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N.º 203 Março 2015 Mensal l Portugal € 3,50 (Continente) Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento 5 601753 002096 00203 Saúde Os parasitas que nos habitam Paleontologia Erros e fraudes à volta dos fósseis www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante Universos PARALELOS Há cópias de nós noutros mundos? Exclusivo Últimas notícias do multiverso Tecnologia Aplicações para deficientes Venenos De Cleópatra aos nossos dias

Super Interessante Nº 203

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Super Interessante Nº 203

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Page 1: Super Interessante Nº 203

N.º 203Março 2015

Mensal l Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

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Saúde Os parasitas

que nos habitam

PaleontologiaErros e fraudes

à volta dos fósseis

www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante

Universos PARALELOS

Há cópias de nós noutros mundos?

Exclusivo Últimas notícias

do multiverso

TecnologiaAplicações

para deficientes

VenenosDe Cleópatra

aos nossos dias

Page 2: Super Interessante Nº 203

Os cúmplices A psicologia O castigo

20 biografias: Hitler, Mao, Bin Laden, Estaline, Átila, Nero, Idi Amin, Pol Pot,

Al Capone, Mengele, Bokassa...

Os mausda história

Edição especial 2011/2012 | Portugal € 3,50 (Continente)

5 6 0 1 7 5 3 0 0 2 5 9 1

0 0 0 0 2

FARAÓS do Antigo Egito

Edição especial 2012 | Portugal € 3,50 (Continente)

Profissão: deus Rainhas de barba rijaO vale dos Reis O esplendor de LuxorO quotidiano do palácio Educar um rei

De Narmera Cleópatra

Os mais poderosos

Luzes e sombras do passado

DUAS EDIÇÕES

POR APENAS

3,50€À VENDA

Page 3: Super Interessante Nº 203

Observatório 4O Lado Escuro do Universo 5Motor 8 Super Portugueses 10Histórias do Tejo 14Caçadores de Estrelas 16 Flash 44Marcas & Produtos 97Foto do Mês 98

A propósito de universos paralelos, o tempo em que vivemos dá-nos boas lições de convergências, divergências e, tantas vezes, paralelismos lamentáveis, mas

que não podem deixar de fazer pensar. Sem intenção de sugerir que haja alguma li-gação palpável entre eles, seguem-se alguns exemplos lançados a esmo. Na Ucrânia, Putine brinca às guerras. Vindo de onde vem, provavelmente até está a esfregar as mãos de contente com a ideia de que Obama possa cair no engodo. Morre gente a torto e a direito, e, ao certo, por causa de quê? E à nossa porta, não é lá longe, numa Síria qualquer. Na Síria (e no Iraque, e no Afeganistão, e no Paquistão, e agora no Egito), morre gente às mãos cheias por causa de uns extremistas que se acham cru-zados dos tempos modernos e anseiam por chegar mais cedo à sua quota de virgens no paraíso. Para fugir do inferno, milhares de gregos optaram pelo suicídio: a taxa aumentou mais de 36 por cento desde o início da crise. Muitos gregos não têm luz, porque não podem pagá-la. Saberão que há uma guerra na Ucrânia? Em São Paulo, no Brasil, uma das maiores urbes do planeta, falta água nas torneiras durante mais de metade da semana (não corre um pingo ao sábado e ao domingo), e a eletrici-dade vai pelo mesmo caminho. Quando falta a luz, desaparece o sinal de telemóvel, isto é, a maior aglomeração urbana da América do Sul regressa, durante longas ho-ras, a padrões medievais de comunicação e salubridade. O Estado Islâmico deveria adorar a ausência de internet, TV e água para tomar banho e fazer a barba. Temos tendência para achar que a água e a luz são direitos inalienáveis, mas não é verdade. É como a paz. Achamos que estamos a salvo, mas, de um dia para o outro, podemos tornar-nos o alvo de algum maluco (vigoréxico mental). Tempos modernos? C.M.

A perder de vista As paisagens calcárias escondem segredos que vale a pena descobrir. Pág. 26

O céu na cabeçaPodemos estar a chegar ao momento em que se torna realidade o cenário do filme Gravidade. Vamos ter de reduzir rapidamente o lixo espacial, e começam a surgir ideias sobre como fazê-lo. Pág. 56

N.º 203Março 2015

Mensal Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

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Saúde Os parasitas

que nos habitamPaleontologia

Erros e fraudes

à volta dos fósseis

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Universos PARALELOS

Há cópias de nós noutros mundos?

Exclusivo Últimas notícias

do multiverso

TecnologiaAplicações

para deficientes

VenenosDe Cleópatra

aos nossos dias

A vida em grego e cirílico Março 2015203

SECÇÕES

www.superinteressante.pt

Feios, porcos e mausDezenas de parasitas que se alojam no nosso organismo podem provocar doenças às quais costumamos prestar pouca atenção. Pág. 38

SAÚDEOs nossos inquilinos

38

Paparazzi espaciaisTERRA 20

ESPAÇOMars One: missão inviável?

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ASTRONOMIAUma rede cósmica

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www.assinerevistas.com

Lindos de morrer? A vigorexia é uma das obsessões mais vulgares no nosso tempo. As vítimas padecem de ilusões sobre a sua forma física.Pág. 82

Assine com um clique!

PALEONTOLOGIA

O enigmático homem da Ásia66

TECNOLOGIADe olho na sucata espacial

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Um mapa do plânctonAMBIENTE 34

AMBIENTEMistérios cársicos

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ESPAÇOUniversos paralelos

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HISTÓRIA

Pedro Nunes, personagem rara62

ECONOMIAA viagem do cacau

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SP

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PALEONTOLOGIA

Meter a pata na poça70

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UT

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TECNOLOGIAJanelas biónicas

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PSICOLOGIAManias de obsessivo

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HISTÓRIAFiguras tóxicas

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Page 4: Super Interessante Nº 203

SUPER4

Observatório

N o início dos anos 70, a Agência Central de Informações (CIA) norte-americana criou um peculiar museu nas suas instalações de Lan-

gley (Virgínia, nos arredores de Washington). Ali se foram acumulando objetos desclassifi-cados que documentam as sete décadas de história da CIA. Os agentes e alguns amigos e familiares autorizados podem contemplar nas suas salas armas, equipamentos e curiosos artefactos criados para as missões contra os sucessivos inimigos do país, da velha União Soviética aos modernos integristas islâmicos. O público em geral não tem acesso físico ao local, mas pode admirar a parafernália nas páginas da CIA na internet. Uma das últimas peças incor-poradas é a metralhadora AK-47 (Kalashnikov) com que dormia Osama bin Laden na casa do Paquistão onde foi morto. No entanto, o mais fascinante para os visitantes são os dispositivos usados pelos agentes. Infelizmente, não há sapatofones... F.J.

O museu secreto

No final dos anos 50, início dos 60, os agentes usavam este kit para abrir buracos nas paredes e instalar microfones. Os acessórios adaptavam-se a diferentes materiais e microfones.

FOT

OS

: CIA

A CIA testou nos anos 70 uma forma de recolher informações sem despertar suspeitas: um veículo telecomandado com o tamanho e a aparência de uma libélula. Um minúsculo motor a gás movia as asas, mas o artefacto revelou-se incapaz de trabalhar em caso de vento.

Num maço de tabaco perfeitamente banal, podia ocultar-se uma máquina fotográfica Tessina de 35 milímetros,

a mais apreciada pelos espiões, pela sua qualidade, mas sobretudo pelo seu funcionamento silencioso.

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Interessante 5

O sistema de posicionamento global dos Estados Unidos (GPS, na sigla

inglesa), o Galileu (ainda na sua fase ini-cial), na Europa, e o GloNaSS, na Rússia, são exemplos de sistemas de navegação por satélite, usados com frequência diária por um cada vez maior número de pessoas e serviços. Já aqui discutimos que, para um perfeito funcionamento do GPS, é necessário incorporar os efeitos relativistas da dilatação temporal devido ao movimento dos satélites em órbita terrestre em relação às estações terrenas. Além disso, o GPS também incorpora os efeitos da dilatação temporal gravítica, que essencialmente corrige a passagem “mais lenta” do tempo perto de campos gravitacionais , o que foi testado pela Sonda Gravítica A, em 1976. Os relógios atómicos são a peça essencial, de extrema precisão, usada para calibrar a passagem do tempo em diferentes referenciais. Se o GPS não “soubesse” relatividade, os er-ros ao navegar nas estradas podiam che-gar aos vários quilómetros por dia, em vez da habitual precisão de alguns metros a que estamos habituados.Mais recentemente, têm surgido outras ideias relacionadas com o uso do GPS para detetar a massa escura. Um especia-lista em telecomunicações e GPS da Uni-versidade do Texas, ao calcular a massa da Terra com base em dados orbitais de navegação por satélite, encontrou um número superior, mas apenas na ordem dos 0,005 por cento em relação ao valor aceite. Para justificar a diferença, bastaria a existência de um vasto disco (com 70 mil quilómetros de extensão e cerca de 200 quilómetros de espessura) de massa escura situado sobre o equador terres-tre. As críticas choveram de imediato, lembrando que a massa escura terá uma distribuição esférica na galáxia e que seria estranha a existência de um disco na Terra. Além disso, o conhecimento detalhado do geoide terrestre, feito por satélites como o GRACE, mostra tam-bém flutuações na gravidade ao longo do globo, que não terão sido tidas em conta pelo autor, entre outras lacunas.Mais séria é a ideia de que a massa escura não é feita de partículas ainda por desco-brir, mas sim de defeitos topológicos, re-sultantes de campos escuros com génese no universo primitivo e que vão para lá do modelo padrão da física de partículas. Estas “imperfeições” do espaço-tempo podem ser monopolos, cordas (de di-mensão 1) ou paredes (de dimensão 2) que podem alterar as constantes físicas

fundamentais, entre as quais a massa das partículas. Um defeito topológico escuro pode também funcionar como uma espé-cie de material dielétrico dispersivo, com um índice de refração que depende da frequência da radiação visível ou rádio de fontes humanas ou astrofísicas. Físicos da Universidade do Nevada e do Canadá defendem assim que a passagem da Terra por zonas de defeitos topológicos escuros pode ser medida através dos seus efeitos na dessincronização dos relógios atómicos dos sistemas de navegação por satélite. Uma vez que a rede destes saté-lites ocupa cerca de 50 mil quilómetros e considerando a velocidade do Sistema Solar em torno dos 200 a 300 quilóme-tros por segundo, procura-se assim um sinal anómalo que no máximo durará cerca de 170 segundos. Os detalhes do trabalho foram publicados na revista Na-ture, estando os autores já a vasculhar as bases de dados de sistemas como o GPS.Para além dos relógios atómicos em órbita, físicos australianos defendem a procura de defeitos topológicos escuros nos sinais de pulsares. Isto porque os pul-sares emitem pulsos rádio muito rápidos (na casa dos milissegundos), com uma regularidade comparável à dos relógios atómicos. Se um defeito topológico escu-ro passar por um pulsar, pode alterar-lhe a sua massa, dimensões e outras proprie-dades. Esse evento pode resultar num “tremor” do pulsar, afetando a regulari-dade da sua emissão rádio ou, por outras palavras, a sua velocidade de rotação. Os “tremores” de pulsares já são, aliás, observados, não existindo explicações cabais para o efeito, que parece estar rela-cionado com erupções periódicas nestas estrelas de neutrões, cuja superfície se fratura durante os “tremores”.Andrei Derevianko, da Universidade do Nevada, entende que o alargamento da caça aos defeitos topológicos escuros usando pulsares aumenta imensamente o âmbito das redes de navegação por sa-télite, que de algum modo funcionariam já como o maior detetor escuro alguma vez construído pela humanidade. Com algum sentido de humor, graceja sobre o dia em que os utentes se ponham a quei-xar acerca de possíveis falhas do GPS por causa da maldita massa escura…

O Lado Escuro do Universo

GPS e massa escura

PAULO AFONSO

Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográfico, embora sob protesto.

Na Segunda Guerra Mundial, a OSS (agência precursora da CIA) conseguia tirar cartas dos sobrescritos sem os abrir: enfiava-se uma ferramenta pela parte superior (não selada) e rodava-se, até conseguir enrolar a carta e extraí-la. Depois, invertia-se o processo.

Este cachimbo aparentemente vulgar ocultava um recetor de rádio, através do qual se podia receber instruções: o som era transmitido por condução óssea, vibrações que vão diretamente da mandíbula ao canal auditivo.

Esta moeda do tempo de Eisenhower é tão falsa como um euro de madeira. Usava-se para ocultar filmes fotográficos ou mensagens que passavam despercebidos: quem iria suspeitar de uns trocos à solta num bolso?

Page 6: Super Interessante Nº 203

SUPER6

Observatório

D escoberto em 2004, na Universi-dade de Manchester (Reino Unido), o grafeno (uma substância for-mada por carbono puro) tornou-

-se o “material maravilhoso” da tecnologia vindoura. Mais resistente do que o aço, com a espessura de um único átomo, flexível e trans-parente, é o condutor de eletricidade mais fino que se conhece, e todos os dias surgem pos-síveis novas aplicações. Agora, investigadores da Universidade de Exeter (também do Reino Unido) dizem tê-lo melhorado com o desenvol-vimento do GraphExeter, um “supergrafeno” que resistiria a temperaturas de 150 graus Cel-sius (até 620 ºC no vácuo) e uma humidade de cem por cento durante 25 dias. Para consegui-

E agora... o super-grafeno

Castelo de PaivaComo leitora assídua da SUPER, qual não é o meu espanto, ao iniciar a leitura do artigo O Jardineiro de Pedra [SUPER 202], desco-brir, após 30 anos, que, afinal, a minha terra, o sítio onde nasci, cresci e vivo, é um autên-tico deserto. Ao ler esta parte inicial e alguns excertos pelo meio, parecia que estava a ver os filmes de cowboys de domingo à tarde, em que, após alguns dias de viagem em cima do seu cavalo, o forasteiro se depara com uma cidade fantasma no meio do faroeste, em que não se vê vivalma. Bem, esse texto “científico” faz uma descrição super-errada da minha terra. Apesar de ter visto um dos pontos emblemáticos do Couto Mineiro do Pejão ao abandono, por políticas de direita desastrosas de há 20 anos, não quer dizer que vivamos atualmente num deserto do Sahara em Portugal. Esta terra não gosta de ser conhecida pelas tragédias, não é um local abandonado e sem futuro. Esta super-terra tem homens e mulheres com garra (tal como o sr. António Patrão), que souberam enfrentar as dificuldades de outrora. É uma terra de gente superlutadora, super--humilde e supertrabalhadora. É uma terra

Escreva para [email protected]. Não podemos publicar todas as cartas, e as que publicarmos serão editadas.

A OPINIÃO DO LEITOR

de paisagens deslumbrantes sobre o rio Douro, uma terra com vários pontos turísticos visitados durante todo o ano, de festividades e romarias conhecidas por todo o norte do país, de boa gastronomia, de boa música e de bom vinho verde. Diga-se, esta terra é super-interessante. É pena que o autor não tenha feito essa descri-ção no seu artigo “científico”, ou não tenha efetuado as buscas necessárias para o efeito. Pode ser que um dia destes queira voltar e fazer outro artigo.

Mónica Rocha (Castelo de Paiva)N.R. – O autor referia-se evidentemente e apenas ao couto mineiro abandonado, não ao concelho, nem às suas terras ou populações.

Edições especiaisAprecio a edição mensal da SUPER, e ainda mais as edições especiais, que trazem informa-ções e estudos interessantes. Na última edição de Perguntas & Respostas, houve três temas que, além dos demais, captaram a minha atenção. O primeiro concerne às emoções sentidas não só pelos humanos mas também pelos animais. Tenho duas gatas e uma delas revela claramen-te demonstrar alguma memória de emoção, ou, pelo menos, sensitiva. Sucede que gosta de

deitar-se junto da lareira acesa e desfrutar do calor. Quando a lareira está apagada, olha para o sítio onde costumam estar as labaredas, expectante. Acredito que guarda a memória da emoção ou da sensação sen-tidas. O outro tema que me fez pensar foi: “Viver a dois provoca stress?”. Vivo acom-panhada com as duas gatas, mas sozinha em matéria de seres humanos. Suponho que não se possa dizer que é menos cansativo ou stressante: simplesmente, não há ninguém com quem partilhar ideias ou ajudar a tomar decisões, e, conforme os dias decorrem, até os pequenos acontecimentos deixam a sua marca para o melhor e para o pior. É viver acompanhada comigo mesma, e tanto posso ser satisfatória como incomodativa. Por último, e sendo fã da antiga série Ficheiros Secretos (X-Files), criada por Chris Carter, a revista deu-me a descobrir a origem do nome de uma das personagens de um dos livros da série: neste, foi utilizado o nome “Ogilvy”, um dos criativos de publicidade para televisão a partir dos anos 50. Por estas razões em especial e pela revista no seu conjunto, é de louvar o vosso empenho.

Luísa Estêvão (Algarve)

-lo, os cientistas colocaram moléculas de clo-reto de ferro entre duas camadas do material.

Este grafeno modificado poderia substituir o óxido de índio e estanho, o condutor trans-parente mais habitual nos dispositivos eletró-nicos, e perfila-se como um componente para painéis solares (onde é crucial a resistência às condições climáticas), wearables (tecnologia de vestir) ou televisores destinados a ambien-tes muito húmidos (cozinhas...), já que aumen-taria a duração dos ecrãs.

Segundo um trabalho publicado na revista Nanoscale, construir com grafeno os pontos quânticos (semicondutores minúsculos, fluo-rescentes quando se projeta luz sobre eles)

quintuplicaria o seu brilho, o que teria aplicação no fabrico de lâmpadas LED e na marcação de células cancerígenas, por exemplo.

Por outro lado, o grafeno também se asso-ciou a uma das tecnologias mais surpreenden-tes dos últimos anos: cientistas sul-coreanos imprimiram nanoestruturas tridimensionais feitas inteiramente desta substância, graças a um novo método de impressão 3D que fun-ciona a partir do fabrico aditivo, ou seja, da sobreposição sucessiva de camadas micro-métricas de material, até conseguir o objeto pretendido. A técnica poderá servir para pro-duzir sensores, circuitos e chips de dimensões extremamente reduzidas.

IND

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Esta micrografia eletrónica colorida, vencedora do concurso de fotografia da Zeiss, mostra espuma de grafeno, obtida depositando camadas do material sobre uma armação metálica.

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2ª A 6ª FEIRA, 9H30-13H00 E 14H30-18H00 [Fax] 21 415 45 01

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Page 8: Super Interessante Nº 203

A Continental é mais conhecida como um dos maiores produtores de pneus para automóveis e outros veículos, mas a verdade é que tem

também um papel ativo noutros domínios, alguns complementares ao automóvel, como o da mobilidade. Alguns dos seus mais recentes desenvolvimentos estão relacionados com a conetividade entre os veículos e a cloud, na pro-cura de progressos nos campos do controlo, entretenimento, informação e segurança. Um dos projetos mais curiosos é o que envolve a utilização de um smartwatch. Este relógio de pulso ligado à internet permite uma conexão à distância entre o condutor e o automóvel, numa nova interpretação, mais sofisticada e abrangente, da chamada “chave inteligente” que hoje algumas marcas de automóveis já propõem nos seus modelos. O sistema utiliza o protocolo Bluetooth para se ligar aos sistemas a bordo do automóvel, nomeadamente à nova chave virtual bidirecional, também conhecida como gateway key. Esta funciona como um

O carro no pulso

Motor

8 SUPER

interface entre o veículo e o smartwatch, transferindo informação relativa ao veículo, dados de diagnóstico e perfil de utilizador para o veículo. Na verdade, o smartwatch acaba por ser usado como um terminal de computador. Através de uma aplicação, o condutor pode abrir ou fechar as portas do veículo ou trocar outro tipo de informação. Por exemplo, pode acionar o sistema de climatização, ajustar as regulações do banco elétrico a seu gosto ou simplesmente localizar o veículo num parque de estacionamento. Tudo isto é feito simples-mente através da utilização do monitor do smartwatch, com toques e movimentos dos dedos semelhantes aos permitidos num smart­phone. A Continental afirma que esta tecnolo-gia está pronta a entrar no mercado, não se sabendo contudo se o fará de forma indepen-dente ou associada a um ou mais construtores de automóveis, como equipamento opcional. Uma coisa é certa: a ideia é de uma utilidade tão óbvia que não deverá demorar muito a estar disponível para o consumidor final.

Raio X

Lexus RC F

1

A marca japonesa de veículos de luxo e desportivos lançou o seu novo RC F.

Trata-se de um coupé de altas prestações e quatro lugares com dimensões que o colo-cam no segmento D, ou seja, em confronto direto com modelos como o novo BMW M4. Vejamos algumas das soluções téc-nicas usadas pelos engenheiros japoneses para o confronto com o desportivo feito pela marca de Munique.1 – O motor é um V8 sem turbocompres-sor, capaz de desenvolver uma potência máxima de 477 cavalos às 7100 rotações por minuto e com um binário máximo de 530 Newton-metro, às 4800 rpm. Funciona com injeção direta e indireta e o seu variador de fase permite-lhe funcionar segundo o ciclo de Atkinson, em situações de carga parcial. Está acoplado a uma caixa

6

Audi A3 Sportback e-tronA Audi acaba de lançar a versão híbrida gaso-

lina/elétrica do A3, na versão Sport back de cinco portas. Em termos mecânicos, o motor 1.4 TSI com turbocompressor e 150 cavalos é ajudado por um motor elético ultrafino de 102 cv, colocado entre o motor a gasolina e a caixa de velocidades de dupla embraiagem e seis rela-ções. A potência máxima combinada, anunciada pela Audi, é de 204 cv, o que permite uma velo-cidade máxima de 222 km/h e uma aceleração dos zero aos cem quilómetros por hora em 7,6 segundos. O motor elétrico é alimentado por uma bateria de 8,8 quilowatts-hora, que pesa 125 quilos e está alojada sob o banco traseiro. A bateria recebe energia regenerada pelo motor

elétrico durante travagens e desacelerações, altura em que se converte em gerador, mas também pode ser carregada através de um cabo numa tomada doméstica, a 10 amperes, demo-rando um máximo de 3h45, ou numa tomada industrial, a 16 A, demorando 2h15. Com a bateria carregada, consegue circular até 40 km em modo cem por cento elétrico, mas sem ultrapassar os 80 km/h. O condutor tem quatro modos de condução que pode ativar através de um botão: elétrico, Hybrid Auto, Hybrid Hold e Hybrid Charge. No arranque, é sempre usado o modo elétrico, extremamente suave, silencioso e com uma resposta ao acelerador muito rápida e continuada, com passagens de caixa ultrarrá-

3

CARRO DO MÊS

pidas. Este modo não dura para cima dos 125 km/h, altura em que entra em ação o motor a gasolina, também com imensa suavidade e complementando muito bem a propulsão, que se torna então híbrida automática. Sempre que se reacelera, o motor elétrico dá um boost, para tornar a resposta mais rápida e suave, e os dois

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S eguindo a sua missão de propor modelos de prestígio capazes de

fazer face aos produzidos pelas grandes marcas alemãs, a Lexus, que é a divisão de automóveis de luxo da Toyota, deli-neou uma estratégia de lançamento de novos produtos que merece ser anali-sada. Por um lado, fez uma aposta forte e sem compromissos nas motorizações híbridas, oferecendo várias opções deste tipo na sua crescente gama de modelos e declinando a possibilidade de oferecer os mais tradicionais motores Diesel. Uma manobra de risco mas com um futuro sólido, pelo menos a avaliar pelas pers-petivas sombrias que cobrem o futuro do gasóleo, na Europa. As futuras normas antiemissões poluentes prometem uma guerra aberta aos Diesel, que poucas marcas vão ser capazes de suportar, em termos de custos de desenvolvimento e como modelo de negócio. Como a fama e o sucesso das marcas alemãs tem pas-sado desde sempre também por modelos desportivos de exceção, a Lexus não podia ignorar este segmento de mercado. Não tanto pelo que ele pode representar em termos de negócio direto – muito provavelmente, os custos deste tipo de versões não são cobertos pelo preço de venda ao público –, mas sobretudo pela ferramenta de marketing que constituem. Ter um modelo de altas prestações e de grande eficácia dinâmica, que possa ser comparado com os melhores que se fazem na Alemanha, é motivo mais do que suficiente para a Lexus investir em modelos como o novo RC F. A mensagem a passar ao cliente é simples: se a Lexus é capaz de se bater com os melhores no segmento que é apercebido como o dos modelos mais complexos e sofisticados, certamente também o será nos modelos mais comuns, aqueles que a maioria dos consumidores pode com-prar. É aquilo a que os ingleses chamam “efeito de aura”. Em termos de exercício técnico e tecnológico, o RC F já mostrou que está a par dos melhores.

Opinião

O modelo alemão

automática de oito velocidades, com possibili-dade de comando em sequência.2 – A tração é às rodas traseiras e estão disponí-veis dois tipos de diferencial autoblocante: um Torsen mecânico ou um inovador diferencial de comando eletrónico, batizado TVD (Torque Vectoring Differential), que utiliza duas embraia-gens comandadas por motores elétricos e tem três modos de funcionamento, à escolha do condutor. 3 – Os travões são de discos ventilados e ranhu-rados, com grande diâmetro (380 milímetros, à frente) e são fornecidos pelos especialistas da Brembo. A Lexus não achou necessário o recurso a discos em carbocerâmica.4 – A aerodinâmica da carroçaria foi muito tra-balhada, incluindo uma asa traseira ativa, que se ergue automaticamente aos 80 quilómetros por hora.

5 – Os bancos têm uma espuma patenteada pela Lexus, que permite uma menor defor-mação do banco, sob o peso do condutor e durante curvas ou travagens bruscas, em condução desportiva.6 – A suspensão é de triângulos sobre-postos, à frente, e multibraço, atrás, com vários elementos em alumínio forjado, mas, curiosamente, os amortecedores não são reguláveis pelo condutor, como na maioria dos rivais.7 – Como hoje é moda, também o Lexus RC F tem um botão que dá ao condutor acesso a vários modos de condução, em que são alterados parâmetros como a resposta do acelerador, o tempo de passagem da caixa, o desempenho do diferencial ativo e também a configuração do painel de instrumentos.

Interessante 9

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7

FRANCISCO MOTA

Diretor técnico do Auto Hoje

bateria em andamento, funcionando o motor a gasolina como propulsor, mas também como gerador, quando não há uma tomada por perto ou não há tempo a perder. Em conclusão, o A3 Sportback e-tron proporciona uma condução muito suave mas rápida, apesar de o acréscimo de peso o tornar menos ágil em condução mais rápida por estradas sinuosas. Os consumos são muito bons, podendo variar entre os zero, em modo elétrico com a bateria carregada na rede, e os quase sete litros aos cem quilómetros, com a bateria nos níveis mínimos e circulando em cidade. O preço base desta versão é de 43 mil euros, com a vantagem de, para casos de empre-sas, o valor do IVA pago na aquisição e em todos os serviços ligados ao automóvel poder ser amortizado na totalidade.

motores funcionam sempre em harmonia na procura da condução mais eficiente. Se assim o desejar, o condutor pode depois escolher os dois outros modos. No caso do Hybrid Hold, o motor elétrico está sempre em ação, para obter as melhores prestações máximas. No modo Hybrid Charge, o sistema recarrega a

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SUPER10

Há várias razões para incluir Florbela Espanca na lista dos superportugueses. Para além da sua poesia, contemos também o fogo

e a coragem de todos os pioneiros.

SUPER Portugueses

E xpliquemos melhor: como escritora, Florbela Es panca tem, pela quali­da de dos seus poemas – também compôs prosa, mas foi na poesia

que, verdadeira men te, atingiu a excelência –, um lugar de honra na literatura por tuguesa e mesmo na litera tu ra europeia. Portanto, nes­te do mí nio, ela já superou, em mui to, a media­nia e, sob es ta pers pe tiva, não interessa que fosse mu lher ou homem: é um gran de no me da nossa histó ria.

Todavia, há, como ficou dito, ou tras razões para que se lhe atri bua um lugar na nossa ga le­ria dos notáveis. Uma delas pren de­se ainda com a sua poe sia: além da sua qualidade, já re fe rida, ela é, que saibamos, o pri mei ro caso de poesia eró ti ca fe mi nina, escrita numa época em que somente algumas – pou cas! – mulheres portu gue sas da vam tímidos passos no ca mi nho, não se dirá sequer da eman ci­pação, mas, antes de mais, da sua valorização perante a sociedade. Nesse tempo de ge ral pudor e recato, surge, in tem pestivamente, vinda do na da, uma pequenina mas peri go sa Florbela que borra toda es ta pin tura – que se casa três ve zes e se divorcia duas, que se apaixona e não hesita em escrever ao mundo essas pai xões.

Há mais, ainda falando da sua poesia erótica. É que, justa men te em termos de erotismo, a poesia de Florbela Espanca atin giu um nível raras vezes igua lado (temos presente, por exemplo, o caso de Maria Teresa Horta, mas que é muito mais re cente, pois, felizmente, essa es tá viva e continua a escrever). Por que, entendamo­nos: o ver da deiro erotismo é mais sugeri do do que explícito, é o oposto da por­no grafia. É mais um perfume ou um murmúrio do que uma visualização, do que um gra fis mo.

Enfim, Florbela está também na galeria

dos notáveis pe la sua loucura, pela sua cora­gem pio neira: não só por ser uma mu lher que desafiou as con ven ções, mas porque essa mu lher que ela foi veio de bai xo; não era uma aristocrata nem uma grande burguesa. O pai co meçou por ser sapateiro, co mo o avô. Numa altura em que as mulheres quase não ti nham acesso à educação, ela com pletou o liceu, chegou ao en si no superior, frequentou a Fa cul dade de Direito. Ao longo da vida, sem­pre reivindicou o direito aos seus sentimentos e reivindicou também o direito de os verter em poesia e em prosa. Destinada a publicação.

ESTRANHA FAMÍLIADe certo modo, o seu caráter po de ter

sido influenciado pela in fância, pela estra­nha família em cujo seio nasceu – uma es tra­nheza que se deveu ao pai, que lhe deu, além da mãe natural, duas madrastas, digamos… si multâneas. Natural de Orada mas depois residente em Vila Vi çosa, João Maria Espanca era um homem cheio de criatividade: de sapa­teiro passou a anti quá rio, negociou em cabe­dais, abriu uma casa de fotografia, mais tarde foi um pioneiro do animatógrafo; ajeitava­se tam bém a desenhar e a pintar. Era, além disso, um boémio in cor rigível e um incorrigível con­quistador de mulheres. Casou muito novo (21 anos) com uma loira Mariana do Carmo, que não podia ter filhos; então, lo grou convencê­la a aceitar a se guinte situação: ele iria fazer um filho fora do matrimónio, em mulher de con­dição humilde; depois, o casal tomaria con ta da criança.

