seres? – perguntou Calcin. – Não eram os mes-mos que te acertaram?

– Não – respondeu. – Aqueles eram fortes e ágeis, estes eram menores e muito mais feios. O que me lembro, e muito bem, era do seu cheiro fétido.

Calcin parecia estar ligando as coisas. Estava com um sor-riso estranho no rosto como alguém que descobre algo.

– São os streptos – disse atestando sua conclusão. – Aque-les maus caráter fedem à distância.

– O que isso significa? – perguntou Oncoblasto.– Significa que não vai demorar muito e Molares inteira

virá abaixo – afirmou o agente.– Mas alguma coisa aconteceu naquele dia – continuou o

odontoclasto voltando aos seus “flashbacks”. – Apareceu uma turma muito bem armada e acabou com a maioria daqueles bi-chos. Parecia um grupo de elite muito bem estruturado. Tudo que posso me lembrar é que, onde eu estava, acabou cedendo e eu caí. Quando me dei conta, muitos daqueles seres estavam ao chão e aproveitei para escapar. Andei por muito tempo até vocês me encontrarem.

Um grupo de elite que dera fim nos streptos? Era mui-to estranho. Talvez alguma coisa estivesse acontecendo muito além das fronteiras da cidade, ou então o sistema estava agindo por conta própria; mas isso seria possível se o sistema não acre-ditasse que Incisivocity pudesse resolver. De uma coisa o agente já não tinha mais dúvida, a Cárie havia começado sua onda de

destruição e estava com uma estratégia bem forte.– Então você também não sabe onde os outros odonto-

clastos estão? – voltou a perguntar Calcin.– Eu nem mesmo sei onde estou.– Mediante isso não temos escolha – disse Calcin voltan-

do–se a Oncoblasto e Anipatita. – Vocês terão de voltar para Inci-sivus Centrales levando Oncoclastos. Peçam todo o reforço pos-sível antes de retornarem para cá, sugiro até que não retornem.

– Mas e você? – perguntou Oncoblasto.– Eu tenho de encontrar os outros odontoclastos, agora

mais do que nunca. E não precisa se preocupar, Anipatita. Eu fi-carei bem.

Anipatita não sabia o que fazer. Não queria deixá–lo em hipótese alguma, ainda mais naquelas circunstâncias.

– Por que está pedindo isso? – perguntou ela quase se derramando em lágrimas. – Venha conosco e poderá voltar com o reforço.

– Temo que não haja tempo – respondeu olhando nova-mente para fora do buraco. – Está prestes a ocontecer uma ca-tástrofe se eu não agir logo. Se os odontoclastos estiverem por aqui, e é o que realmente se procede pelo que parece, tenho que alertá–los para uma fuga iminente.

– Deixe–me ficar e ir com você então – disse Oncoclas-tos. – Nestes momentos difíceis, creio que nenhum odontoclasto acreditaria em você, Calcin.

– Sei que isso é uma verdade – concluiu o agente. – Mas você está muito debilitado e não posso me arriscar a sermos en-contrados pelos actinomyces com você desse jeito. Volte com o reforço, será mais útil assim.

Foi difícil para todos saber que o agente estava coberto de razão e não poderiam fazer mais nada ao contrário. Mais difícil

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ainda foi para Anipatita que teve de optar, contra sua vontade, a deixar Calcin para trás e levar os dois primos por um caminho seguro até o veículo da prefeitura.

– Não se preocupe Calcin – disse Oncoclastos. – Vamos re-tornar com o reforço. Mas só por garantia, leve isto.

E o odontoclasto entregou ao agente um brasão com os dizeres da organização dos odontoclastos, que dizia: “SOMOS A FORÇA QUE MOVIMENTA A CIDADE”.

– Se estiver com isso, saberão que realmente esteve com um membro deles. E poderão acreditar em você – continuou o odontoclasto.

– Talvez, mas o importante é que saibam que Molares está ruindo e também fiquem cientes da presença dos actinomyces – respondeu pulando para fora do buraco e sumindo na escuridão do beco.

• • •

Algum tempo se passou desde então e a tarde caía rápida sobre a cidade. Sr. Esmalte, como já era de costume, punha–se em pé à janela para observar toda Incisivocity cair ao entarde-cer. Entretanto, aquela tarde lhe traria algo incomum e parecia ser previsto pelo prefeito que se punha todo inquieto.

– Assim você vai sofrer um infarto – disse Sra. Dentina en-trando na sala. – Há horas está andando de um lado para outro, sai para o corredor e retorna para a sala sem dizer nada, sem contar que acabou com a garrafa de fluorita.

– Nenhum deles retornou ainda dos bairros superiores – disse cruzando para trás os braços. – Estou temendo por alguma coisa séria.

Sra. Dentina sentou–se por um momento e pôs–se a pen-

sar no que diria ao marido a fim de não fazê–lo se preocupar ainda mais.

– Que o assunto é sério não é segredo para ninguém – disse ela também tomando um copo do fluoreto. – Você mesmo já sabia antes de todos o que poderia acontecer.

Esmalte se sentou à frente da esposa ficando a observá–la atentamente por alguns instantes, matutando algo. Até que resolveu dizer completamente o oposto do que realmente pre-tendia.

– Onde está Amelodentina? – perguntou indiferentemen-te.

– Está em casa. Já chegou da escola e está em companhia de Madame Mielina que prontamente está nos ajudando hoje. É engraçado como uma pessoa que é maravilhada com crianças ainda não ter nenhuma.

Porém, este último comentário nem sequer foi absorvido pelo prefeito que ainda continuava sentado a observá–la, pen-sando nos três encarregados.

Ali ainda ficaram, um sem dizer nada ao outro, até que se iniciou uma buzinação à frente da prefeitura despertando a atenção do prefeito e sua esposa que correram até a janela para ver o que se passava.

Sr. Esmalte parecia gostar do que estava vendo, pois o barulho era da viatura municipal que vinha ziguezagueando e buzinando sem parar. Contudo, para a decepção do prefeito, desembarcaram três passageiros sendo que um deles não era o agente Calcin.

– Aconteceu alguma coisa a Calcin! – exclamou o prefeito já correndo em direção à porta rumo à entrada da prefeitura seguido pela esposa.

Quando lá chegaram, o prefeito se deparou com o Sr. On-

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coblasto e Anipatita trazendo um odontoclasto ancorado.– O que houve com ele? E onde está o agente Calcin? – Sr.

Esmalte foi disparando as perguntas.– Calcin ficou e está seguindo em direção ao centro de

Molares Direitus no bairro superior – disse senhorita Anipatita atônita. – Temos de fazer algo, senhor prefeito!

– Pelo que parece existem germes por todos os cantos lá, Sr. Esmalte – foi a vez de Oncoblasto explicar. – Este é meu primo e foi atacado por alguns deles.

– E por que o agente não voltou com vocês? – começou a se desesperar o prefeito.

– O agente teme pela vida dos odontoclastos, já que o bairro está cedendo e, pelo que parece, vai ruir – respondeu o odontoclasto com certa dificuldade.

Sr. Esmalte voltou–se rapidamente para a esposa que es-tava à porta da prefeitura e pediu urgentemente que ela ligasse para o sargento Calcion solicitando uma força de resgate. Pron-tamente, Sra. Dentina correu para dentro com muita esperteza.

– Vamos atrás de Calcin – disse imponentemente o prefei-to. – Temos que tirá–lo de lá.

– Tem que me levar junto, senhor prefeito – clamou o odontoclasto. – É necessário que eu vá para que meus amigos não tentem nada contra o agente.

– Está em condições senhor... – Esmalte não sabia seu nome.

– Oncoclastos – completou o odontoclasto.– Certo, Sr. Oncoclastos, consegue retornar para o lugar

de onde veio?– Calcin está se preocupando com meus amigos e sendo

assim também é meu amigo – respondeu Oncoclastos. – Jamais tenha dúvida da fidelidade de um odontoclasto.

Anipatita se adiantou à frente do prefeito com uma ex-pressão preocupada.

– Eu também vou, Sr. Esmalte.Sr. Esmalte achou aquilo muito estranho, mas já tinha ou-

tros planos para sua secretária.– Desculpe–me senhorita, mas prefiro que fique e auxilie

minha esposa. Já está nascendo em mim uma ponta de remorso muito grande em tê–los enviados assim tão despreparados para lá. Não quero cometer outro erro.

– Não foi um erro, Sr. Esmalte – continuou Anipatita. – Nem mesmo nós sabíamos o que encontraríamos lá e mesmo assim aceitamos a tarefa. Não vai ser agora, cientes disso, que vamos ficar parados sem fazer nada.

Esmalte ficou parado olhando para sua secretária admi-rado, contudo estava certo de que o primeiro obstáculo contra seu governo estava levantado e ele não iria diminuir esforços contra as forças opositoras à Incisivocity. Não poderia envolver Anipatita nesta situação, por mais que ela estivesse já envolvida.

– Sua bravura honra nossa cidade, senhorita Anipatita – disse orgulhoso por cada palavra dela. – Mas é extremamente necessário que fique e proteja com sua bravura minha esposa. Não sei se isto é mais uma manobra da Cárie para me afastar da prefeitura, então preciso de alguém de confiança para ficar ao lado de Sra. Dentina.

Mesmo com o coração apertado, a apatita aceitou ficar, mas ainda sim não entendeu quem guiaria a nova missão de res-gate.

– Não se preocupe senhorita Anipatita – confortou o prefeito. – Sargento Calcion está preparado para este tipo de situação.

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• • •

Quando Calcin atingiu o topo da rua que vinha de encon-tro ao beco por aonde veio, ele pôde ouvir os primeiros sons de vozes que vinham de algum lugar próximo. O agente sabia, porém que estava próximo de um lugar onde muita gente se en-contrava.

Como veio pelo beco em ruínas, Calcin reduziu as chan-ces de esbarrar com alguém ou alguma coisa, mas teve de seguir pela rua principal para atingir o centro do bairro.

Continuou seguindo em direção às vozes que aumenta-vam de intensidade à medida que Calcin seguia em frente.

Molares, na região dos bairros superiores era cheio de depressões, entradas e saídas por todos os lados o que outrora davam um contraste maravilhoso aos que os viam de longe. Não era de se duvidar que agora, em ruínas, alguém se perdesse em suas ruas. Poucos eram os odontoblastos e apatitas que se arris-cavam a morar por aqueles lados e mesmo assim trabalhavam longe de lá ou então já estariam construindo suas casas em ou-tros bairros. Molares estava se tornando um verdadeiro bairro fantasma.

Mesmo assim, cheio de labirintos, o agente conseguiu chegar ao local onde provavelmente estavam reunidos os odon-toclastos. Um antigo galpão com um espaço enorme de onde emanava uma luz intensa.

Ao aproximar–se de uma das janelas, Calcin pôde ver uma grande quantidade de odontoclastos em uma espécie de reu-nião. Sabia que seria arriscado entrar sem autorização, mas a finalidade era maior que o risco.

Quando, por fim, o agente se aproximou de uma das en-

tradas, empunhou o megafone que trazia pendurado na cintura e disse em alto tom para que todos pudessem ouvi–lo.

– Ouçam todos! Sou o agente Calcin e venho alertá–los para abandonar Molares urgentemente. Todo o bairro não de-morará a ruir. Vocês têm que sair daqui agora.

Naquele instante uma grande parte dos odontoclastos reunidos, mesmo que tivessem ouvido direito, não entendeu aquela cena.

– Olhem, os cálcios estão aqui! – dizia um – Eles vieram atrás de nós e vão nos pegar! – acrescentou outro. Porém, todo o conjunto estava certo de que estaria cercado e que a força po-licicálcio já teria chegado.

Não houve quem ficasse parado naquele instante e boa parte se retirava em fuga, já outros partiram para cima do agen-te Calcin em retaliação.

Em uma última tentativa, o agente gritou novamente so-bre sua intenção em ajuda os odontoclastos e mostrou o emble-ma de Oncoclastos, porém novamente foi ignorado.

Calcin, quando notou que grande parte dos odontoclastos partiu em sua direção,pôs–se em retirada voltando para o lugar de onde viera.

Em fuga, tentou dobrar alguns corredores nas ruelas de Molares com toda astúcia que lhe era digna. Fora muito rápida a reação negativa daqueles odontoclastos e por mais preparado que estava quanto a este possível acontecimento, ele jamais es-perava que os odontoclastos partissem para uma revolta assim tão subitamente, já que uma das qualidades desse grupo era o de tentar um acordo diante de qualquer problema. Mesmo quando houve a primeira manifestação contra o prefeito em Caninus, as partes se dividiram e protestavam inicialmente.

Outra coisa que se sucedeu durante a fuga do agente foi

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o arrombamento de uma das paredes do beco, fazendo–o frear e ficar parado perplexo. Do buraco que se formou com a queda da parede, muitos streptos se atiravam ao beco também, ao que parecia, prontos a atacar Calcin.

O agente se viu numa situação nada agradável naquele momento, atrás estavam os odontoclastos hostis e à frente aque-les seres asquerosos dos quais Calcin não teria dúvidas sobre suas intenções. A única alternativa plausível da qual o agente lançou mão foi a de também arrombar uma das paredes laterais do beco, já que estavam todas desgastadas e Calcin não encon-traria dificuldades para realizar a manobra.

Quando o agente caiu do outro lado do muro, se deparou com uma enorme porta semi–serrada e imediatamente partiu para adentrá–la.

Era outro galpão repleto de escadarias, porém menor que aquele onde se encontravam reunidos os odontoclastos. Calcin observou que uma das escadarias levava a um andar superior e resolveu seguir por lá antes que o exército de streptos entrasse pela mesma porta que ele entrou.

A escadaria pela qual o agente seguiu levava diretamente ao terceiro andar e Calcin pôde notar que a vista era privilegiada de lá o que poderia beneficiá–lo em vantagem aos seus perse-guidores. Contudo, ninguém entrou pela grande porta do galpão e Calcin colocou–se em alerta total, somente olhando agachado para fora em direção aos sinistros becos de Molares.

Calcin, então, notou que uma pequena tropa se movimen-tava a leste dali e nitidamente o agente conseguiu identificar uma personalidade bem conhecida da força policicálcio lideran-do a manobra. Era o tão conhecido Ácido Açucarado.

– O que este sujeito está fazendo aqui? – pensou Calcin em observação.

Não houve muito tempo para que o agente averiguasse, pois as estruturas de todo o prédio em que estava começou a tremer fortemente. Calcin era jogado de um lado a outro sem conseguir se segurar direito, até que uma parte do solo cedeu fazendo com que ele ficasse pendurado. A queda seria inevitável e Calcin nada poderia fazer do contrário já que o piso por onde ele se apoiava também estava ruindo. Seria o fim de Calcin. Po-rém, naquele momento o teto também se abriu e alguém se pôs a descer em um fio branco lustroso.

– Segure em minha mão com toda força! – ordenou o su-jeito. – Vou retirá–lo daqui.

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Capítulo 6

A viatura da prefeitura parou derrapando próximo ao veículo dirigido por Calcion.Sr. Esmalte desceu rapidamente com outros dois cálcios trazendo Oncoclastos. O sargento des-ceu da outra viatura com mais três cálcios consigo.

– Daqui em diante, seguiremos a pé – disse o sargento em-punhando sua pistola calcítica.

– Então é melhor começarmos já! – respondeu o prefeito.Porém, quando se direcionou para o beco de onde parti-

riam, foi interrompido pelo sargento.– É melhor aguardar o reforço, senhor prefeito. Pelo que

parece, alguma coisa muito séria está prestes a ocorrer aqui.O sargento baseou–se pelos buracos feitos ao redor de

todo o bairro para fazer o alerta. Não eram sinais das ruínas fei-tas pelo desgaste mineral do bairro, mas sim por algo provocado com muita fúria.

A cada segundo o prefeito ficava mais preocupado com a situação do agente. Era de se concordar com o sargento de que coisas muito estranhas e sérias estavam acontecendo pela re-dondeza.

– Nós vamos ficar aqui esperando? – questionou Sr. Es-

malte.– Eu conheço um caminho rápido até o centro do bairro.

Poderíamos tentar alcançar o local onde Calcin deve estar sem alarmar os inimigos – arriscou Oncoclastos.

– Ótimo, só me faltava essa! – retrucou o sargento impa-ciente. – Já não basta trazer de volta um odontoclasto rebelde e ainda vamos segui–lo em uma provável armadilha até o seu covil?

– Sua arrogância é conhecida pelos quatro hemiarcos da cidade, seu sargento de titica! – revidou o odontoclasto. – A mi-nha sorte é que conheci o agente Calcin e isso bastou para saber que nem todos são como você. Se bem que levá–lo para uma to-caia não seria má ideia, porém, mesmo que quisesse, respeitaria a honra do prefeito que também me parece uma pessoa muito boa.

– Por falar em ideias, a minha seria de prendê–lo assim que o encontrasse, seu odontoclasto ridículo!

– Basta! – gritou o prefeito já sem muita paciência. – Não estamos aqui para trocar ofensas e sim para resgatar o agente Calcin e os demais odontoclastos. Pelo que me parece, Molares Superiores já não têm muitos recursos. Temos de encontrar o agente o mais rápido possível e salvarmos quantos odontoclas-tos pudermos.

Calcion não teve ousadia de pronunciar mais nada contra as palavras do prefeito, mas ainda não admitia que aquele rebel-de, como pensava a respeito de Oncoclastos, pudesse estar ali, livre, tomando as rédeas da situação.

– Sinto muito, sargento – disse o prefeito para Calcion. – Mas tenho de ir mediatamente em busca de Calcin. Sinto–me responsável por tudo que lhe venha acontecer por aqui. Vou à frente com Oncoclastos e o senhor espere o reforço chegar para

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ir ao nosso encontro no centro de Molares.– Tenho de informar–lhe que não temos tropas o suficien-

te para cercar Molares, Sr. Esmalte. Não poderemos entrar em contato direto com um exército de streptos que provavelmente está instalado por todo o bairro o que nos dá uma imensa des-vantagem sobre eles.

– E que estratégia o senhor pretende tomar? – argumen-tou Sr. Esmalte.

– O reforço que está chegando montará um ponto de apoio nesta entrada. Teremos um curto prazo para localizar Calcin, eli-minar alguns destes germes e bater em retirada, chegando até este ponto novamente.

O prefeito olhou ao redor um pouco indignado por não ter muitas opções e retornou um breve olhar sobre Oncoclastos.

– Infelizmente tenho de admitir que seja um bom plano, Sr. Esmalte – concordou o odontoclasto – se levarmos em conta que estamos aqui por Calcin, mas em contrapartida, meus com-panheiros ficarão para trás ruindo junto com todo o bairro.

– Está disposto a se arriscar um pouco mais, senhor Onco-clastos? – perguntou o prefeito.

– Se for para ajudar os meus companheiros...E se voltando para o sargento o prefeito deu uma última

ordem.– Será feito tudo de acordo com o seu plano sargento,

porém peço que o senhor recue sua tropa até Caninus Superio-res e aguarde o meu retorno até esta viatura para que comece a disparar com os canhões de calcitina sobre Molares. Se eu não retornar, comece a disparar assim mesmo ao avistar o primeiro germe que sair do bairro.

• • •

Eles estavam em quatro, todos bem uniformizados e por-tando capacetes prateados. Alguns detalhes nos uniformes eram marcantes e podia–se nitidamente ver em alto relevo as siglas L e A no braço.

Calcin também notou que alguma preocupação rondava em torno de seus salva–vidas.

Quando o galpão de onde estavam começou a ruir, mo-mentos depois de retirarem o agente lá de dentro, todos em con-junto usaram uma espécie de cinturão, também prateado, que se desdobrou em uma extensa tira de matriz metálica e assim conseguiram usá–la como passagem para um terraço no prédio ao lado. Calcin se lembrava somente daquele detalhe, pois em seguida teve alguns segundos de amnésia provocada talvez pelo choque emocional de quase ter caído junto com o andar.

– Quem são vocês? – perguntou o agente ainda atordoa-do.

– Meu nome é Mercúrio – respondeu o sujeito que o re-tirou do galpão usando uniforme prateado com um enorme M brilhante no peito – Meus companheiros e eu estamos aqui para tentar impedir a demolição de Molares Decíduos Superiores.

Por mais incrível que parecesse, aquele que se intitulava Mercúrio pronunciou o verdadeiro nome daquele bairro e Cal-cin se mostrou ainda mais confuso.

– Sei que está fora de seu entendimento, então vou co-meçar pelas apresentações – continuou Mercúrio. – Aqui está o Estanho, aquele cara esguio com o E no peito; Cobre, o de cara amarrada, porém boa pessoa e com um C de todo o tamanho; e nossa bela líder a Prata, com aquele lindo P no meio de seus...

– Por favor, não vamos acrescentar detalhes, Mercúrio! – interrompeu a Prata com toda a segurança. – Nosso tempo é cur-to e ainda não conseguimos identificar a rota dos streptos.

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Mesmo em sua confusão, Calcin não iria deixar passar ba-tidas aquelas palavras.

– O que isso tem a haver com vocês e como sabem da exis-tência desses seres?

– Há tempos estamos esperando um chamado do Sistema Nervoso Central para que pudéssemos agir por aqui. Contudo, não contávamos que seria tão tarde assim – disse a Prata procu-rando alguma coisa ao longe. – Já deveríamos estar aqui há bas-tante tempo, creio que a força policicálcio de Incisivocity ainda não está preparada para uma situação desta gravidade.

– É bom você não levar a sério este pensamento a nosso respeito, está bem dona Prata – ofendeu–se o agente. – Nunca nos subestime.

– Ah, é mesmo! – exclamou o Cobre. – E o que vocês fize-ram até agora para evitar que uma coisa dessas acontecesse a Molares?

– Acalme–se, Cobre – interveio o Estanho. – Não vamos e nem estamos aqui para encontrar culpados e sim resolver o problema.

Mesmo com uma cara não muito agradável, o Cobre vol-tou a sua posição com um binóculo procurando enxergar algo. O agente ainda confuso não encontrava palavras para tentar con-tinuar a defender sua guarnição e permaneceu calado tentando entender o que se passava.

– Então foi o Sistema Nervoso Central que enviou vocês? – perguntou o agente mais calmo.

– Na verdade não – respondeu a Prata. – Fomos alertados de que alguma coisa estava errada justamente pelo Sistema Ner-voso Periférico.

Calcin sabia que tanto o Sistema Nervoso Central como o Sistema Nervoso Periférico trabalhavam para os mesmos fins,

contudo tomavam decisões completamente diferentes. Um nun-ca via o outro e boatos por todo o sistema diziam que se por algum acaso tal fato viesse ocorrer, uma enorme disfunção se espalharia por todos os complexos. Mas uma coisa era certa, se o Sistema Nervoso Central ainda não tinha se manifestado em relação à Incisivocity no que se referia aos conflitos internos, era porque, de fato, ele confiava na nova administração que surgia, coisa que não era de se esperar do Sistema Nervoso Periférico já que este reagiu completamente ao contrário.

Mas quando foi tentar questionar sobre sua nova suspei-ta, foi instantaneamente interrompido por Cobre.

– É melhor dar uma boa olhada nisso, Prata – disse afas-tando o binóculo dos olhos.

A Prata rapidamente se aproximou do companheiro apa-nhando seu binóculo e pondo–se a observar na direção aponta-da por Cobre.

– Eles estavam vindo para cá, mas alguma coisa aconte-ceu para fazer os streptos mudarem de direção – continuou o Cobre.

– O que eles perceberam, caro Cobre, é que pelo beco de entrada vem mais alguém e não são streptos – disse ela sem afastar os olhos do aparelho. – O mais interessante é que quem quer que esteja vindo, sem perceber, encontrará pela frente um batalhão muito grande desses germes. Não terá a mínima chan-ce.

– Dá para identificar quem está vindo? – foi a vez de Mer-cúrio.

– São quatro – disse ela. – Mas somente dois deles são da força policicálcio.

Calcin gelou dos pés à cabeça quando ouviu aquele co-mentário. Poderia ser Anipatita e Oncoblasto com um reforço

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miserável, o que seria uma tremenda falta de senso.– Por favor, me dê este negócio aqui! – disse Calcin arran-

cando o binóculo das mãos da Prata após dar um salto do lugar onde estava.

– Tenha pelo menos modos, seu mal educado! – retrucou o Cobre, sendo completamente ignorado pelo cálcio.

– Que desastre! – exclamou Calcin. – Pessoal, se tivermos de fazer alguma coisa então que seja agora mesmo!

A Prata aproximou–se assustada com o agente, pois ele parecia estar realmente aflito pelo que havia visto.

– O que é senhor... ah...– Calcin é o nome que ele disse Prata – interveio o Mer-

cúrio.– Por que a aflição oficial Calcin? – perguntou ela corri-

gindo–se.– Quem está vindo lá, com dois policicálcios e um odonto-

clasto é o senhor prefeito Esmalte Esmaltus.Oncoclastos vinha amparado pelos oficiais enquanto Sr.

Esmalte caminhava mais à frente sendo orientado pela voz do odontoclasto. Deveriam ter dobrado umas duas vielas antes de alguma coisa muito estranha começar a acontecer.

– As paredes aqui estão completamente podres! – excla-mou o prefeito. – Não me parece ser obra de odontoclastos.

– E não são – completou Oncoclastos. – Estes vermes, pelo que parece, há muito vêm agindo por estas bandas.

Sr. Esmalte continuava caminhando e observando o es-tado degradante no qual o bairro se encontrava, mas já estava aflito em relação a sua segurançanaquele lugar. Se não fosse pelo agente, que também estava lá cumprindo sua ordem, ele espera-ria todo o reforço chegar para uma operação tão arriscada.

– Está sendo muito corajoso, como personalidade pública,

em se arriscar tanto Sr. Prefeito.– Ora, Oncoclastos – respondeu. – Se formos medir nossas

coragens, lembre–se de que você é quem está machucado, além de estar aqui comigo.

Porém Oncoclastos sabia que em outras circunstâncias, se estivesse nas mesmas condições do prefeito, ele não teria a mesma disponibilidade.

– Parem todos! – gritou um dos oficiais. – Tem algo acon-tecendo ao nosso redor.

A tensão começou a piorar quando o prefeito percebeu que as compridas paredes que os cercavam realmente deveriam os separar de outros corredores e que um barulho de coisas ras-tejantes vinha dos arredores.

Todos se entreolharam sem dizer uma única palavra, ain-da que o medo começasse a alfinetar seus sentimentos e a real vontade fosse a de gritar.

– Sintam este cheiro terrível! – sussurrou Oncoclastos. – São eles, e devem estar por toda a parte.

– Veja só, senhor prefeito! – foi a vez do outro oficial. – As paredes estão começando a trincar e ruir.

– O pior é que a situação se agrava pelo caminho do qual viemos – disse o outro.

E era realmente o que estava acontecendo, por mais ina-creditável que fosse, pois as paredes começavam a ceder, logo atrás deles, lentamente.

Não demorou muito e um imenso bloco de viga e concreto calcítico desmoronou em cima de um dos oficiais, por onde co-meçaram a saltar vários streptos sedentos por destruição.

– Corram! – gritou o outro oficial antes de ser atacado pelas criaturas impiedosamente.

Ao ver que o odontoclasto não iria conseguir se locomover

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com velocidade, o prefeito arrancou–lhe do chão, encaixando–o em suas costas e pondo–se a correr em uma de suas maiores impulsões.

O caminho era estreito, porém longo e Sr. Esmalte se mo-via atento a qualquer porta aberta que pudesse aparecer. Con-tudo, sua busca por uma entrada estava sendo em vão e suas costas começavam a pesar pela carga que vinha trazendo.

– Deixe–me, senhor prefeito! – disse Oncoclastos engas-gando–se com o cavalgar de Esmalte. – Eu já estou acabado mesmo. Só quero que Calcin saiba que estive aqui também para ajudá–lo.

– Ora, veja se consegue calar a boca! – irritou–se pela pri-meira vez o prefeito ao ouvir o que dizia o odontoclasto. – Eu jamais ouvi tanto absurdo em tão curto espaço de tempo. Se qui-ser dizer algo, que seja para ajudar em nossa fuga.

Oncoclastos não poderia dizer mais nada após o sermão do prefeito e assim sendo também começou a ficar atento ao ca-minho que faziam. Entretanto, olhar para trás era uma atitude completamente impossível de se controlar.

Pareciam vir centenas daquelas criaturas esquisitas atrás deles e se multiplicavam à medida que avançavam pelos corre-dores.

– E os policicálcios que ficaram para trás? São apenas dois contra milhares destes bichos! – lembrou o odontoclasto.

– Se ainda temos alguma chance de encontrar Calcin e ten-tar sair daqui, esse é o único meio – respondeu o prefeito amar-gurado. – Os dois oficiais fizeram muito bem a parte deles, está na hora de fazermos a nossa e honrar esta lastimável perda.

Mesmo que continuassem a correr, tudo parecia estar sendo em vão, ou seja, uma maneira mais longa até que fossem encurralados pelos streptos em algum canto. A aflição daquele

instante se misturava com os conhecimentos e lembranças de Oncoclastos e assim ele mal sabia para onde estavam seguindo naquele momento. O que ambos não contavam era que o chão também não se mantinha firme e acabaram seguindo para um lugar completamente inseguro.

Não demorou muito e o chão se abriu em uma enorme fenda fazendo com que Sr. Esmalte e Oncoclastos caíssem em uma escuridão sem tamanho, que era o subterrâneo do bairro.

– Que queda horrorosa! Tudo bem com você Oncoclastos?– Eu não sei onde dói mais – respondeu o odontoclasto

tentando se levantar no escuro. – Até o meu cabelo está latejan-do!

– Onde estamos? – perguntou Sr. Esmalte procurando por Oncoclastos naquele ambiente escuro onde a única luz que cla-reava vinha do buraco por onde caíram.

– Embaixo da cidade pelo que me parece, senhor prefei-to – respondeu novamente e vagarosamente, enquanto tentava identificar qual a parte de seu corpo que lhe doía menos.

Mas naquele instante, até mesmo o feixe de luz que aden-trava no ambiente se tornou opaco devido ao incontável número de streptos que começou a passar por cima deles sem ter notado a queda de ambos pelo buraco.

– É senhor prefeito! – sussurrou. – Algo me diz que esta-mos aqui para ajudar mesmo. Ou estes streptos são muito idio-tas e mesmo nos perseguindo não notaram nossa espetacular queda, ou uma força muito maior ainda flui a nosso favor.

– Porém, isso não nos deixa em vantagem de nada – re-trucou o prefeito. – Você tem alguma ideia do que vamos fazer agora? Eu mesmo não sei nem como sair desse buraco.

Ficaram ali parados por um bom tempo até que o último dos streptos passasse e então puderam ver novamente o feixe

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de luz cortar a escuridão. Ainda assim permaneceram imóveis, tentando reconhecer o rosto um do outro vagando no nada.

– Tanta gente envolvida nesta confusão toda, tudo por causa dos caprichos da Cárie – disse Esmalte pouco confiante sobre o futuro da missão com os dois naquele estado.

– Então, é realmente a Cárie que está por trás dessa con-fusão toda? – perguntou Oncoclastos desconfiado.

– Não tenha dúvida nenhuma disso, meu amigo Onco-clastos. Ela é capaz das atrocidades mais sinistras que possam existir para alcançar o que quer. Inclusive colocar cidadãos uns contra os outros – explicou o prefeito.

– E agora, muitos dos odontoclastos poderão sucumbir a essa balburdia – respondeu indignado Oncoclastos. – Talvez, se todos nós soubéssemos da sua dignidade para o cargo de prefei-to, não estaríamos em uma situação tão inglória.

– Chorar o leite derramado nunca ajudou nada a ninguém – completou o prefeito. – O melhor agora é continuarmos a se-guir, mesmo que seja no escuro. Enquanto ainda estamos vivos, ainda nos resta atitude. Está pronto para continuar, Oncoclas-tos?

– Ora, senhor prefeito. Agora mais do que nunca.Mas quando tentavam caminhar novamente, Sr. Esmalte e

Oncoclastos foram subitamente agarrados por alguma coisa que parecia estar ali por muito tempo.

– Pois vocês não vão a lugar algum até que nos esclare-çam direito o que se passa realmente lá em cima – disse, impo-nente, uma voz na escuridão.

Capítulo 7

Uma pequena luz em um capacete se acendeu e Sr. Esmal-te pôde ver uma figura pequena com pernas muito curtas, mas com braços que dariam inveja a um fisiculturista. Logo após essa primeira luz se acender, outras foram também se acendendo tra-zendo à tona um número generoso de anões fortes e barbudos que tinham olhares firmes e penetrantes. E que olhares! Sr. Es-malte se assustou ao perceber o tamanho exagerado daqueles olhos.

– Meu nome é Cementon e sou líder desta comunidade de cementócitos que vivem abaixo de sua cidade.

Oncoclastos olhou para Sr. Esmalte como se quisesse al-guma resposta sobre o que teria acabado de dizer aquele sujeito, mas o prefeito parecia estar tão pasmo quanto ele mesmo. Era uma situação difícil de acreditar, pois nunca Sr. Esmalte havia sido informado sobre nada que se assemelhasse àquilo.

– Deixe–me começar aos poucos, antes que eu me enlou-queça – iniciou o prefeito. – Vocês são seres subterrâneos?

– Nós, cementócitos, cuidamos da formação básica e es-trutural da cidade onde moram. Tudo que existe lá foi iniciado e se mantêm de pé devido aos nossos esforços.

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– Essa é boa! – resmungou Oncoclastos. – O que mais falta acontecer à Incisivocity? Nem mesmo a cidade se conhece.

– E por que nós não sabemos nada sobre vocês? – conti-nuou o prefeito a perguntar.

– Nós não fazemos parte e jamais vamos fazer da por-ção exposta da cidade. Não sobreviveríamos muito tempo lá em cima. Por essa e outras razões temos a nossa organização bem montada aqui embaixo. Nós vivemos do que acontece lá em cima, mas não podemos viver lá.

– E eu que achava que os odontoclastos eram um povo isolado! – continuou a dar seus comentários Oncoclastos.

– Como pode haver uma coisa dessas? – continuou perple-xo o prefeito. – Madame Mielina nunca me falou nada a respeito e...

– E é melhor então vocês dizerem logo o que se passa lá em cima – interrompeu o cementócito impaciente. – Por mais que estamos trabalhando aqui embaixo, este setor está impossí-vel. Tudo está desabando por aqui.

Sr. Esmalte ainda não se sentia satisfeito. Para ele, as situ-ações sobre Incisivocity eram de sua plena sabedoria e conhe-cimento, mas agora se deparava com problemas completamen-te sem controle e inusitados. Mesmo que ainda quisesse saber mais sobre a nova comunidade, ele sabia que naquele momento os donos da razão eram os cementócitos e assim pôs–se a cola-borar.

– Realmente este bairro está condenado. Estamos sofren-do uma intensa invasão de streptos e eu tenho a mais absoluta certeza de que eles só ver–se–ão satisfeitos quando Molares Decíduos estiver totalmente destruída.

Os cementócitos entreolharam–se assustados com a in-formação, tudo indicava que aquela notícia não era esperada

por eles e assim o prefeito continuou.– Nós temos um sério problema. Este bairro não tem mais

solução e nele encontram–se reunidos uma grande parte de odontoclastos, se não todos eles. Se não conseguirmos retirá–lostempo daqui, o nosso complexo ficará completamente des-falcado.

– E vocês sabem em qual setor deste bairro estes odonto-clastos se encontram? –perguntou Cementon.

– Eu sei – respondeu o odontoclasto. – Mas em que isso poderia ajudar agora que estamos presos aqui embaixo?

– Este local é conhecido como Estrutura Periodontal da cidade – completou Cementon. – E por aqui se tem acesso a qual-quer lugar da cidade com muita facilidade e rapidez.

– Isso é uma ótima notícia! – exclamou Sr. Esmalte.– Porém há algo que precisam saber também – continuou.

– Assim como nós não sobreviveríamos muito tempo lá em cima, vocês não aguentariam muito tempo aqui embaixo.

– E o que faremos então? – perguntou Oncoclastos.– Se existe algum meio de escapar de Molares é pelo sub-

terrâneo, ou seja, periodontalmente. Vamos localizar os odonto-clastos, abrir caminho para que eles venham por baixo e nova-mente selamos nosso contato com a superfície.

Por algum motivo aquela ideia acendeu algo nos planos do prefeito e isso poderia vir a dar resultado em tempos mais sossegados, mas não era hora de pensar em projetos futuros e sim de executar o novo plano o mais breve possível.

Oncoclastos se orientou por uma das luzes que vinha do capacete de Cementon eaproximou–se dele.

O cementócito portava um cinto repleto de parafernálias que Oncoclastos supôs ser para fins de escavações, porém não se arriscou a fazer perguntas e simplesmente foi dizendo sem

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retirar seus olhos dos objetos portados em sua cintura.– Existe mais um problema do qual afirmo ser de suma

importância.Cementon nada perguntou, somente ficou parado espe-

rando pela conclusão do comentário feito pelo odontoclasto.– Nós temos um agente muito prestativo perdido pelas

vielas desse bairro – foi a vez de Sr. Esmalte raciocinando junto com Oncoclastos.

– Não podemos sair daqui sem ele. Sinto–me responsá-vel por esse policicálcio. Não quero me sentir pior do que já me sinto com a perda dos dois oficiais, momentos antes de cairmos aqui.

– E eu tenho uma dívida pessoal com ele – completou On-coclastos.

Novamente, os cementócitos se entreolharam e Cemen-ton colocou–se a observar ao redor como se quisesse enxergar naturalmente naquela escuridão.

– Teremos de contar com a sorte desta vez, e que este agente esteja no mesmo local em que se encontram esses odon-toclastos, caso contrário, não poderei prometer nada – e con-tinuou. – Para começar, onde estariam esses tais odontoclastos?

– Estão reunidos mais ao centro – respondeu Oncoclas-tos.

– Então, é para lá que vamos!E ao terminar sua exclamação, o cementócito lançou um

sinal com os dedos interpretado somente pelos outros cemen-tócitos que instantaneamente subiram pelas paredes numa agi-lidade de dar inveja e, rapidamente, selaram o buraco por onde Sr. Esmalte e Oncoclastos caíram. Logo em seguida todos saíram em direção a um conduto pouco clareado, usando somente as luzes dos capacetes dos cementócitos e assim seguiram por um

bom tempo.

• • •

Quando Calcin e a Liga de Amálgama chegaram ao cor-redor de onde avistaram o prefeito, ainda encontraram um dos policicálcios acordado enquanto o outro estava soterrado sobre os escombros da parede, ambos muito feridos.

– Foi muito rápido, não deu tempo de reagir – disse o ofi-cial gravemente ferido.

– Tente não fazer esforços, oficial – disse o agente levan-tando lentamente a cabeça do oficial. – Eles sentiram a presença de vocês e formaram uma emboscada, mas onde está o prefei-to?

– Eles seguiram em frente pelo corredor em direção ao centro do bairro – continuou o oficial. – O prefeito saiu correndo com o odontoclasto nas costas.

– Olha, eu já ouvi de tudo nesta vida, mas um prefeito car-regar um funcionário nas costas... – indagou o Cobre. – Este seu prefeito, meu amigo, está exagerando.

E Calcin se levantou completamente descontrolado par-tindo para cima do Cobre com, talvez, o que fosse a maior de-monstração de fúria em sua vida.

– Escute aqui! – gritou o agente sendo segurado pelo Es-tanho e o Mercúrio. – Quem não quer ajudar, também não atra-palha.

– Por favor, Calcin. Não leve a sério o Cobre – tentou apa-ziguar o Estanho. – Nosso companheiro raciocina junto com a língua, mas com o tempo você verá que é uma boa pessoa.

– Desculpe–me Estanho, mas esse aí está falando do Sr. Esmalte que a estas horas pode estar nas mesmas condições

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destes oficiais, que também se arriscaram para nos tirar deste lugar e veja o que aconteceu.

Foi então que a Prata desligando um aparelho parecido com um telefone voltou–se para o agente colocando a mão sobre seu ombro direito, fazendo–lhe lembrar novamente do prefeito.

– Esses oficiais ficarão bem, Calcin – disse a Prata. – Está dirigindo–se para cá um grupo especializado de fibroblastos para resgatar e cuidar desses oficiais enquanto vamos em bus-ca de seu prefeito.

Calcin não entendeu direito o que tinha dito a Prata e nem quem eram estes tais fibroblastos, mas havia sentido firmeza e segurança nas palavras dela e isso bastou para que seu coração acalmasse–se um pouco.

Contudo, naquele momento, o agente empunhou sua pis-tola calcítica e se voltou para o corredor na direção em que de-veriam ter seguido o prefeito e o odontoclasto. Ao ver a reação de Calcin, novamente a Prata se adiantou barrando o seu cami-nho impedindo o agente de continuar.

– O que pretende fazer? – perguntou ela.– Não importa se eu vou voltar ou não, mas alguns destes

vermes vão se ver comigo – retrucou o agente mostrando sua arma.

– E pretende fazer cócegas nestes germes? – disse ela apontando para a pistola calcítica. – Não sei se você já combateu algum strepto na sua vida, mas deveria saber que sua pistola calcítica é inofensiva a este tipo de criatura.

Calcin mostrou–se em dúvida e, por alguns instantes, fi-cou imóvel sem saber qual decisão iria tomar, porém estava cer-to de que, de uma forma ou de outra, seguiria atrás do prefeito, mesmo em vão.

– Não temos germicida suficiente para combatê–los ago-

ra, Calcin – adiantou–se Estanho. – apenas o suficiente para nos defender de alguns. Não sei se pensam como eu, mas podería-mos atrair boa parte destes streptos para uma armadilha.

– O que você quer dizer com armadilha? – perguntou o agente.

– Se soubermos onde estão os odontoclastos, encontrare-mos o prefeito, já que está em companhia de um deles – conti-nuou Estanho. – Sendo assim, é para lá que temos de seguir.

– Sim, mas o problema é que também devem estar indo para lá todos estes seres – interferiu Calcin.

– Mas se chegarmos lá primeiro, poderíamos construir uma barreira de amálgama cercando todo o galpão – foi a vez de Mercúrio, já entendendo os planos do companheiro.

– Poderíamos fazer mais – disse a Prata. – Não só os cer-caríamos como também poderíamos desviar sua rota até algum ponto onde colocaríamos vários degermantes, talvez todos os que temos. Não acabaríamos com todos, somente com alguns deles, mas o suficiente para esboçar uma reação do nosso lado e mostrar que estamos de pé.

– Então, se temos de chegar rápido, o que estamos espe-rando? – foi a vez do Cobre demonstrar apoio à situação.

O agente Calcin ainda remoia as palavras iniciais do Co-bre, mas concordou que realmente estavam perdendo tempo para reagir em relação aos streptos.

– Teremos de alcançar algum ponto alto para termos uma ampla visão e conseguirmos cortar caminho – opinou o Mercúrio já empunhando uma tira de matriz.

Com alguma facilidade e com ajuda mútua eles consegui-ram chegar a um ponto não muito alto em uma porção mais re-sistente do muro. De lá, novamente, eles usaram em união suas tiras matrizes e construíram uma estreita ponte em amálgama

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para chegar ao topo de um sobrado próximo para, de lá, conse-guir ter uma visão de onde estariam os streptos naquele mo-mento.

– Vamos conseguir ultrapassá–los se formos pela via principal – argumentou Mercúrio. – Não estão seguindo pela via rápida. Parece que estes vermes já sacaram o plano inicial de vocês.

Novamente a Liga desceu juntamente com Calcin e corre-ram na direção proposta pelo Mercúrio.

• • •

Depois de um longo período andando por lugares com-pletamente estranhos ao prefeito e ao odontoclasto, os cemen-tócitos chegaram a um lugar cheio de entraves por dentro das câmaras periodontais. Oncoclastos ainda se contorcia pelos ma-chucados, porém, desde que assumiu a vontade de resgatar seus colegas e o agente, suas dores se tornavam mais fracas, mesmo que incômodas. Sr. Esmalte observava atentamente os cemen-tócitos percorrerem sem dificuldades trechos que, nem mesmo ele sabia como, também atravessava.

– É aqui – concluiu Cementon. – Estamos no meio de Mo-lares Direitus, e pelos pequenos tremores, deve haver uma gran-de movimentação aqui em cima.

– Tomara que sejam os odontoclastos – disse o prefeito observando também as estruturas bem fixadas das raízes da-quele bairro.

– Não se preocupe – disse Cementon. – Nós passamos pe-los streptos há alguns minutos atrás. Digo isso porque percebi a vibração deles quando vocês caíram e tenho certeza que eram eles.

– Como vamos fazer então? – perguntou Oncoclastos. – Se isso é verdade, temos pouco tempo de vantagem.

– Tenho uma ideia – respondeu o prefeito. – Cementon, você consegue abrir uma fenda e averiguar quem está lá em cima?

– Obviamente – respondeu certo de si.– Se forem os odontoclastos, você subirá primeiro – disse

o prefeito apontando para Oncoclastos. – Daí terá pouco tempo para chamar a atenção dos odontoclastos e dizer o que realmen-te se passa.

