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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................... 13
CAPTULO 1 SEPARAO DOS PODERES........................................ 18
1.1 Introduo......................................................................................................... 18
1.2 Poder de acordo com Locke....................................................................... 19
1.3 Poder de acordo com Montesquieu.......................................................... 23
1.4 Poder de acordo com Rousseau.................................................................. 26
1.5 Harmonia e independncia entre os Poderes........................................ 28
1.6 Sistema de freios e contrapesos (checks and balances).................. 31
CAPTULO 2 PODER POLTICO DO JUDICIRIO........................... 35
2.1 Evoluo do conceito de poder................................................................... 35
2.2 Poder poltico.................................................................................................... 39
2.3 Poder poltico do Judicirio......................................................................... 43
2.4 Poder Judicirio no Brasil........................................................................... 45
2.4.1 Evoluo.............................................................................................................. 46
2.4.2 Concluso............................................................................................................ 52
CAPTULO 3 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAO DA
POLTICA (CONSTITUIO DE 1988) - INSTRUMENTOS
CONSTITUCIONAIS DE JUDICIALIZAO DA POLTICA NO
BRASIL......................................................................................................................
55
3.1 Ativismo judicial.............................................................................................. 55
3.1.1 Origem e conceituao....................................................................................... 55
3.2 Judicializao da poltica.............................................................................. 58
3.2.1 Introduo........................................................................................................... 58
3.2.2 Conceito............................................................................................................... 62
3.2.3 Razes da judicializao.................................................................................... 64
3.2.4 Diferena entre ativismo judicial e judicializao........................................... 65
3.3 Judicializao poltica no Brasil................................................................. 66
3.3.1 Instrumentos constitucionais de judicializao da poltica no Brasil............ 69
3.3.1.1 Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADi).................................................. 68
3.3.1.2 Ao Declaratria de Constitucionalidade (ADC).......................................... 71
3.3.1.3 Ao de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)....................... 73
3.3.1.4 Ao Civil Pblica............................................................................................ 74
3.3.1.5 Ao Popular.................................................................................................... 75
3.3.1.6 Mandado de Injuno...................................................................................... 76
3.3.1.7 Mandado de Segurana.................................................................................... 77
3.3.1.8 Habeas Corpus................................................................................................. 78
CAPTULO 4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO
E JUDICIALIZAO DA POLTICA.........................................................
80
4.1 Funo poltica................................................................................................. 80
4.2 Evoluo das funes do STF...................................................................... 83
4.3 Supremo Tribunal Federal (STF)............................................................. 86
CAPTULO 5 CONGRESSO NACIONAL FUNES TPICAS
E ATPICAS JUDICIALIZAO DOS ATOS INTERNA
CORPORIS................................................................................................................
95
5.1 Processo legislativo......................................................................................... 95
5.2 Processo legislativo no Brasil...................................................................... 97
5.3 Atos de natureza poltica.............................................................................. 100
5.4 Atos do Legislativo.......................................................................................... 103
5.4.1 Competncias do Congresso Nacional, da Cmara dos Deputados e do
Senado Federal............................................................................................................
103
5.4.1.1 Congresso Nacional......................................................................................... 103
5.4.1.2 Senado Federal................................................................................................. 106
5.4.1.3 Cmara dos Deputados.................................................................................... 108
5.5.1 Atos interna corporis........................................................................................... 110
5.6 Controle judicial dos atos do Legislativo................................................ 115
5.6.1 Controle judicial dos atos administrativos....................................................... 115
5.6.2 Controle judicial dos atos interna corporis do Legislativo.............................. 118
CONCLUSO......................................................................................................... 123
REFERNCIAS...................................................................................................... 127
RESUMO
Este Trabalho procura avaliar a judicializao da poltica, por meio da anlise da atuao do
Poder Judicirio na ingerncia em atos interna corporis do Legislativo. A interpretao do
conceito tem levado, por parte da doutrina jurdica, a polmicas acerca da legitimidade da
apreciao jurisdicional das aes praticadas pelo Legislativo. Busca-se demonstrar, com
apoio em jurisprudncias do STF sobre a matria, que legtimo julgar os atos interna
corporis das Casas Legislativas e manter sua integridade preservada, porquanto no funo
da Justia discutir temas afetos ao Legislativo e, sim, aqueles que possam ferir direito
subjetivo, individual ou prejudicar interesses coletivos. Assim, objetiva-se demonstrar a
adequao do controle judicial com respeito ao procedimento legislativo sob a luz dos
preceitos constitucionais. Infere-se, a partir do trabalho de coleta de dados realizado, que a
manuteno da ordem democrtica demanda que a atuao de todos os agentes pblicos se
oriente por princpios legtimos e legais, mesmo que sejam do Legislativo, e o Judicirio
possui competncia para assegurar o cumprimento da lei.
Palavras-chave: Legislativo Judicirio judicializao da poltica - atos interna corporis.
Abstract
This study attempts to evaluate the judicialization of politics through the analysis of
the judicial system and its interference in acts interna corporis of the Legislature. The
interpretation of the concept by part of legal doctrine has resulted in controversy
about the legitimacy of judicial review of actions taken by the Legislature. We seek
to demonstrate that, backed by jurisprudence of the Supreme Court on the matter, it is
legitimate to judge acts interna corporis of the legislative houses and maintain their
integrity preserved for it is not the Justices role to discuss issues related to the
Legislature but rather discuss those that can harm subjective or individual rights as
well as collective interests. Thus, the goal is to demonstrate the judicial review
adjustment with respect to the legislative procedure in the light of constitutional
principles. It can be inferred from the data that the maintenance of democratic order
demands that the actions of all public officers and bodies be guided by legitimate and
legal principles even if they are part of Legislature and that the Judiciary has the
power to direct law enforcement.
Keywords: Legislature Judicial system Judicialization of politics interna
corporis acts.
6
INTRODUO
A criao do Estado proveio da necessidade do homem de viver em
comunidade, j que ele no se bastava para suprir suas carncias, precisando da ajuda de
outros para ajud-lo nessa empreitada1. Assim, visando ao bem-estar social, criou-se o
Estado (a administrao), o qual controlaria o comportamento dos membros do grupo
mediante a aplicao de normas jurdicas. Segundo Ccero2, [...] o Estado a coisa do
povo; e o povo no um aglomerado qualquer de seres humanos reunidos de uma forma
qualquer, mas a reunio de pessoas associadas por acordo.
Qualquer que fosse a acepo de Estado, este no podia prescindir da
justia palavra que remete noo daquilo que justo3. Com a evoluo histrica dos
grupamentos humanos, o tipo de poder dominante determinava o modo como este se
estruturaria; o tempo provou que a melhor organizao poltica era a Democracia pelo
menos a menos problemtica. Nesse regime, o povo detinha a autoridade diretamente, ou
indiretamente quando elegia representantes para agir em nome dele.
A partir da, instituiu-se o Estado Democrtico de Direito, o qual
carregava em seu bojo dois propsitos: assegurar direitos individuais e limitar a ao
estatal. A fim de perseguir e alcanar tais metas, optou-se por dividir o controle por rgos
autnomos e independentes. Surgia o embrio dos Poderes do Estado: o que administrava,
o que criava as leis e o que fiscalizava o cumprimento destas e solucionava demandas.
Esses poderes se qualificaram, respectivamente, como Executivo, Legislativo e Judicirio.
Essa teoria, cognominada depois de Teoria da Tripartio dos Poderes,
requer um sistema que regule o exerccio do poder poltico e limite possveis posturas
arbitrrias e centralizadoras; essa teoria embasou o Estado Liberal, cujos pilares so a
exaltao aos valores democrticos, a proteo s liberdades individuais e o bem-estar da
coletividade.
A partir da, a garantia de que um instituto no usurparia a soberania do
outro foi estabelecida com a delimitao da rea de atuao de cada um, sem que houvesse
hegemonia de qualquer deles; os checks and balances ou freios e contrapesos possuem
1 PLATO. Repblica. Traduo de Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 20.
2 CCERO. Da Repblica. Traduo de Therezinha Monteiro Deutsh e Baby Abro. So Paulo: Nova
Cultural, 2001, I, p. 25. 3 ARISTTELES. Poltica. Traduo de Therezinha Monteiro Deutsh e Baby Abro, 2000, p. 20.
7
a funo de harmonizar a relao entre os Poderes constitudos e delimitar a ao de cada
um deles. O ordenamento jurdico estabeleceu as funes inerentes a cada Poder, para
assegurar a normalidade democrtica.
A tripartio do poder, embora configurasse como postulado da
Democracia, acabou, contudo, por demonstrar que a total liberdade de ao de cada um
poderia comprometer a definio de Estado Democrtico o poder exercido por homens
que, em razo de sua natureza, possuem idiossincrasias permissivas a sua vontade de
distorc-lo ou de cometer abusos em seu nome para contemplar interesses pessoais ou de
grupos. Tal constatao conduziu necessidade de se estabelecerem formas de limitar e
controlar prerrogativas dos dirigentes pblicos, em nome do bem e da preservao da
Democracia.
