129
SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 SEPARAÇÃO DOS PODERES........................................ 18 1.1 Introdução......................................................................................................... 18 1.2 Poder de acordo com Locke....................................................................... 19 1.3 Poder de acordo com Montesquieu.......................................................... 23 1.4 Poder de acordo com Rousseau.................................................................. 26 1.5 Harmonia e independência entre os Poderes........................................ 28 1.6 Sistema de “freios e contrapesos” (checks and balances).................. 31 CAPÍTULO 2 PODER POLÍTICO DO JUDICIÁRIO........................... 35 2.1 Evolução do conceito de poder................................................................... 35 2.2 Poder político.................................................................................................... 39 2.3 Poder político do Judiciário......................................................................... 43 2.4 Poder Judiciário no Brasil........................................................................... 45 2.4.1 Evolução.............................................................................................................. 46 2.4.2 Conclusão............................................................................................................ 52 CAPÍTULO 3 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA (CONSTITUIÇÃO DE 1988) - INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL...................................................................................................................... 55 3.1 Ativismo judicial.............................................................................................. 55

SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 SEPARAÇÃO DOS PODERES · 1.4 Poder de acordo com Rousseau ... Essa teoria, cognominada depois ... se concebe a Administração Pública e o Legislativo

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  • SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................................... 13

    CAPTULO 1 SEPARAO DOS PODERES........................................ 18

    1.1 Introduo......................................................................................................... 18

    1.2 Poder de acordo com Locke....................................................................... 19

    1.3 Poder de acordo com Montesquieu.......................................................... 23

    1.4 Poder de acordo com Rousseau.................................................................. 26

    1.5 Harmonia e independncia entre os Poderes........................................ 28

    1.6 Sistema de freios e contrapesos (checks and balances).................. 31

    CAPTULO 2 PODER POLTICO DO JUDICIRIO........................... 35

    2.1 Evoluo do conceito de poder................................................................... 35

    2.2 Poder poltico.................................................................................................... 39

    2.3 Poder poltico do Judicirio......................................................................... 43

    2.4 Poder Judicirio no Brasil........................................................................... 45

    2.4.1 Evoluo.............................................................................................................. 46

    2.4.2 Concluso............................................................................................................ 52

    CAPTULO 3 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAO DA

    POLTICA (CONSTITUIO DE 1988) - INSTRUMENTOS

    CONSTITUCIONAIS DE JUDICIALIZAO DA POLTICA NO

    BRASIL......................................................................................................................

    55

    3.1 Ativismo judicial.............................................................................................. 55

  • 3.1.1 Origem e conceituao....................................................................................... 55

    3.2 Judicializao da poltica.............................................................................. 58

    3.2.1 Introduo........................................................................................................... 58

    3.2.2 Conceito............................................................................................................... 62

    3.2.3 Razes da judicializao.................................................................................... 64

    3.2.4 Diferena entre ativismo judicial e judicializao........................................... 65

    3.3 Judicializao poltica no Brasil................................................................. 66

    3.3.1 Instrumentos constitucionais de judicializao da poltica no Brasil............ 69

    3.3.1.1 Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADi).................................................. 68

    3.3.1.2 Ao Declaratria de Constitucionalidade (ADC).......................................... 71

    3.3.1.3 Ao de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)....................... 73

    3.3.1.4 Ao Civil Pblica............................................................................................ 74

    3.3.1.5 Ao Popular.................................................................................................... 75

    3.3.1.6 Mandado de Injuno...................................................................................... 76

    3.3.1.7 Mandado de Segurana.................................................................................... 77

    3.3.1.8 Habeas Corpus................................................................................................. 78

    CAPTULO 4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO

    E JUDICIALIZAO DA POLTICA.........................................................

    80

    4.1 Funo poltica................................................................................................. 80

    4.2 Evoluo das funes do STF...................................................................... 83

    4.3 Supremo Tribunal Federal (STF)............................................................. 86

  • CAPTULO 5 CONGRESSO NACIONAL FUNES TPICAS

    E ATPICAS JUDICIALIZAO DOS ATOS INTERNA

    CORPORIS................................................................................................................

    95

    5.1 Processo legislativo......................................................................................... 95

    5.2 Processo legislativo no Brasil...................................................................... 97

    5.3 Atos de natureza poltica.............................................................................. 100

    5.4 Atos do Legislativo.......................................................................................... 103

    5.4.1 Competncias do Congresso Nacional, da Cmara dos Deputados e do

    Senado Federal............................................................................................................

    103

    5.4.1.1 Congresso Nacional......................................................................................... 103

    5.4.1.2 Senado Federal................................................................................................. 106

    5.4.1.3 Cmara dos Deputados.................................................................................... 108

    5.5.1 Atos interna corporis........................................................................................... 110

    5.6 Controle judicial dos atos do Legislativo................................................ 115

    5.6.1 Controle judicial dos atos administrativos....................................................... 115

    5.6.2 Controle judicial dos atos interna corporis do Legislativo.............................. 118

    CONCLUSO......................................................................................................... 123

    REFERNCIAS...................................................................................................... 127

  • RESUMO

    Este Trabalho procura avaliar a judicializao da poltica, por meio da anlise da atuao do

    Poder Judicirio na ingerncia em atos interna corporis do Legislativo. A interpretao do

    conceito tem levado, por parte da doutrina jurdica, a polmicas acerca da legitimidade da

    apreciao jurisdicional das aes praticadas pelo Legislativo. Busca-se demonstrar, com

    apoio em jurisprudncias do STF sobre a matria, que legtimo julgar os atos interna

    corporis das Casas Legislativas e manter sua integridade preservada, porquanto no funo

    da Justia discutir temas afetos ao Legislativo e, sim, aqueles que possam ferir direito

    subjetivo, individual ou prejudicar interesses coletivos. Assim, objetiva-se demonstrar a

    adequao do controle judicial com respeito ao procedimento legislativo sob a luz dos

    preceitos constitucionais. Infere-se, a partir do trabalho de coleta de dados realizado, que a

    manuteno da ordem democrtica demanda que a atuao de todos os agentes pblicos se

    oriente por princpios legtimos e legais, mesmo que sejam do Legislativo, e o Judicirio

    possui competncia para assegurar o cumprimento da lei.

    Palavras-chave: Legislativo Judicirio judicializao da poltica - atos interna corporis.

  • Abstract

    This study attempts to evaluate the judicialization of politics through the analysis of

    the judicial system and its interference in acts interna corporis of the Legislature. The

    interpretation of the concept by part of legal doctrine has resulted in controversy

    about the legitimacy of judicial review of actions taken by the Legislature. We seek

    to demonstrate that, backed by jurisprudence of the Supreme Court on the matter, it is

    legitimate to judge acts interna corporis of the legislative houses and maintain their

    integrity preserved for it is not the Justices role to discuss issues related to the

    Legislature but rather discuss those that can harm subjective or individual rights as

    well as collective interests. Thus, the goal is to demonstrate the judicial review

    adjustment with respect to the legislative procedure in the light of constitutional

    principles. It can be inferred from the data that the maintenance of democratic order

    demands that the actions of all public officers and bodies be guided by legitimate and

    legal principles even if they are part of Legislature and that the Judiciary has the

    power to direct law enforcement.

    Keywords: Legislature Judicial system Judicialization of politics interna

    corporis acts.

  • 6

    INTRODUO

    A criao do Estado proveio da necessidade do homem de viver em

    comunidade, j que ele no se bastava para suprir suas carncias, precisando da ajuda de

    outros para ajud-lo nessa empreitada1. Assim, visando ao bem-estar social, criou-se o

    Estado (a administrao), o qual controlaria o comportamento dos membros do grupo

    mediante a aplicao de normas jurdicas. Segundo Ccero2, [...] o Estado a coisa do

    povo; e o povo no um aglomerado qualquer de seres humanos reunidos de uma forma

    qualquer, mas a reunio de pessoas associadas por acordo.

    Qualquer que fosse a acepo de Estado, este no podia prescindir da

    justia palavra que remete noo daquilo que justo3. Com a evoluo histrica dos

    grupamentos humanos, o tipo de poder dominante determinava o modo como este se

    estruturaria; o tempo provou que a melhor organizao poltica era a Democracia pelo

    menos a menos problemtica. Nesse regime, o povo detinha a autoridade diretamente, ou

    indiretamente quando elegia representantes para agir em nome dele.

    A partir da, instituiu-se o Estado Democrtico de Direito, o qual

    carregava em seu bojo dois propsitos: assegurar direitos individuais e limitar a ao

    estatal. A fim de perseguir e alcanar tais metas, optou-se por dividir o controle por rgos

    autnomos e independentes. Surgia o embrio dos Poderes do Estado: o que administrava,

    o que criava as leis e o que fiscalizava o cumprimento destas e solucionava demandas.

    Esses poderes se qualificaram, respectivamente, como Executivo, Legislativo e Judicirio.

    Essa teoria, cognominada depois de Teoria da Tripartio dos Poderes,

    requer um sistema que regule o exerccio do poder poltico e limite possveis posturas

    arbitrrias e centralizadoras; essa teoria embasou o Estado Liberal, cujos pilares so a

    exaltao aos valores democrticos, a proteo s liberdades individuais e o bem-estar da

    coletividade.

    A partir da, a garantia de que um instituto no usurparia a soberania do

    outro foi estabelecida com a delimitao da rea de atuao de cada um, sem que houvesse

    hegemonia de qualquer deles; os checks and balances ou freios e contrapesos possuem

    1 PLATO. Repblica. Traduo de Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 20.

    2 CCERO. Da Repblica. Traduo de Therezinha Monteiro Deutsh e Baby Abro. So Paulo: Nova

    Cultural, 2001, I, p. 25. 3 ARISTTELES. Poltica. Traduo de Therezinha Monteiro Deutsh e Baby Abro, 2000, p. 20.