– De acordo – respondeu o odontoclasto.Em poucos segundos, Cementon com a ajuda de mais dois

cementócitos escalaram rapidamente as raízes centrais alcan-çando a porção superior periodontal. Cementon ainda instalou dois ganchos com uma espécie de andaime móvel do qual desce-ram os outros dois cementócitos rapidamente.

– Preparem o odontoclasto para subir! – gritou lá de cima Cementon fazendo com que os outros cementócitos guiassem Oncoclastos até o andaime.

– Podem subi–lo! – ordenou novamente.Oncoclastos subiu guiado pelos dois cementócitos que

haviam descido agradecendo por não poder enxergar com exati-dão naquele escuro, pois sabia que a cada instante que balança-va a corda, mais longe ficava do chão.

Quando chegaram, Cementon amarrou outro tipo de cor-da no odontoclasto e com um único solavanco empurrou–o fa-zendo com que balançasse de um lado a outro.

– Agora tragam o prefeito! – ordenou novamente.Enquanto Oncoclastos estava pendurado, Cementon abriu

uma pequena fenda quase que imperceptível para o odontoclas-to, porém suficiente para que o cementócito tivesse a certeza de

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que os odontoclastos estavam realmente lá.– Vou abrir uma fenda maior e você sai – disse Cementon

já abrindo o buraco sem perder tempo.Não era uma cavidade muito grande, mas ideal para o ta-

manho do odontoclasto que recebeu ajuda do cementócito para escalar.

Pondo–se de pé com toda a dificuldade, Oncoclastos se deparou com centenas de odontoclastos, muito mais do que na primeira reunião da qual havia participado. Na verdade, desde a fuga de Calcin, quando eles se revoltaram contra o agente, cré-dulos de que o fizera escapar com toda a tropa de policicálcios, os odontoclastos retornaram para continuar a assembléia sigi-losa.

Quando, por fim, notaram a presença de Oncoclastos, muitos deles correram ao seu encontro.

– O que houve com você e por que está todo ferido? – per-guntou o primeiro odontoclasto ao lhe encontrar.

Logo atrás chegou o odontoclasto que havia sido atacado juntamente com Oncoclastos.

– Você está vivo? – perguntou ele. – Como conseguiu se livrar daqueles seres?

– Meu amigo, é melhor prestar bastante atenção no que vou dizer – disse Oncoclastos, e se voltando para os outros. – Es-tou aqui para convencer todos vocês de que temos de abando-nar Molares imediatamente.

– Você está dizendo isso por causa destes monstrengos que estão por toda parte? – gritou um deles. – Saiba que se as defesas de Incisivocity fossem realmente eficazes, eles não es-tariam aqui.

– Meu amigo – voltou a dizer o odontoclasto que fora ata-cado junto com Oncoclastos. – Nós vimos um cálcio entrar aqui,

ameaçar a todos e correr em disparada fugindo de nós e depois destas criaturas.

– Ostoclastos, eu estava com você quando fomos atacados – disse Oncoclastos ao amigo. – Você viu como agem estas cria-turas. Se você sabe da presença deles, então por que continua aqui?

– Eles não nos atacaram quando corremos atrás daquele cálcio – disse Ostoclastos. – Por que nos atacarão agora? O pro-blema é com a administração.

– Não – gritou Oncoclastos. – Aquele agente que saiu da-qui me ajudou a escapar destes seres. Estaria eu morto se não fosse por ele. O nome dele é Calcin e veio aqui com a mesma intenção que a minha.

De repente, aproximou–se um odontoclasto franzino tra-zendo algo nas mãos.

– Este odontoclasto deve estar falando a verdade.Oncoclastos assustou–se com o ocorrido sem entender o

que se passava.– Onde está o seu emblema do conselho de odontoclas-

tos? – perguntou o mesmo.– Entreguei ao agente para que vocês lhe dessem crédito

– respondeu Oncoclastos.E estendendo uma das mãos em direção à Oncoclastos, o

odontoclasto entregou–lhe o mesmo emblema que havia dado à Calcin.

– Onde ele está? – perguntou Oncoclastos.– Eu o vi arrombar uma parede e deixar cair este emble-

ma – respondeu. – Achávamos que teria feito alguma coisa com um dos nossos.

– E por onde ele foi?– foi a vez de Sr. Esmalte perguntar se erguendo do buraco.

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Todos os odontoclastos se tornaram incrédulos diante da situação. Na realidade, nada estavam entendendo.

– Vocês já me conhecem bem. Para quem ainda não me conhece, sou o novo prefeito – disse encarando–os. – Não estou aqui para punir ninguém e muito menos para confrontá–los. Estou aqui para ajudá–los a escapar de um ataque impiedoso de uma legião de bactérias. Molares está realmente condenada e não podemos fazer mais nada a não ser fugir daqui.

Naquele mesmo instante um grande estrondo interrompe o diálogo do prefeito, dando cena a uma das criaturas que caiu do teto e se contorcia toda aos gritos.

– O que é isso? – disse Ostoclastos.Quando outra criatura, também se retorcendo, arrombou

a porta, os odontoclastos começaram a se alvoroçar sem saber para onde ir. Porém, para o espanto geral, entra pela mesma por-ta o agente Calcin correndo em direção aos odontoclastos.

– Não importa o que pensam em fazer comigo, o que im-porta agora é que devem correr se quiserem continuar vivos – gritou Calcin ainda avançando em direção aos odontoclastos.

– Calcin! – gritou Oncoclastos correndo em direção ao agente quase que se rastejando pelas fortes dores.

– Oncoclastos? Senhor prefeito? – assustou–se o agente. – Como chegaram até aqui?

– Não dá para explicar agora, Calcin – disse Sr. Esmalte ali-viado por ver o agente ainda são e salvo. – Vamos embora daqui imediatamente.

– Ostoclastos, nos ajude a reunir os odontoclastos – pediu Oncoclastos.

– Seguiremos em direção aos sítios retro Molares, pois os streptos cercaram toda Molares Direitus – avisou Calcin.

– Desta vez, seguiremos por baixo, Calcin – corrigiu o pre-

feito. – Temos uma passagem bem embaixo de nossos pés e é por lá que vamos sair daqui.

Calcin não se importou com os detalhes já que realmente estava preocupado em sair daquele local.

Muitos germes caíam se retorcendo e Esmalte começou a ficar espantado, pois sabia que a força policicálcio não entraria em Molares.

– O que está havendo lá fora, Calcin? – perguntou o pre-feito.

– Nós temos ajuda, senhor prefeito. Mas não por muito tempo – disse Calcin percebendo que Oncoclastos e Ostoclastos estavam conseguindo reunir os odontoclastos desesperados. – A Liga de Amálgama está segurando os streptos para nos dar tem-po de fugir em segurança.

Aquela notícia deixou Sr. Esmalte sem reação, já não bas-tava a surpresa com os cementócitos e agora uma tal Liga de Amálgama estaria ajudando na fuga.

– Sei que não há tempo para maiores perguntas – ad-mitiu Esmalte. – Por isso, vamos começar e entrar no buraco subterrâneo.

Sr. Esmalte aproximou–se novamente da fenda aberta por Cementom e deu o sinal para que o cementócito começasse a abrir maior dimensão, permitindo que todos entrassem em se-gurança. Foi a coisa mais espetacular observada pelo prefeito, todos os cementócitos começaram a deslocar estruturas e rapi-damente construíram uma espécie de escada em espiral. Quan-do terminaram, Cementom retornou um sinal aoprefeito para que ele tomasse as providências.

– Oncoclastos, por aqui! – ordenou o prefeito sendo obe-decido pelo odontoclasto.

Pouco a pouco os odontoclastos se posicionavam para

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descer pela fenda, formando uma espécie de fila indiana para que cada um passasse sem dificuldades. Alguns deles passavam com desconfiança, outros nem mesmo aguardavam para ver o que estava acontecendo de verdade. Calcin, posicionado ao lado da fila com sua pistola calcítica empunhada, observava alguns streptos serem derrubados pelos novos companheiros que, lá fora, davam seu máximo para impedir a entrada das criaturas.

Calcin e a Liga de Amálgama conseguiram adiantar–se em relação aos streptos quando realmente atingiram a via principal de acesso ao centro de Molares. Não houve dificuldades já que as abomináveis criaturas se movimentavam lentamente, contu-do quando conseguiram chegar ao galpão onde os odontoclastos haviam retornado, alguns streptos já montavam guarda levando a Liga a não poupar seus degermantes, em um ataque fulminan-te.

Quando Calcin conseguiu entrar no galpão, foi alertado pela Prata a não retornar à porta, pois iriam tentar lacrar tudo em volta do galpão e, assim sendo, a única alternativa seria a de retirada pelos fundos. Calcin só não contava com a presença do prefeito já com a situação semi dominada.

– Senhor prefeito, não temos muito tempo – alertou Cal-cin. – A Liga de Amálgama realmente não conseguirá segurar os streptos por muito tempo.

– Calcin, mesmo que não dê, não podemos deixar ninguém para trás – afirmou o prefeito observando a fila que prosseguia lentamente. – Essa é uma batalha que a Cárie não pode vencer.

Calcin então se assustou com a presença de um odonto-clasto prostrado bem atrás de suas costas lhe colocando as mãos sobre o ombro e mostrando–se afável.

– Queria me desculpar em nome da classe de odontoclas-tos – disse sem delongas. – Meu nome é Obariloclasto e sou o

representante oficial dos odontoclastos.Calcin acenou positivamente com a cabeça ainda sem se

dar conta de toda a situação que o rondava.– Não fomos muito amigáveis com você e coloco minha

pessoa a sua inteira disposição em sinal de redenção.– O que poderia fazer neste momento é apressar seus

companheiros antes que algo realmente problemático venha a acontecer – disse Calcin.

– Sr. Esmaltus, eu não tenho palavras para mostrar nossa gratidão – disse Obariloclasto abaixando a cabeça. – Espero que o senhor ainda venha nos desculpar.

– Não se preocupe Obariloclasto – atenuou o prefeito. – Estamos enfrentando momentos de crise e sua posição quanto a de seus colegas não poderia ser diferente. Vamos tirar esta tur-ma daqui e seguir em direção ao bairro vizinho, creio que sar-gento Calcion esteja com reforços nos esperando a esta altura de campeonato.

Do lado de fora, a Liga de Amálgama já havia conseguido erguer a proteção de amálgama ao redor de todo o galpão, mas o avanço dos streptos estava realmente colocando a operação em risco. Prata, Estanho, Mercúrio e Cobre tentavam disparar degermantes somente nos streptos que conseguiam escalar e ul-trapassar a barreira de amálgama. Todos sabiam que não teriam munição suficiente para derrotar todos os germes, o que deixa-va a Liga preocupada em relação ao combate.

Vindo todo imponente, Capitão Ácido Açucarado não ti-rava o sorriso confiante do rosto, e Cobre não conseguia engolir tamanha demonstração de deboche.

– Escute aqui, seu desclassificado! – gritou o Cobre por cima da barreira. – Nós nunca combatemos alguém tão covarde quanto você.

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– Ora, ora, vejam só! – respondeu Ácido Açucarado. – Pen-sei que o sistema não desse a mínima para Incisivocity. De uma forma ou de outra é bom saber que temos de agir para que nos deem nosso devido valor.

– Valor? – gritou a Prata inconformada. – Que tipo de valor podem ter, se o que querem é a destruição do próprio lugar onde moram?

– Correção, seja você lá quem for – retrucou o ácido. – Moraríamos, caso nosso partido tivesse ganhado as eleições. Imagine, Incisivocity seria um complexo completamente seguro com estas criaturas nas ruas – e completou. – Queria ver qual o engraçadinho que bancaria o idiota com os streptos espalhados por todos os cantos.

– Aqui não é o habitat natural destas criaturas – foi a vez de Mercúrio intervir. – De onde você tirou uma ideia tão absurda como essa?

– Olhem ao seu redor, seus injusticeiros – disse Ácido Açu-carado apontando em várias direções. – Nem a força policicálcio poderia deter tantos germes. O que vocês acham que acabaria acontecendo mais cedo ou mais tarde?

Estanho se afastou do muro de proteção e olhou para a porta que Calcin havia adentrado depois que o Cobre descar-regou degermante em um dos streptos que montava guarda no local. Voltando–se novamente para sua situação, ele segurou nos braços da Prata e olhou–a bem no fundo dos olhos.

– O pior é que esse aí tem certa razão, Prata – disse ainda encarando–a. – Não há a mínima chance de a força policicálcio conter o avanço bacteriano em Incisivocity.

– Chance existe, meu caro Estanho – argumentou a Prata sem também desviar seu olhar. – Porém, não neste momento, Molares está completamente devastada e nem mesmo a força

policicálcio poderia deter o controle da situação com ruas e rue-las neste estado – e olhando também para a porta aberta disse. – Vá lá dentro Estanho, e veja o que se passa por lá. Se Calcin não tiver saído daqui ainda, a situação vai se voltar totalmente a favor dos streptos.

No mesmo instante, Estanho deu um salto até o chão pró-ximo à porta e começou a correr em direção ao galpão. Lá che-gando, não teve nenhuma boa impressão do que estava aconte-cendo. Muitos odontoclastos ainda estavam por lá e para com-pletar, Calcin e o prefeito ainda permaneciam parados.

– O que está havendo com vocês? – perguntou Estanho chegando rapidamente. – Assim não adianta nada o que esta-mos fazendo lá fora.

Sr. Esmalte não pôde deixar de notar o traje prateado daquele sujeito e também não conseguia controlar seus pensa-mentos em relação às surpresas daquele dia. Entretanto, aproxi-mou–se de Estanho e pôs–se a dizer:

– Sou o prefeito de Incisivocity e sei da gravidade da situ-ação, contudo nossos amigos subterrâneos estão nos ajudando a sair por baixo, na linha periodontal da cidade.

Aquela informação soou como música nos ouvidos de Es-tanho que olhando de um lado a outro começou a imaginar a situação mudando a seu favor.

– Mas é claro! – exclamou com uma expressão de felici-dade em seu rosto. – A via periodontal – e voltando–se para o prefeito, Estanho não hesitou. – Ainda falta muito para que to-dos entrem no subsolo?

Esmalte virou–se novamente para a fenda e olhou o cami-nho construído pelos cementócitos abarrotado de odontoclas-tos descendo.

– Cementon! Tem como adiantar essa turma? – pergun-

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tou o prefeito procurando pelo cementócito.Cementon sinalizou mais uma vez para seus cementócitos

e novamente eles se reuniram em outro lado da fenda das raí-zes construindo mais uma escadaria. Quando finalmente assim a concluíram, outra fenda foi aberta no chão do galpão e Odon-toclastos juntamente com Obariloclasto, quando perceberam a nova movimentação, puseram–se a dividir os odontoclastos e direcioná–los para o outro buraco.

– Agora não vai demorar muito, senhor... – Esmalte ainda não sabia o nome de Estanho.

– Estanho – completou o mesmo. – Então faremos o se-guinte, assim que todos os odontoclastos atravessarem as fen-das, Calcin irá até a porta e nos sinalizará. Eu tenho um plano.

Novamente o Estanho retornou correndo para o lado de fora e, escalando a mureta de amálgama, aproximou–se da Prata com toda ansiedade.

– Os cementócitos estão ajudando os odontoclastos a es-caparem – disse ainda engolindo o fôlego da corrida. – Isso me deu uma excelente ideia.

– Acho que sei exatamente o que você está pensando, Es-tanho – respondeu a Prata. – Vai querer demolir o galpão com todos os streptos dentro?

– Você é o máximo, Prata. Realmente nos surpreende com seu raciocínio automático – empolgou–se Estanho. – Quando Calcin aparecer, correremos para dentro e entraremos também no subterrâneo. Os streptos não sabem que existem cementóci-tos trabalhando por aqui e, daí entrarão atrás de nós com toda fúria.

– O resto é fácil – foi a vez de Mercúrio participar da con-versa. – Vamos pedir para os cementócitos demolir a raiz de sus-tentação do galpão enquanto fugimos.

– Não haverá strepto sobre strepto para contar história depois do desabamento – Cobre também opinou percebendo o plano.

Aquele novo rumo para a situação deu mais ânsia de vi-tória à Liga de Amálgama que começou a disparar degermante ferozmente contra os streptos que se aproximavam. Um disparo quase acabou acertando Ácido Açucarado que, no mesmo ins-tante, tirou o sorriso intimidante do rosto.

Muitos streptos ainda avançavam e Estanho começava a ficar impaciente, quando Calcin finalmente apareceu na porta balançando os braços como se fosse uma libélula.

– Vamos, é o Calcin! – gritou Estanho já abandonando seu posto de combate.

Quando Capitão Ácido Açucarado avistou a Liga de amál-gama bater em retirada, colocou novamente seu sorriso no rosto e ordenou a seus streptos que avançassem com toda a força.

– Agora! Derrubem aquela parede! Eles estão fugindo... – e não aguentou segurar aquela risada que estava travada em seu peito. – Eu já sabia! Não há como parar um avanço de Streptococos Mutants. Eu vou querer uma condecoração por isso.

Quando a Liga chegou ao buraco, o prefeito já havia desci-do com Oncoclastos e Obariloclasto, só restavam Calcin e eles do lado de fora. A outra fenda aberta para facilitar a fuga já estava selada naquele momento e, sendo assim, todos os restantes pu-seram–se a descer também.

Chegando lá embaixo, a Prata não estava orientando–se direito devido à escuridão, então gritou pelo líder dos cemen-tócitos.

– Quem está no comando dos cementócitos?– O que deseja? – perguntou Cementom aproximando–se

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com seu capacete aceso.– Derrubem as vigas de sustentação. Talvez ainda exista

recurso para Molares – disse a Prata olhando desta vez para o prefeito.

Enquanto os cementócitos descolavam as vigas de susten-tação do galpão, a Prata se aproximou do Sr. Esmalte. O prefeito estava sem reação e mesmo que tivesse um discurso nas mãos não saberia o que dizer.

– Então, o senhor é Esmalte Esmaltus? – perguntou ela es-perando alguma resposta, no entanto, o prefeito simplesmente começou a se contorcer em sinal de agradecimento. – Por favor, senhor prefeito. Não precisa fazer isso.

– Eu não sei como lhes agradecer pelo que estão fazendo.– Não há o que agradecer. Nunca me deparei com um cida-

dão tão honroso quanto o senhor – disse a Prata. – Alguém que se arrisca em função de outras pessoas, sem levar em considera-ção que esta pessoa não é nada mais nada menos que o prefeito da cidade, não tem o que agradecer.

De repente tudo começou a balançar e todos começaram a olhar para cima percebendo que pequenos pedaços caíam. Cementom descia rapidamente por uma corda e junto com ele outros cementócitos.

– Agora, todos vocês corram para as raízes mesiais de Molares! – ordenou Cementom já acenando para os outros cementócitos. – Sigam os cementócitos, pois o galpão não vai demorar a cair.

A invasão era geral, não havia uma única entrada sem strepto entrando. Ácido Açucarado somente observava glorio-so de si pelo lado de fora enquanto seus streptos entravam sem

cessar. A vitória seria eminente e com certeza a Cárie ficaria or-gulhosa da ação liderada pelo capitão.

Cada strepto que entrava, aumentava mais o ego de Áci-do Açucarado e mais ele tinha certeza de que todos lá dentro eram presas fáceis daqueles impiedosos seres. No entanto, algu-ma coisa fez o ácido mudar instantaneamente sua concepção de vitória. Quando o último strepto entrou por uma das janelas, as estruturas do galpão começaram a tremer feito como uma pai-neira contra um furacão e Ácido Açucarado começou a perceber que o chão começava a ceder também.

– Voltem seus idiotas! – gritou Ácido Açucarado, mas ne-nhum dos streptos poderia escutar devido ao grande barulho que começara a fazer.

Tudo desabou quase que imediatamente bem à frente de Capitão Ácido Açucarado, que não acreditava no que realmente estava vendo. Seus streptos, todos eles sucumbindo a cada bloco do galpão que caía. Ele estava tão incrédulo diante daquelasitu-ação que acabou sentado ao chão sem saber o que iria dizer à Cárie. Havia perdido a primeira grande batalha contra a admi-nistração da saúde bucal.

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Capítulo 8

Sargento Calcion aguardava juntamente com uma tropa de policicálcios. Os canhões de calcitina estavam prontos para o primeiro sinal de movimento que saísse de Molares, mas nenhuma sombra se movia e tudo parecia perfeitamente calmo. Os policicálcios se entreolhavam ansiosos pelo retorno do pre-feito, até que um tremor começou a balançar o chão onde esta-vam.

Uma erupção iniciou–se logo atrás dos canhões de calci-tina e prontamente todos os policicálcios rumaram–se para o local apontando suas armas e esperando que alguma coisa se-melhante aos streptos começasse a pular dali.

Para surpresa geral de todos, um ser completamente des-conhecido apareceu, baixo e forte, com os olhos esbugalhados. Cementom foi o primeiro a sair do buraco aberto e sem se pre-ocupar em apresentações, começou a abrir ainda mais a fenda.

Os policicálcios aproximaram–se, ainda, apontado suas armas para o cementócito.

– Ei você, o que está fazendo? – perguntou Calcion.Porém o cementócito novamente pulou para dentro, igno-

rando os policicálcios, e quase que no mesmo instante Sr. Esmal-

te apareceu pelo mesmo buraco.– Não se preocupe sargento – disse enquanto terminava

de sair. – Somos nós.Calcion colocou as mãos sobre a cabeça e deu um pulo

para trás como se o susto tivesse se misturado à euforia de ver o prefeito são e salvo.

– Sr. Esmalte? – perguntou o sargento. – Como que... mas o que está acontecendo?

– Espere até que todos nós saiamos daqui para que assim possamos esclarecer – desabafou o prefeito.

O segundo a sair foi Oncoclastos, para a decepção do sar-gento que, olhando de um lado a outro, ainda não acreditava que aquele odontoclasto estivesse por perto. Calcin veio logo em seguida ajudando Oncoclastos e ao ver que seu agente esta-va a salvo, Calcion, num gesto meio desconcertante, correu para ajudá–lo a erguer o odontoclasto ferido. Obariloclasto subiu à frente dos demais odontoclastos, que não paravam de sair, eram tantos que a força policicálcio não sabia o que fazer caso algum deles começassem a se rebelar novamente, contudo a reação era de tranquilidade.

Quando o último odontoclasto atravessou a fenda, para maior surpresa do sargento, Prata, Mercúrio, Estanho e Cobre apareceram juntamente com Cementom.

– Senhor prefeito, é melhor nós sabermos o que houve e quem são estes aí, antes que eu enlouqueça.– foi direto ao ponto Calcion.

– Claro, sargento – começou Esmalte. – Antes de tudo que-ro lhe adiantar que o que sei é muito pouco ou quase nada sobre a Liga de Amálgama e os cementócitos – disse apontando com a mão. – Contudo, se não fosse por eles, numa hora dessas já não estaríamos vivos.

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– Então é melhor começarmos a disparar os canhões – lembrou o sargento, sendo imediatamente interrompido por Calcin.

– Não, sargento! – gritou o cálcio. – Creio que não há mais necessidade.

– Calcin tem razão, sargento – foi a vez da Prata. – Todos os streptos caíram com o galpão onde estávamos. Não restou um único strepto vivo com o desmoronamento.

– Exatamente, nós os vimos cair com as bases estruturais do galpão – continuou o prefeito. – Não houve nenhuma reação após a queda.

– Talvez nem mesmo Ácido Açucarado deva ter consegui-do escapar – deduziu Calcin.

– Já isso eu não posso afirmar, Calcin – disse pela primeira vez Cementom. – Nenhum dos meus cementócitos de varredu-ra conseguiu encontrar alguma coisa que não fosse destroço e strepto morto.

Logo após a queda do galpão, Cementom deu a ordem de varredura a alguns cementócitos da retaguarda, para avaliar os danos. Foi a partir desta varredura que constataram a morte dos streptos.

– Desculpe–me, senhor prefeito – sussurrou Calcion com uma das mãos sobre a boca. – Mas quem é este ser tão esquisi-to?

– Ah! Perdoe–me por não tê–lo apresentado. Sargento Calcion, este é Cementom, líder da comunidade subterrânea de Incisivocity – e virando–se para o cementócito. – Senhor Cemen-tom, lhe apresento o sargento Calcion, responsável pela força de policiamento em nossa cidade.

Ambos se cumprimentaram num aperto de mão duradou-ro. Calcion tinha plena certeza que jamais recebera um aperto

de mão tão forte em sua vida, já com a claridade, apesar de estar quase anoitecendo, Cementom não conseguiu prestar a devida atenção no sargento.

– Tenho que ir, Senhor prefeito – disse Cementom. – Vou retornar às raízes de Molares para trabalhar no reforço de sus-tentação periodontal do bairro.

– E nós vamos limpar a sujeira das ruas que danificamos – aproximou–se Obariloclasto em sinal de apoio. – Vamos con-certar nosso erro e colocar Molares em seu devido lugar de sus-tentação.

– Não irão conseguir sem nossa ajuda, Obariloclasto – foi a vez de Oncoblasto que viera em uma das viaturas de reforço e ainda não havia se manifestado. – Vou recrutar os odontoblastos para reerguer Molares Decíduos nesta empreitada.

Parecia que tudo estava voltando ao seu normal e Sr. Es-malte respirava aliviadamente, como se uma enorme pedra ti-vesse lhe escapado das costas.

– Infelizmente, sargento, tivemos duas baixas – relembrou o prefeito abaixando a cabeça. – Perdemos dois oficiais durante a missão.

– Não se preocupe, senhor prefeito – interrompeu Esta-nho. – Eles foram encaminhados vivos ao Centro de Recupera-ção Medular pelos fibroblastos e ficarão bem.

Sr. Esmalte ergueu–se novamente e só não deu um pulo de emoção porque suas pernas não respondiam mais às suas ati-tudes. O cansaço daquele dia era evidente aos olhos de todos e nunca o conforto de suas casas foi tão desejado.

– Vou organizar uma cerimônia para comemorar este dia em Incisivo Centrales – disse orgulhoso o prefeito. – E conto com todos, a Liga de Amálgama, cementócitos, odontoclastos, odontoblastos, apatitas e cálcios. Um dia como esse, no qual a

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força de Incisivocity juntamente com a ação imediata da Liga de Amálgama salvou Molares de sua perda, não pode ser esque-cido.

Anipatita estava sentada em frente a Sra. Dentina, obser-vando a primeira dama baixar alguns relatórios rapidamente e na mesma velocidade organizar documentos importantes. O que mais impressionava a apatita era o fato de Dentina, com todos os afazeres, estar também completamente apreensiva em relação a seu marido, do qual ainda não tivera notícias.

Quando a porta do gabinete se abriu, todas as duas dire-cionaram–se para ela, na espera de alguma informação, porém eram Madame Mielina e Amelodentina entrando também ansio-sas por alguma informação.

– Isso me mata! – falou depois de horas de silêncio a pri-meira dama. – Já não consigo me concentrar direito e as horas vão passando, sem falar que a noite já chegou.

–Acalme–se Dentina – falou pausadamente Mielina. – No-tícias ruins chegam rápido.

O coração de Anipatita latejava e ela mesma não se con-tinha, por mais que pudesse agüentar uma notícia ruim. Levan-tando–se, a apatita olhou meigamente para Amelodentina que trazia uma pequena boneca nas mãos, uma antiga bonequinha que teria ganhado de seu pai há muito tempo, e passou quase que despercebida por Madame Mielina rumo à porta.

– Aonde vai, Anipatita? – perguntou Sra. Dentina.– Desculpe–me senhora, mas eu não consigo ficar um só

minuto a mais dentro desta sala. Estou a ponto de explodir.Madame Mielina, sem alertar a primeira dama aproxi-

mou–se vagarosamente da apatita e cochichou rapidamente.– Não se preocupe quanto a Calcin.As pernas da apatita tremeram e o susto pelo comentário

foi tanto que Anipatita derrubou todas as pastas que estavam numa mesinha próxima à porta.

– Algum problema, Anipatita? – perguntou a primeira dama.

– Não senhora – respondeu confusa. – É que sou ansiosa assim mesmo e fico toda desconcertada quando espero por in-formações e elas não chegam.

– Entendo – disse Dentina não engolindo a resposta, po-rém sem prolongar a conversa.

Antes mesmo que a apatita deixasse a sala, sentiu sua saia remexer com alguns puxões a fazendo olhar para baixo e enxer-gar Amelodentina estendendo a bonequinha em sua direção.

– Pegue! – disse. – Fique com Diamanta até todo mundo chegar. Ela é uma boa amiga e não deixa a gente triste.

Aquele gesto acabou de derreter o coração da apatita que se derramou em lágrimas pela primeira vez. Segurando Diaman-ta em suas mãos ela notou que se tratava de uma apatitazinha com cabelinhos trançados e um sorriso largo no rosto.

– Ela é linda! – disse enxugando as lágrimas. – E que boni-to nome você deu a ela.

– O nome foi a mamãe quem deu quando ganhei do meu pai. Diamanta acabou com meu medo de escuro, sabia?

Anipatita deu um sorriso animador e olhando para a pri-meira dama, notou que ela também estava com os olhos ume-decidos.

– Papai me contou que Diamanta não tem medo das coisas e por isso as coisas ruins correm dela. E ela me lembra muito você, Anipatita – disse com um grande sorriso. – Sabe, é claro que você não tem tranças, mas se as fizesse, ficaria igual à Diamanta.

Por algum motivo, Anipatita já não queria deixar mais o

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gabinete, e voltando–se para a poltrona onde estava sentada, empinou o nariz, deu um grande suspiro e disse.

– Sabe de uma coisa? Essa Diamanta é realmente podero-sa – e olhou para Amelodentina erguendo a boneca. – Não estou com medo mais, e quer saber, acho que preciso fazer umas tran-ças em mim também. Você me ajuda, Amelodentina?

Amelodentina deu um salto largando a mão de Madame Mielina e correu em direção à secretária, bastante satisfeita.

– Oba! Vou fazer suas tranças parecerem com as de Dia-manta e você vai ficar tão linda quanto ela.

Madame Mielina também se sentou em uma poltrona ob-servando toda a situação e imaginando o quanto o fato de um indivíduo ser adulto interfere nas condições positivas da vida. Uma simples criança, ingênua e indefesa, concretiza uma fé tão grande que nem toda uma experiência de vida poderia criar.

Sra. Dentina então se pôs de pé e caminhou para o lado de Madame Mielina bem calmamente, olhando para as duas se divertindo com as tranças. Aproximando–se, colocou as mãos sobre o encosto da poltrona e cochichou para Mielina.

– Tenho medo que Esmalte se envolva em alguma confu-são. Desde jovem ele sempre assumia frente nas situações mais inusitadas – e abaixando a cabeça. – Certas vezes, penso que Es-malte não tem muita noção de perigo das coisas.

– Desculpe–me Dentina, mas ao mesmo tempo em que re-conheço sua coragem, também temo pela segurança do prefei-to. Convenhamos que o ocorrido em Caninus tivesse um quê de sorte misturado. Se Esmalte fosse pego por algum odontoclasto naquelas circunstâncias...

– Eu sei Mielina – interrompeu Dentina. – Já estou preocu-pada o bastante, não quero me lembrar disso.

Mas naquele momento, houve um alvoroço nos corredo-

res da prefeitura e, alertas a tudo, não puderam deixar de notar que alguns odontoblastos passavam correndo pelo corredor do gabinete. Antes mesmo de Madame Mielina abrir a porta para analisar direito, ela se abriu e uma apatita que trabalhava na limpeza entrou aos berros.

– A praça está cheia de odontoclastos! Novamente, Sra. Dentina correu em direção à mesa prin-

cipal para ter acesso à imensa janela do gabinete. Lá chegando, com Madame Mielina logo atrás, pôde ver a praça principal, em frente à prefeitura, tomada por odontoclastos que chegavam aos montes. Porém, seu coração pulsou ainda mais rápido quando viu que no meio deles a viatura da prefeitura vinha escoltada por mais dezenas de viaturas da força policicálcio.

– Esmalte! – sussurrou Dentina consigo mesma. – Ele con-seguiu!

Anipatita colocou–se de pé quase que instantaneamen-te com a boneca Diamanta nas mãos. Amelodentina também correu para a janela junto à mãe, onde pôde enxergar também. Enquanto isso, Madame Mielina voltava–se para a apatita lenta-mente.

– Pode descansar agora, moça – disse em voz bem baixa. – Calcin está no mesmo veículo do prefeito são e salvo.

• • •

No saguão principal da prefeitura, Sr. Esmalte entrou en-tre palmas e assobios de exaltação. Junto dele vinham Calcin e Oncoblasto seguidos de sargento Calcion, Obariloclasto, Onco-clastos e a Liga de Amálgama.

Sra. Dentina colocou–se em frente dos funcionários tra-zendo Amelodentina nos braços, logo atrás dela estavam Mada-

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me Mielina e Anipatita com o cabelo todo trançado. Calcin pôde notá–la de longe e abriu um sorriso tão agradável que obteve de apatita no mesmo instante um lindo sorriso como resposta, o que também não pôde passar despercebido aos olhos de Ma-dame Mielina.

– O que houve por lá e por que demoraram tanto? – per-guntou a primeira dama abraçando o marido com a filha no colo. – Por favor, Esmalte não faça mais isso.

O prefeito, abraçado à esposa, olhava para a filha com alí-vio ao vê–las bem. Em todo o tempo em que estava em Molares, nunca lhe fugira da mente a sensação de que estava sendo des-viado de Incisivos Centrales, o que tornaria a prefeitura um alvo fácil.

– Não vão acabar com nossa cidade enquanto eu for o prefeito, querida – respondeu pausadamente. – Não fui eleito para decepcionar os cidadãos de Incisivocity.

Apenas alguns odontoclastos entraram no prédio da prefeitura acompanhando Obariloclasto, o que ainda deixava o sargento bastante inquieto, porém o suficiente para poder ser testemunhas das novas declarações de Sr. Esmalte que, voltan-do–se novamente aos cidadãos, proclamou em voz alta:

– De hoje em diante, declaro oficialmente criada em nosso mandato, a Associação dos Odontoclastos que, com o Sr. Obariloclasto à frente, farão parte de nosso conselho municipal e terão a mesma voz ativa de qualquer conselho já existente em nossa cidade.

Oncoclastos olhou para seu primo Oncoblasto e ambos sorriram um para o outro em sinal de afeto, coisa que não acon-tecia há muito tempo, desde que amadureceram e cada um bus-cou seu lugar.

Madame Mielina sentia–se orgulhosa por estar represen-

tando o Sistema Nervoso Central e muito mais por participar de uma data tão importante quanto aquela, mas sentia–se também incomodada pelo fato de Anipatita estar se remexendo na ponta dos pés como se quisesse decolar.

– Minha filha – disse Mielina segurando a apatita pelo braço. – Quer um conselho de amiga?

A apatita fitou–a com os olhos brilhando como se o que Mielina fosse falar salvasse Incisivocity de uma turbulência ter-rível.

– Saia de fininho e vá para longe daqui, este seu agente não vai demorar a correr atrás de você por estes corredores.

– Mas, o prefeito, a primeira dama, todo mundo. Eu não posso sair assim no meio de tudo, ainda mais que...

– Vá logo menina! – interrompeu Madame Mielina. – Com eles eu me ajeito. Além do mais, tenho certeza de que Calcin quer sair daqui o mais rápido possível. E pelo visto, com você.

– Como tem tanta certeza? – perguntou a apatita olhan-do de novo para o agente que por sua vez não tirava seus olhos dela.

– Entendo mais de sentimentos do que qualquer um por aqui – respondeu também olhando para o agente. – Ande logo, não o deixe esperando! Daqui a pouco ele virá aqui e quero ver como é que você agirá.

Assim, Anipatita deu as costas e foi se misturando aos funcionários em meio daquele alvoroço. Calcin começou a ficar impaciente e a olhar para todos os lados como se quisesse ver aonde iria Anipatita.

– Com licença, sargento, prefeito e todo mundo – disse o agente já dando seus primeiros passos atrás da apatita. – Volta-rei rapidamente, preciso usar o banheiro.

Sr. Esmalte confirmou com a cabeça, mas sargento Calcion

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não gostou muito da ideia, porém o aval do prefeito já havia sido dado só lhe conformando aceitar a saída do agente naquele mo-mento tão ilustre.

– Vê se não demora, aliás, você também será homenagea-do aqui, seu...

– Deixe o garoto, sargento – disse o prefeito. – Dê folga para ele hoje. Calcin merece.

O agente nem mesmo escutou as últimas palavras do pre-feito e saiu costurando todo mundo em busca de Anipatita.

O corredor era comprido, mas Calcin tinha certeza de que vira Anipatita cruzar uma das saídas do saguão. Quando conse-guiu se afastar da multidão, o agente pôs–se a correr e entrou no corredor almejado sem perder a atenção no caminho.

Quando Anipatita percebeu que Calcin se aproximava, ela encostou–se numa das portas mais profundas na parede para que o agente não a visse mais, e quando ele passou por ela sem vê–la, a apatita agarrou–o pelas costas puxando–o para dentro de uma das salas perdidas no corredor.

– Da próxima vez que você me mandar retornar e deixar você, juro que eu mesma acabo com você! – disse ela soltando as costas do agente.

Calcin não se continha mais dentro de si e abraçando com força a apatita deu–lhe um beijo demorado.

– Eu nunca mais me desculparia se algo acontecesse a você, Anipatita – disse olhando profundamente nos olhos dela. – Imagine! Não vou negar que passei por riscos totalmente im-previsíveis, mas era somente eu. Minha única preocupação era comigo mesmo, o que me dava mais tempo para pensar.

– Ah, sim! – exclamou ela. – E como se chama isso? Deixe–me lembrar... Egoísmo, certo?

– Bom, se você acha que zelar pela vida de quem se gosta é

egoísmo – e apertou os braços de Anipatita olhando–a com mais vigor. – Então, eu sou egoísta, e muito. Prefiro ser completamen-te egoísta a ter de perdê–la.

Novamente eles se abraçaram e trocaram beijos como verdadeiros adolescentes, realmente ela reconhecia que Calcin tinha razão, mas jamais iria aceitar passar por aquilo novamen-te e isso ela tinha toda a certeza.

– O que houve lá, Calcin?– É uma longa história, levaria a tarde toda para te con-

tar.– Melhor assim – disse Anipatita sacudindo os ombros. –

Passo mais tempo ao seu lado. Não estou a fim de saber pela boca do prefeito mesmo.

– Não fale assim, Anipatita. Talvez não estivesse aqui se ele não fosse até Molares.

– Sei disso! Mas eu prefiro ouvir tudo de você – disse ela sorrindo. – Aliás, é muito mais interessante ouvir a história pela boca do próprio herói.

Calcin ficou tão vermelho que Anipatita pensou que ele fosse explodir. Porém, estava satisfeita por estar com ele e de ter como cúmplice Madame Mielina.

Furiosa, a Cárie andava de um lado para o outro, batia contra a parede e pela quinta vez arremessava objetos contra a parede. Já havia feito inúmeras ligações, sentado e levantado várias vezes e agora estava amassando copinhos. Num canto es-curo da sala, Ácido Açucarado estava sentado sem olhar para a Cárie de tanta vergonha, fora o maior fiasco sua primeira missão como capitão e não tinha dito uma só palavra desde que voltou e contou o ocorrido para ela.

Ácido Açucarado ainda não estava entendendo como tudo tinha chegado àquele ponto e com as mãos na testa ficava ima-

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ginando como teria sido se ele também tivesse entrado naquele galpão, além de pensar também no que havia feito de errado em sua estratégia.

– Nenhum deles? – voltou ela a perguntar indignada.Ácido Açucarado fez somente o sinal de negação sem

olhar permanecendo de rosto abaixado.– Estes golpes de sorte do Sr. Esmalte já estão me deixan-

do enfurecida. Primeiro, a derrota nas eleições, depois a mo-vimentação em Caninus e agora nossa derrota em Molares – e voltando–se para Açucarado. – Será que você não percebeu que as estruturas do prédio, ou melhor, de toda Molares, estavam de-tonadas?

– Eles estavam encurralados – justificou o capitão. – Eu mesmo não contava com túneis embaixo da cidade, nem mesmo com o aparecimento da Liga de Amálgama.

– Escute uma coisa, Ácido Açucarado. Sua sorte, e única sorte, foi que esta liga esquisita apareceu para atrapalhar tudo. Caso contrário, eu mesma lhe entregaria para o sistema de de-fesa.

De certa forma, aquelas palavras incomodaram muito Ácido Açucarado que não disse mais uma só palavra.

Cárie voltou novamente à sua mesa e ficou parada olhan-do para alguns papéis espalhados como se estivesse procurando alguma coisa no meio daquela bagunça. Revirou alguns folhetos, abriu agendas, rasgou lembretes e finalmente ergueu uma folha alaranjada com um pequeno sorriso no rosto.

– Está bem, então é assim que vai ser não é senhor pre-feito? – perguntou a Cárie para si mesma. – Eu queria manter a boa linha e somente atacar de forma mais politizada, porém eu não vejo outra escolha.

Ácido Açucarado esticou o pescoço para poder ver melhor

o que a Cárie tinha em mãos, mas não obteve muito sucesso. Quando ela percebeu que o capitão estava curioso, rapidamente abaixou a folha e escondeu aquele sorriso que havia aberto por alguns segundos.

– Não se apavore meu caro Ácido Açucarado – disse ela voltando a manter a calma. – Esta foi somente a primeira bata-lha, porém a guerra está apenas começando.

– Não gostei de ser derrotado, Cárie! – e irritou–se pela primeira vez o capitão. – Isso não era para ter acontecido.

– Mas aconteceu – respondeu a Cárie olhando novamente para a folha alaranjada. – Contudo, não se preocupe você terá sua virada de jogo, Capitão Ácido Açucarado – e balançando a folha. – E se terá!

• • •

Já em sua casa, uma cobertura em um dos prédios princi-pais de Incisivos Centrales, Sr. Esmalte e Sra. Dentina, sentados em um sofá azul claro, observavam carinhosamente a filha brin-car com sua boneca Diamanta no carpete branco.

A casa era bem aconchegante e na opinião de Sra. Dentina, era a casa mais bonita que poderia existir em toda Incisivocity. Grande e espaçosa era realmente esplendorosa em seu conjun-to, com vigas brancas colossais no meio da sala, porém o lugar que mais agradava ao prefeito era a sacada que dava vista para toda Incisivocity. Não demorando muito Sr. Esmalte dirigir–se para lá.

– Alguma coisa ainda o preocupa, não é mesmo Esmalte? – perguntou a primeira dama vindo ao seu encontro.

– Conheço minha oponente, querida – respondeu ele de-sabafando. – Sei que numa hora dessas ela deve estar mirabo-

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lando sua retaliação.– Tente não se preocupar com isso, aliás, temos a Liga de

Amálgama que, de agora em diante, também estará alerta para nos ajudar em relação à Cárie.

Sr. Esmalte voltou–se para a esposa e lhe abraçou soltan-do todo o ar que estava preso em seus pulmões.

– Tem outra coisa que me preocupa – disse e prefeito en-costando a cabeça no ombro da esposa.

Sra. Dentina começou a passar as mãos pelos cabelos brancos do marido esperando com que ele continuasse a dizer do que se tratava sem ter de perguntar o que era.

– Foi o Sistema Nervoso Periférico quem acionou a Liga de Amálgama – disse ele continuando.

– Sim, mas o que isso tem demais? – perguntou Sra. Den-tina.

– Com certeza foi a própria Cárie quem o alertou sobre os problemas de Molares.

– Ainda continuo sem entender – respondeu a primeira dama. – O que ela ganharia com isso?

– Este é o xis da questão, querida – respondeu ele er-guendo a cabeça. – Nós é que perderíamos. Com a intervenção do sistema em nossas defesas, todos os complexos saberiam da deficiência de governo em Incisivocity e com isso, dúvidas co-meçariam a ser levantadas sobre nós.

– Mas ela mesma perderia com isso. Não foi a própria Liga de Amálgama que ajudou a força policicálcio contra os streptos? – questionou Dentina.

– Sim, mas tudo para a Cárie acontece como num jogo de xadrez.

– Olha Esmalte, é melhor começar a explicar logo aonde quer chegar, porque você sabe que de xadrez eu não entendo

nada.Esmalte voltou–se novamente em direção à cidade e co-

locou as mãos sobre a sacada olhando longe e respirando vaga-rosamente.

– Em um jogo de xadrez, mexem–se os piões primeiro para abrir caminho para as peças mais importantes – começou a dizer. – Sendo assim, é necessária a perda de várias peças an-tes de se chegar à peça principal, ou seja, o rei.

Sra. Dentina continuava observando–o sem dizer nada, mas começando a entender onde o prefeito queria realmente chegar.

– A Cárie faz um jogo muito estratégico, porém sujo demais – continuou. – Ela vai começar a incomodar as peças grandes, perdendo suas próprias peças pequenas. E pode ter certeza que até mesmo Ácido Açucarado é café pequeno na lista de aliados dela.

Sra. Dentina aproximou–se novamente de Sr. Esmalte e lhe abraçou por trás encostando agora sua cabeça no ombro dele.

– Tenho medo por você, Esmalte. Há horas que você quer assumir riscos que não lhe cabem.