No Brasil, a tradio, revelada em quase todos os textos constitucionais,
tem sido garantir a repartio dos Poderes e a independncia harmnica entre eles, como
reconhecimento da presena do Estado de Direito. No entanto, para que essa organizao
cumpra sua finalidade de gerir os recursos de que dispe em benefcio da coletividade, no
se concebe a Administrao Pblica e o Legislativo desvinculados de limites de atuao e
de cumprimento de normas atreladas ao ordenamento jurdico.
A diviso das funes, em tal contexto, no pode nem deve ser absoluta,
a fim de que se possa assegurar a proteo ordem jurdico-constitucional, com vrios
direitos fundamentais nela insertos. Dessa forma, o controle de constitucionalidade de leis
e atos normativos, mesmo que em tese signifique excessiva ingerncia do Judicirio em
questes legislativas, necessrio at para se manterem vivos postulados da Teoria de
Montesquieu.
Antes da promulgao da Constituio de 1988, o Supremo Tribunal
Federal (STF), rgo mximo do Poder Judicirio, detinha competncia e legitimidade
para julgar temas afetos a leis constitucionais e federais. Depois da vigncia da CF/88, O
STF passou a assumir as funes de defensor e intrprete das normas fundamentais, com o
papel de intrprete das leis federais atribudo ao Superior Tribunal de Justia (STJ). Com
isso, legitimou-se a atuao do Supremo no controle concentrado de constitucionalidade.
Inicialmente, questionou-se se a instaurao de uma Corte Constitucional
no Brasil poderia ferir ou prejudicar a independncia e a harmonia entre os Poderes de
8
Estado. Constatou-se, no entanto, que o STF possui como causa de agir o imobilismo do
Legislativo em sua funo de legislar ou a regulamentao de matria observada no texto
constitucional. Nesse sentido, o Judicirio competente para cobrar eficcia e efetividade
nos compromissos assumidos no texto constitucional.
Com respeito ao Legislativo, compete ao legislador formular leis,
respeitando, porm, preceitos constitucionais ou regimentais. Caso ele exceda as fronteiras
estipuladas por estes, poder assistir impugnao de seus atos pelo Poder Judicirio.
Nesses casos, no se pode falar em interferncia, ou ingerncia deste Poder nas funes do
Legislativo, mas na legtima postura de cobrar dos representantes do povo o cumprimento
aos preceitos da Carta Magna. Ao assim agir, no est o Judicirio deliberando acerca da
criao ou no de leis, pois tal comportamento configuraria invaso de funes a ele no
concernentes. O intuito preservar Direitos Fundamentais tutelados pelo Supremo, como o
da dignidade humana, e fiscalizar a atuao do Congresso Nacional em determinado tipo
de questes. O julgamento ocorre visando ao interesse pblico e realizado por
magistrados.
As Aes Diretas de Constitucionalidade (Adis) representam a principal
ferramenta de politizao do Judicirio ou de judicializao da poltica. A partir da
promulgao da Carta de 1988, no art. 103, criaram-se oportunidades para que outros
agentes polticos e sociais pudessem provocar o Judicirio no intuito de que fosse possvel
para este decidir em determinadas questes polticas. Atualmente, pode-se observar a
atuao do Poder Judicirio no sentido de interferir em temas concernentes tanto ao
Executivo como ao Legislativo, com a delimitao das fronteiras das aes
administrativas.
Tal situao ocorre tanto no que concerne ao abuso de poder do
legislador ao elaborar as regras quanto conduo do processo legislativo, representado
pelos atos interna corporis. Ainda que sejam inerentes Instituio, as aes carecem de
fiscalizao, mormente quando podem prejudicar direitos individuais. Ainda que o
Supremo possua algumas limitaes na anlise dos atos interna corporis do Legislativo,
definidas pela CF/88, questiona-se se conta ele com legitimidade para exercer a funo
poltica, advinda da estrutura institucional do rgo formas de deliberao da Corte,
instituio pela Carta Maior -, para julgar atos de competncia interna do Legislativo. Essa
9
postura, denominada de judicializao da poltica, tem se mostrado cada vez mais comum
no desempenho do STF.
Assim, em razo da importncia dessa matria, esta Tese versar sobre o
controle judicial dos atos interna corporis do Legislativo. Indaga-se se cabe ao Judicirio
imiscuir-se em assuntos de natureza interna daquele Poder e se h prescrio normativa
para que este Poder assim aja. Pode-se dizer ser esse o retrato da politizao do Poder
Judicirio.
Para tanto, dividiu-se a exposio em cinco captulos, os quais
apresentam o seguinte sumrio:
Captulo 1 comenta a separao dos Poderes; resgata diversos
conceitos de poder elaborados pelos principais pensadores da humanidade; discorre sobre a
harmonia entre eles e sobre o sistema de freios e contrapesos:
Captulo 2 analisa o poder poltico do Judicirio, mediante o estudo da
evoluo do conceito de poder, de poder poltico; enfoca ainda o poder poltico do Poder
Judicirio no Brasil:
Captulo 3 discorre a respeito da judicializao da poltica, decorrente
da promulgao da Constituio de 1988; elenca os instrumentos constitucionais de
judicializao da poltica no Brasil;
Captulo 4 versa acerca do papel do Supremo Tribunal Federal e a
judicializao da poltica decorrente de algumas decises emanadas desse rgo;
Captulo 5 examina as funes do Congresso Nacional; as
caractersticas dos atos do Legislativo, includos os atos interna corporis; trata da
interferncia do Judicirio na apreciao destes atos, esculpindo-se, assim, a politizao da
Justia.
O estudo focalizou as aes do Judicirio, especialmente os atos internos
das Casas Legislativas, as quais representam o fenmeno denominado judicializao da
poltica, no exerccio de seu papel de Corte constitucional. Nesse intento, recorreu-se
investigao documental, o que favoreceu a avaliao qualitativa dos dados. O
desenvolvimento de estudo com pesquisa qualitativa pressupe o corte de determinado
10
fenmeno por parte do pesquisador. A metodologia qualitativa, em certa medida,
assemelha-se a formas de interpretao dos fenmenos cotidianos, com dados que possuem
natureza anloga aos que o pesquisador utiliza na tcnica quantitativa4.
4 MAANEN, John Van. Reclaiming qualitative methods for organizational research: a preface.
Administrative Science Quarterly. Vol. 24, N 4, December 1979, p. 521.
11
CAPTULO 1 SEPARAO DOS PODERES
1.1 Introduo
A partir da Antiguidade Clssica, especialmente com as teorias de Plato
e Aristteles, foi admitido como verdade que o Estado, independentemente do regime a
que estivesse atrelado, exercia trs funes essenciais: a legislativa, a judiciria e a
executiva5:
[...] a teoria poltica dos gregos era, basicamente, a reflexo a propsito
da natureza da polis, dirigida como empreendimento intelectual
autoconsciente, diverso - e em nvel mais geral - do debate sobre matrias
polticas especficas. A teoria poltica era, portanto, uma atividade
secundria, a respeito do nvel em que era tratado seu assunto6. (grifo no
original)
Aristteles afirmava que os componentes do Estado eram a populao, o
territrio e a autoridade poltica. Teorizou acerca das funes dos poderes polticos e das
estruturas das autoridades. Estabeleceu, como marca de sua teoria, relao intrnseca entre
poltica e tica7. Conceituou o ser humano como animal cvico, carente de convvio social,
superior a todos os outros, desde que conhecesse a lei e a justia8.
O filsofo grego preceituou ainda a necessidade de se definirem poderes,
com estruturas, misso e funes diferentes: deliberativa (correspondente ao Legislativo);
executiva (correspondente ao Executivo) e jurisdicional (correspondente ao Judicirio)9.
A origem da ideia da separao dos poderes repousa na definio de
Aristteles de Constituio mista:
[...] constituio mista, para Aristteles, ser aquela em que os vrios
grupos ou classes sociais participam do exerccio do poder poltico, ou
aquela em que o exerccio da soberania ou o governo, em vez de estar nas
mos de uma nica parte constitutiva da sociedade, comum a todas.
5 ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 6 FINLEY, M. I. O Legado da Grcia: Uma Nova Avaliao. Traduo de Yvette Vieira P. de Almeida.
Braslia: Ed. U.N.B., 1998, p. 49. 7 COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 8. 8 Idem, ibidem.
9 Idem, ibidem.
12
Contrapem-se-lhe, portanto, as constituies puras em que apenas um
grupo ou classe social detm o poder poltico10.
O mesmo tema foi tratado por Aristteles, o qual afirmou serem as
Constituies a ferramenta que ordenaria e distribuiria os poderes do Estado metas da
sociedade civil e diviso do poder, da soberania11.
1.2 Poder de acordo com Locke
John Locke, filsofo ingls e idelogo do liberalismo, designado o
principal representante do empirismo britnico e um dos relevantes pensadores que
teorizaram sobre o contrato social, rejeitava a teoria das ideias inatas e asseverava que
todas as ideias do homem advinham da percepo dos sentidos. Escreveu sobre a origem e
a natureza do saber humano (Ensaio acerca do Entendimento Humano)12.