  • 7

    a funo de harmonizar a relao entre os Poderes constitudos e delimitar a ao de cada

    um deles. O ordenamento jurdico estabeleceu as funes inerentes a cada Poder, para

    assegurar a normalidade democrtica.

    A tripartio do poder, embora configurasse como postulado da

    Democracia, acabou, contudo, por demonstrar que a total liberdade de ao de cada um

    poderia comprometer a definio de Estado Democrtico o poder exercido por homens

    que, em razo de sua natureza, possuem idiossincrasias permissivas a sua vontade de

    distorc-lo ou de cometer abusos em seu nome para contemplar interesses pessoais ou de

    grupos. Tal constatao conduziu necessidade de se estabelecerem formas de limitar e

    controlar prerrogativas dos dirigentes pblicos, em nome do bem e da preservao da

    Democracia.

    No Brasil, a tradio, revelada em quase todos os textos constitucionais,

    tem sido garantir a repartio dos Poderes e a independncia harmnica entre eles, como

    reconhecimento da presena do Estado de Direito. No entanto, para que essa organizao

    cumpra sua finalidade de gerir os recursos de que dispe em benefcio da coletividade, no

    se concebe a Administrao Pblica e o Legislativo desvinculados de limites de atuao e

    de cumprimento de normas atreladas ao ordenamento jurdico.

    A diviso das funes, em tal contexto, no pode nem deve ser absoluta,

    a fim de que se possa assegurar a proteo ordem jurdico-constitucional, com vrios

    direitos fundamentais nela insertos. Dessa forma, o controle de constitucionalidade de leis

    e atos normativos, mesmo que em tese signifique excessiva ingerncia do Judicirio em

    questes legislativas, necessrio at para se manterem vivos postulados da Teoria de

    Montesquieu.

    Antes da promulgao da Constituio de 1988, o Supremo Tribunal

    Federal (STF), rgo mximo do Poder Judicirio, detinha competncia e legitimidade

    para julgar temas afetos a leis constitucionais e federais. Depois da vigncia da CF/88, O

    STF passou a assumir as funes de defensor e intrprete das normas fundamentais, com o

    papel de intrprete das leis federais atribudo ao Superior Tribunal de Justia (STJ). Com

    isso, legitimou-se a atuao do Supremo no controle concentrado de constitucionalidade.

    Inicialmente, questionou-se se a instaurao de uma Corte Constitucional

    no Brasil poderia ferir ou prejudicar a independncia e a harmonia entre os Poderes de

  • 8

    Estado. Constatou-se, no entanto, que o STF possui como causa de agir o imobilismo do

    Legislativo em sua funo de legislar ou a regulamentao de matria observada no texto

    constitucional. Nesse sentido, o Judicirio competente para cobrar eficcia e efetividade

    nos compromissos assumidos no texto constitucional.

    Com respeito ao Legislativo, compete ao legislador formular leis,

    respeitando, porm, preceitos constitucionais ou regimentais. Caso ele exceda as fronteiras

    estipuladas por estes, poder assistir impugnao de seus atos pelo Poder Judicirio.

    Nesses casos, no se pode falar em interferncia, ou ingerncia deste Poder nas funes do

    Legislativo, mas na legtima postura de cobrar dos representantes do povo o cumprimento

    aos preceitos da Carta Magna. Ao assim agir, no est o Judicirio deliberando acerca da

    criao ou no de leis, pois tal comportamento configuraria invaso de funes a ele no

    concernentes. O intuito preservar Direitos Fundamentais tutelados pelo Supremo, como o

    da dignidade humana, e fiscalizar a atuao do Congresso Nacional em determinado tipo

    de questes. O julgamento ocorre visando ao interesse pblico e realizado por

    magistrados.

    As Aes Diretas de Constitucionalidade (Adis) representam a principal

    ferramenta de politizao do Judicirio ou de judicializao da poltica. A partir da

    promulgao da Carta de 1988, no art. 103, criaram-se oportunidades para que outros

    agentes polticos e sociais pudessem provocar o Judicirio no intuito de que fosse possvel

    para este decidir em determinadas questes polticas. Atualmente, pode-se observar a

    atuao do Poder Judicirio no sentido de interferir em temas concernentes tanto ao

    Executivo como ao Legislativo, com a delimitao das fronteiras das aes

    administrativas.

    Tal situao ocorre tanto no que concerne ao abuso de poder do

    legislador ao elaborar as regras quanto conduo do processo legislativo, representado

    pelos atos interna corporis. Ainda que sejam inerentes Instituio, as aes carecem de

    fiscalizao, mormente quando podem prejudicar direitos individuais. Ainda que o

    Supremo possua algumas limitaes na anlise dos atos interna corporis do Legislativo,

    definidas pela CF/88, questiona-se se conta ele com legitimidade para exercer a funo

    poltica, advinda da estrutura institucional do rgo formas de deliberao da Corte,

    instituio pela Carta Maior -, para julgar atos de competncia interna do Legislativo. Essa

  • 9

    postura, denominada de judicializao da poltica, tem se mostrado cada vez mais comum

    no desempenho do STF.

    Assim, em razo da importncia dessa matria, esta Tese versar sobre o

    controle judicial dos atos interna corporis do Legislativo. Indaga-se se cabe ao Judicirio

    imiscuir-se em assuntos de natureza interna daquele Poder e se h prescrio normativa

    para que este Poder assim aja. Pode-se dizer ser esse o retrato da politizao do Poder

    Judicirio.

    Para tanto, dividiu-se a exposio em cinco captulos, os quais

    apresentam o seguinte sumrio:

    Captulo 1 comenta a separao dos Poderes; resgata diversos

    conceitos de poder elaborados pelos principais pensadores da humanidade; discorre sobre a

    harmonia entre eles e sobre o sistema de freios e contrapesos:

    Captulo 2 analisa o poder poltico do Judicirio, mediante o estudo da

    evoluo do conceito de poder, de poder poltico; enfoca ainda o poder poltico do Poder

    Judicirio no Brasil:

    Captulo 3 discorre a respeito da judicializao da poltica, decorrente

    da promulgao da Constituio de 1988; elenca os instrumentos constitucionais de

    judicializao da poltica no Brasil;

    Captulo 4 versa acerca do papel do Supremo Tribunal Federal e a

    judicializao da poltica decorrente de algumas decises emanadas desse rgo;

    Captulo 5 examina as funes do Congresso Nacional; as

    caractersticas dos atos do Legislativo, includos os atos interna corporis; trata da

    interferncia do Judicirio na apreciao destes atos, esculpindo-se, assim, a politizao da

    Justia.

    O estudo focalizou as aes do Judicirio, especialmente os atos internos

    das Casas Legislativas, as quais representam o fenmeno denominado judicializao da

    poltica, no exerccio de seu papel de Corte constitucional. Nesse intento, recorreu-se

    investigao documental, o que favoreceu a avaliao qualitativa dos dados. O

    desenvolvimento de estudo com pesquisa qualitativa pressupe o corte de determinado

  • 10

    fenmeno por parte do pesquisador. A metodologia qualitativa, em certa medida,

    assemelha-se a formas de interpretao dos fenmenos cotidianos, com dados que possuem

    natureza anloga aos que o pesquisador utiliza na tcnica quantitativa4.

    4 MAANEN, John Van. Reclaiming qualitative methods for organizational research: a preface.

    Administrative Science Quarterly. Vol. 24, N 4, December 1979, p. 521.

  • 11

    CAPTULO 1 SEPARAO DOS PODERES

    1.1 Introduo

    A partir da Antiguidade Clssica, especialmente com as teorias de Plato

    e Aristteles, foi admitido como verdade que o Estado, independentemente do regime a

    que estivesse atrelado, exercia trs funes essenciais: a legislativa, a judiciria e a

    executiva5:

    [...] a teoria poltica dos gregos era, basicamente, a reflexo a propsito

    da natureza da polis, dirigida como empreendimento intelectual

    autoconsciente, diverso - e em nvel mais geral - do debate sobre matrias

    polticas especficas. A teoria poltica era, portanto, uma atividade

    secundria, a respeito do nvel em que era tratado seu assunto6. (grifo no

    original)

    Aristteles afirmava que os componentes do Estado eram a populao, o

    territrio e a autoridade poltica. Teorizou acerca das funes dos poderes polticos e das

    estruturas das autoridades. Estabeleceu, como marca de sua teoria, relao intrnseca entre

    poltica e tica7. Conceituou o ser humano como animal cvico, carente de convvio social,

    superior a todos os outros, desde que conhecesse a lei e a justia8.

    O filsofo grego preceituou ainda a necessidade de se definirem poderes,

    com estruturas, misso e funes diferentes: deliberativa (correspondente ao Legislativo);

    executiva (correspondente ao Executivo) e jurisdicional (correspondente ao Judicirio)9.

    A origem da ideia da separao dos poderes repousa na definio de

    Aristteles de Constituio mista:

    [...] constituio mista, para Aristteles, ser aquela em que os vrios

    grupos ou classes sociais participam do exerccio do poder poltico, ou

    aquela em que o exerccio da soberania ou o governo, em vez de estar nas

    mos de uma nica parte constitutiva da sociedade, comum a todas.

    5 ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus

    Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 6 FINLEY, M. I. O Legado da Grcia: Uma Nova Avaliao. Traduo de Yvette Vieira P. de Almeida.

    Braslia: Ed. U.N.B., 1998, p. 49. 7 COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 8. 8 Idem, ibidem.

    9 Idem, ibidem.

  • 12

    Contrapem-se-lhe, portanto, as constituies puras em que apenas um

    grupo ou classe social detm o poder poltico10.

    O mesmo tema foi tratado por Aristteles, o qual afirmou serem as

    Constituies a ferramenta que ordenaria e distribuiria os poderes do Estado metas da

    sociedade civil e diviso do poder, da soberania11.