– Eu sei dos riscos que assumo Dentina. Não me peça para não assumi–los. Desde o início sabíamos o que viria.

– Sabíamos o que viria com você na cadeira de prefeito de Incisivocity, não numa viatura da força policicálcio.

Esmalte não disse nada em resposta, no fundo sabia tam-bém que a esposa estava certa e que era dono de grandes atos precipitados.

– Penso na população que acreditou em mim, amor. Não posso desapontá–los em nenhuma circunstância.

– Então pense em nós também, Esmalte. Sua filha é ape-

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nas uma criança e precisa de nossa força, para crescer sadia. Sem você, estamos completamente desprotegidas.

Esmalte respirou fundo, segurou os braços da esposa e voltou seu olhar para dentro, em direção à Amelodentina.

– Procurarei ser mais cauteloso, principalmente agora que tenho certeza de que incomodamos radicalmente a Cárie.

– Você promete?– Prometo. Não irei mais atuar como o super Esmalte por

aí.Dentina sentiu–se mais aliviada quando ouviu estas pa-

lavras diretamente vindas da boca de Esmalte, cujas promessas eram honradas a qualquer custo desde quando o conheceu.

– Vou deixar isso para os verdadeiros heróis de Incisivo-city. Vou promover uma festa no fim de semana para todos os habitantes de Incisivocity, incluindo seus moradores subterrâ-neos.

– Mas, como? Se vocês mesmos disseram hoje que eles não podem conviver conosco aqui em cima por muito tempo. Como eles participariam de uma festa em Incisivo Centrales?

– Pode deixar que já tenho algo em mente. Muitas coisas afloraram quando estava lá embaixo, mas ainda não é hora para pensar em futuros projetos subterrâneos sem antes resolver os problemas estruturais aqui em cima.

Sra. Dentina balançou a cabeça em concordância e come-çou a olhar para longe também imaginando o que teriam pas-sado todos naquela angustiante missão de resgate em Molares.

– Por falar em heróis, você viu Calcin depois dos discursos no salão hoje? – perguntou Esmalte.

– Não o vi e em a senhorita Anipatita.Sr. Esmalte abriu um leve sorriso no rosto deixando esca-

par uma pequena risada, como se já entendesse o que estava se

passando. Sra. Dentina também já havia percebido alguma ma-nifestação emocional da apatita em relação ao cálcio, mas sem dar a devida importância ao caso.

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Capítulo 9

As barracas estavam montadas naquela tarde do pri-meiro final de semana onde, passavam juntos, desde as eleições, apatitas, odontoblastos, odontoclastos e cálcios. Todos se entre-tendo pela festividade, inclusive o prefeito, a primeira dama e Amelodentina que não queria sair de perto da tenda de bonecas.

Sargento Calcion desfilava vagaroso entre a multidão jun-tamente com outros dois cálcios fardados, mantendo a ordem daquele ilustre acontecimento. Oncoblasto estava sentado em uma barraca de fluorita tomando seu líquido com toda satisfa-ção, conversando sério, talvez sobre assuntos administrativos, com Obariloclasto. Ao fundo, via–se Oncoclastos tentando acer-tar alguns alvos de streptos numa barraca de tiro ao alvo sem muito sucesso.

A Liga de Amálgama estava logo mais à frente, bem próxi-mo à praça de Incisivos Centrales, todos sentados apreciando a festa e, mesmo que tentassem se manter um pouco afastados da multidão devido aos assédios dos novos fãs, os pequenos odon-toblastos infantis não deixavam de se aproximar deles. Prata es-tava se divertindo ao ver algumas apatitazinhas imitarem–na, brincando de Liga de Amálgama, porém já não agradava muito

ao Cobre que, mesmo recebendo críticas dos companheiros, ain-da mantinha aquela velha cara amarrada.

Madame Mielina ainda não estava presente, mas havia avisado que chegaria tarde, pois estava abarrotada de serviços a mando de seu marido, mesmo sendo final de semana.

Agente Calcin estava de folga naquele dia, afinal de con-tas, ser conhecido do prefeito era uma qualidade até boa, sem falar nos serviços prestados. Sargento Calcion não o incomoda-va mais, Calcin tinha a impressão que muita coisa em relação ao sargento havia mudado desde então. Mal sabia o agente, porém, que Calcion enxergava em seu agente um possível substituto para os anos futuros, mas nunca citou nada em relação a estes pensamentos.

Calcin andava lentamente virando seu pescoço em todas as direções procurando pela secretária, mas até aquele momen-to não a havia visto. Entretanto, naquele instante fora interrom-pido por dois cálcios que vinham em sua direção e que o agente não tinha percebido.

– Bom dia, agente Calcin? – cumprimentou um dos cál-cios.

– Você? – respondeu Calcin reconhecendo o cálcio. – Como é bom ver você tão bem.

– Meu amigo aqui ainda está com uma perna engessada, mas é coisa boba, logo estaremos à ativa novamente.

Tratava–se de Calcine e Calcitis, os dois oficiais feridos em Molares pelos streptos, que, à paisana, andavam apreciando a festa.

– O negócio foi tão feio que o Dr. Fibron pensou que Calci-tis não iria agüentar – disse Calcine.

– É, e veja eu aqui – sorriu Calcitis mostrando sua perna engessada. – Até que não estou tão mal assim. O que me depri-

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me um pouco é o fato do Doutor não poder vir à festa. Queria eu mesmo agradecer pelo que fez, mas o importante é que a Liga de Amálgama e você estão aqui e poderei agradecer pessoalmente a vocês.

– Ora, não se incomode Calcitis – aliviou Calcin. – Tenho certeza que de modo contrário vocês teriam feito a mesma coisa, ou melhor, fizeram. Foram muito corajosos de entrar em Mola-res guiando o prefeito.

Ficaram ali se gabando por alguns instantes até que, de relance, Calcin enxergou Anipatita tomando um sorvete de fluo-rita bem próximo onde estava o prefeito e a primeira dama. Isso o inibiu de sair correndo em direção à moça.

Calcine e Calcitis continuavam a falar, mas o agente já não conseguia prestar atenção em suas palavras. Tudo era Anipatita daquela hora em diante.

– É verdade – respondeu o agente olhando para a apatita.– É verdade o quê, Calcin? – perguntou Calcine não enten-

dendo a resposta do agente.– Ora, me desculpem – disse Calcin tossindo. – Eu tenho

que fazer uma coisa e depois a gente se fala de novo.Calcin começou a andar em direção a uma barraca mon-

tada ao lado da que estava Anipatita, e os dois cálcios tagarelas ficaram sozinhos e vendidos.

Foi Sra. Dentina quem percebeu o agente se esfregando entre alguns odontoblastos para poder chegar até a barraca.

– Olhe quem está aqui! – exclamou a primeira dama aler-tando.

Calcin tentou se esconder, mas já era tarde demais. Deu uma jogada de corpo meio que sem jeito como se tivesse perce-bido eles também naquele instante, mas foi Sr. Esmalte quem foi ao seu encontro puxando conversa.

– Grande garoto! – exclamou o prefeito jogando sua mão no ombro de Calcin novamente. – Estava sentindo sua falta aqui.

– Acabei de encontrar os oficiais que estavam com o se-nhor em Molares – jogou muito bem Calcin a ponto de afastar o prefeito dali.

– Verdade? Onde eles estão? – perguntou curioso o prefei-to olhando a sua volta. – Queria muito encontrá–los.

– Eles estavam indo encontrar a Liga de Amálgama perto da praça – disse Calcin já apontando o local. – Deve ser para lá que foram.

Sra. Dentina, que não era boba, sacou imediatamente que Anipatita estava completamente desajustada. Quando havia dito que Calcin estava por perto, ela quase engoliu o resto de sorvete.

– Vamos querido? – disse Dentina segurando a mão de Amelodentina. – Acho melhor irmos ao encontro da Liga e dos oficiais – e cumprimentou o agente, disse. – É bom vê–lo, Cal-cin.

– Muito bom vê–la também, Sra. Dentina – respondeu meio sem graça. – Amelodentina está crescendo e ficando muito bonita.

– Está puxando a mãe – interveio Sr. Esmalte tocando no rosto da esposa – Bom, então já vamos. Veremos-nos de novo, Calcin.

Calcin acenou com a cabeça e acompanhou com os olhos a saída da família, voltando novamente o olhar para a secretária.

– Você não emenda, não é mesmo? – respondeu Anipatita deixando escapar um sorriso singelo. – Manda um sinal, alguém avisar. Sei lá, mas não vacile perto do prefeito.

– E eu consigo? – disse Calcin já se aproximando.– Eu também não. O pior é que já estão começando a des-

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confiar.– Quem está desconfiando?– Desconfiando não seria a melhor palavra agora. Eu diria

sabendo de tudo mesmo – corrigiu–se Anipatita. – Madame Mie-lina já sabe e tenho certeza que Sra. Dentina também.

Muitas coisas deveriam ser levadas em conta na união da apatita com o cálcio, principalmente o fato de se tratar da secre-tária do prefeito. Calcin temia pelo emprego de Anipatita que, por sua vez, não queria expor um agente de alta confiança de Esmalte.

– Sabe, linda, existe um lugar que gostaria de levá–la – lembrou–se Calcin. – Mas acho que você não vai querer sair da-qui agora.

– Você está brincando!– adiantou–se Anipatita. – E onde seria?

– Bom, é além das fronteiras urbanas de Incisivocity, de-pois dos bairros inferiores. É justamente onde segue o caminho para Estomagolópolis e Pulmolândia.

– É longe um pouco – disse ela. – O que tem lá?– Bom, aí seria a parte cabível da surpresa.Anipatita e Calcin ainda ficaram algum tempo dando as

caras na festa, pois seria percebível demais a saída de ambos logo após terem se encontrado.

Sr. Esmalte aproximou–se de onde estavam a Liga de Amálgama e os dois cálcios, naquele momento também estava chegando o veículo presidencial trazendo Madame Mielina à frente de uma caravana de automóveis azuis.

– Ótimo, parece que Madame Mielina conseguiu trazer o que encomendei sem maiores problemas – disse Sr. Esmalte percebendo a chegada da comitiva.

– Desculpe–me senhor prefeito, mas o que poderia ser

tão importante para que a comitiva do Sistema Nervoso Central trouxesse? – perguntou a Prata.

– Pedi para que Madame Mielina comunicasse todo o ocorrido em Molares para o Sistema Nervoso Central e assim conseguisse a liberação para máscaras de desoxigenação para nossos mais novos convidados ilustres – respondeu Esmalte.

– Os cementócitos – respondeu antecipadamente Sra. Dentina. – Esmalte não parou de falar nessas máscaras um só dia desta semana.

– Tão óbvio quanto às chuvas periódicas de flúor que acontecem duas vezes ao ano – complementou o prefeito. – Eles vivem pouco tempo em presença de oxigênio, não é mesmo? En-tão, com as máscaras desoxigenadoras eles poderão participar da festa sem se preocuparem com o tempo.

– A ideia é excelente, mas por que o aval do Sistema Ner-voso Central para a liberação das máscaras? – perguntou o Es-tanho.

– Na verdade, o caso não seria as máscaras e sim a pre-sença desses cementócitos por muito tempo na superfície – res-pondeu Esmalte. – Naquela comitiva estão os agentes especiais do pelotão do Sistema Imunológico, os Linfócitos, assim eles re-conhecerão os cementócitos e evitarão que o próprio sistema os ataque.

Quando Madame Mielina finalmente se aproximou de Sr. Esmalte e companhia, todos já estavam ansiosos por esperar como sucederia a manobra. Os agentes linfóides que desceram dos demais veículos eram fortes e traziam uma expressão séria, até mesmo o sargento Calcion deduziu que se tratavam de pes-soal altamente treinado. Não se aproximaram, ficaram somente olhando ao redor como se estivessem procurando por alguma coisa e não faziam muitos movimentos bruscos.

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Sr. Esmalte olhou para o relógio e depois para o centro da praça, se encaminhando naquela direção, seguido pelos que es-tavam próximos. Madame Mielina se aproximou de Sra. Dentina e Amelodentina acariciando a menina levemente. Sargento Cal-cion, Calcine e Calcitis também acompanharam o prefeito junto à Liga de Amálgama.

– É melhor ficarmos aqui, Sra. Dentina – alertou Mielina. – Não queremos que haja contratempos nesta operação.

– É arriscado, Madame Mielina? – perguntou Sra. Dentina começando a ficar preocupada.

– Não, pelo contrário. É bastante simples, mas o proce-dimento é para evitar que alguma coisa aconteça mesmo. Pelo que parece, Sr. Esmalte combinou com Cementom de aparecer em algum lugar na praça e esses cementócitos vão abrir alguma fenda no chão. Como não sabemos onde, é melhor ficarmos aqui e aguardar.

Dos agentes especiais que estavam no local, somente um seguiu em direção ao prefeito. O mais baixo dos linfócitos, po-rém com ar mais sagaz, saiu em passos rápidos. Sra. Dentina percebeu que em seu uniforme havia uma letra B na parte das costas, mas resolveu ficar calada somente observando.

Sr. Esmalte se aproximou de um dos três coretos que a praça possuía e olhou ao relógio novamente.

– Está na hora – disse para que todos que o acompanha-vam ouvissem. – Afastem-se um pouco.

Houve um pequeno tremor, mas nada aconteceu. Calcitis e Calcine se entreolharam enquanto Calcion, todo curioso, dava pequenos passinhos aproximando-se mais do prefeito e estican-do o pescoço em direção a uma pequena porta embaixo do core-to, de onde vinha algum barulho.

Quando a maçaneta girou, Cementom apareceu procuran-

do pelo prefeito. Sr. Esmalte foi até ele e disse algo o fazendo retornar.

– Por favor, senhores, tragam as máscaras – ordenou o prefeito.

Mesmo com a perna engessada, Calcitis começou a cami-nhar rapidamente em direção aos veículos presidenciais junto com os demais.

– Quem são eles, mamãe? – perguntou Amelodentina se-gurando com toda força sua boneca Diamanta, demonstrando certo receio aos cementócitos que iam saindo do coreto e colo-cando as máscaras desoxigenadoras.

– Não se preocupe, filhinha. Estes são os amigos que aju-daram o papai em Molares Superiores.

– E por que eles têm olhos tão grandes? – perguntou a menina novamente.

– No subsolo é muito escuro, Amelodentina. – foi a vez de Madame Mielina responder. – Assim, eles enxergam com maior facilidade lá dentro, sem se machucarem.

Entretanto, Amelodentina também ficou muito curiosa quando um pequeno menino saiu segurando as mãos de uma cementócita muito bonita. Os olhos do menino, apesar de serem muito grande como dos demais, tinha uma coloração azul qua-se que fosforescente, o que deixou a menina bastante intrigada, pois eram iguais aos da mãe.

– Sra. Dentina, Madame Mielina; esta é minha esposa Céli-ca e meu filho Célion – disse Cementom.

– Puxa como seu filho se parece com a senhora, Dona Cé-lica? – argumentou Sra. Dentina.

– Ah, sim. Cementom vive dizendo isso o tempo todo – co-mentou Célica observando também Amelodentina. – É sua filha? Que linda!

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– Obrigada – e se dirigiu à filha. – Amelodentina, esta ce-mentócita é casada com o cementócito que ajudou seu pai.

Amelodentina deu uma rápida olhada em Célica e voltou sua atenção ao garoto, que, por sua vez, também estava olhando para ela.

– Oi, sou Célion – disse o menino.– Oi, Célion. Você também tem de usar máscara? – a meni-

na deixou escapar logo uma das perguntas que estava entalando em sua mente.

– Acho que sim. Meu pai falou que se não a usarmos, não poderemos ficar por muito tempo. E parece que aqui está muito legal.

– Você já andou de carrossel, Célion? – perguntou nova-mente Amelodentina.

– Carrossel? – devolveu outra pergunta o garoto fazendo uma cara de quem nunca havia nem ouvido falar sobre o brin-quedo. – Vocês andam de carrossel? E o quê é isso?

– Ora, Célion. – interveio Madame Mielina. – É uma coisa muito boa, tenho certeza que você vai gostar muito de dar voltas e voltas no carrossel – e voltou-se para as mães. – Podem ficar tranquilas que eu tomo conta deles enquanto vocês duas pas-seiam pelas barracas.

Não seria incômodo algum para Madame Mielina, já que bancar a babá era seu hobby preferido. E assim passou muitas horas se divertindo com as crianças, tanto no carrossel como na roda gigante e outros brinquedos da festa.

– Vocês fizeram um ótimo serviço em Molares – disse o prefeito para a Liga de Amálgama e Cementom. – Molares Supe-riores está completamente restaurado.

– Claro que não usamos de estruturas originais, mas os prédios estão completamente seguros revestidos de amálgama

– complementou o Cobre.– E garanto que as raízes também estão seguras – disse

Cementom. – Nós, cementócitos, não ficaríamos tranquilos sa-bendo que em cima de nós existem prédios sem estruturas fi-xas.

– Foi um verdadeiro trabalho de equipe – concluiu o pre-feito. – A ação dos cálcios, bravos e corajosos, a reestruturação das paredes adjacentes na combinação de tarefas dos odonto-blastos, odontoclastos e apatitas. Sem contar a Liga de Amálga-ma que foi de suma importância nestas restaurações e também dos cementócitos que honraram suas características sigilosas. É assim que Incisivocity deverá ser formada, seremos um com-plexo forte, que dará ao sistema toda a segurança para uma vida tranquila.

• • •

O veículo de Calcin já estava concluindo sua travessia pe-los bairros Molares Decíduos Inferiores e os primeiros limites físicos da cidade já eram claramente notados. O solo era bem mais farto e Calcin lembrava Anipatita de que aquele solo faria parte do futuro de Incisivocity, e a apatita, por sua vez, adiantava que já havia visto projetos de construções futuras muito bem arquitetadas.

Outra coisa que chamava a atenção de Anipatita era o fato de que, a cada minuto que eles se distanciavam da cidade, ficava também mais escuro. Contudo, não se tratava de uma escuridão sombria e aterrorizante, mas uma escuridão lustrosa e averme-lhada como um pôr de sol de aurora boreal. Era realmente bo-nito de se ver.

– Onde estamos indo, Calcin? – perguntou Anipatita com

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uma convicta curiosidade.– Vou lhe mostrar um lugar chamado de Trígono Retro Mo-

lar – disse ele seguro. – É uma região ainda em formação, onde o rio Salivar escorre em cataratas seguindo rente à estrada que leva à Estomagolópolis, bem no limite final de nossa cidade.

Passaram por uma vasta região deserta, mas bastante ir-rigada pelo rio que vinha das porções centrais de Incisivocity. Anipatita estava maravilhada, pois nunca havia estado ali antes e tinha quase toda a certeza de que, entre as apatitas da cidade, estava sendo a pioneira a ver tal região.

Calcin ficava observando-a temporariamente enquanto dirigia e realmente havia gostado daquele novo visual trançado de seus cabelos.

– Está realmente gostando deste novo penteado, não é mesmo? – disse ele olhando para frente.

– É interessante, mas desde que estou usando–o, me sinto muito mais segura. Me trás alguma coisa de minha infância, mis-turada à maturidade dos tempos atuais.

Calcin não havia entendido direito, mas estava decidido a ouvi-la sobre tudo o que ela quisesse falar. Continuava dirigindo, olhando para frente e dando algumas olhadelas quando o cami-nho seguia reto.

– Sabia que Amelodentina foi quem fez este penteado pela primeira vez? – disse ela abrindo um grande sorriso. – Disse que me pareço com Diamanta.

– Quem? – perguntou pela primeira vez o agente.– Diamanta é a sua boneca mais querida – continuou ela.

– A estória dessa boneca é uma estória de superação, e ingenui-dade – e Anipatita repetiu toda estória que Amelodentina havia lhe dito sobre a boneca.

– Puxa então o Sr. Esmalte foi muito sábio em tratar das

fobias de Amelodentina – concluiu Calcin. – Creio que não teria pensado em nada parecido.

– Nem eu – acrescentou a apatita. – De alguma forma, aquela boneca fez-me lembrar da época em que perdi meus pais em Molares. Era muito pequena e tive de superar meus próprios medos – e abaixou seu rosto com um semblante entristecido. – Queria eu ter uma boneca assim para desviar minhas tensões.

– Ora, por que ter uma boneca dessas, se você é a própria Diamanta em pessoa? – descontraiu Calcin quebrando o clima que estava se iniciando e fazendo a secretária dar as primeiras gargalhadas da tarde.

– Então você é o meu “soldadinho de chumbo” – comple-tou Anipatita esfregando os olhos e sorrindo graciosamente.

Os trechos que se seguiram não se modificaram por um longo tempo, até que eles chegaram a uma região na qual te-riam de subir uma serra bastante íngreme. Dentre derrapadas e risadas, ambos seguiram ansiosos pelo momento de chegar ao ponto almejado por Calcin.

Quando lá finalmente chegaram, Anipatita soltou um grande suspiro de emoção e pavor ao mesmo tempo. Jamais ha-via visto nada semelhante em sua vida.

O caminho descrito por Calcin que levava até Estomagoló-polis e Pulmolândia se dividia em dois e descia por uma estrada escura e avermelhada muito brilhante, numa descida quase que eterna. Entre as duas estradas descia também o rio Salivar que deslizava em uma queda maravilhosa.

– Que coisa mais emocionante! – dizia ela abraçada fir-memente ao agente, com medo de sair escorregando caminho abaixo. – Como descobriu um lugar tão diferente quanto este?

– Na verdade quem me indicou o caminho foi Cementom, quando estávamos em direção à saída dos túneis de Molares Su-

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periores. Estive aqui esta semana para estudar o lugar a fim de trazê–la para ver de verdade. Talvez não tivesse acreditado se apenas lhe tivesse contado.

– Não mesmo! – concordou ela. – Todos nós sabemos das divisas da cidade, mas nunca nenhum habitante de Incisivocity saiu de nossas proximidades.

– Talvez você seja a primeira cidadã de Incisivocity a co-nhecer um lugar como este, Anipatita.

Anipatita sentia-se orgulhosa por aquele comentário, já que estava mesmo deduzindo isso. Nem mesmo Sra. Dentina co-nhecia uma região tão empolgante quanto aquela.

– Na verdade, trouxe-lhe aqui para te perguntar uma coi-sa, Anipatita.

O coração da apatita pulsava tão forte que ela tinha quase certeza de que Calcin poderia escutá-lo, já era muito para uma simples apatita estar vivendo tanta emoção e agora Calcin vinha com outra surpresa da qual ela mesma não tinha certeza do que seria.

Calcin então se ajoelhou em frente da secretária, fazen-do com que ela começasse a suar frio e ficar com as pernas tão bambas que já não saberia que pudesse ficar de pé.

O agente então colocou uma das mãos para trás trazendo uma caixinha azul metálica com um laço branco envolvendo-a. Anipatita sentiu as vistas escurecerem por alguns instantes, mas não podia desmaiar, pois estava sendo divino demais aquele mo-mento.

Talvez todas as situações mais inusitadas de sua vida te-riam lhe passado pela cabeça e mesmo assim não seria nada comparado com aquilo que parecia estar mesmo acontecendo.

Calcin então ergueu a mão onde trazia a caixinha, já aber-ta, com uma aliança em pérola, mais brilhante do que qualquer

parede de cada casa existente em Incisivocity e começou a dizer ofegante e trêmulo.

– Quer se casar comigo, Anipatita?Nunca em sua vida, Anipatita sentiu seu organismo agir

daquela forma. Tudo em seu corpo estava descompensado e até mesmo seu raciocínio estava travado, coisa rara de lhe aconte-cer. Calcin permanecia no chão com aquela cara de criança que pedia uma bicicleta de natal, nem piscava os olhos.

– Tem certeza do que está fazendo, Calcin? – perguntou ela trêmula, mas mantendo um sorriso agradável e os olhos úmidos.

– De todas as coisas que já fiz em minha vida, é a primei-ra que não pensei duas vezes – respondeu ele também umede-cendo a vista. – Por quê? Você não quer?

Anipatita segurou com as duas mãos os braços do agente e o puxou para cima com toda sua força, fazendo o agente dar um salto. Já de pé, a apatita pôs a olhá-lo profundamente, não se segurando mais e deixando as primeiras lágrimas caírem.

– Eu nunca me apaixonei por ninguém até conhecer você, Calcin. O problema é que não tenho nada a lhe oferecer como esposa, nem mesmo moro em uma casa que seja minha. Sempre tive problemas em minha vida e acho que você, como agente da força policicálcio, iria querer uma mulher de maior destaque em nossa sociedade.

Foi a vez de Calcin segurá-la com força e deixar também ser entregue às lágrimas.

– E o que você acha que eu tenho? Bom, para ser sincero acho que as roupas de cama, pois até as fardas que uso são for-necidas pela força policicálcio.

Anipatita ficou olhando-o por alguns segundos e ima-ginando coisas que nunca Calcin, mesmo com sua experiência

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como agente, poderia imaginar.– Se você acha que isso é um problema então, estamos

realmente encrencados – continuou o agente. – Tenho certeza de que tenho muito menos a lhe oferecer.

– Não, você não tem – respondeu ela. – Gostaria que minha mãe estivesse aqui para me ver agora. Nunca fiquei tão feliz em toda minha vida e tenho certeza também que nada em minha vida se compara a isso – e completou. – A resposta é sim, agente Calcin. Eu quero ser sua esposa.

Capítulo 10

Já era a quinta vez que Célion dava voltas no carrossel acompanhado de Amelodentina que se divertia tanto quanto o cementócitozinho. Madame Mielina acompanhada de dois linfó-citos seguranças acompanhava a diversão toda sorridente como se aquelas crianças fossem realmente suas.

Amelodentina dava tanta gargalhada de ver as trapalha-das de Célion no carrossel, que todos que passavam em volta do brinquedo paravam para apreciá-la sorrir. Célion, por sua vez, ficava um pouco envergonhado um pouco conformado, aliás, era uma experiência completamente nova para ele.

O cementócito chegou a cair inúmeras vezes de cima de um cavalinho cinza pelo fato de não saber se apoiar direito, o que divertia ainda mais a todos que também o olhavam. Contu-do, Amelodentina, ao ver que o garoto não iria conseguir segurar direito, talvez pelo seu tamanho disforme, pulou para a garupa de Célion que tomou um susto ao ver sua nova amiga atrás dele.

– Você não vai conseguir ficar aqui em cima por muito tempo com estas pernas tão curtas – alertou Amelodentina. – Preste bem atenção.

E a menina passou suas mãos por baixo dos ombros de

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Célion, abraçando o pescoço do cavalo e levando as mãos do ce-mentócito junto.

– Seus braços são mais cumpridos do que suas pernas, en-tão vai sentir-se mais seguro assim – disse ela olhando para ele por cima de seu ombro direto.

Ambos continuaram ali por muito tempo, o que provavel-mente daria à Madame Mielina horas ainda de vigília.

Sra. Dentina e Dona Célica estavam tomando Fluorita, apreciando o movimento de apatitas, odontoblastos e odonto-clastos por todos os cantos até que a Prata se aproximou.

– Dá gosto ver suas crianças brincando, sabia?– Amelodentina é uma menina muito sozinha – disse Sra.

Dentina olhando em direção ao carrossel. – Raramente ela cos-tuma brincar com outras crianças onde moramos.

– Engraçado você dizer isso, pois Célion é um garoto mui-to sistemático – foi a vez de Célica. – Difícil é vê–lo se entrosar com outra criança como está acontecendo agora.

– Amelodentina parece ser muito extrovertida – acrescen-tou a Prata. – Ela capta a atenção das pessoas para ela.

– Madame Mielina se apaixonou por ela no primeiro dia que a viu – Sra. Dentinalembrou-se quando Madame Mielina es-teve pela primeira vez no gabinete do prefeito.

– Não é tão difícil de apaixonar por ela – disse Dona Célica. – Fiquei encantada quando Amelodentina convidou Célion para brincar no carrossel com ela. Se não fosse por isso, meu filho estaria aqui conosco sem aproveitar um pouquinho que fosse da festa.

– Madame Mielina também é uma grande pessoa, não é mesmo? – disse a Prata observando as redondezas do brinque-do.

– Com certeza. Por falar nisso, Prata, você já esteve com o

Sistema Nervoso Central? – perguntou a primeira dama curiosa. – Pelo que Esmalte me disse, vocês foram alertados pelo sistema do ocorrido em Molares, não é mesmo?

– Na verdade, foi o Sistema Nervoso Periférico quem nos alertou. Nunca tivemos contato direto com o sistema, apesar de nossas ligações, mas acredito que para chegar ao sistema nervo-so central o único caminho é por Mielina mesmo.

– Engraçado Cementom nunca falar nada sobre o Sistema Nervoso Central – disse Dona Célica tomando mais um gole de fluorita.

– Vocês são fortemente protegidos pelo sistema linfático, Dona Célica – apontou a Prata. – Antes de alguma coisa afetá-los embaixo de Incisivocity, teria de passar pelo sistema de defesa principal ou então pela própria cidade na superfície.

– Talvez, se não fosse pelo incidente em Molares, nós nun-ca teríamos conhecimento de que havia uma sociedade embaixo de nossos pés – concluiu Dentina.

Quando Madame Mielina retornou com as crianças, a Pra-ta já estava pronta para se retirar se não fosse por uma indaga-ção bastante curiosa feita por Amelodentina.

– Vocês podem restaurar qualquer parte da cidade?A Prata se voltou bastante abismada com a precisão da

pergunta. Ninguém até aquele momento, nem mesmo Sr. Esmal-te, havia feita tão oportuna indagação. Tanto Madame Mielina como as demais mães ficaram petrificadas esperando a respos-ta do principal membro da Liga de Amálgama. A Prata então se abaixou para poder ficar à altura das duas crianças e, colocando a mão sobre a cabeça de Amelodentina, explicou.

– Podemos restaurar qualquer região de Incisivocity con-tanto que não haja condenação de suas raízes, porém se o cen-tro da cidade, por algum motivo, for afetado, nós não teríamos

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uma força de ação tão precisa.Amelodentina abaixou a cabeça como se estivesse pen-

sando sobre alguma coisa. Célion arregalou ainda mais seus grandes olhos azulados seguido por Sra. Dentina e Dona Célica. Madame Mielina fechou uma das sobrancelhas se auto pergun-tando o porquê de não conseguirem uma ação dessas no centro da cidade.

– Então, se Incisivo Centrales for atacada por estes bichos vocês não poderão fazer nada? – perguntou novamente a meni-na tirando da boca de todos a mesma indagação.

– Na verdade poderíamos agir contra os bichos, Amelo-dentina – respondeu com uma expressão de desapontamento. – Mas nada mais do que isso – e voltando-se para as senhoras. – Se Incisivo Centrales for danificada, não poderíamos fazer nada.

Ao ver a expressão frustrante de Amelodentina, Prata pôs-se a se redimir quase que imediatamente para não deixá-la tão confusa.

– Contudo pode ficar tranquila, minha cara amiguinha – disse ela esfregando a cabeça de Amelodentina. – Incisivocity tem uma força de proteção que dá inveja até mesmo em nós da Liga de Amálgama.

Seguido de Cementom, Calcion e os demais membros da Liga de Amálgama, Sr. Esmalte chegou lentamente com os bra-ços para trás curtindo aquele momento de alegria vindo de to-dos os cantos do centro da cidade. De outro lado também chega-ram Oncoblasto e Obariloclasto, que vinham discutindo futuros projetos na área de construção e administração da cidade.

– Por favor, Madame Mielina – disse o prefeito cumpri-mentando com um simples gesto de cabeça as demais madames daquela roda. – Quando se encontrar com o Sistema Nervoso Central novamente peça para que entre em contato com os oste-

ócitos para mim. Quero que um representante deles venha visi-tar Incisivocity para que eu lhe repasse alguns planos para uma linha de trânsito subterrânea em nossa cidade.

– Assim que retornar, Sr. Esmalte. – respondeu ela.– Parece que temos grandes planos para Incisivocity, não

é mesmo, querido? – disse Sra. Dentina querendo uma resposta que lhe atenuasse a curiosidade pelo que seria.

– Desculpe-me, querida Dentina. – respondeu o prefeito já sabendo o que queria a esposa. – Não falei nada com você an-tes, pois queria conversar com Cementom primeiro. Não sabia se minhas ideias poderiam ser realizadas e, se pudessem, qual o caminho deveria eu seguir para conseguir realizá-las. Os os-teócitos juntamente com os cementócitos poderão nos ajudar a construir uma linha de metrô subterrânea por toda a cidade, as-sim os cidadãos de Incisivocity poderiam ter acesso a qualquer lugar em menos tempo com maior praticidade.

– Mas que excelente ideia, Sr. Esmalte – afobou-se Onco-blasto.

– O que é isso, mamãe? – perguntou Amelodentina.– Metrô é uma espécie de trem, mas que viaja bem embai-

xo da terra – respondeu Sra. Dentina.– E nós também podemos andar de metrô? – perguntou

Célion já perdendo sua timidez.– Mas é claro, meu amiguinho – respondeu o prefeito. –

Todos em Incisivocity serão beneficiados com nossas linhas de metrô.

Naquela mesma tarde, a Cárie estava sentada batendo os dedos sobre a mesa de seu escritório ansiosa por alguma coisa da qual nem mesmo Ácido Açucarado tinha noção do que era. Depois de ter ficado horas parado na sala da companheira sem nem mesmo ter sido esclarecido de nada, o capitão das forças

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negativas da Cárie retirou-seaborrecido. Os minutos pareciam ser horas na cabeça da Cárie que,

por várias vezes, olhou o relógio da parede reclamando dos pon-teiros que pareciam não se mover, até que um actinomyce en-trou lentamente na sala sem ser percebido pelo chefe principal.

− Estamos conseguindo reunir mais streptos, Dona Cárie.Cárie rapidamente levanta-se de sua cadeira assustada ao

ver que o actinomyce tinha adentrado na sua sala sem que ela percebesse.

− Melhor mesmo – disse ela suspirando e voltando a se sentar. – De acordo com meus novos planos, os streptos serão uma peça chave para que tudo dê certo desta vez.

− E o que pretende agora, já que Incisivocity está refor-çando suas defesas? – perguntou com um ar meio debochado, irritando um pouco a Cárie.

− Cansei de tentar atacar pelas beiradas – disse ela se le-vantando novamente e dirigindo-se ao actinomyce. – O conjunto de ataque que promoveram em Molares foi uma piada de mau gosto tremenda.

− Se tivesse deixado a estratégia de ataque por conta de nós, com certeza a situação teria tomado um rumo diferente – o actinomyce respondeu levemente ao perceber o tom enfurecido da Cárie.

− E que rumo teria dado à história se estivessem lá, seu actinomyce medíocre! – interrompeu Ácido Açucarado que re-tornou imediatamente à sala quando percebeu que a porta esta-va aberta. – Na certa estariam soterrados com o resto dos strep-tos.

– Pena você não ter caído com seu apático exército – re-trucou o actinomyce.

– O que vai cair será sua cabeça se continuar dizendo bes-

teiras, seu... – Ácido Açucarado começou a partir para cima da bactéria quando foi interrompido pela Cárie.

– Deixem de tolices! – interveio ela. – Afinal de contas, para minha próxima manobra, terei de contar com a participa-ção de todos novamente.

Antes mesmo de continuar a falar sobre o novo plano, o telefone da sala tocou fazendo com que todos nela presente se assustassem. Cárie atendeu logo e soltou um sorriso de conten-tamento quando percebeu quem falava do outro lado.

– Tentei entrar em contato com você a semana inteira, mas sua secretária disse que estava ocupado – dizia a Cárie ao telefone. – Então quando poderemos nos encontrar?

Ácido Açucarado só não partia para cima do actinomyce porque estava mais interessado em saber quem estava falando com seu chefe naquele momento.

– Então o aguardo em minha sala, nobre amigo – com-pletou ela antes de desligar o aparelho. – Pronto, está feito. Em pouco tempo vocês conhecerão um dos mais temíveis adver-sários de todo o sistema, e não falo de uma pessoa só, é uma legião inteira.

E novamente a Cárie libera suas gargalhadas maléficas deixando o actinomyce e o ácido boquiaberto a olharem um para o outro sem entender nada.

Naquela mesma noite, Calcin havia deixado Anipatita em seu apartamento em Incisivo Centrales e devolvido o veículo público à força policicálcio, deixando o quartel de policiamen-to bem mais tarde, pois perdera o maior tempo reencontrando Calcitis, que começou aquela conversa de agradecimentos que o agente menos queria ouvir naquele momento.

Tinha tido uma tarde surpreendente em companhia de Anipatita e por nada queria quebrar aquele clima de romance

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do qual fazia o possível para continuar sentindo pelo caminho de volta para sua casa em Incisivo Laterales.

Fora caminhando devagar apreciando a noite agradável que se formava antes das estações chuvosas de flúor que ocor-riam no meio do ano. De vez em quando fazia umas dançinhas pela calçada quando notava que não havia ninguém andando por perto, pois, poderiam imaginar que se tratava de um maluco bêbado pela noite, porém mesmo que alguém o flagrasse dan-çando, nem ele mesmo daria créditos.

Anipatita seria dele e por mais que estivesse ansioso na-quela tarde, naquele momento estava tão em paz consigo mes-mo que poderia encontrar o sargento que até beijaria sua testa se fosse preciso.

Assim Calcin fora caminhando e aos poucos cantarolando também, olhava os pequenos monumentos erguidos próximo à praça central, poucas barracas que ainda estavam montadas, po-rém vazias, e até mesmo alguns casais dispersos pela praça. Um momento de paz para Incisivocity que passara ultimamente por momentos difíceis.

Na porção central da praça, o coreto principal abrigava ainda alguns odontoclastos boêmios que ao avistar o agente ain-da cantaram alguma coisa para ele, inaudível, mas agradável.

Há muito tempo não se sentia tão dono de si, desde que ingressou na força policicálcio. Com o noivado aceito, eles não teriam mais que encontrar-se às escondidas como vinham fa-zendo e o melhor, seria visto como um homem de família por toda sociedade de Incisivocity. Ele mesmo tinha suas dúvidas de que era tratado, por alguns, como moleque ou garoto, o que o deixava muito aborrecido.

Quando estava terminando de atravessar a praça central da cidade, o agente não pôde deixar de notar uma bolsa escu-

ra jogada em um canto quase imperceptível, talvez nem mesmo Calcin tivesse a notado se não estivesse disperso e envolvido nos acontecimentos recentes. Outra coisa que também chamou a atenção de Calcin era o fato de a pequena bolsa ser de cor escu-ra, o que não era comum entre os habitantes de Incisivocity. Ao se aproximar, notou outra coisa esquisita, o feixe estava aberto e Calcin pôde averiguar que uma manga de jaqueta estava quase saindo pela abertura. Resolveu não tocar na bolsa antes de ob-servar direito do que se tratava e, no meio de suas observações, notou que a jaqueta branca que estava lá dentro era da força policicálcio de Incisivocity.

– Um uniforme de oficial dentro de uma bolsa destas? – sussurrou consigo mesmo. – Tem alguma coisa errada nisso.

Não havia dúvidas de que coisa boa não era. Calcin temia o fato de algum oficial ter sido sequestrado, já que estaria en-frentando um momento bastante crítico contra os opositores do governo de Sr. Esmalte. Sendo assim, resolveu ligar para o sargento temendo o fato de haver bactérias presentes na região central da cidade.

Quando Calcion chegou ao local com mais uma dúzia de oficiais, ele foi logo observando a bolsa citada por Calcin. Calçou um par de luvas e começou uma análise, primeiro pela parte de fora, depois passou a remexer por dentro onde estava a roupa.

– Quando foi que você percebeu esta bolsa, Calcin? – per-guntou o sargento ainda analisando a peça.

– Um pouco antes de ligar para o senhor, sargento – res-pondeu. – É uma jaqueta da unidade central da força policicál-cio, não é mesmo?

– Exatamente – concluiu o sargento levantando a jaqueta e apontando o emblema no braço direito onde se viam as iniciais FPI, Força Policicálcio de Incisivocity.

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– Não é melhor alertar o prefeito? – perguntou novamente o agente.

– Vamos levar primeiramente a jaqueta para análise antes de avisá-lo – discordou Calcion. – Vou avisar o departamento so-bre o ocorrido e pedir a presença de dois oficiais em vigília no prédio do prefeito. Quando tivermos os resultados das análises aí sim vamos expor os fatos ao Sr. Esmalte com toda a segurança e com informações exatas.

Porém, havia outra coisa esquisita naquela bolsa que Calcin não havia notado uma repartição lateral com um cartão alaranjado. Calcion apanhou-o e notou imediatamente que ema-nava certo odor incômodo. Além disso, havia algumas coordena-das escritas nele, das quais o sargento não pôde compreender logo de primeira vista.

– Este cartão esteve nas mãos de uma bactéria – disse o sargento cheirando novamente o cartão. – O cheiro está muito característico.

– Será que esses vermes estão em Incisivo Centrales? – questionou agente Calcin apalpando sua pistola calcítica.

– Muito pouco provável Calcin – respondeu com segu-rança Calcion. – Nenhuma bactéria que se preze atacaria uma região na presença de linfócitos. Aqui elas não estiveram. Este bilhete esteve nas mãos de uma bactéria, com certeza, mas não nas mediações de Incisivo Centrales.

• • •

Na manhã seguinte, uma viatura do sistema de defesa já estava estacionada em frente ao departamento de policicálcio e dois agentes linfóides montavam guarda. Calcin entrou cor-rendo pela porta principal encontrando-se com Oncoblasto que

estava saindo.– Você aqui tão cedo? – perguntou o agente parando-o no

corredor.– Dr. Fibron me telefonou logo de manhã para que eu vies-

se para cá o mais rápido possível. – respondeu o odontoblasto.– Dr. Fibron está aí? E aquela viatura do Sistema Imunoló-

gico parada do lado de fora?– Está aí também Linfon T – respondeu Oncoblasto já se

preparando para seguir em frente quando Calcin o agarrou pelo braço.

– Não está me dizendo que... – Sim – interrompeu Oncoblasto – O próprio delegado fe-

deral de investigação.– Então o negócio é muito sério – concluiu o agente per-

cebendo a gravidade da presença de um delegado do sistema de defesa. – O que está acontecendo, Oncoblasto?

– É melhor você ir averiguar por conta própria, Calcin – disse o odontoblasto já se retirando. – Calcion está lhe aguar-dando na sala central.

O restante dos corredores foi atravessado por Calcin em velocidade máxima para poder alcançar a sala do sargento o quanto antes, nem mesmo notou Calcitis o acenando em uma das portas. Quando lá chegou, encontrou o sargento sentado em sua mesa, Dr. Fibron de pé próximo à janela com algumas folhas em suas mãos, o que certamente seria o resultado das análises, e o delegado Linfon T com a jaqueta que fora encontrada na bolsa, em uma das mãos.

– O que está acontecendo, sargento? – perguntou logo an-tes de fazer os cumprimentos.

– Calcin, estamos diante de uma situação delicada demais – começou o sargento. – Você disse que não havia tocado em

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nada naquela bolsa antes de chegarmos, não é mesmo?– Com certeza, sargento – respondeu Calcin olhando para

Linfon T que se demonstrava fixo ao olhá-lo também. – Logo que percebi a bolsa, me aproximei para averiguá-la de perto, mas não toquei em nada.

– Nem mesmo no conteúdo da bolsa? – foi a vez do pró-prio Linfon T perguntar.

– Em nada – reafirmou o agente. – O que está acontecen-do, sargento? E por que está me esperando?

– Calcin, o resultado das análises está pronto – iniciou Calcion com uma expressão nada agradável, com um toque de desapontamento. – O cartão encontrado na bolsa veio definiti-vamente de um strepto.

– Por favor, sargento – interveio Calcin. – Eu não estou en-tendendo nada do que está acontecendo aqui, sei que tem algu-ma coisa errada e que não é segredo pra ninguém que o cartão pertencia a uma bactéria, até mesmo pelo cheiro se deduzia isso, mas vamos direto ao assunto. O que de tão grave está aconte-cendo?

– Calcin, onde você esteve na tarde de ontem? – pergun-tou Linfon T.

– Estava com Anipatita na região do Trígono Retro Molar, por quê?

– Estamos ligando há horas para o apartamento dela e ninguém atende – completou o sargento. – E nem ao serviço ela apareceu hoje.

– Como é que é? – assombrou-se Calcin dando passos à frente em direção à mesa de Calcion. – Ontem mesmo a deixei em casa quando retornamos. Já foram ao apartamento dela?

– Foi a primeira coisa que fizemos quando as análises fo-ram concluídas, Calcin – novamente Linfon T continuou. – Al-

guns oficiais viram vocês dois saindo de Incisivo Centrales num automóvel público na tarde de ontem. Ela não esteve em casa ontem.

– O que está acontecendo? – irritou-se Calcin batendo na mesa do sargento. – Como não esteve em casa se eu mesmo a deixei lá.

– Realmente o automóvel público esteve lá, isso alguns vi-zinhos nos confirmaram. O automóvel parou e saiu, mas Anipa-tita não entrou no prédio – disse Calcion. – Calcin, entregue seu distintivo até segunda ordem.