Teorizou igualmente acerca de filosofia poltica em duas principais
obras: no Primeiro tratado sobre o governo civil, questionou o direito divino dos reis e
afirmou que a vida poltica era inveno do ser humano, totalmente desvinculada de
aspectos religiosos, divinos. Reprovava a ascendncia divina dos prncipes, a qual conferia
legitimidade Monarquia Absolutista, e a considerava fundada em pseudoprincpios13.
J no Segundo tratado sobre o governo civil, discorreu a respeito da
propriedade privada e do Estado liberal, apresentando seu pensamento sobre a tripartio
dos poderes14. Foi ele que, depois de Aristteles, falou acerca da diviso de poderes.
Nesta obra, Locke discorreu sobre a constituio do Estado liberdade
de todos os seus membros a fim de poderem decidir a respeito de suas atitudes, inseridas
nos limites do Direito Natural. Essa vertente do Direito se apoia na convico de o ser
humano viver em estado natural, no qual ele totalmente livre para decidir os rumos de
sua vida, o seu comportamento, as suas atitudes, a forma como dispe de seus bens e de
10
PIARRA, Nuno. A Separao dos Poderes como doutrina e Princpio Constitucional Um contributo
para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 33. 11
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 8. 12
ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 13
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 31. 14
Idem, ibidem, p. 74.
13
seus familiares, tudo dentro dos contornos do direito. Nesse estado, ele possui livre arbtrio
no necessita nem da autorizao nem da vontade de qualquer outra pessoa para agir15.
Em tal contexto, s cabe a reciprocidade, a igualdade, estados que
determinam o poder, a competncia, sem que haja hierarquias, desigualdades, inclusive de
bens. Nessa conjuntura, todos os homens, como seres da mesma espcie, iguais desde o
nascimento, usufruem igualmente as benesses da natureza, sem sujeio a qualquer homem
que se intitule dono do poder16.
Esse estado de Natureza, porm, no abona atitudes que lesem o
prximo. Por serem iguais, independentes, dotados de razo, no se permite aos seres
humanos destruir seus pares, les-los na vida, na sade, na liberdade, nos bens. No foram
criados para servir aos outros, como escravos, pois possuem faculdades semelhantes.
Assim, cabe a cada um e a todos, como comunidade, preservar a prpria vida e a do outro,
conservar o ambiente em que vive, preservar a natureza. S agindo desse modo capaz de
conservar a espcie a humanidade17. O efeito desse comportamento que cada homem
passa a ter poder sobre outro, mas no o poder absoluto, arbitrrio, e sim aquele que s se
legitima quando se precisa punir um transgressor ou garantir a preservao da vida da
humanidade.
medida que os seres humanos se associam, sentem a urgncia de
definir leis, outorgando maioria o poder sobre a comunidade, inclusive com a
incumbncia de fazer respeitar essas normas. Para tanto, a sociedade designa alguns de
seus membros para se encarregarem do cumprimento das leis e da manuteno e da
ascendncia do bem comum em detrimento de interesses individualistas os quais venham a
prejudicar a vida social. Assim, pode-se afirmar que est estabelecida a perfeita
democracia18.
Nessa democracia perfeita, pelo menos em tese, todos so monarcas
pois so iguais e o ideal que cada um respeite absolutamente os direitos do outro,
entendendo-o como par, semelhante. Tal situao, porm, no existe, o que gera
sentimentos de medo, insegurana. O indivduo teme perder seus bens, ser desrespeitado
15
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 36. 16
Idem, ibidem. 17
Idem, ibidem, p. 37. 18
Idem, ibidem, p. 70.
14
pelo prximo, ser tratado com desigualdade. Da advm a necessidade de definir regras de
conduta - aceitas, conhecidas e consentidas por todos que precisaro os conceitos de
certo e errado (bem e mal). Ao agir assim, reconhecem a existncia de idiossincrasias
humanas - os defeitos, os sentimentos negativos tais como inveja, egosmo, ganncia,
orgulho, dentre outros19.
Ento, juntamente com a criao das leis, vem a constatao de que
preciso existir um juiz, imparcial, reconhecido como ntegro pela comunidade, o qual seja
revestido da autoridade necessria e legtima para solucionar conflitos, diferena, litgios
entre as pessoas que vivem nessa sociedade. Ele tem de ser capaz de aplicar dada lei a um
caso concreto e conseguir resolver o embate entre os interesses de cada uma das partes, j
que se considera serem os homens tendenciosos em relao s prprias carncias,
desprezando, na maioria das vezes, as necessidades do outro20. Cabe a ele igualmente dosar
a punio a ser estabelecida queles que infringem as normas sociais ou legais, alm de se
certificar que o castigo ser cumprido plenamente pelo infrator21.
Essas estruturas estabelecimento de leis e definio de juiz so
consideradas como a origem dos Poderes Legislativo e Judicirio, alm de marcar a
sedimentao das sociedades e dos governos. O primeiro detm competncia para legislar,
fixar os procedimentos a serem respeitados pelos membros da comunidade; com o tempo,
entretanto, os legisladores podem ter diminuda sua funo, uma vez que as leis
permanecem em vigor por perodo indefinido. Nesse caso, eles podem se ver tentados a
executar as regras que eles mesmos criaram e se desobrigar de obedecer a estas, passando a
contar com privilgios em relao aos outros indivduos, contrariando o objetivo
primordial da existncia do governo e da sociedade. Da surge a convenincia de se
estabelecer o Poder Executivo, responsvel pela execuo continuada das leis, visando ao
bem-estar social22.
Nesse sentido, o Executivo se torna apto a declarar estados de guerra e
paz, celebrar alianas com outras sociedades, bem como zelar pelo cumprimento das leis
19
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 69. 20
Idem, ibidem. 21
Idem, ibidem, p. 72. 22
Idem, ibidem, p. 75.
15
internamente, dentre outras atribuies h, ento, duas funes distintas embora
complementares entre si a federativa e a executiva, respectivamente23.
Assim, o poder deve se sustentar em quatro funes: a legislativa, a
executiva, a prerrogativa e a federativa24. A funo legislativa funciona como a
preponderante para a sociedade, embora seja necessrio se definirem limites ao exerccio
dela.
Quanto s outras funes, a executiva se encarrega da execuo das leis
nacionais; a prerrogativa, da tomada de decises em situaes de exceo constitucional e
a federativa, da administrao da segurana pblica interna25. Ressalta-se a distino entre
a funo executiva e a legislativa, a serem da competncia de indivduos diferentes. Como
no h dessemelhanas entre a natureza do Judicirio e a do Legislativo, aquele no deve
ser considerado como funo de poder os legisladores exercem atividade de juiz
imparcial26.
Existe distino entre a funo Executiva e a Legislativa, cabendo a
pessoas distintas deter cada uma delas. Ressalta-se que o Judicirio no pode ser
compreendido como genuna funo de poder, porque no existe essencial diferena entre
este e o Legislativo - a funo do juiz imparcial exercida eminentemente pelos que fazem
as leis. O Judicirio no tido como funo apaziguadora das situaes litigiosas. Em caso
de abuso do Executivo, est configurada a conjuntura propcia ao (de Direito Natural)
direito de revoluo popular27.
Bobbio reconhece essa caracterstica e leciona que a obra de Locke no
se refere a separao e equilbrio das funes de poder, e sim a separao e subordinao.
O Executivo deve ser subordinado ao Legislativo e ofensas sofridas por um indivduo
dessa sociedade poltica sero julgadas necessariamente pela funo Legislativa ou por um
magistrado por ela indicado28.
23
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 75. 24
PIARRA, Nuno. A Separao dos Poderes como doutrina e Princpio Constitucional Um contributo
para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 33. 25
ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 26
Idem, ibidem. 27
Idem, ibidem. 28
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. 2 ed. Braslia: Editora UnB, 1997, p. 48.
16
Deve-se atentar que, alm do nvel funcional e do institucional, a diviso
de Locke inclui o nvel social, com a ressalva de que a ambincia histrica pertencia ao
Feudalismo, ou seja, todos os estamentos sociais constituam o Parlamento, mas certas
classes nesse modo de produo eram mais favorecidas poltica e socialmente29.
Embora a obra de Locke no se relacione exatamente com separao e
harmonia entre os poderes, existem explicitamente ideias sobre diviso e equilbrio das
funes de poder (o Executivo deve estar subordinado ao Legislativo e este o responsvel
por julgar litgios ocorridos na sociedade)30. H conexo entre a teoria da separao dos
poderes e a rule of law, aquela como pr-requisito desta: [...] para que a lei seja
imparcialmente aplicada necessrio que no sejam os mesmos homens que a fazem, a
aplic-la31.
1.3 Poder de acordo com Montesquieu
Apesar de se reconhecer que Montesquieu no foi o primeiro filsofo a
tratar da separao entre os poderes do Estado, foi ele que a sistematizou pela primeira vez
e tornou sua Teoria da Separao dos Poderes um dos fundamentos da instituio do
Estado Democrtico Liberal32. As ideias de Charles-Louis de Secondat (1689-1755), ou
Baro de La Brde ou Montesquieu, encontravam-se conectadas ao contexto sociopoltico
da poca em que viveu e criou suas teses. O pensador analisou as variadas conexes entre
o Estado Nacional Laico e a Sociedade, elegendo esta como soberana e unificadora do
Estado33.