    1.2 Poder de acordo com Locke

    John Locke, filsofo ingls e idelogo do liberalismo, designado o

    principal representante do empirismo britnico e um dos relevantes pensadores que

    teorizaram sobre o contrato social, rejeitava a teoria das ideias inatas e asseverava que

    todas as ideias do homem advinham da percepo dos sentidos. Escreveu sobre a origem e

    a natureza do saber humano (Ensaio acerca do Entendimento Humano)12.

    Teorizou igualmente acerca de filosofia poltica em duas principais

    obras: no Primeiro tratado sobre o governo civil, questionou o direito divino dos reis e

    afirmou que a vida poltica era inveno do ser humano, totalmente desvinculada de

    aspectos religiosos, divinos. Reprovava a ascendncia divina dos prncipes, a qual conferia

    legitimidade Monarquia Absolutista, e a considerava fundada em pseudoprincpios13.

    J no Segundo tratado sobre o governo civil, discorreu a respeito da

    propriedade privada e do Estado liberal, apresentando seu pensamento sobre a tripartio

    dos poderes14. Foi ele que, depois de Aristteles, falou acerca da diviso de poderes.

    Nesta obra, Locke discorreu sobre a constituio do Estado liberdade

    de todos os seus membros a fim de poderem decidir a respeito de suas atitudes, inseridas

    nos limites do Direito Natural. Essa vertente do Direito se apoia na convico de o ser

    humano viver em estado natural, no qual ele totalmente livre para decidir os rumos de

    sua vida, o seu comportamento, as suas atitudes, a forma como dispe de seus bens e de

    10

    PIARRA, Nuno. A Separao dos Poderes como doutrina e Princpio Constitucional Um contributo

    para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 33. 11

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 8. 12

    ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus

    Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 13

    LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:

    Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 31. 14

    Idem, ibidem, p. 74.

  • 13

    seus familiares, tudo dentro dos contornos do direito. Nesse estado, ele possui livre arbtrio

    no necessita nem da autorizao nem da vontade de qualquer outra pessoa para agir15.

    Em tal contexto, s cabe a reciprocidade, a igualdade, estados que

    determinam o poder, a competncia, sem que haja hierarquias, desigualdades, inclusive de

    bens. Nessa conjuntura, todos os homens, como seres da mesma espcie, iguais desde o

    nascimento, usufruem igualmente as benesses da natureza, sem sujeio a qualquer homem

    que se intitule dono do poder16.

    Esse estado de Natureza, porm, no abona atitudes que lesem o

    prximo. Por serem iguais, independentes, dotados de razo, no se permite aos seres

    humanos destruir seus pares, les-los na vida, na sade, na liberdade, nos bens. No foram

    criados para servir aos outros, como escravos, pois possuem faculdades semelhantes.

    Assim, cabe a cada um e a todos, como comunidade, preservar a prpria vida e a do outro,

    conservar o ambiente em que vive, preservar a natureza. S agindo desse modo capaz de

    conservar a espcie a humanidade17. O efeito desse comportamento que cada homem

    passa a ter poder sobre outro, mas no o poder absoluto, arbitrrio, e sim aquele que s se

    legitima quando se precisa punir um transgressor ou garantir a preservao da vida da

    humanidade.

    medida que os seres humanos se associam, sentem a urgncia de

    definir leis, outorgando maioria o poder sobre a comunidade, inclusive com a

    incumbncia de fazer respeitar essas normas. Para tanto, a sociedade designa alguns de

    seus membros para se encarregarem do cumprimento das leis e da manuteno e da

    ascendncia do bem comum em detrimento de interesses individualistas os quais venham a

    prejudicar a vida social. Assim, pode-se afirmar que est estabelecida a perfeita

    democracia18.

    Nessa democracia perfeita, pelo menos em tese, todos so monarcas

    pois so iguais e o ideal que cada um respeite absolutamente os direitos do outro,

    entendendo-o como par, semelhante. Tal situao, porm, no existe, o que gera

    sentimentos de medo, insegurana. O indivduo teme perder seus bens, ser desrespeitado

    15

    LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:

    Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 36. 16

    Idem, ibidem. 17

    Idem, ibidem, p. 37. 18

    Idem, ibidem, p. 70.

  • 14

    pelo prximo, ser tratado com desigualdade. Da advm a necessidade de definir regras de

    conduta - aceitas, conhecidas e consentidas por todos que precisaro os conceitos de

    certo e errado (bem e mal). Ao agir assim, reconhecem a existncia de idiossincrasias

    humanas - os defeitos, os sentimentos negativos tais como inveja, egosmo, ganncia,

    orgulho, dentre outros19.

    Ento, juntamente com a criao das leis, vem a constatao de que

    preciso existir um juiz, imparcial, reconhecido como ntegro pela comunidade, o qual seja

    revestido da autoridade necessria e legtima para solucionar conflitos, diferena, litgios

    entre as pessoas que vivem nessa sociedade. Ele tem de ser capaz de aplicar dada lei a um

    caso concreto e conseguir resolver o embate entre os interesses de cada uma das partes, j

    que se considera serem os homens tendenciosos em relao s prprias carncias,

    desprezando, na maioria das vezes, as necessidades do outro20. Cabe a ele igualmente dosar

    a punio a ser estabelecida queles que infringem as normas sociais ou legais, alm de se

    certificar que o castigo ser cumprido plenamente pelo infrator21.

    Essas estruturas estabelecimento de leis e definio de juiz so

    consideradas como a origem dos Poderes Legislativo e Judicirio, alm de marcar a

    sedimentao das sociedades e dos governos. O primeiro detm competncia para legislar,

    fixar os procedimentos a serem respeitados pelos membros da comunidade; com o tempo,

    entretanto, os legisladores podem ter diminuda sua funo, uma vez que as leis

    permanecem em vigor por perodo indefinido. Nesse caso, eles podem se ver tentados a

    executar as regras que eles mesmos criaram e se desobrigar de obedecer a estas, passando a

    contar com privilgios em relao aos outros indivduos, contrariando o objetivo

    primordial da existncia do governo e da sociedade. Da surge a convenincia de se

    estabelecer o Poder Executivo, responsvel pela execuo continuada das leis, visando ao

    bem-estar social22.

    Nesse sentido, o Executivo se torna apto a declarar estados de guerra e

    paz, celebrar alianas com outras sociedades, bem como zelar pelo cumprimento das leis

    19

    LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:

    Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 69. 20

    Idem, ibidem. 21

    Idem, ibidem, p. 72. 22

    Idem, ibidem, p. 75.

  • 15

    internamente, dentre outras atribuies h, ento, duas funes distintas embora

    complementares entre si a federativa e a executiva, respectivamente23.

    Assim, o poder deve se sustentar em quatro funes: a legislativa, a

    executiva, a prerrogativa e a federativa24. A funo legislativa funciona como a

    preponderante para a sociedade, embora seja necessrio se definirem limites ao exerccio

    dela.

    Quanto s outras funes, a executiva se encarrega da execuo das leis

    nacionais; a prerrogativa, da tomada de decises em situaes de exceo constitucional e

    a federativa, da administrao da segurana pblica interna25. Ressalta-se a distino entre

    a funo executiva e a legislativa, a serem da competncia de indivduos diferentes. Como

    no h dessemelhanas entre a natureza do Judicirio e a do Legislativo, aquele no deve

    ser considerado como funo de poder os legisladores exercem atividade de juiz

    imparcial26.

    Existe distino entre a funo Executiva e a Legislativa, cabendo a

    pessoas distintas deter cada uma delas. Ressalta-se que o Judicirio no pode ser

    compreendido como genuna funo de poder, porque no existe essencial diferena entre

    este e o Legislativo - a funo do juiz imparcial exercida eminentemente pelos que fazem

    as leis. O Judicirio no tido como funo apaziguadora das situaes litigiosas. Em caso

    de abuso do Executivo, est configurada a conjuntura propcia ao (de Direito Natural)

    direito de revoluo popular27.

    Bobbio reconhece essa caracterstica e leciona que a obra de Locke no

    se refere a separao e equilbrio das funes de poder, e sim a separao e subordinao.

    O Executivo deve ser subordinado ao Legislativo e ofensas sofridas por um indivduo

    dessa sociedade poltica sero julgadas necessariamente pela funo Legislativa ou por um

    magistrado por ela indicado28.

    23

    LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:

    Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 75. 24

    PIARRA, Nuno. A Separao dos Poderes como doutrina e Princpio Constitucional Um contributo

    para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 33. 25

    ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus

    Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 26

    Idem, ibidem. 27

    Idem, ibidem. 28

    BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. 2 ed. Braslia: Editora UnB, 1997, p. 48.

  • 16

    Deve-se atentar que, alm do nvel funcional e do institucional, a diviso

    de Locke inclui o nvel social, com a ressalva de que a ambincia histrica pertencia ao

    Feudalismo, ou seja, todos os estamentos sociais constituam o Parlamento, mas certas

    classes nesse modo de produo eram mais favorecidas poltica e socialmente29.

    Embora a obra de Locke no se relacione exatamente com separao e

    harmonia entre os poderes, existem explicitamente ideias sobre diviso e equilbrio das

    funes de poder (o Executivo deve estar subordinado ao Legislativo e este o responsvel

    por julgar litgios ocorridos na sociedade)30. H conexo entre a teoria da separao dos

    poderes e a rule of law, aquela como pr-requisito desta: [...] para que a lei seja

    imparcialmente aplicada necessrio que no sejam os mesmos homens que a fazem, a

    aplic-la31.