– O quê? – Calcin não acreditava no que estava acontecen-do. – Estão insinuando que fiz alguma coisa à Anipatita?

–Não estamos afirmando nada, agente Calcin – disse Dr. Fibron. – Está vendo aquela jaqueta que está nas mãos de Linfon T?

Calcin olhou novamente para o linfócito que ergueu a ja-queta exibindo-a para o agente já descontrolado.

– Dr. Fibron analisou a jaqueta que encontramos – con-cluiu Calcion. – Suas impressões digitais batem com as encon-tradas naquela jaqueta que pertence ao oficial Calcine e que também se encontra desaparecido até o momento.

– Agente Calcin, o senhor está proibido de abandonar as mediações de Incisivocity até segunda ordem – disse firmemen-te Linfon T.

– Infelizmente Calcin, exijo que entregue seu distintivo e pistola calcítica – completou o sargento. – Vá para casa e espere até que possamos concluir o ocorrido.

Aquele pesadelo não poderia estar sendo verdade. Calcin sentia-se como se uma navalha tivesse riscado todo o seu corpo. Suas pernas tremiam como se o chão também estivesse tremen-do e o pior de tudo era não saber o paradeiro de Anipatita.

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– Por favor, sargento – implorou Calcin. – Tem de acreditar em mim. Isso é um absurdo, não há como eu estar envolvido em tamanha monstruosidade.

– Não estamos te acusando de nada ainda, Calcin – disse Linfon T. – Só estamos pedindo para que se afaste por uns tem-pos.

– Como se afastar? E Anipatita, como fica? Ninguém sabe seu paradeiro?

– Acalme-se, Calcin – disse o sargento. – Ainda temos de esperar por vinte e quatro horas antes de confirmar o desapa-recimento.

– Então me deixe encontrá-la, sargento – Calcin debruçou-se sobre a mesa. – Ainda há tempo para encontrá-la se estiver nas redondezas da cidade.

– E como vai encontrá-la, Calcin? – gritou o sargento. – Por um acaso sabe onde ela está? Porque se souber, a situação se complica mais ainda para você.

Calcin engoliu seco sem dizer mais uma só palavra, so-mente sentindo a força das acusações pesarem sobre sua cabe-ça. Calcin retirou da carteira seu distintivo e colocou-o sobre a mesa, ao lado dele, também pôs sua pistola calcítica.

O agente se retirou da sala sentindo todos os olhares do departamento dirigir-se para sua pessoa e, então, Calcin sentiu-se tão humilhado que mal pôde conter suas primeiras lágrimas.

Não conseguia pensar em nada naquele momento tão horrível, e dentre as inúmeras coisas que se passava em sua cabeça, a imagem de Anipatita se destacava sobre todas. Havia alguma coisa muito esquisita naquela situação toda. Sabia que tinha deixado Anipatita no prédio onde morava de aluguel, mas não tinha certeza de vê-la entrar. Outra coisa que não batia era o fato de sua impressão digital estar na jaqueta de Calcine, e por

falar nisso, onde estaria ele?Teria que falar com o prefeito a qualquer custo, mesmo

que a estas horas a notícia de que Calcin teria se tornado suspei-to já deveria ter chegado à prefeitura com Oncoblasto.

Quando chegou à prefeitura, o agente foi imediatamente barrado na entrada com a afirmação de que ele não poderia en-trar sem uma ordem judicial.

– Deixem-me entrar – dizia ele completamente transtor-nado. – Tenho que falar com o Sr. Esmalte, tenho certeza de que ele irá acreditar em mim.

– Por favor, Calcin – disse um dos guardas que já o conhe-cia. – Não complique ainda mais as coisas. Você conhece os pro-cedimentos, é melhor voltar para casa.

– Eu não posso voltar para casa se eu não tenho nada a ver com o que estão me acusando.

– Mas ninguém está te acusando de nada, Calcin – disse o outro guarda. – Você ainda está sob suspeita.

Mas naquele momento, Calcin rapidamente consegue sacar o megafone da cintura de um dos guardas e retira-se an-dando de costas para trás gritando no megafone fazendo todos olharem em sua direção.

– Sr. Esmalte, sou eu, Calcin. Por favor, escute o que tenho para dizer. Não sei o que está acontecendo, mas o sargento en-controu minhas digitais na jaqueta de Calcine e todas as suspei-tas estão girando sob minha pessoa. Contudo, não sei como isto aconteceu. Anipatita pode estar precisando de ajuda, por favor, deixe-me vê-lo.

Sr. Esmalte estava de frente para a janela olhando a movi-mentação que se fazia ao redor do agente lá embaixo. Sra. Denti-na estava encostada próxima ao telefone e Madame Mielina, que já havia chegado, junto com os linfócitos.

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– Por que não o deixe entrar para ver o que tem a dizer? – perguntou Sra. Dentina percebendo a expressão de sofrimento no rosto do marido.

– Ele não pode, Sra. Dentina – respondeu Oncoblasto que estava sentado num dos cantos da mesa do prefeito. – Há uma investigação séria acontecendo por aqui e se o prefeito deixar que o suspeito entre, também ficará sob suspeita.

– Eu também não acredito que Calcin seja culpado de nada, mas as evidências levam justamente ao coitado – respon-deu Madame Mielina. – E não podemos ceder às nossas emoções em momentos como este. A Cárie vai jogar pesado e sabemos muito bem disso.

– Se Calcin tivesse alguma coisa com a Cárie, Madame Mielina, a senhora não concorda que eu seria um prato cheio quando estive com ele sozinho em Caninos? – acrescentou o pre-feito ainda olhando para baixo e vendo que, naquele momento, os oficiais já o haviam detido. – Estive com Calcin e pude per-ceber suas determinações. Com certeza é um garoto ambicioso, mas não a ponto de ceder ao mal para conseguir o que quer.

– Não estamos acusando Calcin, senhor prefeito – conti-nuou Madame Mielina. – Estamos afirmando que é o primeiro suspeito em questão e isso o senhor há de concordar.

Sr. Esmalte ficou olhando os oficiais colocarem Calcin na viatura e o levar embora com o coração na mão. Realmente nada podia fazer a favor do agente a não ser esperar pelas investiga-ções. O problema era justamente o sumiço de dois cidadãos de Incisivocity, sendo que se tratavam justamente de sua secretária e de um oficial da força policicálcio.

– Convenhamos também que se trata de uma estória sem pé nem cabeça, não é mesmo? – afirmou Sra. Dentina aborreci-da pelo fato de ver o desapontamento fixar-se no semblante do

marido.– Quero acreditar que Calcin não tenha nada a ver com

isso, eu juro, mas vou ter que ver isso pessoalmente – e o pre-feito começou a se dirigir para a porta do gabinete. – Vou até ao departamento da força policicálcio e ver o que está se passando por lá.

Naquele instante outro personagem ilustre entra no gabi-nete trazendo a esposa e seu filho. Cementon entrou com uma expressão esquisita, como se tivesse recebido uma notícia ater-rorizante.

– Fiquei sabendo do ocorrido, Sr. Esmalte – disse ele um pouco aflito. – Mas por que o senhor mandou que viesse com minha esposa e meu filho para a prefeitura?

– Quero que Dona Célica e Célion fiquem aqui mesmo na prefeitura, Amelodentina está na sala ao lado vigiada por um ofi-cial da força policicálcio e aconselho levar Célion para lá – come-çou a esclarecer o prefeito. – Quanto a Dentina, Célica e Madame Mielina, digo para não saírem das mediações da prefeitura. Al-guma movimentação já está acontecendo do lado oposto e não tenho bons pressentimentos. O senhor, Cementon, irá alertar seus cementócitos acompanhado de um agente linfóide, já On-coblasto e eu partiremos imediatamente para nos encontrarmos com o delegado Linfon T, Dr. Fibron e sargento Calcion.

No mesmo instante em que Sr. Esmalte pegou o telefone para ligar requerendo uma viatura de suporte para o veículo da prefeitura, Sra. Dentina se levantou e aproximou-se do marido.

– Queria ter certeza de que nada vai acontecer a você, Es-malte.

– Mas nada vai me acontecer, minha flor – respondeu ele tentando acalmá-la. – Estou requisitando escolta policicálcica.

Dentina não se convenceu, mas a única maneira de escla-

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recer o que estava acontecendo a Calcin era realmente indo ao departamento para averiguação, o que por enquanto estava nas suspeitas.

– Quero ir com você, Esmalte – disse ela decidida.– Não pode estar falando sério, Dentina – respondeu o

prefeito largando o telefone. – Perdeu o juízo?– Não – respondeu confiante. – Não perdi o juízo. Você

quer saber o que aconteceu a Calcin, não é mesmo? Pois eu tam-bém sou testemunho de que Calcin gosta de Anipatita, e não há muita lógica nestas suspeitas.

– Não há lógica racional, mesmo – respondeu Mielina. – Estes entraves não batem com a personalidade do agente. Digo isso por conhecer muito bem o caráter dos malfeitores de todo o sistema.

Sr. Esmalte ficou olhando para Oncoblasto que também parecia matutar sobre a personalidade do agente. Levou nova-mente as mãos ao telefone e pediu um reforço para a escolta já que Sra. Dentina o acompanharia.

– Madame Mielina – disse o prefeito. – Por favor, gostaria que ficasse com as crianças e Dona Célica.

– Pois não, Esmalte – respondeu sem cogitar.– Querida, então vamos – se dirigindo à esposa. – Quanto

mais rápido formos, mais rápido poderemos ter alguma solução para o caso.

– E mais rápido a senhorita Anipatita pode ser encontra-da a salvo – completou Sra. Dentina.

Já se passava da metade do dia quando o veículo que leva-va Sr. Esmalte e Sra. Dentina chegou ao departamento da força policicálcio acompanhados de mais duas viaturas com cálcios e linfócitos fortemente armados. Qualquer um que estivesse an-dando pela rua naquele momento deduziria que coisas estra-

nhas estavam se passando sem o conhecimento da população.Calcion já aguardava a chegada do prefeito e da primei-

ra dama em sua sala, acompanhado de Dr. Fibron e Linfon T, e quando finalmente chegaram, o sargento se levantou apressado com alguns documentos em mãos.

– Gostaria de saber, sem rodeios, o que se passa em rela-ção ao agente Calcin – perguntou asperamente o prefeito olhan-do também para os demais. – Quais são as suspeitas que levam a ele?

– Desculpe-me, prefeito, mas seu administrador já lhe deve ter contado algo, não? – respondeu o delegado Linfon T.

– Senhor delegado – adiantou-se novamente o prefeito. – O agente em questão é de minha total confiança, e tenho moti-vos para acreditar que ele não tenha participação em um ato tão covarde.

– Senhor prefeito, estas são as provas que temos contra o agente – disse Calcion erguendo os documentos e exames labo-ratoriais. – O próprio Dr. Fibron comandou as análises e são as impressões de Calcin na jaqueta de Calcine.

– Essa análise foi muito rápida – interrompeu a primeira dama. – Desculpe-me doutor, mas o senhor não concorda que já deveria tê-lo como suspeito para chegar a uma decisão tão rápi-da? Como chegaram a Calcin da noite para o dia?

– As impressões são de Calcin, e ele mesmo disse não ter tocado em nada dentro da bolsa onde estava a jaqueta – respon-deu Dr. Fibron. – Chegamos a Calcin justamente pelo desapare-cimento de Anipatita.

– Com quem o agente esteve momentos antes de seu de-saparecimento – completou Linfon T.

– Ela sumiu logo após o agente deixá-la em casa – foi a vez de Calcion falar.

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– Ora, não precisa ser perito para chegar à conclusão de que se o agente quisesse desaparecer com ela, não teria nem levado-a de volta à sua casa – novamente o prefeito disse com-pletando as defesas da esposa.

– Então por que Calcin mentiu sobre a jaqueta? – pergun-tou Linfon T. – Poderia ter dito que vasculhou a bolsa e encon-trou a jaqueta.

– Seria mais uma prova da ingenuidade do agente, senhor delegado – continuou Sra. Dentina.

Linfon T se aproximou pela primeira vez de ambos, Es-malte e Dentina, e olhando fixamente para eles foi respondendo ponderadamente como se quisesse desviar as tensões daquele momento:

– Sabemos de suas ligações com o agente – começou a di-zer Linfon T. – E por isso não o acusamos ainda. Temos certeza de que Calcin, pelo menos, tocou na jaqueta. Já com relação à secretária, não temos nada que comprove estes envolvimentos, mas que Calcin foi o último a vê-la, isso é um fato.

– Ainda sim tenho minhas razões para acreditar na ino-cência de Calcin – respondeu confiante o prefeito. – Por mais que tenham provas de que o agente tenha tocado nesta tal jaqueta.

– Eu ainda estou perplexa pela velocidade das investiga-ções – retrucou Dentina olhando para o doutor.

– Exato! – exclamou Sr. Esmalte olhando para a esposa e em seguida para Dr. Fibron. – Está aí uma coisa muito esquisita. Como chegaram às impressões de Calcin?

Sargento Calcion se distanciou por alguns segundos se-guindo em direção a um armário no canto esquerdo da sala. De lá, ele abriu uma gaveta que estava organizada em ordem alfabé-tica e retirou ma pasta cinza. Voltando-se em direção ao prefeito estendeu-lhe a pasta.

– Esta pasta, senhor prefeito, contém todos os exames admissionais de Calcin antes mesmo dele se ingressar na força policicálcio – começou a esclarecer o sargento. – Todos os as-pirantes à força policicálcio tem uma pasta igual a esta, onde estão até mesmo as impressões digitais.

Esmalte começou a percorrer os olhos pelas linhas conti-das nas folhas dentro da pasta e averiguou que de fato o sargen-to tinha condições específicas para examinar se as impressões eram mesmo de Calcin.

– Estes são os exames laboratoriais – aproximou–se Dr. Fibron. – Podem-se constatar exatamente as duas impressões.

– Não precisa me mostrar, doutor – respondeu duramente e impaciente o prefeito. – Mesmo que entendesse alguma coisa, não teria razões para duvidar de um laudo de perícia.

Sra. Dentina estava desnorteada, ainda não acreditava e suspeitava bastante de como tudo chegou tão rápido ao agente.

– Escutem! – disse a primeira dama. – O que interessa agora é descobrir o paradeiro de Anipatita. Não quero que nada aconteça a esta moça.

– Nem nós, Sra. Dentina – respondeu Linfon T. – Mas ainda estamos com as mãos atadas.

– E o que estão esperando para promover uma busca? – Sr. Esmalte já havia perdido a paciência.

Linfon T olhou para Calcion como se esperasse que o sar-gento mesmo falasse alguma coisa, porém não obtendo a res-posta desejada, decidiu dizer por si mesmo.

– Estamos esperando sua liberação para prender Calcin e iniciar as interrogações – concluiu o delegado observando o ar de horror que brotou no rosto do prefeito.

Sr. Esmalte sentou-se quase que imediatamente. Durante todos os anos de vida pública que lhe eram dignos, aquela seria

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a maior prova de fogo de toda a sua carreira. Nem mesmo Denti-na estava acreditando que apenas bastaria uma única palavra do marido para que todo pesadelo, do qual Calcin seria submetido, começasse a ocorrer.

Até mesmo a primeira dama começou a evitar olhar para o prefeito, imaginando o quanto deveria estar sendo difícil para ele autorizar um mandato de prisão para seu próprio agente de confiança.

Sr. Esmalte lembrou-se de certa vez em que era apenas um funcionário público, logo no início das formações gérmicas de Incisivocity, quando teve de denunciar um colega que estava desviando material de uso público para benefício próprio. Na-quela época, tanto Esmalte quanto seu colega estava em busca de uma excelência para a futura cidade, o que tornou a decisão bem difícil. Contudo, nada se equiparava àquele momento.

– Onde se encontra o agente neste momento? – Sr. Esmal-te perguntou ao sargento buscando os olhos lacrimejantes de sua esposa. – Eu o vi ser contido por alguns oficiais.

– Parece que ele foi levado até onde mora e seria vigiado até segunda ordem – respondeu Calcion.

Sr. Esmalte olhou para a janela, engoliu o gosto amargo que estava na boca e suspirou lentamente, congelando a espinha de qualquer um que estivesse naquela sala, naquele momento.

– Interroguem o agente – ordenou o prefeito se retirando da sala quase que imediatamente sem voltar o rosto para trás, seguido se sua esposa.

A porta da sala número quinze em uma ala posterior da delegacia fora aberta provocando um eco quase interminável pelo imenso corredor acinzentado. Primeiro, um agente linfó-cito entrou trazendo um aparelho muito semelhante a um gra-vador, depois Calcin chegou com mais dois cálciosagarrando-o

pelos braços.O agente foi colocado sentado em frente do linfócito que

manejava o estranho aparelho. Não houve resistência da parte de Calcin, que também notou que o linfócito naquele momento havia posto um par de fones nos ouvidos.

Calcin foi algemado à cadeira onde estava sentado, sentin-do-se incomodado e humilhado novamente, mas estava disposto a ver no que aquilo tudo levaria.

Calcion entrou rapidamente pela porta e se colocou tam-bém em frente de Calcin que, por sua vez, não hesitou em ficar olhando profundamente para o seu sargento.

– O prefeito autorizou a minha prisão, não é mesmo? – perguntou decepcionado o agente.

– Ele não tinha opção, Calcin – respondeu o sargento ven-do que Calcin estava à beira de derramar as lágrimas.

– Acho que nada mais importa agora, não é mesmo sar-gento? – disse desconsolado Calcin. – Nem mesmo o prefeito acredita em minha inocência.

– Se isto for lhe ajudar em alguma coisa, Calcin, o prefeito ainda acredita que você nada tem a haver com isso tudo – disse Calcion aproximando-se da mesa. – Porém, infelizmente, não há outro recurso.

Quando o sargento terminou de falar, a porta novamente se abriu dando lugar ao delegado Linfon T, um sujeito robusto e com uma expressão de fúria nos olhos. Calcin sentiu sua pele arrepiar só com a entrada daquele linfócito dentro da sala.

– Por favor, retire-se, sargento Calcion – ordenou gra-vemente Linfon T. – O assunto agora é de responsabilidade do sistema.

Naquele momento, até mesmo Calcion começara a sentir pena do agente, que olhava com os olhos vidrados numa mistura

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de decepção e terror. O sargento vagarosamente começou a se aproximar do delegado não engolindo aquele tom de desprezo com o qual havia falado Linfon T.

– Escute aqui – começou o sargento sussurrando para que agente Calcin não o ouvisse. – Encoste suas mãos em um só fio de cabelo de meu agente e prometo que eu mesmo subo até o Sistema Nervoso Central para exigir a sua expulsão de todo o sistema.

– Escute aqui você, senhor sargento – retrucou Linfon T. – Se voltar a fazer ameaças ridículas como esta, considere-se ex-pulso da força policicálcio de Incisivocity.

Calcion saiu soprando fogo pela porta afora enquanto o delegado se aproximava da mesa e outro linfócito fechava a por-ta.

– Vou ser breve e espero que você também assim o seja – disse o delegado ao dirigir-se para o agente. – O que fez a senho-rita Anipatita e ao senhor Calcine?

– Não fiz nada – respondeu Calcin já começando airritar-se.

Lentamente Linfon T sentou-se ao lado do agente, arru-mou o paletó e aproximou seu rosto bem próximo ao de Calcin.

– Preste bastante atenção ao que vou lhe dizer, pois não vou repetir nunca mais – começou a ameaçar o delegado. – Só irei sair desta sala de duas formas: com o paradeiro da secretá-ria e do policicálcio dito por você, ou com a sua cabeça em mi-nhas mãos para entregar ao próprio Sistema Nervoso Central.

Capítulo 11

Já era noite quando um veículo cruzou apressadamen-te a esquina da avenida central de Incisivo Centrales rumando em sentido ao bloco residencial principal. Alguns odontoblastos e apatitas que ainda circulavam pela rua pararam para observar as manobras esquisitas que o veículo vinha fazendo em desvios de outros veículos e obstáculos que iam aparecendo pela frente.

Numa frenagem espetacular, o veículo parou em frente ao prédio onde residia o prefeito chamando a atenção de alguns policicálcios que montavam guarda na frente da porta principal de acesso.

De dentro do veículo saltou um fibroblasto de aparência jovem, usando um jaleco branco e um estetoscópio pendurado na gola. Aparentando estar ansioso, o fibroblasto seguiu corren-do em direção ao hall de entrada do prédio sendo seguido por dois policicálcios que tentaram detê-lo sem sucesso na porta principal.

Chegando à recepção, ele derrapou próximo à grande mesa branca onde já se punha de pé o recepcionista, todo alar-mado, percebendo a pequena confusão.

– Larguem-me! – gritou o fibroblasto retirando o braço

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direito das mãos de um dos policicálcios que o havia seguido e o agarraram quando atingiu a recepção do prédio – Preciso urgen-temente falar com o prefeito de Incisivocity.

Num golpe duro, o policicálcio, que deixara escapar o bra-ço do fibroblasto novamente, o agarrou com a maior impaciên-cia.

– Desculpe-me, mas o prefeito já está em repouso – disse o recepcionista com os olhos arregalados.

– Vocês não entendem a gravidade da situação? – pergun-tou tentando se soltar o fibroblasto. – Trata-se de uma situação em extrema emergência.

– O que poderia ser tão urgente para se tratar com o pre-feito a estas horas? – perguntou um linfócito que estava por per-to e ao ver o alvoroço aproximou-se.

– Desculpe-me senhor linfócito, mas é um assunto muito delicado para que, até mesmo, você tome conhecimento – res-pondeu o fibroblasto encarando o agente linfóide.

Aquela insolência realmente parecia ter incomodado o linfócito que, por um instante, ameaçou partir para cima do fi-broblasto, mas se conteve ao perceber que o jaleco portado por ele pertencia ao Fibrospital Regional Palatino, lugar onde traba-lhava o respeitado doutor Fibron.

–Larguem o rapaz! – ordenou o linfócito mordendo os lábios.

Imediatamente o fibroblasto foi solto e, arrumando seu jaleco amassado nas mangas, se debruçou sobre a bancada per-guntando sobre o apartamento do prefeito.

– Espere só um instante que as coisas não funcionam as-sim, garoto – retrucou o recepcionista já se incomodando com o rapaz também. – Tenho que avisar sobre sua chegada. E por falar nisso, quem devo anunciar?

– Dr. Fibrone Jr. do Fibrospital Regional Palatino – respon-deu seguro de si o fibroblasto.

Após um curto período de espera, o recepcionista come-çou a dialogar no interfone demonstrando que alguém do outro lado havia respondido ao chamado. Segundos de apreensão con-tagiaram o hall do prédio, inclusive o linfócito que não desgru-dava os olhos sedentos de ira de Fibrone.

– Desculpe-me meu rapaz, mas o Sr. Esmalte não quer receber ninguém agora – concluiu o recepcionista se voltando para o fibroblasto.

– Disse de onde eu venho? Não é possível!– Disse e isso não adiantou em nada, pelo contrário – res-

pondeu o recepcionista não deixando escapar um ar de debo-che. – O prefeito não quer ver ninguém relacionado ao Dr. Fibron nem agora e muito menos depois.

Fibrone golpeou a bancada indignado com a sua recepção naquele lugar. Não acreditava que sua vinda até Incisivo Centra-les havia sido em vão e muito menos que sua presença estava sendo dispensada pelo tão falado prefeito de Incisivocity, cujos comentários sempre foram os melhores possíveis.

Sem muitas honras, Fibrone deu as costas aos demais e começou a se dirigir para seu veículo, lá chegando arriscou uma rápida olhadela para cima e notou uma sombra se distanciar de uma das poucas janelas que ainda se mantinham acesas no pré-dio naquela noite.

Quando a luz da janela se apagou, o fibroblasto entrou em seu veículo e ficou alguns instantes parado refletindo sobre o que lhe restava fazer naquele momento. Foi quando se lembrou do departamento policicálcio da cidade e resolveu uma última investida antes de desanimar-se por completo.

Sargento Calcion estava se preparando para voltar até

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a sala de interrogatórios, não suportando mais a demora que se passava todo o processo entre Calcin e o delegado Linfon T, quando um oficial se aproximou de sua sala entrando sem bater:

– Sargento, tem alguém querendo falar com o senhor.– Ora... – respondeu o sargento sem olhar para a porta. –

Será necessário um remanejamento interno para que as minhas ordens sejam seguidas? Quantas vezes eu tenho que repetir mi-nha decisão de não receber ninguém sem que este alguém seja de extrema importância?

– Na verdade não o conheço – respondeu o oficial dando uma singela tosse. – Mas parece que é um médico do Fibrospital Regional.

Calcion levantou seu olhar por cima dos óculos abaixando uma sequência de papeletas que estavam em suas mãos.

– Então não demore. Traga-o já aqui! – ordenou rapida-mente o sargento, o que fez com que o oficial resmungasse “eu ainda viro sargento pra compensar tudo o que...”, antes de fechar a porta.

Quando Fibrone entrou na sala do sargento, Calcion já o esperava de pé, e ficou absurdamente pasmo quando percebeu a juventude do médico fibroblasto que havia chegado.

– Ora, ora – resmungou o sargento. – Eu esperava por al-guém mais velho, “doutor”.

– Desculpe-me sargento, mas eu também esperava por alguém mais novo. – retrucou o fibroblasto fazendo o sargento engasgar com a fluorita que estava tomando.

– É melhor começar a dizer o que veio fazer aqui antes que eu me arrependa de tê-lo deixado entrar – contra-atacou o sargento já todo impaciente.

– Preciso falar com seu agente Calcin imediatamente.Calcion parecia hipnotizado depois de ter ouvido aque-

las palavras. Por alguns instantes ficou com os olhos fitados em cima do fibroblasto, que já estava se sentindo incomodado por aquela atitude, até que subitamente soltou uma audível garga-lhada sem escrúpulos fazendo com que todos os cálcios que ain-da estavam por perto mirassem a sala do sargento.

– Mas o que está acontecendo com esta cidade! – come-çou o sargento a dizer ainda soltando risos esdrúxulos – Que legal! Agora todo o mundo vai querer ter acesso livre ao depar-tamento policicálcio da cidade e de quebra aos detentos com toda a facilidade que o sargento aqui vai dispor à vontade!

Fibrone não pôde deixar de notar toda a ironia do sargen-to que naquele momento mais estava se divertindo com suas próprias palavras do que com a própria situação.

– Bom, deixe-me pensar um pouquinho – continuou o sargento. – Bem vejamos. Mas é claro... que de jeito nenhum senhor “doutor”.

Aquelas palavras irritaram ainda mais o fibroblasto do que o seu impedimento no hall de entrada do prédio do prefeito.

– Não é à toa que sua fama de “chato” tenha se espalhado pelos quatro cantos do complexo bucal, sargento – respondeu Fibrone todo indigesto. – Tenho motivos para suspeitar das ações que levaram à prisão do seu agente Calcin.

Calcion interrompeu naquele mesmo instante as garga-lhadas ofensivas que disparava contra seu jovem visitante, mu-dando completamente sua postura em relação à Fibron.

– Sente-se, por favor, doutor... – e se lembrou de que nem mesmo o nome havia perguntado ainda.

– Dr. Fibrone Júnior, médico residente do Fibrospital Re-gional Palatino – completou o fibroblasto. – Sou membro hono-rário do departamento de pesquisas e presidente da liga de es-tudos genéticos do sistema, além de ser aluno em potencial de

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Dr. Fibron Fibrostes na residência.Fibrone não estava mesmo a fim de economizar títulos e

com certeza aquela era a melhor hora para dispensar humilda-de, já que o sargento se mostrava receptivo desde quando men-cionou o que realmente havia vindo fazer naquele lugar.

– Bom doutro, agora é a hora para dizer o porquê de suas suspeitas – começou o sargento sentando-se, esperando que o fibroblasto fizesse o mesmo.

– Estou no meu último semestre de residência e há muitos anos sou aluno do Dr. Fibron – começou a dizer sentando-se em frente à mesa de Calcion. – Em todos os complexos, Fibron é um dos mais respeitáveis médicos do sistema, porém há algum tem-po atrás uma série de coisas começaram a mudar no Fibrospital Regional.

Sargento Calcion havia se inclinado para frente com as mãos à boca somente ouvindo as palavras do jovem médico com bastante atenção.

– Uma das coisas que me chamaram mais atenção, foi logo no início da formação do complexo de Incisivocity quando Fi-bron recebeu de portas fechadas a visita de Ácido Açucarado. Na época, nem mesmo as eleições para a prefeitura da cidade haviam sido cogitadas, o que não levantou muita suspeita, con-tudo logo após a vitória do Partido da Higiene Bucal, Dr. Fibron começou com suas esquisitices.

– Que tipo de esquisitices? – perguntou o sargento inte-ressado.

– Para início de conversa os atendimentos no fibrospital começaram a ser selecionados por uma espécie de questionário muito estranho, do qual havia perguntas muito pessoais do tipo como o paciente se sentia em relação ao novo governo de Inci-sivocity.

– Teria como conseguir estes questionários diretamente do fibrospital? – perguntou o sargento.

– Creio que não, sargento. Fazem parte da nova política hospitalar feita por Fibron e nada relacionado aos pacientes pode sair de lá sem sua autorização.

– Depois pensamos nisso então – o sargento encostou-se novamente em sua cadeira. – Mas de onde surgiram suas suspei-tas de que Calcin não tenha nada a haver com o que está acon-tecendo?

– Há algumas semanas atrás, Fibron recebeu outra visita fechada. Pelo que parecia era um de seus oficiais, sargento. Por um acaso, qual o nome do oficial desaparecido? – perguntou o fibroblasto curioso.

– Calcine – respondeu já aguardando certo entusiasmo de Fibrone.

– Então é ele mesmo – concluiu o médico soltando um soco na mesa se desculpando logo em seguida. – Não pude me conter, sargento. Naquele dia fui até a secretária de Fibron para perguntar o que um oficial estaria fazendo por ali. A secretária me disse que havia outro oficial internado já para ganhar alta e que aquele mesmo oficial, o Calcine, já havia sido internado junto com o outro, porém com ferimentos mais leves. Parece-me por algum tipo de conflito ocorrido em Incisivocity.

Sargento Calcion abaixou a cabeça batendo com os dedos na mesa como se estivesse pensando em alguma coisa, contudo Fibrone continuou com o relato.

– O que mais me chamou atenção foi o fato de Calcine entrar vestindo uma jaqueta do departamento de policicálcio e sair sem ela, e ainda por cima, carregando uma bolsa.

– Nossa! – exclamou o sargento voltando seus olhos para o jovem doutor.

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– O pior ainda está por vir – continuou Fibrone. – Naquele mesmo dia, não demorou muito uma escolta da força dos linfó-citos também chegou ao fibrospital, e sabe quem foi de encontro à Fibron em sua sala?

– O delegado Linfon T – respondeu sem demoras o sar-gento.

– Parece que estamos entrando na mesma linha de racio-cínio, não é mesmo sargento?

Calcion somente acenou com a cabeça lentamente ainda digerindo toda aquela informação, chocado com a ideia de uma suposta trama muito perigosa envolvendo duas pessoas muito importantes.

– Onde está Calcin? – perguntou Fibrone já se levantando. – Temos que libertá-lo antes que alguma coisa aconteça a ele.

– Acalme-se, Dr. Fibrone – pediu o sargento, tentando ate-nuar a euforia do médico. – Calcin ainda está, neste momento, sendo interrogado por Linfon T.

– Minha nossa! – exclamou Fibrone sentando-se. – E ago-ra?

Calcion levantou-se e, coçando o rosto, começou a dar voltas pela sala pensando em algumas saídas, contudo o melhor que conseguiu deduzir era a de que Calcin poderia ter um tempo livre se algum advogado se apresentasse para sua defesa duran-te o interrogatório.

– Escute Fibrone – voltou-se novamente ao lugar. – Há uma saída, porém as suspeitas são muito graves e Calcin deve ser alertado quanto a isso. Temos que chamar um advogado para ele e tentar dar um tempo com o interrogatório, para repassar esta informação ao agente.

– Como acharemos um advogado de confiança a estas ho-ras? – questionou Fibrone.

– O prefeito poderia ajudar – respondeu o sargento.– Bom, talvez você tenha mais sucesso em falar com ele

neste momento, porque eu... – desanimou-se o médico.– Não me diga que você tentou falar com o prefeito antes

de vir aqui? – assustou-se Calcion.Fibrone somente afirmou com um gesto rápido fazendo

com que Calcion balançasse em sinal de reprovação o ato do ra-paz.

– Não foi uma boa jogada, garoto. O prefeito saiu daqui cuspindo marimbondos pela boca. Óbvio ele não querer nada com ninguém por hoje.

– E como eu iria saber? Pelo que eu saiba, sou médico e não adivinho!

– O que importa agora é conseguir falar com o prefeito – concluiu Calcion pegando o telefone. – Vou pedir para que ele nos consiga um advogado neste momento. O difícil será tentar convencê-lo a não vir junto, já que, nestas horas, não seria bom estarmos todos juntos reunidos, levantando interesse de partes supostamente envolvidas.

Em pouco tempo, Calcion já estava falando com o prefei-to pelo telefone e Fibrone somente tentava escutar, ou mesmo pescar alguma coisa. Mas o que realmente o fibroblasto estava esperando veio logo em seguida, quando o sargento olhou para ele e disse ao telefone. – “Sim, ele está aqui comigo. Tudo bem, eu falo para ele.”

Fibrone já imaginava o que o prefeito havia dito ao telefo-ne, mas preferiu escutar da boca do sargento para aliviar a sua alma decepcionada.

– O prefeito mandou suas desculpas por não tê-lo deixado subir e vem pessoalmente conversar com você.

Aquelas palavras soaram como música para o médico que

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se se encostou à cadeira como se aquela “coisa” fosse uma ver-dadeira cadeira de balanço.

– Parece-me que o prefeito já tem alguém em mente e já está vindo para cá – continuou o sargento.

Em pouco tempo, um veículo da prefeitura estacionou em frente ao departamento da força policicálcio e dele saíram o pre-feito e um odontoclasto já conhecido de Calcion. O sargento já aguardava sua chegada juntamente com Dr. Fibrone Jr. do lado de fora do departamento.

Rapidamente o prefeito adentrou pela porta principal seguido pelos demais até a sala de Calcion, onde começaram a por em andamento um plano bastante esquisito, porém muito astucioso.

– Creio que o senhor já conheça Obariloclasto, represen-tante do conselho de odontoclastos de Incisivocity – disse sem demora o prefeito apontando para sua companhia.

– Claro, estávamos juntos na solenidade – respondeu o sargento acenando para o odontoclasto.

– Antes de tudo, queria me desculpar por não tê-lo rece-bido, doutor – desculpou-se o prefeito se voltando para Fibrone. – Estava tão chateado com a situação que preferia não receber ninguém, muito menos daquele fibrospital.

– Entendo senhor prefeito – respondeu o médico. – Po-rém, o que realmente importa agora é salvarmos a pele deste agente Calcin.

– Concordo plenamente – acrescentou Sr. Esmalte – É por isso que trouxe comigo Obariloclasto, que além de ser represen-tante oficial dos odontoclastos, ainda é um advogado de renome em Incisivocity.

– Não existe pessoa mais interessada em ajudar Calcin do

que eu mesmo, senhor sargento – iniciou o odontoclasto. – Nós odontoclastos temos uma dívida muito grande com este cálcio.

Ficaram por ali o mínimo de tempo necessário para que Calcin fosse beneficiado o mais rápido possível. Formularam um pequeno plano inicial do qual Calcion e Obariloclasto iriam até a sala quinze para apresentar a defesa do agente, assim sendo, o delegado teria que se retirar. Com isso, ganhariam tempo para expor os novos fatos ao agente.

Sr. Esmalte e Dr. Fibrone ficariam na sala do sargento esperando sem levantar suspeitas, pois com Linfon T andando pelo departamento, seria mais fácil de encontrarem pelos cor-redores.

Quando chegaram à porta, dois linfócitos, que montavam guarda, se aproximaram do sargento e do odontoclasto tentan-do impedir a passagem, contudo o sargento se mostrou bastante incisivo nas suas palavras.

– É melhor deixarem-nos passar. Este é o Sr. Obariloclas-to, advogado do agente Calcin.

Ambos os linfócitos se entreolharam e abriram passagem para que o sargento e o advogado seguissem rumo à porta.

Calcion bateu por três vezes antes de a porta ser aberta por outro linfócito que parecia estar montando guarda pelo lado de dentro. Linfon T estava de pé ao lado de Calcin, que demons-trava uma aparência horrível. Deveria estar mesmo desgastado de tanto ouvir perguntas do delegado, e ainda mais pelo fato de estar sendo julgado por um crime que não havia cometido.

Quando Calcin percebeu a chegada dos novos visitantes, mesmo sabendo das circunstâncias que lhe rondavam, ficou sa-tisfeito de poder olhar para um rosto familiar, no entanto pare-cia não ter forças nem para dizer alguma coisa.

– Durão este seu agente, sargento – foi logo dizendo Lin-

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fon T aproximando-se de Calcion. – Mas do que devo a honra das “ilustres” visitas?

O sarcasmo do delegado, de certa forma, agrediu a per-sonalidade irônica do sargento que preferiu manter-se menos ofensivo naquele momento para não atrapalhar os novos planos.

– Delegado, este é o Sr. Obariloclasto, advogado de Calcin e veio para uma consulta com seu cliente.

– Bom, eu não sabia que o agente tinha entrado em conta-to com advogado antes de chegarmos até ele – respondeu Linfon T olhando para Calcin que se manteve imóvel sem se manifes-tar.

– Por acaso, o senhor delegado não sabe que todos têm di-reito a um defensor nestas horas? – adiantou-se Obariloclasto.

– Preferi agir sem a interferência de um – respondeu arro-gantemente antes de se dirigir à porta. – Sei que precisa de um tempo com seu cliente, senhor advogado, por isso vou me retirar por um tempo. Afinal de contas entendo de lei muito mais do que imaginam.

Linfon T ainda se aproximou de Calcion e olhando-o pro-fundamente, colocou suas mãos nos ombros do sargento aper-tando como se desejasse esmagá-lo.

– E o senhor vem comigo, não é mesmo? – disse ainda apertando o ombro de Calcion. – Afinal de contas é um momento entre advogado e cliente.

– Então vamos delegado – disse Calcion retirando seu om-bro das mãos de Linfon T. – Não há nada para nós aqui dentro.

Calcin observou o delegado sair juntamente com o sar-gento, o linfócito redator e o outro linfócito vigia antes de come-çar a se reconfortar em seu assento, como se aquele ato fosse lhe descansar todos aqueles minutos angustiantes que tivera com Linfon T dentro da sala.

– Antes de tudo Calcin, estou aqui para ajudar a fazer jus-tiça – começou Obariloclasto sem notar nenhuma alteração no humor do agente. – Segundo porque, em nome de toda a socie-dade de odontoclastos, o consideramos muito e estamos cientes de que nossa dívida com você é impagável.

– Por favor, Sr. Obariloclasto – Calcin demonstrava os si-nais do cansaço claramente com o sussurrar de suas palavras. – Nada disso vai me ajudar e creio que, como advogado, neste momento, também não vai ser muito útil.

Obariloclasto sentando-se em frente de Calcin arriscou uma rápida olhada para trás para certificar-se de que realmente o caminho estava livre para dizer o que realmente queria.

– Não é tão tarde assim – recomeçou o advogado. – Tem algo que você precisa saber urgentemente.

Obariloclasto começou a dizer sobre a existência do mé-dico residente que levantara suspeitas sobre Dr. Fibron e das supostas intenções maliciosas que estavam por trás de uma tra-ma muito bem armada. Cogitou a possibilidade de Calcin ter se tornado o bode expiatório perfeito, no que talvez fosse uma das movimentações mais audaciosas contra o governo de Esmalte Esmaltus.

Calcin, no decorrer de cada palavra dita por Obariloclasto, se contorcia na cadeira como um peixe fora d´água. As primeiras chamas de esperança começaram a brotar nos olhos do agente e também os primeiros sinais de fúria, principalmente quando o advogado repassou a informação de que Calcine havia deixado sua jaqueta em poder do médico.

– Então, o que estamos esperando? – levantou-se o agen-te começando a falar num tom mais alto. – A vida de Anipatita depende disso. Vamos atrás de Fibron e colocá-lo contra a pa-rede.

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Vendo que Calcin havia se empolgado, Obariloclasto de-pendurou-se sobre a mesa segurando o agente pelas mãos, evi-tando talvez que o agente saísse de lá correndo.

– O que você está fazendo, Calcin? Quer pôr tudo a per-der? Isso inclui até mesmo a vida da senhorita Anipatita.

– O que você quer? – perguntou o agente meio que sem rumo. – Que eu fique aqui parado esperando as coisas aconte-cerem?

– Não. Temos um plano para tirá-lo daqui – disse o odon-toclasto observando que o agente aos poucos se acalmava. – O que Linfon T está exigindo de você?

– Aquele linfócito quer que eu confesse o envolvimento no sumiço do Calcine e Anipatita.

– Então confesse.– Como é que você disse? – assombrou-se o agente. – Está

louco? Como posso confessar algo que não fiz?– Se isso não acontecer agora, irá acontecer mais tarde

– continuou Obariloclasto. – Linfon T é temido por sua persis-tência e irá te cansar a tal ponto que, mais cedo ou mais tarde, assumirá a culpa mesmo sendo inocente.

– E do que se trata o plano?– Primeiro você assume, depois aponte um lugar qualquer

para onde supostamente tenha levado os dois. Imagine um lugar muito distante, Molares Superiores por exemplo.

– Daí, ele sai daqui com este relatório, me encarcera e amanhã me leva junto com uma legião de linfócitos para este suposto local – Calcin se mostrava totalmente incômodo. – Não encontrando os dois lá, sabe-se lá o que poderá me ocorrer!

– Tiraremos você daqui antes que amanheça – confirmou o advogado.

– Ah, é mesmo? – ironizou Calcin. – E como? Matando to-

dos os linfócitos?– Não, o próprio sargento facilitará sua fuga e pode ficar

tranquilo que o prefeito também está por trás disso.Aquela informação soou como música aos ouvidos de Cal-

cin, que havia perdido totalmente a esperança de que Sr. Esmal-te acreditasse em sua inocência.

– O que mais me preocupa nisso tudo é o tempo – cogi-tou Obariloclasto. – Se Calcine está também ligado a esta trama, ele também saberia onde Anipatita deve estar. O maior proble-ma é saber onde se encontra Calcine.

– Quanto a isso, pode deixar que eu sei como chegar até Calcine – disse Calcin engolindo sua raiva.

• • •

Já era de madrugada quando a viatura do comando espe-cial que levava Linfon T deixou o departamento de força polici-cálcio. Sr. Esmalte já havia se retirado de lá há horas juntamente com o médico residente, muito antes de o delegado sair da sala de interrogatórios onde Calcin estava levando em mãos os docu-mentos de confissão do agente.

Calcion manteve-se o tempo todo em sua sala conversan-do com Obaliloclasto, arquitetando novos rumos para o plano que já estaria em movimento.

Calcin havia sido levado para uma ala especial e tranca-fiado por outros cálcios que foram orientados a não deixar nin-guém se aproximar de sua cela. Contudo, Calcion sabia que os linfócitos não ficariam para assumir este posto e assim ficaria fácil ele mesmo assumir o comando. Linfon T tinha a certeza de que Calcion não interferiria nas ordens de trancafiamento do agente, porém ele não contava que o próprio sargento estava

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disposto a perder o próprio cargo em prol de uma ação que be-neficiaria alguém inocente.

Obariloclasto sabia da fama de turrão do sargento, mas estava conhecendo um lado humano que poucos tinham conhe-cimento e sentia-se um verdadeiro sortudo por isso.

Por outro lado, Calcion sabia que o prefeito estaria se ar-riscando também em participar de uma ação contra as ordens de agentes enviados pelo próprio sistema, o que lhe deixava mais aliviado.

O mais difícil de tudo seria localizar Calcine antes que Lin-fon T descobrisse que o sargento e o prefeito estavam por trás da fuga de Calcin, mas era um risco que teriam de correr.

Quando por fim o sargento deixou sua sala rumo à cela onde estaria Calcin, Obariloclasto se retirou seguindo o caminho contrário, levando consigo a chave de uma das viaturas de poli-ciamento cuja finalidade seria na ajuda da fuga de Calcin.

Rapidamente, o advogado chegou até o pátio de estacio-namento e averiguou o que de fato tinha dito o sargento. Não havia guardas por perto.

Obariloclasto seguiu até a viatura do próprio sargento e testou a chave na porta com sucesso. O próximo passo seria aguardar a chegada de Calcin e Calcion para arrancarem juntos dali.

Já no outro canto do departamento, Calcion atingira a ala onde estavam dois cálcios fazendo a vigia do agente. Calcion len-tamente se aproximou sem levantar suspeitas.

– Como está o agente? – perguntou autoritário o sargen-to.

– Parece que está descansando – disse um dos oficiais.– Tenho ordens para levar o agente daqui – disse seguro

de si. – Abram a cela onde ele se encontra.

– Desculpe-me senhor sargento, mas o delegado disse se-riamente que...