A mais conhecida obra de Montesquieu, O Esprito das Leis, publicada
em 1748, discorre sobre formas de governo, autoridade poltica e tripartio dos poderes,
dentre outros assuntos, os quais influenciaram as doutrinas do Direito Constitucional e da
Cincia Poltica; por isso, considerado como pensador contemporneo, embora tenha
29
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. 2 ed. Braslia: Editora UnB, 1997, p. 48. 30
Idem, ibidem, p. 49. 31
PIARRA, Nuno. A separao dos poderes: Um contributo para o estudo das suas origens e evoluo.
Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p.71. 32
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 9. 33
Idem, ibidem.
17
vivido durante a fase do Iluminismo. Nesse livro, falou acerca da legalizao da
autoridade, para evitar a violncia e a arbitrariedade, e apresentou a Teoria da Tripartio
dos Poderes34.
Tal Teoria exps tanto a distribuio, a limitao e o controle do poder
poltico, quanto a distribuio racional do Estado35. Apresentou igualmente a tese de que h
trs tipos de governo: monrquico, republicano e desptico, cada um com caractersticas
distintas36
. Na Monarquia, o poder recai sobre uma s pessoa, regido por regras
fundamentais; na Repblica, a procura pelo bem comum, pblico, e pela virtude resulta na
associao de todos; no Despotismo, tambm ocorre o monoplio, mas sem leis
regulamentares37. Enquanto a Monarquia e a Repblica recorrem s leis para governar, o
Despotismo emprega a arbitrariedade38.
A tripartio de poderes funda-se na liberdade e na justia, sem as quais a
sociedade se instalaria em bases instveis. A liberdade poltica se torna fundamental, ainda
que as leis se configurem como instrumento de poder, pois regem as relaes entre
governantes e governados. A natureza humana est sujeita a erros e [...] todo homem que
tem o poder levado a abusar dele [...]. Tudo se perderia caso a mesma pessoa ou os
mesmos governantes, ou grupo dos governados, exercessem simultaneamente os trs
poderes: criar leis, execut-las e julgar crimes e litgios dos cidados39. A fim de que no
houvesse abusos, imprescindvel que o poder contenha a ele prprio; por isso, a diviso
fundamental40.
Ainda com relao ao poder, h funo trplice: a Legislativa, a
Executiva e a Judiciria, representadas institucional e respectivamente por Parlamento,
Governo e Tribunais41. O Legislativo responsvel pela elaborao, pela revogao e pela
correo das leis; cabe ao Judicirio punir crimes ou julgar demandas pessoais e ao
34
BASTOS, Iolanda Lcia Gonalves; ALENCAR, Jucinete Carvalho de; SOUZA, Sandra Elisa Pereira. Os
princpios de governo, a natureza das leis e a tripartio de poderes segundo Montesquieu. 35
Idem. 36
MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso
dos poderes. Introduo, traduo e notas: Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 23. 37
Idem, ibidem, p. 34. 38
Ibidem, p. 35. 39
Ibidem, p. 66. 40
Ibidem, p. 64-65. 41
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 11.
18
Executivo, como ltimo poder, exercer as outras funes do Estado, a administrao geral,
funcionando, desse modo, como executor das normas42.
Essa constitui a concepo mais difundida sobre a separao dos poderes:
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder
Legislativo reunido ao Executivo, no h liberdade. Porque pode temer-
se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faa leis tirnicas para
execut-las tiranicamente. Tambm no haver liberdade se o Poder de
Julgar no estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse
junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidados
seria arbitrrio: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o
Executivo, o Juiz poderia ter a fora de um opressor. Estaria tudo perdido
se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou
do Povo, exercesse estes trs poderes: o de fazer as leis; o de executar
as resolues pblicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos
particulares43.
Em O Esprito das Leis, pode-se depreender que o filsofo associou a
separao de poderes ao conceito de liberdade e direitos fundamentais (a ideia se encontra
presente no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado): [...] toda
sociedade, onde a garantia dos direitos no esteja assegurada nem a separao de poderes
determinada, no possui constituio44.
Nesse contexto, deve preponderar o equilbrio das funes - o poder, por
ser uno e indivisvel, carece da diviso de competncias entre os trs rgos para que seja
exercido de forma correta. O governo deve ser republicano (a soberania do povo) e no
pertencer aristocracia (poder s de parte do povo), ao monarca (apenas uma pessoa
governa com leis rgidas) ou ao dspota (somente um governa, com regras flexveis)45.
Nesse pensamento, verifica-se interpenetrao e interdependncia de
funes entre o Executivo, o Legislativo e o Judicirio. A separao de poderes conta,
ento, com outro significado [...] de assegurar a existncia de um poder que seja capaz
de controlar outro poder [...]. problema poltico, de correlao de foras, e no problema
jurdico-administrativo de organizao de funes46. Apesar de tal entendimento, no
42
MONTESQUIEU. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso dos poderes.
Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 165. 43
Idem, ibidem, p. 67-68. 44
Ibidem, p. 138. 45
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 12. 46
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Os clssicos da poltica. 13 ed. So Paulo: Saraiva, 2004, p.119-120.
19
cabvel a completa reunio dos poderes de Estado, uma vez que [...] se no houvesse
monarca, e o poder executivo fosse confiado a um certo nmero de pessoas extradas do
corpo legislativo, no haveria mais liberdade, dada a unio dos dois poderes47.
"[...] se o poder executivo no tivesse o direito de refrear as aes do
corpo legislativo, este seria desptico; pois, ao atribuir-se todo o poder
que possa imaginar, aniquilaria todos os outros poderes"48
. O fim
principal da ordem poltica consiste em garantir a moderao do poder
pela "cooperao harmnica", equilbrio dos poderes sociais, entre os
Poderes do Estado constitudos (Legislativo, Executivo e Judicirio), com
o intuito de promover eficcia mnima de governo, alm de conferir-lhes
legitimidade e racionalidade administrativa49.
As funes de poder, para conviverem em harmonia, devem funcionar
como em uma balana, buscando o equilbrio por meio de duas premissas: criar um rgo
constitucional, o qual possa controlar, limitar ou contrabalanar o poder de outro rgo,
bem como garantir o direito anular uma resoluo tomada por quem quer que seja50.
As diferenas bsicas entre Locke e Montesquieu so as seguintes: as
funes federativa e prerrogativa de Locke esto insertas na funo executiva de
Montesquieu e este aceita a autonomia da funo judiciria, ideia descartada por Locke51.
1.4 Poder de acordo com Rousseau
Anos depois da publicao de O Esprito das Leis, Rousseau escreveu O
Contrato Social (1757), no qual critica a separao de poderes:
Nossos polticos, porm, no podendo dividir a soberania em seu
princpio, fazem-no em seu objeto. Dividem-na em fora e vontade, sem
poder legislativo e poder executivo, em direitos de impostos, de justia e
de guerra, em administrao interior e em poder de tratar com o
estrangeiro. Algumas vezes, confundem todas essas partes, e outras vezes
separam-nas. Fazem do soberano um ser fantstico e formado de peas
ajustadas, tal como se formassem um homem de inmeros corpos, dos
47
MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso
dos poderes. Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.
145. 48
Idem, ibidem, p. 147. 49
ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 50
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 12. 51
Idem, ibidem.
20
quais um tivesse os olhos, outro os braos, outro os ps, e nada mais alm
disso. [...] Esse erro provm de no terem tomado por partes dessa
autoridade o que no passa de emanaes suas. Assim, por exemplo,
tiveram-se por atos de soberania o ato de declarar guerra e o de fazer a
paz, que no o so, pois cada um 14 desses atos no uma lei, mas
unicamente uma aplicao da lei, particular que determina o caso da lei
[...]52.
A manifestao de soberania concretiza-se quando s a lei, considerada
em seu sentido abstrato, representa a vontade geral; nesse sentido, os atos do soberano so
apenas a funo legislativa. Existe distino entre a vontade de todos soma das
vontades de pessoas ou grupos e a vontade geral ente abstrato que almeja o bem
comum. A vontade de todos raramente coincide com a vontade geral e esta, por visar
ao bem-estar da coletividade, quase no erra53. A lei expresso nica do Poder, do
Soberano, sendo, tudo o mais, aes individuais, particulares54. No est afastada, porm, a
possibilidade de se criarem outros rgos alm do Legislativo, a fim de que possam
executar as leis55.
Assim, o poder uno, indivisvel e repousa no povo, a quem compete
julgar, administrar, legislar, fiscalizar ou desempenhar nova funo necessria
preservao do corpo social (o Estado), como meio de exercer o poder. Ento, o que
divisvel so as funes, no os poderes56. Desse modo, o conjunto de cidados (o povo),
cada um com uma parcela de soberania, decide quais sero seus representantes para
praticar o poder de modo responsvel com o intuito de perseguir o bem comum57.
Est revelada ento a viso de um pacto social totalitrio, uma vez que a
vontade geral representa o poder absoluto, salvo alguns atos particulares os quais, por
no interessarem a esta, so tratados no mbito da liberdade individual. Dentro de tal
52
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, Coleo Os Pensadores,
1978, p. 44-45. 53
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia
apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico
pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 13. 54
Idem, ibidem. 55
Idem, ibidem. 56
TEIXEIRA, Francisco Dias. O Ministrio Pblico e o Poder. Boletim Cientfico/ESMPU, n 7, 2003, p.