Claro que João Maria esco lheu cuidadosa­mente a tal mu lher de condição humilde: na rua de Vila Viçosa onde ele mo ra va, traba­lhava uma lindíssima Antónia da Conceição Lobo, cria da de servir. Conquistou­a, le vou­a

FLORBELA ESPANCA (1894–1930)

A flor da charneca

para a casa onde ti nham vivido os seus pais, e as sim veio a nascer Florbela Es pan ca, levada, logo que nasceu, pa ra casa do pai, onde a mãe só entrava para a amamentar. Acres cente­se que, dois anos mais tarde, João Espanca vol­tou à carga (se assim se pode dizer), por que, agora, queria um filho va rão. De novo, com o conheci men to da legítima esposa, foi dor mir com Antónia. Passado o tempo regulamentar, veio ao mundo um rapaz, a quem o pai insis­tiu em chamar Apeles. Es se ficou com a mãe até aos qua tro anos; depois, Antónia aba lou com outro homem e a crian ça foi viver com o pai, a ir mã e a madrasta. Acrescente­se que nem assim se apaziguaram os ardores de João Espanca; não há, evidentemente, uma re la ção das suas infidelidades con jugais, mas sabe­se que em 1906 começou uma secreta liga ção amorosa com a criada da ca sa, Henriqueta de Almeida. Vi ria a casar com ela cerca de 15 anos depois, quando Mariana do Carmo lhe exigiu o divórcio.

Curiosamente, Florbela Es pan ca, na sua infância, não pa re ceu ressentir­se emocional­mente de toda esta “desordem”. Ela pró pria escreveu, numa carta, ter crescido “despreo­cupada e fe liz”. Aliás, adorava o pai, como adorava o irmão. Já em rela ção às mulheres – a sua mãe, An tónia Lobo, e as madrastas, Ma riana e Henriqueta – guar dou quase sem­pre alguma dis tân cia emocional.

Fosse como fosse, desde mui to cedo se manifestou nela o es tro, a imaginação criadora e um inevitável desequilíbrio. No fundo, criati­vidade e cria ção implicam, de uma forma ou de outra, desequilíbrio; a ques tão, para o cria­dor, está em ser ou não capaz de o gerir. Flor­be la nunca soube fazê­lo. De cer to modo, já é premonitó rio o título do seu primeiro poema conhecido: “A vida e a mor te”. Não é um

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Interessante 11

O dia 8 de dezembroN a vida de Florbela Espanca, a

da ta de 8 de dezembro é um ver­dadeiro Leitmotiv. É, como se sa be, o dia consagrado pela Igreja Católica a Nossa Senhora da Con ceição. Ora, Florbela nasceu a 8 de dezembro, casou­se pela pri mei ra vez a 8 de dezembro e mor­reu a 8 de dezembro, pelas duas horas da manhã. É também ver da de que Vila Viçosa, onde ela nas ceu, tem como padroeira Nos sa Senhora da Concei­ção; que foi batizada na Igreja de Nos sa Se nhora da Conceição, e que deu au las no Colégio de Nos sa Senho ra da Con­ceição, em Évora…

durou, porque lo go em abril ela começava ou tro, também com um colega, mas que Flor­bela conhecia des de a infância: Alberto Silva Mou tinho, com quem ela viria a ca sar dois anos mais tarde. En tre o começo do namoro e o ca sa mento, Florbela teve, po rém, uma violenta paixão por um jovem que conheceu na Fi gueira da Foz e cujo nome es teve oculto durante muito tem po; sabe­se agora que se cha mava João Mar tins da Silva Mar ques, um fu tu ro académico. A relação ter mi naria meses de pois e deixaria Florbela despe da çada, a pon to de, segundo as suas pró prias palavras, nunca ter sa ra do a ferida que lhe ficou. Pa re ce ter sido quase por com pen sação que reatou o namo ro com Alberto Moutinho e com ele casou, em 1913.

Este casamento não iria durar. A vida con­jugal terminou efe tivamente em fins de 1918, quan do Florbela, que residia com o marido no Algarve, voltou para Lisboa, onde o casal já tinha vivido, para retomar os estudos na Faculdade de Direi to. No princípio de 1920, co nhe ceu um jovem alferes da GNR, António Guimarães… pai xão quase instantânea; co me­çam a viver juntos, o que con duz ao divórcio de Florbela, lo go que o marido toma conheci­men to da situação. Depois, a 29 de junho de 1921, celebra­se o ma trimónio (também civil) entre Florbela Espanca e António Gui marães. Matrimónio que se de grada rapidamente, pois em 1923 já há acusações mútuas: a fa mí­lia da mulher diz que o marido lhe bate, a família do marido sustenta que não: é Flor­bela que lhe bate para o acordar, quan do ele adormece durante a leitura dos poemas da esposa. No final do ano, António Gui marães inicia o processo de di vórcio, quando ela já vive em ca sa do Dr. Mário Lage, médi co que tem vindo a tratá­la. Desta vez, a família acha

FLORBELA ESPANCA (1894–1930)

grande poema e o original apresenta erros de or to grafia, mas, enfim, a au to ra tinha, então, oito anos de ida de…

Uma catraia com oito anos es cre ve um poema; não é normal. Embora os versos sejam ainda um pouco inábeis, embora denotem alguma in ge nuidade, estão muito, muito acima do que se poderia espe rar naquela idade. Isto para não falar do tema, vida e morte. Que, acrescente­se, há­de per seguir Florbela Espanca du ran te toda a vida. O menos que se pode dizer é que começou ce do. Quem sabe se não teria já, dentro da que les precoces oito anos, a doen ça que parece ter herdado da mãe, a neurose, que, segundo o diag nóstico oficial, matou An tó nia da Conceição Lobo aos 29 anos? Quanto a Florbela, dá no tí cia dos pri­meiros sintomas nu ma carta para o pai, datada de 1907, em que se queixa de fa di ga e dores de cabeça.

AMOR, POESIA E MÁGOAEstranhamente, Florbela Es pan ca não dei­

xou uma só palavra escrita sobre a revolu­ção de 1910, que derrubou a monarquia. No entanto, ela estava em Lisboa, com a família, insta la da no Hotel Francfort, que fi cava em pleno Rossio. Tinha 16 anos, já escrevia, mas como que ignorou o acontecimento. O seu feminismo parece ser, aci ma de tudo, pessoal, vivido, mas não doutrinado, pouco po lí tico. Essencialmente, ela foi sem pre uma militante de si pró pria, da sua própria vida.

Toda essa vida – não muito lon ga, é certo – esteve centrada na poesia e na demanda de um amor ideal, perfeito, que ela nun ca encon­trou. O seu primeiro namorado, aos 17 anos, em Évo ra, foi um colega do li ceu. Caso pouco conhecido, que Rui Guedes referiu na sua obra Acerca de Florbela. Esse na moro pouco

O primeiro poemaE is o poema que Florbela escreveu

aos oi to anos de idade. Reproduzi­mo­lo com a ortografia atualizada.

O que é a vida e a morteAquela infernal inimigaA vida é o sorrisoE a morte da vida a guarida

A morte tem os desgostosA vida tem os felizesA cova tem a tristezaE a vida tem as raízes

A vida e a morte sãoO sorriso lisonjeiroE o amor tem o navioE o navio o marinheiro

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12 SUPER

SUPER Portugueses

que é demais e corta relações, durante dois anos; em 1925, Florbela ca sa, pelo

civil e pela Igreja, com Mário Lage. No entanto, ela tem uma ideia negativa

sobre o casamento: “O casamento é bru­tal”, escreve à sua amiga Jú lia Alves. É uma

“coisa revoltan te”. Isto por uma razão: “Essa ra zão é a posse, essa suprema e gran de lei da natureza que, no en tanto, revolta tudo quanto eu tenho de delicado e bom.” Como diz num seu poema, quer “amar, amar perdidamente”, mas revolta­a o preço a pagar. Ainda assim, casa pela ter cei ra vez; tem 31 anos, sofreu dois abortos involuntários, a sua saúde é frágil, a melancolia assalta­a, mas continua a es crever.

A produção literária de Flor be la Espanca encontra­se hoje aces sível, praticamente, na to ta li dade. Nela se destacam os so ne­tos, mas também muitos ou tros poemas. A primeira obra pu bli cada é o Livro de Má goas (1919). O segundo, o Li vro de So ror Saudade, sairá no princí pio de 1923, mas ela já não ve rá editada mais nenhu ma das suas obras. Entre­tanto, pu bli ca rá poemas em várias re vis tas, no meadamente Modas e Bor dados, uma revista que, na épo ca, apesar do título, se inte res sava também pela prosa e pela poesia femininas.

OS ÚLTIMOS ANOSO período que vai de 1927 a 1930, ano do

suicídio de Florbe la, é particularmente som­brio. Co meça com a morte prematura do irmão: Apeles Espanca era oficial da Marinha e decidi ra fazer o curso de piloto­aviador para entrar na Aviação Naval; a 6 de junho, num voo de trei no, o hidroavião que pilotava caiu no Tejo. O corpo não foi en contrado.

Este foi o choque mais violen to que Florbela sofreu e do qual nun ca se refez. Durante o ano se guin te, o seu casamento com Má rio Lage começou a dar si nais de desagregação e a sua

doen ça nervosa agravou­se sen si vel mente. No verão, apaixonou­se novamente, agora pelo mé di co e músico Luís Cabral, mas em agosto já tudo termina ra e ela fez uma primeira tenta­ti va de suicídio. Em 1929, andou por Lisboa, Évora e Pedras Sal ga das. Consultava médicos e ten tava, sem êxito, encontrar edi tor para dois livros. Depois, em 1930, conheceu – pri­meiro por carta e depois pessoalmente – um admirador italiano, Gui do Battelli, de 62 anos, pro fes sor na Universidade de Coim bra.

Battelli (que viria a traduzi­la para italiano) mostra­se dispos to a editar­lhe um livro de poe mas, a Charneca em Flor. Em agos to, Flor­bela regressa a Ma to sinhos, onde reside com o ma ri do, Mário Lage. Os meses seguin tes decorrem entre a ân sia de ver publicado Char-neca em Flor e o desânimo, a angús tia, o desin­teresse da vida: a neu rose está a vencê­la. Em ou tubro, uma nova paixão, por Ân gelo César, um advogado. Não dura e pouco depois Flor­bela tenta pela segunda vez sui cidar­se.

A terceira foi de vez. Na casa de Matosinhos abundavam os bar bitúricos. Florbela só conseguia dormir à força de Veronal, e foi com Veronal que ela se ma tou enfim, a 8 de dezembro de 1930.

Só depois, em 1931, seria pu bli cado Charneca em Flor, e a se guir os livros inéditos e as re e­diç ões do Livro de Mágoas e do Livro de Soror Saudade. Só de pois, graças à ação de vários no mes da cultura (entre eles, há que o reco­nhecer, António Ferro) se afirmou, lenta mas se gu ramente, o nome literário de Florbela Espanca. Até então, en quanto foi viva, e ape­sar de al guns amigos fiéis, foi verdade o que ela escreveu um dia: “O mundo quer­me mal porque nin guém/ tem asas como eu te nho!”

Irmã de um só irmãoE u fui na vida a irmã de um só Ir mão/

E já não sou a irmã de nin guém mais!” Assim ter mi na um soneto de Flor­bela Es panca de di cado à memória do ir mão. Hou ve quem con si de ras se que o seu amor por ele era mais do que fra ter­nal, mas nada o con firma, nem os fac tos nem os escritos. O que é ver dade, sim, é a pro fun da afeição que ela sen tia. Apeles Demóstenes da Ro cha Es panca estudou em Évo ra e Coim bra, depois entrou na Es co la Na val e tornou­se oficial da Ma ri­nha. Era, ao mesmo tem po, um pin tor com mé ritos, so bre tudo em óleos e agua­relas. Par ti lha va, assim, cer tas qua lidades ar tís ticas da ir mã – e talvez um pou co do seu de se qui líbrio: quan do a sua noi va mor reu, em fins de 1925, ele con fes sou a Florbe la a vontade de se suicidar. No en tan to, nada prova que a sua mor te fosse mais do que um aci den te. Florbela conseguiu a posse de dois fragmentos dos des troços do hidroavião em que o irmão mor reu. Por sua vontade ex pressa, foi en terrada com eles.

JOÃO AGUIAR

Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 113. João Aguiar faleceu em 2010.

Imagem da infância: piquenique familiar. Florbela é a criança que está

sentada no chão, à esquerda.

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Antes de haver saneamento básico, Lisboa era suja e malcheirosa. Para limpar o problema, instituíram‑se as calhandreiras, escravas africanas que iam a casa das pessoas

recolher as imundícies e despejá‑las… no Tejo.

Histórias do Tejo

Q uando imaginamos a cidade de Lisboa da era dos Descobrimen‑tos, pensamos numa metrópole cheia de glamour, sumptuosa, ele‑

gante, rica, opulenta, eclética, com gentes e culturas dos cinco cantos do planeta a empres‑tar‑lhe uma aura cosmopolita sem paralelo em nenhuma outra urbe no mundo. Só um pormenor conspurca esta imagem – naquele tempo, não havia rede de esgotos, nem na capital portuguesa nem em lado algum. As pessoas tinham, na mesma, de ir à casa de banho (por assim dizer, já que casas de banho propriamente ditas não existiam). O resultado não era bonito.

No início do século xv, Lisboa estrebuchava com uma tal falta de higiene que a situação descambara para um grave problema de saúde pública. As pessoas viviam entre galinhas, patos, vacas, porcos e cabras, sem tomarem banho nem terem qualquer noção da impor‑tância da higiene. Pior: despejavam os bacios onde calhava ou faziam as suas necessidades diretamente nas ruas. A crónica falta de água limpa de que a cidade padecia não ajudava. Só antes das procissões e outras festividades reli‑giosas as autoridades municipais limpavam as vias públicas. Este, aliás, era o contributo soli‑tário da Igreja para aliviar a situação – histo‑ricamente, os líderes cristãos defendiam que o batismo era o único banho que um homem deveria tomar em toda a sua vida. A época de ouro dos Descobrimentos, no entanto, acrescentaria mais um prego: os marinheiros regressavam, demasiadas vezes, com doenças novas contraídas a milhares de quilómetros de distância, para as quais os lisboetas não tinham defesas.

Por tudo isto, não admira que um odor nauseabundo grassasse pela cidade 24 horas por dia, com as doenças a espalharem‑se tão facilmente como o cheiro. Em 1437, a cidade foi assolada por mais uma peste, espoletada pela completa ausência de sanidade, e o rei

D. Duarte mandou avançar com uma série de medidas sanitárias de emergência. Em 1486, D. João II ordenou que cada freguesia indi‑casse gente para limpar a cidade, às custas dos moradores. O seu sucessor, D. Manuel I, reforçou a lei, definindo locais próprios para depositar as imundícies – quase sempre o rio.

As indicações régias não passavam de provi‑dências avulsas ou intenções que nunca saíam do papel. Em 1550, não havia mais do que quatro “homens que limpavam lamas” (eufe‑mismo oficial), para uma população superior a cem mil habitantes. Só quando chegou D. Sebastião (de reinado tão curto quanto prolífico e energético) o problema de fundo deu os primeiros passos para ser resolvido. Um alvará régio instituiu os trabalhadores dos carretões: homens pagos ao mês pelos seus vizinhos recolhiam lixo e excrementos duas vezes por semana, em pequenas carroças, e levavam‑nos para fora da cidade. Onde as car‑roças não coubessem, a sujidade seria trans‑portada por burros e bois de carga. Isentos do pagamento (idêntico ao que hoje é a taxa municipal para recolha e tratamento dos resí‑duos sólidos urbanos) ficavam os mais pobres, que vivessem da caridade das Misericórdias e outras que tais. Mesmo assim, só quem não tinha dinheiro para uma mula ou um cavalo se atrevia a caminhar pelas ruas pejadas de estrume – de origem animal e não só.

RECEITA LUCRATIVAA solução chegaria com a mais lucrativa

receita dos Descobrimentos: a escravatura. Os escravos recém‑chegados, a maioria da costa oeste de África, eram imediatamente empur‑rados para os piores trabalhos, tal como acon‑tece hoje com os imigrantes sem qualificações, um pouco por todo o mundo. Não faltavam vagas: muitos portugueses, principalmente camponeses que nunca tinham visto o mar, alistavam‑se como marinheiros para as rotas comerciais das especiarias, abertas por Vasco

da Gama, ou emigravam para o Brasil, dei‑xando imensa terra para ser cultivada. Além da agricultura, também as minas e os portos do Tejo (que precisavam de mão de obra vigo‑rosa para as cargas e descargas dos navios) se mostravam sedentos de escravos. Os empre‑gos mais duros – ou mais sujos – caberiam às mulheres africanas.

Quando o século XVI se aproximava do fim, as ruas de Lisboa começaram a ser percorri‑das pelas “negras calhandreiras” – escravas que iam a casa das pessoas buscar os dejetos, badalando uma campainha que traziam com elas para anunciar a sua chegada. As mulheres andavam sempre com uns enormes cestos de vime com tampa (canastras) à cabeça e que serviam de esconderijo aos grandes potes para onde se esvaziavam os bacios. Esses reci‑pientes tinham o nome de “calhandros”; daí o nome da profissão.

Quando os potes estavam cheios, as calhan‑dreiras despejavam‑nos no rio. Ao início, no local mais próximo; mais tarde, regulamen‑tos reais definiram a zona dos atuais Cais do Sodré e Santos como sítios indicados para descarregar. A imagem de mulheres a verter o conteúdo dos calhandros torna‑se ainda mais abjeta quando nos lembramos de que as margens do Tejo não eram emparedadas, como hoje, mas constituídas por praias. Não é preciso muita imaginação para ver as pobres

As calhandreiras

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Interessante 15

Comércio negroO comércio de escravos africanos para

Portugal começou em meados do século XV. Em 1550, viviam em Lisboa praticamente dez mil escravos da costa oeste africana – o que equivalia a dez por cento da população. Só cá ficava uma pequeníssima parte dos dez a 12 mil escravos negros que todos os anos eram raptados, comprados ou trocados em África (14 negros valiam o mes-mo que um cavalo, no Continente Negro) e levados para Lisboa (então um entreposto comercial). Daí, seguiam para outros países, com predominância das Américas. A escra-

vatura em Portugal foi abolida perto do final do século XVIII, por um decreto do marquês de Pombal assinado a 16 de janeiro de 1773. Isto para os que fossem crianças ou nasces-sem a partir dessa data: os pais e os avós continuariam a ser escravos até morrerem. A lei faz do nosso país um dos primeiros a acabar com a escravatura, mas só na metró-pole, porque nas colónias continuou durante muito mais tempo. Mesmo em Portugal Continental, a lei não foi imediatamente levada a sério. Só em 1876 a escravatura acabou de vez.

Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro(A Esfera dos Livros, 2013)http://bit.ly/1hrY8Zc

calhandreiras a entrarem na água, até à altura dos tornozelos, para vazarem o fétido resul‑tado de digestões alheias, mesmo ao lado das imponentes e gloriosas naus das Índias que se preparavam para partir à aventura.

As miseráveis mulheres eram obrigadas a aguentar o cheiro pestilento, que se lhes colava à roupa, à pele e ao cabelo, e a convi‑ver com o asco da população, que fugia delas como da peste. Aliás, evitar as calhandreiras equivalia, de certa forma, a evitar a própria peste, que se propagava precisamente pela

falta de higiene. Havia mais razões para as pessoas se desviarem do caminho destas escravas: as precárias canastras caíam muitas vezes da cabeça, quando já estavam cheias…

As calhandreiras não se limitavam a ir de casa em casa. Também apanhavam o lixo e os dejetos que encontravam na rua. Havia muito trabalho: Lisboa, como todas as cidades daquele tempo, era ainda mais imunda pelo facto de as pessoas defecarem onde calhasse. À luz da modernidade, claro que este hábito nos parece repugnante, mas olhar para trás

O Terreiro do Paço por volta de 1650. Felizmente, a imagem não revela o cheiro nauseabundo que se desprenderia do rio.

obriga‑nos a relativizar as coisas: daqui a umas décadas, o que pensarão os portugueses do ato, ainda hoje bastante comum, de cuspir e, até, urinar na rua?

LEI CUMPRIDA... PARCIALMENTEIdealmente, o corrupio de calhandreiras

dava‑se sobretudo ao final do dia, quando o lusco‑fusco emprestava à atividade uma apreciada discrição, mas a regra era mais vezes quebrada do que cumprida. O autor italiano (anónimo) do livro Retrato e Reverso do Reino de Portugal, por exemplo, queixou‑se da ausência de fiscalização: “As pretas costu‑mam levar, de dia, para o mar [sic], os bacios dos excrementos, que muitas vezes lhes caem pelas ruas e acerca do qual […] não souberam ainda ordenar que sejam levados à noite.” Também os locais originais de despejo deixa‑ram de ser respeitados. Quem recolhia bacios em Alfama ou Santa Apolónia não se dava ao trabalho de atravessar a cidade até Santos, a jusante; logo, na prática, o Tejo banhava toda a cidade já bem emporcalhado.

Segundo as crónicas da época, no início do século XVII, a capital portuguesa tinha mil calhandreiras ao seu serviço. Cada uma rece‑bia 30 réis diários, o que estabelecia a pro‑fissão como a mais mal paga de todas. Não que isso lhes fizesse diferença: uma vez que se tratava de escravas, o dinheiro ia parar ao bolso dos seus proprietários. As verbas desti‑nadas ao serviço não vinham diretamente dos moradores, como dantes – o financiamento fazia‑se com um imposto especial sobre a carne.

Com o tempo, o repelente cargo extin‑guiu‑se, sem deixar saudades às infelizes calhandreiras, mas o nome não desapareceu, evoluindo apenas no significado: intriguista, bisbilhoteira, naturalmente porque estas mulheres conheciam como ninguém a vida das pessoas a quem iam recolher o conteúdo dos penicos. Até o Tejo ficou a ganhar com o fim da profissão. Ainda que, quando Lisboa ganhou um sistema de esgotos, as águas residuais tenham continuado durante muito tempo a ir lá parar sem serem tratadas, mas, ao menos, iam por baixo da terra.

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D os quatro eclipses que ocorrerão este ano, dois deles serão observá-veis a partir de Portugal: o parcial do Sol em 20 de março, e o outro,

total da Lua, em 28 de setembro. Na verdade, o eclipse solar de março será total para observa-dores colocados numa faixa do nosso planeta que se situa quase toda no Atlântico norte, com poucas exceções, como as ilhas Faroé e de Svalbard. Fora da faixa de totalidade – para norte ou para sul –, os observadores verão o disco lunar “deslocado” para sul ou para norte sobre o disco solar, o que lhes proporcionará a visão de um eclipse parcial de uma percen-tagem (porção do Sol eclipsada) tanto menor quanto mais afastados se encontrarem da “linha de centralidade”.

Em Portugal, ver-se-á o Sol “tapado” em cerca de sessenta por cento (com ligeiras dife-renças entre o norte e o sul do país), o que, mesmo assim, constituirá motivo de muito interesse para os cidadãos em geral, que per-ceberão um início de manhã muito menos lumi-noso do que habitualmente. Com início pelas oito horas (mais de uma hora após o nascimento do Sol), o eclipse começa com a interposição progressiva da Lua entre a Terra e o Sol, a ponto

de, uma hora depois, ser possível ver a grande porção do disco escuro correspondente ao lado da Lua voltado para a Terra, como que agarrado a uma porção bem mais pequena, luminosa, a parte do Sol que não veremos tapada. Indispen-savelmente, repetem-se, por estas ocasiões, os conselhos para que não se olhe o Sol direta-mente, pois, mesmo sem binóculos ou telescó-pios, resultam sempre prejuízos para os olhos. Mais grave ainda será a utilização de instru-mentos com espelhos ou lentes, que, fazendo a luz solar concentrar-se no ponto onde se colocam os olhos, produzirá cegueira ou, pelo menos, queimaduras irreparáveis na retina.

Embora seja conhecido que, no passado, era comum a utilização de recursos vários, como vidros fumados ou películas de radiografias, sabe-se hoje que tais métodos prejudicam a visão, recomendando-se a projeção da imagem do Sol numa folha de papel, numa parede ou noutra superfície de cor clara ou o uso de óculos especiais para observação do Sol. Em todo o caso, e para maior segurança, a observação não deverá prolongar-se por muitos segundos, embora possa ser repetida de vez em quando, ao longo das duas horas que dura o fenómeno.

Atualmente, a maior segurança é obtida com

Caçadores de Estrelas

Eclipse do Sol em Portugal

Eclipse parcial do Sol de 23 de outubro do ano passado, ao

fim do dia, no Minnesota. Será aproximadamente assim que poderemos vê-lo em Portugal

no próximo dia 20 (embora um pouco mais coberto pela Lua,

na fase de ocultação máxima), mas ao início da manhã.

MÁXIMO FERREIRA

Diretor do Centro Ciência Viva de Constância

telescópios (e mesmo binóculos) protegidos com filtros especiais, que, colocados à frente, reduzem a intensidade da luz e filtram algumas radiações que afetam os tecidos oculares.

A pessoas pouco familiarizadas com cuidados a ter na observação do Sol, sugere-se o acom-panhamento do fenómeno em locais onde existam equipamentos e operadores experi-mentados, o que permitirá – para além da apre-ciação da beleza visual – ouvir informações sobre as razões dos eclipses ou detalhes sobre a sua evolução. No entanto, há pormenores que podem ser apreciados sem qualquer apoio, como ver múltiplas imagens do Sol projetadas no solo sob certas árvores de folha miúda ou no chão sob as mãos cruzadas de modo a que os dedos formem uma espécie de quadriculado, ou ainda registar a evolução das temperaturas ambientes, lidas num termómetro, ao longo do período em que decorre o eclipse.

O Centro Ciência Viva de Constância abrirá as portas ao público, a partir das sete e trinta, e fornecerá informações solicitadas através de correio eletrónico para [email protected].

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Interessante

O céu de marçoP raticamente em finais do inverno, o

céu apresenta-se consideravelmente diferente do que se avistava – ao princípio das noites – no início da estação do ano que está prestes a terminar. Por exemplo, a constelação de Orionte, que então se en-contrava muito baixo, a este, é visível agora já à direita da direção de sul, enquanto o Leão não era ainda observável e, nesta épo-ca, já se encontra completamente acima do horizonte.No lado norte, a Ursa Maior mostra-se bem elevada, no quadrante de nordeste, tendo já terminado o período de um pouco mais de três meses em que era de difícil observação por se encontrar muito perto do horizonte, em direções próximas de norte. Em posição diametralmente oposta – no outro lado da Estrela Polar –, as estrelas que constituem a Cassiopeia mantêm-se à vista durante a primeira metade das noites.Como sempre, as maiores curiosidades do céu envolvem os “astros errantes”, aqueles (Lua e planetas) que vão alterando as suas posições relativamente às estrelas que, por se encontrarem extraordinariamente distan-tes, nos parecem fixas. Logo nos primeiros dias do mês de março (deste ano), Vénus brilha intensamente ao lado de um outro ponto brilhante mas muito menos intenso e de cor avermelhada. Trata-se de Marte, que, por se deslocar muito mais lentamente do que Vénus, parece ficar “preso” às estrelas da constelação dos Peixes, vendo-se cada vez mais separado do ponto mais brilhante do céu, que vai mudando de posição – para este –, a ponto de, no dia 22, se situar na constelação do Carneiro, ligeiramente “abaixo” das suas duas estrelas de maior brilho, Pólux e Castor. Nessa data, receberá a visita da Lua, que, apresentando-se como um fino crescente, proporcionará uma con-junção notável ao princípio da noite.Passados mais cinco dias, será Quarto Cres-cente, fase que a Lua alcançará quando se projetar na direção de estrelas da constela-ção dos Gémeos. No início das noites de 29 e 30, com o aspeto designado por “primeira giba”, a Lua passará a sul de Júpiter, o se-gundo ponto de brilho mais intenso de todo o céu, logo a seguir a Vénus.Com o passar das horas, Marte e Vénus escondem-se no horizonte, a oeste, e todo o céu vai rodando, fazendo “mergulhar” estrelas e constelações a oeste, enquanto outras surgem a este. A curiosidade de ver os restantes dois planetas observáveis à vista desarmada (Saturno e Mercúrio), obrigaria a esperar pelas duas da madrugada para avistar o “planeta dos anéis”, ao passo que a observação de Mercúrio obrigará a uma vigília até às seis da manhã.

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Hemisfério norte de Saturno, fotografado pela missão Cassini-Huygens.

Esta imagem de Mercúrio, um mosaico de fotografias obtidas pela sonda Messenger, foi colorida para fazer ressaltar as características visíveis à superfície O planeta é castanho.

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Mapa do Céu

Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta fique apon ta da para norte. Se se voltar em qual quer das outras direções (norte, este, oeste), pode ro dar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 19 horas do dia 5. A alteração que se verifica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

Como usar

As fases da LuaLua Cheia Dia 5 às 18h05Quarto Minguante Dia 13 às 17h48Lua Nova Dia 20 às 09h36Quarto Crescente Dia 27 às 07h43

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NORTE

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Terra

Os satélites da Agência Espacial Europeia (ESA) retratam a Terra palmo a palmo em missões

que ajudam no seu estudo e na sua conservação. Trata-se, por vezes, de imagens de grande beleza.

As melhores fotos do planeta

PaparazziESPACIAIS

Geografia hostil. As formações rochosas e as dunas do sueste da Argélia, no coração do Sahara, tomam uma aparência púrpura aos olhos do satélite ALOS. A dureza dos ambientes desérticos torna a observação orbital uma ferramenta para monitorizar tempestades de areia.

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Gelo em retirada. O glaciar Quelccaya, na cordilheira oriental dos

Andes peruanos, é o mais extenso dos trópicos, embora o aquecimento

global tenha reduzido a sua superfície em 20 por cento desde os anos 70.

Poderá desaparecer dentro de umas décadas, deixando sem água

milhões de habitantes da região.

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As imagens são coloridas para destacar pormenoresSinal vermelho. O satélite Kompsat-2

documenta a deflorestação da Amazónia, no norte do Brasil. As imagens são coloridas

para mostrar a água em azul marinho ou verde, e a vegetação em vermelho,

mais pálido onde houver corte de árvores.

Nos confins da Europa. Os fiordes penetram como línguas coloridas na grisácea terra da península de Vestfirðir, a região mais ocidental da Islândia. Durante as glaciações, o gelo e os rios escavam vales. Quando o clima aqueceu, o gelo foi substituído pela água do mar que agora os preenche.

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Tapete humano. Diversas imagens compõem esta colorida visão de terras de cultivo no sudoeste do Irão. Os diferentes tons indicam alterações nas parcelas (de até um quilómetro de comprimento), como o momento da colheita ou da sementeira. O rio Karun serpenteia pelo vale e permite a existência de explorações de aquicultura, para carpas e outro peixes (em baixo, à direita).

Fragilidade natural. Esta foto do Landsat-8 cobre (em altura) 350 quilómetros da província canadiana de Alberta. A norte, vê-se um mundo de lagos, rios e riachos;

a sul, estendem-se as areias betuminosas de Athabasca. O betume pode ser transformado em petróleo, através de processos destrutivos para a floresta.