– O delegado Linfon T não tem jurisdição dentro de In-cisivocity, soldado – arriscou o sargento sem se desvincular do propósito. – Foi o próprio Sistema Nervoso Central que lançou ordens de desviar o agente para outro local. A estas horas todos os nossos inimigos já sabem que o agente espião está aqui e te-nho certeza que não hesitarão em atacar o departamento para evitar que Calcin diga mais alguma coisa que prejudique estes bandidos.

Ambos os guardas se entreolharam e acenaram um para o outro em sinal de aprovação ao sargento, temendo que o pior re-almente acontecesse. Assim, eles abriram um portão e levaram Calcion até a cela de Calcin.

Calcin estava realmente deitado e no primeiro instante ignorou o chamado de um dos cálcios.

– Ei, traidor! – disse um dos guardas batendo com o cas-setete na grade. – Levante-se, eu já disse! O sargento está aqui.

Calcin lentamente sentou-se na cama e ficou observando contra a luz para averiguar se de fato o sargento estava junto com eles.

– Desculpe-me sargento, mas já disse tudo o que sabia ao delegado Linfon T – Calcin começou o jogo de alusão.

– Não vim aqui para interrogatórios, Calcin. – disse acres-centando à trama. – Vou levá-lo até um local seguro. Sua estadia aqui está pondo em risco a segurança de todos nós.

– Ah! Então melhor – respondeu o agente. – Prefiro ficar aqui mesmo. Assim todo mundo se arrisca junto comigo.

– Ora, não seja palhaço! – irritou-se o outro cálcio batendo também contra a grade da cela. – Saia daí agora! Ou nós mesmos entraremos aí para acabar com você, seu traidor!

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Calcin começou a caminhar pelos corredores algemado e cabisbaixo, sendo guiado por Calcion e seguido pelos dois poli-cicálcios que faziam a guarda até a porta que dava acesso ao es-tacionamento. De lá o sargento assumiu a responsabilidade pelo detento e assim entraram em uma espécie de corredor mais estreito até uma segunda porta mais escura, de onde levariam ambos até o pátio.

Quando a porta por trás deles se fechou, sargento Calcion arriscou um sorriso bem curto para o agente que, em seu grau máximo de exaustão, mal conseguiu retribuir.

– Essa foi mais fácil que eu mesmo poderia acreditar – dis-se o sargento se vangloriando da situação.

– Sargento, eu mal posso agradecer pelo que está fazendo – disse Calcin antes de Calcion levantar seus braços e retirar as algemas.

– Não estou fazendo nada demais – respondeu o sargen-to, já com as algemas retiradas de Calcin. – Veja bem o que vai fazer. Seguirá reto daqui por diante até encontrar uma viatura que estará com os faróis acesos, lá o Sr. Obariloclasto estará à sua espera e lhe entregará o veículo. Deste momento em diante é com você, Calcin.

– E vocês dois? – perguntou o agente preocupado com o que aconteceria se fossem achados andando juntos sem a sua guarda.

– Não se preocupe – disse o sargento olhando novamente para trás. – Tenho outro veículo aqui perto. Obariloclasto e eu seguiremos para ele e vamos sumir por um tempo até que sua fuga seja detectada. Veja bem, Calcin. Seja lá o que for fazer, em relação à procura de Calcine, ande rápido, pois o tempo é cur-to demais. Temos que encontrá-lo antes que o Sistema Nervoso Central lance mão de reforços imunológicos para este complexo.

Se isto acontecer, estaremos seriamente encrencados. De agora em diante é com você.

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Capítulo 12

Não havia mais ninguém circulando pelas ruas de Caninus Inferiores Esquerdus quando uma viatura rasgou o cruzamento de duas das principais avenidas, a que vinha do centro e a que ligava o bairro.

Calcin acelerava o veículo ao máximo que podia, tentando vencer um tempo que já não parecia ser possível, enquanto ob-servava também os números residenciais que passavam como estrelas cadentes nas duas laterais do automóvel. Talvez, se Cal-cin não tivesse participado daqueles cursos de leitura dinâmica, patrocinados pela força policial, jamais daria conta de perceber quais eram estes números.

O agente ainda passou por uma viatura de patrulhamento próximo ao centro do bairro, o que o deixou bastante apreensi-vo, porém, ao ver que nada fora do normal sucedera-se, voltou à sua intensa procura pelo número residencial desejado.

– Duzentos e três... Duzentos e três... – Calcin seguia repe-tindo a numeração enquanto reduzia a velocidade à medida que se aproximava dela. – Duzentos e três, ótimo, é aqui!

Apagando as luzes do veículo Calcin abriu lentamente a porta e saiu sem desviar a atenção do pequeno prédio de núme-

ro 203.Ficou observando o pequeno imóvel que, pelo número de

janelas, condenava seus únicos dois apartamentos. Calcin sabia que Calcitis morava em um deles, porém não tinha certeza de qual dos dois seria. Não poderia simplesmente arriscar um de-les, teria que acertar o alvo certo, se não quisesse levantar sus-peitas de sua presença por aquela região.

Calcin só não contava com a sorte daquela mesma madru-gada, quando reparando as janelas do prédio, notou que em uma delas, na porção superior, via-se uma pequena placa de aluguel. Rapidamente o agente concluiu que Calcitis deveria morar no apartamento de baixo, caso contrário saberia facilmente se o oficial tivesse se mudado.

Calcin correu para debaixo de uma marquise, próximo ao portão, de onde não poderia ser visto quando tocasse o interfo-ne e assim o fez.

Nada poderia ter deixado o agente tão satisfeito quanto ouvir a voz de Calcitis perguntando por quem seria àquela hora.

– Agente Calcitis? – perguntou Calcin tentando mudar a própria voz. – Sou o oficial Calciley do departamento policicál-cio. Venho trazer informações sobre seu parceiro Calcine.

Calcin ainda escutou uma das janelas serem abertas e no-tou a sobra do oficial bater contra a rua buscando pele imagem do oficial visitante. Como a única coisa diferente naquele quar-teirão era a presença da viatura de policiamento, Calcin deduziu que Calcitis dera-se por convencido.

– Estou descendo, só um minuto! – disse a voz desconfia-da de Calcitis pelo interfone.

Quando o portão se abriu e Calcin notou a imagem fos-ca do agente pelo vidro, sem muito esperar empurrou o portão contra Calcitis o fazendo cair sobre as escadas que se seguiam

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em uma subida quase que interminável.– Calcin! – exclamou assustado Calcitis tentando apalpar

o que seria sua pistola calcítica dentro do bolso. Vendo que Calcitis provavelmente partiria para uma

agressão armada, Calcin jogou-se para cima dele, fazendo-o ar-remessar a pistola escada acima.

– De jeito nenhum, seu verme! – sussurrou Calcin agar-rando Calcitis pelo colarinho, ambos jogados pela escada. – Com quem você acha que está se metendo?

– Você deveria estar preso, traidor! – retrucou Calcitis com dificuldades de mover-se.

– Mas não estou – respondeu Calcin encarando-o firme-mente. – Pelo contrário, estou aqui para descobrir para onde Calcine levou Anipatita.

– Ora, e por que eu deveria saber? Até então, pelo que eu sei, você é quem deu sumiço nos dois.

Calcin se mostrou irado e, em um único solavanco, arran-cou Calcitis do chão erguendo-o contra a parede.

– Como é que você sabe disso, agente Calcitis? Até então, pelo que eu sei esta informação ainda não vazou do departa-mento interno de policiamento.

– Departamento interno de policiamento? – assombrou-se Calcitis com os olhos trêmulos.

– Exatamente, seu abobalhado! – disse demonstrando um pequeno sorriso de fúria. – O mesmo departamento que me en-carcerou em uma ala isolada para detentos interrogativos. Não teria a mínima condição de você saber deste tipo de informação, que ainda está em andamento.

Calcitis sentiu uma pontada de gelo subir pela garganta como se fosse uma presa escolhida por um faminto predador.

– Sabia que eu ainda não fui acusado de nada, agente

Calcitis? Você é tão ingênuo que não consegue nem mesmo se-gurar as próprias palavras, não é mesmo?

Calcitis ainda tentou livrar-se, soltando socos por debaixo dos braços de Calcin, que tentou se livrar enquanto pôde até, num ímpeto de raiva, arremessar novamente o agente contra as escadas, fazendo Calcitis sentir o novo golpe com maior força.

– Não vai arrancar nada de mim, Calcin – ameaçou Calcitis olhando com desprezo pelo companheiro de profissão. – O que vai poder fazer? Assassinar-me acabaria de vez com a sua repu-tação, Calcin.

– E quem falou em te matar, seu nojento? Sr. Esmalte e o sargento Calcion já estão por dentro dos fatos, e foram eles mes-mo quem me libertaram. Acho melhor ir contando logo o que sabe antes que as coisas fiquem piores para você, Calcitis.

Calcitis estava realmente se sentindo ameaçado depois de ouvir aquelas palavras. Seus olhos buscaram as paredes vazias da escadaria e suas pernas tremiam como se estivesse no epi-centro de um terremoto.

– Por mais que eu lhe fale Calcin, a situação é muito mais delicada do que você possa imaginar.

– Se for me dizer que o delegado Linfon T e o Dr. Fibron estão por trás disso, sinto em decepcioná-lo, mas já estamos cientes.

– Só não estão cientes de que uma nova onda de bacté-rias degradativas está pronta para atacar Incisivocity a qualquer momento, agente Calcin – disse Calcitis demonstrando alegria. – Creio que nem mesmo os agentes linfóides estão prontos para o tamanho da demanda bacteriológica que está se aproximando.

– Se isso é verdade, então por que envolver Anipatita nes-ta sujeira toda? – perguntou o agente ameaçando agarrar Calci-tis mais uma vez.

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– Sabíamos que você é um dos agentes mais audaciosos de Incisivocity, com experiência de campo. Esteve em Caninus Superiores e Molares, também presenciando a movimentação dos streptos e a ação de Ácido Açucarado. Antes mesmo que as coisas se sucedessem, você notaria as modificações estruturais nas paredes dos bairros em todo o canto e alertaria com maior facilidade a Liga de Amálgama – Calcitis estava se esbaldando quando percebeu que Calcin se apavorava com suas palavras. – Teríamos que tirar você do caminho e nada melhor do que usar Anipatita para isso.

Calcin encostou-se na parede da escadaria sentindo um pavor arrepiante aflorar dentro do seu peito. Por alguns instan-tes pensou que iria desmaiar, mas a fúria misturada à preocupa-ção com a segurança de Anipatita mantinha-no acordado para escutar aquela trama horripilante.

– Quando ocorreu aquele episódio em Molares, fomos es-calados propositalmente para guiar Sr. Esmalte até uma tocaia, onde ele seria facilmente destruído pelas bactérias. O que não contávamos era com as bactérias, idiotas como eram, nos ata-cassem sem distinção, e levamos a pior naquele dia, pois além de quase terem me aniquilado, deixaram escapar o prefeito e aquele odontoclasto miserável. Contudo, ainda nos restou uma pequena sorte que mudariam as estratégias.

Calcin ainda se mantinha de pé observando e escutando apavorado as palavras de Calcitis enquanto, sem saída, descre-via tudo o que previamente fora tramado.

– Você apareceu e nos socorreu, Calcin. Suas impressões ficaram cravadas na jaqueta de Calcine e o resto era somente apresentar a jaqueta como prova do crime. Naquela noite, em que você deixou Anipatita no apartamento dela, alguns acti-nomyces estavam já à espreita e outros esperando que você

passasse por algum lugar ermo para aplicar o golpe da “bolsa esquecida” – e acrescentou. – Estávamos de olho em você muito antes que você percebesse.

Calcin sentia-se anestesiado, mas procurou manter-se firme em seu propósito final, tentando de alguma forma buscar forças para salvar Anipatita.

– Onde está Anipatita? – começou a dizer pausadamente. – Ou melhor, onde estão Calcine e Anipatita?

– Anipatita está escondida na região das tonsilas palati-nas, bem além das fronteiras de Incisivocity. Existe uma cabana isolada naquela região onde vai encontrá-la amordaçada, mas terá que se adiantar, pois a Cárie sabe que a primeira pessoa que você iria procurar, caso escapasse, seria eu mesmo. Creio que não irão me libertar depois destas informações cedidas, e man-darão um grupo de actinomyces ao meu encontro de manhã em um local aonde não mais irei. Não me encontrando, atacariam a cabana sem piedade.

– Como é que é? – assustou-se Calcin.– Você está num beco sem saída, agente Calcin – vanglo-

riou-se ao dizer o malicioso agente. – Ou você volta para o centro e avisa sobre o ataque, ou a vida de Anipatita vai se extinguir nas mãos daquelas perversas criaturas.

Calcin afastou-se tremendo em uma mistura de ódio e pa-vor da qual nunca havia experimentado em sua vida. No peito brotava-lhe uma enorme vontade de acabar com Calcitis num único golpe, ao mesmo tempo em que suas pernas já se dirigiam para a porta num ímpeto, quase que instintivo, de sair correndo em busca de sua noiva.

Teria que ir ao encontro de Anipatita ao mesmo tempo em que um possível ataque de criaturas ocorresse no centro de Inci-sivocity. Sabia que nem mesmo os linfócitos estariam montando

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guarda em Incisivo Centrales já que sua fuga, naquele momento, teria alarmado toda a força de defesa.

Calcin tinha de admitir que o plano fora perfeitamente arquitetado e que não havia tempo de voltar para avisar às auto-ridades e mesmo que escolhesse este caminho, seria detido no momento de sua volta.

–Escute bem o que vou lhe dizer, Calcitis – Calcin des-pejava fúria nos olhos e nas palavras. – Voltarei para te buscar, não importa o que acontecer. E mesmo que isso não aconteça, o seu fim foi justamente ter se aliado ao esquadrão da Cárie. Você não vai muito longe.

E Calcin se atirou para fora seguindo em direção à via-tura e entrando num único pulo dentro do veículo. Em poucos segundos, o agente já havia cruzado as esquinas daquela rua, deixando para trás os olhos temerosos de Calcitis que se sentiu como se uma praga perigosa houvesse sido lhe despejado com toda a fúria.

Sr. Esmalte, como de costume, estava de pé olhando para o centro da cidade próximo à janela sendo observado pela Sra. Dentina, Obariloclasto, Dr. Fibrone Jr., Cementon e Oncoclastos. Porém fora Oncoblasto quem quebrou o silêncio daquele am-biente tão intenso.

– Se isso tudo for verdade, qual o interesse de Fibron e Linfon T nessa trama toda? – perguntou cruzando os braços e coçando o queixo.

– Não sabemos e isso torna as coisas um pouco difíceis, senhor Oncoblasto – respondeu Madame Mielina entrando tam-bém no gabinete do prefeito. – Não temos como acusá-lo sem provas – e se voltou para o jovem médico. – Desculpe-me Dr. Fi-brone, mas suas palavras serão somente levantadas como acu-sação verbal. O que fizemos hoje foi simplesmente dar uma carta

de crédito à Calcin e esperar que ele realmente encontre Calcine para poder levantar acusações legalmente ativas.

– Contudo já amanheceu e até agora nada do agente apa-recer – disse Obariloclasto também olhando para a janela. – As autoridades não vão demorar a aparecer por aqui.

– Calcion está em minha casa, esperando o momento cer-to de voltar para o departamento de policicálcio – disse o pre-feito sem olhar para trás. – Neste momento, os oficiais já devem ter notado a ausência do sargento e também do agente e, com certeza, já devem estar alertando o sistema imunológico. Lá em casa ninguém vai suspeitar de nada e só poderão lá entrar com uma ordem assinada por mim.

– A não ser que o Sistema Nervoso Central assine uma or-dem de mandato – disse Mielina completando as afirmações do prefeito. – Contudo, não creio que isso irá ocorrer se ele mesmo não expuser os fatos a mim primeiro. Lembrem-se, sou o único elo do Sistema Nervoso para com os demais complexos.

– Neste momento Calcion está seguro na casa do prefeito junto com Célica, Amelodentina e Célion – foi a vez de Cemen-ton.

– O que mais me preocupa é a demora de Calcin – disse o prefeito voltando-se para todos. – Daqui a pouco será muito difícil para ele conseguir retornar.

– Não entendo o porquê de Calcin ter ido sozinho em bus-ca de Calcine – disse Obariloclasto.

– Como Calcion mesmo disse, Calcin sabe de alguma coisa que não temos acesso – respondeu o prefeito. – Se o sargento o acompanhasse, as coisas iriam se complicar, caso os dois fossem pegos juntos.

Mas naquele momento o barulho de sirenes cortou a con-versa naquele recinto fazendo com que todos ali se aproximas-

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sem da janela e presenciassem um grande número de viaturas do sistema imunológico atravessar a praça central de Incisivo-city.

– Linfon T está vindo – disse Madame Mielina.– E pelo visto trazendo uma boa tropa – Fibrone Jr. Co-

mentou. – Bom prefeito, acho que existem dois suspeitos em po-tencial aqui.

– Sei que você, Fibrone e Obariloclasto poderão ser leva-dos para algum tipo de interrogatório, mas este eu não vou as-sinar – disse firme Sr. Esmalte trazendo um brilho distante dos olhos da esposa.

– Tenho tanto orgulho de você, Esmalte – disse ela se apro-ximando do marido. – Tinha certeza de que você defenderia as pessoas corretas mesmo pondo em jogo seu próprio mandato.

Sr. Esmalte se aproximou de Dentina, abraçou-a bem forte e soltou todo o ar preso em seu peito nos ombros da esposa.

– Já não tenho medo de perder meu lugar no comando de Incisivocity, se isto me custar salvar pessoas as quais considero como verdadeiros amigos. E Calcin é um deles.

Quando Linfon T apareceu pela porta do gabinete do pre-feito, Sr. Esmalte já esperava pelas metralhadas de palavras que começariam a ser despejadas naquele recinto. Madame Mielina se posicionou próximo ao prefeito e a primeira dama. Dr. Fibron apareceu logo atrás e ao perceber que seu residente estava na sala, começou a encará-lo em sinal de desafio.

– Bom, eu não poderia deixar de passar por aqui sem avisá-lo de que seu agente será caçado entre os quatro hemiar-cos da cidade, senhor prefeito – disse Linfon T sem se intimidar com o administrador chefe da casa pública de Incisivocity. – E assim que o encontrarmos vamos encaminhá-lo à Intestinópo-lis para sua degradação e expulsão do sistema.

Obariloclasto levantou-se rapidamente da cadeira onde estava sentado e se colocou em frente do delegado olhando-o profundamente.

– O senhor está infligindo todas as normas legais do sis-tema – disse Obaliloclasto. – Calcin ainda nem participou de um tribunal para que esta decisão seja tomada.

– Seu cliente fugiu, senhor Obariloclasto – reforçou Linfon T. – A partir deste momento ele passa a ser réu confesso e res-ponsável por todas as acusações.

Dr. Fibron também se adiantou e seguindo em direção ao seu aluno residente balançava a cabeça em sinal de reprovação. Vinha passando os dedos pelos móveis brancos e rústicos sem desviar os olhos de Fibrone.

– Estou muito curioso para saber o que você faz aqui na prefeitura, Fibrone – perguntou com ares de sarcasmo.

– Desculpe-me professor, mas acho que posso estar onde eu bem entender, não é mesmo?

Sra. Dentina só não disparou gargalhada por respeito ao marido, mas sentia que daquele momento em diante, Fibrone era um dos seus e orgulhava-se do rapaz não sentir-se intimida-do na presença de seu tutor.

– Madame Mielina – disse Linfon T também se sentindo ofendido pela resposta do jovem médico. – Creio que este não é mais o ambiente propício para uma senhora de sua categoria. Lá fora tem uma comitiva que a levará de volta ao Sistema Nervoso Central e espero que a senhora repasse exatamente o que está ocorrendo neste complexo.

– Escute, caro delegado – disse ela sentindo-se atingida com o tom ordeiro de Linfon T. – Tenho meus próprios meios de retornar para o sistema, e creio que pode ficar sossegado que a verdade será exposta pelo meu marido da melhor forma possí-

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vel.Sr. Esmalte não prolongou por muito tempo aquele desa-

gradável encontro e observou tanto o delegado quanto o médico diretor de o Fibrospital saírem sem dizer mais nada.

Quando o interfone do gabinete municipal tocou, foi Den-tina quem o atendeu. Era o recepcionista dizendo que havia um cementócito desesperado para falar com Cementon urgen-temente. Esmalte disse em voz alta para a esposa que poderia deixá-lo entrar e que viesse imediatamente para sua sala.

Não levou muito tempo até que um cementócito bem ma-gro e pequeno entrasse pela porta olhando para todos os lados procurando por seu líder Cementon.

– O que está se passando Cerment? – perguntou Cemen-ton levantando-se da cadeira e pondo-se à mostra já que a visão destes cementócitos, à luz do dia, não era tão eficiente assim.

– Senhor, o complexo gengival está se inflamando por toda a porção posterior de Incisivocity – disse ele engolindo fôlegos.

– Como assim inflamando? – Sr. Esmalte saiu de perto da janela se aproximando de Cerment.

– Estamos trabalhando na construção das vias subter-râneas do metrô, como combinado, porém próximo à Molares Inferiores as estruturas gengivais estão cedendo e derramando exsudato purulento – continuou Cerment recuperando todo o ar perdido numa corrida investida até a prefeitura. – Os cementóci-tos não estão conseguindo fazer nada por aquela região.

– Isso é uma péssima notícia senhor prefeito. – completou Cementon.

– Sei disso, Cementon – respondeu ainda olhando para o cementócito que realmente parecia assustado.

– E o pior ainda não é isso – continuou Cerment. – As es-truturas básicas de sustentação de molares estão começando a

se abalar.Sr. Esmalte se afastou, abraçou a mulher e sentou-se na

beirada da poltrona onde ela estava com uma expressão com-pletamente desfalcada.

– Eles voltaram! – disse em tom desanimador.– Quem? – perguntou Oncoblasto se pondo de pé deses-

perado.– Os streptos estão novamente atacando Molares.Mas naquele momento algo também chamou a atenção

de Madame Mielina que se aproximava vagarosamente da janela seguida por Dentina, que trazia uma das mãos à boca como se não acreditasse no que realmente estava se passando do lado de fora.

Quando Oncoclasto e Obariloclasto também se aproxima-ram delas ficaram horrorizados com os olhares fixos em alguma coisa que ocorria.

Dr. Fibrone olhando para o prefeito ficou sem entender, mas esperou alguma reação de Esmalte para poder se levantar e seguir em direção aos demais. Esmalte assim o fez, se dirigiu para a segunda janela de sua sala seguido pelo jovem médico e se assombrou com uma visão muito esquisita.

Milhares de odontoblastos, apatitas e odontoclastos vin-do em direção ao centro da cidade, alguns com seus veículos, outros a pé. Muitas apatitas traziam crianças no colo, seguidas por odontoblastos carregando malas e objetos pessoais de im-portância.

Em outras vias também chegavam várias viaturas de pa-trulhamento da força policicálcio, parcialmente destruídas e também algumas unidades de atendimento do Fibrospital des-carregando policicálcios feridos.

– Que visão de fim do mundo! – disse Oncoclastos sem

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tirar os olhos da janela.Sr. Esmalte sem dizer nada saiu correndo em direção

à porta descendo as escadarias, sendo seguido por Fibrone Jr. que imaginava poder ajudar com algum ferido. Sra. Dentina foi a próxima a correr em direção ao marido seguida por Mielina e os demais.

Quando atingiram o hall de entrada da prefeitura, se de-pararam com outra situação bastante desagradável. Alguns po-licicálcios mantinham-se afixados à porta central impedindo a entrada forçada de uma população histérica.

– O que está acontecendo aqui? – perguntou o prefeito para um cálcio que estava de pé gritando ordens para os demais policicálcios.

– Senhor, estas pessoas estão querendo entrar e não ca-bem aqui dentro – respondeu o cálcio sem desviar sua atenção da porta.

– E o que está havendo para que estas pessoas estejam neste estado? – perguntou novamente Sr. Esmalte.

– Parece-me que está acontecendo um ataque em massa de Streptococos Mutants nos bairros posteriores e não estamos tendo policiamento suficiente para detê-los.

– Como assim não há policiamento suficiente? – pergun-tou novamente o prefeito.

– Desculpe-me prefeito, mas é só o que sei por enquanto.Sra. Dentina, ao ouvir, afastou-se lentamente com as mãos

à boca balançando a cabeça e deixando as primeiras lágrimas escaparem dos olhos.

– Amelodentina! – sussurrou ela entre prantos.– Acalme-se, Dentina – disse Madame Mielina abraçan-

do-a. – Sua filha não está sozinha, além de Célion e Dona Célica, o sargento Calcion também está lá.

– Quero ir para casa, Esmalte! – gritou a primeira dama perdendo o pouco controle que lhe restava. – Quero ver minha filha.

Sr. Esmalte correu para os braços da esposa, agarrando-a com força e olhando para ela profundamente, não deixando es-capar as lágrimas que também estava com vontade de derramar.

– Escute o que vou lhe dizer – disse ele imponente. – Nada acontecerá a nossa filha, eu prometo. E vamos daqui dire-to pra lá.

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Capitulo 13

Era uma espécie de cabana muito esquisita e suja, com paredes incrustadas de tártaro e, pelo que se notava já de longe, afundava numa gengiva já atacada por uma inflamação bem in-tensa. Quanto mais se aproximava do local, mais a viatura guiada por Calcin deslizava sem controle, até que o agente conseguisse brecar totalmente o veículo.

Quando Calcin pisou no chão, sentiu seus pés afundarem e o odor que vinha de baixo era muito desagradável.

A região das Tonsilas Palatinas não era daquele jeito. Por algumas vezes, quando ainda era um oficial em treinamento, Calcin participou de várias campanhas por aquela região e seu solo era de uma tonalidade rosada sadia, sem aquele odor com-pletamente nauseante.

Quando, porém, se aproximou da barraca, notou que, além de alguns sussurros vindos de dentro, alguém ou alguma coisa rastejava do lado oposto em que se encontrava. Calcin sabia que sua pistola calcítica não eliminaria totalmente um strepto, por isso trouxe consigo uma granada degermante.

Calcin ficou agachado esperando o momento certo de agir, antes de provocar um alarme, e quando aquela criatura acinzen-

tada dobrou a beirada da cabana, o agente atirou o degermante certeiramente no peito da criatura, fazendo-a se contorcer como lagarta.

Não restou muito tempo à Calcin que, saltando por cima da criatura, correu em direção à porta de entrada da cabana se deparando com outro strepto que vinha urrando para cima do agente como se o quisesse engolir. Rapidamente, Calcin sacou sua pistola calcítica e disparou nos olhos da criatura que, sem poder enxergar nada, começou a urrar mais forte ainda. Calcin com um único solavanco empurrou a criatura para dentro nova-mente e entrou pela cabana já podendo ver Anipatita amarrada próxima de uma mesa pequena repleta de coisas esquisitas as quais o agente supôs ser de uso daqueles vermes estranhos.

– Anipatita! – gritou Calcin correndo na direção da secre-tária.

Anipatita ainda estava com uma fenda amarrada nos olhos, mas pôde identificar a voz de Calcin gritando por ela, o que fez com que ela respondesse vibrando de tanto alívio.

– Calcin! Por favor, me tire daqui!Calcin não hesitou em arrancar as cordas que enrolavam

as mãos de Anipatita com toda a raiva que sentia daquelas cria-turas que, pelo visto, não pouparam grosserias.

– Fique tranquila, Anipatita – disse tranqüilizando-a. – Vou tirá-la daqui agora mesmo.

Quando se viu livre, a secretária pulou nos ombros do agente beijando-o impetuosamente. Calcin sentiu seu coração bater tão forte que quase esqueceu onde realmente estavam na-quele momento.

– Não temos muito tempo, minha querida “Diamanta” – aquelas palavras fizeram Anipatita soltar todo o resto de lágrimas que ainda lhe restavam. – Um dos vermes ainda está

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atordoado e temos pouco tempo para sair correndo daqui em direção ao centro da cidade.

Ambos saíram correndo em direção à viatura que trou-xe Calcin. Anipatita reparou numa criatura caída já sem vida do lado de fora e notou a outra se levantar dentro da cabana.

– O outro está se levantando e vindo pra cá – disse ela segurando firmemente as mãos do agente.

Calcin rapidamente abriu uma das portas e, segurando a cabeça da secretária, empurrou-a para dentro sem hesitar. Deu a volta na viatura e, percebendo que Anipatita havia destravado seu lado, também pulou para dentro do veículo.

– Não temos muito tempo, Anipatita – disse Calcin já arrancando o veículo em meio a derrapadas naquele terreno completamente instável. – Incisivocity já deve estar sendo ata-cada com toda força por estas criaturas miseráveis.

O veículo seguiu derrapante por algum tempo, com Cal-cin tenso tentando manter o controle do automóvel e Anipatita olhando para trás observando se não estavam sendo seguidos pela criatura que havia ficado para trás, até que de repente outro veículo da força policicálcio aparece lateralmente a eles fazendo o agente se assustar e dar um solavanco ríspido na direção.

Calcin tentava manter o controle da viatura ao mesmo tempo em que buscava reconhecer quem estava na direção do outro veículo, que insistia em colidir.

– Não acredito! – disse Calcin olhando de rabo de olho. – É Calcine.

– Nós vamos bater! – gritou Anipatita percebendo a inten-ção maliciosa de Calcine.

A viatura guiada por Calcine se afastou por alguns segun-dos e voltou com uma velocidade maior contra a porta esquerda do veículo de Calcin fazendo com que o agente perdesse comple-

tamente o controle e rodopiasse parando fora da estrada.– Abaixe-se, Anipatita! – gritou Calcin ao perceber que

Calcine havia saído da viatura e começado a disparar calcitina contra eles.

Mesmo abaixado, Calcin conseguiu abrir sua porta e saiu rastejando pela lateral da viatura. Anipatita continuou deitada sobre a poltrona do veículo obedecendo ao comando dado pelo agente, para que ela continuasse onde estava.

Naquele instante ricocheteava calcitina por todos os la-dos, impedindo Calcin de observar em que direção Calcine esta-va, para que também pudesse disparar em defesa.

Calcin estava encurralado na lateral oposta do veículo en-quanto Calcine se aproximava disparando contra eles. Anipati-ta ainda deitada percebeu que alguém estava se aproximando daquele lado do veículo e notou quando Calcine se encostou do lado de fora de sua porta. Rapidamente, uma ideia bastante ar-riscada tomou conta da mente aterrorizada da secretária que, num súbito gesto, destravou sua porta e a golpeou com os dois pés. Calcine não havia percebido que Anipatita se encontrava dentro do veículo e muito menos percebeu quando a porta se abriu violentamente acertando-o bruscamente na cabeça.

Calcin somente ouviu o barulho de a porta arremessar seu agressor, já desarmado, de volta para a estrada e Anipatita sair gritando em sua direção.

Num gesto sem raciocínio, o agente saltou sobre o capô do veículo, correndo na direção de Calcine, que se contorcia em do-res com as mãos sobre o nariz arrebentado pela força da batida. Naquele momento, Anipatita já havia agarrado a pistola calcítica que fora arremessada junto com o agressor e, tudo que Calcin fez foi cair de socos em cima de Calcine, fazendo com que o agen-te gritasse ainda mais.

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Amelodentina olhava assustada pela janela do aparta-mento enquanto Dona Célica e Célion ajudavam o sargento Cal-cion a colocar travas nas portas. As pessoas corriam de um lado para outro, algumas até se trombavam, no desespero em que se encontravam lá embaixo.

– Onde estão meus pais? – gritava Amelodentina batendo com os pés em cima do sofá enquanto olhava pela janela.

– Seus pais estão bem, mocinha – disse Calcion enquanto colocava uma cadeira debaixo da maçaneta da porta principal. – Seja lá o que está acontecendo, o lugar mais seguro de Incisi-vocity é a prefeitura e seus pais estão lá.

– Meu pai também, senhor sargento? – perguntou Célion com seus grandes olhos cheios de lágrimas.

– Sim, meu filho – respondeu Dona Célica trazendo mais cadeiras para a sala principal. – Papai está com o prefeito – e olhando para o sargento concluiu esperando alguma resposta do oficial. – Não é mesmo sargento?

Calcion abaixou os olhos acenando positivamente, mas não confortando a mãe do garoto.

– Ajude-me aqui, Dona Célica! – pediu Calcion empur-rando o sofá em direção à porta do corredor que dava para os quartos. – Tomara que sim, senhora. No momento tudo o que parece é que está havendo algum tipo de invasão em massa – dizia o sargento longe do alcance das crianças. – Realmente o lugar mais seguro para este tipo de situação é a prefeitura, mas não sabemos direito o que está acontecendo. A única coisa que nos resta é tentar nos proteger caso isso esteja realmente acon-tecendo.

Amelodentina se agarrava a sua boneca Diamanta tre-mendo e desejando que Anipatita estivesse perto de sua mãe. A menina sabia do desaparecimento da secretária, mas reconhe-

cia que aquela apatita era a companhia perfeita para sua mãe numa situação de perigo. Célion também estava assustado, mas ao ver que sua amiga não parecia estar tranquila, se aconchegou a ela dizendo palavras confortantes.

– Nunca vi ninguém como seu pai, Amelodentina. E sei que meu pai também é muito forte – disse o garoto pegando na mão da amiguinha. – Tenho certeza de que os dois juntos vão defender sua mãe de qualquer coisa.

Calcion observava aquela cena de longe juntamente com Dona Célica, que podia notar a expressão desapontada do sar-gento.

– O que está acontecendo? – disse ele sussurrando. – Está tudo fora de controle!

– Sargento, você tem certeza de que Calcin não está envol-vido nisso? – perguntou Célica desacreditada. – Este seu agente até agora não apareceu e tudo está pesando para culpá-lo.

– Escute uma coisa, Dona Célica – respondeu Calcion al-terando um pouco a voz. – Eu mesmo treinei Calcin e quando estive com aquele médico residente, tive a certeza absoluta que uma trama muito bem armada foi arquitetada para jogar a for-ça policicálcio numa situação de incredibilidade – e concluiu. – Aconteça o que acontecer, não deixarei nada atravessar estas portas, ou não me chamo Calcion Cálcico.

Quando um dos oficiais policicálcios entrou correndo no gabinete do prefeito, Sr. Esmalte já imaginava qual seria o vere-dicto.

– Senhor prefeito, todos os bairros molares estão toma-dos! – disse o oficial ofegante.

Sr. Esmalte, quando percebeu que a população se deslo-cava dos bairros vizinhos para o centro da cidade, logo deduziu que a Cárie poderia estar por trás de uma movimentação gigan-

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tesca de bactérias. Como a maioria dos oficiais de Incisivocity estava concentrada na procura e captura de Calcin e Calcion, o prefeito somente pôde lançar mão de alguns oficiais que ficaram de monitoria na prefeitura. Sem o sargento por perto, Sr. Esmal-te não tinha como formular uma estratégia militar eficiente, en-tãoordenou para que alguns dos oficiais que restaram, fizessem uma varredura pelos bairros vizinhos a fim de averiguar o que realmente ocorria.

– Conseguiu encontrar os demais oficiais da tropa de Inci-sivocity? – perguntou o prefeito questionando por outra ordem anteriormente dada.

– Nenhum dos oficiais escalados detectou policicálcios pela redondeza, senhor. Parece-me que já estão além das fron-teiras de todos os bairros molares da cidade, junto com os linfó-citos à procura por Calcin.

O mundo parecia estar desabando sobre a cabeça de Es-malte que, ao mesmo tempo em que percebia não ter soldados à sua disposição, admitia que um plano estrategicamente perfeito, para afastar os oficiais do centro da cidade, havia dado certo.

– Senhores, devo ser sincero – disse o prefeito a todos na sala, batendo com uma das mãos em sua mesa. – Não faço a mí-nima ideia do que está por vir. Desta vez a Cárie foi longe demais e nossas defesas são escassas.

– Temos que avisar o Sistema Nervoso Central e pedir re-forços imediatamente – argumentou Oncoblasto andando de um lado para outro.

Sr. Esmalte voltou-se novamente para o oficial, que ainda se mantinha de pé esperando por alguma ordem, demonstrando uma expressão de pavor completamente perceptível.

– Como está a situação, oficial?– Temo em admitir que não há como sair de Incisivocity

– respondeu o policicálcio olhando para Oncoblasto. – Creio que nem pelo subsolo, pois de acordo com alguns oficiais, até mes-mo os cementócitos estão vindo para cá em retirada.

– Sendo assim, também não há como alertar o Sistema Nervoso Central – concluiu Sr. Esmalte. – Já que Madame Mie-lina não conseguiria sair daqui e é a única mensageira capaz de entrar em contato com o sistema.

– Tem coisa muito estranha nisso tudo, prefeito – alertou Cementon. – Os cementócitos não abandonariam seus postos por causa de um ataque de streptococos. Todos nós sabemos que estas bactérias não sobreviveriam no subsolo da cidade.

– Você tem toda a razão, Cementon – concordou o prefei-to. – Provavelmente, a Cárie aumentou seus laços bacteriológi-cos e vem coisa pesada por aí. O pior de tudo é não alertarmos o sistema, desta forma não poderemos contar nem mesmo com a Liga de Amálgama.

– Por favor, Esmalte – disse a Sra. Dentina em prantos. – Diga-me que existe alguma saída.

– Desculpe-me, querida – respondeu Sr. Esmalte abraçan-do fortemente a esposa. – Mas creio que a única opção neste caso é lutarmos nós mesmos por nosso complexo sem ter de contar com possíveis reforços.

Fibrone Jr. Levantou-se seguindo em direção à janela com uma das mãos coçando sua nuca, não disse uma só palavra até se aproximar da vidraça e observar ao longe. Apesar da correria que se estendia pelas ruas de Incisivo Centrales, tudo parecia estar calmo além dos bairros Molares. Parecia estar realmente pensando em alguma coisa importante, o que fez com que todos esperassem por alguma reação do médico residente.

– Acho que sei quem está ajudando a Cárie neste ataque, Sr. Esmalte – disse Fibrone ainda olhando para fora. – Reparem

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como está ficando o solo em Incisivocity.Naquele instante todos se aproximaram da janela e co-

meçaram a reparar em toda mediação em volta da prefeitura. O terreno estava mais vermelho que de costume e aparentava muito mais viscoso. Sr. Esmalte notou também que alguns cida-dãos cobriam seus narizes evitando inalar o que parecia ser um odor bastante forte.

– Pelo que parece, até mesmo o subsolo da cidade está sendo atacado – continuou Fibrone. – Só existe um tipo de bacté-ria que poderia exercer este tipo de ação em toda a região gengi-val do complexo. São os Clostridiuns e se não temos como avisar o sistema é porque o alvo é exatamente Madame Mielina.

– Clostridium Botulinium! – exclamou Madame Mielina temerosa. – Não pode ser!

Todos notaram a reação de Madame Mielina em relação às palavras de Fibrone e aquele acontecimento deixou até mes-mo Sr. Esmalte preocupado.

– Quem é Clostridium Botulinium? – perguntou Sra. Den-tina também se apavorando.

– É um dos principais inimigos de todo o Sistema – res-pondeu vagarosamente Mielina. – Sua intenção sempre foi blo-quear-me impedindo assim que o Sistema Nervoso Central co-mandasse todos os complexos. Jamais imaginei que Clostridium Botulinium fosse conseguir isso justamente em Incisivocity.

Sr. Esmalte sentiu-se péssimo ao ouvir aquelas palavras. Pela primeira vez sentiu um gosto amargo de derrota e com-pletamente incapacitado, como se não conseguisse mover nem mesmo os braços. Pela primeira vez também abaixou a cabeça e sentiu-se humilhado por sua adversária. Agora sim Incisivocity estava à mercê da Cárie.

Poucas vezes em sua vida Sra. Dentina tinha visto seu ma-

rido com uma expressão tão abatida, porém desta vez ela pôde notar não só a sua expressão, mas também o apagar do brilho nos olhos de Sr. Esmalte. Pela primeira vez também Dentina sen-tiu Esmalte se deprimir perante um obstáculo.

– Esmalte, o que está acontecendo? – perguntou Dentina enxugando suas lágrimas, tentando se mostrar firme perante o desespero do marido.

– Não sei, Dentina. Há alguma coisa de ruim acontecendo e pela primeira vez não sei o que fazer.

– Não estou falando disso, e sim o que aconteceu com você? – continuou ela ainda insistindo. – Conheço-o muito bem, Esmalte e sinto cada coisa que você pensa, desde o começo. Por favor, não me diga que está pensando em desistir.

– Pelo que conheço da Cárie, ela irá pressionar para que entreguemos o complexo. E da pior maneira possível – Esmalte estava transtornado. – Diga-me o que poderei fazer para ajudar minha população? Será o fim de Incisivocity se a Cárie assumir a administração da cidade.

– Não sei o que você irá fazer para ajudar os cidadãos de Incisivocity – intimidou-se Sra. Dentina. – Mas tenho certeza de que o “Sr. Esmalte” vai encontrar uma solução para derrubar no-vamente os planos da Cárie de uma vez por todas.

Anipatita olhava temerosa pelo retrovisor, observando Calcin no banco de trás da viatura segurando firmemente Calci-ne que ainda se remexia com as dores das bofetadas do agente. Ela guiava o veículo com toda atenção possível, pois ela mesma havia notado que, enquanto se aproximava dos limites da cida-de, o solo encontrava-se inadequado e escorregadio.

Calcin, mesmo cuidando para que seu detento não tentas-se escapar, reparava espantoso aquele terreno completamente modificado de uma maneira tão rápida. Ficou espantado tam-

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bém na habilidade de Anipatita na direção do veículo, ele mesmo não tinha certeza se conseguiria controlá-lo naquela situação.

– O que está havendo, Calcin? – perguntou a secretária dando golpes no volante. – O terreno está instável demais.

Calcin não quis citar o fato de escolher Anipatita à Incisi-vocity e por alguns momentos ficou pensando em uma resposta menos conflitante do que “Incisivocity estava sendo atacada en-quanto eu a buscava”. Sabia que Anipatita o criticaria duramente e naquele momento o que ele deveria fazer realmente, era che-gar até o prefeito levando Calcine.

– Incisivocity está correndo um grande perigo – disse ele olhando ao redor e imaginando o pior. – As bactérias estão vol-tando para Incisivocity.

– Neste momento, elas já devem estar por toda a parte – completou Calcine em meio a tosses e risos.

Calcin apertou ainda mais o braço de Calcine fazendo o oficial traidor agonizar mais uma vez, contudo não conseguiu tirar de seu rosto o sorriso de deboche. Calcine sabia que Calcin veio ao encontro da secretária ao invés de seguir para a cidade alertar as autoridades sobre o motim que se levantava contra o prefeito.

Quando, mesmo entre derrapadas, o veículo se aproxi-mou de Molares Decíduos Inferiores, Anipatita freou ao perce-ber que a entrada da cidade estava tomada por agentes linfóides que começaram a disparar contra a viatura procurada.

– Calcin! – gritou Anipatita afundando com os pés no freio. – Estão atirando contra nós!

– Passe-me o megafone, Anipatita! – ordenou Calcin.O veículo ainda derrapava na tentativa de frenagem en-

quanto os linfócitos disparavam contra eles. Até mesmo o sor-riso sarcástico havia desaparecido da face de Calcine naquele

momento crucial e Calcin começou a gritar pelo rádio, ecoando do lado de fora da viatura.

– Parem de atirar! – orientava numa tentativa isolada. – Sou o agente Calcin e estou com Anipatita e Calcine. Suspen-dam fogo!

Antes de o automóvel parar por completo, alguns tiros de degermante ainda ricochetearam em sua lataria. Parecia que os agentes linfóides entenderam as palavras de Calcin, pois, além do cessar fogo, começaram a caminhar ao encontro da viatura.

– Estão vindo, Calcin – disse a secretária olhando apreen-siva para os oficiais. – E são muitos.

– Estão à minha procura, Anipatita. – disse Calcin também olhando para fora, um pouco agachado. – Não precisa temê-los. Assim que eu der o sinal, abra a porta e saia correndo na direção deles.

– E você? – perguntou Anipatita assustada.– Pode ficar tranquila, vou sair mantendo Calcine como

refém até que você tente explicar o que de fato está acontecen-do.

Calcin notou também, que além do grande número de ofi-ciais linfóides, Linfon T não estava presente e que, assim sendo, poderia ter maior tempo de persuasão, já que um dos principais responsáveis pela trama contra Incisivocity não tentaria acabar com tudo de uma vez, ao ver que Calcine fora capturado, e pu-desse colocar tudo a perder.

Quando Calcin então piscou os olhos, Anipatita saiu cor-rendo na direção dos agentes que pararam onde estavam para esperar a secretária chegar em segurança.

Um dos linfócitos se aproximou da secretária numa movi-mentação de cobertura, passando por trás dela e voltando com a arma apontada na direção da viatura de Calcin.

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– A senhorita está bem? – perguntou o linfócito ainda mantendo-se na posição de fogo.

Anipatita acenou positivamente com a cabeça olhando para a viatura, tentando enxergar Calcin naquela distância.