25. 57
WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.
Consultor Jurdico. 27 nov. 2005.
21
perspectiva, a separao de poderes invivel o soberano enfraquece caso o poder seja
dividido, o que no seria benfico sociedade nem ao Estado58.
Sobressai a teorizao de que as normas refletem a vontade geral e a
atuao do soberano ocorre quando ele a promulga, exercendo uma funo de poder. Para
se concretizar a soberania, no entanto, essencial que se valide a lei; nesse caso, compete
ao monarca criar rgos que exeram o poder com base nesses fundamentos, sem
representar essencialmente trs. Este se refere ao Estado no s funes realizadas por
instituies a ele atreladas, embora estas sejam fundamentais ao bom funcionamento
daquele. Nesse contexto, o poder torna-se indelegvel, inviolvel, j que s podem ser
executadas as prerrogativas concedidas pela Constituio.
Das caractersticas apontadas decorre a coatividade, ou seja, o poder se
impe independentemente da manifestao de vontade dos destinatrios dos seus
comandos. Isso se justifica porque os indivduos renunciaram ao exerccio da liberdade
absoluta (Estado da natureza) em prol da consecuo das finalidades comuns da vida em
sociedade. Portanto, trata-se de coao legtima; admitir a diviso do poder
consubstanciar um desvanecimento do poder.
1.5 Harmonia e independncia entre os Poderes
Montesquieu foi criticado por vozes discordantes do Iluminismo, as quais
entendiam a tripartio de competncias como diviso do prprio Estado, como ente
poltico, embora abstrato, uno59. Condorcet, por exemplo, argumentava que a
interdependncia do Poder impede sua separao; Comte explicava que [...] o Estado
Forte depende de um Poder Absoluto centralizado e concentrado60. J Duguit asseverava
que O Poder deve ser Uno, positivado e sua separao seria uma artificialidade, ao passo
que Malberg afirmava que [...] a diviso do Poder paralisaria o Estado. Malberg defendia
58
COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Op. cit., p. 13. 59
WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.
Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 60
Idem, ibidem.
22
que o Poder deveria ser unificado com distintos graus de funes (graduao do Poder) a
funo legislativa se sobreporia s demais61.
As ideias de Montesquieu prevaleceram independentemente das opinies
contrrias. Inovou em O esprito das leis, ao afirmar que as funes estatais deveriam ser
repartidas entre poderes autnomos e independentes, mas harmnicos entre si, tema
enfocado na Teoria do Estado desde os sculos XVII e XVIII62.
Essa teoria impactou a poltica, influenciando a organizao das naes
modernas. Os trs poderes possuem funes principais, que guardam identidade prpria - a
do Judicirio julgar; a do Legislativo legislar, ao passo que a do Executivo, administrar.
H, entretanto, funes secundrias, com o intuito de conferir e garantir independncia a
cada um deles63.
O Estado, como ente jurdico de Direito Pblico Internacional,
indivisvel. A pretenso ento era dividir as atividades estatais, a fim de que as relaes
sociais no fossem prejudicadas com a ineficcia ou a lentido de um Estado
centralizador64. No se pode questionar a unicidade do Estado e o poder que detm; este
exercido por trs rgos, com funes originrias, embora, em determinadas situaes de
exceo, um poder possa exercer a funo original do outro65.
Nessas teorias repousam os pilares da independncia dos Poderes cada
um deles possui competncias tpicas e originrias. Nesse sentido, precisam atuar em
harmonia em razo de objetivarem o bem-estar social. Tal estrutura do Poder visa
construo de um Estado ajustado s necessidades do povo, que possa agir de modo
eficiente e rpido em contextos emergenciais, apesar de atuar com cautela durante
transformaes poltico-econmicas66.
Ressalta-se, ademais, a necessidade de os rgos do Estado que exercem
o Poder a eles outorgado trabalharem em harmonia, o que no representa trabalhar
isoladamente ou incentivando a poltica de boa vizinhana, pois silenciosa e no
61
WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia. Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 62
COSTA, Leonardo C.; TERIN, Vitor J. TRIPARTIO DOS PODERES. Artigo. Revista Intertemas,
2006. 63
Idem, ibidem. 64
Op. Cit. WIEGERINCK, Joo Antonio. 65
Idem, ibidem. 66
Idem, ibidem.
23
perturba com seus problemas. Atuar harmonicamente se sobrepe a apenas tolerar -
conviver sem concordar e sem colaborar; representa interagir, colaborar, ter pacincia com
os problemas alheios e ajudar, quando for o caso. Significa ainda no interferir na
competncia dos outros, possibilitando que cada um exera suas funes com
independncia e, sobretudo, com excelncia67.
Pode-se assinalar, ento, que
[...] a diviso de poderes nunca se dissociou da ideia da sua
interpenetrao, do seu equilbrio, da sua harmonia, no podendo ser
tida como absoluta e desintegradora.
E teve sempre em vista, no consenso unnime dos que a adotaram, a
limitao do poder em benefcio da liberdade individual.
Nem seria lcito imaginar-se que o Estado, destinado a servir ao homem,
e sua criao, fosse organizado e funcionasse de tal modo que o
absorvesse e o oprimisse, como ocorre nos regimes absolutistas e
totalitrios.
[...]
A diviso da Assembleia Geral, rgo do Poder Legislativo, em duas
Cmaras, como ainda hoje ocorre, j inclui nesse ramo um dos processos
de interpenetrao, exercendo a ao frenadora atravs da qual se
visa a alcanar o desejado equilbrio68. (grifos nossos)
Ao se considerar a unidade do Poder, caracterstica do Estado, pode-se
incorrer no equvoco de interpretar a expresso tripartio do poder, compreendendo-a
como se estes pudessem ser estanques, o que acarretaria problemas acerca das atividades
estatais69. Para Jos Afonso da Silva, Cumpre, em primeiro lugar, no confundir distino
de funes do poder com diviso ou separao de poderes, embora entre ambos haja uma
conexo necessria70. A distino ocorre entre os rgos que desempenham as funes
provenientes do poder existentes nas sociedades.
Da observao do comportamento social, em momentos da histria, tm-
se destacado trs funes bsicas: geradora do ato geral; geradora do ato especial e
67
WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.
Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 68
CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituies do Brasil. 13 ed. So Paulo:
Atlas, 1999, p. 814. 69
A Unidade do Poder, independncia e harmonia entre os Poderes, indelegabilidade de funes. In:
Direitonet, 26 janeiro 2007. 70
SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional Positivo. 22 ed. So Paulo: Editora Malheiros,
2002, p. 55.
24
solucionadora de conflitos. As duas funes geradoras distinguiam-se somente quanto ao
objeto (gerar e executar atos), enquanto a terceira se destinava a solucionar conflitos entre
os entes sociais e entre eles e o Estado, identificadas, sobretudo, em Estados Absolutos71.
Uma forma de se proteger de qualquer abuso era a independncia dos
rgos, especialmente do responsvel pela elaborao do arcabouo legal, fato que
afastava, em princpio, a preponderncia da vontade de uma s pessoa. Com a aplicao
desse princpio, constatou-se a transformao das monarquias absolutas em sistemas de
governo mais limitados, resultando em muitos casos nos regimes parlamentares72.
Observa-se que a interpretao literal da expresso separao dos poderes
no atualmente foco de discusso, porquanto bem definidos os conceitos de Poder e de
rgos que desempenham as funes de poder; ou seja, o conceito da palavra separao
compreendido e aceito no contexto da moderna Teoria do Estado73.
1.6 Sistema de freios e contrapesos (checks and balances)
Embora a Teoria da Tripartio de Poderes pregue a independncia de
cada um deles, ela sustenta a ideia de que necessrio haver algum tipo de controle da
atuao deles, a fim de que no ocorram atos centralizadores e absolutistas. Foram criados,
assim, os freios e contrapesos para equilibrar o poder poltico de cada ente Executivo,
Legislativo e Judicirio74. Para Montesquieu, cada poder tem papel especfico: o Executivo
exerce vrias funes do Estado, como administrao geral e execuo das leis; o
Legislativo elabora as leis e corrige as que existem e o Judicirio pune crimes e julga
litgios entre indivduos, cidados e entes pblicos e privados75. Nesse contexto, a teoria de
71
A Unidade do Poder, independncia e harmonia entre os Poderes, indelegabilidade de funes. In: Direitonet, 26 janeiro 2007. 72
Idem, ibidem. 73
Idem, ibidem. 74
OLIVEIRA, Andr Pinto de Souza. A teoria da tripartio dos poderes no mbito dos controles difuso e
concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos ptrios. Jusnavigandi, maro 2007. 75
MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso
dos poderes. Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.
165.
25
freios e contrapesos funciona para manter a convivncia pacfica e harmoniosa entre os
poderes, uma vez que cada poder refrearia os abusos e as arbitrariedades do outro76.