    1.3 Poder de acordo com Montesquieu

    Apesar de se reconhecer que Montesquieu no foi o primeiro filsofo a

    tratar da separao entre os poderes do Estado, foi ele que a sistematizou pela primeira vez

    e tornou sua Teoria da Separao dos Poderes um dos fundamentos da instituio do

    Estado Democrtico Liberal32. As ideias de Charles-Louis de Secondat (1689-1755), ou

    Baro de La Brde ou Montesquieu, encontravam-se conectadas ao contexto sociopoltico

    da poca em que viveu e criou suas teses. O pensador analisou as variadas conexes entre

    o Estado Nacional Laico e a Sociedade, elegendo esta como soberana e unificadora do

    Estado33.

    A mais conhecida obra de Montesquieu, O Esprito das Leis, publicada

    em 1748, discorre sobre formas de governo, autoridade poltica e tripartio dos poderes,

    dentre outros assuntos, os quais influenciaram as doutrinas do Direito Constitucional e da

    Cincia Poltica; por isso, considerado como pensador contemporneo, embora tenha

    29

    BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. 2 ed. Braslia: Editora UnB, 1997, p. 48. 30

    Idem, ibidem, p. 49. 31

    PIARRA, Nuno. A separao dos poderes: Um contributo para o estudo das suas origens e evoluo.

    Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p.71. 32

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 9. 33

    Idem, ibidem.

  • 17

    vivido durante a fase do Iluminismo. Nesse livro, falou acerca da legalizao da

    autoridade, para evitar a violncia e a arbitrariedade, e apresentou a Teoria da Tripartio

    dos Poderes34.

    Tal Teoria exps tanto a distribuio, a limitao e o controle do poder

    poltico, quanto a distribuio racional do Estado35. Apresentou igualmente a tese de que h

    trs tipos de governo: monrquico, republicano e desptico, cada um com caractersticas

    distintas36

    . Na Monarquia, o poder recai sobre uma s pessoa, regido por regras

    fundamentais; na Repblica, a procura pelo bem comum, pblico, e pela virtude resulta na

    associao de todos; no Despotismo, tambm ocorre o monoplio, mas sem leis

    regulamentares37. Enquanto a Monarquia e a Repblica recorrem s leis para governar, o

    Despotismo emprega a arbitrariedade38.

    A tripartio de poderes funda-se na liberdade e na justia, sem as quais a

    sociedade se instalaria em bases instveis. A liberdade poltica se torna fundamental, ainda

    que as leis se configurem como instrumento de poder, pois regem as relaes entre

    governantes e governados. A natureza humana est sujeita a erros e [...] todo homem que

    tem o poder levado a abusar dele [...]. Tudo se perderia caso a mesma pessoa ou os

    mesmos governantes, ou grupo dos governados, exercessem simultaneamente os trs

    poderes: criar leis, execut-las e julgar crimes e litgios dos cidados39. A fim de que no

    houvesse abusos, imprescindvel que o poder contenha a ele prprio; por isso, a diviso

    fundamental40.

    Ainda com relao ao poder, h funo trplice: a Legislativa, a

    Executiva e a Judiciria, representadas institucional e respectivamente por Parlamento,

    Governo e Tribunais41. O Legislativo responsvel pela elaborao, pela revogao e pela

    correo das leis; cabe ao Judicirio punir crimes ou julgar demandas pessoais e ao

    34

    BASTOS, Iolanda Lcia Gonalves; ALENCAR, Jucinete Carvalho de; SOUZA, Sandra Elisa Pereira. Os

    princpios de governo, a natureza das leis e a tripartio de poderes segundo Montesquieu. 35

    Idem. 36

    MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso

    dos poderes. Introduo, traduo e notas: Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 23. 37

    Idem, ibidem, p. 34. 38

    Ibidem, p. 35. 39

    Ibidem, p. 66. 40

    Ibidem, p. 64-65. 41

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 11.

  • 18

    Executivo, como ltimo poder, exercer as outras funes do Estado, a administrao geral,

    funcionando, desse modo, como executor das normas42.

    Essa constitui a concepo mais difundida sobre a separao dos poderes:

    Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder

    Legislativo reunido ao Executivo, no h liberdade. Porque pode temer-

    se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faa leis tirnicas para

    execut-las tiranicamente. Tambm no haver liberdade se o Poder de

    Julgar no estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse

    junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidados

    seria arbitrrio: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o

    Executivo, o Juiz poderia ter a fora de um opressor. Estaria tudo perdido

    se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou

    do Povo, exercesse estes trs poderes: o de fazer as leis; o de executar

    as resolues pblicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos

    particulares43.

    Em O Esprito das Leis, pode-se depreender que o filsofo associou a

    separao de poderes ao conceito de liberdade e direitos fundamentais (a ideia se encontra

    presente no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado): [...] toda

    sociedade, onde a garantia dos direitos no esteja assegurada nem a separao de poderes

    determinada, no possui constituio44.

    Nesse contexto, deve preponderar o equilbrio das funes - o poder, por

    ser uno e indivisvel, carece da diviso de competncias entre os trs rgos para que seja

    exercido de forma correta. O governo deve ser republicano (a soberania do povo) e no

    pertencer aristocracia (poder s de parte do povo), ao monarca (apenas uma pessoa

    governa com leis rgidas) ou ao dspota (somente um governa, com regras flexveis)45.

    Nesse pensamento, verifica-se interpenetrao e interdependncia de

    funes entre o Executivo, o Legislativo e o Judicirio. A separao de poderes conta,

    ento, com outro significado [...] de assegurar a existncia de um poder que seja capaz

    de controlar outro poder [...]. problema poltico, de correlao de foras, e no problema

    jurdico-administrativo de organizao de funes46. Apesar de tal entendimento, no

    42

    MONTESQUIEU. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso dos poderes.

    Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 165. 43

    Idem, ibidem, p. 67-68. 44

    Ibidem, p. 138. 45

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 12. 46

    ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Os clssicos da poltica. 13 ed. So Paulo: Saraiva, 2004, p.119-120.

  • 19

    cabvel a completa reunio dos poderes de Estado, uma vez que [...] se no houvesse

    monarca, e o poder executivo fosse confiado a um certo nmero de pessoas extradas do

    corpo legislativo, no haveria mais liberdade, dada a unio dos dois poderes47.

    "[...] se o poder executivo no tivesse o direito de refrear as aes do

    corpo legislativo, este seria desptico; pois, ao atribuir-se todo o poder

    que possa imaginar, aniquilaria todos os outros poderes"48

    . O fim

    principal da ordem poltica consiste em garantir a moderao do poder

    pela "cooperao harmnica", equilbrio dos poderes sociais, entre os

    Poderes do Estado constitudos (Legislativo, Executivo e Judicirio), com

    o intuito de promover eficcia mnima de governo, alm de conferir-lhes

    legitimidade e racionalidade administrativa49.

    As funes de poder, para conviverem em harmonia, devem funcionar

    como em uma balana, buscando o equilbrio por meio de duas premissas: criar um rgo

    constitucional, o qual possa controlar, limitar ou contrabalanar o poder de outro rgo,

    bem como garantir o direito anular uma resoluo tomada por quem quer que seja50.

    As diferenas bsicas entre Locke e Montesquieu so as seguintes: as

    funes federativa e prerrogativa de Locke esto insertas na funo executiva de

    Montesquieu e este aceita a autonomia da funo judiciria, ideia descartada por Locke51.

    1.4 Poder de acordo com Rousseau

    Anos depois da publicao de O Esprito das Leis, Rousseau escreveu O

    Contrato Social (1757), no qual critica a separao de poderes:

    Nossos polticos, porm, no podendo dividir a soberania em seu

    princpio, fazem-no em seu objeto. Dividem-na em fora e vontade, sem

    poder legislativo e poder executivo, em direitos de impostos, de justia e

    de guerra, em administrao interior e em poder de tratar com o

    estrangeiro. Algumas vezes, confundem todas essas partes, e outras vezes

    separam-nas. Fazem do soberano um ser fantstico e formado de peas

    ajustadas, tal como se formassem um homem de inmeros corpos, dos

    47

    MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso

    dos poderes. Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.

    145. 48

    Idem, ibidem, p. 147. 49

    ALVES, Ricardo Luiz. Montesquieu e a teoria da tripartio dos poderes. Revista Jus

    Navigandi, Teresina, ano 9, n. 386, 28 jul. 2004. 50

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 12. 51

    Idem, ibidem.

  • 20

    quais um tivesse os olhos, outro os braos, outro os ps, e nada mais alm

    disso. [...] Esse erro provm de no terem tomado por partes dessa

    autoridade o que no passa de emanaes suas. Assim, por exemplo,

    tiveram-se por atos de soberania o ato de declarar guerra e o de fazer a

    paz, que no o so, pois cada um 14 desses atos no uma lei, mas

    unicamente uma aplicao da lei, particular que determina o caso da lei

    [...]52.

    A manifestao de soberania concretiza-se quando s a lei, considerada

    em seu sentido abstrato, representa a vontade geral; nesse sentido, os atos do soberano so

    apenas a funo legislativa. Existe distino entre a vontade de todos soma das

    vontades de pessoas ou grupos e a vontade geral ente abstrato que almeja o bem

    comum. A vontade de todos raramente coincide com a vontade geral e esta, por visar

    ao bem-estar da coletividade, quase no erra53. A lei expresso nica do Poder, do

    Soberano, sendo, tudo o mais, aes individuais, particulares54. No est afastada, porm, a

    possibilidade de se criarem outros rgos alm do Legislativo, a fim de que possam

    executar as leis55.

    Assim, o poder uno, indivisvel e repousa no povo, a quem compete

    julgar, administrar, legislar, fiscalizar ou desempenhar nova funo necessria

    preservao do corpo social (o Estado), como meio de exercer o poder. Ento, o que

    divisvel so as funes, no os poderes56. Desse modo, o conjunto de cidados (o povo),

    cada um com uma parcela de soberania, decide quais sero seus representantes para

    praticar o poder de modo responsvel com o intuito de perseguir o bem comum57.