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O primeiro satélite, de 1957, foi o russo Sputnik

Árvore da vida. Os braços do rio Kumbunbur Creek, no norte da Austrália, coloridos a verde, bifurcam-se como ramos de uma árvore. Os tons vermelhos que os flanqueiam representam a vegetação que cresce nas margens do rio.

Cresce como puderesDo espaço, entende-se parte do desenvolvimento histórico

das grandes cidades. Barcelona, por exemplo, teve de se estender

pelo espaço entre o mar (o seu porto é um dos dez maiores da Europa) e o maciço de Garraf.

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Água e asilo. O Kompsat-2 revela (em cima, à esquerda) o campo de refugiados de Kalma (Sudão), que alberga dezenas de milhares de deslocados pelo conflito do Darfur, e o rio Nyala. Os satélites ajudam a identificar recursos hídricos e lugares para as vítimas da guerra.

Em erupção. Três fotografias diferentes do Envisat deram origem a esta imagem das montanhas Virunga, uma cadeia de vulcões que se estende pela República Democrática do Congo, pelo Uganda e pela parte norte do Ruanda.

Perigo branco. As nuvens não ocultam ao Landsat-8 os fiordes do sul da Gronelândia. Na parte inferior da imagem, veem-se uns pequenos pontos brancos: são icebergues, alguns de grande dimensão, que ameaçam o tráfego marítimo no Atlântico Norte.

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Mistérios CÁRSICOS

Ambiente

Excursão ao reino do calcário

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O Maciço Calcário Estremenho é o melhor exemplo português de um cenário cársico, com panoramas de perder a respiração e espécies

faunísticas e florísticas únicas. O biólogo Jorge Nunes revela-lhe os segredos desta estranha paisagem que, apesar de estar

numa zona de elevada pluviosidade, se apresenta árida, descarnada e branca. Sob ela, subsistem

insuspeitos mundos ocultos, esculpidos pela água.

O solo descarnado e o panorama de aspeto ruiniforme estendem-se a perder de vista. Onde quer que o olhar se detenha, só se veem

calhaus alvos e grisalhos, de todas as formas e feitios, dando a sensação de estarmos perante um estranho quadro pintado a verde e branco. As pinceladas verdes, que rasgam a monotonia do calcário branco-sujo, seguem, sobretudo, o traçado de fendas e fraturas naturais. As res-tantes cores brotam também dos ferimentos das rochas, mas fazem-no, principalmente, na primavera, quando as flores emprestam ao cenário toda a sua beleza e enchem a atmos-fera com os seus aromas.

O mais estranho não é a paisagem ser pedre-gosa e áspera, mas apresentar-se árida e inós-pita. Como é possível que numa zona quase à beira-mar, onde a humidade é elevada (na estação das chuvas, a queda pluviométrica pode chegar aos 1600 milímetros, e os valores médios anuais oscilam entre 900 e 1300 mm), não se vejam rios, ribeiros, riachos ou córregos de água, que saciem a sede às ervas e aos bichos? Serão estes e outros mistérios que nos propo-mos desvendar nos próximos parágrafos, em que visitaremos alguns recantos encantados do

Maciço Calcário Estremenho, localizado na região central de Portugal, entre Alcobaça, Leiria, Ourém, Rio Maior e Torres Novas.

De acordo com o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), o Maciço Calcário Estremenho (MCE) corresponde a uma unidade morfoestrutural do território português que se individualiza das regiões envolventes pelas suas peculiaridades geológicas e geomorfológicas. Grosso modo, corresponde a um grande bloco de calcários jurássicos, com cerca de 800 qui-lómetros quadrados e aproximadamente 145 a 175 milhões de anos, que se ergue a altitudes superiores a 200 metros.

Numa perspetiva aérea, facilmente se per-cebe que o maciço se encontra dividido em qua-tro regiões elevadas: a serra dos Candeeiros (que atinge os 613 metros de altitude), a oeste, o planalto de Santo António (cujo ponto mais alto é Covão Alto, a 569 m), ao centro e sul, o planalto de São Mamede (que atinge a altitude máxima em Vale Sobreiro, a 523 m), a norte, e a serra de Aire (que chega aos 577 m), a leste. A separá-las, encontram-se os dois grandes sul-cos tectónicos de Porto de Mós a Rio Maior e de Porto de Mós a Moitas Vendas, ao longo dos quais se formaram as depressões de Mendiga,

no primeiro, e de Alvados e de Minde, no segundo. Distingue-se ainda um alinhamento diapírico alongado entre a Batalha e Rio Maior.

ABERTURA DO ATLÂNTICOO MCE começou a formar-se há cerca de 200

M.a. e é, essencialmente, constituído por sedi-mentos marinhos. Integra a Bacia Lusitaniana, situada no bordo oeste da microplaca ibérica, que teve a sua origem associada aos episódios distensivos que levaram à abertura do oceano Atlântico, durante o Mesozoico. Como é sabido, a formação do Atlântico resultou da fraturação e dispersão da Pangeia, o supercontinente que reunia todas as massas continentais há cerca de 250 M.a. Os cientistas acreditam que essa dis-persão terá começado pela parte setentrional, há aproximadamente 200 M.a., quando come-çaram a afastar-se os blocos que iriam originar os continentes norte-americano e europeu. O Atlântico Sul parece ter-se formado mais tarde, por volta de 135 M.a., quando a América do Sul começou a distanciar-se de África.

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As rochas que representam melhor os pri-meiros estádios do oceano Atlântico, no ter-ritório português, são exatamente as que se encontram ao longo do alinhamento diapírico Batalha–Porto de Mós–Rio Maior. Isso acon-tece porque, como explica José António Cris-pim, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, nessa zona é possível ter acesso a formações geológicas que atestam a génese do Atlântico e apresentam um registo nítido das transgressões e regressões (leia-se “avanços” e “recuos do mar”) durante largos períodos da era Mesozoica.

Há cerca de 195–190 M.a., o clima era semi-árido, pelo que, nas zonas em abatimento devido às forças distensivas, depositaram-se argilas vermelhas e rochas evaporíticas (gesso, halite e sal-gema), típicas de ambientes laguna-res. Segundo Crispim, especialista em carsolo-gia e hidrogeologia cársica, o sal-gema, explo-rado na fonte da Bica (Rio Maior), bem como os leitos de calcários dolomíticos, que coroam as argilas vermelhas em alguns relevos da área

de Porto de Mós, são os primeiros indícios da investida do mar, que se acentuou nos tempos geológicos seguintes (190–185 M.a.). Durante cerca de 20 M.a., o oceano aprofundou-se, ori-ginando a sedimentação de margas, calcários margosos e calcários, onde ficaram conserva-dos interessantes vestígios faunísticos, desig-nadamente de amonites. Por volta de 168–170 M.a., assistiu-se ao fim da primeira grande transgressão do mar e ao início de uma regres-são lenta. Nesta altura, a profundidade do oceano diminuiu e formaram-se rochas dife-rentes: calcários dolomíticos e calcários oolí-ticos, que conferem ao maciço estremenho, atualmente, o seu caráter mais agreste.

Conclusão: todas as rochas carbonatadas do Jurássico, vulgarmente designadas por “calcários”, que hoje constituem a maior parte da superfície do maciço, formaram-se no fundo do mar, por deposição de carbonatos. No entanto, nem todas se originaram nas mesmas condições. Por exemplo, a oeste da serra dos Candeeiros, ocorrem calcários de mares pouco

profundos; no Serro Ventoso, observam-se calcários com amonites, ou seja, de mares pro-fundos; na vertente noroeste da serra de Aire, há rochas que resultaram da sedimentação em ambientes salobros ou em águas doces. É caso para afirmar: diz-me que rochas vês e dir-te-ei que profundidade tinha o mar que as originou.

Se os calcários se formaram no fundo do oceano, como chegaram à superfície e cons-tituem, na atualidade, um relevo tão alteroso? Além da regressão do mar, que as deixou expostas, tem-se verificado um período com-pressivo, que decorre desde o final do Cretá-cico, há aproximadamente 65 M.a., até à atua-lidade, devido à colisão da microplaca ibérica com as placas africana e euroasiática. Estes movimentos tectónicos, que são responsáveis pelas fraturas e pelos enrugamentos da crusta terrestre, levaram a que aquilo que começou por ser uma depressão tectónica (a Bacia Lusi-taniana), orientada segundo o eixo NNE–SSW, sofresse uma inversão, tendo-se soerguido relativamente às áreas circundantes. Assim,

Dois tons. O solo descarnado estende-se a perder de vista, dando a sensação de

estar perante um quadro a verde e branco.

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encontra-se hoje limitada pelas depressões de Ourém, a norte, e de Rio Maior, a sul, pelas bacias do Alviela e do Asseca, a leste, e pelos terrenos quase planos de Alcobaça, a oeste.

MODELADO CÁRSICOJá sabemos de onde vieram os calcários do

maciço estremenho, mas continuamos sem desvendar o enigma: porque não há rios, ribei-ros, riachos? Curiosamente, o segredo para que nenhum curso de água autóctone ou exó-tico atravesse, à luz do sol, a extensa área do MCE está precisamente nas rochas calcárias, que conferem características específicas à região. Uma dessas características é exata-mente promoverem a rápida infiltração das águas de escorrência, que passam a circular no subsolo, longe da nossa vista. Esta circunstância cria um fenómeno paradoxal: apesar de o MCE ter uma aridez acentuada e os recursos hídricos superficiais serem quase inexistentes, constitui um dos maiores, senão o maior, reser-vatório de água doce subterrânea do país, estendendo-se entre Leiria e Rio Maior. Poucos lisboetas saberão que, cada vez que abrem a torneira, estão a consumir água extraída no distante MCE: a nascente de Olhos de Água do Alviela fornece água à capital desde 1880.

sificação de superfície encontra-se um rendi-lhado de sulcos e cavidades, com as mais varia-das configurações, conhecido por “lapiás”. Este assume aspetos magníficos em Penedos Belos, Covas, Chainça, Covão Alto, etc. Há tam-bém as dolinas, que correspondem a depres-sões de contorno circular ou oval e dimensões variáveis (de alguns metros a mais de 200 m), cujo fundo se encontra preenchido por sedi-mentos calcários e resíduos argilosos insolú-veis. Duas das mais interessantes são o Covão do Feto e o local do santuário de Fátima.

Quando ocorre a coalescência de duas ou mais dolinas, as estruturas resultantes passam a designar-se “uvalas”. A depressão de Chão de Pias é um bom exemplo deste fenómeno. Há ainda os canhões cársicos, que correspondem a gargantas profundas talhadas na rocha por cursos de água cuja origem é, geralmente, externa ao carso, como acontece com a ribeira dos Amiais, e reculées, que constituem gigan-tescos anfiteatros naturais, como a Fórnea.

Uma das formações cársicas de maior exten-são é a polje, uma depressão de fundo plano e vertentes abruptas, cujas dimensões podem atingir vários quilómetros de comprimento. O seu fundo costuma estar preenchido por argilas que resultaram da corrosão dos calcários. Porém, o que melhor a caracteriza é o seu fun-cionamento hidrológico, pois exibe cursos de água temporários, que têm origem em nas-centes (exsurgências) periféricas e terminam em sumidouros, dentro da mesma depressão.

Na verdade, as rochas calcárias são vítimas daquilo que os especialistas denominam gene-ricamente por “meteorização química”, cujo processo mais importante é a carbonatação: alteração e destruição dos calcários por ação da chuva. Tudo começa quando as moléculas de dióxido de carbono (CO2) se combinam com a água da chuva (H2O), formando ácido carbónico (H2CO3). Este ácido reage com a calcite (prin-cipal mineral constituinte dos calcários), inso-lúvel e rica em carbonato de cálcio (CaCO3), produzindo iões cálcio (Ca2+) e hidrogenocar-bonato (HCO3–), produtos solúveis, que são transportados pelas águas correntes. Deste modo, o calcário vai sendo solubilizado e remo-vido ao longo do tempo, deixando atrás de si fendas e cavidades. Por vezes, essas depressões surgem com depósitos avermelhados (devido à presença de óxidos de ferro), designados “terra rossa”, constituídos por argila vermelha e sílica, substâncias insolúveis que se misturam com o calcário. Estas reações químicas, a que se juntam processos físicos, como a ação mecânica da água e do vento, provocam o alargamento das fissuras, nas quais a água se infiltra e circula, criando paisagens peculiares, denominadas “cársicas”.

Entre as formas mais características da car-

As rochas calcárias são vítimas de destruição química pela chuva

Pingo a pingo. Ao pingar do teto de uma gruta, cada gota abandona atrás de si uma fina película de carbonato de cálcio, que, por acumulação sucessiva, ao longo de milhares de anos, forma diversas estruturas. Na foto, estalactites.

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Beldades do MaciçoN as regiões cársicas, surgem inúmeras

plantas floridas e perfumadas, mas nenhuma se compara, em beleza e extra-vagância, às orquídeas, consideradas por muitos como “as aristocratas do reino vege-tal”. Embora as tropicais, muito apreciadas como flores ornamentais, sejam as mais conhecidas do público em geral, existem em Portugal 63 espécies que crescem esponta-neamente na natureza, das quais 25 podem encontrar-se nos calcários do maciço estre-menho.É verdade que as espécies nativas não apresentam a exuberância daquelas que se cultivam em estufas, se veem nas floristas e se oferecem em ramalhetes envoltos em celofane transparente, mas nem por isso deixam de impressionar com as suas inú-meras originalidades biológicas e flores de formas e cores extravagantes. De um modo geral, são plantas herbáceas, terrestres e vivazes (isto é, conseguem viver durante vários anos e florir anualmente, caso as con-dições do meio o permitam). O seu ciclo de vida é sobretudo subterrâneo, visto que as partes aéreas (folhas e flores) despontam unicamente durante curtos períodos de tempo, com o propósito de produzirem e acumularem reservas nutritivas e de realizarem a reprodução sexuada. As folhas surgem, geralmente, dispostas em roseta basilar, junto ao solo, do centro da qual se ergue a haste floral, com flores enigmáticas e pouco ortodoxas. Estas apresentam, amiú-de, as sépalas e as pétalas com a mesma cor, designando-se “tépalas”, e têm, invariavel-mente, a tépala de baixo mais desenvolvida, denominada “labelo” (uma vez que faz lem-brar, ainda que grosseiramente, um lábio).Olhando para a evolução dos vegetais, verifica-se que as orquídeas são um dos gru-pos mais recentes: segundo o registo fóssil, terão surgido há apenas quinze milhões de anos. Porém, isso não as impede de serem consideradas as plantas mais evoluídas do planeta. Para esta nomeação, contribuíram, entre outras razões, o facto de terem desen-volvido uma complexa organização floral e de apresentarem uma relação singular de in-terdependência com os seus polinizadores. Isto acontece porque o pólen das orquídeas encontra-se, habitualmente, agrupado em sacos, denominados “polinídias”, que não podem ser espalhados pelo vento, mas exigem que a sua dispersão se faça através de animais. As flores estão desenhadas para atrair visual e olfativamente os seus polinizadores específicos e para encaminhá--los ardilosamente aos nectários, ou melhor, em direção às polinídias e ao estigma (parte feminina onde é depositado o pólen).Por incrível que pareça, esta atração não se

faz unicamente através de cores e odores apela-tivos, como acontece com as restantes plantas floridas. Em algumas orquídeas, o processo é bastante refinado: o labelo imita na perfeição a aparência das fêmeas do inseto polinizador (que costuma ser exclusivo de cada espécie), tornando-se assim um chamariz irresistível para os machos, que pousam sobre elas e tentam copulá-las. Como se não bastasse, a floração coincide com o período em que os insetos estão em fase de reprodução, e as flores chegam mesmo a exalar substâncias químicas idênticas às feromonas femininas (hormonas libertadas pelas fêmeas sexualmente recetivas).Contudo, tal semelhança das flores com insetos não é mera coincidência, nem se deve a im-perscrutáveis caprichos da mãe natureza. Existe uma razão objetiva e muito importante para isso, que tem a ver com uma apurada estratégia que as orquídeas desenvolveram para garantir o transporte do seu precioso pólen (lembre-se que a polinização cruzada exige que ocorra a passagem do pólen de uma flor para o estigma de outra).A cópula entre as pequenas flores e os insetos machos é, evidentemente, impossível; porém, cumpre-se, com sucesso, a missão reprodutiva desta bizarra relação. Enquanto o macho se debate infrutiferamente com o frenesim da

excitação sexual, as polinídias colam-se sobre o seu abdómen, e assim, sem o saber, ele transportá-las-á consigo para a próxima orquídea em que pousar.No entanto, esta não é uma história de amor, nem um romance. Constitui, ao invés, um truque astuto. Embora em nada benefi-cie os insetos, contribui para a polinização cruzada das orquídeas, e constitui um caso singular no reino vegetal: neste caso, o pó-len torna-se uma mercadoria transacionada em troca de sexo, em vez de ser recompen-sada com néctar, como acontece com todas as restantes flores.Nem todas as orquídeas imitam insetos. Por incrível que pareça, algumas apresentam flores com aspeto antropomórfico, ou seja, em que o labelo reproduz silhuetas huma-nas, dando a impressão de serem pequenos homens suspensos no ar, como é o caso da flor-dos-macaquinhos-dependurados (Or-chis italica) e da rapazinhos ou erva-do-ho-mem-enforcado (Aceras antropophorum).Como seria de esperar, toda esta panóplia de formas e cores, bem como muitas outras singularidades biológicas (por exemplo, a aparência dos seus tubérculos, que parecem imitar testículos humanos), serviram de inspiração para variadas crenças populares.

A inventividade da natureza é ilimitada: veja-se o caso das flores que imitam fêmeas de insetos para atraírem os machos e assim garantirem o transporte gratuito do pólen até uma congénere, ou as que têm aspeto antropomórfico, em que o labelo reproduz silhuetas humanas. Nas fotos, uma erva-abelha e uma erva-do-homem-enforcado.

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Nos invernos mais rigorosos, a polje de Minde-Mira forma um lagoEstas curiosas cavidades apresentam uma atividade emissiva e absorvente, consoante a estação do ano e a pluviosidade. Uma das mais famosas é a polje de Minde-Mira, que atinge 4 km de comprimento e 1,8 km de largura máxima, e costuma formar um extenso lago nos invernos mais rigorosos.

MUNDOS OCULTOSAs formas cársicas mais deslumbrantes

costumam ser as que resultam da carsificação profunda, e incluem os algares e as intricadas redes de galerias e cavidades subterrâneas.

Os algares são as portas de acesso para os estranhos mundos ocultos do interior do maciço calcário, uma vez que consistem em poços (aberturas naturais verticais), que ligam a superfície ao subsolo, podendo atingir várias dezenas de metros de profundidade. Lá em baixo, surgem as famosas grutas, com as suas magníficas estalactites, estalagmites e colunas, formações sedimentares resultantes da preci-pitação da calcite.

Como já vimos, a água que circula no interior do maciço transporta enorme quantidade de hidrogenocarbonato de cálcio dissolvido. Assim, ao gotejar do teto de uma gruta, cada gota abandona atrás de si uma fina película de carbonato de cálcio, que, por acumulação sucessiva, ao longo de milhares de anos, vai for-

mando estruturas pendentes, as estalactites. Ao caírem no chão, essas gotas também provo-cam acumulação sucessiva de películas de car-bonato de cálcio, originando uma rocha deno-minada “travertino”. Dessa acumulação resul-tam, por vezes, estruturas ascendentes, que crescem de baixo para cima, as estalagmites, as quais, em determinadas circunstâncias, se podem unir às estalactites, originando colunas. Dada a beleza e as formas caprichosas da maio ria destas estruturas, as grutas são, geral-mente, mundos encantadores.

Apesar de existirem mais de 1500 grutas inventariadas no MCE, a esmagadora maioria não está acessível ao público, mas apenas ao alcance dos olhos dos homens-toupeira, os espeleólogos. Assim, os interessados em conhecer este fantástico património espeleoló-gico deverão visitar os centros de interpretação subterrâneos do Algar do Pena ou da Gruta da Nascente do Almonda. Em alternativa, dispõem de uma vasta oferta de grutas exploradas comercialmente, como as de Mira de Aire (as maiores de Portugal), da Moeda, de Alvados e de Santo António, por exemplo.

As inúmeras grutas e cavidades espalhadas pelo MCE albergam animais e plantas muito importantes, com destaque para os morcegos, que chegam a formar colónias de vários milhares de indivíduos.

PATRIMÓNIO PROTEGIDOCom o objetivo de preservar o mais impor-

tante repositório de formações calcárias exis-tente em Portugal, bem como o coberto vege-tal específico que lhe está associado, a rede de cursos de água subterrâneos, os recursos faunísticos, nomeadamente os cavernícolas, como os morcegos, e a singularidade dos usos e costumes da população, criou-se, em maio de 1979, o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC). A área protegida, num total de 38 400 hectares, abrange os conce-lhos de Alcobaça e Porto de Mós (no distrito de Leiria) e Alcanena, Ourém, Rio Maior, San-tarém e Torres Novas (distrito de Santarém).

Embora as paisagens calcárias do PNSAC pareçam inóspitas e monótonas a um olhar pouco atento, possuem elevado valor para a conservação da vegetação e da flora, uma vez que as características peculiares da morfologia cársica conduziram ao desenvolvimento de uma vegetação xerofítica, rica em elementos cal-cícolas raros e endémicos. Além disso, encon-tram-se na região diversos habitats naturais, nomeadamente rochosos e grutas, florestas, matos esclerófilos, formações herbáceas e de água doce: na zona do PNSAC, existem algumas lagoas, como a Pequena e a Grande do Arrimal, a do Casal de Vale de Ventos, a de Alvados e a dos Candeeiros. A acumulação de água fica a dever-se ao facto de os fundos estarem imper-meabilizados com argilas e outros sedimentos, e escusado será dizer que constituem peque-nos oásis neste reino da pedra.

De entre os habitats prioritários, com maior

Má fama. O lobo continua a despertar a animosidade das populações. Na realidade,

não haverá em Portugal mais de 300 exemplares, distribuídos por 65 alcateias.

A meias. António Patrão e Liliana Ferreira formam uma simbiose perfeita entre sabedoria popular e conhecimento científico.

Água efémera. A polje é uma depressão de fundo plano e vertentes abruptas. Uma das mais famosas é a de Minde-Mira, que atinge 4 km de comprimento e 1800 m de largura.

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Papa-insetosÉ impossível falarmos de zonas calcárias,

grutas e cavernas e não referirmos os morcegos, sobretudo os cavernícolas, que, apesar de viverem escondidos, nem por isso estão mais protegidos. A génese do problema está, de acordo com os conserva-cionistas, no facto de estes serem animais quase desconhecidos do cidadão comum. Tal como acontece com tudo aquilo que não conhecemos, também os morcegos aca-baram por ser vítimas de inverdades, mitos e crenças infundadas, que se perpetuaram ao longo dos séculos e foram amplificados pela ficção (o nome Drácula diz-lhe alguma coi-sa?). É verdade que aquilo que costumamos ver deles são apenas esquivas sombras fan-tasmagóricas, que rodopiam freneticamente em torno dos lampiões e cruzam os céus no-turnos em voos aparentemente aleatórios. Além de gostarem da noite, sabemos que têm hábitos de vida estranhos, como dormir de pernas para o ar e viver em locais escuros e recônditos. Há ainda quem acrescente que a sua aparência é bizarra (leia-se: “são feios”).Como gostos não se discutem, uma coisa é certa: embora as restantes informações sejam verdadeiras, isso não nos permite extrapolar outras inverdades, que, amiúde, são erradamente veiculadas a respeito dos morcegos. O seu aspeto e a sua maneira de viver não fazem deles “perigosos” (quem disse que se agarram aos cabelos e transmi-tem doenças?), nem “criaturas demoníacas” (porque se representa o diabo com asas de morcego, enquanto os anjos ostentam asas de aves?). Muito menos “vampiros sanguinários” (todas as espécies europeias são insetívoras!) ou seres com “poderes so-brenaturais” (que justifiquem a sua inclusão em poções mágicas e feitiços), como nos fizeram crer as histórias que nos contaram desde a mais tenra idade.Aqui chegados, segue-se a pergunta inevi-tável: não são “feios, porcos e maus” nem “prejudiciais”, mas servem para quê? Na verdade, são autênticos inseticidas naturais, que contribuem para o controlo dos insetos responsáveis por pragas agrícolas e pela transmissão de doenças. Sabia que cada morcego pode comer, numa só noite, o equivalente ao seu peso em insetos? Se considerarmos todas as espécies (existem 27 em Portugal, algumas com milhares de indivíduos), estamos a falar de uma signi-ficativa importância económica, devido às dezenas de toneladas de insetos prejudiciais que são exterminados diariamente.Agora que já conseguimos olhar para estes incríveis bichos com outros olhos, é chegada a altura de conhecermos um pouco melhor a sua biologia. Afinal, são os únicos

mamíferos verdadeiramente voadores, uma vez que transformaram braços e pernas em asas. Além disso, desenvolveram um sentido especial que lhes permite voar na mais absoluta escuridão.As asas dos morcegos são rígidas, leves e impermeáveis, e correspondem a uma expansão cutânea, conhecida como “membrana alar” ou “patágio”. Esta é suportada pelos quatro dedos longos da mão (o primeiro dedo corresponde a um polegar curto que se distingue dos restantes por possuir uma garra), que funcionam como as varetas de um guarda-chuva, estendendo-se até às patas traseiras e à coluna vertebral. Loca-lizada entre os membros posteriores (prenden-do geralmente a cauda), e funcionando como leme durante o voo, existe ainda a membrana caudal ou uropatágio. Estas estruturas, apa-rentemente tão simples e ao mesmo tempo tão complexas, conferiram a este grupo de animais a aptidão única de se locomoverem no ar, enquanto os restantes mamíferos se viram condenados a uma vida terrena ou aquática.Ao contrário do que muita gente pensa, os morcegos têm olhos e possuem uma visão bem desenvolvida (com uma retina repleta de bastonetes, células sensíveis à baixa intensidade luminosa, que torna descabida a expressão popular “cego como um morcego”). Porém, isso de pouco lhes vale na escuridão da noite e dos abrigos subterrâneos, onde muitas vezes se escondem. Assim, através de adaptações morfológicas e sensoriais, que foram sendo po-

sitivamente valorizadas pela seleção natural, desenvolveram um apurado instrumento de voo, denominado “ecolocalização”.A ecolocalização consiste na emissão de sons de alta frequência e na análise dos ecos recebidos do meio. Com as cordas vocais, emitem estalidos através das narinas ou da boca (que podem ser afinados através dos adornos nasais carnudos ostentados por diversas espécies), e com ouvidos altamente sensíveis, que possuem pelos especializados na receção dos ultrassons, captam os ecos. Os sons emitidos são refletidos, na forma de eco, por todos os obstáculos (vegetação, rochedos e construções) e pelas potenciais presas (insetos), permitindo aos morce-gos em voo saber a distância a que estão dos objetos e se eles estão parados ou em movimento. Mediante a receção e a análise do eco dos ultrassons que eles próprios emitem, formam “imagens auditivas”, uma espécie de “sexto sentido” que leva os inves-tigadores a dizerem que os morcegos veem com os ouvidos!Já reparou que o símbolo do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros é um mor-cego? Não podia ter sido mais bem escolhi-do: além de existirem, nesta área protegida, 18 das 27 espécies nacionais, abriga-se aqui a única colónia portuguesa de criação de morcego-lanudo (Myotis emarginatus), bem como importantes colónias de hibernação de várias outras espécies.

Além de gostarem da noite, sabemos que os morcegos têm hábitos de vida estranhos, como dormir de pernas para o ar e viver em locais escuros e recônditos.

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Bichos pré-históricosA pesar da secura superficial, o Maciço

Calcário Estremenho alberga uma enorme diversidade faunística: só no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros estão inventariadas mais de 200 espécies de vertebrados. Contudo, este não é apenas um território de bichos vivos: acolhe igual-mente animais que desapareceram da Terra há muitos milhões de anos. Falamos, evi-dentemente, do vasto património paleon-tológico, que inclui seres tão diversos como amonites, equinodermes, gastrópodes, la-melibrânquios, corais, cefalópodes, troncos de árvores, folhas e pegadas de dinossauros, entre outros.Todo este vasto registo fóssil tem grande valor científico, uma vez que o seu estudo permite conhecer os seres vivos do passado, os ambientes em que viveram e a sua evolu-ção. Através dos fósseis, obtêm-se informa-ções preciosas sobre as características dos organismos (que nunca foram observados vivos por nenhum ser humano, dado que se extinguiram muito antes de o homem ter surgido na Terra), permitindo fazer dedu-ções acerca do seu modo de vida.Além disso, alguns tipos de fósseis, cha-mados “fósseis de fácies”, como os corais, fornecem aos paleontólogos informações relevantes sobre os paleoambientes, ou seja, acerca do meio em que esses seres viveram. Outros, denominados “fósseis de idade”, como as amonites, permitem datar as rochas e os eventos geológicos. De certo modo, é como se as rochas fossem livros petrificados, cujos estratos correspondem a páginas e os fósseis aí existentes a palavras, que vale a pena ler para conhecer e reconsti-tuir a história do nosso planeta.Embora os somatofósseis (do grego soma, “corpo”) sejam, geralmente, os mais impressionantes, uma vez que são restos que faziam parte dos próprios organismos, como ossos, dentes, carapaças ou folhas, são igualmente fascinantes os icnofósseis (do grego icnós, “vestígio, porção”), que correspondem a indícios da sua atividade vital, como, por exemplo, pistas de locomo-ção, coprólitos (fezes fossilizadas) e ninhos com ovos. Quando se fala de icnofósseis de dinossauros, é impossível não referir, imediatamente, o monumento natural das Pegadas de Dinossauros da Serra de Aire, mais conhecido como Pedreira do Galinha (Torres Novas e Ourém). Afinal, é aqui que se localiza o maior trilho de saurópo-des (quadrúpedes herbívoros, de cabeça pequena e cauda e pescoço compridos) da Europa, com 147 metros de comprimento, e um dos mais bem conservados do mundo.A Pedreira do Galinha foi descoberta em 1994 e classificada em 1996, como o

primeiro monumento natural de pegadas de dinossauro do país, e abriu ao público em 1997. Tal como o nome deixa antever, o lugar corres-ponde a uma antiga exploração de calcário, que parou a sua laboração devido ao enorme valor científico das pistas de locomoção aí preserva-das (quando foram achadas, constituíam o mais longo trilho de saurópode alguma vez visto!).Há aproximadamente 168 milhões de anos, este local era o fundo de uma laguna litoral de profundidade muito reduzida, cuja lama foi calcada por vários dinossauros. Atualmente, é uma enorme laje de calcário, com cerca de 40 mil metros quadrados, onde se conservam, pelo menos, vinte pistas formadas por dezenas de pegadas, bem como restos de bivalves, gastró-podes e outros invertebrados.O estudo da profundidade e da configuração das pegadas possibilita, entre outras coisas, estimar as dimensões e o peso dos bichos que as originaram. Assim, por exemplo, a análise das marcas dos pés (que são ovais e apresentam quatro a cinco marcas triangulares de garras), com 95 centímetros de comprimento por cerca de 70 de largura, permitiram deduzir que o

A Pedreira do Galinha possui o maior trilho de saurópodes (quadrúpedes herbívoros, de cabeça pequena e cauda e pescoço compridos) da Europa, com 147 metros de comprimento, e um dos mais bem conservados do mundo. Foi descoberta em 1994.

animal que as produziu devia ter cerca de 3,8 metros desde o solo à anca, e que se deslocava a cerca de 4 a 5 km/h.Ainda em Ourém, existe uma outra jazida (Pedreira – Amoreira), muito menos conhecida: possui apenas dois rastos e uma pegada isolada. Porém, apesar de haver pouco para ver, estes vestígios pertencem a dinossauros bem diferentes dos anteriores: eram terópodes, ou seja, bípedes carnívoros, que deixavam pegadas tridáctilas, porque, geralmente, apenas os três dedos centrais dos pés tocavam o solo.Em todo o caso, a Pedreira do Galinha é, sem dúvida, uma das mais importantes jazidas de dinossauros do país. De resto, também é aquela que está mais bem pre-parada para receber visitantes, pois possui um centro de interpretação que é visitado por cerca de 50 mil pessoas por ano. Isto significa que, embora se tenham extinguido há 65 milhões de anos, os grandes lagartos continuam a fascinar-nos, bem como muitos outros bichos pré-históricos que preenchem o nosso imaginário.