Pereira reconhece, nas ideias de Aristteles sobre as formas de governo, a
origem do sistema de freios e contrapesos77, ao passo que Garvey e Aleintkoff creditam aos
britnicos a criao do conceito de balance equilbrio, contrapesos a fim de equilibrar
os projetos de lei da Cmara dos Comuns (representante do povo) pela Cmara dos Lordes
(representante do clero e da nobreza). O intuito era evitar a produo e a aprovao de
normas criadas por impulso ou com vis demaggico; especula-se que o real objetivo era
controlar as aes do povo, sobretudo as que ameaavam os privilgios dos nobres78.
Foi igualmente na Inglaterra que surgiram outros relevantes instrumentos
do sistema de freios e contrapesos: o impeachment e o veto. Este foi implantado como ato
de oposio do Rei (negative voice) para aprimorar o processo legislativo, pois o monarca
no mais participa da criao das leis, embora possa impedir que elas entrem em vigor,
exercendo algum tipo de controle sobre o Legislativo. J aquele representa mecanismo
jurdico e poltico que faculta ao Parlamento controlar os atos do Executivo79.
Paulo Fernando Silveira acrescenta que o check despontou na ocasio em
que o Justice Marshal, durante o caso Marbury x Madison, em 1803, afirmou ser
competncia constitucional do Poder Judicirio declarar a inconstitucionalidade dos atos
do Congresso, anulando-os, sempre que as leis no se harmonizassem com a Carta Magna.
Por essa doutrina, o Judicirio passou a controlar o abuso de poder do Executivo e do
Legislativo80.
A partir, ento, do entendimento de que deve haver a diviso das funes
do Estado, bem como a individuao dos rgos deste, sem prevalncia de um Poder sobre
o outro, mas com a possvel interferncia de um no outro, pode-se admitir o controle e a
vigilncia recprocos, a fim de se garantir o cumprimento das funes constitucionais de
76
SOUZA, Sandra Elisa Pereira; ALENCAR, Jucinete Carvalho de; BASTOS, Iolanda Lcia Gonalves. Os princpios de governo, a natureza das leis e a tripartio de poderes segundo Montesquieu. Governo e
Poltica. 23 outubro 2009. 77
Idem, ibidem. . 78
GARVEY, John H.; ALEINTKOFF, T. Alexander. Modern constitutional theory: a reader. St. Paul:
West Publishing, 1991, p. 238. 79
PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio constitucional um contributo
para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 59-62. 80
SILVEIRA, Paulo Fernando. Freios e Contrapesos (Checks and Balances). Belo Horizonte: Del Rey,
1999, p. 94.
26
cada um. Moreira Neto, com o fito de expandir a ideia dos freios e contrapesos, classifica
em quatro modalidades bsicas as funes de controle81:
[...] controle de cooperao: o que se perfaz pela co-participao
obrigatria de um Poder no exerccio de funo de outro. Pela
cooperao, o Poder interferente, aquele que desenvolve essa funo que
lhe atpica, tem a possibilidade de intervir, de algum modo especifico,
no desempenho de uma funo tpica do Poder interferido, tanto com a
finalidade de assegurar-lhe a legalidade quanto legitimidade do
resultado por ambos visado.
controle de consentimento: o que se realiza pelo desempenho de
funes atributivas de eficcia ou de exeqibilidade a atos de outro
Poder. Pelo consentimento, o Poder interferente, o que executa essa
funo que lhe atpica, satisfaz a uma condio constitucional de
eficcia ou de exequibilidade de ato do Poder interferido, aquiescendo ou
no, no todo ou em parte, conforme o caso, com aquele ato, submetendo-
o a um crivo de legitimidade e de legalidade.
controle de fiscalizao: o que se exerce pelo desempenho de funes
de vigilncia, exame e sindicncia dos atos de um Poder por outro. Pela
fiscalizao, o Poder interferente, o que desenvolve essa funo atpica,
tem a atribuio constitucional de acompanhar e de formar conhecimento
da prtica funcional do Poder interferido, com a finalidade de verificar a
ocorrncia de ilegalidade ou ilegitimidade em sua atuao.
controle de correo: o que se exerce pelo desempenho de funes
atribudas a um Poder de sustar ou desfazer atos praticados por um outro.
Pela correo, realiza-se a mais drstica das modalidades de controle,
cometendo-se ao Poder interferente a competncia constitucional de
suspender a execuo, ou de desfazer, atos do Poder interferido que
venham a ser considerados viciados de legalidade ou de legitimidade.
No Presidencialismo e no Parlamentarismo, o controle do poder dos entes
do Estado pode ser exercido de diversas formas, dentre elas pela previso constitucional de
veto do Executivo a projetos aprovados pelo Legislativo; pela faculdade de o Presidente da
Repblica conceder indulto e comutar penas forma de controle de correo da atividade
jurisdicional; pelo controle de constitucionalidade, pelo Judicirio, das normas elaboradas
pelo Legislativo ou de decretos ou medidas provisrias inconstitucionais editadas pelo
Executivo, situao em que aquele pode inclusive suspender a execuo de lei considerada
por ele como inconstitucional (controle de correo); pela faculdade de o Legislativo e o
Judicirio controlarem o Executivo por meio do impeachment82.
81
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Interferncias entre Poderes do Estado. Revista de Informao
Legislativa, n 103/13. Braslia: Senado, 1989. 82
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7 ed. So Paulo: Atlas, 2000, p. 67-74.
27
Por meio do balanceamento dos Poderes (freios e contrapesos), com cada
um deles responsvel por variadas funes, pode-se controlar o poder e garantir a liberdade
e o bem-estar dos cidados. A sntese do controle limitar o poder.
O Judicirio, desde sua criao, tambm tem lidado com diferentes
formas de poder quando exerce suas funes, alteradas com os avanos poltico-sociais.
28
CAPTULO 2 PODER POLTICO DO JUDICIRIO
O objetivo dos antigos era a distribuio do
poder poltico entre todos os cidados de uma
mesma ptria: era isso que eles chamavam de
liberdade. O objetivo dos modernos a
segurana nas fruies privadas: eles chamam
de liberdade s garantias acordadas pelas
instituies para aquelas fruies. [...] No
podemos mais usufruir da liberdade dos
antigos, que era constituda pela participao
ativa e constante no poder coletivo. A nossa
liberdade deve, ao contrrio, ser constituda
pela fruio pacfica da independncia privada.
Benjamin Constant
2.1 Evoluo do conceito de poder
O homem, desde que habita o planeta Terra, procurou viver em grupos a
fim de preservar a espcie e garantir sua subsistncia. Para tanto, teve de conviver com os
outros, criar sociedades, as quais de incio se caracterizavam por constantes conflitos entre
os membros de um mesmo grupo, entre distintos grupos ou contra as intempries da
natureza83.
Nessa poca o poder se concentrava naqueles aptos a defender o grupo e
orient-lo tanto nas tarefas cotidianas quanto nas lutas contra outros bandos. Ele era
considerado selvagem, pois se preocupava com necessidades bsicas e imediatas84.
Nessa fase, a da barbrie, o ser humano j era capaz de transformar a
natureza em prol da sobrevivncia dele realizava atividades pecurias e agrcolas. Em
razo disso, surgiu o conceito rudimentar de propriedade, o que resultou no
estabelecimento de uma autoridade central mais organizada, que coordenava a vida da
comunidade e os ataques aos inimigos85.
83
SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e
Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 84
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p. 48. 85
Op. Cit. SILVA, Osmar Jos da.
29
Com a evoluo humana, estabeleceu-se a civilizao, a partir da qual se
consolidou a diviso do trabalho, o desenvolvimento da inteligncia e as noes de posse e
propriedade. Alm das tarefas pecurias e agrcolas, o homem passou a lidar com a arte e a
indstria, ainda que rudimentar. A segmentao do trabalho foi aperfeioada e com ela a
necessidade de se manter a ordem social, em razo do aumento e da complexidade dos
conflitos gerados no meio dos grupos, motivados, sobretudo, por vingana e ambio86.
A fim de garantir a ordem social, o ser humano manteve o poder
centralizado, uma vez que entendia ser essa a melhor forma de se preservar a paz social e o
bem-estar da comunidade. O poder era conferido aos mais fortes, aos mais capazes, aos
chefes e aos sucessores e herdeiros de cls e tribos. Surgiam a os primrdios da
Monarquia87. Com a evoluo espiritual, as pessoas passaram a crer em um ser superior,
responsvel pelo destino das gentes, e depositaram na figura do governante os rumos do
grupo, pois entendiam ser este o enviado de Deus, portanto divinizado, mgico88.
Deduz-se que j se firmava a vocao do homem para viver em
sociedade - o ser humano era um animal sim, mas sociopoltico, que carecia de
organizao, desenvolvimento e poder89:
Se natural o homem viver em sociedade, necessrio que entre os
homens exista alguma coisa pela qual a multido dirigida [...] em todas
coisas que se ordena a um fim, em que se deve proceder de um modo ou
de outro, necessrio um dirigente, atravs do qual se chegue
diretamente ao fim devido90.