    Est revelada ento a viso de um pacto social totalitrio, uma vez que a

    vontade geral representa o poder absoluto, salvo alguns atos particulares os quais, por

    no interessarem a esta, so tratados no mbito da liberdade individual. Dentro de tal

    52

    ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, Coleo Os Pensadores,

    1978, p. 44-45. 53

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Monografia

    apresentada como requisito para concluso do Curso de PsGraduao Lato sensu em Direito Pblico

    pela Universidade Cndido Mendes UCAM. Braslia, 2007, p. 13. 54

    Idem, ibidem. 55

    Idem, ibidem. 56

    TEIXEIRA, Francisco Dias. O Ministrio Pblico e o Poder. Boletim Cientfico/ESMPU, n 7, 2003, p.

    25. 57

    WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.

    Consultor Jurdico. 27 nov. 2005.

  • 21

    perspectiva, a separao de poderes invivel o soberano enfraquece caso o poder seja

    dividido, o que no seria benfico sociedade nem ao Estado58.

    Sobressai a teorizao de que as normas refletem a vontade geral e a

    atuao do soberano ocorre quando ele a promulga, exercendo uma funo de poder. Para

    se concretizar a soberania, no entanto, essencial que se valide a lei; nesse caso, compete

    ao monarca criar rgos que exeram o poder com base nesses fundamentos, sem

    representar essencialmente trs. Este se refere ao Estado no s funes realizadas por

    instituies a ele atreladas, embora estas sejam fundamentais ao bom funcionamento

    daquele. Nesse contexto, o poder torna-se indelegvel, inviolvel, j que s podem ser

    executadas as prerrogativas concedidas pela Constituio.

    Das caractersticas apontadas decorre a coatividade, ou seja, o poder se

    impe independentemente da manifestao de vontade dos destinatrios dos seus

    comandos. Isso se justifica porque os indivduos renunciaram ao exerccio da liberdade

    absoluta (Estado da natureza) em prol da consecuo das finalidades comuns da vida em

    sociedade. Portanto, trata-se de coao legtima; admitir a diviso do poder

    consubstanciar um desvanecimento do poder.

    1.5 Harmonia e independncia entre os Poderes

    Montesquieu foi criticado por vozes discordantes do Iluminismo, as quais

    entendiam a tripartio de competncias como diviso do prprio Estado, como ente

    poltico, embora abstrato, uno59. Condorcet, por exemplo, argumentava que a

    interdependncia do Poder impede sua separao; Comte explicava que [...] o Estado

    Forte depende de um Poder Absoluto centralizado e concentrado60. J Duguit asseverava

    que O Poder deve ser Uno, positivado e sua separao seria uma artificialidade, ao passo

    que Malberg afirmava que [...] a diviso do Poder paralisaria o Estado. Malberg defendia

    58

    COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da. A Superao da Tripartio de Poderes. Op. cit., p. 13. 59

    WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.

    Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 60

    Idem, ibidem.

  • 22

    que o Poder deveria ser unificado com distintos graus de funes (graduao do Poder) a

    funo legislativa se sobreporia s demais61.

    As ideias de Montesquieu prevaleceram independentemente das opinies

    contrrias. Inovou em O esprito das leis, ao afirmar que as funes estatais deveriam ser

    repartidas entre poderes autnomos e independentes, mas harmnicos entre si, tema

    enfocado na Teoria do Estado desde os sculos XVII e XVIII62.

    Essa teoria impactou a poltica, influenciando a organizao das naes

    modernas. Os trs poderes possuem funes principais, que guardam identidade prpria - a

    do Judicirio julgar; a do Legislativo legislar, ao passo que a do Executivo, administrar.

    H, entretanto, funes secundrias, com o intuito de conferir e garantir independncia a

    cada um deles63.

    O Estado, como ente jurdico de Direito Pblico Internacional,

    indivisvel. A pretenso ento era dividir as atividades estatais, a fim de que as relaes

    sociais no fossem prejudicadas com a ineficcia ou a lentido de um Estado

    centralizador64. No se pode questionar a unicidade do Estado e o poder que detm; este

    exercido por trs rgos, com funes originrias, embora, em determinadas situaes de

    exceo, um poder possa exercer a funo original do outro65.

    Nessas teorias repousam os pilares da independncia dos Poderes cada

    um deles possui competncias tpicas e originrias. Nesse sentido, precisam atuar em

    harmonia em razo de objetivarem o bem-estar social. Tal estrutura do Poder visa

    construo de um Estado ajustado s necessidades do povo, que possa agir de modo

    eficiente e rpido em contextos emergenciais, apesar de atuar com cautela durante

    transformaes poltico-econmicas66.

    Ressalta-se, ademais, a necessidade de os rgos do Estado que exercem

    o Poder a eles outorgado trabalharem em harmonia, o que no representa trabalhar

    isoladamente ou incentivando a poltica de boa vizinhana, pois silenciosa e no

    61

    WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia. Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 62

    COSTA, Leonardo C.; TERIN, Vitor J. TRIPARTIO DOS PODERES. Artigo. Revista Intertemas,

    2006. 63

    Idem, ibidem. 64

    Op. Cit. WIEGERINCK, Joo Antonio. 65

    Idem, ibidem. 66

    Idem, ibidem.

  • 23

    perturba com seus problemas. Atuar harmonicamente se sobrepe a apenas tolerar -

    conviver sem concordar e sem colaborar; representa interagir, colaborar, ter pacincia com

    os problemas alheios e ajudar, quando for o caso. Significa ainda no interferir na

    competncia dos outros, possibilitando que cada um exera suas funes com

    independncia e, sobretudo, com excelncia67.

    Pode-se assinalar, ento, que

    [...] a diviso de poderes nunca se dissociou da ideia da sua

    interpenetrao, do seu equilbrio, da sua harmonia, no podendo ser

    tida como absoluta e desintegradora.

    E teve sempre em vista, no consenso unnime dos que a adotaram, a

    limitao do poder em benefcio da liberdade individual.

    Nem seria lcito imaginar-se que o Estado, destinado a servir ao homem,

    e sua criao, fosse organizado e funcionasse de tal modo que o

    absorvesse e o oprimisse, como ocorre nos regimes absolutistas e

    totalitrios.

    [...]

    A diviso da Assembleia Geral, rgo do Poder Legislativo, em duas

    Cmaras, como ainda hoje ocorre, j inclui nesse ramo um dos processos

    de interpenetrao, exercendo a ao frenadora atravs da qual se

    visa a alcanar o desejado equilbrio68. (grifos nossos)

    Ao se considerar a unidade do Poder, caracterstica do Estado, pode-se

    incorrer no equvoco de interpretar a expresso tripartio do poder, compreendendo-a

    como se estes pudessem ser estanques, o que acarretaria problemas acerca das atividades

    estatais69. Para Jos Afonso da Silva, Cumpre, em primeiro lugar, no confundir distino

    de funes do poder com diviso ou separao de poderes, embora entre ambos haja uma

    conexo necessria70. A distino ocorre entre os rgos que desempenham as funes

    provenientes do poder existentes nas sociedades.

    Da observao do comportamento social, em momentos da histria, tm-

    se destacado trs funes bsicas: geradora do ato geral; geradora do ato especial e

    67

    WIEGERINCK, Joo Antonio. Tripartio do Poder: o balano entre harmonia e independncia.

    Consultor Jurdico, 27 nov. 2005. 68

    CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituies do Brasil. 13 ed. So Paulo:

    Atlas, 1999, p. 814. 69

    A Unidade do Poder, independncia e harmonia entre os Poderes, indelegabilidade de funes. In:

    Direitonet, 26 janeiro 2007. 70

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional Positivo. 22 ed. So Paulo: Editora Malheiros,

    2002, p. 55.

  • 24

    solucionadora de conflitos. As duas funes geradoras distinguiam-se somente quanto ao

    objeto (gerar e executar atos), enquanto a terceira se destinava a solucionar conflitos entre

    os entes sociais e entre eles e o Estado, identificadas, sobretudo, em Estados Absolutos71.

    Uma forma de se proteger de qualquer abuso era a independncia dos

    rgos, especialmente do responsvel pela elaborao do arcabouo legal, fato que

    afastava, em princpio, a preponderncia da vontade de uma s pessoa. Com a aplicao

    desse princpio, constatou-se a transformao das monarquias absolutas em sistemas de

    governo mais limitados, resultando em muitos casos nos regimes parlamentares72.

    Observa-se que a interpretao literal da expresso separao dos poderes

    no atualmente foco de discusso, porquanto bem definidos os conceitos de Poder e de

    rgos que desempenham as funes de poder; ou seja, o conceito da palavra separao

    compreendido e aceito no contexto da moderna Teoria do Estado73.

    1.6 Sistema de freios e contrapesos (checks and balances)

    Embora a Teoria da Tripartio de Poderes pregue a independncia de

    cada um deles, ela sustenta a ideia de que necessrio haver algum tipo de controle da

    atuao deles, a fim de que no ocorram atos centralizadores e absolutistas. Foram criados,

    assim, os freios e contrapesos para equilibrar o poder poltico de cada ente Executivo,

    Legislativo e Judicirio74. Para Montesquieu, cada poder tem papel especfico: o Executivo

    exerce vrias funes do Estado, como administrao geral e execuo das leis; o

    Legislativo elabora as leis e corrige as que existem e o Judicirio pune crimes e julga

    litgios entre indivduos, cidados e entes pblicos e privados75. Nesse contexto, a teoria de

    71

    A Unidade do Poder, independncia e harmonia entre os Poderes, indelegabilidade de funes. In: Direitonet, 26 janeiro 2007. 72

    Idem, ibidem. 73

    Idem, ibidem. 74

    OLIVEIRA, Andr Pinto de Souza. A teoria da tripartio dos poderes no mbito dos controles difuso e

    concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos ptrios. Jusnavigandi, maro 2007. 75

    MONTESQUIEU, Baro de Secondat. O esprito das leis: as formas de governo, a federao, a diviso

    dos poderes. Introduo, traduo e notas de Pedro Vieira Mota. 9 ed. So Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.