– Meu nome é Linfon B, subtenente das forças imunoló-gicas do sistema – disse o linfócito já olhando para a secretária ao perceber que outro agente havia tomado a sua posição de co-bertura. – Estou encarregado do patrulhamento neste setor. A senhorita está em segurança agora.

Anipatita estava tomada pelo medo, imaginando o que aconteceria se Calcine conseguisse se soltar e corresse na mes-ma direção. Talvez os oficiais começassem a disparar impetu-osamente contra Calcin sem esperar um só segundo. Em con-sequência deste pensamento, a secretária começou a dizer sem pensar duas vezes.

– Desculpe-me, tenente...– Subtenente, senhorita – interrompeu Linfon B.– Desculpe-me novamente, subtenente, mas eu já estava

salva antes de sair daquela viatura.– Como assim, senhorita?– Era eu quem estava dirigindo aquele veículo antes de

vocês começarem a disparar contra nós.– Não estou entendendo – respondeu Linfon B atordoado

com as palavras de Anipatita.– Escute, Sr. Linfon B, é uma longa estória – continuou ela

ainda temerosa. – É expressamente importante que o senhor or-dene aos seus soldados para não atirar contra Calcin quando ele sair do veículo segurando Calcine.

– Continuo sem entender a base de sua exigência, senho-rita.

– Calcin é inocente – disse ela rapidamente ao perceber

que a porta de trás da viatura de Calcin começava a se abrir. – Eu estava em poder do agente Calcine e, ao contrário do que todos vão pensar, Calcin está mantendo detido o verdadeiro culpado pelo meu seqüestro.

– Não há lógica nisto, senhorita – disse ele também perce-bendo que Calcin estava saindo do veículo.

– Não importa qual é a lógica agora, senhor subtenente – disse ela agarrando-o com toda força. – O que importa é deixar Calcin se aproximar trazendo Calcine preso.

Linfon B ainda não tinha entendido qual a razão para aquela situação, mas resolveu apostar no desespero da secre-tária, acenando para os demais aguardarem até que ele auto-rizasse um ataque contra Calcin que, naquele momento, vinha se aproximando em passos curtos, empurrando Calcine com os braços voltados para trás.

Momentos de apreensão tomaram conta daquela cena es-tressante, entre Calcin e Linfon B. Ambos se olhavam tensos e cuidadosos como se a qualquer instante um fosse partir para cima do outro como duas feras.

Calcine não perdeu tempo nem oportunidade, enquanto Calcin o empurrava, Calcine gritava por socorro pedindo aos ofi-ciais que disparassem contra Calcin.

– Você só pode estar louco, seu imbecil – respondeu Cal-cin. – Se dispararem contra mim, vão acertá-lo também.

– Esqueçam! – começou a gritar Calcine. – Não atirem agora, ele vai me matar.

Calcin já não estava suportando aquele gesto covarde e ao mesmo tempo atrapalhado de Calcine e a vontade de apertar seu braço aumentava a cada palavra que ele gritava.

– Por favor, senhor subtenente – dizia Anipatita. – Não acredite em uma só palavra deste sujeito.

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Todos os linfócitos estavam preparados para qualquer movimento brusco de Calcin e Linfon B ainda temia que a secre-tária estivesse sob ameaças, motivo pelo qual estava defenden-do o cálcio procurado.

Quando finalmente Calcin se aproximou o suficiente dos linfócitos, soltou Calcine que numa habilidade quase que inespe-rada correu em direção à Anipatita, se posicionando à sua frente e sendo barrado imediatamente por outros dois linfócitos.

Calcin levantou seus braços à altura da cabeça e se ajoe-lhou, enquanto mais dois oficiais se aproximavam dele. Anipati-ta encarava com ódio Calcine, que mesmo seguro pelos linfóci-tos deixava escapar um sorriso asqueroso.

Linfon B se aproximou também de Calcin cuidadosamente e, recolhendo sua pistola calcítica, começou a dizer em bom tom.

– Você tem seus direitos resguardados, agente Calcin. Não diga mais que o necessário, caso contrário poderá ser usa-do contra você em julgamento.

Calcin sabia que nada que dissesse aliviaria sua barra, já que sua busca era ordenada pelo oficial supremo dos linfócitos e que provavelmente ninguém lhe daria crédito naquele instante.

Calcine também estava detido devido à denúncia feita pela secretária, até que ambos fossem levados para averiguação do caso. Linfon B se mostrava firme, mesmo quando todos ti-nham a certeza de que o oficial também estivesse confuso como eles.

O tempo estava passando e até então, todos estavam pa-rados no mesmo lugar, na entrada de Molares, sem dar prosse-guimento à ação de levar Calcin até a delegacia, como seria de costume. Anipatita se mostrava impaciente, pois sabia que Lin-fon B não lhe havia depositado total confiança e também não ordenava para que os outros linfócitos avançassem dentro de

molares, já que o agente procurado havia sido encontrado.– Por que não saímos daqui ainda, subtenente? – pergun-

tou Anipatita percebendo que grande parte dos linfócitos mon-tava guarda do lado oposto, bem na entrada do bairro.

Linfon B não respondia uma só palavra, ficando parado, olhando também na direção dos outros oficiais, que se manti-nham firmes em seus postos.

Calcin já imaginava o que estava se passando, mas aquela demora também lhe afetava os nervos. Incisivocity poderia estar precisando de reforços e aquele batalhão do sistema imunológi-co não movia um só músculo em prol disso.

– São os streptos, não é mesmo Sr. Subtenente? – pergun-tou Calcin chamando a atenção do oficial.

– Como sabe que os streptos tomaram todo o bairro? – perguntou espantado Linfon B.

– Pergunte a este traidor – respondeu Calcin apontando para Calcine, demonstrando raiva nas palavras. – Este monstro estava mantendo Anipatita encarcerada enquanto uma leva des-tas bactérias se movia em direção à cidade.

Linfon B aproximou-se novamente de Calcin e o encarou firmemente. Nunca em sua vida, Calcin esteve tão perto de um Linfócito. Seu rosto dava o dobro do tamanho do rosto de Calcin, aqueles olhos negros penetrantes intimidariam até mesmo a bactéria mais temível e seu porte físico bruto e ao mesmo tempo hábil, não deixaria escapar nem mesmo um atleta.

– Se você estava de porte de uma informação tão delica-da como esta, por que não avisou as autoridades imediatamen-te? – perguntou Linfon B demonstrando se irritar fácil.

– Vocês me dariam o crédito necessário, sendo eu caçado pelos quatro hemiarcos de Incisivocity? – respondeu Calcin de-volvendo o olhar incisivo.

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Linfon B se mostrou sem resposta e voltando-se para Cal-cine, fez um gesto aos demais oficiais para que continuassem segurando-o com toda a força.

– As entradas e saídas da cidade estão tomadas por estes vermes malditos – disse ele sem tirar os olhos de Calcine. – Seja lá o que tenha acontecido, nós fomos induzidos a sair da cidade e agora não temos como regressar. O que me deixa mais pre-ocupado é que a força policicálcio não está totalmente prepa-rada para um ataque em massa destas bactérias e toda a força imunológica destinada à Incisivocity está fora dos domínios da cidade em busca de Calcin.

Capítulo 14

Pela primeira vez, Esmalte estava diante de sua arqui-rival, frente a frente. Quando o prefeito percebeu o grande nú-mero de bactérias que se aproximavam da praça principal de In-cisivocity, sabia que a situação estava agravando-se muito e que talvez nem mesmo a força policicálcio conseguisse uma reação perante o tamanho das forças degradantes da Cárie.

Naquele instante, Sr. Esmalte percebeu também que a Cárie havia mostrado sua face pela primeira vez e se postava a frente das demais bactérias ao lado de Ácido Açucarado e Clos-tridium Botulinium, bem na porção central da praça.

– Desça, Esmalte! – gritou a Cárie em sua gloriosa tática de combate. – Entregue imediatamente Incisivocity se não qui-ser que somente parte dela reste.

Sra. Dentina aproximou-se de Esmalte e, abraçando-lhe pelas costas, pediu ao esposo para que não fizesse o que a Cá-rie estava pedindo. Sr. Esmalte por sua vez respondeu à esposa que não haveria como ficar escondido dentro de seu gabinete enquanto a sua população estava isolada por aqueles vermes, num ato de terrorismo e covardia.

– Tenho que encará-la se quiser realmente saber o que

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ela quer – respondeu o prefeito voltando-se para a esposa. – Vou arrumar alguma maneira para que você e Madame Mielina possam sair daqui em segurança. Quero que sigam em direção à nossa casa e fiquem com o sargento.

– Quero que vá comigo, Esmalte – ordenou Sra. Dentina já temendo a resposta negativa do marido.

– Faça o que o prefeito está pedindo minha cara – inter-veio Madame Mielina. – Tenho dois oficiais à minha espera em um veículo blindado no pátio da prefeitura, logo atrás. Vá e diga a eles que autorizei você ir até sua casa, pegar sua filha, Célion, Dona Célica e Calcion a se retirarem de Incisivocity o quanto an-tes.

– Quero que você vá também, Madame Mielina – comple-tou o prefeito. – Não quero que nada lhe aconteça enquanto ain-da eu estiver no comando deste complexo.

Madame Mielina se aproximou de Sr. Esmalte trazendo nos olhos um brilho fervoroso, do qual ele jamais havia visto em ninguém. Parecia que Mielina já não era a mesma pessoa e o pre-feito sentiu-se completamente intimidado ao perceber que sua ordem não havia agradado-a.

– Sei que ainda está no comando de Incisivocity e que sua autoridade aqui é suprema – disse Madame Mielina en-carando firmemente o prefeito. – Mas desde que Clostridium Botulinium esteja metido nisso, também passa a ser assunto meu. Por isso suas ordens, senhor prefeito, não valerão de nada enquanto eu estiver aqui.

Sr. Esmalte engoliu seco notando que Madame Mielina re-almente estava disposta a enfrentar aquela situação de uma vez por todas e, retornando à esposa, pediu a ela para que fizesse o que Mielina havia dito, em prol da segurança de Amelodentina.

– Então quero que me prometa uma única coisa – pediu

Sra. Dentina olhando bem no fundo dos olhos de Esmalte, sa-bendo que as promessas dele eram como preceitos de honra. – Volte, não importa como, para nós. Além de ser o que você é, quero você de volta como esposo e pai, enquanto você não retornar cuidarei de Amelodentina, com minha própria vida se for necessário, eu lhe prometo.

Sr. Esmalte não sabia se naquelas circunstâncias poderia cumprir aquela promessa. Sabia que a Cárie, além do comando de Incisivocity, também queria a sua queda de uma vez por to-das e ele não estava disposto a entregar a cidade. Contudo, ao olhar para os olhos de Dentina, enxergou aquele antigo brilho de quando haviam se conhecido e desejou jamais perder aquele improvável duelo contra sua inimiga.

– Prometo – disse ele também flamejando os olhos den-tro de Dentina. – Volto e com Incisivocity nas mãos. Eu prome-to.

Aquelas palavras amansaram o coração de Dentina que se sentiu mais segura, uma vez prometido, o marido lutaria até o fim para cumprir o compromisso.

Madame Mielina orientou um oficial policicálcio, que es-tava de vigia na porta do gabinete, a levar Sra. Dentina em se-gurança até o pátio da prefeitura que, naquele momento, ainda estava seguro, já que os muros, além de serem altos, estavam cobertos de policicálcios em vigia total.

Sr. Esmalte ficou observando sua esposa se retirar sem maiores delongas e sentiu um aperto em seu peito, como se aquela fosse a última vez que estivesse olhando para a esposa.

– E agora, o que vamos fazer? – perguntou Dr. Fibrone Júnior que se mantinha de pé próximo à janela olhando uma imensidão de bactérias que apareciam de todos os lados, pelos quatro cantos da praça.

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– Você é a maior testemunha contra Dr. Fibron e Linfon T, doutor – respondeu Esmalte abrindo uma gaveta e retiran-do de lá uma pistola calcítica que mantinha guardada desde que ganhara de presente do sargento Calcion, antes mesmo de ter ganhado o pleito eleitoral. – Por isso, vou pedir para que se mantenha aqui dentro da prefeitura até que as forças linfóides retornem para nos ajudar.

– Isso se elas retornarem – complementou Oncoblasto olhando para Obariloclasto, que se mostrava ansioso por de-mais.

– Vão retornar – disse Madame Mielina toda segura. – Fa-rão de tudo para voltar e acabar com estes vermes.

– E a Liga de Amálgama? Onde estarão eles neste momen-to? – perguntou Cementom lembrando-se daquele corajoso es-quadrão que ajudou as forças de Incisivocity em Molares.

– Desculpe-me decepcioná–lo, Cementom – respondeu Sr. Esmalte. – Mas com certeza eles já devem estar atuando em al-gum dos bairros distantes, como Molares. Sua ação não é efetiva nos bairros Incisivos e Caninos, sendo assim, não vamos poder contar com a ajuda deles aqui no centro.

– Como sabe disso, senhor prefeito? – perguntou espanta-do Obariloclasto.

– Foi a própria Prata quem nos alertou – respondeu o pre-feito novamente olhando para a janela. – Ela disse que fariam sempre o possível para proteger Incisivocity em sua periferia, mas não poderiam garantir jamais a segurança no centro do complexo.

Naquele instante todos olharam pela janela, observan-do ao longe os bairros Molares, tanto os superiores quanto os inferiores, imaginando onde e o quê estariam fazendo naquele instante.

– Será que já estão combatendo estes seres imundos? – perguntou Oncoblasto.

– Creio que sim – respondeu Sr. Esmalte temendo o pior.– Vou descer com você, prefeito – disse Madame Mielina

apoiando uma das mãos no ombro direito de Esmalte. – Quero encarar este meu inimigo que há tempos me persegue por todo o sistema.

– Sinto muito ser justamente aqui que a tenha encontra-do, Mielina – completou Sr. Esmalte decepcionado.

– Teria me encontrado em qualquer outro complexo com maior facilidade ainda, se Incisivocity tivesse sucumbido por estes anos – atenuou Mielina notando a tensão nos ombros do prefeito. – Já está na hora de enfrentarmos nossos fantasmas, não é mesmo prefeito?

Sr. Esmalte simplesmente concordou com a cabeça e am-bos seguiram em direção à porta de entrada do gabinete para juntos encararem seus adversários frente a frente, a fim de es-clarecerem suas verdadeiras intenções.

Calcion havia terminado de vedar todas as entradas do apartamento do prefeito e estava, naquele momento, observan-do por uma das gretas feitas por ele mesmo para vigiar a rua. Alguns odontoblastos ainda corriam em busca de esconderijo ou até mesmo em direção às próprias casas, mas nenhum sinal de invasores por aquelas bandas.

– Onde estão? – perguntou consigo mesmo o sargento.Dona Célica estava próxima das crianças e de vez em

quando buscava o sargento em olhadas rápidas, preocupada com o que estivesse realmente acontecendo. Mantinha-se total-mente controlada no propósito de não assustar ainda mais as crianças.

– Tudo bem aí, sargento? – perguntou Célica em alto e

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bom tom.– Tudo nos conformes, Dona Célica – respondeu Calcion,

mas acenando para que a cementócita se aproximasse dele na-quele momento.

Célica aproximou-se batendo os dedos das mãos uns con-tra os outros, demonstrando sua tensão.

– O que houve? – sussurrou ela sem olhar para trás e aler-tar as crianças.

– Há um veículo da comitiva de Madame Mielina se apro-ximando no final da rua – disse ele também sussurrando. – Pare-ce-me que está vindo para cá. A esta altura os linfócitos também devem estar à minha procura, então, se ele parar aqui no prédio, vou me esconder e vocês se apresentem como se eu nunca esti-vesse estado aqui.

Dona Célica consentiu, mas estava achando muito esqui-sito a aproximação de um veículo do sistema sozinho. Muito ob-servadora, ainda mais com aqueles olhos enormes, ela mesma já havia notado que sempre andavam em comitiva. Pelo menos foi assim quando esteve pela primeira vez em Incisivocity e quando veio, desta última vez, alertada pelo prefeito.

– Será que Madame Mielina está lá dentro? – perguntou Dona Célica também para si mesma.

– Como é que sabe que aquele é o veículo que transporta Madame Mielina? – perguntou Calcion espantado, quando tam-bém percebeu que se tratava do automóvel de transporte mie-lóide, ou seja, de transporte único de Madame Mielina.

– Eu sei – respondeu ela sem querer estender mais a con-versa e despertar novas perguntas. Ela mesma sabia de suas qualidades e não era necessário expô–las a outras organelas.

Quando o veículo parou em frente ao prédio, ambos viram um agente linfócito sair da direção e abrir a porta traseira, de-

sembarcando a primeira dama de Incisivocity.– Sra. Dentina! – disseram ambos espantados quando

viram a primeira dama sair e correr m direção à entrada prin-cipal.

Foram poucos os segundos que levaram para que Calcion corresse até a porta do apartamento e começasse a retirar ca-deiras, tábuas entre outros objetos que vedavam a entrada para que Sra. Dentina pudesse entrar assim que chegasse naquele andar.

Amelodentina já se demonstrava eufórica desde que per-cebeu que sua mãe estava chegando, uma alegria tão intensa que contaminou até mesmo Célion ao seu lado. A mesma euforia não chagava até o coração de Calcion que começou a suspeitar de algum fato aterrorizante, do qual Sra. Dentina pudesse ser mensageira.

Quando finalmente a primeira dama atingiu o andar cor-respondente ao seu apartamento, já encontrara a porta aberta e, sem mesmo parar para cumprimentar o sargento e Dona Célica, correu para os braços da filha como se já estivessem passados anos sem vê-la.

– Vamos, não temos muito tempo! – alertou Sra. Dentina olhando para trás e observando o restante. – Peguem o essencial que puderem e vamos embora daqui urgente.

– Vamos encontrar o papai? – perguntou Amelodentina segurando sua boneca Diamanta, como se ela fosse a única coisa que levaria consigo.

– Papai vai nos encontrar mais tarde, filhinha.Aquilo parecia mesmo ter afetado o sargento que, ao ou-

vir aquelas palavras, engoliu a seco temendo o pior. Pensou que alguma coisa havia acontecido ao prefeito, mas não poderia per-guntar nada naquele momento, já que nem mesmo a primeira

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dama estendeu muito a conversa.Dona Célica também correu em direção ao filho erguen-

do-o do chão e esperando a próxima manobra da Sra. Dentina.– Então vão – disse rapidamente o sargento. – Ficarei dan-

do suporte da janela enquanto descem. Se vir algo diferente, vou gritar da janela e não saiam.

– Não senhor – discordou Sra. Dentina. – O senhor vem conosco. São ordens do prefeito e de Madame Mielina.

Calcion não entendera nada. Ficou parado matutando se aquilo era mesmo uma ordem dada pelo Sr. Esmalte ou se Sra. Dentina estava somente camuflando o pior.

– Tem certeza, Sra. Dentina? – perguntou fazendo uma ex-pressão de dúvida notável para a primeira dama. – Irei em um veículo do sistema imunológico, mesmo nestas circunstâncias?

– Prefiro não tentar entender de que circunstâncias o senhor está falando. O que quero deixar bem claro é que o seu lugar nesta viatura foi cedido pela própria Madame Mielina, en-tão é melhor o senhor não fazer mais perguntas e vir conosco agora.

Assim, todos desceram as escadarias do prédio até o hall de entrada, onde o oficial linfóide esperava por todos. Amelo-dentina foi a primeira a pular para dentro do veículo, seguida por Célion e Dona Célica. Sargento Calcion, ainda desconfiado daquela situação, passou pelo oficial encarando-o, esperando, assim, algum tipo de reação, o que para o seu desapontamen-to não ocorreu. Porém, antes de entrar no automóvel voltou-se para a primeira dama tentando receber alguma informação so-bre o que poderia estar acontecendo, ou acontecido na prefei-tura.

– A situação é um pouco delicada, senhor sargento – res-pondeu Sra. Dentina pausadamente e muito baixinho, olhando

para dentro do veículo no intuito de ver se Amelodentina estava escutando alguma coisa. – A Cárie finalmente apareceu.

– E o prefeito? Não acredito que ainda está por lá.– Pode acreditar, Sargento. Conhece muito bem meu espo-

so e sabe que sua consciência não o deixaria abandonar Incisivo-city, deixando para trás toda a população em risco.

– Mas isso é pior do que abandonar a população.Calcion notou que depois daquele comentário, Sra. Denti-

na abaixou o rosto e ficou calada, demonstrando uma profunda preocupação. Talvez devesse tê-la poupado daquele comentário.

– Eu tenho que ficar, Sra. Dentina. – disse ele enfim. – Te-nho que reunir as forças de policiamento para ajudar o prefeito.

– Acho que não será uma boa ideia – afirmou Dentina. – Sabe muito bem que o sistema imunológico está atrás não só de Calcin, mas do senhor também. Se o pegam por aí, será muito pior.

– É um risco que terei de correr.Sra. Dentina não tentou convencê-lo mais a ir com ela. No

fundo sentiu que Esmalte realmente precisaria mais de Calcion do que ela mesma. O maior problema seria se o sargento fosse preso pelas forças do sistema, aí sim tudo estaria perdido.

– Para onde vão? – perguntou Calcion notando que Sra. Dentina havia se mostrado mais aliviada com a sua persistência em ficar.

– Existe uma saída subterrânea próximo de Caninus Infe-riores. Parece-me que se atingirmos os Vasos Mentonianos, po-deríamos pegar um caminho pelo Canal do Nervo Mandibular e sair do complexo de Incisivocity em segurança.

– Mas a senhora conhece este caminho?– Cementon nos disse que Dona Célica saberia nos expli-

car que caminho seria este – explicou ela olhando para dentro

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do veículo buscando por Célica. – De lá o agente Linfóide conhe-ce o caminho.

Mesmo entre uma faca de dois gumes; defender Dentina ou ajudar Esmalte, Calcion sabia que naquele momento, a deci-são mais plausível seria optar por Incisivocity, uma vez que a Cá-rie já estava atacando o centro do complexo. Sendo assim, espe-rou até que a primeira dama adentrasse no automóvel e partis-se, para começar uma corrida quase que interminável pela rua, entre odontoblastos e apatitas desesperadas até a prefeitura.

A Cárie estava se sentindo realmente satisfeita. Seu plano não havia dado errado em nenhum aspecto e ainda por cima po-deria olhar bem no fundo dos olhos do Sr. Esmalte e humilhá-lo perante todos os que o apoiaram. Clostridium Botulinium, pela primeira vez em muitos anos estava em frente ao seu alvo prin-cipal e depois de eliminar, de uma vez por todas, Madame Mieli-na, chegar até o Sistema Nervoso Central seria moleza.

– Vamos acabar de uma vez por todas com essa palhaçada, Cárie – disse Sr. Esmalte irritado. – O que você quer? O comando do complexo ou a destruição dele?

– Vejamos, meu caro Esmalte – respondeu a Cárie cruzan-do os braços e simulando uma decisão muito difícil. – Acho que as duas coisas estarão de bom tamanho para mim.

– Cárie... Cárie. Lembra-se no início, muito antes de se falar sobre uma formação inicial da cidade, quando lhe propus uma aliança para que juntos construíssemos um complexo perfeito?

– Isso foi há quase seis anos atrás, Esmalte – disse ela. – E juro que não entendi nada naquela época. Um complexo perfei-to?

– Não seria difícil.– Ah, não? – continuou ela. – Então vamos rever os nossos

conceitos. Você quer uma cidade limpa, eu não. Você quer um

complexo forte e pouco dependente do sistema, eu quero exa-tamente o contrário. Você quer uma cidade toda organizada, eu prefiro a desordem. Bem, você realmente achava que um com-plexo estaria perfeito com nós dois no comando? O que lhe fazia pensar assim?

– Você não deve conhecer Intestinópolis, não é mesmo? – interveio novamente o Esmalte. – Lá, as bactérias se interagem com as organelas do complexo e num grau de mutualismo inve-jável entre todos os outros, vivem em harmonia total.

− Você é tão romântico, Esmalte – Ironizou a Cárie. – Tão “zen” que se esquece de que lá é o “fim do mundo”.

– Esmalte tem razão, Cárie – interveio Madame Mielina. – Sempre há uma maneira de organizar as coisas em perfeito equilíbrio.

– Mas não é a minha praia, sua intrometida! – gritou a Cá-rie se irritando com a presença de Madame Mielina.

– Cárie, preste atenção. Veja o que está fazendo! – conti-nuou Esmalte. – Sem Incisivocity nem mesmo você sobreviveria. Por que está querendo sua destruição?

– Escute bem, Esmalte – insistiu a Cárie. – Ou você entrega a cidade, ou então se prepare para o maior massacre da história em todo o complexo.

Madame Mielina puxou Sr. Esmalte para trás, ao perceber que mais bactérias se aproximavam do lugar, e cochichou algu-ma coisa para o prefeito, coisa que a Cárie não pudesse ou con-seguisse escutar.

– Estamos preparados para lutar, Cárie – respondeu o prefeito. – Não terá este complexo de mãos abanando, sem que passe por cima de nossas defesas.

– Suas defesas? – repugnou Clostridium Botulinium. – Por acaso já deu uma boa olhada pelos arredores de Incisivocity,

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Esmalte? Está tudo tomado pelos Streptococos Mutants e por mais que a Liga de Amálgama se esforce em combatê-los pelos bairros Molares, jamais conseguirão detê-los devido à grande desvantagem numérica.

Ao ouvir aquilo, Sr. Esmalte teve a confirmação de sua su-posição em relação à Liga de Amálgama e teve a certeza também de que um terrível combate já estava em andamento pelos arre-dores da cidade.

Depois de dizer algo, também em sussurros para Madame Mielina, ambos partiram em retirada para dentro da prefeitura novamente. Era a cena que faltava para o desfrute da Cárie. Ver seu adversário correr em refúgio era justamente o ápice de sua glória.

– Bom, já vimos o bastante – disse a Cárie voltando-se para Ácido Açucarado. – Pode dar a ordem de ataque aos streptos. Não quero ver um único mineral em pé neste complexo e só vou embora daqui com a certeza de que Esmalte fora derrotado.

Ao atingir novamente a sua sala, Sr. Esmalte certificou-se de quantos policicálcios estavam de prontidão em Incisivocity, por um catálogo dentro de uma gaveta, entregue pelo próprio sargento Calcion no início de seu mandato.

–São muito poucos! – disse o prefeito esmurrando a mesa. – Não temos a mínima chance.

Oncoblasto ficou olhando pela janela estarrecido ao ver que as bactérias avançavam dentro de lojas, casas e centros ban-cários com uma voracidade terrível.

Fibrone Júnior, ao lado de Obariloclasto, empunhava um longo castiçal que havia encontrado em uma das salas da pre-feitura, como se estivesse pronto para atacar qualquer um que fosse ao seu encontro.

Cementon e Oncoclastos se mantinham sentados com as

cabeças baixas, demonstrando certo desânimo perante aquela absurda situação.

Estava armada uma verdadeira guerra dentro de Incisivo-city. Viaturas passavam correndo por todos os lados do comple-xo e, por onde se via, havia bactérias pichando muros, quebran-do vidraças e tombando portas. Podiam-se ouvir gritos aterrori-zados por todos os cantos.

Muitos dos policicálcios montavam barreiras entre as ruas na tentativa de conter o avanço dos streptos, porém mui-tas barricadas tombavam com o ininterrupto avanço daquelas bactérias.

Mesmo com os enormes portões da prefeitura fechados, as bactérias tentavam arrombá-los com toda a fúria o que fazia com que os policicálcios que tentavam segurar o portão recuas-sem aos poucos.

Algemados, Calcin e Calcine se entreolhavam em fúria no banco de trás da viatura principal, que era conduzida por Linfon B, avançando pelas ruas, já sujas, de Molares Inferiores. Anipati-ta vinha logo atrás em outro veículo, tentando, ainda, esclarecer os tópicos do ocorrido há pouco na região do Trígono Retro Mo-lar. Contudo, os oficiais linfóides somente a olhavam pelo retro-visor sem demonstrar nenhum interesse nas palavras da moça.

Era um total de quatro veículos conduzidos por agentes linfócitos e seguiam pelas ruas bem devagar, alertas pelo risco eminente de um ataque bacteriano. Linfon B se mostrava pre-ocupado, não só com aquela nova situação de perigo, mas tam-bém com a segurança de Madame Mielina.

– Você ainda acha que eu tenho alguma coisa a haver com isso, oficial? – perguntou Calcin olhando também para fora, em um momento de trégua com Calcine. – Condenaram-me por cau-sa do sumiço de Calcine e Anipatita, mas ambos estavam a salvo

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desta situação toda. Qual seria então a razão para que os manti-vessem fora da área de risco de um ataque de bactérias?

– Desviar a atenção das autoridades para atacar sem difi-culdades – respondeu Linfon B.

Calcin estava quase de pé no banco de trás quando um dos oficiais, o que estava ao lado de Linfon B, o cutucou com um cassetete fazendo com que o agente caísse sentado novamen-te se encurvando da dor. Calcine, naquele instante, não conteve uma rápida gargalhada ao perceber que Calcin estava perdendo a cabeça.

– Então, Linfon B – continuou Calcin, ainda sentindo o rá-pido golpe. – Não há lógica nesta suposição.

– Não há lógica em nada, Calcin. Nem mesmo nas acusa-ções de Anipatita – respondeu o subtenente linfóide olhando para os altos muros já demonstrando sinais de rachaduras.

Calcin pensou em responder novamente, mas percebeu que não estava adiantando muita coisa. Calcine já não o enca-rava mais, mas estava certo de que em pouco tempo os streptos atacariam e poderia sair dali para se esconder novamente.

Não havia ninguém naquelas ruas e Calcin pôde notar que as casas estavam todas arrombadas e que ninguém poderia estar dentro delas. Os moradores de Incisivocity sempre foram bastante ariscos, mesmo quando o risco não era produzido por bactérias, e com certeza estariam correndo para regiões mais seguras naquele instante. O problema era justamente em qual região poderia se acreditar estar mais segura?

– Não podemos avançar senhor subtenente – disse Calcin. – Somos alvos fáceis neste lugar.

– Disso eu sei agente – respondeu Linfon B. – Mas não te-mos outra opção. Temos que chegar ao centro do complexo o quanto antes.

Calcin arriscou uma última pergunta antes de tentar le-vantar alguma acusação.

– Onde está o delegado, senhor subtenente?Linfon B olhou pelo retrovisor e ficou encarando o agente

por alguns instantes, antes de responder. Achou bastante esqui-sita a pergunta do agente já que o delegado andava muito estra-nho de uns tempos para cá.

–O delegado Linfon T não se encontra em Incisivocity, se é o que deseja saber, agente Calcin – respondeu Linfon B um pouco desconfiado. – Do que está suspeitando, agente?

Linfon B era um linfócito muito esperto e talvez já esti-vesse levantando algumas suspeitas também em relação ao de-legado, mas Calcin optou pelo silêncio, aguçando ainda mais a curiosidade do subtenente.

Mas naquele mesmo instante em que Linfon B matuta-va sobre suas desconfianças, um grupo volumoso de bactérias apareceu bloqueando a rua pela qual seguiam as viaturas e em poucos segundos partiu para cima dos veículos como um bando de loucos.

– Engate a marcha ré! – gritou Calcin.– De jeito nenhum – respondeu Linfon B acelerando. – Vou

atropelá-los como verdadeiros vermes que são.– Irão nos massacrar do mesmo jeito! – insistiu o agente.

– Recue!– Deixe de ser covarde, Calcin – Calcine provocou. – Va-

mos passar por cima de todos.– Você é que está sendo idiota! – retrucou Calcin. – São

inúmeros streptos. Não vamos conseguir.Mesmo assim, Linfon B acelerou ao máximo abrindo uma

verdadeira clareira entre os primeiros streptos que avançavam, mas não conseguindo prosseguir mediante o estrago que esta-

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vam fazendo ao veículo e parando poucos metros depois.Calcin, algemado, mal conseguia se movimentar, enquan-

to observava as bactérias balançar o veículo de um lado para outro num alvoroço sem limites, enquanto Calcine, tranquilo, esperava o momento certo de ser libertado por elas.

Linfon B começou a disparar com uma semi-automática carregada de interleucina, munição capaz de afetar as mais te-míveis bactérias em todo o sistema, fazendo com que os primei-ros vermes tombassem do lado de fora.

–Não tenho munição suficiente para atacar todas elas – gritou Linfon B enquanto disparava.

O outro linfócito também começou a atacar as bactérias que se aproximavam do veículo, porém, mesmo naquela situ-ação sufocante, Calcin se preocupava com a viatura que vinha atrás deles. O mesmo veículo que trazia Anipatita.

– Por favor, solte-me – disse Calcin se levantando e pon-do-se de costas mostrando as mãos atadas pelas algemas. – Vou tentar sair pelo vidro de trás e assim poderemos fugir para os outros veículos.

Naquele momento, somente a viatura que levava Calcin e o subtenente estava sendo atacada e o agente percebeu que poderiam ter uma chance se conseguissem escapar pelo vidro de trás.

Mesmo ocupado em efetuar os disparos, Linfon B acabou cedendo à estratégia de Calcin, vendo naquele plano o único meio de saírem ilesos daquela crítica situação.

– Continue disparando, soldado – ordenou Linfon B para o outro linfócito que continuava sua empreitada. – Aproxime-se mais, Calcin. Vou libertá-lo.

Sem perder tempo e após ter sido libertado pelo subte-nente, Calcin quebrou o vidro traseiro com alguns pontapés e

pulando para o lado de fora gritou para os outros integrantes do veículo para que fizessem o mesmo.

Mesmo atirando para todos os lados, Linfon B conseguiu pular para o banco de trás juntamente com o outro oficial.

– Vamos, vou libertá-lo também – disse Linfon B para Calcine que continuava estático.

Calcine olhava para Linfon B com uma expressão muito esquisita, demonstrando-se totalmente despreocupado com a ação das bactérias contra os oficiais e pela primeira vez o subte-nente teve a sensação de que Calcin poderia ser realmente ino-cente de todas as acusações feitas a ele.

– Você não virá conosco? – perguntou novamente Linfon B sem obter resposta de Calcine.

Sem sucesso nas tentativas de retirar Calcine do veículo, Linfon B pulou para fora da viatura logo depois que o outro lin-fócito tinha saído e enquanto corria, olhava para trás indignado com a atitude daquele cálcio que, ao mesmo tempo em que se tornava explicável, era a mais maluca de todas as reações.

– Ainda bem que conseguiram sair – disse Anipatita abra-çando Calcin. – Pensei que fosse o fim para vocês.

– Parece que o fim chegou foi para Calcine – respondeu Linfon B se aproximando ainda perplexo com o ocorrido. – Se-nhorita Anipatita, quero que me diga exatamente o que ocor-reu naquela noite em Incisivocity – e apontando para o linfócito que estava na direção da nova viatura ordenou rapidamente. – E você, avise os outros dois veículos atrás para darem marcha ré na maior velocidade que conseguirem. Vamos dar o fora daqui.

– E para onde vamos? – perguntou Calcin.– Vamos atingir a região do Nervo Alveolar Inferior e par-

tiremos de encontro ao Sistema Nervoso Central – respondeu o subtenente olhando em volta preocupado com um novo ataque

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de bactérias. – Tenho algumas suspeitas que poderão ser forta-lecidas com o esclarecimento de Anipatita. Poderemos também reunir reforços para retornar à Incisivocity com força maior. A única coisa que me preocupa no momento é a segurança de Ma-dame Mielina que ainda se encontra no centro do complexo.

– E também Sr. Esmalte – acrescentou Calcin.– Podem não acreditar – concluiu Anipatita. – Mas o que

mais me deixa preocupada com esta situação, muito mais do que a Madame Mielina e o senhor prefeito, é a segurança da menina Amelodentina. Tão frágil perante estes asquerosos vermes.

Enquanto recuavam, ainda na primeira viatura, Calcine permanecia parado esperando ser libertado pelos streptos que continuavam a destruir o veículo, até que um deles arranca a porta de trás e atira Calcine para fora, fazendo com que o cálcio caísse próximo ao meio fio da estreita rua.

– Já estava na hora – disse Calcine se remexendo tentando se levantar. – Achei que jamais me tirariam daquele veículo.

– O que você está pensando que faremos? – perguntou o strepto que havia retirado Calcine do veículo, e por sinal o maior deles.

– Ora, não seja estúpido. – respondeu o cálcio pondo-se de pé e mostrando as algemas para a bactéria. – Retire logo isto de mim, que ainda temos de alcançá-los.

– Alcançar quem? – perguntou a bactéria com uma voz rouca e um hálito horroroso.

– Aqueles imbecis que acabaram de atacar, seu idiota! – Calcine continuou retrucando. – Eles tentarão de qualquer ma-neira entrar em Incisivocity.

– Em primeiro lugar, não somos idiotas – começou o strepto demonstrando estar furioso. – Em segundo lugar, não estamos preocupados com aqueles linfócitos e nem na tentativa

deles entrarem no complexo, já que está todo dominado; e por último não vamos tirar estas algemas de você.

Calcine arregalou os olhos atônito.– Se foi capaz de trair sua própria espécie, imagina do

que seria capaz de fazer às outras – continuou a bactéria. – Não temos uma boa impressão de você, seu cálcio ridículo. E pode ter certeza de que de Molares, você jamais irá sair.

Recuando em direção à saída da cidade novamente, as viaturas restantes seguiram rumo à região do Ramo Mandibular, pretendendo partir em direção ao Sistema Central para buscar alguma solução.

Calcin, abraçado à Anipatita, observava Incisivocity ficar para trás enquanto as viaturas partiam a toda velocidade, com a sensação de que jamais veria aquele cálcio traidor novamente e temendo que o mesmo que ocorresse a ele, viesse acontecer também com outros cidadãos inocentes em todo o complexo.

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Capítulo 15

As armas calcíticas não estavam dando conta de deter todas as bactérias que se aproximavam dos portões e todos os policicálcios, que dentro da prefeitura restavam, sabiam que os portões iriam ceder muito rápido.

– Senhor prefeito, estamos ficando sem munição – gritou um oficial em uma das janelas da porção superior da prefeitura.

– Estamos precisando de mais calcitina – voltou-se o pre-feito para Oncoblasto que se posicionava na porta de entrada do gabinete.

Mais que depressa, o administrador saiu correndo em di-reção ao centro administrativo de policiamento, que mantinha uma divisão dentro da própria prefeitura, seguido por Oncoclas-tos e Obariloclasto.

Madame Mielina estava em outra área da prefeitura, acompanhada de Dr. Fibrone e mais três oficiais policicálcios, averiguando o isolamento de todas as entradas do prédio. Quan-do encontrava alguma janela ou porta que ainda se mantinha aberta ou mesmo sem ser lacrada, imediatamente providencia-vam seu vedamento por completo. As únicas janelas que per-maneciam abertas em toda a prefeitura eram as que serviam

de barricada dos oficiais policicálcios e a do gabinete principal, onde Sr. Esmalte, também, de porte de uma espingarda calcítica, efetuava disparos e enviava ordens aos demais oficiais.

– Atenção oficial do terceiro andar – gritou o prefeito ao perceber que um número maior de streptos se ancoravam junto aos demais no portão de entrada da prefeitura. – Feche sua janela e desça para um andar mais baixo. Dê suporte aos oficiais que se mantêm na portaria

Era exatamente onde a situação estava mais complicada naquele momento, e Sr. Esmalte tinha que manter a entrada principal ainda vedada se quisesse ter alguma chance naquela desvantajosa batalha.

Quando Oncoblasto retornou, Sr. Esmalte lhe entregou a espingarda e pediu-lhe que se aproximasse da janela.

– Nunca atirei nem pedaços de papel nos outros, senhor prefeito – disse Oncoblasto com as mãos trêmulas. – Como o se-nhor espera que eu derrube Streptococos Mutants?

– Pense nos demais cidadãos que estão pelas ruas, meu amigo – respondeu o prefeito. – Pelo menos é o que está me dan-do coragem de abater algumas destas bactérias covardes.

Oncoblasto se aproximou da janela, ainda tremendo e em-punhou todo sem jeito a arma nos ombros. Fechou um dos olhos e tentou mirar em uma das bactérias que estava mais perto. Quando percebeu que não havia mais jeito e que realmente teria de atirar, acabou fechando os dois olhos e apertando o gatilho.

– Eta, porcaria! – gritou o odontoblasto depois de ouvir o barulho do tiro que acabara de disparar.

Quando abriu os olhos, estava sentado no chão com a espingarda ainda posta em seu ombro e mais que depressa se colocou de pé e correu novamente em direção à janela, se assus-tando ao averiguar que a mesma bactéria mirada por ele, antes

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de atirar, estava agora a metros de distância dos portões, abatida junto à calçada.

– Upa! – gritou ele novamente. – Esta é por todos os odontoblastos que estão vivendo este dia de penumbra.

Obariloclasto havia então acabado de chegar ao gabine-te, trazendo mais munição calcítica e acabou se estarrecendo ao ver Oncoblasto na janela, mais parecendo um dançarino de balé do que um atirador.

– O que eu perdi? – perguntou Obariloclasto sem tirar os olhos de Oncoblasto.

– Bom, até agora você só perdeu o tombo dele – respon-deu o prefeito procurando por Oncoclastos que ainda não havia chegado. – Onde está o odontoclasto?

– Oncoclastos subiu ao terraço levando um canhão de calcitina – respondeu Obariloclasto piscando bruscamente os olhos a cada disparo do administrador, que parecia agora estar se divertindo, como se estivesse numa barraca de tiro ao alvo.

– Droga! – respondeu o prefeito saindo correndo da sala. – Tenho que impedir que ele caia lá de cima tentando efetuar algum disparo com aquela coisa.

Sr. Esmalte saiu em disparada em direção ao terraço, dri-blando pequenas mesinhas, enfeites, entre outros objetos que encontrava pelos corredores e escadarias. Realmente estava preocupado com a possibilidade de Oncoclastos não conseguir controlar um canhão de calcitina.

Acabou chegando a tempo do odontoclasto não começar a disparar e, de súbito, se atirou próximo à Oncoclastos fazendo o mesmo dar um pulo de susto.

– Prefeito! – disse assustado ao ver Esmalte. – O que está fazendo aqui em cima?

– Eu é que lhe pergunto.

– Ora, vou tentar fazer alguma coisa pra ajudar. – disse Oncoclastos se aproximando novamente do canhão.

– Por algum acaso já viu uma destas armas em ação, On-coclastos?

– Eu estava em Caninus naquela movimentação de odon-toclastos, quando os policicálcios chegaram com estas coisas – começou Oncoclastos a mexer no aparelho enquanto conversa-va. – Não deve ser tão difícil assim.

− Naquele dia, os policicálcios não dispararam nenhuma gota de calcitina destes canhões – interveio novamente Sr. Es-malte.

− Por que o senhor não deixou.− Então... você ao menos tem noção do que vai acontecer

se disparar?− Uma grande parte destes bichos será derrotada – res-

pondeu ainda procurando o botão de gatilho.− Ora, Oncoclastos! Você não está achando nem o gatilho

do instrumento. Quando você disparar isso, sairá voando para trás como se fosse um foguete. Tem ideia do que poderá lhe ocorrer se cair lá embaixo.

Oncoclastos arregalou os olhos imaginando aquelas bac-térias ao seu redor. Aos poucos foi se afastando do armamento com um sorriso amarelo no rosto.

Sr. Esmalte aproximou-se do parapeito a fim de avaliar a situação lá embaixo. Eram realmente numerosos e, a cada ins-tante, parecia que mais bactérias apareciam. Esmalte também pôde ver algumas das ruas próximas à prefeitura e viu que ou-tros policicálcios haviam armado barreiras pelas entradas das ruas, contudo não seria uma empreitada que levaria sucesso por muito tempo.

Os odontoblastos e apatitas se uniam aos odontoclastos,

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também em repressão aos agressores. Muitos deles estavam em cima de varandas ou até mesmo de telhados arremessando ob-jetos para baixo numa tentativa ininterrupta contra os streptos.

– A que ponto chegamos! – disse o prefeito com as mãos à cabeça. – Está tudo de cabeça para baixo.

– A coisa está pior ainda para o sargento – comentou On-coclastos que estava em outra parte do parapeito, também ob-servando a cidade.

Ao ouvir o comentário, Sr. Esmalte sentiu até mesmo seus cabelos arrepiarem, como se um trovão houvesse arrebentado os céus com toda a fúria e correu na direção de Oncoclastos, chegando rapidamente ao parapeito oposto quase caindo com a trombada.

E Sr. Esmalte conseguiu ver, em uma rua mais estreita, Calcion correndo a todo o vapor seguido por um batalhão de Ac-tinomyces. Era a visão que faltava para que o prefeito entrasse em pânico pela primeira vez.

Antes daquele momento, ele tinha a certeza de que o sar-gento já estaria a caminho do sistema central junto com sua es-posa e filha, mas em questão de segundos tudo havia mudado. Lá estava Calcion, enrascado, correndo de uma leva de bactérias perigosas.

– Fique aqui, Oncoclastos e assim que eu der o sinal, grite pelo sargento – ordenou Sr. Esmalte.

– Que sinal? E aonde o senhor vai? – perguntou sem en-tender nada.