Havia, porm, oposio ideia de que o poder e a sociedade advinham de
necessidade inata dos seres humanos; o entendimento era de que derivavam de pactos,
contratos, convenes firmados entre estes por vontade dos membros do grupo. Eles
estabeleciam normas de comportamento a serem seguidas por todos91. No estado da
natureza (ou jus naturale), pr-social, o homem se isolava e hostilizava os outros, uma
vez que entendia ser livre para definir os rumos de sua existncia, sem dever satisfao de
seus atos a outro do mesmo grupo social; em seguida, mediante o pacto social, ele passou
86
SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e
Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 87
Idem, ibidem. 88
Idem, ibidem. 89
Idem, ibidem. 90
Idem, ibidem. 91
Idem, ibidem.
30
ao estado da sociedade civil com o estabelecimento de leis e poder poltico92. No pacto,
ficava definido que o cumprimento do acordo era considerado sagrado (da se originou a
justia)93.
O ser humano transitou ento da condio de selvagem inocente para
membro do Estado de sociedade e depois para o Estado civil, no qual havia renncia a
parte da liberdade natural e a posse de bens, armas e riquezas. Estas eram transferidas a
uma pessoa o monarca -, que se investia de autoridade poltica para comandar o grupo94.
Nessa configurao, a soberania e o poder pertenciam ao Estado, composto pelo corpo
poltico reunio de homens95; Rousseau pregava que o real soberano era o povo e o
governante o representante legal daquele96.
Com o desenvolvimento das sociedades, tornou-se cada vez mais
complexo definir o que o poder, principalmente porque ele assume na prtica
diversificadas formas. O poder concentra-se em Estado e poltica, interconectados entre
si97, e pode ser ilimitado ou absoluto com a paz entre os homens ou limitado com a
manuteno dos conflitos98.
O poder, em tal cenrio, caracteriza-se pela capacidade do sujeito de
alcanar determinados objetivos, metas, como elaborar leis, influir a conduta das pessoas.
Assim, o poder significa o direito de que um sujeito portador e est respaldado no
ordenamento jurdico de dada sociedade99.
O poder pode ser considerado ainda como [...] toda probabilidade de
impor a vontade numa relao social, mesmo contra resistncias, seja qual for o
fundamento dessa probabilidade100. Nesse sentido, as relaes sociais so plurais
(amizade, hostilidade, competio poltica e econmica, dentre outras) e, por isso,
92
MALMESBURY, Thomas Hobbes. O Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil.
Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. So Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 47. 93
Idem, ibidem, p. 52. 94
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. 3 edio. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 63. 95
Op. Cit. MALMESBURY, Thomas Hobbes, p. 48. 96
Op. Cit. ROUSSEAU, p. 65. 97
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p. 53. 98
Op. Cit. MALMESBURY, Thomas Hobbes, p. 58. 99
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 77. 100
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora
Universidade de Braslia, 1991, p. 35.
31
precisam ser reguladas por expectativas recprocas, pertencer a certas estruturas sociais
(como Igreja, Estado e famlia) e inserir-se em normas afetas a todos. Assim, o poder se
encaixa numa relao social.
Norberto Bobbio questiona a justificao do poder poltico nestes termos:
[...] admitido que o poder poltico o poder que dispe do uso exclusivo
da fora num determinado grupo social, basta a fora para faz-lo aceito
por aqueles sobre os quais se exerce, para induzir os seus destinatrios a
obedec-lo101?
A questo pode ser interpretada sob dois aspectos: a efetividade do
direito, a durao do poder fundado s na fora, e a legitimidade do poder, fundado to
somente na fora, que pode ser efetivo sem ser legtimo. o problema da fundamentao
do poder102. As respostas a esse questionamento repousam no fundamento da organizao
social a legitimidade se caracteriza pela submisso de dado grupo a um mandato103. Uma
das formas de se concretizar essa dominao a legal, a qual corresponde estrutura
moderna de Estado, com quadro administrativo hierarquizado.
Kelsen e seus discpulos no corroboram a ideia clssica de que, sem a
participao do poder, no se efetivaria o direito. Para ele, ao identificar direito e Estado,
no h outro direito salvo o positivo e no existe poder exceto a coao como contedo da
norma jurdica. Afirmam que a soberania no constitui poder, tampouco necessria
garantia de atualizao do direito; o poder no precisa vir antes do direito para poder
sancion-lo. A soberania se refere apenas validade e unidade de um sistema de normas,
decorrncia lgica da norma fundamental hipottica considerada pelo jurista como
condio do prprio sistema104.
Ainda que haja pensadores que advoguem ser o poder prescindvel, pois
viola a liberdade individual e os princpios da conscincia religiosa, dispensvel, portanto,
101
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p. 55. 102
Idem. 103
WEBER, Max. Op. cit, idem. 104
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Apud SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito.
Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico.
32
positivao do direito, grande parte dos autores atuais reconhece o poder como
indispensvel estrutura do Estado e vida social105.
Dalmo Dallari leciona que, mesmo em sociedades mais organizadas e
prsperas, ocorrem conflitos os quais precisam ser solucionados; para tanto, fundamental
a interveno de uma vontade hegemnica que possa garantir a unidade e a paz social106.
2.2 Poder poltico
O poder poltico propriamente dito surgiu nas sociedades grega e romana,
que originaram o poder e a autoridade poltica. Coube-lhes, por meio de seus legisladores
(seus primeiros dirigentes), impedir a concentrao de poderes e de autoridade na mo de
uma nica pessoa o rei.
Com a urbanizao e o decorrente xodo rural, os camponeses que
acorriam s aldeias se tornavam comerciantes e artesos e lutavam nas guerras, o que lhes
permitiu avocar a si o direito de participar das decises poltico-econmicas e legais das
ento cidades107. Em Atenas, os naturais podiam compartilhar o poder diretamente, o que
originou o conceito de democracia, enquanto em Roma os pobres, ou a plebe aqueles que
no possuam propriedades - elegiam um tribuno o qual os representava perante os
patrcios os que partilhavam realmente o poder108.
Pode-se afirmar que foi a que se inventou a poltica a lei passou a ser
entendida como vontade pblica e coletiva, com direitos e deveres para todos; instituies
pblicas foram criadas a fim de garantir prerrogativas e obrigaes; o errio foi
estabelecido bens e recursos pblicos passaram a pertencer comunidade; o poder civil e
o militar foram separados, com a subordinao deste quele; o Senado romano e a
Assembleia grega foram implantados, nos quais os cidados, isto , os que possuam
105
SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e
Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 106
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19 ed. So Paulo: Saraiva, 1995, p.
174. 107
Op. cit. SILVA, Osmar Jos da. 108
Idem, ibidem.
33
direitos iguais, discutiam, opinavam e deliberavam por meio do voto acerca de questes
sobre a vida comunitria, em locais abertos109.
Tanto na oligarquia romana quanto na democracia ateniense, a sociedade
buscou organizar-se socioeconomicamente e o Estado despontou como poder apartado da
sociedade, embora responsvel por conduzi-la, comand-la e solucionar conflitos e
disputas de qualquer natureza, com os cidados exercendo parte de tal poder110. Estava
consolidada a poltica da cultura ocidental, como resposta s contradies sociais.
Alm disso, considerava-se que dado regime s podia ser denominado de
poltico caso houvesse um corpo de normas reconhecidas publicamente e respeitadas por
dirigentes e cidados. A ausncia da lei podia conduzir a regimes tirnicos ou anarquia.
Para se manter a poltica, era necessrio existirem instituies pblicas, direito e regras,
com o fito de criar a vida boa e a justia ordem, harmonia e concrdia111.
Com o passar dos sculos, o conceito de poder poltico sofreu algumas
transformaes e evoluiu. Passou-se a entender que no competia ao Estado definir a
propriedade privada, mas defend-la e garanti-la contra os que dela quisessem se apropriar
ilegitimamente, sem que isso interferisse na vida econmica. Ademais, cabia ao Estado
legislar permitir ou proibir o que se referisse vida pblica sem se imiscuir na
liberdade de pensamento dos governados nem na liberdade econmica (movimento
chamado de Liberalismo, consolidado na Inglaterra em 1688). O Estado desempenhava o
papel de garantidor da ordem pblica112.
Nessa conjuntura, despontou o Estado de Direito, com a responsabilidade
de assegurar os direitos individuais e submeter todos os cidados s leis e s decises do
Poder Judicirio. Ao ser assumido como garantia constitucional, o Estado de Direito
passou a deter a juridicidade, os direitos fundamentais e a constitucionalidade como
premissas. Quanto juridicidade, representa elemento de natureza material, formal e
procedimental, visando solucionar os obstculos decorrentes da atuao estatal. Pretende,
sobretudo nos Estados Democrticos de Direito, configurar o poder e a estruturao dele ao
direito, mediante o estabelecimento de normas, regras, procedimentos, embora se
109
SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e
Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 110
Idem, ibidem. 111
Idem, ibidem. 112
Idem, ibidem.
34
reconhea que o Direito padece da intromisso de valores sociais, econmicos, polticos,
religiosos, ideolgicos113.
Nesse sentido, pode-se compreender o direito como uma estrutura
organizada racionalmente qual se conecta determinada sociedade. A fim de garantir a
organizao, essencial que se definam comportamentos, se fundem instituies, bem
como se rejeitem posturas as quais firam os valores delimitados pelo Estado114. Assim,
cabe ao direito ainda indicar garantias jurdico-formais para resguardar a sociedade e o
prprio Estado de condutas inadequadas por parte dos poderes constitudos.