    165.

  • 25

    freios e contrapesos funciona para manter a convivncia pacfica e harmoniosa entre os

    poderes, uma vez que cada poder refrearia os abusos e as arbitrariedades do outro76.

    Pereira reconhece, nas ideias de Aristteles sobre as formas de governo, a

    origem do sistema de freios e contrapesos77, ao passo que Garvey e Aleintkoff creditam aos

    britnicos a criao do conceito de balance equilbrio, contrapesos a fim de equilibrar

    os projetos de lei da Cmara dos Comuns (representante do povo) pela Cmara dos Lordes

    (representante do clero e da nobreza). O intuito era evitar a produo e a aprovao de

    normas criadas por impulso ou com vis demaggico; especula-se que o real objetivo era

    controlar as aes do povo, sobretudo as que ameaavam os privilgios dos nobres78.

    Foi igualmente na Inglaterra que surgiram outros relevantes instrumentos

    do sistema de freios e contrapesos: o impeachment e o veto. Este foi implantado como ato

    de oposio do Rei (negative voice) para aprimorar o processo legislativo, pois o monarca

    no mais participa da criao das leis, embora possa impedir que elas entrem em vigor,

    exercendo algum tipo de controle sobre o Legislativo. J aquele representa mecanismo

    jurdico e poltico que faculta ao Parlamento controlar os atos do Executivo79.

    Paulo Fernando Silveira acrescenta que o check despontou na ocasio em

    que o Justice Marshal, durante o caso Marbury x Madison, em 1803, afirmou ser

    competncia constitucional do Poder Judicirio declarar a inconstitucionalidade dos atos

    do Congresso, anulando-os, sempre que as leis no se harmonizassem com a Carta Magna.

    Por essa doutrina, o Judicirio passou a controlar o abuso de poder do Executivo e do

    Legislativo80.

    A partir, ento, do entendimento de que deve haver a diviso das funes

    do Estado, bem como a individuao dos rgos deste, sem prevalncia de um Poder sobre

    o outro, mas com a possvel interferncia de um no outro, pode-se admitir o controle e a

    vigilncia recprocos, a fim de se garantir o cumprimento das funes constitucionais de

    76

    SOUZA, Sandra Elisa Pereira; ALENCAR, Jucinete Carvalho de; BASTOS, Iolanda Lcia Gonalves. Os princpios de governo, a natureza das leis e a tripartio de poderes segundo Montesquieu. Governo e

    Poltica. 23 outubro 2009. 77

    Idem, ibidem. . 78

    GARVEY, John H.; ALEINTKOFF, T. Alexander. Modern constitutional theory: a reader. St. Paul:

    West Publishing, 1991, p. 238. 79

    PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio constitucional um contributo

    para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 59-62. 80

    SILVEIRA, Paulo Fernando. Freios e Contrapesos (Checks and Balances). Belo Horizonte: Del Rey,

    1999, p. 94.

  • 26

    cada um. Moreira Neto, com o fito de expandir a ideia dos freios e contrapesos, classifica

    em quatro modalidades bsicas as funes de controle81:

    [...] controle de cooperao: o que se perfaz pela co-participao

    obrigatria de um Poder no exerccio de funo de outro. Pela

    cooperao, o Poder interferente, aquele que desenvolve essa funo que

    lhe atpica, tem a possibilidade de intervir, de algum modo especifico,

    no desempenho de uma funo tpica do Poder interferido, tanto com a

    finalidade de assegurar-lhe a legalidade quanto legitimidade do

    resultado por ambos visado.

    controle de consentimento: o que se realiza pelo desempenho de

    funes atributivas de eficcia ou de exeqibilidade a atos de outro

    Poder. Pelo consentimento, o Poder interferente, o que executa essa

    funo que lhe atpica, satisfaz a uma condio constitucional de

    eficcia ou de exequibilidade de ato do Poder interferido, aquiescendo ou

    no, no todo ou em parte, conforme o caso, com aquele ato, submetendo-

    o a um crivo de legitimidade e de legalidade.

    controle de fiscalizao: o que se exerce pelo desempenho de funes

    de vigilncia, exame e sindicncia dos atos de um Poder por outro. Pela

    fiscalizao, o Poder interferente, o que desenvolve essa funo atpica,

    tem a atribuio constitucional de acompanhar e de formar conhecimento

    da prtica funcional do Poder interferido, com a finalidade de verificar a

    ocorrncia de ilegalidade ou ilegitimidade em sua atuao.

    controle de correo: o que se exerce pelo desempenho de funes

    atribudas a um Poder de sustar ou desfazer atos praticados por um outro.

    Pela correo, realiza-se a mais drstica das modalidades de controle,

    cometendo-se ao Poder interferente a competncia constitucional de

    suspender a execuo, ou de desfazer, atos do Poder interferido que

    venham a ser considerados viciados de legalidade ou de legitimidade.

    No Presidencialismo e no Parlamentarismo, o controle do poder dos entes

    do Estado pode ser exercido de diversas formas, dentre elas pela previso constitucional de

    veto do Executivo a projetos aprovados pelo Legislativo; pela faculdade de o Presidente da

    Repblica conceder indulto e comutar penas forma de controle de correo da atividade

    jurisdicional; pelo controle de constitucionalidade, pelo Judicirio, das normas elaboradas

    pelo Legislativo ou de decretos ou medidas provisrias inconstitucionais editadas pelo

    Executivo, situao em que aquele pode inclusive suspender a execuo de lei considerada

    por ele como inconstitucional (controle de correo); pela faculdade de o Legislativo e o

    Judicirio controlarem o Executivo por meio do impeachment82.

    81

    MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Interferncias entre Poderes do Estado. Revista de Informao

    Legislativa, n 103/13. Braslia: Senado, 1989. 82

    MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7 ed. So Paulo: Atlas, 2000, p. 67-74.

  • 27

    Por meio do balanceamento dos Poderes (freios e contrapesos), com cada

    um deles responsvel por variadas funes, pode-se controlar o poder e garantir a liberdade

    e o bem-estar dos cidados. A sntese do controle limitar o poder.

    O Judicirio, desde sua criao, tambm tem lidado com diferentes

    formas de poder quando exerce suas funes, alteradas com os avanos poltico-sociais.

  • 28

    CAPTULO 2 PODER POLTICO DO JUDICIRIO

    O objetivo dos antigos era a distribuio do

    poder poltico entre todos os cidados de uma

    mesma ptria: era isso que eles chamavam de

    liberdade. O objetivo dos modernos a

    segurana nas fruies privadas: eles chamam

    de liberdade s garantias acordadas pelas

    instituies para aquelas fruies. [...] No

    podemos mais usufruir da liberdade dos

    antigos, que era constituda pela participao

    ativa e constante no poder coletivo. A nossa

    liberdade deve, ao contrrio, ser constituda

    pela fruio pacfica da independncia privada.

    Benjamin Constant

    2.1 Evoluo do conceito de poder

    O homem, desde que habita o planeta Terra, procurou viver em grupos a

    fim de preservar a espcie e garantir sua subsistncia. Para tanto, teve de conviver com os

    outros, criar sociedades, as quais de incio se caracterizavam por constantes conflitos entre

    os membros de um mesmo grupo, entre distintos grupos ou contra as intempries da

    natureza83.

    Nessa poca o poder se concentrava naqueles aptos a defender o grupo e

    orient-lo tanto nas tarefas cotidianas quanto nas lutas contra outros bandos. Ele era

    considerado selvagem, pois se preocupava com necessidades bsicas e imediatas84.

    Nessa fase, a da barbrie, o ser humano j era capaz de transformar a

    natureza em prol da sobrevivncia dele realizava atividades pecurias e agrcolas. Em

    razo disso, surgiu o conceito rudimentar de propriedade, o que resultou no

    estabelecimento de uma autoridade central mais organizada, que coordenava a vida da

    comunidade e os ataques aos inimigos85.

    83

    SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e

    Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 84

    BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1987, p. 48. 85

    Op. Cit. SILVA, Osmar Jos da.

  • 29

    Com a evoluo humana, estabeleceu-se a civilizao, a partir da qual se

    consolidou a diviso do trabalho, o desenvolvimento da inteligncia e as noes de posse e

    propriedade. Alm das tarefas pecurias e agrcolas, o homem passou a lidar com a arte e a

    indstria, ainda que rudimentar. A segmentao do trabalho foi aperfeioada e com ela a

    necessidade de se manter a ordem social, em razo do aumento e da complexidade dos

    conflitos gerados no meio dos grupos, motivados, sobretudo, por vingana e ambio86.

    A fim de garantir a ordem social, o ser humano manteve o poder

    centralizado, uma vez que entendia ser essa a melhor forma de se preservar a paz social e o

    bem-estar da comunidade. O poder era conferido aos mais fortes, aos mais capazes, aos

    chefes e aos sucessores e herdeiros de cls e tribos. Surgiam a os primrdios da

    Monarquia87. Com a evoluo espiritual, as pessoas passaram a crer em um ser superior,

    responsvel pelo destino das gentes, e depositaram na figura do governante os rumos do

    grupo, pois entendiam ser este o enviado de Deus, portanto divinizado, mgico88.

    Deduz-se que j se firmava a vocao do homem para viver em

    sociedade - o ser humano era um animal sim, mas sociopoltico, que carecia de

    organizao, desenvolvimento e poder89:

    Se natural o homem viver em sociedade, necessrio que entre os

    homens exista alguma coisa pela qual a multido dirigida [...] em todas

    coisas que se ordena a um fim, em que se deve proceder de um modo ou

    de outro, necessrio um dirigente, atravs do qual se chegue

    diretamente ao fim devido90.