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A pedra e a água condicionam toda a vida do Maciço Estremenho

desta área revela-se na ocorrência de diver-sos endemismos lusitanos, ibéricos e ibero--norte-africanos, de populações numerosas de plantas raras, únicas no país, e ainda na existência de plantas que testemunham as evoluções paleoclimáticas, ou seja, as mudan-ças que o clima sofreu ao longo do tempo geo-lógico, uma escala temporal a que o efémero da nossa existência dificulta a compreensão. Um importante testemunho paleoclimático é, por exemplo, o carvalho negral (Quercus pyre-naica), que só aparece na zona do Arrimal.

Em virtude da variedade de biótopos, só no interior do PNSAC estão inventariadas mais de 200 espécies de vertebrados: 136 de aves, 42 de mamíferos, 18 de répteis e 13 de anfíbios.

Nas aves, destaca-se a gralha-de-bico-verme-lho (Pyrrhocorax pyrrhocorax): como sabem os ornitólogos, são já muito poucos os bandos por-tugueses desta peculiar ave vestida de negro, que se distingue facilmente pelo bico (longo, fino e encurvado para baixo) e pelas patas pin-tadas de encarnado. Curiosamente, este é o único local do país onde se abriga e nidifica em algares. Nas zonas escarpadas, merecem ainda atenção o bufo-real (Bubo bubo), o peneireiro--de-dorso-malhado (Falco tinnunculus), o ando-rinhão-preto (Apus apus), o rabirruivo-preto (Phoenicurus ochuros), o corvo (Corvus corax) e o melro-azul (Monticola solitarius), entre outros bichos alados e emplumados.

Nos mamíferos, o destaque vai para os morcegos, tanto cavernícolas como arborí-colas, uma vez que estão inventariadas na

interesse conservacionista, destacam-se os charcos temporários mediterrânicos, os louri-çais (Laurus nobilis), com presença frequente de medronheiro (Arbutus unedo) e ocasional de folhado-comum (Viburnum tinus), prados rupícolas com comunidades de plantas sucu-lentas, como o arroz-dos-telhados (Sedum album) e a erva-pinheira (S. sediforme), arrel-vados xerófilos dominados por gramíneas anuais e/ou perenes, lajes calcárias, formando plataformas horizontais e pouco inclinadas, com um reticulado de fendas colonizadas por diferentes tipos de vegetação.

Merecem ainda destaque as grutas e os algares, que proporcionam peculiares condi-ções e refúgio a um interessante elenco florís-tico, os arrelvados vivazes, frequentemente ricos em orquídeas, os matagais altos e os matos baixos calcícolas, como os carrascais, e os car-valhais de carvalho-cerquinho (Quercus faginea broteroi), localizados, sobretudo, no fundo dos vales, entre outros. O carvalho-cerquinho é um curioso endemismo ibero-norte-africano, que assinala a transição dos bosques caduci-fólios da Europa Atlântica para os bosques perenifólios do Mediterrâneo (o MCE situa-se exatamente na zona de transição entre as con-dições climáticas atlânticas e mediterrânicas).

Os botânicos identificaram cerca de 600 espécies vegetais, ou seja, cerca de um quinto das plantas inventariadas em Portugal conti-nental, distribuídas por aromáticas, medici-nais, condimentares, ornamentais, forrageiras e florestais. A importância científica da flora

região 18 espécies. No entanto, encontram-se outros galactífagos curiosos, como os musa-ranhos (de-dentes-vermelhos, Sorex grana-rius, de-dentes-brancos, Crocidura russula, e anão-de-dentes-brancos, Suncus etruscus), os ratos (cego, Microtus lusitanicus, cego-medi-terrânico, M. duodecimcostatus, e do-campo, Apodemus sylvaticus, entre outros) e os car-nívoros (doninha, Mustela nivalis, toirão, M. putorius, fuinha, Martes foina, texugo, Meles meles, sacarrabos, Herpestes ichneumon, gato--bravo, Felis silvestris, gineta, Genetta genetta e raposa, Vulpes vulpes, por exemplo).

No património humanizado, verifica-se uma forma peculiar de ocupação e exploração do território, consoante a localização das povoa-ções. Assim, destacam-se os escassos e pobres terrenos dos relevos mais elevados e das encostas, que foram conquistados através de arroteio e despedrega. Estes encontram-se, atualmente, compartimentados por muros de pedra solta, sem argamassa, denominados “cerrados” ou “chousos”, e salpicados por maroiços (aglomerados de pedras retiradas dos terrenos para permitir o maneio agrícola) e construções arcaicas também feitas de pedra seca. Existem ainda curiosas cisternas (a água sempre foi um dos principais problemas das populações serranas, uma vez que é totalmente inútil abrir poços no calcário) e cavidades natu-rais aproveitadas para bebedouros do gado, que retêm e conservam a preciosa água da chuva.

Enfim, não foram apenas as plantas e os animais a ter de se adaptar ao estranho reino de calcário, mas também o próprio homem: a pedra e a água condicionam toda a vida no Maciço Calcário Estremenho, uma região única e misteriosa que vale a pena descobrir.

J.N.

Vistas barrancosas. A Fórnea é um gigantesco anfiteatro natural de ribanceiras e

barrancos íngremes, onde se pode apreciar uma paisagem cársica de tirar o fôlego.

Com 500 metros de diâmetro e 250 de altura, corresponde à cabeceira de um ribeiro sazonal

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Ambiente

Produz metade do oxigénio, mas não o conhecemos

Um mapa do PLÂNCTON

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O biólogo marinho Richard Kirby está por detrás do projeto Secchi App, uma aplicação para telemóvel que pretende seguir de perto os movimentos

do plâncton oceânico, fundamental para a vida na Terra.

Criaturas errantes. No seu livro Ocean Drifters, de 2011, Richard Kirby descreve a variedade infinita de criaturas que formam a fauna e a flora dos mares.

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R ichard Kirby lançou um plano singu-larmente audaz para que todos os marinheiros ou adeptos de navegar pelos oceanos possam, se o deseja-

rem, transformar-se em sentinelas mundiais do plâncton. Para isso, basta fabricarem, com um mínimo de habilidade, um equipamento básico: trata-se simplesmente de recortar um disco de plástico com cerca de 30 centímetros de diâmetro, conhecido por “disco de Secchi”, colocar na parte inferior um peso de aproxi-madamente 200 gramas, para que mergulhe na água, e atá-lo a um cabo com cerca de 50 metros de comprimento.

Com o artefacto pronto, pode fazer-se ao mar em qualquer porto do mundo. A fim de obter dados com a máxima precisão, é importante que o Sol se encontre por detrás (as melhores horas vão das dez da manhã às duas da tarde). Depois, trata-se de lançar suavemente o disco preso à corda para ele mergulhar na água, e tomar nota da profundidade a partir da qual deixa de ser visível.

A outra ferramenta essencial do projeto é uma aplicação gratuita denominada Secchi App, que é preciso ativar no telemóvel para intro-duzir os dados. O programa localiza por GPS a posição exata da sentinela, e também permite registar a profundidade a que se deixou de ver o disco; a informação é enviada para o arquivo geral do projeto de Kirby. Se, nessa altura, não houver rede, os dados podem ser guardados na aplicação para serem enviados mais tarde.

SEMELHANTE À SAVANAPorque é tão importante distinguir se as

águas em determinado ponto do oceano são mais límpidas ou mais turvas? “Muito poucos sabem o que é o plâncton”, diz-nos Kirby, que dedicou a sua carreira a estudá-lo: “A maior parte das pessoas, quando olha para o mar, vê um imenso espaço azul, belo, hipnotizador, mas vazio. Contudo, na realidade, fervilha de vida. Há milhões de diminutas criaturas a flu-tuar na água, sem as quais gigantes como as baleias deixariam de existir.” Todavia, o plânc-ton, que inclui tanto seres vegetais como ani-mais, é mais do que uma coleção de organis-mos, muito mais do que a soma de todos os seus indivíduos.

De facto, poderíamos falar de um ser próprio, que flutua à mercê das correntes marinhas, sem capacidade para navegar de forma autó-noma, e que abunda em águas superficiais. Não é uma ideia descabida, afirma o biólogo mari-nho britânico, atualmente na Universidade de

O “cheiro a mar” deve-seaos cadáveres das microalgas

Plymouth (Reino Unido): “Numa floresta tropi-cal, as árvores, as aves e os insetos dependem uns dos outros. Muitas plantas, por exemplo, não podem prescindir dos seus polinizado-res. Aqui, falamos também de um mundo complexo em que todos interagem.” Kirby sugere uma rota que começa pelo plâncton microscópico, as microalgas: “Recolhem a luz solar e utilizam-na para transformar a água e o dióxido de carbono em açúcares usados para a construção de outros corpos.”

As microalgas são a primeira (e mais básica) estrutura viva desse ecossistema, o início da cadeia: “Servem de sustento aos animais dimi-nutos que formam o zooplâncton. É como os antílopes que se alimentam de erva nas savanas africanas. Aqui, também há herbívoros que comem plantas, as algas microscópicas”,

explica Kirby. Depois, há outro setor de zoo-plâncton que é carnívoro.

METADE DA FOTOSSÍNTESEÉ uma verdadeira sopa viva, feita de bac-

térias, algas e animais, larvas de caranguejos cujos corpos parecem feitos de plasticina trans-parente, crias de vermes com enormes olhos negros que flutuam na obscuridade, equino-dermes que lembram fantásticos tubos de gela-tina azul, diminutas alforrecas, animais minús-culos de tentáculos e mandíbulas monstruosas que parecem invasores alienígenas.

Kirby dedica-se a fotografar pacientemente todos esses seres cuja importância considera fundamental: “Sem eles, simplesmente não existiríamos.” Para começar, tornam possível a vida no mar, afirma. Uma existência à mercê

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Seres fascinantes. O plâncton compreende plantas (fitoplâncton) e animais (zooplâncton). Na maior parte dos casos, trata-se de pequenos organismos, muitos deles microscópicos, que flutuam nas águas a pouca profundidade (não mais de 200 metros) e que não podem nadar. Entre eles, contam-se os destas fotos obtidas por Kirby: de cima para baixo e da esquerda para a direita, medusas e larvas de espécies como estrelas do mar, caranguejos e lagostas.

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das correntes marinhas, que, segundo um estudo recente, podem ser perturbadas por essas massas vivas. Foi aqui que as formas de vida evoluíram, e os efeitos físicos que exercem sobre o planeta continuam a ser fenomenais: “Quando se pergunta a uma pessoa onde ocorre a maior parte da fotossíntese na Terra, dirá seguramente que é na floresta tropical, mas a verdade é que as plantas terrestres conta-bilizam apenas metade do processo. O resto produz-se na superfície do oceano, e é reali-zado pelas criaturas do plâncton.”

Assim, sem o plâncton (em especial, o fito-plâncton), disporíamos de metade do oxigé-nio para respirar. É esse pulmão essencial que confere ao mar o tom esverdeado ou tingido de turquesa que surge, por vezes, entre o azul das águas.

MULTIMILIONÁRIOS DO CARBONOContudo, o plâncton não se limita a tornar

possível um mundo com oxigénio; além disso, age como regulador e verdadeiro motor de um dos elementos presentes em todos os seres vivos: o carbono. Afeta também o modo como este circula e se recicla ao longo do tempo.

Kirby explica a forma como o fitoplâncton, com toda a sua variedade de microalgas e bac-térias, absorve o dióxido de carbono atmosfé-rico enquanto realiza a fotossíntese, e incor-pora o carbono nas suas estruturas. Quando os diminutos seres morrem, o carbono que con-tinham vai parar ao fundo dos oceanos, onde se acumula durante eras. Assim, o fitoplâncton é como uma bomba que filtra o carbono a nível planetário, que transforma o oceano profundo num escoadouro que vai crescendo ao longo do

tempo. “Uma parte do carbono é incorporada nos sedimentos. À medida que se vão afun-dando cada vez mais, o elemento aquece e comprime-se; ao fim de centenas de milhares ou milhões de anos, transforma-se nas reser-vas de petróleo e gás”, explica o biólogo.

De cada vez que se liga um aquecedor ou se põe a trabalhar o motor do carro, está-se a quei-mar o carbono acumulado pelas microscópicas criaturas marinhas do passado. Foi o plâncton que tornou multimilionários John Rockefe-ller e outros magnatas da indústria petrolí-fera, e poderíamos dizer que continua a ser o motor fundamental do capitalismo moderno.

Porém, há outras considerações: o carbono dos sedimentos marinhos esteve um dia na atmosfera, e foi a vida marinha que o retirou. “Quando queimamos combustível e libertamos novamente dióxido de carbono na atmosfera, estamos a fazer exatamente o oposto do ciclo natural e, além disso, a um ritmo muito mais rápido do que o da própria natureza.” Assim, estamos a alterar a composição da biosfera e o clima da Terra.

MODELAR A PAISAGEMAlgumas das microalgas do plâncton contêm

compostos de enxofre que libertam no mar ao morrer. A luz do Sol divide-os e cria partículas de sulfureto que agem, na atmosfera, como ímanes para condensar o vapor de água: “São um dos principais responsáveis pelas nuvens”, diz Kirby. Poder-se-ia dizer que o plâncton modela a paisagem de nuvens que observamos no céu sobre o mar. O cheio a enxofre é bastante característico e reconhecemo-lo mal nos apro-ximamos da costa; ainda sem ver o oceano, já o pressentimos: cheira a mar! “Desde tempos vitorianos que se considera que o ar marinho tem propriedades revigorantes”, lembra Kirby.

O investigador começou a sua carreira como biólogo molecular e dedicou-se, inicialmente, a estudar o ADN. Daí, passou para o plâncton: “É um mundo alienígena. Não sabemos quase nada sobre ele. Muitas das suas criaturas são tão pequenas que parecem semelhantes. Desconhecemos a biodiversidade que existe no plâncton.” Trata-se de um grande desafio, pois inclui “tudo o que não pode nadar contra a corrente”.

Kirby acredita que, tal como desconhecemos muitas das criaturas que povoam as florestas tropicais, a biodiversidade marinha continua a constituir um mistério. Se o plâncton nos ensina algo, é que fazemos parte inequívoca da vida da Terra. As decisões que tomarmos dependerão do nosso grau de informação. Quanto mais dados possuirmos, melhor. Não se trata de algo trivial: “Tudo o que fazemos tem um efeito sobre o planeta e afetará as nossas vidas.”

L.M.A.

Pescar informações. Richard Kirby com uma das redes que emprega para recolher amostras biológicas por todo o planeta.

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Saúde

Um quarto da humanidade aloja no corpo um verme parasita como os que surgem neste artigo. A sua presença pode desencadear doenças graves.

Vermes que nos parasitam

Os nossosINQUILINOS

D ignas protagonistas de um filme de terror, as criaturas de que falamos neste artigo são bastante repug-nantes. No entanto, enquanto o lei-

tor passeia os olhos por estas linhas, é possível que alguma espécie de verme esteja a movimen-tar-se no seu intestino, onde vive e se alimenta, à imagem e semelhança do que os seus ante-passados faziam há milhões de anos.

Atualmente, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), perto de 24 por cento da população mundial está infetada por hel-mintos (como se designam esses invasores, no âmbito da parasitologia), uma taxa que rivaliza com a da sida e mesmo com a da malária, a doença parasitária mais difundida no mundo. Vários programas, no esforço para controlar as chamadas “doenças tropicais negligenciadas” (NTD, na sigla em inglês), têm por principal objetivo prevenir e tratar as verminoses ou helmintíases.

Na opinião de Peter Hotez, um especialista norte-americano, as NTD são, em grande medida, responsáveis pelas situações de pobreza extrema em muitos países. Tal como explicou no Huffington Post, Hotez acredita que os mil milhões de pessoas que vivem com menos de um euro por dia estão condenadas a permanecer na miséria por culpa das infesta-ções que sofrem: “Impedem-nas de trabalhar, limitam a produtividade agrícola e afetam as crianças em etapas importantes do seu desen-volvimento”, sublinha.

DIARREIAS, CANSAÇO, DORESOs efeitos nocivos dependem da gravidade da

doença, avaliada consoante o número de para-

À abordagem! As ténias (na imagem, a Taenia pisiformis) aderem à parede intestinal das suas vítimas através de ventosas e ganchos que possuem na cabeça.

sitas alojados no corpo do paciente. Em casos ligeiros, não produz sintomas e passa desperce-bida durante anos. Porém, quando os vermes causam danos nos tecidos por onde circulam (quase sempre os do sistema digestivo ou cir cu latório), provocam dores abdominais, diar reias, problemas respiratórios e cansaço extremo.

Embora afetem maioritariamente países em vias de desenvolvimento, estas doenças estão a expandir-se por todo o mundo, à boleia do turismo e da imigração. Conscientes do pro-blema, diversas organizações e grandes grupos farmacêuticos comprometeram-se a desenvol-ver medidas que permitam controlar (já que a erradicação ainda parece demasiado ambi-ciosa) a expansão dos helmintos até ao ano 2020, ao abrigo do projeto London Declaration on Neglected Tropical Diseases.

Uma tarefa difícil, se considerarmos o com-plexo ciclo de vida dos indesejáveis intrusos. A maior parte possui mais de um hospedeiro e utiliza como vetores (os animais que os trans-mitem) pequenos invertebrados, como mos-quitos e caracóis. Além disso, algumas etapas do seu desenvolvimento decorrem no solo ou em pequenas massas de água. “O processo assegura uma vasta distribuição numa grande variedade de ambientes, o que dificulta o controlo e a erradicação eficazes dos surtos”, adverte Hotez.

O principal meio de contágio é a ingestão de ovos do verme, que se podem encontrar em verduras ou frutos mal lavados, água por desin-fetar ou carne e peixe crus. Por acréscimo, algumas larvas conseguem penetrar a nossa pele, o que facilita a transmissão em zonas onde

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não existe uma higiene adequada e onde as fezes humanas são utilizadas para fertilizar os campos ou as pessoas andam descalças.

Com este panorama e sem ferramentas de diagnóstico e prevenção eficazes, a única arma disponível até hoje é a administração maciça de fármacos anti-helmínticos de vasto espectro a todos os indivíduos das populações afetadas. Num artigo publicado no ano passado, espe-cialistas em medicina tropical da Universidade Baylor, no Texas, consideram que tais medidas, a par da aplicação de outras para melhorar a higiene e o fornecimento de água potável, se reve lam eficazes para manter sob controlo os para sitas. Contudo, é provável que não sejam sufi cientes e que tenhamos necessidade de desen volver novos fármacos ou mesmo vacinas.

Várias organizações uniram esforços para desenhar as chamadas “vacinas antipobreza”. Já estão a ser desenvolvidos ensaios clínicos e já se sintetizam moléculas que possam combater várias NTD em simultâneo. O objetivo desta iniciativa, reconhece Peter Hotez, é ambicioso: salvar as pessoas da miséria através de melhor saúde.

Afetam principalmenteos países em desenvolvimento

Analisamos, em seguida, a vida e a obra daqueles que talvez sejam os dez vermes mais disseminados e perigosos para o homem.

O ADEPTO DAS FEZESComum em zonas do mundo onde as fezes

humanas são utilizadas para fertilizar os cam-pos, o Trichuris trichiura infeta o ser humano através dos seus ovos, que contaminam a água e os alimentos. A doença passa muitas vezes despercebida, mas afeta quase oitocentos milhões de pessoas, segundo um artigo publi-cado recentemente na revista Public Health.

De forma semelhante às outras helmintíases ou infestações causadas por parasitas, os sin-tomas da tricuríase só se manifestam quando a quantidade de exemplares no intestino é con-siderável. Quando isso acontece, os doentes podem sofrer dores abdominais, diarreia e can-saço extremo, sintomas que se complicam no caso das crianças. Além disso, pensa-se que o Trichuris trichiura possui um comportamento oportunista e que se especializa em parasitar pessoas com o sistema imunitário debilitado. Segundo a OMS, é frequente surgir em doen-

tes com sida e em conjunto com outras hel-mintíases, o que agrava o estado do paciente ao ponto de poder provocar a morte.

A prevenção da doença passa por melhorar as condições de saneamento e higiene, cozinhar adequadamente os alimentos e lavar as mãos com frequência. A presença de Trichuris tri-chiura pode ser detetada através de uma análise parasitológica das fezes, e o tratamento é sim-ples: basta tomar anti-helmínticos durante três dias para eliminar por completo os invasores, embora a medicação deva ser repetida anual-mente, devido às elevadas taxas de recaída.

UM INQUILINO QUE PODE CEGARA filariose cutânea constitui a segunda causa

de cegueira a nível mundial. O primeiro sin-toma da parasitose, transmitida ao ser humano quando é picado pela mosca negra (do género Simulium), é constituído por uma intensa infla-mação em várias zonas do corpo, provocada pelo movimento das larvas de Onchocerca vol-vulus através dos tecidos subcutâneos. A rea-ção causa um prurido tão intenso que a pessoa afetada costuma coçar-se até provocar uma ferida. Nos olhos, as lesões infligidas pelas microfilárias (exemplares imaturos) causam problemas que conduzem, frequentemente, a uma perda total da visão.

Sem vacina nem métodos de prevenção efi-

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Superficial. A larva do Ancylostoma duedenale perfura a pele e provoca

estragos na epiderme das pessoas infetadas, antes de se instalar em diversos órgãos.

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cazes, a OMS está a desenvolver, desde meados dos anos 70, um programa de controlo da oncocercose (como se denomina este tipo de filariose) na América Latina e em África, onde vivem 99% dos doentes. Procura eliminar o parasita através da distribuição em massa de ivermectina, um antiparasitário potente mas seguro, entre as populações de risco. A medida é complementada com a utilização de inseticidas para controlar o vetor da doença.

A estratégia funciona: a transmissão do verme cessou na Colômbia e no Equador, em 2007 e 2009, respetivamente. O México juntou-se aos países livres de Onchocerca volvulus em 2011. Em meados do ano passado, o presidente colom-biano, Juan Manuel Santos, confirmou que o país fora o primeiro a erradicar definitivamente a doença.

VAMPIROS QUE ENTRAM PELOS PÉSConhecidos dos antigos egípcios e identifi-

cados por Avicena, no século XI, como causa de morte, os ancilostomídeos são vermes que parasitam o intestino delgado e se alimentam de sangue. A sua voracidade dá origem a uma doença silenciosa mas frequentemente fatal.

Embora não se conheça exatamente a dis-tribuição global destes parasitas, um estudo publicado na revista PLOS Medicine estima que o Ancylostoma duodenale, presente na zona do

Mediterrâneo, e o Necator americanus, o seu parente mais comum, parasitam 740 milhões de pessoas. O contágio ocorre em zonas con-taminadas com excrementos humanos onde abundam as larvas, que podem perfurar a pele de quem andar descalço. Os exemplares imatu-ros migram depois pelo corpo, causando danos no sistema circulatório e nos pulmões. Quando crescem o suficiente, colonizam o intestino delgado.

Uma vez alojadas no seu habitat preferido, as duas espécies alimentam-se de sangue, o que provoca uma rutura nos glóbulos vermelhos e a deterioração da hemoglobina. Embora os sintomas possam incluir náuseas, dores abdo-minais ou anemia, a doença passa geralmente despercebida, mesmo quando causa hemorra-gias intestinais.

OS ASSASSINOS DO CHARCOCinco espécies de vermes do género Schis-

tosoma causam a bilharziose, também conhe-cida por “febre do caracol” ou “esquitosso-mose”. Dos 160 milhões de afetados, 90% vivem na África subsahariana, e cerca de 200 mil pessoas morrem anualmente devido a compli-cações provocadas pela doença.

A bilharziose ataca, geralmente, comunida-des agrícolas e pesqueiras em contacto com rios, charcos e outras zonas de águas contami-

nadas. Os ovos do parasita aderem aos excre-mentos humanos. Em contacto com a água, as larvas eclodem e infestam o pé musculoso ven-tral dos caracóis. No interior dos gasterópodes, transformam-se em indivíduos mais desenvol-vidos (as cercárias), que abandonam o hospe-deiro e esperam que um ser humano se apro-xime da água. Penetram pela pele e alcançam os vasos sanguíneos, onde podem permanecer durante anos e libertar os seus ovos.

A bilharziose pode chegar a incapacitar o doente, devido à febre elevada que provoca. Os problemas mais graves (e, por vezes, letais) surgem quando o sistema imunitário cria um revestimento fibroso para isolar os ovos. Tais granulomas podem provocar hipertensão pul-monar, embolias ou mesmo cancro.

INCHAÇO TESTICULARMais de 120 milhões de pessoas sofrem de

filariose linfática. Embora os sintomas possam ser ligeiros ou mesmo inexistentes, os respon-sáveis, ou seja, os nemátodes Wuchereria ban-crofti, atacam o sistema imunitário, os vasos lin-fáticos e os rins. Se não for tratada, dá origem à elefantíase, que desfigura os membros infe-riores e outras partes do corpo.

Nas fases mais avançadas da doença, é frequente surgirem diversos problemas uro-genitais, no caso do homem; pelo menos 25

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Multiplicação. Um Echinococcus granulosus com os seus ovos.

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Muitos permanecem em nóssem dar quaisquer sinais

O BERBICACHO DOS ARROZAISFrequente na América Latina, no sueste

asiático, na Índia e em África, onde se estima que parasite cem milhões de pessoas, o nemá-tode Strongyloides stercoralis também faz das suas em diversos países europeus. Comum em climas amenos e zonas húmidas, a S. stercoralis acampa, sem qualquer problema, em terrenos pantanosos e arrozais, onde se introduz nos trabalhadores agrícolas através da pele, geral-mente dos pés. Mesmo nos casos crónicos, a estrongiloidíase que provoca é geralmente assintomática, ou surge associada a queixas provisórias e sem gravidade, como tosse ou diarreia, pelo que é quase impossível detetar a sua existência.

Uma característica única da espécie é a sua capacidade para se reproduzir no interior do corpo humano, o que lhe permite manter uma autoinfeção endógena durante anos. Se a imu-nidade do indivíduo for normal, o parasita não costuma dar luta. Contudo, os doentes com sida, por exemplo, podem desenvolver uma síndrome de hiperinfeção ou estrongiloidíase disseminada. Nesse caso, a mortalidade ronda os 80%.

2000 MILHÕES DE VÍTIMASÉ o número de pessoas infetadas pela lom-

briga intestinal Ascaris lumbricoides. Além disso, como provam os ovos encontrados em fezes fossilizadas (algumas das quais com 24 mil anos

mihões sofrem de uma inflamação do escroto provocada pelo parasita, o que comporta um estigma social. Dado que a proteção da picada do inseto que o dissemina é a única medida de prevenção, a OMS promoveu campanhas de medicação na maior parte dos países afetados. Conseguiu, assim, reduzir em 43% a transmissão.

O desenvolvimento de uma nova análise que permite localizar os antigenes com apenas uma gota de sangue promete uma deteção precoce. Até agora, um dos maiores problemas no com-bate à filariose era, precisamente, o diagnós-tico, que dependia do recurso ao microscópio. Uma tarefa difícil se considerarmos que a W. bancrofti só dá a cara no sistema circulatório periférico de noite: durante o dia, esconde-se em zonas mais recônditas.

UM MAL ENQUISTADOQuatro espécies de ténias do género Echino-

coccus provocam igual número de doenças no ser humano, agrupadas sob o nome geral de equinococoses. A hidatidose, ou cisto hidático, é a forma mais comum, e o contágio ocorre através do contacto com cães ou outros ani-mais domésticos infestados pela espécie Echi-nococcus granulosus.

O parasita pode permanecer anos no orga-nismo sem revelar a sua presença. Contudo, os cistos que desenvolve acabam, inevitavelmente, por fazer soar o alarme: por exemplo, quando se alojam no fígado ou nos pulmões. Nestes casos, os sintomas dependem da localização das larvas (as hidátides), e da pressão que exerçam nos tecidos circundantes. Podem provocar náu-seas, vómitos, tosse crónica ou dores no peito.

Para a E. granulosus, ir parar a um ser humano é um penoso acidente, pois não pode culmi-nar o seu ciclo de vida no nosso organismo. Para conseguir chegar a um hospedeiro defini-tivo (normalmente, um lobo ou uma raposa), esses carnívoros têm de consumir as vísceras de animais parasitados (ovelhas, por exemplo), onde se encontram os cistos cheios de larvas.

A equinococose humana, seja qual for a sua forma, é dificil de tratar, e exige complexas intervenções cirúrgicas e uma medicamentação prolongada. Muitos dos doentes sofrem sinto-mas agudos e veem a sua qualidade de vida diminuída mesmo após o tratamento.

A transmissão humana produz-se através do contacto com fezes dos carnívoros infetados. É por isso que se torna tão importante proceder à desparasitação dos cães, a cada 45 dias.

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Praga. Primeiro plano da cabeça da Ascaris lumbricoides, o parasita

mais abundante no ser hunmano.

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T. solium é endémica, um terço dos epiléticos manifestam sintomas de neurocisticercose.

NO FÍGADO COM AJUDA DO CARACOLO maior de todos os parasitas que atacam o

fígado é, também, o único que se transmite ao ser humano através do consumo de vegetais. Para chegar até nós, o parasita Fasciola hepa-tica precisa que animais infestados vão defecar perto de um meio aquático, pois reproduz-se no interior do caracol de água doce. Depois, as larvas formam cistos que se colam às folhas e talos de diversas espécies de plantas comestí-veis, como o agrião ou a hortelã.