Nesse aspecto, a juridicidade, ou o princpio da igualdade perante a lei,
contempla a inter-relao entre o direito objetivo (aspecto objetivo) e o subjetivo (aspecto
subjetivo); no momento em que se criam normas para firmar paradigmas comportamentais
desejveis (e indesejveis), formula-se o designado estado de distncia, segundo o qual
se concedem aos indivduos determinados direitos individuais, inalienveis pois inerentes a
eles, dando-lhes autonomia e confirmando o estado de direito como conceito de justia
social115.
Por intermdio da juridicidade, possvel se afianar que os pactos
sociais, os contratos, sejam respeitados, cumpridos, honrados.
Alm de se configurar como jurisdicional, o Estado de Direito
igualmente constitucional os poderes pblicos (funes do Estado) so organizados em
uma constituio, a qual determina os atos e as medidas desses poderes, constri o
ordenamento jurdico e confere expresso Estado de Direito sua real dimenso. So
inerentes ao princpio da constitucionalidade a subordinao de todas as atividades do
Estado Constituio (controle poltico-jurdico), sejam elas administrativas, sejam
polticas116.
Implica tambm que algumas matrias sejam tratadas apenas luz do
texto constitucional, conforme sua tipicidade e sua natureza (princpio da reserva da
Constituio); que a Carta maior detm fora normativa no pode ser menosprezada em
decorrncia de outros normativos tais como leis inferiores (princpio da fora normativa da
113
CANOTILHO, Jos Joaquim G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 218. 114
Idem, ibidem, p. 219. 115
Idem, ibidem. 116
Idem, ibidem, p. 210.
35
Constituio); que o legislador no pode se esquivar dos ditames constitucionais ao
legislar, tampouco os polticos eleitos podem infringir as normas constitucionais117.
Por fim, o Estado de Direito se funda no pressuposto de atestar os
direitos fundamentais dos indivduos. Estes prevalecem sobre os demais, precipuamente os
que respeitam prerrogativas coletivas e individuais valores de igualdade. Desse modo,
esto preservados os direitos humanos, as liberdades civis e determinados interesses
particulares118.
A depender da Constituio, os direitos fundamentais podem ser assim
elencados: direito nacionalidade, livre circulao, residncia, ao asilo e propriedade
(direitos pessoais diante da sociedade); direito liberdade, segurana e vida (direitos
pessoais); direito liberdade de pensamento; religio, expresso, reunio e
associao (liberdades e direitos pblicos); direito ao trabalho, ao repouso, educao,
sindicalizao (direitos econmicos e sociais)119.
A partir de tal entendimento, pode-se considerar que os termos direitos
fundamentais e direitos do homem so equivalentes semanticamente. Ao se levar em
conta a origem, na concepo jusnaturalista-universalista, direitos do homem constituem
aqueles apropriados a todas as gentes, ao passo que direitos fundamentais representam, na
dimenso jurdico-institucional, os direitos do homem restritos no tempo e no espao,
porquanto vigoram em dada ordem jurdica durante o tempo em que ela existir120.
[...] muitos dos direitos fundamentais so direitos de personalidade, mas
nem todos os direitos fundamentais so direitos de personalidade. Os
direitos de personalidade abarcam certamente os direitos de estado, os
direitos sobre a prpria pessoa, direito privacidade, direitos distintivos
da personalidade (direito identidade pessoal, direito informtica) e
muitos dos direitos de liberdade. Tradicionalmente, afastam-se dos
direitos de personalidade os direitos fundamentais polticos e os direitos a
prestaes por no serem atinentes ao ser como pessoa121.
Ademais, necessrio distinguir entre os direitos fundamentais no
constitucionais e os formalmente constitucionais, que se prestam a defender a liberdade;
117
CANOTILHO, Jos Joaquim G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 210. 118
Idem, ibidem, p. 211. 119
Idem, ibidem, p. 211. 120
CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:
Gradiva, 2003, p. 369. 121
Idem, ibidem.
36
exercer prestao social; proteger as pessoas contra terceiros e garantir a no-
discriminao, protegendo os valores fundamentais da ordem jurdica:
[...] os direitos consagrados e reconhecidos pela constituio designam-
se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais,
porque eles so enunciados e protegidos por normas com valor
constitucional formal (normas que tm a forma constitucional). A
Constituio admite [...], porm, outros direitos fundamentais constantes
das leis e das regras aplicveis de direito internacional. Em virtude de as
normas que os reconhecem e protegem no terem a forma constitucional,
estes direitos so chamados direitos materialmente fundamentais122.
(grifos do autor)
A ausncia desse tipo de direito tornaria as Constituies um texto vazio,
com um conjunto de regras formadoras do texto constitucional, mas que no se prestaria ao
mais alto objetivo promover o bem-estar social, a paz, o convvio pacfico, a harmonia.
Pode-se deduzir que sem a Carta Maior no h direitos fundamentais, pois so designados
como direitos constitucionais. Como so reconhecidos pelas instituies pblicas e sociais,
geram efeitos jurdicos. So garantidos, admitidos e acolhidos pelo Estado.
Com base em tais premissas, pode-se constatar a fora do Poder
Judicirio, incumbido de preservar esses direitos (e outros), fazer cumprir os preceitos
constitucionais e as demais leis que regem o Estado.
2.3 Poder poltico do Judicirio
Uma vez que a funo poltica objetiva fixar critrios, concretizados em
leis, normas e procedimentos, que auxiliem a promover o bem comum, a sobrevivncia da
sociedade, cabe aos cidados criar rgos com poderes suficientes para atuar de modo a
cumprir essas finalidades.
A Carta Magna responde no s pela instituio dos rgos que
exercero a funo poltica, como tambm pela competncia de cada um deles e pelos
mtodos a serem empregados quando da atuao poltica de cada um. Dentre os limites
previstos pela Constituio, encontram-se os atos passveis de ser realizados pelo
122
CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:
Gradiva, 2003, p. 369.
37
Judicirio para executar a funo poltica tais como recursos, aes, jurisprudncias,
decidindo com respeito a temas relevantes.
Inicialmente, considerava-se o Poder Judicirio como desprovido de
relevncia, como um poder que se restringia a acatar os desgnios das normas. Era
entendido como o mais frgil dos Poderes, uma vez que no lhe cabia criticar nem o
Executivo nem o Legislativo. Essa percepo comeou a se alterar com o movimento de
constitucionalizao acontecido no sculo XX, especificamente depois da Segunda Guerra
Mundial. A partir da, pde-se verificar marcadas transformaes nas relaes entre os
Poderes dentro do Estado. Os tribunais e as outras instituies jurdicas vivenciaram o
aumento, a expanso de seu poder, mormente na Amrica Latina, na Europa e nos Estados
Unidos123.
Com a evoluo das instituies poltico-jurdico-sociais, expandiu-se a
atuao desse Poder, com o discurso poltico permeado pela retrica jurdica, com os
tribunais desempenhando marcante papel na elaborao de polticas pblicas com nova
postura de magistrados regulamentar o procedimento poltico e impor o respeito a
determinados comportamentos chancelados por partidos polticos, servidores pblicos,
autoridades do governo, polticos e grupos de interesses particulares124.
Dessa forma, o Judicirio, com respaldo do texto constitucional, passou a
zelar igualmente pelo respeito Constituio. Ele possui competncias prprias,
individuais, e a liberdade de agir independentemente segundo seus propsitos e sua
interpretao da Carta Maior. Compete-lhe tambm julgar atos dos outros Poderes, a fim
de verificar se esto conformes com as leis, as normas, tornando-se responsvel em alguma
medida pelos outros Poderes. Ao aplicar as regras a casos concretos, possui o direito
inerente de interpret-las segundo o pensamento dos representantes da rea jurdica ou, ao
contrrio, seguir literalmente a letra da lei e o entendimento do legislador, sem
extrapolaes125
. Assim, conclui-se que a atividade jurdica igualmente poltica, pois o
a prpria opo do juiz por um ou outro rumo na deciso das lides.
123
MAURCIO JNIOR, Alceu. Judicializao da poltica e a crise do direito constitucional. Revista de
Direito do Estado - RDE I. Ano 3, n. 10: 125-142, abr./jun. 2008, p. 126-127. 124
Idem, ibidem, p. 127. 125
CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:
Gradiva, 2003, p. 369.
38
Com a instituio do Judicirio, verifica-se que o poder poltico convive
com progressiva juridicidade, dado que se transitou do uso da fora bruta para o mbito do
Direito. Nesse sentido, o direito e o poder representam fenmenos concomitantes, o que
conduz ideia de distintos graus de juridicidade126.
Ressalta-se, porm, que, embora o poder objetive se conformar cada vez
mais ao direito, ele no ou ser puramente jurdico, pois a prpria positivao do direito
depende da existncia daquele. A positivao do Direito depende do poder em geral, a fim
de que se torne eficaz. Para que determinada regra se configure como de Direito Positivo,
ela depende da interferncia do poder127.
Tal integrao, que abarca interesses