    Havia, porm, oposio ideia de que o poder e a sociedade advinham de

    necessidade inata dos seres humanos; o entendimento era de que derivavam de pactos,

    contratos, convenes firmados entre estes por vontade dos membros do grupo. Eles

    estabeleciam normas de comportamento a serem seguidas por todos91. No estado da

    natureza (ou jus naturale), pr-social, o homem se isolava e hostilizava os outros, uma

    vez que entendia ser livre para definir os rumos de sua existncia, sem dever satisfao de

    seus atos a outro do mesmo grupo social; em seguida, mediante o pacto social, ele passou

    86

    SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e

    Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 87

    Idem, ibidem. 88

    Idem, ibidem. 89

    Idem, ibidem. 90

    Idem, ibidem. 91

    Idem, ibidem.

  • 30

    ao estado da sociedade civil com o estabelecimento de leis e poder poltico92. No pacto,

    ficava definido que o cumprimento do acordo era considerado sagrado (da se originou a

    justia)93.

    O ser humano transitou ento da condio de selvagem inocente para

    membro do Estado de sociedade e depois para o Estado civil, no qual havia renncia a

    parte da liberdade natural e a posse de bens, armas e riquezas. Estas eram transferidas a

    uma pessoa o monarca -, que se investia de autoridade poltica para comandar o grupo94.

    Nessa configurao, a soberania e o poder pertenciam ao Estado, composto pelo corpo

    poltico reunio de homens95; Rousseau pregava que o real soberano era o povo e o

    governante o representante legal daquele96.

    Com o desenvolvimento das sociedades, tornou-se cada vez mais

    complexo definir o que o poder, principalmente porque ele assume na prtica

    diversificadas formas. O poder concentra-se em Estado e poltica, interconectados entre

    si97, e pode ser ilimitado ou absoluto com a paz entre os homens ou limitado com a

    manuteno dos conflitos98.

    O poder, em tal cenrio, caracteriza-se pela capacidade do sujeito de

    alcanar determinados objetivos, metas, como elaborar leis, influir a conduta das pessoas.

    Assim, o poder significa o direito de que um sujeito portador e est respaldado no

    ordenamento jurdico de dada sociedade99.

    O poder pode ser considerado ainda como [...] toda probabilidade de

    impor a vontade numa relao social, mesmo contra resistncias, seja qual for o

    fundamento dessa probabilidade100. Nesse sentido, as relaes sociais so plurais

    (amizade, hostilidade, competio poltica e econmica, dentre outras) e, por isso,

    92

    MALMESBURY, Thomas Hobbes. O Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil.

    Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. So Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 47. 93

    Idem, ibidem, p. 52. 94

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. 3 edio. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 63. 95

    Op. Cit. MALMESBURY, Thomas Hobbes, p. 48. 96

    Op. Cit. ROUSSEAU, p. 65. 97

    BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1987, p. 53. 98

    Op. Cit. MALMESBURY, Thomas Hobbes, p. 58. 99

    LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Igor Csar F. A. Gomes (org.) Traduo de:

    Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. So Paulo: Editora Vozes, 1994, p. 77. 100

    WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora

    Universidade de Braslia, 1991, p. 35.

  • 31

    precisam ser reguladas por expectativas recprocas, pertencer a certas estruturas sociais

    (como Igreja, Estado e famlia) e inserir-se em normas afetas a todos. Assim, o poder se

    encaixa numa relao social.

    Norberto Bobbio questiona a justificao do poder poltico nestes termos:

    [...] admitido que o poder poltico o poder que dispe do uso exclusivo

    da fora num determinado grupo social, basta a fora para faz-lo aceito

    por aqueles sobre os quais se exerce, para induzir os seus destinatrios a

    obedec-lo101?

    A questo pode ser interpretada sob dois aspectos: a efetividade do

    direito, a durao do poder fundado s na fora, e a legitimidade do poder, fundado to

    somente na fora, que pode ser efetivo sem ser legtimo. o problema da fundamentao

    do poder102. As respostas a esse questionamento repousam no fundamento da organizao

    social a legitimidade se caracteriza pela submisso de dado grupo a um mandato103. Uma

    das formas de se concretizar essa dominao a legal, a qual corresponde estrutura

    moderna de Estado, com quadro administrativo hierarquizado.

    Kelsen e seus discpulos no corroboram a ideia clssica de que, sem a

    participao do poder, no se efetivaria o direito. Para ele, ao identificar direito e Estado,

    no h outro direito salvo o positivo e no existe poder exceto a coao como contedo da

    norma jurdica. Afirmam que a soberania no constitui poder, tampouco necessria

    garantia de atualizao do direito; o poder no precisa vir antes do direito para poder

    sancion-lo. A soberania se refere apenas validade e unidade de um sistema de normas,

    decorrncia lgica da norma fundamental hipottica considerada pelo jurista como

    condio do prprio sistema104.

    Ainda que haja pensadores que advoguem ser o poder prescindvel, pois

    viola a liberdade individual e os princpios da conscincia religiosa, dispensvel, portanto,

    101

    BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; por uma teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1987, p. 55. 102

    Idem. 103

    WEBER, Max. Op. cit, idem. 104

    KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Apud SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito.

    Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico.

  • 32

    positivao do direito, grande parte dos autores atuais reconhece o poder como

    indispensvel estrutura do Estado e vida social105.

    Dalmo Dallari leciona que, mesmo em sociedades mais organizadas e

    prsperas, ocorrem conflitos os quais precisam ser solucionados; para tanto, fundamental

    a interveno de uma vontade hegemnica que possa garantir a unidade e a paz social106.

    2.2 Poder poltico

    O poder poltico propriamente dito surgiu nas sociedades grega e romana,

    que originaram o poder e a autoridade poltica. Coube-lhes, por meio de seus legisladores

    (seus primeiros dirigentes), impedir a concentrao de poderes e de autoridade na mo de

    uma nica pessoa o rei.

    Com a urbanizao e o decorrente xodo rural, os camponeses que

    acorriam s aldeias se tornavam comerciantes e artesos e lutavam nas guerras, o que lhes

    permitiu avocar a si o direito de participar das decises poltico-econmicas e legais das

    ento cidades107. Em Atenas, os naturais podiam compartilhar o poder diretamente, o que

    originou o conceito de democracia, enquanto em Roma os pobres, ou a plebe aqueles que

    no possuam propriedades - elegiam um tribuno o qual os representava perante os

    patrcios os que partilhavam realmente o poder108.

    Pode-se afirmar que foi a que se inventou a poltica a lei passou a ser

    entendida como vontade pblica e coletiva, com direitos e deveres para todos; instituies

    pblicas foram criadas a fim de garantir prerrogativas e obrigaes; o errio foi

    estabelecido bens e recursos pblicos passaram a pertencer comunidade; o poder civil e

    o militar foram separados, com a subordinao deste quele; o Senado romano e a

    Assembleia grega foram implantados, nos quais os cidados, isto , os que possuam

    105

    SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e

    Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 106

    DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19 ed. So Paulo: Saraiva, 1995, p.

    174. 107

    Op. cit. SILVA, Osmar Jos da. 108

    Idem, ibidem.

  • 33

    direitos iguais, discutiam, opinavam e deliberavam por meio do voto acerca de questes

    sobre a vida comunitria, em locais abertos109.

    Tanto na oligarquia romana quanto na democracia ateniense, a sociedade

    buscou organizar-se socioeconomicamente e o Estado despontou como poder apartado da

    sociedade, embora responsvel por conduzi-la, comand-la e solucionar conflitos e

    disputas de qualquer natureza, com os cidados exercendo parte de tal poder110. Estava

    consolidada a poltica da cultura ocidental, como resposta s contradies sociais.

    Alm disso, considerava-se que dado regime s podia ser denominado de

    poltico caso houvesse um corpo de normas reconhecidas publicamente e respeitadas por

    dirigentes e cidados. A ausncia da lei podia conduzir a regimes tirnicos ou anarquia.

    Para se manter a poltica, era necessrio existirem instituies pblicas, direito e regras,

    com o fito de criar a vida boa e a justia ordem, harmonia e concrdia111.

    Com o passar dos sculos, o conceito de poder poltico sofreu algumas

    transformaes e evoluiu. Passou-se a entender que no competia ao Estado definir a

    propriedade privada, mas defend-la e garanti-la contra os que dela quisessem se apropriar

    ilegitimamente, sem que isso interferisse na vida econmica. Ademais, cabia ao Estado

    legislar permitir ou proibir o que se referisse vida pblica sem se imiscuir na

    liberdade de pensamento dos governados nem na liberdade econmica (movimento

    chamado de Liberalismo, consolidado na Inglaterra em 1688). O Estado desempenhava o

    papel de garantidor da ordem pblica112.

    Nessa conjuntura, despontou o Estado de Direito, com a responsabilidade

    de assegurar os direitos individuais e submeter todos os cidados s leis e s decises do

    Poder Judicirio. Ao ser assumido como garantia constitucional, o Estado de Direito

    passou a deter a juridicidade, os direitos fundamentais e a constitucionalidade como

    premissas. Quanto juridicidade, representa elemento de natureza material, formal e

    procedimental, visando solucionar os obstculos decorrentes da atuao estatal. Pretende,

    sobretudo nos Estados Democrticos de Direito, configurar o poder e a estruturao dele ao

    direito, mediante o estabelecimento de normas, regras, procedimentos, embora se

    109

    SILVA, Osmar Jos da. Poder Poltico e Direito. Juridicidade do Poder Poltico: Evoluo Histrica e

    Doutrinria. Regulao Jurdica do Poder Poltico. Doutrina. Gois: Ministrio Pblico, 2011. 110

    Idem, ibidem. 111

    Idem, ibidem. 112

    Idem, ibidem.

  • 34

    reconhea que o Direito padece da intromisso de valores sociais, econmicos, polticos,

    religiosos, ideolgicos113.