Os hospedeiros mais comuns deste platel-minto são as ovelhas, as cabras e o gado vacum. Devido a tal preferência por animais com impor-tância económica, a fasciolose é, atualmente, uma das doenças parasitárias mais bem conhe-cidas. Seja como for, não foi muito estudada no ser humano durante décadas, pois era con-siderada uma infeção de pouca monta em com-paração com outras: afeta apenas 2,4 milhões de pessoas em mais de setenta países.

Na fase crónica, quando o parasita se aloja nos canais biliares, provoca dores abdominais, fibrose hepática, pancreatite e infeções bac-terianas graves. É considerada um mal endé-mico em várias zonas da Europa, com elevada incidência em Portugal, Espanha e França, com um grande número de casos por diagnosticar.

J.B.

de antiguidade), não é uma praga recente. A infestação produz-se quando o ser humano ingere ovos fertilizados. Por outro lado, embora o lar do verme seja o intestino, onde absorve nutrientes dos alimentos parcialmente digeri-dos, o seu ciclo de vida abrange vários órgãos. É a sua passagem por estes que desencadeia diversas patologias.

A larva perfura as paredes do duodeno, entra na corrente sanguínea e viaja até aos alvéolos pulmonares. Ali, cresce durante três semanas, altura em que um inoportuno ata-que de tosse a conduz até à traqueia. Depois, regressa ao intestino, onde alcança o estado adulto e começa a reproduzir-se. Uma fêmea chega a pôr 20 mil ovos por dia. Estes são muito resistentes e acabam por ser expulsos com as fezes. Depois de passarem duas semanas no solo, estão prontos para voltar a abordar um novo hospedeiro.

A natureza da infestação, quase sempre assintomática, dificulta o diagnóstico, feito através da observação dos excrementos. Toda-via, em 15% dos casos, o número de parasitas é tão abundante que os sinais da sua presença acabam por denunciá-los. Podem provocar dores abdominais, diarreias, pancreatite e, na fase larvar, infeções pulmonares. Segundo um estudo publicado na revista Lancet, foram registadas, em 2010, 2700 mortes por ascari-díase. A maior parte das vítimas eram crianças com obstrução intestinal.

MALDADES DA SOLITÁRIAA Taenia solium pode viver, se não a incomo-

darem, 25 anos ancorada na parede do intes-tino humano. Estamos a falar de uma estra-nha criatura, cujo corpo se encontra dividido em segmentos (as proglótides) que funcionam como unidades de autofecundação, pois são hermafroditas. Quando os ovos eclodem, a solitária liberta a prole e desfaz-se progressiva-mente dos últimos fragmentos do seu corpo, eliminados nas fezes do hospedeiro.

Embora se acreditasse que tinha sido erradi-cada no princípio do século passado, a cisticer-cose (a doença causada pelo parasita) afeta, atualmente, muitas populações de zonas rurais com gado de subsistência e condições higiénicas deficientes. Desde 2010, é considerada uma doença tropical negligenciada e a OMS trabalha, atualmente, no desenvolvimento de métodos de atuação para controlá-la.

A parasitação produz, geralmente, sintomas de índole gastrointestinal, embora, à seme-lhança de muitas outras alterações causadas por vermes, a doença possa passar desperce-bida durante anos. Habitualmente, não põe em risco a vida nem acarreta problemas de saúde graves, exceto no caso de alguma das larvas migrar até ao sistema nervoso; nesse caso, encontramo-nos perante um quadro de neuro-cisticercose, a principal causa evitável de epi-lepsia no mundo. Um estudo da Universidade do Oklahoma afirma que, em países onde a

Intermináveis. A Fascicoa hepatica (em cima) infesta a vesícula e os canais biliares de herbívoros domésticos como cabras, vacas e ovelhas. À direita, numa imagem de 1946, um investigador estende no solo uma Taenia solium, que pode chegar aos 4 m de comprimento.

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Peixe chatoA solha-das-pedras (Platichthys flesus) é um peixe migrador: os estuários como creches, locais de desenvolvimento larvar e juvenil, migrando posteriormente para o mar, onde se reproduz. Porém, no estuário do Minho (onde esta imagem foi captada), este padrão de migração parece não ocorrer: estudos recentes e inovadores, recorrendo à concentração de estrôncio nos otólitos (concreções de carbonato de cálcio presentes no ouvido interno, cujos anéis de crescimento permitem a determinação da idade), indicam que, afinal, a maioria das solhas capturadas na zona costeira nasceram e medraram apenas no ecossistema fluvial, com salinidade reduzida.A maior curiosidade destes peixes é apresentarem o corpo achatado e fortemente comprimido, de modo a adaptarem-se à vida bentónica. Durante a fase juvenil, assiste-se à migração de um olho para o outro lado do crânio, ficando com os dois olhos na mesma face, a que está virada para cima. Assim, perdem a simetria bilateral típica dos peixes no estado adulto. Foto: Jorge Nunes.

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Espaço

O projeto Mars One pretende enviar, em 2024, quatro humanos até Marte, para fundar uma

colónia. O problema? Parece prometer bem mais do que aquilo que conseguirá cumprir. Apesar

de tudo, um grupo de universitários portugueses aproveitou o desafio: querem ser os primeiros

a germinar plantas no Planeta Vermelho.

Levar vida a outros mundos

Missão INVIÁVEL?

F azemos estas coisas não por serem fáceis, mas porque são difíceis”, disse o presidente norte-americano John Kennedy em 1962, num discurso

emotivo em que anunciou ao mundo o desejo de levar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra, são e salvo, antes do final da década. De facto, após os Estados Unidos terem gasto cerca de 145 mil milhões de euros (valor ajus-tado aos dias de hoje) com o programa Apollo da NASA, Neil Armstrong tornou-se, sete anos depois, o primeiro ser humano a colocar um

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Utopia. Fundar uma colónia em Marte, eis o grande objetivo da Mars One.

O primeiro passo, promete a organização, é enviar uma missão não tripulada em 2018.

Seis anos depois, seguirão os primeiros quatro humanos para o planeta.

pé em solo extraterrestre. As palavras de Ken-nedy bem poderiam ser o moto do projeto Mars One, que pretende enviar, já em 2024, quatro pessoas para Marte, para aí formarem um colónia humana permanente. Antes disso, em 2018, pretendem lançar até ao Planeta Vermelho uma missão espacial não tripulada. Comparado com isto, a corrida para chegar à Lua parece uma brincadeira de crianças.

Há quem diga que a Mars One, uma organi-zação sem fins lucrativos, é irrealista nos seus propósitos, pois colocar humanos em Marte,

em menos de uma década, é quase impossível. Juntem-se os desafios técnicos de uma tão longa viagem, os enormes riscos que podem surgir para a saúde dos tripulantes e os mil e um problemas com que os novos habitantes de Marte terão de lidar diariamente. Outros afir-mam que os líderes do projeto, o empresário Bas Lansdorp e o físico Arno Wielders, ambos holandeses, não passam de charlatães, apro-veitando-se da boa vontade de quem quer ver a exploração espacial sair das águas paradas em que ficou, após o fim da Guerra Fria. Por fim,

temos os que veem na ideia uma oportunidade a que não se pode virar as costas.

Um dos problemas é que as propostas ainda nem saíram do papel, com os responsáveis da Mars One a estimar que, para deixar quatro humanos no planeta, 5,3 mil milhões de euros serão suficientes, pelo menos para a parte logística. O senão é que este valor apenas tem em conta a viagem de ida: não há bilhete de regresso. Depois de 2024, seguir-se-iam, de dois em dois anos, mais viagens, para fazer crescer a colónia marciana. De onde viria o

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Para financiar a missão,

pretende-se emular os Jogos

Olímpicos

dinheiro para tudo isto? Essencialmente, atra-vés do patrocínio de empresas e de investido-res privados, a que se juntaria a transmissão televisiva (um reality show) do que iria acon-tecendo no interior da nave e, mais tarde, na futura colónia. Segundo Lansdorp, pretende-se emular o que os Jogos Olímpicos já fazem, arre-cadando milhares de milhões de euros graças à publicidade e à venda dos direitos de transmis-são para os quatro cantos do globo: seria, sem dúvida, o maior evento mediático do mundo.

As datas (2018 e 2024) foram escolhidas com base nas posições astronómicas da Terra e de Marte, de forma a ter a melhor rota (mais curta e menos dispendiosa) para a viagem, mas, se ainda está tudo na fase de conceção, como se pode aspirar a enviar uma nave daqui a pouco menos de quatro anos? Pese embora a dúvida, a Mars One garante que, após reuniões com os seus “potenciais fornecedores”, todos eles “garantiram que podem construir os compo-nentes necessários dentro do período estipu-lado”. Assim que os primeiros patrocinadores e investidores avançarem com o dinheiro, espera-se que seja criado um efeito bola de neve, capaz de atrair ainda mais interessados e reunir a quantia necessária.

Sementes portuguesas para MarteÉ possível levar vida da Terra para Mar-

te, na forma de plantas? Conseguirão elas germinar e sobreviver? Este foi um dos desafios que a Mars One lançou, no âmbito de uma competição universitária, e que teve como vencedora uma equipa portuguesa composta por oito estudantes, quase todos das universidades do Porto e do Minho. Das 35 candidaturas em competição, o projeto Seed foi o escolhido, numa votação pública feita através da internet.“A nossa ideia consiste em germinar as primeiras sementes em Marte num ambiente controlado, tanto ao nível da temperatura, como da pressão e da atmosfera, simulando o que existe na Terra. Por isso, a única variável em estudo será a gravidade, que é cerca de um terço da que se regista na Terra”, resume Teresa Araújo, estudante de bioengenharia da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Para levar a ideia por diante, a equi-pa propôs uma estrutura composta por um contentor exterior, que manteria as condi-ções experimentais necessárias. O invólucro também teria de servir como proteção contra a vibração que ocorrerá durante a descola-gem e a aterragem, a variação da temperatura e a radiação, sendo que no seu interior “estará um conjunto de cassettes, dentro das quais germinarão as sementes”, explica.A experiência, segundo a organização da Mars One, será levada para o Planeta Verme-lho em 2018, numa missão não tripulada. O intuito é preparar, no planeta, as condições necessárias para que uma colónia humana aí se possa fixar, a partir de 2024. Além do projeto português, também se pretende en-viar outras experiências e diversos materiais, úteis para um futuro acampamento. Durante o período de viagem, as sementes portuguesas estarão congeladas, mas, uma vez aterrada a sonda, os seus painéis solares aquecerão as cargas experimentais e criarão a temperatura ambiente ideal, capaz de as fazer germinar. Em teoria, é o que está pro-jetado, mas, na prática, persistem grandes dúvidas de que a primeira missão da Mars One consiga levantar voo daqui a três anos,

dado ainda nem se ter passado da fase de conceptualização. Excesso de confiança? Teresa Araújo responde: “Será um grande desafio, com certeza. No entanto, acredita-mos que é possível!”De momento, o maior obstáculo que a equi-pa enfrenta relaciona-se com notas de euro: “O desenvolvimento de tecnologias deste tipo é muito dispendioso: esperamos que, entre logística, materiais, eletrónica, testes e serviços externos, entre outros gastos, o custo total da operação ronde um milhão de euros”, confessa Guilherme Aresta, também ele estudante de bioengenharia na Universi-dade do Porto. “Nesta fase, ainda estamos à procura de apoio financeiro.”Pese embora o otimismo da equipa portu-guesa, há algumas sombras a pairar sobre a ideia, e não têm necessariamente a ver com a exequibilidade do projeto da Mars One. “Questiono-me como é que se pode lançar uma missão com sementes para Marte, quando o controlo para evitar a conta-minação planetária é tão apertado”, diz Ricardo Patrício, cofundador da empresa Active Space Technologies, especializa-da na construção de tecnologias para o setor aeroespacial. “A nossa empresa, por exemplo, está a desenvolver vários sistemas que vão para Marte, na área da eletrónica, e o que nos é pedido é tão exigente, em termos de descontaminação e limpeza, para prevenir que qualquer tipo de organismos, como bactérias, chegue ao planeta, que não percebo como é que pode haver este tipo de missões. Como é que se pode permitir um lançamento destes com contaminantes orgânicos a bordo?”Guilherme Aresta assegura que o projeto Seed teve isso em conta desde o início. “O que nos distinguiu das outras propostas foi a simplicidade, pois exige-se que qualquer missão a Marte garanta proteção ambiental. Ou seja, é imperativo não contaminar o Planeta Vermelho com matéria orgânica (e até mesmo inorgânica) provenientes de outro planeta. Por isso, quanto mais simples for a experiência, melhor.”

Uma temperatura média de 60 graus negativos, uma atmosfera irrespirável e uma gravidade que é somente um terço da da Terra. É este ambiente que se pretende dominar, para fazer germinar sementes.

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O PROBLEMA DOS RAIOS CÓSMICOS“A radiação é o ponto mais crítico numa

missão com humanos. Como é que se vai iso-lar os astronautas e garantir o seu bem-estar durante a viagem?” Eis uma das questões levantadas por Ricardo Patrício, da empresa portuguesa Active Space Technologies. Habi-tuada a produzir alta tecnologia para o setor aeroespacial, e com uma carteira de clientes que inclui as agências espaciais europeia (ESA) e japonesa (JAXA), a empresa sediada em Coimbra tem noção das dificuldades e dos constrangimentos subjacentes a um projeto espacial: “Há uma série de desafios tecnológi-cos que não são de fácil resolução, e as datas que a Mars One estipulou parecem-me dema-siado ambiciosas”, acrescenta o cofundador da Active Space Technologies. “Dentro da indústria em que operamos, estamos habitua-dos a trabalhar com satélites [com especifica-ções muito mais simples], e demoramos entre cinco e dez anos só a desenvolvê-los...”

Passando ao lado das questões técnicas, o jornalista e escritor Stuart Clark, num texto para o jornal britânico The Guardian, foi corrosivo quanto baste ao afirmar que “está na altura de acabar com o idealismo em torno das missões a Marte”, pois “ir até lá, com a atual tecnologia, implicaria um risco significativo por causa da perigosa exposição à radiação”. A declaração não foi feita à toa ou por preconceito para com a Mars One. Um dos instrumentos a bordo do rover Curiosity revelou que um astronauta em Marte apanharia, num só dia, uma dose de radiação equivalente àquela a que um norte--americano está exposto ao longo de um ano.

O pior, porventura, está nos sete meses de viagem previstos a bordo da nave que fará a ligação entre os planetas. Neste caso, há dois tipos de radiação a ter em conta: a que provém

das erupções solares e, principalmente, os raios cósmicos que se encontram por todo o espaço, compostos por partículas de elevada energia que viajam a uma velocidade próxima da da luz. Para impedir que estas últimas causem danos ao corpo humano, seria necessário um escudo muito espesso, algo impossível nas naves atuais, pois torná-las-ia demasiado pesadas para serem lançadas da Terra. Alguns novos tipos de escudo e de propulsores estão a ser estudados, mas somente pela NASA, sendo que estamos a falar de tecnologia que ainda demorará anos a ficar pronta.

FECHADOS E ISOLADOSDevido a uma gravidade que é dois terços

inferior à da Terra, viver na superfície marciana implicaria a perda de massa óssea e muscular, assim como a diminuição da força muscular e da circulação sanguínea. Como é que os possíveis colonos lidariam com a situação? Uma coisa é ficar seis meses na Estação Espacial Internacio-nal, onde se tenta compensar a falta de gravi-dade com muito exercício físico (mesmo assim, não é suficiente); outra, bem diferente, é ficar lá o resto da vida. Os nossos ossos desempe-nham um papel crucial enquanto estrutura que suporta o corpo, ao mesmo tempo que atuam como reservatórios de cálcio, mas este é ape-nas um problema entre tantos outros.

Um corpo saudável de nada serve se entrar-mos em colapso psicológico. O isolamento social é uma preocupação, não bastando a troca de mensagens virtuais com quem está na Terra para resolver o problema, tal como afiança a Mars One. O preocupante reside na necessidade de os colonos ficarem confinados a habitats que ofereceriam, a cada pessoa, cerca de 50 metros quadrados de espaço. Com uma temperatura média de 60 graus negativos e uma atmosfera

irrespirável, não se preveem grande passeios lá fora, estimando-se que os colonos tivessem de passar 80 por cento do seu tempo dentro das unidades que montassem. Para lidar com tudo isto, os organizadores da missão apenas refe-rem que os pormenores exatos ainda estão a ser ultimados, embora garantam que vão sele-cionar somente aqueles que sejam resilientes a este tipo de ambientes adversos.

Em 2013, a organização sediada nos Países Baixos voltou às bocas do mundo quando abriu quatro vagas de astronauta para o Planeta Vermelho. Ao todo, inscreveram-se mais de 200 mil pessoas, incluindo alguns portugueses. Depois de algumas fases de seleção, o grupo está neste momento reduzido a pouco mais de 700 candidatos. De acordo com o que está delineado, os homens e as mulheres que pas-sarem as próximas rondas começarão já este ano o seu treino para viver fora da Terra.

A NASA PASSA AO ATAQUEEnquanto a missão holandesa segue, apa-

rentemente, o seu caminho, do outro lado do Atlântico a agência espacial norte-americana está a pavimentar a via que levará os seus tripu-lantes até Marte. Quando partirão? As baterias estão apontadas para meados da década de 2030. Em dezembro passado, a NASA lançou para o espaço, num teste que custou 330 milhões de euros, a cápsula espacial Orion: deu duas voltas em torno da Terra. Desde o surgi-mento dos vaivéns espaciais na década de 1980 (foram descontinuados em 2011), foi a primeira vez que os Estados Unidos mostraram ao mundo uma nova nave espacial, sobre a qual recai a maior esperança de, pelo menos, levar alguém até à órbita de Marte.

Ao contrário das cápsulas espaciais desenvol-vidas nos últimos anos por empresas privadas, a Orion está a ser preparada para viajar bem mais longe e durante vários meses. Mais: terá a capacidade para levar e trazer os humanos que transporta dentro de si. Claro que, para isto, a nave, constituída pelos módulos de comando (a cápsula) e de serviço (com o equipamento de apoio), terá de ser suficientemente robusta, cabendo aos seus propulsores lidar com o peso extra.

O que se segue? Em 2021, a NASA quer usar a Orion para uma missão tripulada em redor da Lua. Na década seguinte, pretende enviar astronautas até às órbitas de um asteroide e de Marte. No entanto, a primeira viagem ao Planeta Vermelho deverá durar entre 18 e 24 meses, além de que, provavelmente, ninguém pousará no planeta: a nave limitar-se-á a girar à sua volta e regressar. Segurança acima de tudo, dizem os yankees...

J.P.L.

Casulo. A nave espacial Orion, da NASA, é a grande esperança para levar seres humanos até Marte, em meados da década de 2030. Já está em testes, mas a primeira abordagem deverá ficar-se pela órbita do planeta.

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Espaço

Para além do que podemos distinguir através dos telescópios, poderá haver muitos outros universos.

Alguns, semelhantes ao nosso, talvez sejam habitados por infinitas versões de nós próprios. Noutros, governados por diferentes leis físicas, a vida talvez seja impossível. Eis o que sabemos,

até agora, sobre a natureza do multiverso.

Será a realidade esquizofrénica?

UniversosPARALELOS

N o dia 8 de outubro de 2014, um seleto grupo de físicos teóricos reuniu-se em Madrid para debater dois dos temas em voga no abstruso

mundo da teoria de cordas: o fenómeno da pai-sagem e o princípio antrópico. O primeiro refere que as equações da teoria permitem a existên-cia de um número colossal de possíveis univer-sos. O segundo procura explicar por que razão as constantes fundamentais da física têm o valor que têm, de modo a tornarem possível a existência de vida. Como não podia deixar de ser, falou-se de uma das soluções para a pro-fusão de perguntas sem resposta que surgem neste contexto: os universos paralelos, ou mul-tiverso, um termo que significa, no entanto, coisas diferentes consoante o cientista com quem se conversa.

Os físicos Andrei Linde e Alan Guth, dois dos maiores especialistas neste campo, defendem que, embora haja outros universos, encon-tram-se em regiões do espaço muito distantes da nossa, com as quais nunca entraremos em contacto. Os seus colegas Paul J. Steinhardt e Neil Turok afirmam que eles se situam em diferentes momentos temporais. Para Max Tegmark e o falecido Dennis Sciama, os outros cosmos são totalmente alheios ao nosso espaço-tempo.

Por outro lado, alguns cosmólogos defendem que o que acontece, na realidade, é que há

Desligados. Diferentes big bangs poderiam ter dado origem a realidades diversas. Porém, os físicos assinalam que não seria possível viajar entre elas.

zonas do universo que acabam por estar desli-gadas da nossa simplesmente por não poder-mos vislumbrá-las: como o cosmos nasceu de uma grande explosão, há cerca de 14 mil milhões de anos, e a luz viaja a uma veloci-dade finita e conhecida, o universo observável, tudo o que podemos ver e tudo o que nos pode afetar, possui um raio de cerca de 46 a 47 mil milhões de anos-luz. Tudo o que exista para além disso seria outro cosmos dentro do nosso próprio espaço-tempo.

A TODA A VELOCIDADEPara mergulharmos no mundo da especula-

ção teórica sobre a existência do multiverso, temos de partir de um conceito postulado pelo cosmólogo Alan Guth, em dezembro de 1979: a inflação. Defende que, passados 10–32 segundos do seu nascimento (cem milésimos de bilioné-simo de bilionésimo de segundo), o universo duplicou de tamanho quase um milhar de vezes. A transformação atinge tal magnitude que, se o mesmo acontecesse com o vírus da gripe, pas-saria a ser maior do que o atual cosmos visível num simples piscar de olhos.

Guth conseguiu explicar, deste modo, por que razão o universo é tão uniforme, um dos mistérios que dava dores de cabeça aos cos-mólogos: esse processo de expansão super--acelerada eliminaria praticamente todas as in-homogeneidades que pudessem ter surgido A

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com a deflagração inicial. Partindo dessa ideia, outros físicos teóricos, como o russo Andrei Linde, exploraram novas possibilidades. Por exemplo: por que teria de haver apenas uma época inflacionária que afetasse todo o cos-mos? Foi assim que nasceu a chamada “infla-ção eterna” ou caótica.

Para explicar o conceito, Linde sugere a seguinte analogia: imaginemos que o universo real é uma vulgar bola de futebol, com os seus hexágonos e pentágonos de cores diferentes. O processo de inflação afetaria o conjunto, mas de forma distinta nas diferentes zonas, que seriam os polígonos da bola. Cada um cres-ceria em tamanho de forma exponencial e não manteria uma ligação causal com qualquer outra figura geométrica. Assim, quem vivesse num pentágono castanho acreditaria que o universo é castanho; os que habitassem um hexágono amarelo pensariam que era daquela cor. Apli-

A radiação de fundo poderia tervestígios de outros universos

cado à cosmologia, cada polígono/universo estaria dentro da bola/multiverso. A cor seriam as leis físicas que o governam: alguns universos seriam muito simples, ao ponto de talvez não se poderem formar estrelas ou galáxias; noutros, poderia não ser possível o aparecimento de vida; talvez muitos outros, como o nosso, fos-sem verdadeiramente prolíficos. Tudo depen-deria das leis que se tivessem criado.

Seja como for, o multiverso surgido da inflação caótica atraiu a atenção de um grupo de físicos, convencidos de que tudo, das partículas às for-ças da natureza, pode ser explicado pela teo-ria de cordas. Esta considera que o universo é feito de um único tipo de ingrediente: filamen-tos de energia inimaginavelmente pequenos, as cordas. À semelhança das cordas de um vio-lino, proporcionam uma surpreendente varie-dade de notas: a cada partícula subatómica corresponde um modo de vibração de um único

tipo de corda. Partindo desse pressuposto, é possível conjugar as duas grandes teorias da física do século XX: a mecânica quântica, que descreve o mundo do muito pequeno, e a rela-tividade geral de Einstein, que explica o que é a gravidade.

COLOSSAL ERRO DE ESTIMATIVAOs físicos da teoria de cordas foram con-

frontados com um enorme problema, em 1997, quando se descobriu que o universo se está a expandir aceleradamente por causa de uma misteriosa energia escura. Quando os astróno-mos calcularam a quantidade de energia escura necessária para o cosmos poder carregar no acelerador como está a acontecer (nem de forma mais rápida, o que impediria que a matéria se organizasse para formar galáxias, nem de modo mais lento), depararam com um número tão diminuto (138 com dezenas e dezenas de zeros à esquerda) que ninguém conseguia explicá-lo. O mais surpreendente é que qualquer teoria atual prevê que o seu valor deveria ser muito maior do que o observado: na realidade, 1060 vezes maior. Trata-se, sem dúvida, do prognós-

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ANInflação espacial. Foi o cosmólogo

Alan Guth (na foto, nas instalações do MIT) que concebeu a teoria segundo a qual o universo aumentou enormemente de tamanho nos instantes a seguir ao Big Bang.

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tico mais desastroso da ciência, e um dos pro-blemas fundamentais da física do século XXI.

Pode dizer-se que foi este erro colossal na tentativa de explicar a densidade da energia escura que estabeleceu as bases do multiverso. Até então, estava tudo medianamente delimi-tado. O cosmos era algo mais ou menos defi-nido, e os físicos pensavam que as equações da teoria de cordas nos proporcionariam uma solução única e experimentalmente compro-vável através das observações efetuadas. A energia escura veio complicar tudo, e deu ori-gem ao fenómeno da paisagem que referimos no início: uma superabundância de possíveis universos compatíveis com o atual.

Se juntarmos a teoria da inflação à das cor-das, encontramos algo muito interessante. Por um lado, a inflação faz o espaço expandir-se até à eternidade. Os efeitos quânticos criariam novos universos; seria como se uma criança soprasse por um orifício para formar bolhas. Simultaneamente, a teoria de cordas assegura que tais bolhas não têm de ser semelhantes entre si, mas que cada uma poderia possuir dife-rentes tipos de partículas, forças e leis físicas.

Por outras palavras, o fenómeno da paisagem da teoria das cordas implica que haja 10500 possí-veis soluções (ou universos) para as suas equa-ções; a inflação leva a que todos esses possí-veis universos se tornem reais, que existam dentro de um multiverso inimaginavelmente grande.

Não é de estranhar que, perante tal perspe-tiva, muitos físicos tenham rejeitado a teoria de cordas. Todavia, outros não estão assim tão certos, pois ela põe ponto final à polémica questão que referimos anteriormente: por que é que as constantes físicas têm o valor que têm?

ÚNICO UNIVERSO COM VIDA?Se a carga do eletrão ou a velocidade da luz

não tivessem o valor que possuem, a vida no universo seria provavelmente impossível, um facto que dá muitas dores de cabeça aos espe-cialistas. A existência de múltiplos universos resolve a questão: há muitos, cada qual com propriedades físicas definidas, e nós habitamos um em que as constantes possuem a magni-tude necessária para a existência de vida. Caso contrário, obviamente, não estaríamos aqui.

Contudo, será que não estamos a utilizar um canhão para matar moscas? Será verdadeira-mente necessário invocar a existência de um número gigantesco de universos para explicar os pormenores do nosso?

Uma maneira de entender o ceticismo em relação ao multiverso é proporcionada pelo seguinte exemplo. Em 1766, o astrónomo Johann Titius descobriu uma fórmula empírica simples para prever a posição dos planetas do Sistema Solar, atribuindo um número a cada um: a Mercúrio, o 0; a Vénus, o 3; à Terra, o 6; a Marte, o 12... Isto é: a partir de Vénus, o número seguinte da série é o dobro do anterior. Calcula-se a distância em unidades astronómicas somando quatro ao valor correspondente ao planeta e, depois, dividindo por dez. A Terra encontra-se a uma UA da nossa estrela: 6+4=10; 10/10= 1. Porque será que a distância dos plane-tas ao Sol obedece a uma regra tão simples?

Não há uma explicação teórica para a fórmula em questão, que funciona na perfeição até Neptuno, exceto a proporcionada pelo mul-tiverso: dos 10500 que existem, vivemos num mundo em que se verifica essa estranha lei. A

GE

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YViajar no tempo... sem riscos

A hipótese dos mundos paralelos também resolve um sério problema das viagens

no tempo, o paradoxo do matricídio. O que aconteceria se recuasse no tempo (por exem-plo, numa máquina como a que surge no filme O Tempo nas Suas Mãos, de 1960, na foto) e matasse a sua mãe antes de ela conhecer o seu pai? O que poderia fazer então? Para físicos co-mo Stephen Hawking, o facto de essa rutura da causalidade poder ocorrer é motivo suficiente para existir no universo uma espécie de censura cósmica que impeça viagens desse tipo. Porém, se recorrermos ao conceito do multicosmos, existe uma solução possível: após o matricídio, viajaria para outra parte do universo onde a sua mãe não existe.

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A realidade seria formadapor bolhas alheias entre si

hipótese dos universos múltiplos permite expli-car tudo. Segundo os céticos, algo que oferece soluções para praticamente todas as questões, no fundo, não explica nada.

Existe alguma maneira de comprovar a exis-tência desses outros mundos paralelos para além dos cálculos no quadro negro dos gabinetes dos físicos? Alguns pensam que poderia haver vestígios ocultos na radiação de fundo, ou que esta talvez contenha informação sobre outros universos que existiram antes do nosso; outros procuram determinar a topologia do cosmos. Por exemplo, se este exibisse uma forma seme-lhante à de um donut, teria um tamanho finito, o que eliminaria a maior parte das versões da inflação e, em particular, a hipótese do mul-tiverso com base na inflação caótica. Neste ponto, a única coisa que parece clara é que o multiverso constitui, sobretudo, um conceito, e não uma teoria bem definida.

Quase todas as propostas sobre o tema não passam, geralmente, de uma colagem de ideias. Assim, mesmo que o mecanismo da inflação

Quatro tipos de multiversoA s ideias pouco ortodo-

xas de Max Tegmark (na foto) valeram-lhe a alcunha de Mad Max. Se-gundo este físico do MIT, há quatro tipos de multiverso. O primeiro estaria integrado por um espaço infinito que conteria o universo observá-vel e um número ilimitado de outros, situados para além do nosso horizonte cósmi-co, se bem que de natureza semelhante. No de tipo II, os universos emanariam de diferentes big bangs e poderiam apresentar proprie-dades físicas diferentes. O multiverso de tipo III implica que cada variação quântica produz uma divisão de todo o cosmos, pelo que haveria infinitas versões de tudo. A culminar o processo, tería-mos o de tipo IV, cuja exis-tência, proposta pelo próprio Tegmark, estaria para além do espaço e do tempo; nele, a matemática existiria como realidade física.

caótica estivesse certo, não determinaria, por si só, que a física fosse diferente noutro universo. Para isso acontecer, é preciso que seja acom-panhado pela teoria de cordas, que é ainda mais especulativa.