– Aquela rua vai dar direto no estacionamento da prefei-tura – explicou o prefeito. – Lá deve ter alguma escada, pois os muros são altos e é o único lugar no qual as bactérias ainda não tentaram invadir.

Era o local também que serviu de fuga para Sra. Dentina

e Sr. Esmalte sabia que teria de ser muito rápido, pois, logo após conseguir colocar o sargento para dentro, o lugar iria se infestar de bactérias.

– Dá facilmente para me ver daqui de cima – continuou Esmalte. – Quando me vir jogar a escada para o outro lado do muro, grite para o sargento.

Oncoclastos ainda parecia meio aéreo, mas no fundo con-seguiu entender o propósito da coisa. Sr. Esmalte não ficou para tentar esclarecer ainda mais, pois o tempo não era seu maior aliado naquele instante e seguiu descendo toda a escadaria, numa esperteza quase que infanto-juvenil, sem dar atenção aos outros guardas que subiam em direção aos outros postos de combate.

Calcion já não possuía munição naquele momento e não lhe restava muita alternativa a não ser correr para chegar a tem-po na prefeitura, coisa que parecia não ter dado certo também, pois havia bactérias por todos os lados no centro do complexo.

Ao chegar numa pequena rua que dava para a parte de trás da prefeitura, o sargento já tinha uma legião de bactérias ao seu encalço e a cada passo que dava lhe escapavam esperanças de chegar a salvo em algum lugar, até poder ver alguém acenan-do pelo terraço da prefeitura.

À medida que se aproximava, o sargento notava que quem estava lá em cima, aos berros, era Oncoclastos. Não podia escu-tar o que o odontoclasto dizia, mas pôde perceber que apontava para a alta mureta do lado esquerdo, de onde acabava de cair uma escada muito frágil.

Era a única alternativa naquele momento tão sem expec-tativas, e Calcion adiantou ainda mais sua correria, numa tenta-tiva ofegante de chegar a tempo de pular pelo muro e dar sumiço na escada.

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Quando chegou ao local, ergueu do chão a velha escada e pôs-se a subir, notando também que à medida que subia, os degraus iam se quebrando embaixo.

– Só faltava essa! – resmungou para si mesmo.Mesmo assim não desistiu de prosseguir, chegando ao

topo do muro e debruçando-se na tentativa de recolher a esca-da. Conseguiu trazer somente parte dela, já que, quando as bac-térias chegaram ao mesmo lugar, tentaram segurá-la, fazendo com que a escada se partisse no meio.

– Pule logo, sargento! – Gritou o prefeito ao ver que Cal-cion tentava golpear alguém do outro lado.

Calcion sentiu um grande alívio ao ouvir a voz do prefeito e neste instante pulou para o lado de dentro caindo próximo a Esmalte.

– É melhor o senhor entrar. Não vai demorar nada para estes Actinomyces conseguirem pular para cá – disse Calcion se levantando.

– Então é melhor entrarmos nós dois e tentarmos bloque-ar a porta dos fundos – respondeu o prefeito.

Calcion esperou o prefeito passar pela porta e, agarran-do uma barra próxima a um armarinho encalçou a fechadura da porta travando sua abertura. Sr. Esmalte ainda empurrou uma cadeira para dar suporte ao bloqueio e logo depois ambos saí-ram correndo em direção ao terraço.

– Oncoclastos posicionou um canhão de calcitina lá em cima – disse o prefeito enquanto corria.

– Quem está lá com ele? – perguntou o sargento já temen-do por algo sério.

– Ninguém, mas pode ficar tranquilo que ele não irá acio-nar o canhão – respondeu o prefeito reconhecendo o temor do sargento. – Mas foi por pouco.

Chegando lá, encontraram o odontoclasto pulando como se estivesse com pulgas na vestimenta, sinalizando em direção ao pátio de estacionamento.

– Estão conseguindo! – disse Oncoclastos ainda pulando.Sargento Calcion observou os Actinomyces se amontoan-

do em forma de escada, formando degraus para que os outros conseguissem subir.

– Rápido, passe-me este canhão agora! – ordenou o sar-gento para o odontoclasto.

Oncoclastos trouxe, empurrando, o canhão para perto do sargento, que imediatamente começou uma sequência de mano-bras na arma, completamente esquisitas para o odontoclasto e para o prefeito.

– E você pensando que o negócio era fácil – Sr. Esmalte não perdeu a oportunidade de criticar Oncoclastos.

Depois daquele ritual todo, sargento Calcion pediu para que os outros dois se abaixassem, sendo obedecido sem ques-tionamentos. Vendo que tudo estava seguro, Calcion também se afastou do artefato e abafou as orelhas.

A explosão foi certeira. Quando Sr. Esmalte levantou seus olhos em direção ao armamento, notou que o mesmo havia se afastado do parapeito e que Calcion já se apossava do instru-mento recomeçando aquela movimentação.

– Caíram todos – disse Calcion enquanto rearmava o ca-nhão. – Mas vão tentar novamente. Tenho que ser rápido.

Sr. Esmalte, mesmo sabendo da ocupação do sargento, não pôde se aguentar em curiosidade sobre o que havia aconte-cido para que Calcion estivesse de volta à prefeitura.

– Pode ficar sossegado, senhor prefeito – respondeu o sargento. – Sra. Dentina conseguiu embarcar com sua filha e já devem estar a caminho do centro do sistema.

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– E por que o senhor não foi com elas? – perguntou o pre-feito.

– Não conseguiria ficar tranquilo um só segundo, sabendo que não estariam em segurança – respondeu o sargento atiran-do mais uma vez com o canhão.

– Desculpe-me ser tão sincero, senhor sargento, mas não acho que adiantou muita coisa não – interveio Oncoclastos. – Um cálcio a mais ou a menos, diante deste exército de bactérias não está levando vantagem nem desvantagem a ninguém.

Sr. Esmalte olhou com repreensão para o odontoclasto que ao perceber a gafe, tentou se redimir.

– Bom, pelo menos o canhão de calcitina está disparando, né? – tentou consertar Oncoclastos todo sem graça.

– Ora, por favor! – respondeu o prefeito – Não perca tem-po em ficar falando, vamos agir, sim.

Era uma via de circuito rápido, e vários veículos seguiam para o mesmo local, sem voltas. Todo o fluxo seguia em uma úni-ca direção, e em certos trechos os veículos aceleravam mais que em outros. Calcin estava abraçado à Anipatita, admirado com aquele trânsito tão espetacular.

Linfon B estava sério e fixo com um olhar distante, Ani-patita notava que aquilo tudo que se mostrava novo para ela e Calcin, já devia ser bastante comum ao subtenente.

– Onde estamos senhor subtenente? – perguntou Anipa-tita sem olhar para Linfon B, ainda surpresa com aquela estrada cheia de veículos de todos os tipos.

– Estamos pegando o fluxo da Artéria Jugular, em sentido à Cerebrópolis – respondeu Linfon B coçando o nariz. – Engraça-do, está mais quente do que de costume.

Linfon B realmente se mostrava com uma intensa sudo-rese, mas Anipatita somente pôde notar depois do comentário

do linfócito. Calcin, todo alucinado, notava que às vezes eram ultrapassados por veículos maiores e muito rápidos, o que fazia com que ele se encostasse no vidro, quase que querendo pular para fora, a fim de acompanhá-los.

– O que são estes veículos maiores? – perguntou Calcin com o rosto grudado ao vidro da viatura.

– São Macrófagos – respondeu Linfon B, agora olhando também pelo pára-brisa. – São veículos de combate bastante efi-cientes. O que está me deixando grilado é o fato de que muitos já passaram por nós e parece que seguem em sentido oposto da Jugular.

– Estão entrando na próxima direita, subtenente – res-pondeu o oficial que estava na direção. – Sentido da Artéria Al-veolar Superior.

Calcin voltou sua atenção à Linfon B um pouco assustado com aquela afirmação.

– É o caminho de entrada para os bairros superiores de Incisivocity! – disse ele. – Será que o Sistema Nervoso Central já está sabendo de alguma coisa?

– Pouco provável, Calcin – respondeu Linfon B. – Ainda mais porque Madame Mielina ainda está na cidade. Não há a mí-nima possibilidade de o Sistema Nervoso Central suspeitar de alguma coisa sem os relatórios dela.

– Então, para que um veículo de combate tão avançado esteja por estes lados... – ia concluir Calcin até ser interrompido pelo próprio subtenente.

– Já deve haver vazão de bactérias para o fluxo do siste-ma.

As três viaturas, que seguiam sentido à Cerebrópolis, já estavam se preparando para entrar no trecho que levaria à Arté-ria Jugular quando um quarto veículo oficial se aproximou pela

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direita em alta velocidade, chamando a atenção do subtenente.– Parece que outra viatura conseguiu sair de Incisivocity

– comentou Linfon B tentando identificar o veículo.Por alguns instantes, Anipatita cismou em ter visto Ame-

lodentina refletida no vidro lateral da suposta viatura, porém, eram tantos outros veículos que transitavam por aquele lugar que a própria apatita pensou estar enganada.

Assim, os quatro veículos tomaram o caminho da Jugular entrando em um fluxo maior ainda que o do canal alveolar, o que fez Calcin suspirar de emoção. Nunca em sua vida fora além das fronteiras de Incisivocity e agora estava em um universo com-pletamente diferente do seu, e iriam muito mais longe ainda.

– Puxa! Estava muito quente antes de entrarmos nesta via – exclamou Anipatita ainda tentando observar o veículo novo, porém sem sucesso, já que havia se adiantado.

– E isso não é normal – explicou Linfon B.– Como assim? – perguntou Calcin.– Estes aquecimentos são recursos que o próprio siste-

ma lança para poder facilitar a ação das tropas de combate em áreas de conflito intenso – continuou Linfon B. – Incisivocity é o complexo mais novo de todo o sistema e isso explica o fato de vocês não entenderem o que realmente ocorre. Antes mesmo de Incisivocity, vários outros complexos receberam cargas bac-terianas de alta destruição. Parece que esta gana por domínio do sistema é coisa muito antiga e o sistema descobriu que à medida que se envolve em conflitos, maior aumenta seu reconhecimen-to genético sobre estes seres, o que nos torna muito mais fortes. O aquecimento das áreas de conflito é um recurso usado para poder eliminar as bactérias menos resistentes.

– Mas em Incisivocity ainda não houve modificação de temperatura – respondeu Calcin tentando assimilar os aconte-

cimentos.– Isso porque o sistema ainda não reconheceu as bacté-

rias ofensivas de Incisivocity. Nós linfócitos ainda não entramos em contato direto com esses seres, e nem conseguimos capturar nenhum deles para análise.

– Como poderíamos capturar um Streptococos ou um Ac-tinomyce? – Calcin se mostrava curioso. Talvez a resolução dos problemas estivesse próxima de ser descoberta.

– Lembra-se daqueles veículos que nos ultrapassaram no canal alveolar? – continuou Linfon B. – Pois é. São veículos de combate ultra-eficientes pelo fato de, além de combater, captu-rar bactérias em todo o sistema.

– E como poderíamos levar um deles para Incisivocity? – Calcin se demonstrava realmente animado.

– Sem autorização do Sistema Nervoso Central? Nunca! – respondeu o subtenente voltando sua atenção novamente à estrada.

Calcin encarou firmemente Anipatita com uma expressão de euforia, contaminando até mesmo a secretária, que já imagi-nava estar Calcin planejando algo muito importante.

– É a nossa chance de ajudar Incisivocity, querida – disse ele apertando as mãos de Anipatita.

– O quê? Vamos roubar um destes veículos? – interrogou Anipatita não entendendo direito.

– Basta o Sistema Nervoso Central nos dar autorização. Eu conheço como agem essas bactérias e sei como capturá–las.

– Está pensando na Liga de Amálgama? – raciocinou Ani-patita.

– Você é ótima, linda! – respondeu Calcin quase dando um pulo dentro da viatura. – O único problema será chegar até eles. Mas com os linfócitos do nosso lado, acho que não será tão com-

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plicado assim.– Você é que pensa – comentou sorrateiramente Anipa-

tita, – Pelo que sei de Sistema Nervoso Central, é que se trata de um governante justo, porém muito impaciente e soberano, ainda por cima. Não pense que vamos conseguir chegar até ele assim tão fácil. Nosso amiguinho subtenente está somente le-vando acusações sobre o delegado. Há dias que ele foi designa-do para agir junto ao Linfon T somente para estudar suspeitas sobre ele.

– Como é que você sabe disso?– Prestei atenção na conversa destes dois linfócitos aí – e

Anipatita apontou com os olhos para o Linfócito que dirigia e o outro que estava mais atrás no banco. – Seremos meras teste-munhas de acusação, pode apostar.

Calcin ficou observando para os lados, prestando aten-ção se alguém estava escutando sua conversa com Anipatita e ao concluir que todos estavam simplesmente atentos ao trajeto, sussurrou o mais baixo possível.

– Vamos tentar chegar até o Sistema Nervoso Central.– Está maluco? – respondeu a apatita ainda mais baixo do

que o cálcio.– Está comigo ou não?Anipatita também se certificou de que todos não estives-

sem ouvindo e confirmou com a cabeça. O resto da trajetória até Cerebrópolis foi muito mais rá-

pido, cada vez mais passando por lugares inusitados, porém majestosos aos olhos de Calcin e Anipatita. Não demorou muito para que as primeiras luzes, de um lugar fascinante, começas-sem a ser vistas pelos tripulantes daqueles quatro veículos ofi-ciais, talvez o que poderia ser a única salvação para Incisivocity.

Madame Mielina conseguiu chegar até o segundo andar,

guiada por alguns policicálcios, com certa dificuldade. Quando estava lacrando uma das poucas janelas que ainda não estavam fechadas no andar térreo da prefeitura, um estalo a fez cair para trás, perto de uma pequena poltrona no canto do hall. Naque-le instante, poderia ter sido o seu fim se não fosse por Obarilo-clasto e Fibrone Jr. que conseguiram chegar até ela a tempo de puxá–la na direção oposta aos streptos, que começavam a entrar pela janela. Pouco tempo então restou para que os poucos poli-cicálcios que tentavam amparar a porta de entrada também se afastassem correndo e chegassem até Madame Mielina, socor-rendo-a. Fibrone Jr. foi o primeiro a subir correndo as escadas e ficar posicionado na plataforma do primeiro andar. Com a ajuda de Obariloclasto, empurraram uma grande estante, que manti-nha pequenos troféus de honra ao mérito ganho por alguns dos funcionários do sistema municipal, até o último degrau que, depois de esperarem os policicálcios passarem com Madame Mielina, empurraram o móvel, bloqueando, temporariamente, as escadas. Fizeram quase a mesma coisa no segundo andar, só que desta vez usando uma mesa de mineral bastante reforçada, o que daria mais tempo aos fugitivos até ser removida.

O segundo andar era exatamente onde estava o gabinete do prefeito, e onde ainda estava, aos disparos, Oncoblasto.

– Vamos subir, Oncoblasto! – anunciou Obariloclasto se aproximando do administrador próximo à janela. – Os streptos conseguiram invadir a prefeitura.

– E agora! – exclamou Oncoblasto encerrando seus dispa-ros. – O que vamos fazer?

– Vamos para o terraço – respondeu Obariloclasto. – Lá, a única escada de acesso é na vertical e fácil de desprender-se. Se chegarmos a tempo, poderíamos derrubá-la e ficar isolados no topo da prefeitura.

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Assim sendo, Oncoblasto saiu correndo em direção à Ma-dame Mielina para poder ajudá-la também, mas ao perceber que ela já se recompunha de algo do qual resolveu não perguntar, começou a subir juntamente com os demais companheiros es-cadaria acima.

Não foi difícil fazer como havia explicado Obariloclasto, e assim, ao terminarem todos de subir pela estreita escada até o terraço, derrubaram a velha escada desparafusando suas pregas e jogando-a para baixo.

– O que é isso! – adiantou-se Oncoclastos ao ver aquele mundo de gente no terraço do prédio.

– Não adiantou. Entraram do mesmo jeito – respondeu Fi-brone Jr. correndo para outra ponta do parapeito e olhando para baixo. – E agora já devem ter tomado quase todo o prédio.

– Menos o terraço – completou Obariloclasto vendo o sar-gento disparando contra o pátio da prefeitura. – Pelo menos por enquanto.

– Já esperava por isso – disse Sr. Esmalte com um olhar completamente diferente daquele chefe municipal do qual todos admiravam. – Vamos ter de nos aguentar aqui em cima enquan-to dermos conta.

– O que parece que não será por muito tempo – concluiu Oncoclastos. – Não estou vendo muitas armas por aqui.

Naquele instante todos tiveram de concordar com o odon-toclasto, pois até os policicálcios que também chegaram, esta-vam com suas munições escassas. Seria realmente questão de tempo, até as bactérias encontrarem um meio de conseguir che-gar lá em cima.

Cerebrópolis era surpreendente. Não havia prédios, e sim estruturas sistematicamente interligadas por caminhos lumino-sos, suspensos em um universo escuro, porém muito iluminado.

Parecia um céu infinito, cheio de estrelas, e naquele instante es-tavam todos os veículos flutuando sobre o nada, guiados pelos traços luminosos que emanavam para todos os lados indicando as estruturas habitáveis.

– Como é possível estarmos voando? – perguntou alucina-damente Calcin.

– Não estamos voando, Calcin – respondeu Linfon B. – Na verdade, estamos imersos em uma solução aquosa.

– E como continuamos vivos? – foi a vez de Anipatita tam-bém admirada.

– Pelo oxigênio – respondeu naturalmente, como se aque-les novos visitantes já conhecessem tudo.

– Se estamos imersos em uma solução aquosa, como as-sim oxigênio? – Anipatita estava realmente entusiasmada com aquele novo universo.

Talvez nem mesmo Linfon B saberia responder aquela pergunta, o que não estava fazendo a mínima diferença para o agente Calcin, tão abobado com aquele mundo, tão diferente do seu, que se esquecera por alguns instantes até mesmo dos pro-blemas de Incisivocity.

– E eu pensando que o Trígono Retro Molar era o lugar mais fantástico que poderia existir – resmungou Calcin olhando para outros veículos, agora luminosos vagando sobre o céu.

– Para mim a região Retro Molar ainda é o melhor lugar do mundo – respondeu bruscamente Anipatita cutucando fir-memente Calcin, que parecia também ter se esquecido de um detalhe bastante importante.

O agente engoliu seco e teria começado a suar frio se não fosse pelo movimento forte do veículo que parecia estar se pre-parando para uma aterrissagem.

– É aqui – disse Linfon B confiante. – Cerebelus, o centro

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de todo o sistema.Anipatita se arrepiou toda ao ver aquela enorme estrutu-

ra, que recebia ligamentos de todos os lados. Agora sim era per-ceptível acreditar que todo e qualquer lugar do sistema poderia ser comandado dali.

Calcin olhando para as mãos de Anipatita, observava que sua aliança, aquela mesma dada a ela em pedido de casamento no Trígono Retro Molar, brilhava mais que qualquer estrutura em Cerebrópolis e se repudiava pelo comentário mais idiota que poderia ter feito.

Mas foi no momento em que todos aterrissaram que Cal-cin se adiantou em frente de Anipatita e tentou se retratar com a moça, todo desconcertado.

– Realmente eu estava enganado sobre Cerebrópolis, Ani-patita – disse Calcin levantando a mão da garota. – E também errado sobre o Trígono Retro Molar.

– Como assim? – perguntou a garota confusa.– A coisa mais linda que já vi foi esta aliança em seu dedo.

Não há lugar no universo que se compare a esta beleza.Anipatita, branca como era não poderia ter ficado mais

vermelha, não sabia ao certo o que falar e estava totalmente desconcertada. A única coisa que tirou sua atenção aos olhos do agente foi a imagem do quarto veículo pousando, logo atrás da cabeça de Calcin.

– Amelodentina! – exclamou Anipatita passando rapida-mente por Calcin deixando-o com a imagem do subtenente, que apareceu logo atrás de sua namorada.

Sra. Dentina saiu do veículo segurando as mãozinhas de Amelodentina, que trazia sua boneca Diamanta no outro braço, e alargou um maravilhoso sorriso ao ver a secretária. Dona Célica estava logo atrás e do outro lado saiu Célion e o oficial linfóide.

Outra cena esquisita foi a de um veículo particular do Fi-brospital Regional Palatino estacionado mais adiante, o que cha-mou a atenção de Calcin e Sra. Dentina.

– Dr. Fibron! – disse consigo mesma a primeira dama. – Esmalte estava certo em acreditar naquele jovem médico. Tem coisa errada nessa estória.

Mas o agente foi o primeiro que saiu correndo na direção do veículo, sendo detido por dois linfócitos, ainda sob as ordens do subtenente.

– Larguem este cálcio! – pediu Sra. Dentina ao perceber que os linfócitos ainda suspeitavam do agente.

– Desculpe-me, Sra. Dentina, mas estamos fora da jurisdi-ção de Incisivocity – respondeu Linfon B se adiantando. – Suas palavras não têm força jurídica por aqui.

– Não estou ordenando nada, oficial – disse ela reparando na patente do linfócito, ainda não o conhecia, mas não teve a mesma impressão de Linfon T com aquele novo agente linfóide. – Quero que saiba que Calcin não teve nada há ver com o que está de fato ocorrendo em Incisivocity.

– Também tenho fortes indícios de que isto seja verdade, Sra. Dentina – respondeu calmamente Linfon B. – Mas, se nos afobarmos agora, Sistema Nervoso Central não irá querer nem nos ouvir. E Calcin está bastante eufórico.

Calcin, na verdade, estava querendo justiça, não só com a sua pessoa, mas com todos os que acreditavam numa Incisivo-city mais forte com o Sr. Esmalte à frente de tudo e já não estava vendo a hora de colocar tudo em pratos limpos na frente do Sis-tema Nervoso Central.

– Fibron está aí. Ninguém sabe o que pode estar se pas-sando lá dentro – disse Calcin se remexendo nos braços dos lin-fócitos. – Foi este ser repugnante quem forjou esta trama contra

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mim e agora quero saber o por que.– Calma, Calcin! – Anipatita se preocupara com aquela

atitude impensável de Calcin. – Se você entrar lá dentro assim, tentarão te prender novamente.

– Sujaram a minha imagem perante toda Incisivocity – respondeu Calcin ainda abalado. – Minha imagem. Todos os cidadãos que estão passando por momentos difíceis em Incisi-vocity neste momento, pensam que eu é que sou o responsável por tudo. Eu, e não vocês. Tudo por causa deste Dr. Fibron. O que ele tem contra mim? Mal o conheço e ele faz as coisas penderem para o meu lado? Quero acertar as contas com ele.

– Não é bem assim, Calcin – aproximou-se Sra. Dentina. – Esmalte nunca acreditou que você estivesse metido nisso, pelo contrário, facilitou as coisas para que você corresse atrás de justiça. Neste momento, realmente, eles devem estar passando por momentos bastante críticos, mas tenho certeza que não está pensando mal de você. Não estrague tudo agora.

Sra. Dentina virou-se para Linfon B, que reparava curioso na atitude frenética do agente Calcin em buscar sua própria jus-tiça, e pediu novamente para que ele liberasse o agente. Linfon B também acreditou que aquelas palavras surtiram efeito em Calcin, que se manteve totalmente inalterado naquele instante.

– Agora, vamos – disse Sra. Dentina apontando para os degraus de Cerebelus. – Incisivocity já esperou demais por so-corro.

E partiram todos em direção à entrada de Cerebelus, es-perando ter uma boa conversa com o Sistema Nervoso Central e preocupados com o que Dr. Fibron poderia estar fazendo por aqueles lados.

Gigantesco, o hall de entrada se estendia quase que infi-nitamente para todos os lados. Anipatita chegou a imaginar que

dali poderia se chegar a qualquer lugar do sistema bastando se-guir na direção certa.

Linfon B seguia na frente como se já conhecesse muito bem o local, virava aqui, entrava ali e sempre indo para o cami-nho certo. Alguns dos linfócitos ficaram para trás, e naquele mo-mento seguiam por um caminho iluminado de azul Sra. Dentina, Linfon B, Calcin, Anipatita e mais dois oficiais linfócitos, os de-mais ficaram esperando no hall de entrada. Era o caminho para o salão central de todo o sistema.

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Capítulo 16

O salão central de Cerebelus era enorme. Várias pi-lastras continham enormes paredes que sustentavam um teto quase imperceptível mais ao alto. As luzes eram mais intensas e Calcin tremeu-se todo quando viu pela primeira vez a figura pomposa de Dr. Fibron próximo a uma parede de vidro escura. Linfon B também notou que Linfon T estava junto de Fibron e ambos estavam segurando uma pasta, cada um deles.

No canto superior do salão, uma enorme mesa se estendia em formato de meia lua, nela, várias pilhas de papéis e coisas desconhecidas roubavam a cena de uma figura acinzentada, po-rém muito brilhante e sistematicamente concentrada em várias contas, notas, processos, títulos entre outras coisas importantes vindas de vários lugares do sistema.

– Estava lhe esperando, Linfon T – respondeu uma voz imponente e grave, fazendo ecoar o nome do subtenente por todo o salão.

Calcin e Anipatita ficaram sem entender o motivo pelo qual Sistema Nervoso Central estava esperando pelo subtenente e o porquê de Linfon B não ter dito nada no caminho.

– Você já sabia que Dr. Fibron e Linfon T estariam aqui? –

perguntou Anipatita não conseguindo controlar a curiosidade. – O que na verdade está acontecendo aqui?

Calcin sentiu seu sangue pulsar violentamente, com uma vontade ilimitada de sair correndo em direção à Fibron e esmur-rá–lo, assim como a Calcine, mas estava se tornando muito em-baraçoso aquele episódio, onde todos os principais suspeitos se encontravam no mesmo lugar.

– Tem muita coisa que não poderia ser dita antes do tempo, Anipatita – respondeu Linfon T, aguçando ainda mais as ideias da secretária. – E vocês dois são apenas uma peça posta estrategicamente em um tabuleiro muito bem armado.

Naquele momento, Linfon T começou a se aproximar jun-tamente com Dr. Fibron vagarosamente, sendo observados por todos dentro do salão, e Calcin, só então se deu conta de que muitas pessoas também se encontravam naquele recinto. Sem entender o que estava se passando, o agente se aproximou de Anipatita e lhe segurou uma das mãos apertando firmemente.

– Está pronta? – perguntou em voz baixa o agente.– Estou, mas o que você está pretendendo fazer?– Corra comigo – disse ele apertando ainda mais as mãos

da secretária. – Vamos chegar até a mesa do Sistema Nervoso Central e contar tudo o que sabemos sobre essa armação.

– Quando? – perguntou ela percebendo que Linfon T já se aproximara o bastante.

Calcin encarou profundamente Dr. Fibron, agora com os olhos temerosos, pois ali poderia estar sendo formado um ver-dadeiro pacto do mal. Estariam Linfon B e Linfon T juntos na-quela trama? Se fosse essa a verdade, provavelmente, tanto Cal-cin como Anipatita seriam detidos naquele instante e só restaria esperar pelo fim de Incisivocity. Portanto teriam de fazer algo naquele segundo.

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– Agora, Anipatita! – gritou Calcin largando a mão da se-cretária e correndo na direção de Linfon T e Dr. Fibron – Corra para a mesa do Sistema Nervoso Central e diga o que sabe.

Anipatita ficou assistindo Calcin se jogar sobre Linfon T e Dr. Fibron num ataque bem ao estilo suicida e ao ver que nada poderia fazer para deter o namorado, saiu correndo também, desta vez em direção à mesa do Sistema Nervoso Central.

– Não, Anipatita. Espere! – gritou Sra. Dentina saindo cor-rendo atrás da secretária.

– Pare Calcin! – Gritou Linfon B. – O que está pretenden-do?

Calcin se jogou sobre Dr. Fibron numa agilidade digna de sua reputação, fazendo o médico cair sobre uma mesa, espati-fando–a por completo. Linfon T tentou segurar em vão o agente, que já estava com as mãos sobre o pescoço de Fibron, tentando esganá-lo.

Anipatita ao notar que a primeira dama também corria numa empreitada alucinante, no intuito de tentar detê-la, deu tudo o que podia para acelerar suas passadas em direção ao Sis-tema Nervoso Central. Quando enfim atingiu a mesa, começou a disparar palavras na mesma velocidade da corrida da qual havia investido.

– Calcin é inocente, Sr. Sistema Nervoso Central – dizia ela. – Não fui sequestrada por ele, e sim por Calcine. Temos provas de que Linfon T e Dr. Fibron estão juntos, ligados numa trama maliciosamente traçada contra Incisivocity.

Naquele instante, Sra. Dentina já havia chegado até ela e a agarrado por trás, caindo as duas ao chão, sendo ambas obser-vadas atentamente por Sistema Nervoso Central.

– Sra. Dentina! – exclamou Anipatita perplexa com a ati-tude da primeira dama. – O que a senhora está fazendo? Não me

detenha. Sabe muito bem do que estou falando e sabe também que foi tramado um plano envolvendo Calcin.

– Sei sim, Anipatita – respondeu Sra. Dentina segurando a secretária. – A ideia de colocar Calcin envolvido nisso foi minha.

Ao ouvir aquilo, até mesmo Calcin interrompeu seus ata-ques contra Dr. Fibron, que num único movimento conseguiu sair debaixo do agente, correndo para o lado de Linfon T.

Anipatita estava tão gelada, que mal conseguia sentir suas pernas e teria desmaiado se não fosse pelo absurdo daquela de-claração tão imprevisível.

– Sra. Dentina, por favor, diga que isto é mentira – implo-rou Anipatita enchendo seus olhos de lágrimas.

– Não, senhorita Anipatita – respondeu segura a primeira dama. – Não se trata de uma mentira. Na verdade, estamos todos juntos nessa trama. Linfon B, Linfon T, Dr. Fibron, inclusive eu.

– Eu não posso acreditar – respondeu já em prantos a se-cretária. – Ou melhor, eu não consigo aceitar. Seu marido está lá, cercado de bactérias por todos os lados. Como pôde?

– Eu tenho que voltar à Incisivocity! – gritou Calcin se le-vantando e posicionando-se em direção à saída, quando foi de-tido por Linfon T e Linfon B ao mesmo tempo. – Foi um grande erro virmos. Soltem-me!

– Não foi um erro – disse a voz grave do Sistema Nervoso Central. – Tínhamos de tirá-lo de lá.

Como assim, tínhamos? Foi o que pensaram Calcin e Ani-patita ao mesmo tempo. O Sistema Nervoso Central também estava envolvido naquela sórdida trama contra Incisivocity? A cada minuto que se passava, as coisas se tornavam mais nebulo-sas, tanto para Anipatita quanto para Calcin.

– O que está acontecendo? – perguntou Anipatita ainda em lágrimas vendo Calcin sendo detido novamente e desta vez

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na frente do governante geral, que parecia não se importar com nenhum dos dois. – Pelo menos nos dê a dignidade de entender o motivo de tudo isso sem essa covardia da qual estão nos fazen-do passar.

– Primeiro quero que se acalme – falou pausadamente Sra. Dentina.

Anipatita abaixou seus braços e sentou-se ao chão já em soluços, ainda olhando para Calcin que parecia ainda resistir.

– Há alguns meses atrás, Madame Mielina foi atacada a caminho de Incisivocity – começou a explicar Sra. Dentina. – Por sorte, Linfon B havia recebido uma mensagem do sistema de que bactérias não reconhecidas estavam se posicionando em Estomagolópolis.

Naquele instante, Calcin parecia estar se acalmando, pos-sivelmente para poder prestar maior atenção ao que dizia a primeira dama, o que, pelo que parecia, estava ciente de muitas coisas importantes.

– Naquele dia, Madame Mielina estava sozinha e já havia passado por uma barreira de policicálcios – continuou Sra. Den-tina.

– Barreira de policicálcios fora de Incisivocity? – argu-mentou Calcin já cedendo ao seu abatimento.

– Foi exatamente este detalhe que nos chamou atenção – disse Linfon B.

– Viemos constatar mais tarde que a barreira, da qual Ma-dame Mielina passou, era formada somente por dois policicál-cios – completou Linfon T.

– Calcine e Calcitis – respondeu Calcin começando a pes-car as informações e gradativamente sendo solto pelos linfóci-tos.

– Desculpe–me tê-lo atacado na entrada de Incisivocity,

Calcin – falou Linfon B. – Mas naquele momento não estávamos cientes de que você estivesse naquela viatura. Sabíamos que Calcine iria voltar para a cidade e por incrível que pareça, não contávamos com seu sucesso no resgate de Anipatita.

– Temos de admitir que você superou todas as expectati-vas, Calcin – foi a vez de Linfon T. – Não sabíamos onde Anipati-ta estava e quando nossos oficiais encontraram Calcitis em sua casa, você já havia passado por lá. Antes de vir para Cerebró-polis, eu e alguns agentes passamos pelo local informado por Calcitis, mas a garota já não se encontrava mais lá. Antes de vir, ainda informei Linfon B sobre o ocorrido, e ele montou guarda na entrada da cidade.

– Voltando à barreira formada por Calcine e Calcitis, como estava dizendo – continuou Linfon B. – Foi um pulo para con-cluirmos que eles estavam envolvidos no ataque contra Madame Mielina.

– Conseguimos evitar o sequestro de Madame Mielina e de quebra capturamos uma das bactérias lideradas por Clostri-dium Botulinium – continuou Linfon T. – Naquele dia, Madame Mielina retornou para Cerebrópolis conosco e descobrimos, por intermédio desta bactéria, que a Cárie havia se aliado à Clostri-dium.

– Naquele mesmo dia elaboramos um audacioso plano de captura à Clostridium Botulinium – novamente a voz pomposa de Sistema Nervoso Central ecoou pelo salão. – Audacioso, por-que seria realizado em Incisivocity.

– Madame Mielina me colocou ciente deste plano e me orientou para que não dissesse nada para Esmalte – disse Sra. Dentina abaixando a cabeça como se aquilo para ela fosse um verdadeiro martírio. – Porém, o sistema não poderia ser desco-berto nesta armadilha e foi daí que surgiu a ideia de driblarmos

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as forças malignas da Cárie usando Calcin como isca.Calcin encostou-se em um dos pilares do salão e ficou com

os olhos vidrados ao chão. Por dentro, se sentia, ao mesmo tem-po, enganado e usado. Mas começou também a entender o pla-no de confusão contra a Cárie, porém foi Anipatita quem disse primeiro.

– Se Calcin, que estava se tornando um braço forte do prefeito, estava sendo acusado de traição, então a força de in-teligência armada de Incisivocity estaria deficiente – Anipatita soluçava, mas não chorava mais. – O caminho para entrar em Incisivocity, por intermédio de Calcine e Calcitis, estava aberto para a Cárie.

– O resto foi fazer os dois, verdadeiros traidores, entrarem em nossa jogada – disse Linfon T olhando para Dr. Fibron.

– Daí em diante foi comigo – iniciou Dr. Fibron. – Pedi a um de meus residentes para entrar em contato com Calcine, se-cretamente em Incisivocity, alegando suspeitas sobre mim. Na mesma noite Calcine estava na minha sala se mostrando entu-siasmado na minha conspiração contra Calcin e Incisivocity.

– Dr. Fibrone Júnior – respondeu Calcin olhando para o médico não acreditando naquilo tudo. Só poderia ser a única ex-plicação para que uma pessoa que nunca tivera contato levantar tanta coisa contra outra em tão pouco tempo.

– Exato – concluiu Fibron. – Dr. Fibrone Júnior foi uma peça fundamental para o plano de persuasão contra a Cárie.

– Como a Cárie possuía espiões em Incisivocity, com cer-teza ficou segura de um novo ataque no complexo – explicou Linfon T.

– Quando uma nova suspeita de que Linfon T havia se aderido a um movimento contra o complexo de Incisivocity foi levantada, a Cárie realmente colocou em prática um plano de

ataque – completou Linfon B.– Mas por que deixar o Sr. Esmalte fora dos planos? – per-

guntou Anipatita olhando para Sra. Dentina e percebendo uma fagulha de tristeza.

– Madame Mielina não deixou – respondeu a primeira dama sem olhar Anipatita nos olhos. – Ela mesma prometeu fi-car ao lado de Esmalte para enfrentar seus inimigos.

– Se quiser enganar o seu inimigo, primeiro engane o maior amigo – disse Sistema Nervoso Central imponentemente. – É assim que nós trabalhamos.

– Nós? – perguntou Calcin. – Nós quem?– Atrás desta grande parede de vidro escurecido, vive Sis-

tema Nervoso Periférico – continuou Sistema Nervoso Central. – Quando estou dormindo, ele assume o comando de todo o sis-tema. O que ele faz eu jamais fico sabendo, assim como minhas ações nunca são reveladas a ele. E assim vencemos qualquer obstáculo em todo o sistema. Nossos inimigos jamais sabem como nos afetar.

Calcin ficou por alguns instantes observando atentamen-te o enorme vidro atrás da mesa do Sistema Nervoso Central e imaginando como seria o outro governante noturno.

– Sr. Esmalte foi mantido fora deste esquema para não comprometer a operação – continuou Sistema Nervoso Central. – Minha esposa se comprometeu a mantê-lo fora de conheci-mento.

Anipatita havia entendido até o motivo de deixar Sr. Es-malte fora disso. O prefeito possuía uma índole incorruptível e, talvez, jamais conseguiria jogar daquela maneira, até mesmo contra um inimigo desvirtuoso, porém aquela conversa lenta e cheia de calmaria estava deixando a secretária muito tensa.

– Olha, o plano de vocês pode até ter dado certo neste

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ponto de enganar todo mundo – Anipatita estava ficando ner-vosa. – Mas neste momento, Incisivocity deve estar cercada por todos os lados, e a vida de todos lá não pode esperar por socorro.

– Vocês não sabem, mas neste momento também, o com-plexo de Incisivocity está cercada de Macrófagos por todas as vias de vasos – antecipou-se Linfon B. – Estrategicamente está tudo pronto para a captura em massa de streptococos, acti-nomyces e também do Clostridium Botulinium.

Anipatita se lembrou do momento em que foram ultra-passados por um Macrófago no sentido superior de Incisivocity, mas aquela explicação em nada confortou o coração da secretá-ria, que olhava apreensiva para Calcin, notando também a sua preocupação.

Sra. Dentina também não parecia estar confortada. No fundo sabia que seu marido, juntamente com os outros, esta-vam passando por momentos muito delicados naquele momen-to.

– Eu não entendo só uma coisa – perguntou Calcin. – Se vocês estavam cientes de toda a movimentação nesta conspira-ção contra Incisivocity e já tinham a confirmação de um ataque, por que não investiram na segurança primeiro. Financeiramen-te a Cárie não tem como ficar sabendo de nada que ocorre na cidade.

Fibron, Linfon B e Linfon T se entreolharam com uma expressão não muito agradável e depois passaram seus olhares em sentido à primeira dama que buscou não corresponder, mesmo sabendo do que realmente se tratava.

Anipatita, esperta como sempre demonstrou, não deixou este fato escapar imperceptível.

– O que ainda falta nos dizer de tão grave, Sra. Dentina? –

perguntou Anipatita encarando firmemente a primeira dama. – Ainda existe alguma coisa errada em Incisivocity, não é mesmo?

– Não poderíamos nunca fazer uma ação dessas, sem que a Cárie ficasse sabendo em primeira instância – respondeu o Sistema Nervoso Central, agora estendendo uma das mãos no sentido de Linfon B e Fibron, exigindo a pasta que seguravam.

– Como assim? – perguntou Calcin. – Isso é impossível, toda movimentação financeira é feita de uma maneira adminis-trativa muito sigilosa.

– Sim, mas recentemente, Linfon B descobriu um espião muito importante dentro de Incisivocity – respondeu o Sistema Nervoso Central. – O que nos fez redefinir todo um plano feito inicialmente.

– Se há um espião desta categoria, que pudesse passar informações financeiras à Cárie, então este traidor só pode ser... – Anipatita engoliu seco e levou suas mãos à boca num ato de espanto aterrorizante. – Não pode ser possível.

Calcin ficou observando a secretária engolir junto com o susto, um nome que parecia já estar na ponta da língua, mas que nem mesmo ela conseguiu pronunciar devido ao absurdo do fato.

– O quê? Quem? Falem logo! – Calcin já de pé no centro do salão, novamente estava todo descontrolado.

Anipatita somente olhou para o namorado balançando a cabeça de um lado para outro, ainda não conseguindo dizer o nome do suposto traidor de peso, o que angustiava ainda mais o agente, que buscou por outros olhos a fim de que alguém ali pudesse dizer rapidamente de quem se tratava. Mas foi a pró-pria Sra. Dentina quem retomou a palavra e começou a dizer, chamando para si não só os olhares de Calcin, mas de todos ali presentes.

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– Quando Madame Mielina me informou, eu mesma não pude acreditar, e foi este um dos grandes motivos que me fez conseguir não revelar nada para Esmalte – começou Sra. Denti-na. – Na verdade, creio que meu marido não aguentaria seguir em frente com o plano sabendo que um de seus principais aliados era um traidor. As providências seriam tomadas por Esmalte no mesmo instante em que soubesse que seu fiel admi-nistrador, Sr. Oncoblasto, estava facilitando as coisas para sua principal inimiga.

O choque para Calcin foi imediatamente notável por todos. Jamais, em toda a sua história de Incisivocity, o agente poderia notar algo tão camuflado. Foi, até então, a pior notícia em relação às coisas ruins no complexo, que o agente pudesse ter conhecimento.

– Eu não sei o que, de fato, pretendem fazer – começou a dizer Calcin lentamente, ainda afetado pelo choque da notí-cia sobre Oncoblasto. – Só espero que seja rápido, pois eu não duvido nada de que, se existe uma pessoa na qual Sr. Esmalte confia plenamente, esta pessoa é o Sr. Oncoblasto.

– A Liga de Amálgama já isolou toda a cidade – Linfon B ponderou. – Estão fazendo um ótimo trabalho junto com os linfócitos. Disso vocês não sabiam também. Não há como esca-par ninguém da cidade e não é por acaso que as bactérias estão concentrando seu ataque no centro de Incisivocity.

– O plano final é a demolição total de Incisivo Centrales Decíduos – disse Sistema Nervoso Central olhando o conteúdo das pastas entregues por Linfon T e Dr. Fibron. – Há dias o dou-tor e o delegado está trabalhando juntamente com os cemen-tócitos nas profundezas de Incisivocity, em sua região central. Cementon também está ciente dos fatos e construiu uma passa-gem para que os habitantes do bairro central possam escapar

ilesos. – Há vários linfócitos e macrófagos na região gengival de

Incisivocity, ao invés de bactérias como foi instruído ao prefei-to, o que garante a vitalidade de todo o complexo – disse Linfon T.

– Mas com a demolição do bairro central da cidade, fi-caremos lesados em sua urbanização – disse Anipatita. – Não pode ser uma boa ideia.

– Eliminaremos todas as bactérias, mas perderemos a força do complexo – concluiu Calcin.

– Esmalte é um dos prefeitos mais dedicados em todo o sistema – disse Sistema Nervoso Central olhando para Sra. Den-tina e sorrindo. – Tenho certeza que em pouco tempo e com as novas verbas, Incisivocity estará de pé, glamorosa e muito mais fortalecida.

Pela primeira vez, Sistema Nervoso Central se levantou, revelando ser um enorme governante, com brilhos por toda a parte do corpo e enchendo os corações de todos ali presentes.

– Agora, vão – ordenou supremo. – Incisivocity está pre-cisando de vocês. E tenho a honra de apresentar a todos a Capi-tã em definitivo da vitória em Incisivo Centrales.

Naquele momento, Sistema Nervoso Central apontou para outro canto do salão apresentando uma nova aliada, e pelo visto muito respeitada, dobrando a coragem daqueles no-vos heróis que estavam prontos para um último golpe contra as forças opositoras à Incisivocity.

– Esta é a Resina, guardiã de um futuro próspero, caso as forças negativas se levantarem novamente. – concluiu Sistema Nervoso Central. – Experiente de outros universos, muito além das fronteiras do sistema, Resina sempre foi muito próspera. Desejo sucesso a todos.

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Calcin e Anipatita estavam boquiabertos. Jamais imagi-naram nada do que realmente aconteceu em tão pouco tempo em Cerebrópolis e, agora, além de todos os seus conceitos, esta-vam cientes de que o sistema sempre esteve de olhos ligados à Incisivocity.

Capítulo 17

A tarde avançava sobre Incisivocity rapidamente, o que proporcionava vantagens aos atacantes do complexo. Agora parecia que todas as bactérias estavam sobre o bairro central da cidade e os moradores daquele bairro faziam o que era possível para evitar a entrada dos germes dentro de suas casas.

Feito jogadores de um xadrez buscando a hora exata de declarar o xeque-mate, Cárie, Clostridium Botulinium e Ácido Açucarado esperavam sentados em um banco da praça princi-pal do complexo. Nada poderia ser igual àquele momento para a Cárie, que não cansava de se vangloriar para seus cúmplices, que ao mesmo tempo descascavam elogios, paparicando a ma-quiavélica estrategista.