    Nesse sentido, pode-se compreender o direito como uma estrutura

    organizada racionalmente qual se conecta determinada sociedade. A fim de garantir a

    organizao, essencial que se definam comportamentos, se fundem instituies, bem

    como se rejeitem posturas as quais firam os valores delimitados pelo Estado114. Assim,

    cabe ao direito ainda indicar garantias jurdico-formais para resguardar a sociedade e o

    prprio Estado de condutas inadequadas por parte dos poderes constitudos.

    Nesse aspecto, a juridicidade, ou o princpio da igualdade perante a lei,

    contempla a inter-relao entre o direito objetivo (aspecto objetivo) e o subjetivo (aspecto

    subjetivo); no momento em que se criam normas para firmar paradigmas comportamentais

    desejveis (e indesejveis), formula-se o designado estado de distncia, segundo o qual

    se concedem aos indivduos determinados direitos individuais, inalienveis pois inerentes a

    eles, dando-lhes autonomia e confirmando o estado de direito como conceito de justia

    social115.

    Por intermdio da juridicidade, possvel se afianar que os pactos

    sociais, os contratos, sejam respeitados, cumpridos, honrados.

    Alm de se configurar como jurisdicional, o Estado de Direito

    igualmente constitucional os poderes pblicos (funes do Estado) so organizados em

    uma constituio, a qual determina os atos e as medidas desses poderes, constri o

    ordenamento jurdico e confere expresso Estado de Direito sua real dimenso. So

    inerentes ao princpio da constitucionalidade a subordinao de todas as atividades do

    Estado Constituio (controle poltico-jurdico), sejam elas administrativas, sejam

    polticas116.

    Implica tambm que algumas matrias sejam tratadas apenas luz do

    texto constitucional, conforme sua tipicidade e sua natureza (princpio da reserva da

    Constituio); que a Carta maior detm fora normativa no pode ser menosprezada em

    decorrncia de outros normativos tais como leis inferiores (princpio da fora normativa da

    113

    CANOTILHO, Jos Joaquim G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 218. 114

    Idem, ibidem, p. 219. 115

    Idem, ibidem. 116

    Idem, ibidem, p. 210.

  • 35

    Constituio); que o legislador no pode se esquivar dos ditames constitucionais ao

    legislar, tampouco os polticos eleitos podem infringir as normas constitucionais117.

    Por fim, o Estado de Direito se funda no pressuposto de atestar os

    direitos fundamentais dos indivduos. Estes prevalecem sobre os demais, precipuamente os

    que respeitam prerrogativas coletivas e individuais valores de igualdade. Desse modo,

    esto preservados os direitos humanos, as liberdades civis e determinados interesses

    particulares118.

    A depender da Constituio, os direitos fundamentais podem ser assim

    elencados: direito nacionalidade, livre circulao, residncia, ao asilo e propriedade

    (direitos pessoais diante da sociedade); direito liberdade, segurana e vida (direitos

    pessoais); direito liberdade de pensamento; religio, expresso, reunio e

    associao (liberdades e direitos pblicos); direito ao trabalho, ao repouso, educao,

    sindicalizao (direitos econmicos e sociais)119.

    A partir de tal entendimento, pode-se considerar que os termos direitos

    fundamentais e direitos do homem so equivalentes semanticamente. Ao se levar em

    conta a origem, na concepo jusnaturalista-universalista, direitos do homem constituem

    aqueles apropriados a todas as gentes, ao passo que direitos fundamentais representam, na

    dimenso jurdico-institucional, os direitos do homem restritos no tempo e no espao,

    porquanto vigoram em dada ordem jurdica durante o tempo em que ela existir120.

    [...] muitos dos direitos fundamentais so direitos de personalidade, mas

    nem todos os direitos fundamentais so direitos de personalidade. Os

    direitos de personalidade abarcam certamente os direitos de estado, os

    direitos sobre a prpria pessoa, direito privacidade, direitos distintivos

    da personalidade (direito identidade pessoal, direito informtica) e

    muitos dos direitos de liberdade. Tradicionalmente, afastam-se dos

    direitos de personalidade os direitos fundamentais polticos e os direitos a

    prestaes por no serem atinentes ao ser como pessoa121.

    Ademais, necessrio distinguir entre os direitos fundamentais no

    constitucionais e os formalmente constitucionais, que se prestam a defender a liberdade;

    117

    CANOTILHO, Jos Joaquim G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 210. 118

    Idem, ibidem, p. 211. 119

    Idem, ibidem, p. 211. 120

    CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:

    Gradiva, 2003, p. 369. 121

    Idem, ibidem.

  • 36

    exercer prestao social; proteger as pessoas contra terceiros e garantir a no-

    discriminao, protegendo os valores fundamentais da ordem jurdica:

    [...] os direitos consagrados e reconhecidos pela constituio designam-

    se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais,

    porque eles so enunciados e protegidos por normas com valor

    constitucional formal (normas que tm a forma constitucional). A

    Constituio admite [...], porm, outros direitos fundamentais constantes

    das leis e das regras aplicveis de direito internacional. Em virtude de as

    normas que os reconhecem e protegem no terem a forma constitucional,

    estes direitos so chamados direitos materialmente fundamentais122.

    (grifos do autor)

    A ausncia desse tipo de direito tornaria as Constituies um texto vazio,

    com um conjunto de regras formadoras do texto constitucional, mas que no se prestaria ao

    mais alto objetivo promover o bem-estar social, a paz, o convvio pacfico, a harmonia.

    Pode-se deduzir que sem a Carta Maior no h direitos fundamentais, pois so designados

    como direitos constitucionais. Como so reconhecidos pelas instituies pblicas e sociais,

    geram efeitos jurdicos. So garantidos, admitidos e acolhidos pelo Estado.

    Com base em tais premissas, pode-se constatar a fora do Poder

    Judicirio, incumbido de preservar esses direitos (e outros), fazer cumprir os preceitos

    constitucionais e as demais leis que regem o Estado.

    2.3 Poder poltico do Judicirio

    Uma vez que a funo poltica objetiva fixar critrios, concretizados em

    leis, normas e procedimentos, que auxiliem a promover o bem comum, a sobrevivncia da

    sociedade, cabe aos cidados criar rgos com poderes suficientes para atuar de modo a

    cumprir essas finalidades.

    A Carta Magna responde no s pela instituio dos rgos que

    exercero a funo poltica, como tambm pela competncia de cada um deles e pelos

    mtodos a serem empregados quando da atuao poltica de cada um. Dentre os limites

    previstos pela Constituio, encontram-se os atos passveis de ser realizados pelo

    122

    CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:

    Gradiva, 2003, p. 369.

  • 37

    Judicirio para executar a funo poltica tais como recursos, aes, jurisprudncias,

    decidindo com respeito a temas relevantes.

    Inicialmente, considerava-se o Poder Judicirio como desprovido de

    relevncia, como um poder que se restringia a acatar os desgnios das normas. Era

    entendido como o mais frgil dos Poderes, uma vez que no lhe cabia criticar nem o

    Executivo nem o Legislativo. Essa percepo comeou a se alterar com o movimento de

    constitucionalizao acontecido no sculo XX, especificamente depois da Segunda Guerra

    Mundial. A partir da, pde-se verificar marcadas transformaes nas relaes entre os

    Poderes dentro do Estado. Os tribunais e as outras instituies jurdicas vivenciaram o

    aumento, a expanso de seu poder, mormente na Amrica Latina, na Europa e nos Estados

    Unidos123.

    Com a evoluo das instituies poltico-jurdico-sociais, expandiu-se a

    atuao desse Poder, com o discurso poltico permeado pela retrica jurdica, com os

    tribunais desempenhando marcante papel na elaborao de polticas pblicas com nova

    postura de magistrados regulamentar o procedimento poltico e impor o respeito a

    determinados comportamentos chancelados por partidos polticos, servidores pblicos,

    autoridades do governo, polticos e grupos de interesses particulares124.

    Dessa forma, o Judicirio, com respaldo do texto constitucional, passou a

    zelar igualmente pelo respeito Constituio. Ele possui competncias prprias,

    individuais, e a liberdade de agir independentemente segundo seus propsitos e sua

    interpretao da Carta Maior. Compete-lhe tambm julgar atos dos outros Poderes, a fim

    de verificar se esto conformes com as leis, as normas, tornando-se responsvel em alguma

    medida pelos outros Poderes. Ao aplicar as regras a casos concretos, possui o direito

    inerente de interpret-las segundo o pensamento dos representantes da rea jurdica ou, ao

    contrrio, seguir literalmente a letra da lei e o entendimento do legislador, sem

    extrapolaes125

    . Assim, conclui-se que a atividade jurdica igualmente poltica, pois o

    a prpria opo do juiz por um ou outro rumo na deciso das lides.

    123

    MAURCIO JNIOR, Alceu. Judicializao da poltica e a crise do direito constitucional. Revista de

    Direito do Estado - RDE I. Ano 3, n. 10: 125-142, abr./jun. 2008, p. 126-127. 124

    Idem, ibidem, p. 127. 125

    CANOTILHO, Jos Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra:

    Gradiva, 2003, p. 369.

  • 38

    Com a instituio do Judicirio, verifica-se que o poder poltico convive

    com progressiva juridicidade, dado que se transitou do uso da fora bruta para o mbito do

    Direito. Nesse sentido, o direito e o poder representam fenmenos concomitantes, o que

    conduz ideia de distintos graus de juridicidade126.

    Ressalta-se, porm, que, embora o poder objetive se conformar cada vez

    mais ao direito, ele no ou ser puramente jurdico, pois a prpria positivao do direito

    depende da existncia daquele. A positivao do Direito depende do poder em geral, a fim

    de que se torne eficaz. Para que determinada regra se configure como de Direito Positivo,

    ela depende da interferncia do poder127.

    Tal integrao, que abarca interesses