CÓPIAS DE NÓS PRÓPRIOSOra bem: e se a existência dos universos

paralelos estivesse vinculada a algo muito mais profundo e tão comprovado como a mecâ-nica quântica? Nesse caso, poderíamos estar a conviver com diferentes universos no nosso próprio espaço-tempo. Muitos deles seriam mesmo praticamente iguais ao nosso, e seriam habitados por diferentes versões de nós pró-prios. É o que defende a chamada “interpreta-ção dos muitos mundos” da teoria quântica, formulada por Hugh Everett III em 1957 e pos-teriormente aperfeiçoada por Neil Graham e Bryce DeWitt, em 1970.

Em 1982, Hugh Everett III, de 51 anos, foi encontrado morto na cama pelo filho adoles-cente. Uma paragem cardíaca tinha levado

deste mundo o pai dos universos paralelos, um físico que gostava de comer, fumar e beber, e que receava a medicina convencional. Deixara escrito que, depois de morrer, as suas cinzas deveriam ser lançadas no lixo, desejo que a mulher levou vários anos a cumprir. O seu tra-balho sobre os muitos mundos (um nome que desagrada aos físicos que apoiam a inter-pretação, como Stephen Hawking e Murray Gell-Mann, os quais preferem designá-la por “muitas histórias”) é, fundamentalmente, uma solução para o problema da medida na mecânica quântica.

Todo o sistema subatómico é definido com precisão por um ente matemático, a sua fun-ção de onda. Permite-nos prever, sem margem para erro, como irá evoluir o sistema. Porém, contém nas suas entranhas uma indetermina-ção básica insolúvel: a função de onda não nos diz que valores serão adquiridos pelas proprie-dades físicas do sistema, mas quais os resul-tados possíveis que podemos obter de uma medida e as correspondentes probabilidades: por exemplo, que haja 50% de possibilidades de o spin de um protão ter um valor de 1/2. Só quando efetuamos a prova experimental pode-remos saber que valor adquire: o fenómeno é conhecido por “colapso da função de onda”.

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partes que surgem da divisão, na outra, sobre-viveria. Ao fim dos cem segundos, o nosso suicida teria morrido em todos os universos, exceto num.

“Nesse pressuposto, o experimentador descobrirá que é imortal”, afirma o físico Max Tegmark. Se a proposta defendida por Everett estiver correta, ele saberá com absoluta certeza que tem 100% de probabilidades de ultrapassar a prova, pois haverá um universo em que não morrerá. Por outro lado, nesse mundo, não seria outra pessoa diferente, mas uma cópia fiel de si próprio: a única diferença em relação às outras versões é que não teria uma bala alo-jada na cabeça.

Evidentemente, ninguém tem consciência de que se produz tal multiplicação de universos, entre os quais também não pode haver qualquer contacto possível. A ideia de existirem inúmeras cópias do nosso corpo e do nosso eu pode cho-car, mas a verdade é que a teoria sobre a qual se apoia está provada. O físico Bryce DeWitt, já falecido, explicava as coisas assim: “Cada tran-sição quântica que ocorre em cada estrela, em cada recanto remoto do universo, divide o nosso mundo em miríades de versões de si próprio. É pura esquizofrenia!”

M.A.S.

Esta indeterminação (não sabemos, a priori, o valor que vamos medir, apenas a probabilidade do resultado) tem sido debatida pelos físicos desde que surgiu a teoria quântica, na década de 1920; na nossa cabeça, é inconcebível que um sistema não tenha propriedades bem definidas.

Foram sugeridas diferentes formas de enca-rar o facto: a primeira (e mais aceite, geral-mente) é a interpretação de Copenhaga. Afirma que é necessário assimilar o mundo tal como é, pois nenhum sistema possui propriedades defi-nidas até alguém ou algo as determinar. Dito de forma poética, a Lua não existe até alguém a olhar.

Outra é a proposta radical de Everett, a qual assegura que, quando se obtém uma medida, como a do spin do protão, o universo inteiro divide-se em dois: num, o sistema adquire o valor de 1/2; no outro, o de –1/2. Desse modo, teríamos dois universos absolutamente idên-ticos no seu conteúdo, tirando essa diferença insignificante nas propriedades de um único protão. Todavia, é o que ocorre de cada vez que se obtém alguma medida no mundo sub-atómico, em qualquer lugar do universo.

Sendo assim, vivemos num cosmos com uma infinidade de universos paralelos. Curiosa-mente, se a interpretação dos muitos mundos

estiver correta, então somos imortais. Para compreender esse aspeto, devemos tomar em consideração um estranho paradoxo: o suicídio quântico.

SEMPRE VIVOSImaginemos que um professor de física, can-

sado de dar voltas à cabeça para decidir que teoria poderá explicar melhor a autêntica natu-reza do multiverso, decide pôr fim à vida de uma maneira muito estranha. Fabrica um apa-relho que segura um revólver apontado à sua cabeça. Há um dispositivo, ligado ao gatilho, que determina o spin de um protão de dez em dez segundos. Se obtém o valor 1/2, a arma dis-para e mata o físico. Se sai –1/2, apenas se ouve um clique. Nesse caso, o aparelho vai buscar um novo protão e o processo recomeça, até perfazer dez vezes. Que diriam disto a interpre-tação de Copenhaga e a dos muitos mundos? Segundo a primeira hipótese, o físico tem uma probabilidade de 50% de sobreviver aos primei-ros dez segundos; de 25% aos vinte segundos, e apenas uma probabilidade de 0,1 % de continuar vivo passados os cem segundos. A situação é muito diferente no caso da segunda hipótese. Como o universo se divide em dois em cada dez segundos, enquanto o físico morre numa das

É permitido roçarE m outubro de 2014, a interpretação dos muitos

mundos conheceu uma nova variante, publicada na revista Physical Review X por Michael J.W. Hall, do Centro de Dinâmica Quântica da Universidade Griffith, na Austrália, e pelos seus colaboradores. Nela, não só se propõe que os universos paralelos são reais como, também, que podem colidir. A hipótese teria quatro premissas básicas. A primeira é que não existe um aumento contínuo de universos, mas um número fixo (embora gigantesco) de mundos. Segunda: não há cisões devido à incerteza quântica, pois cada mundo é especificado pela posição exata e pela velocidade de cada partícula. Terceira: estes mundos interagem entre si através de um tipo de força repulsiva muito particular, a qual impede que dois mundos próximos acabem por ter a mesma con-figuração, e fá-los divergir uns dos outros; contudo, a interação entre universos próximos daria origem aos estranhos fenómenos que presidem à mecânica quântica. Finalmente, a quarta: cada um dos mundos é igualmente provável. A probabilidade só entra em jogo porque um observador não sabe ao certo em que mundo está; apenas sabe que se encontra num conjunto de mundos. Com base nestes quatro pila-res, os físicos elaboraram uma interpretação dos mui-tos mundos em interação, através da qual dão conta de todas as características da mecânica quântica. É uma nova versão de um cosmos cheio de universos paralelos que convivem uns com os outros no mes-mo tecido do espaço-tempo: trata-se de universos fantasma que partilham o mesmo espaço, mas vivem em diferentes funções de onda.

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Tecnologia

Televisão, comunicações, GPS... A nossa forma de vida depende das redes de satélites, crescentemente ameaçadas

pelo aumento persistente da sucata orbital.

Como eliminar o lixo espacial?

De olho na SUCATA

O filme Gravity, vencedor de sete Oscars em 2014, começa com os russos a fazerem explodir um dos seus velhos satélites inutilizados.

Um vaivém espacial é destruído pelos frag-mentos, que se mantêm em órbita e vão des-truindo mais engenhos, o que produz cada vez mais resíduos e devastação. Pura ficção científica?

Donald Kessler, antigo responsável da NASA pela investigação relacionada com a sucata orbital, vaticinou nos anos 70 que se produ-ziriam colisões em cascata se fosse ultrapas-sada uma densidade crítica de lixo espacial. Um choque entre tais nuvens de resíduos produziria milhões de fragmentos que, a uma velocidade aproximada de cerca de sete qui-lómetros por segundo (dez vezes superior à de uma bala), poderiam estilhaçar tudo o que encontrassem pelo caminho como se fosse vidro. Os impactos tornar-se-iam tão frequen-tes que impossibilitariam o sistema de satéli-tes terrestres. Apesar de não existir consenso científico sobre quando isso poderá ocorrer (anos ou décadas), ninguém duvida de que a síndrome de Kessler, como se designou tal cenário, se produzirá, dado que já foi ultrapas-sada a quantidade máxima de entulho espacial considerada segura.

A primeira pedra do aterro espacial foi colo-cada em 1957, quando a União Soviética lançou o Sputnik 1, o primeiro satélite artificial da huma-nidade. Hoje, o Programa para os Resíduos Orbitais da NASA estima que foram lançados mais de 6000, dos quais apenas cerca de 800 se mantêm ativos. Não se conhece o seu número

Céu aberto. Fragmentos de foguetes, satélites abandonados, restos de explosões, ferramentas, pedaços de tinta... A órbita terrestre parece cada vez mais uma lixeira.

exato, pois nenhuma potência revela quantos “espiões” voam sobre as nossas cabeças. Seja como for, ao terminarem as suas missões, na maior parte dos casos, os satélites são aban-donados e permanecem à deriva. As colisões entre objetos e consequentes explosões, assim como as ferramentas que os astronautas dei-xaram escapar acidentalmente, criaram uma ameaçadora nuvem de sucata.

Já foram localizados mais de 21 mil objetos com mais de dez centímetros, segundo Emmet Fletcher, perito em detritos orbitais da Agência Espacial Europeia (ESA): “Isso constitui 99 por cento da massa em órbita; o resto é composto por cerca de 600 mil objetos de 1 a 10 cm, e por uns 35 milhões com 2 mm a 1 cm. Prevê-se que ocorra uma colisão a cada três anos, pelo que, mesmo que não seja lançado mais um satélite, o lixo continuará a aumentar. A prioridade tem de ser apanhar os objetos grandes, os mais perigosos, pois gerariam, se colidissem, uma quantidade de lixo impressionante.”

ARPÕES, REDES E RAIOS LASERA ESA irá enviar para o espaço, em 2021, a

missão e.DeOrbit, que se destina a capturar com uma espécie de arpão tecnológico os cadá-veres dos foguetes que colocam os satélites em órbita e que são, em muitos casos, abando-nados à sua sorte. “Essas peças pesam entre duas e oito toneladas e têm o tamanho de um autocarro. Retirá-las enquanto estão intactas reduz o risco para todos”, diz o especialista.

O arpão da ESA não é o único engenho ins-pirado na arte da pesca destinado a recolher

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a sucata espacial. A Agência Japonesa para a Exploração Aeroespacial (JAXA) aposta numa rede, uma estrutura de 30 cm de largura e 300 metros de comprimento, que seria colocada em órbita. Não se limitaria a reter os fragmen-tos como se fosse um enorme coador, mas as fibras milimétricas de metal criariam um campo magnético que não deixaria fugir os detritos nas proximidades. Pouco a pouco, todo o conjunto seria atraído pela gravidade terrestre e acabaria por se precipitar e desintegrar na atmosfera.

Segundo Javier Roa, do LeoSweep, “muito desse lixo cria o problema acrescido de girar sobre si mesmo a grande velocidade, o que torna qualquer aproximação difícil e perigosa”. O LeoSweep é um projeto europeu que se pro-põe controlar a sucata a partir de uma distân-cia de dez metros. O fator essencial da opera-ção recai no Ion-Beam Shepherd (IBS), um saté-lite que projetaria iões sobre o objeto à deriva de modo a empurrá-lo e dirigi-lo até ao ponto em que a ação da gravidade o faria precipitar. “São como uma espécie de bolinhas que, dis-paradas continuamente durante anos, conse-guem detê-lo e fazê-lo descer para uma órbita mais baixa”, explica Roa.

TEMPESTADE DE IDEIASOs resíduos espaciais já causaram vários sus-

tos. Em 1994, por exemplo, um fragmento da pintura do vaivém espacial Endeavour despren-deu-se e esteve prestes a quebrar uma janela da nave. Um parafuso à deriva poderia colidir contra uma nave com uma força equivalente à explosão de uma granada de mão. Perante o risco crescente de que isso possa ocorrer, os satélites têm de integrar escudos que os protegem durante o lançamento, os quais aumentam o peso, o que por sua vez aumenta a quantidade de combustível necessário e encarece as missões.

“O impacto de um detrito de cerca de 2 cm pode tornar uma nave inoperacional. São frag-mentos difíceis de evitar, pois as suas órbitas são muito mais complexas de prever do que as dos maiores”, afirma Francesc Díaz, do Clean-Space, projeto europeu baseado num raio laser que seria disparado da Terra contra resíduos espaciais de até 20 cm. O laser impeliria os

Em 1996, o satélite francês

Ceriseficou muito danificado

por um pedaço de sucata

objetos para órbitas mais baixas, fazendo-os reentrar na atmosfera e desaparecer de forma controlada.

CleanSpace é também o nome da nave desenvolvida pelo Centro Espacial Suíço, que prevê lançá-la já em 2017, com o objetivo de remover resíduos orbitais do tamanho de um telemóvel grande. Poderá recolher os objetos com um braço articulado e navegar com eles até se introduzir na atmosfera, onde se calcinará com a carga. O primeiro satélite suíço, o Swiss-Cube, um cubo com um quilo de peso e dez centímetros de lado que se desloca a 28 mil quilómetros por hora, deverá cair nas garras deste varredor espacial inspirado, segundo Volker Gass, diretor do centro, no princípio do poluidor responsável: se cada um varresse a área diante da sua porta, o espaço estaria limpo. Segundo os seus impulsionadores, a missão do CleanSpace One será a primeira de uma longa série.

Este tipo de iniciativas demonstra que existe uma consciência internacional da necessidade de manter a órbita terrestre transitável e segura. Assim, o projeto alemão DEOS está a trabalhar num satélite que possa apreender e

reparar a sucata. Por sua vez, a França optou por desenvolver naves rebocadoras.

SÓ HÁ DUAS SOLUÇÕESO Envisat, o maior satélite fabricado na

Europa até agora, permaneceu operacional durante uma década, reunindo dados sobre o aquecimento global, a poluição atmosférica e os riscos de desastres naturais. Desde abril de 2012, quando se perderam as comunicações com o satélite, vagueia à deriva, um ameaçador icebergue de 8,2 toneladas que viaja a uma velocidade de vários quilómetros por segundo. Por que motivo não foram previstos mecanis-mos para fazê-lo desaparecer antes de termi-nar a sua vida útil?

Resposta: o custo que implica varrê-lo do espaço. Como qualquer outro objeto que orbite em redor da Terra, as formas de removê--lo são duas: desorbitá-lo (baixá-lo de altura para que se desintegre ao reentrar na atmos-fera terrestre), ou elevá-lo para órbitas cemité-rio, onde deixa de constituir uma ameaça. Em ambos os casos, a nave precisa de combustível para poder exceutar essa manobra final, o que encarece a missão.

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A preços atuais, cada quilo suplementar colocado em órbita representa cerca de dez mil euros. Por isso, procura-se agora encontrar alternativas mais leves (menos dez a quinze quilos de peso) aos motores de propulsão ou às velas espaciais, como a amarra eletrodinâmica. Trata-se de uma faixa de alumínio com alguns quilómetros de comprimento, vários centíme-tros de largura mas apenas milésimos de milí-metro de espessura, que seria lançada ao ter-minar a missão do satélite a remover. A tira iria travando o objeto, agindo como um paraque-das, até fazê-lo regressar à atmosfera terrestre. Utilizaria, para isso, a frição eletrodinâmica, em vez de aproveitar a quase inexistente resistên-cia aerodinâmica, cuja ausência é o principal fator que retira eficácia às velas espaciais. Trata-se de uma tecnologia que não exige grande potência final, e sem mecanismos com-plexos que possam falhar à última hora.

TELESCÓPIOS ATENTOSApesar de não existir um tratado interna-

cional que obrigue os países a eliminar o lixo espacial que produzem, há recomendações e diretrizes de organismos oficiais que procuram

Olho de águia. O Centro de Controlo do Space Fence (vedação espacial), da Lockheed Martin, já em testes e para ficar operacional em 2017, rastreará, segundo os seus responsáveis, um quarto de todos os resíduos orbitais do planeta.

mitigar o problema, como a que aconselha que as missões sejam concebidas para a reentrada atmosférica ocorrer (de forma natural ou atra-vés de algum sistema) no prazo máximo de 25 anos. No entanto, enquanto se espera que estas práticas entrem em vigor, é preciso lidar com a realidade.

Segundo o astrónomo Ángel Alonso, gestor da Estação Ótica Terrestre (OGS) do Instituto Astrofísico das Canárias, “colocar atualmente um satélite em órbita é como entrar num campo de batalha sob fogo cruzado”. Um satélite custa, em média, uns mil milhões de euros; o seu lançamento custará cerca de 300 milhões. Isso explica a necessidade de saber onde estão os objetos que poderão pô-lo em perigo, assim como as suas trajetórias. O OGS, do Observatório de Teide (Tenerife), a par de radares situados em Espanha, no Reino Unido, na Alemanha, em França e na Suíça, formam a rede de vigilância do lixo espacial que a ESA possui desde 2008. Em conjunto com a NASA, a JAXA e outras agências espaciais, esquadrinha sistematicamente o firmamento em busca de detritos.

“O OGS deteta objetos de 10 cm de compri-

mento situados a 37 000 km da Terra”, explica Alonso, acrescentando: “São 5000 vezes mais pequenos do que o olho humano consegue observar.” Para poder encontrá-los, o luar não pode ser muito forte, o que limita os dias de observação a metade do ano. O telescópio fixa um ponto do céu e surgem as imagens típicas de estrelas a deixar uma esteira na direção da rotação da Terra. Se surgirem outros pontos de luz que permanecem imóveis ou deixam um rasto noutra direção, é porque está ali um pedaço de sucata.

INVENTÁRIO DA SUCATA“Depois”, explica Alonso, “segue-se a sua

trajetória durante vários dias. Se se demonstrar que é um novo fragmento, é incorporado numa base de dados partilhada por todas as agências espaciais.” O registo é de consulta obrigatória para todos os que se preparam para lançar uma missão ou para os que vigiam as suas naves para não colidirem com objetos. Todavia, nem toda a informação pormenorizada se encontra disponível, e abundam os pedidos entre orga-nismos, cujas respostas podem demorar. Em situações em que o fator tempo é crucial, como no caso da perda repentina de contacto com uma missão, isso pode ser um problema. No caso da ESA, os cinco satélites que controla efetuam entre quatro e seis manobras por ano para evitar fragmentos de sucata, mas o número tem vindo a aumentar. Por isso, em outubro passado, a agência assinou um acordo com o Comando Estratégico do Departamento de Defesa dos Estados Unidos a fim de trocar infor-mação sobre trajetórias de objetos de forma mais fluida e rápida.

Em busca de oportunidades de negócio, as empresas privadas começaram também a criar mapas pormenorizados do lixo em órbita. A Lockheed Martin, um gigante da indústria aeroespacial, e a empresa australiana Electro Optic Systems (EOS) estão a construir, na Austrália Ocidental, uma instalação para pes-quisa de resíduos extraterrestres. Segundo a multinacional, “a estação ficará operacional em 2016 e proporcionará uma capacidade de acompanhamento equivalente a 25% da que é oferecida, atualmente, por toda a indústria espacial mundial, além de uma precisão melhorada”.

Emmet Fletcher acredita que, “no futuro, será muito difícil operar no espaço”. Não sabe que técnicas se revelarão mais eficazes contra o problema, mas, atualmente, quando ainda não se começou sequer a recolher o lixo espacial, a única coisa clara para o especialista é que “está tudo por fazer”.

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Astronomia

Recuar seis mil milhões de anos, para ver que tipos de estruturas existiam no universo e o

seu impacto na evolução das galáxias. Eis o que fez um grupo internacional de astrónomos, no

qual se inclui David Sobral. O que descobriram? Enxames galácticos ligados em rede e muitas estrelas a nascer onde menos se esperava.

As estruturas do universo

Uma rede CÓSMICA

H á 13,8 mil milhões de anos, se hou-vesse galáxias, a distância entre elas seria igual a zero. Para sermos mais corretos, todo o universo estava

concentrado num ponto incrivelmente pequeno, muito quente e denso: não havia espaço, nem tempo, nem nada do que hoje em dia vemos. No início, foi o Big Bang, a que se seguiu uma súbita fase de crescimento, a infla-ção cósmica, que esticou o espaço de forma brutal e multiplicou por números loucos o seu tamanho. No entanto, o universo que daqui resultou não é perfeitamente uniforme, pois houve pequenas flutuações quânticas, à escala atómica, que foram ampliadas com a inflação, criando a estrutura em grande escala do cos-mos. É assim que temos as galáxias e os grandes enxames por elas formados, mas há mais para contar.

O investigador David Sobral, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, fez parte de uma equipa internacional que analisou a estru-tura em larga escala do universo, quando este tinha quase metade da sua idade atual. Mais especificamente, estudou-se a chamada “rede cósmica”, de modo a perceber que papel teve na evolução das galáxias: “A rede cósmica é formada por nódulos de grande densidade onde se formam os enxames galácticos, mas, pelo meio, existem zonas de baixa densidade, com menos galáxias, cabendo depois aos

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filamentos (zonas de densidade intermédia) fazer a ligação entre os nódulos”, explica o astrónomo português. Que novidades encon-traram? “Olhámos para uma zona do espaço e recuámos seis mil milhões de anos, em busca de filamentos, ou seja, da rede cósmica, para ver de que forma ela influencia a evolução das galáxias que aí residem. Chegámos à conclusão de que as galáxias aí situadas têm uma maior probabilidade de estar ativas e a produzir estrelas.”

CIDADE VS CAMPOEsta revelação tem o seu impacto, pois

atualmente o que existe (o que se vê) no uni-verso é uma espécie de dicotomia entre as zonas de “cidade” e de “campo”. O que são as zonas de “cidade”? São os grandes enxames galácticos, neste caso formados por galáxias moribundas. Apesar de ser aí que existem mais estrelas, elas foram formadas há muito tempo, sendo raro o nascimento de novos astros. Isto sucede, julga-se, porque a sua produção em massa, no passado, “não só gastou rapida-mente o gás que lhes servia de combustível, como levou a fenómenos que fazem parar a formação estelar”, diz David Sobral. Por opo-sição, é nas zonas de “campo”, bem menos densas, que há mais probabilidades de se for-marem novas estrelas. A crer no resultado da investigação, publicada na revista Astrophysi-

cal Journal (http://ow.ly/Is8xE), em novembro passado, nem sempre foi assim.

Ao que tudo aponta, foi encontrada uma prova de que, antigamente, os filamentos eram importantes para estimular a formação de galáxias e a sua evolução. Foi uma surpresa! “Cabe a eles ligar as galáxias aos enxames e, se elas forem pré-processadas nesses filamentos, então, à medida que forem caindo para dentro do enxame, é possível que, quando lá cheguem, já tenham gasto a maior parte do seu gás”, resume o investigador. Uma vez no interior do enxame, e devido ao denso ambiente aí exis-tente, acabam por morrer.

Segundo Bahram Mobasher, coautor da investigação, os resultados obtidos também mostram que, “provavelmente, os filamen-tos aumentam as hipóteses de existirem in ter ações gravitacionais entre as galáxias, o

Esqueleto. A “rede cósmica”, uma estrutura em larga escala composta por galáxias e enxames galácticos, teve um papel importante, no universo distante, na evolução e formação dos grande sistemas que albergava. Na imagem, baseada em simulações, é possível ter uma ideia dos nódulos existentes (os enxames galácticos) e dos filamentos (compostos por galáxias) que os ligavam.

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que, por sua vez, resulta neste aumento de formação de estrelas”, refere no website da Universidade da Califórnia em Riverside. Mais: “Existem evidências, no nosso universo local, de que este processo em filamentos também ocorre nos dias de hoje.”

O UNIVERSO EM FATIASImportante para chegar a estas conclusões

foram os dados obtidos por quatro dos melho-res telescópios do mundo: o Hubble, que se encontra no espaço, o Very Large Telescope (no Chile), o UKIRT e o Subaru (ambos no Hawai). A eles juntou-se a informação de dois levanta-mentos cosmológicos: o COSMOS e o HiZELS.

O HiZELS foi, precisamente, o projeto para o qual David Sobral ganhou, em 2012, um finan-ciamento no valor de 250 mil euros, tendo liderado a maior parte dos estudos publicados

com base nesta pesquisa. Basicamente, o que o astrónomo português e os seus colegas estran-geiros fizeram, com a ajuda de telescópios, foi registar o nível de formação estelar das galá-xias ao longo do tempo, para determinadas secções do céu. Deste modo, foi possível obter imagens, para um mesmo local do universo, tal como ele era há dois, seis ou doze mil milhões de anos, o que possibilitou, por exemplo, analisar a evolução da formação estelar nas galáxias encontradas. “Numa dessas fatias do universo longínquo, detetámos, por acaso, estruturas gigantes e muito lineares que evi-denciavam a presença de filamentos”, indica.

Por coincidência, Benham Darvish, investiga-dor na mesma universidade californiana, estava na altura a desenvolver um método compu-tacional capaz de identificar e quantificar tais estruturas. Bastou, portanto, usar esta nova

ferramenta para analisar melhor aquilo que a equipa de David Sobral tinha encontrado. Foi assim, através desta união de esforços, que se conseguiu identificar os filamentos e, por sua vez, analisar a importância da rede cósmica.

O que se segue? Antes de mais, é preciso mencionar que há muitas outras equipas nesta nova área de investigação. Todavia, aponta o português, “fomos os primeiros a mostrar que é possível fazer estes estudos recuando muito mais no tempo”, sem ficar cingido ao universo local. Entretanto, a equipa pretende ir mais longe nas suas pesquisas. De momento, estão a tentar fazer o mesmo tipo de análise para várias épocas do universo, desde a atua-lidade até há 12 mil milhões de anos, uma máquina do tempo que nos poderá dizer como evoluíram as galáxias desde as eras primitivas.

J.P.L.

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História

O investigador e historiador Henrique Leitão, vencedor do Prémio Pessoa 2014, dá-nos a conhecer uma das figuras mais geniais

que Portugal viu nascer. Falamos de Pedro Nunes, um matemático do século XVI que nunca colocou os pés num barco, mas cujos cálculos ajudaram

os navegadores a conquistar os oceanos.

O maior cientista português

Personagem RARA

E sta é a obra mais importante da história da ciência em Portugal”, diz Henrique Leitão sem papas na língua, apon-tando para uma longa fila de livros

dentro de um enorme caixote de cartão. Não é de somenos, pois trata-se dos textos comple-tos, comentados e explicados de forma crítica, do matemático Pedro Nunes (1502–1578), o maior cientista português de todos os tempos. A façanha de reunir e organizar o trabalho científico de um dos grandes vultos da ciência europeia do século XVI começou em 2002, com as primeiras edições a verem a luz do dia em 2008. Ainda há muito por fazer. O investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia de Lisboa esteve à frente dessa missão, como coordenador científico de uma equipa composta por meia dúzia de espe-cialistas de diferentes áreas, desde tradutores a petitos em ótica (para melhor visualizar o que foi escrito), passando por matemáticos. Os textos de Pedro Nunes assim o exigem: os manuscritos, com centenas de páginas, “são quase impenetráveis”, devido à sua tecnici-dade matemática. Está explicado porque é que só muito recentemente se arregaçaram as mangas para tentar conhecer a fundo o contri-buto desta figura histórica.

Em finais de 2014, Henrique Leitão foi apa-nhado de surpresa quando o avisaram de que ganhara o Prémio Pessoa. A razão para a dis-

O mito e a realidade. Henrique Leitão deixou para trás uma carreira como físico e dedicou-se à historia das ciências. Em 2002, tornou-se o coordenador científico da equipa responsável por reunir e organizar o trabalho do matemático Pedro Nunes. Um dos resultados foi um crescente interesse, lá fora, pela ciência portuguesa no período dos Descobrimentos. Criador da navegação matemática, Pedro Nunes é uma das personagens que figuram no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa (com a esfera armilar nas mãos).

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tinção? Foi graças a ele e aos seus colegas que a história das ciências em Portugal, especial-mente o nome de Pedro Nunes, começou a ser falada e estudada no estrangeiro. De facto, o que se descobriu foi que o matemático seiscen-tista não é um mito histórico construído pelos portugueses, pois os grandes astrónomos e matemáticos europeus da época referiam-no como sendo o melhor entre eles, criador de uma nova forma de abordar a navegação que permi-tiu aos descobridores embrenharem-se pelos oceanos. Mais: ficou-se a saber que ele não sur-giu no meio de um deserto de ideias, como se costuma pensar, tendo existido outras figuras proeminentes da ciência portuguesa antes de Pedro Nunes, que até há pouco tempo eram quase desconhecidas. Ainda só estamos a ver a ponta do icebergue, esperando-se que muitos livros tenham de ser reescritos, dá a entender o historiador.

O interesse de Pedro Nunes passou pela mate-mática e pela astronomia, pese embora tivesse estudado, inicialmente, medicina. Devido às obras que produziu, podemos considerá-lo o pai de toda uma nova ciência relacionada com a navegação astronómica, assente na matemática e com uma grande utilidade prática?

Pedro Nunes foi a primeira pessoa, na Europa, a perceber que, por detrás da navegação em longa distância (nos oceanos e não junto às costas), está uma matemática muito complexa.

Foi o primeiro a inspirar-se nos problemas náu-ticos e a transformá-los em problemas mate-máticos, estudando-os. Isto deu origem a uma disciplina que é a navegação matemática. Atualmente, se abrirmos um manual de nave-gação, na primeira página estão explicitados os conceitos que foram inventados por Pedro Nunes: a linha de rumo (a curva loxodrómica, que representa uma rota em espiral) e outros, que são básicos para qualquer pessoa que per-ceba de navegação a longa distância ou que pilote aviões.

Embora não passasse de um matemático, consta que o alcance do seu trabalho, em pleno século XVI, ajudou a mudar a maneira como mui-tos olhavam para os fenómenos da natureza.

Curiosamente, Pedro Nunes nunca entrou num barco. Ele era um matemático puro. O que lhe interessava eram os problemas abs-

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tratos, tendo sido a partir deles que surgiram muitas coisas novas que influenciaram, e bas-tante, a matemática. Isto teve um impacto na Europa, por diversas razões, nos séculos XVI e XVII. É um período histórico em que se está a demonstrar que a matemática permite explicar as coisas de uma forma bem melhor. Trata-se do grande facto científico da época: a aplicação da matemática no estudo dos fenómenos da natureza. Pedro Nunes fez precisamente isso, mas para a náutica, e, de repente, ficou bas-tante claro que essa área pode ser estudada através de questões matemáticas muito com-plexas, sofisticadas e interessantes. Este é o grande contributo de Pedro Nunes. Ele foi uma das figuras mais proeminentes de um movimento europeu que mostrou existirem imensas outras áreas em que a aplicação da matemática é extremamente útil.

O instrumento mais conhecido que criou foi o nónio, capaz de obter uma maior precisão na leitura dos ângulos. O astrónomo dinamarquês Tycho Brahe fez referência ao nónio em algumas publicações suas e, mais tarde, o alemão Johan-nes Kepler representou-o no frontispício de um dos seus livros. Estamos a falar de um instru-mento muito importante?