No topo da prefeitura, Obariloclasto com a ajuda de Dr. Fibrone Júnior tentavam manter a pequena entrada, que dava acesso ao andar de baixo, fechada, uma vez que as bactérias já haviam tomado toda a prefeitura.

– Isso não vai durar muito – exclamou Fibrone pondo toda a força necessária no bloqueio da passagem.

– Eu sei, mas se desistirmos, aí sim será o fim – retrucou Obariloclasto. – Só espero que os odontoclastos de Incisivocity

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também estejam fazendo o possível.Na realidade, a maioria dos odontoclastos haviam se ade-

rido às plataformas de combate montadas pelos policicálcios, que ainda estavam pelas ruas. Verdadeiras barricadas contra uma legião interminável de bactérias.

Madame Mielina olhava em direção à Clostridium Botuli-nium, sentado na praça ao lado da Cárie, que parecia correspon-der aos olhares como se fosse um predador esperando a presa cair da árvore para poder abatê-la. Já Sr. Esmalte buscava por al-guma alternativa correta de escape, uma vez que sabia que não poderiam ficar ali por todo o tempo.

Oncoclastos estava debruçado sobre o parapeito do terra-ço aterrorizado com o enorme número de germes que estavam em volta da prefeitura, e ao seu lado estava Sr. Oncoblasto, tam-bém olhando para baixo.

– Minha munição acabou – disse Oncoblasto mexendo em sua arma.

– Isso parece não ser um problema especificadamente seu – respondeu Oncoclastos reparando que grande parte dos policicálcios que estava lá em cima não disparava mais. – Acho melhor encontrarmos outra maneira de atacar estas criaturas.

– É impressionante não haver nenhum linfócito por per-to nestas horas – disse Oncoblasto olhando para o prefeito. – E onde está a Liga de Amálgama? Sei que tem mais força nas me-diações molares do complexo, mas poderiam estar aqui tentan-do fazer alguma coisa também.

– Meu amigo Oncoblasto, não se desespere – falou o pre-feito. – Tenho certeza de que estão fazendo o possível pelas áre-as marginais de Incisivocity e, se não estão aqui agora, é porque não podem mesmo.

Madame Mielina olhava para Oncoblasto o tempo todo.

Desde que havia chegado ao complexo para ajudar nos assuntos sobre Calcin e o desaparecimento de Anipatita, que ela não ti-rava suas atenções ao administrador. Com a habilidade discreta que lhe era digna, Madame Mielina nunca deixou que ninguém suspeitasse das informações que tinha sobre Oncoblasto. Certas vezes, até ela mesma chegou a duvidar de que seria verdade o envolvimento dele com as forças degenerativas da Cárie. Contu-do, alguma coisa havia mudado no administrador desde que eles chegaram ao topo da prefeitura. Oncoblasto estava mais negati-vo, crítico e apreensivo.

Sargento Calcion alertou a todos que estavam perto de fa-zer seus últimos disparos com o canhão de calcitina que após este ato eles estariam completamente indefesos.

A única alternativa que passou pela cabeça do prefeito na-quele momento e que pudesse levá-los a uma fuga seria a saída pelo coreto da praça, porém o maior empecilho seria como pas-sar pelas bactérias e ainda pela Cárie, que estava de olhos gru-dados na prefeitura. Outra coisa que brecava qualquer atitude seria a de deixar a população para trás, algo que jamais passava pela cabeça do Sr. Esmalte.

Sr. Esmalte, então, começou a pensar em uma saída, pelo menos para os habitantes de Incisivocity.

– Madame Mielina, acho que só há um recurso para que a população saia ilesa deste confronto – disse o prefeito sem mui-tas escolhas.

– E qual seria este recurso? – perguntou Madame Mieli-na.

– Vou me entregar.Madame Mielina sentiu-se totalmente gelada depois da-

quelas palavras. Sabia que o prefeito estava falando sério e tam-bém que seria um recurso do qual a Cárie acataria em negocia-

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ção, mas era absurdamente fora de cogitação esta proposta.– Se eu me entregar, vou pedir em troca a liberação total

dos habitantes de Incisivocity – continuou o prefeito. – Não há como a Cárie se negar a isso.

– Claro que há – interrompeu sargento Calcion. – O senhor está maluco? Não estamos em posição de negociação neste mo-mento. Estamos sendo massacrados por estes germes e creio que, emhipótese alguma, a Cárie vai aceitar um acordo como esse.

– Eu acho que vai – interveio Madame Mielina. – Não há interesse da Cárie sobre a população de Incisivocity, mas sim em se beneficiar dos recursos do sistema.

– Exato – completou Sr. Esmalte. – A Cárie não quer cons-truir nada e assim a população do complexo seria totalmente descartável para ela.

– Porém, se o prefeito se entregar, eu também me entrego – afirmou Madame Mielina chamando a atenção de todos.

– Como é que é? – assustou-se o prefeito.– Isso mesmo. Vou com você e me entrego junto.– De maneira alguma! – irritou-se Sr. Esmalte passando

as mãos no cabelo. – Nada disso. Sou eu quem ela quer e não a senhora.

– Esqueceu de quem está ao lado dela? – alterou a voz Madame Mielina. – Clostridium Botulinium jamais vai aceitar que eu saia ilesa de Incisivocity. Tenho certeza de que, por causa dele, a Cárie não irá negociar com o senhor.

Sr. Esmalte ficou calado com aquela explicação. Sabia que era uma verdade e que, se Clostridium se opusesse, a Cárie tam-bém se negaria a aceitar. Agora o problema estava se tornando maior ainda para o prefeito. Seu último recurso também levaria ao fim de Madame Mielina, esposa do Sistema Nervoso Central e

o maior aliado que tivera em campanha.– Então iremos todos nos entregar. Que tal? – aproximou-

se o sargento Calcion com um sorriso irônico. – Assim todos fi-camos felizes.

– Ora, não seja ridículo! – Sr. Oncoblasto não se aguentou.Até mesmo Sr. Esmalte, mesmo achando absurda a pro-

posta de Calcion, não entendeu as palavras de Oncoblasto. Não queria em hipótese alguma que alguém se arriscasse junto a ele, mas, no fundo, tinha a certeza pessoal de que, dentre os dois, seria Oncoblasto, e não Calcion, quem se arriscaria em primeira instância.

– Eu... – depois de uma pausa, olhando para seu admi-nistrador, Sr. Esmalte concluiu suas palavras – Eu também não concordo com esta ideia.

Naquela mesma hora, Madame Mielina teve a certeza de que Oncoblasto não era mesmo uma pessoa confiável. Até mes-mo Oncoclastos, que não era nada positivo naquele momento, estava boquiaberto olhando para o administrador, que ao perce-ber a grande gafe tentou concertar.

– Incisivocity não precisa de heróis agora – disse Onco-blasto olhando para o prefeito. – E sim de ajuda. Por isso repi-to, onde está o sistema nesta hora? A senhora mesmo, Madame Mielina. Não acha muito engraçado o Sistema Nervoso Central não estar nem aí para sua segurança aqui em Incisivocity?

– Oncoblasto, eu não estou te entendendo? – disse o pre-feito. – Isso não é verdade. O Sistema Nervoso Central mal deve estar sabendo do que está se passando por aqui. Esqueceu-se de que é justamente Madame Mielina quem passa as informações para ele?

– Sim, mas então que sistema mais falho é este que se tor-na muito fácil descobrir o seu calcanhar de Aquiles? – respon-

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deu o administrador mergulhado em discórdias. – Basta então sequestrar Madame Mielina e pronto! O sistema está perdido.

– Que isso? – disse Obariloclasto. – Como pode pensar uma coisa destas?

– Realmente eu não estou te reconhecendo, Oncoblasto – insistiu Sr. Esmalte.

– Ora, senhor prefeito – continuou Oncoblasto. – Seja mais realista. Não temos a mínima chance e o senhor ainda acha que a Cárie vai deixar-nos sair vivos daqui.

– Não precisamos que se sacrifique Oncoblasto – disse Madame Mielina. – Somos somente nós dois que querem e não os outros.

– Não mesmo – concordou Sr. Esmalte cada vez mais se decepcionando com Oncoblasto.

Ninguém estava acreditando no que estava acontecendo lá. Madame Mielina estava vendo a máscara de Oncoblasto se desmoronar na frente de todos, o que lhe pouparia algumas ex-plicações futuras. O que mais lhe chateava era ver os olhos de Sr. Esmalte ficando cada vez mais distantes, parados no tempo, como se sua alma estivesse perdendo o brilho. E começou, para si mesma, a perguntar onde estariam os linfócitos naquele mo-mento. Teria dado alguma coisa errada?

Para a sua surpresa e a de todos, o que parecia estar tudo acabado, começou a dar sinais de reação. Alguns dos streptos que estavam mais ao longe, nas ruas laterais de Incisivo Centra-les estavam agora correndo de alguma coisa.

– Tem algo acontecendo na segunda via cruzando com a rua central. – disse Calcion concentrando-se para o lado aonde veio uma forte explosão.

Todos os que estavam no terraço, com exceção de Obari-loclasto e Fibrone Jr., que tentavam manter a entrada do terraço

bloqueada, correram para o lado de onde se podia ver a segunda via que passava mais à esquerda da prefeitura.

– E é algo que acabou assustando os streptos – emendou Oncoclastos.

Sr. Esmalte ouviu também um grande barulho vindo do pátio de estacionamento da prefeitura, mas foi Cementon que correu para o parapeito oposto para averiguar o que estava acontecendo.

– Prefeito, venha dar uma boa olhada nisso – gritou Ce-menton ao observar um grande buraco feito no centro do pátio.

Sr. Esmalte chegou correndo se posicionando ao lado de Cementon e ainda chegou a ver alguns actinomyces voltando correndo para o meio da rua. De dentro da grande cratera aber-ta, um vantajoso veículo saiu cheio de tentáculos já capturando algumas bactérias que estavam próximas ao buraco. Ainda saiu do mesmo lugar um bom número de linfócitos atirando, com arma bastante avançada, para todos os lados.

– Finalmente chegaram – suspirou Cementon não perce-bendo Esmalte a olhá-lo com uma expressão atordoada.

– Chegaram? – perguntou o prefeito fazendo Cementon tossir que não parava mais.

Madame Mielina também se aproximou de ambos co-locando uma das mãos nas costas de Esmalte, que começou a olhar para todos os lados como se alguma coisa fora de seu co-nhecimento estivesse acontecendo.

– O sistema imunológico chegou com força total – disse ela olhando para o prefeito que estava sem reação.

Sr. Esmalte ficou parado apenas olhando por alguns ins-tantes e vendo que aquele grande veículo estava capturando ainda mais bactérias que saíam da prefeitura no sentido do pá-tio. Mas foi justamente ao ver Calcin aparecendo daquela enor-

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me fenda que as coisas começaram a se embaralhar dentro da cabeça do prefeito.

– O que Calcin está fazendo lá embaixo? – perguntou On-coclastos já gritando pelo agente.

Sr. Esmalte se afastou devagar do parapeito olhando para Madame Mielina, desconfiado e com os olhos enrijecidos, cam-baleando como se tivesse levado um gancho no meio do queixo.

– Segura ele aí! – foi a vez de Oncoclastos ordenar com as mãos na cabeça.

A cena foi esquisita e cômica ao mesmo tempo, Esmalte tombou para frente igual a uma pilastra, caindo sobre Madame Mielina que tentou a todo o custo manter o prefeito de pé, mas já perdendo o equilíbrio e também começando a tombar. Obari-loclasto ficou parecendo um uma barata tonta, largando Fibrone sozinho com a entrada do terraço.

– Oh! – gritou Fibrone aumentando a sua força no com-partimento de entrada, uma vez que ficou sozinho sem estar preparado. – Volta aí que eu não suporto segurar sozinho isso aqui não!

Obariloclasto ficou entre Fibrone Jr. e aquela dupla de cai-não-cai que haviam se tornado Sr. Esmalte e Madame Mielina.

– E agora, o que eu faço? – berrou Obariloclasto totalmen-te embaraçado.

– Ajuda o doutor ali que eu tento fazer alguma coisa – On-coclastos também já estava aos berros, correndo para trás de Madame Mielina e colocando-se de costas para ela para exercer maior força contra o chão e segurá-los antes da queda.

– Perdeu o juízo? – argumentou Dr. Fibrone quando Oba-riloclasto assumiu de novo sua posição. – Você tem o dobro do meu tamanho e me deixa sozinho aqui?

– Desculpe-me – respondeu todo sem graça o odontoclas-

to.Quando Esmalte voltou a si, lembrou-se rapidamente do

que havia visto no pátio central e voltou novamente sua atenção para Madame Mielina.

– O que Calcin está fazendo junto com aqueles linfócitos? – perguntou Esmalte franzindo a testa.

– Acho que já posso lhe falar – Madame Mielina olhou ra-pidamente para Cementon que estava ao lado do Sargento que, por sua vez, acenava para Calcin. – Toda aquela história sobre Calcin ser um traidor era mentira.

– Disso eu já sei – respondeu o prefeito. – Afinal fui um dos primeiros a arquitetar sua fuga.

– Esmalte, você jamais teria conseguido libertar Calcin se o sistema não tivesse deixado – disse Madame Mielina balançan-do sua cabeça. – Estou dizendo que toda a estória sobre Calcin ser traidor, Linfon T e Dr. Fibron estarem por trás de uma trama contra Incisivocity entre outras coisas, foi uma jogada do siste-ma para poder acabar com os planos da Cárie em se apoderar do complexo bucal.

– Vá devagar – pediu Sr. Esmalte. – Preciso assimilar as coisas.

Madame Mielina passou exatamente todo o plano do Sis-tema Nervoso Central para poder cercar a Cárie e Clostridium Botulinium no centro de Incisivocity, inclusive o fato de Sra. Dentina estar por dentro do plano e ser instruída, por ela, a não dizer nada ao marido, mesmo muito a contragosto.

Sr. Esmalte sentou-se, deslizando pela pequena parede que dava alicerce para o parapeito, totalmente desconcertado. Sentiu-se completamente impotente, como se o sistema não lhe desse todo o crédito do qual ele acreditava ter.

– Não se preocupe prefeito – continuou Madame Mielina.

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– Foi justamente acreditando em sua integridade que meu ma-rido teve essa ideia.

– Você tem noção do que acontecerá à Incisivocity depois de uma demolição do bairro central? – argumentou o prefeito deixando todos com as caras mais estranhas possível.

Mas foi um novo estrondo que interrompeu o prefeito em suas considerações. Madame Mielina também se assustou com o novo barulho, justamente por este ser mais perto que os demais.

Desta vez foi em frente à prefeitura e com isso as atenções se voltaram todas para a entrada do prédio, com exceção do Sr. Esmalte que continuava sentado, ainda pensando sobre as infor-mações recentes.

Outro macrófago apareceu bem em frente ao portão de entrada da prefeitura, já capturando bactérias que estavam na rua e também no hall de entrada do prédio.

– O que está acontecendo? – perguntou a Cárie se levan-tando instantaneamente do banco em que estava sentada.

Ácido Açucarado foi o segundo a se levantar seguido de Clostridium Botulinium, ambos com caras de bobo, tentando avaliar a situação.

– Macrófagos! – respondeu Clostridium. – Mas como pode ser?

– Como pode ser o quê? – perguntou Ácido Açucarado.– Madame Mielina ainda está em Incisivocity e com isso

não havia como o sistema ter noção do que se passava por aqui – respondeu a bactéria.

– Se não é possível, como é que o sistema de defesa che-gou aqui? – foi a vez da Cárie, demonstrando-se totalmente im-paciente.

– Aquele odontoblasto mentiroso nos enganou – afirmou Ácido Açucarado. – Bem que eu avisei para não dar créditos a

alguém ligado ao partido do Sr. Esmalte, mas ninguém me es-cutou.

– Parece que há macrófagos brotando por todos os la-dos neste lugar – acrescentou a Cárie, percebendo que uma boa parte das bactérias corria em direção ao centro do bairro sen-do perseguidas pelos enormes veículos de combate do sistema imunológico. – Vamos ter de nos retirar.

O que a Cárie não contava era a presença de uma força de defesa bucal tão elitizada que, nem mesmo ela, estava preparada para enfrentar.

Bem ao fundo da praça central, uma multidão de bactérias estava levando uma verdadeira surra de um grupo de linfócitos já aderidos aos policicálcios, que cuidavam de uma barreira for-mada em uma das ruas atrás da praça e, junto a eles, um esqua-drão de primeira geração de polímeros liderados pela Resina.

A Cárie ficou por alguns segundos paralisada observando a Resina se aproximar lentamente enquanto os polímeros, linfó-citos e policicálcios combatiam as bactérias que tentavam resis-tir ao recente ataque do sistema.

– Já ouvi falar muito sobre você, Resina – começou a dizer a Cárie intimidando a adversária. – Só não esperava que viesse tentar salvar um bairro já condenado.

– Se já ouviu falar muito de mim Cárie, então sabe tam-bém que nunca entro em uma batalha com intenção de perdê-la – respondeu a Resina não demonstrando ser afetada às primei-ras intimidações da Cárie.

– Então é melhor se preparar para conhecer sua primeira derrota – e assim a Cárie correu em sua direção seguida por Áci-do Açucarado e mais uma dezena de actinomyces que estavam próximos.

Não por menos, a Resina seguiu ao seu encontro, segui-

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da também pelo seu aliado universal Ácido Poliacrílico e alguns linfócitos.

Clostridium Botulinium preferiu não participar daquele confronto sem graça e partiu em direção à prefeitura, levando consigo mais algumas bactérias a fim de tentar driblar a nova defesa que se posicionava na entrada do prédio.

– Se você acha que vai sair daqui sem nenhum arranhão, está muito enganada Madame Mielina – retrucou consigo mes-mo Clostridium, mordendo os lábios de raiva.

Calcin subia rapidamente as escadas, distribuindo dispa-ros degermantes em todas as bactérias que apareciam em seu caminho, logo atrás vinha Linfon B também atirando. Muitos lin-fócitos vinham mais atrás, seguindo os dois que estavam apres-sados para chegar ao topo do prédio.

Fibrone Júnior já não sentia muita força tentando abrir a portinhola de acesso ao terraço, o que o fez deduzir que os streptos estavam se afastando daquele andar.

– Continue segurando, Obariloclasto – alertou Fibronele-vantando-se.

Obariloclasto continuou segurando e olhando para Fibro-ne vendo-o correr na direção do parapeito frontal e se debruçar sobre ele.

Fibrone Júnior foi o primeiro a notar que a Liga de Amál-gama já estava em Incisivo Centrales, quando viu, ao longe, o refletir prateado de algumas tiras matrizes chicoteando e cer-cando as entradas do bairro central.

– A Liga de Amálgama também está aqui – gritou Fibrone apontando para o lado direito.

Sr. Esmalte se levantou para poder avaliar a situação me-lhor, já se recuperando do forte choque de informações e ten-tando entender até que ponto o sistema poderia interferir nos

assuntos públicos do complexo.Naquele mesmo momento, Obariloclasto notou que não

havia mais forças na tentativa de abrir a portinhola do terraço e escutou a voz de Calcin logo embaixo da entrada.

– Sou eu, Calcin. – gritou. – Abram logo isso!Quando Obariloclasto abriu, de um único salto, Calcin

apareceu seguido por Linfon B. O agente correu na direção do prefeito, parando à sua frente e segurando as duas mãos. Esmal-te por sua vez ficou parado em silêncio olhando para Calcin, com uma expressão de espanto.

– O que aconteceu a ele? – perguntou Calcin olhando para Madame Mielina.

– Acho que ele surtou – respondeu Oncoclastos todo in-trometido.

– Pois eu acho que ele está é passando mal – foi a vez de Oncoblasto.

Calcin não conseguiu nem olhar para o administrador de tanta raiva que estava sentindo. Calcin não tinha a mínima ideia de como Incisivocity havia se transformado em um campo de batalha e isso o incomodava profundamente, ainda mais que um dos principais colaboradores para aquela situação esta ali junto a eles.

– Sr. Esmalte já está por dentro dos fatos. – respondeu Ce-menton. – Madame Mielina já lhe colocou a par de tudo.

– Escute prefeito – começou Calcin segurando e sacudindo as mãos do Sr. Esmalte. – Eu também fiquei chocado com a intro-missão do sistema em nossos assuntos, pensei até que o sistema não confiava em nosso poder de defesa. Agora eu sei que se o sistema não tivesse agido, nós não teríamos chance alguma.

– Sistema Nervoso Central vai demolir Incisivo Centrales – falou pela primeira vez depois do choque o prefeito.

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– Também fiquei assombrado com esta notícia, senhor prefeito – disse o agente. – Mas é a única alternativa para salvar Incisivocity neste momento.

– Seria a exodontia do principal bairro da cidade – com-pletou Sr. Esmalte. – Me pergunto como vamos retirar toda a po-pulação daqui?

– Senhor prefeito, o subterrâneo periodontal não foi ata-cado por bactérias e está cheio de soldados do sistema imunoló-gico – foi a vez de Cementon.

– Mas eu ouvi um de seus homens lhe dizerem pessoal-mente que a área periodontal já havia sido dominada pelas bac-térias – argumentou o prefeito.

– Fazia parte do plano – concluiu Cementon olhando para Madame Mielina. – Aquele foi o sinal para que soubéssemos que o sistema imunológico estava preparado.

Sr. Esmalte estava se sentindo completamente isolado do plano e se perguntava cada vez mais o porquê de ter ficado fora desta manobra. Afinal, a Cárie era sua inimiga.

– Retirar a população será fácil pelo periodonto subterrâ-neo, senhor prefeito – continuou Cementon.

Esmalte levantou sua cabeça em direção de todos os can-tos do bairro e percebeu que por todo o lado havia macrófagos e linfócitos agindo com toda a força, porém ao ver que a popula-ção também havia se juntado às forças do sistema imunológico na defesa da cidade, o prefeito tomou fôlego e suspirou.

– Quero encontrar a Cárie – disse soltando todo o ar pre-so no peito. – Quero olhar em seus olhos e mostrar a todos que Incisivocity irá se reerguer mais poderosa do que nunca, ou não me chamo Esmalte Esmaltus.

Madame Mielina sentiu um arrepio tomar conta de todo o seu corpo, Sr. Esmalte retomou aquela antiga gana pela cida-

de, algo que não sentia desde os primeiros sinais de ataque ao complexo.

Mas naquele mesmo instante, Linfon B percebeu algo er-rado no andar de baixo. Podiam-se ouvir alguns linfócitos grita-rem por reforço. Foi então que o subtenente pulou de volta ao andar inferior e se deparou com Clostridium Botulinium e uma grande leva de actinomyces contra–atacando os linfócitos.

– Sei que estão atrás de mim desde quando declarei guerra à Madame Mielina – falou alto Clostridium. – Vamos ver do que são realmente capazes de fazer.

Linfon B partiu em direção à bactéria, mas foi arremes-sado contra a parede. Clostridium era muito mais forte do que poderia imaginar o linfócito. Grande, rápido e com sua enorme calda, Clostridium Botulinium avançava sobre os linfócitos com os olhos em brasa.

Calcin também pulou para aquele andar, justamente no momento em que Clostridium avançava na direção do terra-ço. Parecia uma locomotiva desgovernada e Calcin não estava preparado para qualquer tipo de reação, sendo assim pulou em cima de um pequeno sofá no canto daquela sala.

Clostridium nem sequer parou para atacar o agente, re-almente estava com a intenção de subir e encontrar Madame Mielina. Quando atingiu finalmente o terraço, a bactéria sorriu ao ver que Madame Mielina estava sozinha em um dos cantos e teria avançado com toda a fúria em sua direção se não fosse algo a impedindo de passar completamente para o topo do prédio.

Calcin estava dependurado na calda de Clostridium, que ricocheteava de um lado para outro, jogando Calcin para todos os lados. Contudo, o agente não se desprendia de maneira algu-ma do agressor principal.

– Solte-o, Calcin! – gritou Linfon B vendo o agente bater

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nos cantos da sala grudado em Clostridium. – Você vai se ma-chucar!

– Não posso Sr. Esmalte e Madame Mielina estão lá em cima – dizia sendo jogado para todos os lados. – E os policicál-cios estão revidando contra as bactérias que estão lá embaixo.

Linfon B levantou-se, recuperando-se do ataque da bac-téria e começou a disparar contra a calda de Clostridium Botu-linium que, por sua vez, sacudia-se com mais voracidade ainda, deixando Calcin completamente tonto.

Quando Calcin caiu próximo a um armário, Linfon B cor-reu para ajudá-lo desviando-se das rabadas desferidas por Clos-tridium, que por sua vez, ao se ver livre do agente, conseguiu saltar totalmente para cima.

Madame Mielina estava parada apreensiva sem saber como aquela bactéria havia conseguido chegar lá em cima sem ser capturada pelo macrófago que cobria a entrada principal do prédio. Os segundo pareciam horas na cabeça de Madame Mie-lina que, estagnada, ficou apenas olhando Clostridium sorrir e correr em sua direção sedento.

Nem mesmo alguns policicálcios que abandonaram seus postos de combate conseguiram segurar a criatura que estava totalmente fora de controle, até que então, quando parecia ser o fim para Mielina, ouve-se um grito do sargento pedindo para que ela se abaixasse rapidamente.

Sem pensar no que poderia ser, Madame Mielina se atirou ao chão com as mãos na cabeça esperando apenas pelo ataque de Clostridium. Ela só não contava que o sargento Calcion levava uma granada germicida em seu cinto, que possivelmente seria usado em última instância. Para surpresa geral de todos, naque-le exato momento.

Calcion correu o máximo que pôde se chocando contra

Clostridium Botulinium, fazendo com que ambos caíssem pró-ximo à parede do parapeito esquerdo do terraço, e em poucos segundos uma explosão arrebentou toda a lateral esquerda jun-tamente com Clostridium Botulinium e sargento Calcion.

– Sargento! – Gritou Sr. Esmalte correndo na direção da explosão, sendo impedido por Obariloclasto que se atirou con-tra o prefeito, caindo ambos ao chão.

Desmoronou-se todo o lado esquerdo da parede e Mada-me Mielina acabou caindo sobre o pequeno sofá do andar abai-xo, onde estavam Calcin e Linfon B.

– A senhora está bem? – perguntou Calcin segurando a mão de Madame Mielina erguendo-a.

– Sim, mas parece que o sargento não – respondeu olhan-do para o buraco acima de sua cabeça, por onde ela caiu. – Cal-cion despencou junto com Clostridium Botulinium do terraço.

– O quê? – assustou-se Calcin já se pondo a correr escada abaixo e deixando Madame Mielina sob os cuidados de Linfon B.

Fibrone Júnior também pulou para o andar onde estavam e saiu correndo atrás de Calcin, para poder tentar fazer alguma coisa pelo sargento.

Quando, depois de correr entre os Linfócitos e bactérias que ainda duelavam pelos andares, chegaram ao lado de fora, Calcin já na companhia de Fibrone correu para o lado esquerdo do prédio da prefeitura, onde havia um pequeno beco.

Chegando ao beco, Calcin pôde ver o sargento caído sobre uma grande lata de lixo de um lado e Clostridium desacordado do outro, no chão. Correram no sentido de ambos, Fibrone che-cou as atividades vitais de Clostridium, enquanto Calcin as do sargento.

– Ele ainda está vivo, mas desacordado – disse o médico

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olhando para um oficial policicálcio que chegara logo em segui-da.

– Vou chamar os linfócitos para fazer a apreensão dele antes que acorde – disse o oficial correndo novamente para a entrada do beco.

– Não estou conseguindo checar o pulso do sargento – disse Calcin olhando para Fibrone.

Fibrone Júnior levantou-se e voltou-se para o sargento, já checando todos os sinais. Os segundos que se passaram enquan-to o médico residente checava Calcion eram lentos na cabeça de Calcin, que estava ficando apavorado.

Pela entrada do beco chegaram também Linfon T e Dr. Fi-bron. Linfon T colocou as algemas em Clostridium e juntamen-te com outros linfócitos arrastaram a bactéria já recobrando os sentidos para um veículo macrófago que estava posicionado na frente do beco. Dr. Fibron se aproximou de Fibrone Júnior.

– Como ele está? – perguntou ao seu residente.– Precisamos removê–lo urgentemente para o Fibrospital

Regional – respondeu Fibrone. – Caso contrário o sargento não vai aguentar.

Sr. Esmalte chegou logo em seguida acompanhado de Madame Mielina, Obariloclasto e Oncoclastos. Cementon estava do lado de fora do beco esperando Oncoblasto que havia ficado para trás.

– Precisamos fazer alguma coisa – disse Madame Mielina. – O sargento salvou a minha vida.

– Vamos removê-lo para o Fibrospital Palatino. Lá, ele terá maiores chances – respondeu Dr. Fibron.

– Por favor, doutores – pediu o prefeito. – Façam o melhor que puderem.

Rapidamente uma ambulância se posicionou também na

entrada do beco e outros fibroblastos saíram carregando uma maca e balões de oxigênio. Imobilizaram o sargento e voltaram para o veículo de resgate, desta vez com Dr. Fibron e Fibrone Júnior.

– Deve ter acontecido também alguma coisa à Oncoblasto – disse Cementon que ainda não sabia das suspeitas do adminis-trador. – ele ainda não saiu do prédio.

– Saiu sim – disse Calcin apontando para a praça princi-pal. – Lá está ele correndo.

Sr. Esmalte não entendeu o motivo pelo qual Oncoblasto estaria correndo no sentido onde estava a Cárie e saiu correndo naquele rumo também. Calcin e Linfon B, que havia chegado re-centemente tentaram alcançar Sr. Esmalte, mas o prefeito pare-cia ser mais rápido que ambos.

Quando Oncoblasto percebeu estar sendo seguido pelo prefeito, tentou correr mais rápido, chutando e derrubando al-gumas latas que apareciam pelo caminho.

– O que está havendo Oncoblasto? – perguntou o prefeito gritando enquanto corria e se desviava dos obstáculos.

Nada dissera Oncoblasto até o momento em que chegou onde estavam a Cárie e um batalhão de polímeros travando um combate exaustivo contra algumas bactérias. Mais ao fundo o odontoblasto pôde dar conta de que duas mulheres travavam uma briga mais exaustiva ainda, mas foi depois que o prefeito fora golpeado pelas costas por Ácido Açucarado, que Oncoblasto começou a falar.

– Era muito simples – começou a dizer num tom comple-tamente desconhecido. – Já tínhamos uma cidade organizada sem a necessidade um conselho de odontoclastos.

Sr. Esmalte estava caído devido ao golpe desferido por Ácido Açucarado e atordoado tentou ficar de pé, quando nova-

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mente levou mais uma pancada.– Bravo prefeito este heim? – disse Ácido Açucarado com

uma barra nas mãos – Agora eu vejo porque Incisivocity está caindo. Sua principal peça mal consegue ficar de pé.

Esta última pancada fora muito mais forte que a primeira, mas o prefeito ainda insistia em levantar o rosto para Oncoblas-to e encará-lo.

– Não entendo – disse Sr. Esmalte mal conseguido pro-nunciar as palavras. – Você foi um dos que mais apoiaram este conselho. Por que está dizendo isso?

– Eu nunca disse que era a favor de odontoclastos em In-cisivocity – continuou Oncoblasto. – Escute bem Esmalte, odon-toclastos nunca fizeram nada por nosso complexo.

– Estão nos ajudando agora – respondeu o prefeito ten-tando se aproximar do administrador rastejando. – Pare com isso. Você não pode estar falando sério.

– Muito sério – disse Oncoblasto. – Eu iria me eleger mem-bro supremo do conselho se não fosse Obariloclasto ter se tor-nado mais popular entre os conselheiros.

Sr. Esmalte não estava acreditando que, por um motivo tão bobo, Oncoblasto se voltou contra seu próprio município. Estava agora sentindo sua cabeça doer e rodar, como se fosse perder os sentidos.

– Engraçado – disse Ácido Açucarado erguendo bem ao alto a barra com que golpeara o prefeito. – A Cárie sempre quis o fim de Esmalte, mas serei eu, um ácido, que acabarei de uma vez por todas com ele.

Mas quando se preparava para desferir a barra com toda a força sobre a cabeça de Sr. Esmalte, recebeu um violento golpe, também por trás, caindo desmaiado na frente de Oncoblasto.

– Se quer acabar com o Esmalte, lembre-se que existe

uma Dentina por trás dele – disse a primeira dama segurando outra barra e ameaçando atacar também Oncoblasto.

Oncoblasto saiu tropeçando entre alguns bancos, mas foi cercado por Calcin e Linfon B antes de chegar ao centro da praça.

– Está preso por traição, senhor Oncoblasto – deu a voz de prisão Calcin. – E é melhor não dizer uma só palavra.

Sra. Dentina se abaixou colocando Sr. Esmalte em seu colo. Esmalte por sua vez estava totalmente abobalhado devi-do aos golpes que tomara de Ácido Açucarado, mas conseguiu sorrir para a esposa que interrompeu as primeiras palavras do marido.

– Não se preocupe tudo vai ficar bem – disse Sra. Denti-na com as mãos tampando a boca do prefeito. – Estamos bem, Amelodentina está com Dona Célica, Célion e Anipatita em Ce-rebrópolis seguros.

Esmalte suspirou de alívio ao ver que a esposa estava re-almente bem e ouvir que nada havia acontecido à filha.

– Vão demolir Incisivo Centrales – disse com certa dificul-dade o prefeito.

– Esmalte, você ergueu uma cidade inteira. Não terá difi-culdades em reconstruir um único bairro – respondeu Sra. Denti-na. – Confio no homem com quem me casei, e tenho, juntamente com o sistema, total confiança de que o prefeito escolhido para governar Incisivocity fará o melhor para que isso seja possível.

Antes de fechar os olhos, sentindo uma dor violenta nas costas, Sr. Esmalte percebeu que a Liga de Amálgama passou correndo por eles em direção à Cárie.

Naquele momento, a Cárie estava ao chão, sentada e mor-dendo os lábios de raiva. Resina estava de pé, olhando fixamente para a mestra do terror em Incisivocity depois de tê-la derrota-do sem dificuldades depois que Ácido Açucarado a abandonou

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para atacar Sr. Esmalte.Deparando-se com uma cena histórica, a Liga de Amálga-

ma chegou ao mesmo instante que a Resina se aproximou da Cárie, erguendo-a do chão.

– Parece que você não é tão forte assim sozinha – disse a Resina.

A Prata, o Cobre, Estanho e Mercúrio ficaram em volta da revoltosa Cárie que não acreditava em sua derrota.

– Por favor, leve-me até ela – disse Sr. Esmalte abrindo no-vamente os olhos.

– Esmalte, você está muito fraco – retrucou Sra. Dentina.– Preciso vê-la.Calcin deixou Oncoblasto em poder de Linfon B e ajudou

Sra. Dentina levar o prefeito até a roda formada por Resina e a Liga de Amálgama, que abriram espaço para que o prefeito se aproximasse ancorado pelos dois.

Sr. Esmalte olhou vagarosamente para sua rival derrotada e humilhada na frente de todos. Teve a prova concreta de que In-cisivocity se tornara vitoriosa sobre os malefícios cariogênicos.

– Sabe que isso não muda nada entre nós – disse a Cárie com ódio nos olhos. – Sempre que Incisivocity se descuidar eu voltarei, e cada vez mais forte.

– Pode vir quantas vezes quiser Cárie – respondeu Sr. Es-malte com certa dificuldade. – Mas eu lhe digo que sempre que vier, encontrará uma Incisivocity muito mais forte e resistente, sempre pronta a ajudar a todo o sistema.

E olhando para a Resina, Sr. Esmalte teve a comprovação de que precisava em relação ao sistema. A crença de que Inci-sivocity era primordial para todo o sistema era uma certeza do Sistema Nervoso Central, que dispunha de armas e braço for-te para ajudar em tudo o que precisasse a “grande menina dos

olhos” de um organismo perfeito: Incisivocity.– Está tudo pronto para a evacuação de Incisivo Centrales

– disse Cementon aproximando-se. – Os caminhos feitos pelos macrófagos facilitarão o escape de todos os habitantes que aqui ainda se encontram.

– Então vamos – respondeu Sr. Esmalte dando as costas para a Cárie e todo um plano falido vindo dela. – Vamos extrair este bairro e construir um centro mais forte do qual a Cárie ja-mais conseguirá entrar novamente.

Sargento Calcion estava sentado próximo ao Dr. Fibrone Júnior, ainda sob os cuidados do médico, bem na segunda fila.

– Foi por pouco, não é mesmo? – perguntou Sargento Cal-cion ao médico residente, afastando um pouco mais as muletas que o ajudaram a chegar àquele lugar.

– É sargento, por muito pouco – respondeu Fibrone ten-tando enxergar sobre os ombros altos do prefeito que estava sentado bem a sua frente acompanhado de Sra. Dentina, Ame-lodentina e Madame Mielina. – O senhor é realmente “duro na queda”.

Linfon T estava bem trás, nas últimas cadeiras, com um olhar vigilante e preciso. Ao seu lado estava Dr. Fibron e alguns oficiais policicálcios à paisana. Fibron parecia desconcertado, parecia não ser chegado a cerimônias.

– Juro que não estaria nem ligando se não fosse convida-do – disse recolhendo um pouco os ombros o médico turrão.

– Ora ora, até parece – retrucou Linfon T. – Ainda ontem no fibrospital vi você comentando com o sargento que iria se esbaldar na festa como nunca.

– Só para dar mais ânimo naquele sargento grosseiro – respondeu Dr. Fibron. – Nunca vi um paciente mais reclamante do que aquele.

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Cementon, Dona Célica e Célion estavam do outro lado do corredor, mais à frente. Célion, com seus enormes olhos azuis flertava levemente com Amelodentina que sorria, sempre que arriscava também umas olhadelas.

– Isso me lembra tempos inesquecíveis – disse Dona Céli-ca olhando de banda para Cementon.

– Não pense que eu não me lembro – disse ele seguran-do a mão da esposa. – Só que com menos pomposidade, não é mesmo?

– Não por minha causa – disse Célica apertando a mão do marido.

– Acontece que naquela época eu não era amigo do prefei-to – respondeu Cementon. – Mas se você quiser, podemos relem-brar em grande estilo.

Obariloclasto estava sentado no meio de alguns odonto-clastos que davam risadas abafadas graças às piadinhas dispa-radas por Oncoclastos.

– Controle-se, homem – chamou atenção Obariloclasto. – Pare com gracinhas.

– Desculpe-me, mas olha só a cara do Linfon T lá trás – respondeu entre risos o odontoclasto. – Parece que está dentro do quartel e todo mundo aqui vai bater continência.

Isso aguçou ainda mais os risos nos companheiros e dei-xou Obariloclasto roxo de vergonha.

– Ele está olhando em nossa direção – disse Obariloclasto. – Pare já com isso.

Estava presente também toda a Liga de Amálgama um pouco mais atrás de Cementon e sua esposa.

– Odeio demora! – disse o Cobre cruzando os braços e fe-chando a cara como de costume.

– Ai, não começa – adiantou a Prata cutucando o colega. –

Você odeia tudo mesmo.– Seria uma grande novidade se ele estivesse curtindo –

cochichou o Estanho para o Mercúrio.A Resina, que estava bem próxima da Liga de Amálgama,

não poderia deixar de ter ouvido o comentário do Cobre e por incrível que parecesse concordou com ele diante dos amigos.

– Desculpe-me intrometer, mas a moça está demorando mesmo – falou sorrateiramente a Resina olhando para a Prata.

Cobre ficou tão vermelho que todos poderiam jurar que ele fosse explodir. Nem mesmo ele esperaria uma pessoa tão graduada quanto a Resina concordar com ele.

A igreja estava lotada de apatitas, odontoblastos, odon-toclastos, cálcios, linfócitos, cementócitos e também polímeros. Calcin estava apreensivo com a demora de Anipatita. Sra. Den-tina somente sinalizava com as mãos pedindo calma ao agente que estava próximo de ter um ataque.

– Calcin está bonito não é mamãe? – comentou Ameloden-tina.

– Bonito e a ponto de sofrer um enfarto – disse Sr. Esmalte baixinho fazendo a filha rir.

– Esmalte! – repreendeu Sra. Dentina.– Só estou dizendo o que estou vendo. Não sei como ain-

da não afundou o chão da igreja com aquelas batidas do sapato no chão? – continuou Sr. Esmalte arrancando mais risadas da menina.

Foi quando Anipatita entrou, arrancando suspiros em todos que estavam na igreja. Madame Mielina colocou as mãos sobre a boca, admirada com a beleza da apatita, enquanto Sra. Dentina simplesmente repetia várias vezes a frase “como está linda”.

Para Calcin, o prêmio pela demora foi alcançado no mo-

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mento em que viu sua noiva entrar, toda reluzente, em seu vesti-do recheado de brilhantes de hidroxiapatita. Orgulhoso, o agen-te olhava para as pessoas dentro da igreja e sorria ao ver que to-dos estavam embasbacados com a beleza de sua futura esposa.

A cerimônia ainda contou com Amelodentina e Célion levando as alianças amarradas à boneca Diamanta da menina, uma ideia da própria Anipatita que não encontrou uma maneira mais doce e original de completar o maior evento de sua vida.

Ao saírem da igreja, já instalada no novo bairro central de Incisivocity, Anipatita agradecia com sorrisos para todos, mas correu em direção ao prefeito e a primeira dama puxando Calcin pelas mãos.

– Ainda está em construção, mas eu já sabia que o senhor conseguiria reerguer Incisivo Centrales – disse Anipatita ao pre-feito.

– Agora ele será permanente – respondeu o prefeito olhando para as estruturas do novo bairro, que começou a ser reconstruído dias após a demolição do antigo bairro. – Suas es-truturas estão mais fortes e toda a cidade será ligada a Incisivo Centrales Permanentes por vias subterrâneas.

– Não poderia existir ninguém melhor para o cargo de prefeito em Incisivocity – completou Anipatita. – Pena que não estarei na nova prefeitura por estes dias para poder ajudá-lo.

– Não se preocupe com isso, querida – antecipou-se Sra. Dentina. – Você não volta mais para este cargo. Já tem outra ga-rota em seu lugar.

– O quê? – perguntou Anipatita completamente assusta-da. – Mas como? O que foi que eu fiz?

Sr. Esmalte olhou para a esposa e deu uma grande garga-lhada, achando a maior graça nas perguntas da apatita.

– Puxa, por um segundo achei que fosse verdade – disse

Anipatita respirando fundo.– Mas é verdade – afirmou o prefeito causando de novo

toda a sensação de espanto em Anipatita. – Coloquei uma nova apatita em seu lugar como secretária.

Anipatita olhou para Calcin sem entender os motivos que levaram o prefeito a fazer aquilo com ela.

– Tive que tomar esta atitude, agora que fiquei sem um administrador para tomar conta dos assuntos de Incisivocity – completou Sr. Esmalte.

Anipatita já era branca como um floco de neve, mas ficou quase transparente depois de ouvir aquelas palavras do próprio prefeito. Calcin arregalou seus olhos em direção à nova esposa e a abraçou firmemente, mas Anipatita estava totalmente em cho-que.

– Descanse bastante, porque, quando voltar, o trabalho vai ser duro – comentou o prefeito novamente.

Anipatita não sabia o que fazer, beijou Calcin, abraçou Sr. Esmalte e Sra. Dentina juntos e até dançou de roda com Amelo-dentina, que era só festa.

– É melhor o senhor descansar também, sargento Calcin – falou Calcion chegando de fininho ajudado por Dr. Fibrone Júnior. – Quando retornar, eu quero ver se não fica tão rabugen-to quanto eu. Pensa que vida de sargento é moleza? Não é só ficar dando ordens não.

Calcin ficou sem palavras. Não tinha entendido direito. Seria o novo sargento da cidade? Era possível?

– Desculpe-me sargento, ou melhor, sei lá... – Calcin estava confuso.

– Fui nomeado Tenente da força policicálcio de Incisivoci-ty e ficarei somente atrás da mesa agora – disse Calcion estufan-do o peito. – Pode se preparar que as ordens se multiplicarão.

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– Era muito bom para ser verdade – sussurrou Calcin para Anipatita. – Agora é que vou ter trabalho mesmo.

Sr. Esmalte se aproximou de Calcin e novamente colocou uma das mãos no ombro do novo sargento, fazendo-o lembrar da época em que estavam fazendo sua primeira missão em Cani-nus e sorriu com o momento de nostalgia.

– Meu caro sargento e amigo Calcin – começou Sr. Es-malte. – Todos nós teremos muito trabalho daqui para frente. Tenho certeza de que a Cárie ainda vai rondar nosso complexo por muito tempo e vai realmente aproveitar as brechas de nos-so trabalho, mas este episódio só me fez ter a certeza de uma coisa.

Todos olharam na direção da nova prefeitura que se er-guia ao longe, bem ao fundo da nova praça, entre pequenos prédios e grandes estruturas, sinalizando o que ainda iria vir. A tarde caía devagar e o vento, suave, amansava os corações de um povo que, por mais minúsculos que fossem, grandes obras traziam nas esperanças.

– Não sou eu nem tampouco o sistema a manter a paz, integridade e fortaleza deste complexo – continuou o prefeito. – Mas sim todos nós, habitantes deste lugar primordial e impor-tante. Incisivocity.

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