O nónio foi, somente, uma das imensas coisas que ele fez. Em Portugal, o instrumento tor-nou-se muito célebre, mas eu digo sempre isto: o Pedro Nunes não seria famoso só por causa do nónio. O Tycho Brahe construiu cerca de quatro exemplares e depois discutiu a sua precisão. O que ele conclui, tal como toda a gente, é que se trata de uma ideia muito boa mas de complicada execução. É um instrumento interessante, mas não muito prático. Contudo, a sua ideia será posteriormente desenvolvida por outros.

Pedro Nunes foi citado por muitos autores de renome nos séculos XVI e XVII, o que atesta a marca que deixou além-fronteiras. Contudo, foi o astrónomo alemão Christophorus Clavius quem mais o referenciou, tendo ajudado a espalhar o nome e as ideias de Pedro Nunes pelo Velho Continente. Houve alguma razão em especial?

As referências feitas por Brahe e Kepler, por exemplo, são pequenas indicações de como, na Europa, tudo o que Pedro Nunes escrevia era imediatamente lido e estudado. As pessoas sabiam que dele vinham boas ideias. Clavius, que estudou na Universidade de Coimbra, na segunda metade do século XVI, cita-o muitas vezes. Ele foi muito importante na divulgação do trabalho do português. Fez parte da geração

Pedro Nunes interveio

no momentoem que nascia

a ciência

que veio a seguir à de Pedro Nunes e, apesar de não o ter conhecido ou estudado com ele, deve ter ouvido falar dele em Coimbra. Porque foi Clavius importante? Porque tinha um papel de autoridade junto dos matemáticos jesuítas, que tinham muitos colégios espalhados pela Europa. Por via de Clavius, as obras de Pedro Nunes foram aí recomendadas, para leitura e estudo.

Ao que tudo indica, ele era um judeu conver-tido ao cristianismo, um cristão-novo.

Aparentemente! Os historiadores ainda dis-cutem isso. Sabe-se que os seus netos foram perseguidos pela Inquisição, sendo consensual que veio de uma família de cristãos-novos, pelo menos, mas nada se sabe sobre as suas origens e as da sua família. Nasceu em 1502, mas a pri-meira documentação fidedigna que temos dele é quando está a estudar em Salamanca, na década de 1520. Quando aparece no radar dos historiadores, é enquanto aluno universitário. Sabemos que é de Alcácer do Sal porque, como era habitual na época, assina sempre dizendo “Pedro Nunes de Alcácer do Sal”.

Porque nunca foi ele perseguido em Portugal, tal como aconteceu com outros judeus converti-dos ou filhos de judeus?

Em 1529 [com 27 anos], já está a trabalhar na corte portuguesa, e isso é surpreendente. Nesse ano, ele ainda não tinha dado provas do que fosse, mas já era tutor para os assuntos científicos junto dos irmãos mais novos do rei D. João III. Não sabemos porquê, mas podemos especular que a família dele tivesse algumas ligações à casa real ou a famílias a ela ligadas.

Ele tem o percurso de uma família abastada: vai estudar para fora, apesar de não ser membro de uma ordem religiosa, o que coloca o problema de como é que arranjava o dinheiro. Depois, regressa a Portugal e mantém-se, durante toda a sua vida, muito próximo da corte: é amigo pes-soal de D. João III e, sobretudo, dos irmãos do monarca, em particular D. Luís, mas também se mantém próximo do cardeal D. Henrique. Ou seja, sempre teve uma imensa proteção por parte da casa real. A sua carreira não se compreende sem a proteção que teve do rei: foi um seu protegido.

NEM OITO, NEM OITENTA!Houve um contexto científico, em Portugal,

que permitisse a uma figura como Pedro Nunes desabrochar e desenvolver as suas ideias? Uma ideia muito comum é que ele foi um caso que fugiu à norma e que a nossa ciência não estava muito desenvolvida à época.

Durante muito tempo, pensou-se que Pedro Nunes era uma exceção isolada. De facto, não temos ninguém ao seu nível, mas, nas últimas duas décadas, fez-se um trabalho mais atento e começou-se a descobrir muitas outras figuras. Uma delas, que só muito recentemente foi estudada, por mim e por um colega meu, é um matemático interessantíssimo da geração anterior a Pedro Nunes: o Francisco de Melo. Na geração anterior a ele, temos outro nome interessante, que é o de Álvaro Tomás... Se recuarmos mais uma geração, temos ainda o Rolando de Lisboa. De repente, começou-se a

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perceber que existe um contexto. Ou seja, há uma regularidade, dentro dos estudos mate-máticos, com pessoas de muito bom nível. Este tipo de circunstâncias permite, de vez em quando, que surja uma exceção como Pedro Nunes. Não estamos a falar, portanto, de alguém que surgiu no meio do deserto. Só para dar um exemplo, o Álvaro Tomás é uma das prin-cipais fontes do inglês Thomas Harriot. Harriot [matemático e astrónomo] era muito famoso no século XVI, citando continuamente o nome do português nos seus manuscritos, mas nada disto foi ainda escrito na historiografia portu-guesa. Há tantos outros exemplos...

A ciência, como dizia Isaac Newton, é sempre feita sobre os ombros de alguém. No caso de Portugal, e ao contrário do que durante muito tempo se pensou, aconteceu o mesmo?

Exato! A ciência em Portugal, nesse período, foi muito mais contínua do que as descrições que temos hoje em dia. Esse é talvez o problema da história das ciências em Portugal. Essas des-crições são muito descontínuas, porque foram feitas olhando para as figuras mais proeminen-tes. É preciso fazer uma reconstituição muito mais cuidadosa. Temos matemáticos que escreveram manuscritos de 600 ou mais pági-nas e que nem sequer estão referenciados. A ideia de que não existia nada e, de repente, apareceu um homem incomum, não está cor-reta. Com isto não se diminui a excecionalidade do Pedro Nunes, mas percebemos que já havia algo antes.

Que tipo de repercussões terá esta nova

perceção da história da ciência portuguesa?Implicará a necessidade de reescrever. Rees-

crever o quê? A história cultural de Portugal, que não é tão pobre como às vezes se conta.

Tivemos cientistas e navegadores na van-guarda, com estes últimos a serem os precursores da ciência moderna? É sabido que foi graças a eles que a Europa passou a conhecer novos lugares, novas gentes e novas espécies, animais e vegetais, com os nossos navegadores a deixarem abun-dantes relatos do que encontraram...

Sim! A dificuldade está em conseguir enun-ciar isso da maneira mais correta e de uma forma que não seja exagerada. Os portugueses desempenharam um papel interessante, mas não foram os únicos. Não eram especiais, mas foram dos primeiros europeus a confrontar-se com estas novidades. Sobre eles, colocaram-se imensos problemas técnicos, tendo sido os pri-meiros a ter de os resolver. Logo a seguir, vie-ram os espanhóis, os italianos, os holandeses e os ingleses. Contudo, parece que andamos a balancear entre um discurso que diz que não houve e não fizemos nada e um outro que diz que fomos os melhores do mundo. Podemos dizer que isto ou aquilo foi interessante, devido a razões concretas e fundamentadas, mas não foi a pobreza que por vezes se conta. Nem oito, nem oitenta!

DECIFRAR UM GÉNIO Foi muito difícil “navegar” pelas fontes his-

tóricas e reconstruir a personagem de Pedro Nunes e o papel científico que teve?

A maior dificuldade com o Pedro Nunes está na tecnicidade do que escreveu. Ele escrevia para os especialistas e é com eles que tenta dialogar. Foi precisamente por causa disso que só recentemente se fez esta edição das obras de Pedro Nunes: passaram-se dois séculos sobre a primeira ideia de o fazer. Por causa disso, o meu trabalho acabou por ser muito técnico. São tex-tos que, à primeira vista, se apresentam com-pletamente impenetráveis para uma pessoa normal, e que implicam muitas horas por dia, muitos meses e até anos de trabalho para ana-lisar. É preciso saber e dominar, na perfeição, o estado da matemática no século em que foram produzidos. É preciso perceber, com exa-tidão, quais os problemas que então se coloca-vam e de que forma se pensava neles, quais as técnicas que na altura se conheciam e os auto-res a que então se recorria. Só quando se sabe tudo isto é possível perceber se o que foi escrito nesses textos é novo, criativo e original.

Uma das razões para ter recebido o Prémio Pessoa 2014 está no grande impacto que teve no estrangeiro a sua tarefa de reunir e organizar o trabalho de Pedro Nunes. Como é que consegui-mos “medir” isso?

Posso apresentar, por exemplo, uma lista de tudo o que se publicou sobre Pedro Nunes nos últimos dez anos. Nela vai encontrar imensos trabalhos de autores estrangeiros, feitos fora de Portugal. De 2002 para cá, conseguiu-se sus-citar um maior interesse, lá fora, pela ciência portuguesa. Isso pode ser medido pelo número de artigos publicados, pelo número de con-ferências internacionais e pela quantidade de investigadores estrangeiros que se debruçam sobre o tema.

Passados 13 anos, e olhando para trás, o que mais o surpreendeu naquilo que descobriu sobre o matemático?

Quando comecei este trabalho, tinha a mesma ideia de muita gente: achava que a fama de Pedro Nunes era mais uma coisa que nós dizíamos, não era real. No fim, o que mais me surpreendeu foi verificar a imensa fama inter-nacional que teve em vida. Os melhores mate-máticos da época achavam-no o melhor. Pedro Nunes, e isso ficou bem claro, foi uma das grandes figuras de meados do século XVI. O problema é que a fama em ciência é uma coisa muito passageira. As suas investigações foram importantes para a segunda metade do século XVI, mas a partir do século XVII a ciência vai transformar-se tanto que os trabalhos dele acabam por ficar incorporados no grande fluxo em que a ciência depois se transforma. Porém, não há dúvida de que era um matemático origi-nal. Olhava para os problemas e descobria sem-pre um ângulo novo para os abordar. Não era um matemático rotineiro. Trata-se de um cria-tivo, e isso, tanto na matemática como dentro da própria ciência, é algo muito raro.

J.P.L.

Sucesso internacional. O dinamarquês Tycho Brahe e o alemão Christophorus Clavius foram dois dos admiradores de Pedro Nunes.

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Paleontologia

O anúncio da descoberta de restos de um tipo desconhecido de hominídeo, em Xujiayao (China),

surpreendeu os paleoantropólogos. Enquanto alguns pensam que poderá tratar-se de uma nova espécie, outros, como José María Bermúdez de Castro, que o estudou, duvidam dessa hipótese.

Dentes da gruta de Xujiayao espantam os peritos

O enigmático HOMEM DA ÁSIA

H á dois anos, José María Bermúdez de Castro, coordenador do Programa de Paleobiologia de Hominídeos do Centro Nacional espanhol de Inves-

tigação sobre a Evolução Humana (CENIEH), e a sua colega María Martinón-Torres, responsável pelo Grupo de Investigação de Antropologia Dentária da mesma instituição, observaram, perplexos, um cientista chinês a retirar de um caixote uma remessa de fósseis humanos. Tinham sido desenterrados numa caverna de Xujiayao, no norte da China. Os especialistas espanhóis visitavam pela terceira vez o Labora-tório do Instituto de Paleontologia e Paleoan-tropologia de Pequim, instituição fundamental para compreender a evolução dos hominídeos na Ásia, cujas descobertas começavam a ser conhecidas no Ocidente.

Foi o seu apurado instinto que alertou Ber-múdez de Castro. A viagem era fruto da colabo-ração com os colegas chineses Song Xing, Xiujie Wu e Wu Liu. Entre os fósseis, destacava-se uma série de nove dentes de aspeto tosco e primi-tivo, que os dois paleoantropólogos espanhóis estudaram minuciosamente. “Muito poucos ocidentais tiveram a oportunidade de os exa-minar”, diz Bermúdez de Castro.

A ciência ocidental nem sempre tem acesso aos achados chineses, mas o artigo que os dois especialistas publicaram no American Journal of Physical Anthropology era acompanhado de tomografias que mostravam a morfologia das peças dentais em todo o seu esplendor tri-

dimensional. Um dos revisores da revista comentou que faziam lembrar a dentadura dos denisovanos. Recorde-se que o hominídeo de Denisova se tornou conhecido em 2010, quando uma análise genética do fragmento ósseo de um dedo, encontrado numa gruta da Sibéria e datado em cerca de 50 mil anos, revelou sequên-cias de ADN que não se conjugavam com as dos neandertais ou com as dos seres humanos modernos. Embora não houvesse provas de que se tratava de uma nova espécie, pois não havia fósseis suficientes para permitir descrevê-la, uma hábil campanha de marketing científico apresentou o homem de Denisova como per-tecente a uma nova espécie humana.

CAIXOTES OBSCUROSNeste contexto, o comentário sobre os

denisovanos chamou a atenção de Bermúdez de Castro: “Temos ADN dos Homo sapiens, dos denisovanos e dos neandertais, mas não se pode definir uma espécie com base apenas no material genético. São precisos ossos.” Nesse caso, o que nos revelam os fósseis dos estra-nhos dentes chineses, com 90 a 100 mil anos de antiguidade? A quem teriam pertencido?

Há mais de meio século, surgiu uma hipótese para explicar a homogeneidade observada na espécie humana. O Homo sapiens ter-se-ia desenvolvido gradualmente a partir de uma evolução multirregional, através de múltiplos cruzamentos ao longo de centenas de milhares de anos entre populações de Homo erectus

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Estudo comparativo. Os dentes achados em Xujiayao são diferentes dos dos humanos atuais e apresentam semelhanças com os dos neandertais e dos homínideos asiáticos do Pleistoceno. A sua taxonomia é incerta.

de diversas partes do mundo, como África e a Eurásia. A teoria, generalizadamente aceite na China, contrasta com a mais divulgada no Ocidente: os nossos antepassados surgiram primeiro em África, e foi dali que partiram para colonizar o mundo (sem pôr de parte eventuais cruzamentos com outras populações).

Os dentes de Xujiayao, de aspeto primitivo, mas cuja datação revelava não serem muito antigos, contradiziam o esquema mental admi-tido por um europeu. O mesmo não acontecia com Song Xing.

Se a dentadura não é de Homo erectus nem de Homo sapiens, a quem pertenceu? Ao con-junto de fósseis junta-se um maxilar que Ber-múdez de Castro atribui a um rosto mais primi-tivo do que o do Homo antecessor, a criatura de Atapuerca que se sugeriu pertencer a uma nova espécie, com um aspeto menos rude e mais semelhante ao nosso, apesar dos 900 mil anos de antiguidade. Estariam os investiga-dores espanhóis perante uma nova espécie de hominídeo que viveu na China há apenas cem mil anos? De facto, a informação publicada na

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Quem és tu? Um punhado de fósseis encontrados na China faz pensar que o grande continente asiático pode ter sido habitado por uma espécie de hominídeo

desconhecida, ainda por catalogar.

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revista científica daria origem ao seguinte título na imprensa generalista: “Encontrada uma nova espécie humana”. Trata-se, porém, de uma interpretação muito precipitada, segundo Bermúdez de Castro. Para começar, falta fazer uma análise ao ADN dos dentes. Por enquanto, estamos numa fase misteriosa e extremamante interessante da investigação. Por vezes, tais descobertas permitem, posteriormente, escre-ver novos capítulos no livro da paleontologia humana. Os grandes achados não acontecem sob as luzes dos focos, no local da escavação. Não é raro os fósseis que mudam a história surgirem da escuridão e da poeira das caves de museus, de caixotes onde permaneceram ignorados durante décadas.

Prova disso é o que se passa na China, uma verdadeira caixinha de surpresas, com muitas jazidas e descobertas desconhecidas a nível internacional, pois a maior parte das publica-ções surge apenas em chinês. Neste caso, esta-mos a falar de um hominídeo enigmático, cujas características não permitem que seja inse-rido nos padrões conhecidos. A maior parte dos dentes (incisivos, pré-molares, caninos e molares) pertence a um indivíduo jovem.

O público fica deslumbrado com os crânios

Cozinhar os alimentos não explicaos nossos dentes mais pequenos

e os esqueletos de hominídeos, mas desen-terrar um inteiro e tão antigo como o de Lucy (a fêmea de australopiteco encontrada por Donald Johanson nos anos 80) é um aconteci-mento excecional. Na ausência de semelhante material, as peças dentais transformam-se em janelas para o passado. São elas que permitem a Bermúdez de Castro imaginar uma popula-ção de hominídeos que teria vivido há cem mil anos e que conservava vestígios arcaicos.

VER OS DENTES POR DENTRO “Observa-se um dente e é como se estivés-

semos a ver o BI da espécie”, afirma o paleoan-tropólogo. Estuda-se a sua morfologia e com-para-se com a de outros hominídeos a fim de situar a descoberta num contexto. Aqui, surge uma questão fascinante e pouco conhecida. Nos anos 70, pensava-se que os australopi-tecos tinham um desenvolvimento dentário semelhante ao do ser humano moderno, isto é, que a maior parte dos dentes definitivos se forma até aos 18 anos, embora os do siso pos-sam surgir, em alguns casos, até aos 25.

Todavia, tratava-se de uma noção errada. Nos anos 80, percebeu-se que o desenvolvi-mento da dentadura dos australopitecos e dos

Homo habilis constituía um processo mais rápido do que o nosso, à semelhança do que acontece com chimpanzés e gorilas: os seus molares cres-cem depressa, um a seguir ao outro, e os inci-sivos, o pré-molar e o primeiro molar nascem em simultâneo.

No ser humano, o desenvolvimento demora mais, de acordo com o processo de maturação do resto do corpo, que se tornou mais lento ao longo de milhões de anos: enquanto um chim-panzé de onze anos já é um adulto, o equiva-lente humano ainda é uma criança. Os fósseis chineses revelam um hominídeo jovem cujo desenvolvimento dental era mais veloz do que o nosso. Os traços eram primitivos, mas não tanto como os do homem de Pequim (Homo erectus pekinensis).

Assim, a morfologia dentária ajuda-nos a situar o desconhecido. Os australopitecos nunca saíram de África, e alguns dos seus repre-sentantes, como os Paranthropus, possuíam enormes molares. Os Homo erectus chegaram à China há, talvez, 1,8 milhões de anos, e os seus dentes eram muito resistentes, com raízes grossas e fortes. Os do Homo sapiens são mais delicados, com menos cúspides, mais curtos e de raízes menores.

No caso deste hominídeo asiático, a tomo-grafia computorizada das peças revelou a sua estrutura interior. Segundo o especialista, “conseguimos saber como são por dentro sem necessidade de parti-los”. María Martinón-Tor-

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Grande equipa. José María Bermúdez de Castro e María Martinón-Torres com

os paleoantropólogos chineses com quem estudaram a descoberta de Xujiayao.

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res diz que os dentes “são como a caixa negra de uma espécie, pela quantidade de informa-ção que proporcionam”.

O facto de os seres humanos modernos terem dentes mais pequenos foi inicialmente atri-buído à alimentação, uma explicação evolutiva que conduziria a uma morfologia mais delicada. Pensava-se que o recurso ao fogo e a prepara-ção de alimentos cozinhados seriam respon-sáveis por tal redução. Todavia, em meados dos anos 90, Bermúdez de Castro publicou um estudo que deitava por terra esta hipótese, ao demonstrar que as peças dentárias dos homi-nídeos que viveram na Gruta dos Ossos, em Atapuerca, há cerca de 430 mil anos, “eram do mesmo tamanho dos da população atual, embora com uma morfologia diferente”. A ideia de uma redução do tamanho dos dentes por causa de cozinhar os alimentos ficaria feita em cacos com a demonstração da existência de hominídeos possuidores de dentes pequenos e aptos para rasgar a carne crua.

Nesse caso, porque será a dentadura humana mais reduzida? Que vantagens evolutivas teria isso? Bermúdez de Castro admite tratar-se de um mistério. Poder-se-ia pensar que a sele-ção natural teria agido contra os dentes gran-des, mas isso é difícil de demonstrar.

No caso dos indivíduos de Atapuerca, ter dentes pequenos não representou qualquer desvantagem. Já no caso de hominídeos muito mais primitivos, como os Paranthropus, a lógica

estabelece que os seus enormes molares eram indispensáveis para a sobrevivência, pois serviam para triturar os alimentos vegetais, tubérculos e raízes.

TAMANHOS RELATIVOS Contudo, nada disso se coaduna com a

posterior evolução. Não faz sentido, afirma o especialista, que algumas populações do norte de África durante o Mesolítico (há dez mil anos) tivessem dentes descomunais, maiores do que os dos habitantes de Atapuerca. O que parece importante é analisar o tamanho dental em termos relativos. Os Paranthropus tinham incisivos e caninos muito pequenos em compa-ração com enormes molares. Nos hominídeos da Gruta dos Ossos e entre os neandertais, acontece precisamente o oposto: as peças anteriores são maiores do que as posteriores. No nosso caso, têm todas praticamente o mesmo tamanho. Os dentes da caverna de Xujiayao ficam a meio caminho entre os erec-tus e os sapiens.

O trabalho dos paleoantropólogos espa-nhóis e dos seus colegas chineses evoca um mundo muito diferente do atual. Hoje, a huma-nidade é homogénea: uma única espécie colo-nizou o planeta. Há uma globalização biológica. Por isso, muitos pensam erradamente que o Homo sapiens é fruto de uma evolução em que indivíduos toscos e primitivos se ergueram do chão para adquirir um aspeto mais humano e

transformar-se no que hoje somos. Se pudés-semos recuar cem mil anos, depararíamos com o que Bermúdez de Castro designa por “mun-dos perdidos”: populações de espécies huma-nas distintas que conviveram, das quais algu-mas se mantiveram isoladas ou se extinguiram. No passado, nunca houve apenas um único tipo de ser humano.

O paleoantropólogo descreve-o assim: “Era um mundo diversificado, com populações dís-pares, nas quais a genética pode ter facilitado os cruzamentos entre algumas. Na Europa, teríamos os neandertais, que resistiam ao avanço do Homo sapiens. Os seres humanos modernos já estavam no sul da China há 60 ou 70 mil anos, enquanto, no norte, ainda persis-tiria o Homo erectus, e talvez outras espécies ou subespécies, como as populações de homi-nídeos às quais estes dentes pertenceriam. Na Sibéria, tinhamos os denisovanos. Em África, havia seres humanos modernos, mas talvez ainda existissem populações de Homo ergaster em alguns lugares.”

Nesse planeta, uma mistura de muitos grupos perdidos e distintos, bastava percor-rer uma distância de 400 quilómetros para encontrar seres humanos de aspeto muito diferente. Trata-se de uma ideia fascinante e ousada, um capítulo original da nossa história que será, seguramente, colmatado por novas descobertas.

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GA mandíbula. Além das peças dentais, na gruta chinesa apareceu este maxilar que os especialistas atribuem a um indivíduo jovem de aspeto mais primitivo do que o Homo antecessor.

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Paleontologia

Acertos e erros caracterizam todos os campos da ciência. A paleontologia é uma das disciplinas

mais expostas a equívocos, pois trabalha com fósseis de organismos desaparecidos e, por vezes,

desconhecidos para elaborar as suas teses.

Fraudes e enganos colossais

Meter a pata na POÇA

A lgumas das paleogafes mais conhe-cidas foram registadas há séculos, quando o conhecimento era limi-tado e havia falta de metodologia.

Contudo, também surgiram, recentemente, fal-sificações e logros. Os atuais especialistas não lhes são imunes, mas, hoje, há mais meios para detetá-los. Mostramos-lhe, em seguida, onze casos que fizeram história no apaixonante mundo dos fósseis.

PEGADAS POLÉMICASDurante décadas, grupos de criacionistas

norte-americanos afirmaram ter descoberto pegadas humanas junto de vestígios de patas de dinossauros, na jazida do rio Paluxy, no Texas. Chegaram a realizar um documentário, em 1973, intitulado Footprints in Stone (“Pega-das em pedra”), para demonstrar a sua teoria. Os defensores da descabida teoria enfrenta-vam uma contradição: as pegadas têm cerca de cem milhões de anos, e a maioria das marcas são demasiado grandes para terem sido pro-duzidas por seres humanos, pois muitas ultra-passam o meio metro de comprimento.

Contudo, na década de 1970, este era um dos argumentos preferidos dos criacionistas para semear dúvidas sobre a teoria da evolução e o valor da escala de tempo geológico. A proposta é disparatada para os especialistas em vestígios fósseis, mas pode fazer vacilar pessoas sem formação em paleontologia ou geologia.

Num esforço notável para dissipar qualquer dúvida, o biólogo Glen J. Kuban demonstrou, na

sequência de um meticuloso trabalho de aná-lise, que os vestígios tinham sido produzidos por dinossauros. Mostrou mesmo que alguns tinham, nitidamente, três dedos. Assim, as supostas pegadas humanas não eram mais do que formas alongadas de pisadas de dinossau-ros carnívoros sujeitas à erosão. Esses exem-plares deixaram uma acentuada marca meta-társica, ou seja, da zona central da pata.

De facto, este tipo de vestígios é extrema-mente interessante do ponto de vista científico, pois indica que os dinossauros não se desloca-vam unicamente sobre os dedos, mas também usavam a planta do pé. Dada a abundância de provas, John D. Morris, do Instituto para a Investigação da Criação e um dos mais firmes defensores da tese, admitiu que as suas conje-turas não tinham razão de ser, e que seria incor-reto os criacionistas utilizarem os vestígios do rio Paluxy como prova contra a evolução.

EM VEZ DE OURO, UM CRÂNIOEm 1866, James Matteson procurava ouro em

Bald Hill (condado de Calaveras, na Califórnia), mas o que encontrou foi um crânio parcial-mente conservado, numa saibreira. Depois de passar algum tempo na posse de um comer-ciante chamado Scribner, o fóssil acabou por ir parar às mãos de um professor de geologia, Josiah Dwight Whitney, o qual proclamou que o crânio de Calaveras pertencia ao Plioceno (há dois a cinco milhões de anos). Tornava-se, assim, um dos fósseis humanos mais antigos e, para Whitney, a prova de que o Novo Mundo

Que grandes pés! As pegadas petrificadas de dinossauro fascinam as crianças que se banham no rio Paluxy, no Texas. O biólogo Glen J. Kuban (em cima) desmontou as teorias dos criacionistas, que pretendiam ter descoberto ali vestígios humanos do tempo dos dinossauros.

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possuía uma história evolutiva humana tão antiga como a europeia.

Houve cientistas que discordaram, como o antropólogo William Henry Holmes. O crânio era muito semelhante ao de um homem atual, e continha sedimentos nos quais se descobriu uma concha de molusco de aspeto moderno e uma conta de colar idêntica às dos nativos americanos. A verdade tornou-se conhecida em 1911, após a morte do convicto Whitney. Era tudo falso. Fora o lojista Scribner que colocara o crânio no fundo da mina, na esperança de que Matteson o encontrasse, como viria a acontecer. O chamado “homem de Calaveras” chegou a aparecer em muitas primeiras páginas de jor-nais, mas nunca existiu. Curiosamente, cala­veras significa precisamente, em espanhol, “caveiras”.

RECONSTITUIÇÃO ROMÂNTICAEm 1633, alguns operários que trabalha-

vam numa pedreira perto de Quedlinburg, na Alemanha, encontraram diversos fósseis de mamíferos. Os ossos foram transferidos para um mosteiro da vizinhança, onde seriam exami-nados por eruditos da zona, incluindo Otto von Guericke, que divulgou a notícia da descoberta do esqueleto de um unicórnio. A fantástica notí-

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71Interessante

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Proliferam na internetvendedores

de falsos fósseis

cia teria passado despercebida se não tivesse chamado a atenção do filósofo, matemático e lógico Gottfried Wilhelm Leibniz, um dos maio-res génios da história.

Leibniz incluiu uma reconstituição do unicór-nio que obteve de Von Guericke na sua obra Protogaea, que só viria a ser publicada 33 anos depois da sua morte, em 1716. A figura mostra a estranha montagem de um esqueleto sem membros posteriores, de cujo crânio emerge um chifre comprido e direito. Segundo Leibniz, teria mais de dois metros de extensão e era tão grosso na base como a coxa de um homem. Assim, dois cientistas fundamentais do século XVII estavam convencidos de ter encontrado os ossos de um unicórnio, e exibiam-nos no que era a primeira reconstituição paleontológica de um vertebrado extinto. Estavam comple-tamente enganados, mas a descoberta surgia rodeada de um halo de mágico romantismo. No fim de contas, navegadores portugueses acreditaram ter visto unicórnios na Abissínia (Etiópia), e a sua existência era aceite desde o tempo dos gregos.

UMA BRINCADEIRA EM PEDRA No início do século XVIII, Johannes Beringer,

naturalista e professor de medicina na Universi-dade de Wurzburg (Alemanha), vivia fascinado pelos fósseis. Seriam verdadeiros vestígios de animais e plantas do passado, prova da grande antiguidade da Terra? Um rasto de plasticidade impresso nas rochas? Parte da criação divina? Na altura, a perspetiva religiosa ainda dominava o pensamento científico e não se compreendia a natureza dos fósseis.

Em 1725, Beringer, um déspota pomposo e muito convencido, começou a descobrir, nas ladeiras do monte por onde passeava, o Eibel-stadt, fragmentos de calcário com estranhas formas tridimensionais: aves a caminhar e a voar; lagartos com olhos perfeitamente con-servados; abelhas nos seus favos, e mesmo for-mas petrificadas que reproduziam o Sol, a Lua, as estrelas e os cometas. Tinham sido talhadas e colocadas ali por dois colegas que o despreza-vam: Johann Georg von Eckhart, historiógrafo e bibliotecário da universidade, e J. Ignatz Roderick, professor de geografia e álgebra.

Beringer acreditou em tudo, e os autores da brincadeira, encorajados pelo êxito, criaram inscrições em sírio, hebraico e babilónio da pala-vra “Jeová”. Foi o suficiente para convencer o crédulo Beringer de que as pedras esculpi-

O tamanho desmesurado do crânio e a estra-nha forma das vértebras não lhe produziram grandes suspeitas, apesar de Sheuchzer ser também médico de profissão. Contudo, alguns dos seus contemporâneos não partilhavam a piedosa opinião, e sugeriram que se poderia tratar de alguma espécie de peixe ou lagarto. Em 1811, o naturalista francês George Cuvier examinou-o e comprovou que se tratava do esqueleto de uma salamandra gigante do Ter-ciário. Atualmente, o exemplar é conhecido por Andrias scheuchzeri (“o homem de Scheuch zer”), em honra da errada convicção do suíço.

O HOMEM QUEBRA-CABEÇASHá um século, o advogado e arqueólogo

amador Charles Dawson descobriu fragmentos de um crânio numa saibreira de Piltdown (Inglaterra). Dada a potencial importância do achado, Dawson seguiu as escavações, acom-panhado pelos paleontólogos Arthur Smith Woodward e Pierre Teilhard de Chardin. A equipa encontrou mais peças cranianas, a par de parte de metade de uma mandíbula de cor acastanhada e aspeto simiesco, com dois molares muito desgastados.

O mais interessante é que os restos crania-

das eram de origem divina. Quando anunciou a intenção de publicar as descobertas, Roderick e Eckhart difundiram rumores sobre a autenti-cidade dos fósseis, acrescentando que alguns exibiam marcas de terem sido talhados. Berin-ger concordava, mas pensou que era obra da mão de Deus. A brincadeira cruel terminou quando Beringer descobriu uma inscrição com o seu próprio nome.

QUEM ANDA NO DILÚVIO MOLHA-SEJohann Jakob Scheuchzer, naturalista suíço,

encontrou um estranho fóssil, em 1726, perto da localidade bávara de Ohningen, nas mar-gens do lago Constança. Scheuchzer acreditava que todos os fósseis eram de vítimas do bíblico dilúvio universal que não se tinham salvo na arca de Noé. Encontrara fósseis de numerosos peixes e de outros vertebrados, mas a sua maior ambição era descobrir um vestígio humano. Convenceu-se de que o exemplar de Ohningen era um esqueleto, bastante com-pleto, da raça humana que desaparecera por ocasião da grande inundação. Assim, deno-minou o espécime Homo diluvii testis, isto é, “homem testemunha do dilúvio”. Contemplá--lo deveria inspirar nos pecadores um pro-fundo arrependimento.

Homem diluviano. Johann Jakob Scheuchzer (1672–1733) acreditou que o fóssil à direita pertencia a uma raça de homens extintos pelo dilúvio universal.

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nos tinham um aspeto moderno e indicavam que o seu possuidor tivera um grande cérebro, embora a mandíbula fosse muito primitiva. Além disso, os fósseis de fauna igualmente encontrados sugeriam que a jazida tinha cerca de 400 mil anos de antiguidade, o que enchia de satisfação os antropólogos britânicos. A morfologia da cabeça encaixava muito melhor na linhagem humana do que todos aqueles fósseis neandertais, de testa estreita e arcaica, descobertos na época na Alemanha e em França. Assim, o homem de Piltdown parecia ser muito antigo e poderia muito bem ser o antepassado (oportunamente, inglês) da atual humanidade.

A reconstituição do crânio foi divulgada em dezembro de 1912, suscitando grande interesse entre a imprensa e o público. Artistas recorre-ram à imaginação para reproduzi-lo em revistas, e estátuas com o seu presumível aspeto enfei-taram os museus. Até nos Estados Unidos surgiu, na imprensa dominical, uma banda desenhada intitulada Peter Piltdown, um caver-nícola precursor dos Flintstones. Durante trinta anos, o homem de Piltdown foi um enigma, pois nenhum hominídeo encontrado na Europa, na Ásia ou em África partilhava o crâ-nio moderno e a face simiesca. Por fim, peritos

do Museu de História Natural de Londres começaram a ter suspeitas.

Observaram que os ossos tinham sido tin-gidos para adquirir um aspeto antigo. A man-díbula provinha de um orangotango; fora par-tida nas zonas mais fáceis de identificar e os dentes tinham sido limados para impedir um reconhecimento correto. No outono de 1953, a fraude foi denunciada. Quem fora o responsável?

Em 1975, trabalhos de limpeza no Museu de História Natural permitiram recuperar um cofre com as iniciais de Martin A.C. Hinton, antigo conservador da secção de zoologia. Dez anos depois, o investigador Andrew Currant inspecionou-o e encontrou uma pequena quan-tidade de ossos tingidos como os de Piltdown. As análises efetuadas demonstram que os produtos utilizados para tingir os ossos do baú eram os mesmos dos exemplares de Piltdown. Porém, é possível que Hinton não tivesse agido sozinho: quase todas as descobertas de Dawson, o arqueólogo amador, eram falsas.

SE PARECE UM PORCO, É PORQUE É...O experiente paleontólogo Harold J. Cook

procurava, habitualmente, fauna fossilizada nos depósitos arenosos da formação Snake Creek, no Nebraska. Em 1917, encontrou um

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Ossos pintados. Reconstruções e análises do homem de Piltdown fizeram a capa de numerosas revistas. A pintura de cima mostra um grupo de investigadores britânicos examinando o crânio do exemplar que poderia ser o elo perdido entre o homem e os outros primatas.

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molar desgastado que se parecia muito com um dente humano. Em 1922, enviou o exemplar a Henry Fairfield Osborn, diretor do Museu de História Natural norte-americano. Ali, os melhores especialistas concluíram que a peça dentária pertencera a um fóssil de antropoide.

Osborn considerou a descoberta de enorme importância, pois indicava a presença de prima-tas superiores (incluindo hominídeos) na Amé-rica do Norte, há cinco a dez milhões de anos. Denominou o novo exemplar Hesperopithecus haroldcookii (“símio do mundo ocidental de Harold Cook”). Osborn sublinhou a impor-tância de se encontrar mais material antes de proclamar as afinidades do Hesperopithecus, mas a imprensa não tardou a falar do “homem do Nebraska”, como foi batizado. O antropó-logo britânico Grafton Elliot Smith, e o artista Amédée Forestier colaboraram numa ilustra-ção para a revista Illustrated London News, na qual se viam um macho e uma fêmea de Hesperopithecus numa paisagem pré-histórica: dois hominídeos musculosos e de testa estreita que não convenceram Osborn, pela falta de rigor. Era preciso encontrar mais fósseis para se poder determinar o seu aspeto.

Uma equipa de paleontólogos regressou à jazida em 1927, recuperou novas peças dentá-rias e demonstrou que o dente não fora bem identificado. A misteriosa criatura não era um hominídeo, mas um tipo de pecari (porco-do--mato) extinto denominado Prosthennops, da família de suínos do Novo Mundo. Os investi-gadores retrataram-se, nesse mesmo ano, na revista Science.

FALSAS PENAS DE ARCHAEOPTERYXEm 1985, o astrónomo Fred Hoyle e o mate-

mático Chandra Wickramasinghe denunciaram que os vestígios de penas do Archaeopteryx, a primeira ave do registo fóssil (cerca de 147 milhões de anos), eram falsas, pelo que o exem-plar do Museu de História Natural de Londres não passava de uma montagem. O truque teria consistido em criar impressões de penas de frango numa fina camada de cimento artificial, à volta de um pequeno esqueleto de réptil. Porém, os vestígios de penas do exemplar de Londres não se parecem com as de um frango, e o Archaeopteryx é um género fóssil emble-mático.

O objeto tinha sido descoberto, em 1861, na

Alguns episódios bíblicos

deram origem a mitos

paleontológicos

gradual, os organismos, mas esse mecanismo alienígena.

O Archaeopteryx constitui um exemplo de uma ave com características primitivas de dinossauro, o que demonstra um processo de transformação gradual. A sua existência constituía um entrave para a teoria de Hoyle e Wickramasinghe, pelo que estes decidiram que não passava de uma montagem.

ARCHAEORAPTOR, UMA QUIMERA Proveniente do tráfico ilegal de fósseis chi-

neses, chegou aos Estados Unidos, em 1999, um exemplar único. Parecia uma ave primitiva, com dentes e cauda característicos de um pequeno dinossauro carnívoro do grupo dos dromeossauros. Foi vendido a um museu do Utah, dirigido por Stephen A. Czerkas e pela sua mulher, Sylvia, um casal de artistas que gos-tava de dinossauros. Estudaram o espécime com a ajuda de um especialista canadiano, Philip J. Currie. Os testes indicaram que o fóssil podia ser constituído por vários espécimes, mas os Czerkas e Currie consideraram que as irregu-laridades se deviam apenas a uma incorreta reconstituição dos restos.

A revista National Geographic decidiu publicar uma reportagem sobre o fóssil, que devia ser repatriado para a China. A revista descreveu-o

Alemanha, e vendido ao museu londrino. Pas-sados dois anos, o anatomista Richard Owen, diretor do museu, descreveu-o pormenoriza-damente, e Charles Darwin fez uma referência ao Archaeopteryx na quarta edição de A Ori­gem das Espécies. Segundo a equipa de Hoyle, foi o próprio Owen quem teria orquestrado a fraude para desacreditar a teoria evolutiva darwiniana, o que não faz sentido, pois a pri-meira pessoa que a ação iria prejudicar seria o próprio Owen.

Os conservadores do Museu de História Natural de Londres responderam, em 1986, na revista Science. Demonstraram a presença de pequenas fraturas que atravessam tanto as partes ósseas como as penas. Além disso, essas fendas contêm pequenos cristais de minerais que se desenvolveram antes da descoberta do fóssil e da posterior limpeza e preparação, o que provava a impossibilidade de as penas terem sido sobrepostas sobre a pedra original.

No entanto, Hoyle e Wickramasinghe insis-tiram, pois pensavam que o mecanismo da transformação evolutiva provinha de vírus ou bactérias que chegavam à Terra em cometas e meteoritos. Desse modo, contaminariam o material genético dos seres vivos, o que daria subitamente origem a novas formas. Não era a seleção natural que modificava, de forma

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ordem que Marsh ridicularizou o rival, cha-mando-lhe Anisconchus cophater (“destestável Cope de boca desdentada”), pois ele não tinha vários dentes. O mais extraordinário é que toda essa animosidade pode ter surgido devido a um erro.

Cope e Marsh foram bons amigos, apesar dos seus feitios díspares. O incidente que abalou a sua relação produziu-se quando um explorador amador se ofereceu para vender alguns fósseis valiosos a Cope. Este prometeu comprá-los, mas esqueceu-se de os pagar, e Marsh aproveitou para enviar um falso telegrama em seu nome a cancelar o negócio, após o que adquiriu ele próprio os exemplares.

Segundo o historiador da ciência Adrian Des-mond, o confronto definitivo surgiu em 1870. Cope mostrou a Marsh a enorme reconstitui-ção do Elasmosaurus, um plesiossauro do Kan-sas que descrevera alguns anos antes e cujo esqueleto acabava de montar em Filadélfia. Ao examinar o réptil marinho, Marsh percebeu que o seu distinto colega colocara a cabeça na cauda. Cope era um cientista brilhante mas irascível, e nunca perdoou a Marsh ter assina-lado o erro. Alguns pensam que esta história foi inventada por Marsh, vinte anos depois, para desacreditar Cope, pois parece que o próprio Marsh não sabia muito de plesiossauros na

como sendo um elo perdido que ajudaria a com-preender a relação entre dinossauros e aves, e propôs que se chamasse Archaeoraptor liao­ningensis, embora os nomes científicos devam ser atribuídos por investigadores profissionais em publicações especializadas, de acordo com um determinado protocolo.

Os estudos demonstraram que o Archeorap­tor era uma fraude. A cabeça e a parte superior pertenciam a uma ave primitiva fossilizada, o Yanornis; a cauda, a um pequeno dromeos-sauro, o Microraptor. O logro teve um aspeto positivo: travou o tráfico ilegal de fósseis chi-neses e demonstrou que qualquer grande des-coberta deve passar pelo escrutínio de uma publicação científica.

O ERRO DESCOMUNAL DE COPEAs maiores coleções de fósseis de vertebra-

dos norte-americanos foram reunidas por dois paleontólogos que se detestavam. Edward Drinker Cope, da Academia de Ciências Naturais de Filadélfia, e Othniel Charles Marsh, do Museu Peabody de Yale, mantinham uma feroz rivali-dade e tentavam acumular o maior número pos-sível de exemplares, pelo que não hesitavam em subornar, roubar ou destruir ossos para obter o controlo das ricas jazidas do Oeste norte-americano. A animosidade era de tal

Reconstituição artística. Stephen Czerkas com um Cryptovolans, que viveu há 125 milhões de anos, modelado por ele mesmo.

altura do episódio. Quem se apercebeu do erro, efetivamente, foi o paleontólogo Joseph Leidy, que expôs o problema numa publicação de 1870. Independentemente de Marsh se ter, ou não, apropriado do discernimento de Leidy para se aperceber da asneira, o certo é que a ini-mizade entre Cope e Marsh desencadeou uma frutífera guerra de ossos.

LEVEDURAS NA GRONELÂNDIA?Em 1978, o cientista Hans-Dieter Pflug afir-

mou ter descoberto microfósseis com forma de levedura e cerca de 3700 a 3800 milhões de anos em rochas metamórficas da locali-dade gronelandesa de Isua. Descreveu mais de cem exemplares de estruturas diminutas, em forma esférica e elíptica, das quais algumas com aspeto de levedura. Chamou-lhes Isuasphaera isua. Na sua opinião, eram de origem orgânica. Por outras palavras, em algumas das rochas mais antigas da Terra, havia microfósseis de organis-mos complexos. Pflug indicou que encontrara aminoácidos conservados nas pedras, o que sugeria a existência de atividade orgânica, pois os aminoácidos constituem as proteínas.

Contudo, havia um obstáculo. As leveduras são organismos eucariotas, ou seja, têm núcleo celular, e eram também muito avançadas para se poderem encontrar em rochas com 3800 milhões de anos, quando tinham passado ape-nas 700 milhões desde a formação da Terra. Assim, a evolução da vida teria sido muito rápida, com o aparecimento de organismos muito sofisticados em tempo record, em ter-mos geológicos. A fim de resolver o enigma, Pflug sugeriu que os microfósseis de Isua não tinham núcleo e que o aspeto tão semelhante ao das atuais leveduras era apenas exterior.

E se não fossem leveduras? O geoquímico Edwin Roedder adiantou que se poderia tratar de cavidades preenchidas com óxidos de ferro. William Schop, especialista na origem das pri-meiras formas de vida, não sabia o que dizer. A Isuasphaera passou, assim, a fazer parte dos dubiomicrofósseis, objetos microscópicos com aparência de fósseis mas de origem mineral.

Finalmente, Peter W.U. Appel, do Serviço Geológico da Dinamarca e da Gronelândia, pôs fim à polémica. Appel era o geólogo que recolhera as amostras que continham os dimi-nutos corpos ovoides. Acompanhado dos seus colaboradores, regressou ao local e compro-vou que as rochas da zona tinham sofrido uma deformação extrema e que não era possível qualquer tipo de corpo esférico ter-se pre-servado durante o processo. Portanto, a Isua­sphaera – independentemente de se tratar de um fóssil ou de uma forma inorgânica – teve de se formar posteriormente, por proces-sos de erosão recente das rochas, em algum momento anterior ao Quaternário.

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Tecnologia

Óculos especiais, aplicações milagrosas, vozes que substituem textos: os mais recentes

artefactos tecnológicos abrem infinitos horizontes aos deficientes de todo o mundo. Portugal acompanha a carruagem.

Aplicações contra a deficiência

JanelasBIÓNICAS

Controladores. Os óculos de Salvador parecem iguais aos outros, mas não são: graças a eles, consegue controlar o computador, usar correio eletrónico, etc.

O s óculos que Salvador usa quando está sentado ao computador nada têm de especial: parecem iguais aos que qualquer pessoa usa no

seu dia a dia. No entanto, de facto, não são. Os óculos de Salvador são especiais, assim como o próprio Salvador: ele, Salvador Gomes de Almeida, é tetraplégico, desde que, em agosto de 1998, foi vítima de um trágico acidente, no Algarve. Salvador fundou a associação com o seu nome (http://www.associacaosalvador.com), com o intuito de “promover a integração das pessoas com deficiência motora na socie-dade e melhorar a sua qualidade de vida”. Hoje, a Fundação Salvador é uma referência nacional como instituição de apoio aos defi-cientes. Os óculos de Salvador permitem-lhe ultrapassar a sua deficiência e escrever no com-putador, apenas movimentando a cabeça, gra-ças ao contacto estabelecido entre os óculos e um sensor no computador: depois, teclado aberto, é só escrever e navegar na internet.

“Hoje em dia, com todas as novas aplicações, uma pessoa que tenha um grau de incapaci-dade bastante elevado, se tiver um bom acom-panhamento, consegue ter aparelhos que a tornam mais autónoma e realizada”, assegura Salvador, que, no seu escritório da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, reuniu condições para levar por diante o seu projeto. “Há 16 anos, se precisava de escrever no com-putador, tinha de pôr umas talas nos dedos, tinha de prender as mãos com umas luvas...

Hoje em dia, faço-o através dos óculos, com movimentos mais subtis e com menos esforço. Outra coisa que eu não podia fazer era mexer num telemóvel: tinha dificuldade, porque não havia ecrãs táteis. Agora, a pessoa toca e é mais fácil. Claro que isto varia de caso para caso, de condição para condição. O que sinto é que é pre-ciso muita persistência. Quando encontramos um equipamento, à partida ele não está adap-tado, nós é que temos de ir criando familiari-dade, encontrar soluções...”

BARREIRAS ARQUITETÓNICASHá cerca de dez anos que Salvador dispõe

dos seus óculos especiais para usar o com-putador. Atualmente, o artefacto está disse-minado no país, abrindo horizontes em diver-sos tipos de deficiência, embora tenha um preço elevado. No seu dia a dia, Salvador usa também uma aplicação que transforma em pala-vras escritas aquilo que a pessoa diz, o que lhe permite enviar mensagens com mais facilidade. É recorrendo a estas ajudas tecnológicas que Salvador faz o seu trabalho na área da integração de deficientes: atividades de desporto adap-tado, eventos de convívio, bolsas de apoio e o projeto mais recente, denominado “Preencha esta vida”, em que, através de crowdfunding, são angariadas verbas para ajudar pessoas que necessitam de diversos equipamentos.

“As novas tecnologias vieram ajudar os defi-cientes a ganhar autonomia, mas, obviamente, ainda falta muita coisa... Os obstáculos físicos

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Um cidadão surdo não podeusar o telefone

em caso de emergência

mos financeiros, tenta acompanhar a onda. Em 2012, um empreendedor surdo decidiu criar uma empresa nesta área. João Gomes fundou a Earthwnd, que em 2014 lançou no mercado o seu primeiro produto: a App112, uma aplicação de emergência para telemóveis e outros dis-positivos portáteis, que pode ser utilizada por surdos, surdos-cegos e pessoas idosas, com ou sem deficiência. É mais um exemplo de

um deficiente que procura, ele próprio, abrir uma estrada. As novas tecnologias parecem capazes de criar novos horizontes para a defi-ciência.

Aos 44 anos, João Gomes está perante o maior desafio da sua vida. Surdo desde os três anos, fez um percurso educativo normal para alguém com deficiência auditiva, tirando o 12.º ano, sem, depois, conseguir aceder a uma formação superior. Percebeu, ao longo dos anos, que um

e as barreiras arquitetónicas continuam a ser uma das grandes dificuldades”, sublinha Salvador, alertando para o problema do con-fronto com o mundo exterior. Este ano, e entre outras atividades, Salvador voltará a ser embai-xador da Wings for Life World Run (Porto, 3 de maio, 12 horas), um evento organizado pela Fundação Wings for Life, que trabalha na pesquisa de curas para as lesões vertebro--medulares.

Os artefactos que usa Salvador numa função tão importante como a sua são um bom exemplo de como a evolução tecnológica registada nos últimos anos está a contribuir para a melhor integração e qualidade de vida das pessoas com deficiência. Em todos os tipos de deficiência.

APLICAÇÃO DE EMERGÊNCIAPortugal, apesar de todos os condicionalis-

Solução visual. A App112, concebida por João Gomes, permite aos surdos comunicar por vídeo com os serviços de emergência, colmatando uma falha.

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Lares artilhadosD evido às suas limitações, a maior par-

te dos deficientes passa muito tempo em casa, o que torna este espaço impor-tantíssimo do ponto de vista tecnológico. Nesta área, o caso da inglesa Habinteg Housing Association é paradigmático e inspirador. A Habinteg especializou-se de tal forma em casas com artefactos tecno-lógicos que lidera agora um programa, a nível europeu, para a criação de novos ins-trumentos e sistemas que permitam uma maior autonomia ao deficiente, a partir do seu lar, o projeto I-stay@home. Entre os projetos a testar constam, por exemplo, um robô aspirador, um detetor de quedas, câmaras sem fio que identificam visitantes no exterior, aplicações online para compras e depósitos financeiros, tudo controlado a partir de um aparelho móvel.Estão envolvidos no projeto nove asso-ciações de habitação, duas universidades e quatro empresas de tecnologia, de diversos países: Alemanha, Bélgica, França, Países Baixos e Reino Unido. Há fundos europeus, e não só, implicados, e 2015 é o ano de todas as conclusões. O projeto está muito virado para a população idosa, a faixa demográfica que mais cresce na Europa, mas também para as diversas deficiências,

que deverão ser apoiadas em questões como o isolamento, a segurança, a a saúde, a condição financeira e a autonomia no dia a dia. Em Ingla-terra, estuda-se também o lançamento de uns óculos especiais para pessoas com dificuldades de visão (não cegos totais). Estes óculos, com câmara de vídeo, ajudarão os utilizadores a entenderem melhor o local onde se movem, evitando obstáculos e outros problemas. Nos Estados Unidos, uma empresa de São Fran-cisco criou o Uni, uma aplicação que permite traduzir a linguagem gestual para áudio e o som para texto escrito. Ainda em versão experimen-tal, o sistema, criado pela MotionSavvy, funcio-

na com duas câmaras e projeta imagens dos gestos da pessoa surda num espaço virtual 3D; a linguagem gestual é então traduzida para um discurso áudio e, graças a outro programa, o áudio pode passar a texto. No Japão, as pessoas com necessidade de cuidados especiais poderão ter em casa um Aiko Chihara, um robô desenvolvido pela Toshiba, capaz de mover os braços e falar língua gestual. É ainda um protótipo, que a marca pretende introduzir no mercado lá para 2020. O público-alvo não serão apenas os deficientes, mas também pessoas idosas e com necessidade de companhia.

Falar com as mãos. O Aiko Chihara é um robô que fala língua gestual. A Toshiba

espera lançá-lo no mercado em 2020. O Uni (em baixo) é um aparelho que

traduz língua gestual em texto e áudio.

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A Fundação PT disponibiliza

soluções para várias

necessidadesdeficiente pode ser vítima de muitos equívocos, por dificuldades de comunicação, evidentes no caso dos surdos; o dia a dia não é fácil, nomea-damente para ter acesso aos direitos básicos de qualquer cidadão, como chamar os bombei-ros ou a polícia, ir a um médico ou tratar de um problema nas Finanças. “Senti, em diversas situações da vida, muitas dificuldades para me fazer entender. Era sempre um problema arran-jar intérpretes, a própria autoridade não me entendia... Nós, cidadãos surdos, temos direito a ter uma vida normal.”

Por essa razão, começou a pensar em criar, ele próprio, soluções. Avaliou os instrumentos existentes, investigou na internet e, adepto das novas tecnologias, decidiu investir o seu próprio dinheiro, criando a Earthwnd – World Intelli-gence Telecommunications, uma empresa única no género em Portugal. Apostando em serviços de emergência 112, criou a App112. A

O extraordinário Stephen HawkingC aso paradigmático de uma vida ex-

traordinária muito baseada nos apoios tecnológicos é o do astrofísico Stephen Hawking. Sofrendo de esclerose lateral amiotrófica (os primeiros sintomas foram detetados aos 21 anos), Hawking tinha uma esperança de vida de dois ou três anos. O cientista não só ultrapassou todos esses limites (tem atualmente 72 anos), como as suas limitações não o impediram de se tornar num dos principais físicos do século XX, com uma série de investigações e traba-lhos extraordinários. Hawking é um lutador exemplar: cedo ficou em cadeira de rodas e, em 1985, uma pneumonia deixou-o à beira da morte, sendo necessária uma traqueoto-mia que o deixou mudo.Há quase três décadas que o físico britânico comunica através de um computador inte-grado na sua cadeira de rodas, montando as suas frases com um programa especial que lhe permite formar palavras letra a letra, e através de um sintetizador de voz. Quando, no início da década passada, perdeu a mobi-

lidade da mão direita, passou a recorrer aos movimentos faciais, através de novo recurso tecnológico: um detetor que sai da parte superior dos seus óculos regista os movimentos da bochecha, a única parte do corpo (para além dos olhos) que ainda controla. Hawking comunica muito lenta-mente, a cerca de uma palavra por minuto, mas comunica. Numa entrevista publicada em fevereiro de 2014, no jornal Folha de São Paulo, o físico argentino José Edelstein mostrava-se impressionado com a persis-tência de Hawking em querer comunicar desta forma, utilizando um lento programa de computador. Certo é que o cientista se tornou um símbolo para a comunidade de deficientes, exemplificando as suas necessidades de integração. Por essa razão, aceitou participar na cerimónia de abertura dos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012: “Creio que a ciência deve fazer tudo o que for possível para prevenir ou curar as deficiências”, disse então, através do seu sintetizador de voz.

Stephen Hawking foi a estrela da abertura dos Jogos Paralímpicos de 2012, em Londres. Aqui, num dos ecrãs gigantes do estádio.

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estão disponíveis várias soluções, desde o PTJaws, para invisuais (o texto no computador é convertido para voz), até ao PTGrid 2 (para vários tipos de handicaps, é um sistema de teclados no ecrã que funciona com qualquer dispositivo apontador), passando pelo PT PC Eye Go (para problemas neuromotores, per-mite usar o computador apenas com o olhar).

Nesta área, destaca-se ainda, em Portugal, desde 1991, uma empresa especializada, a Anditec, que comercializa tecnologias de rea-bilitação e apoio para pessoas com problemas neuromotores.

Outro dos bons exemplos desta nova era tecnológica aplicada às deficiências foi apre-sentado em outubro do ano passado, quando o Mosteiro da Batalha estreou guias em braille e língua gestual. Mostrando preocupação pela inclusão, a instituição tentou encontrar soluções para pessoas com necessidades especiais: com baixa mobilidade (mobiliário ergonómico), baixa visão (experiências táteis, audioguia com descrição), cegas (sinalética em braille), surdas (videoguia em língua gestual e textual) e com deficiência intelectual (textos com apoio pic-tográfico, experiências táteis). A maior parte destas aplicações móveis pode ser descarre-gada no site do monumento. É caso para dizer: eis como se ganha uma... Batalha.

J.S.

aplicação, ainda um protótipo, baseia-se essen-cialmente em três botões de emergência, para os bombeiros, para a polícia e para uma ambu-lância, e um botão de videochamada. O defi-ciente (ou idoso) apenas tem de pressionar um dos botões para ficar ligado a uma comuni-dade de ajuda rápida, que pode ser constituída por familiares, amigos, vizinhos, profissionais do ramo ou entidades públicas. É também dete-tada a sua localização, facilitando uma assis-tência rápida. Em dezembro, um furacão nas Filipinas levou João Gomes a mostrar, em poucas palavras, no Facebook, como a App112 poderia ser útil numa situação destas.

Ainda à procura de apoios e investidores (Gomes lamenta a falta de interesse dos orga-nismos públicos já contactados, incluindo a própria Associação Portuguesa de Surdos), a App112 foi apresentada no 24.º Congresso das Comunicações, no Centro Cultural de Belém,

na Feira do Empreendedor, na Alfândega do Porto, e na feira Portugal Maior, na FIL, em Lis-boa, integrada no stand da Federação Mundial das Línguas Gestuais, da qual João Gomes é presidente.

GANHAR BATALHASO que encontrámos para a deficiência

motora, e para a surdez, pode também ser encontrado para outras deficiências. As novas tecnologias chegam a todo o lado, permitindo maior autonomia a pessoas com diferentes níveis de incapacidade. Talvez o melhor exem-plo da variedade de artefactos atualmente disponível seja oferecido pelo catálogo da Fundação PT, que disponibiliza no seu site soluções especiais para diversas áreas: Visual, Fala/Comunicação, Cognitiva, Auditiva/Sur-dez, Neuromotora, Cidadãos Idosos em Risco e Cidadãos Com Doenças Severas. Nesta lista

Livro multiformatoO utro exemplo da capacidade in-

ventiva do ser humano é a criação do primeiro livro multiformato em português, apresentado em dezembro: trata-se de uma aplicação para o livro O Pequeno Trevo, de Ana Cristina Luz e Margarida Oliveira, uma história in-fantil a que poderão ter acesso todas as crianças, seja qual for a sua deficiência. A aplicação está adaptada a diferentes necessidades, como audiolivro, videoli-vro com língua gestual, SPC (símbolos pictográficos para a comunicação), ilus-tração tátil com áudio-descrição, sistema braille e livro digital. A aplicação é pro-priedade da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Leiria, e pode ser descarregada em http://opequenotrevo.bonsexemplos.com.Ao meu alcance

O sistema Jaws (Job Access With Speech), em cima,

digitaliza para voz os textos que surgem no monitor do computador. A sua

adaptação para português é uma das aplicações que podem ser obtidas através

da Fundação PT. À esquerda,

o PTMagicContact, para pessoas com

dificuldades motoras.

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Psicologia

Dama pink. Kitten Kay Sera, uma atriz californiana de 51 anos, decidiu levar ao extremo o seu amor ao cor-de-rosa: tudo na sua vida, da roupa aos móveis e ao pelo do seu cachorro, é dessa cor.

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Maníacos da limpeza, viciados em videojogos, fanáticos pelo futebol, dependentes do trabalho...

Por vezes, um único interesse invade a nossa mente, embora uma dose de obsessão seja

imprescindível para alcançar determinadas metas.

Descubra onde está o limite

Manias deOBSESSIVO

GE

TT

Y

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D ir-se-ia que vivemos numa época de pessoas absorvidas por assuntos que, aos olhos dos outros, parecem banais. Um exemplo: aproximada-

mente 60 milhões de utilizadores de telemóveis e tablets dedicam uns minutos por dia ao Candy Crush. Quando não podem jogar, alguns mani-festam sintomas semelhantes aos da síndrome de abstinência: sentem ansiedade, arran-jam tempo para se dedicar ao vício à custa do trabalho ou da vida privada, e têm ataques de fúria quando perdem. O mesmo acontece com outros jogos. Por exemplo, estima-se que os milhões de adeptos do World of Warcraft lhe consagram mais de seis horas diárias sempre que surge uma nova versão. Depois, a dedicação passa para apenas duas horas por dia…

O futebol, o desporto que maior paixão suscita entre os adeptos, é outro exemplo de fixação em algo a priori sem qualquer trans-cendência. Um vídeo gravado há poucos anos sobre um fã da equipa argentina do River Plate mostrava a que extremos pode chegar um

As terapias com hipnosetentam desviar as ideias fixas

adepto zangado com o seu clube: insultos bru-tais a jogadores que falham um golo, pancadas nos móveis da casa, ataques violentos de fúria... Um caso singular? Talvez, mas, ao vermos as imagens, todos recordamos cenas semelhantes.

Fãs de artistas pop adolescentes (Justin Bie-ber, Miley Cyrus, One Direction, Violetta…), atletas amadores que se sentem mal se não cor-rerem pelas ruas todos os dias e colecionado-res de diversos objetos são outros expoentes de um comportamento que eleva o simples passatempo ou diversão à escala do total ofus-camento. Parece que os seres humanos têm facilidade em transformar o “gosto disso” em “tenho necessidade”.

O que têm em comum todas estas paixões? Por um lado, respeitam as regras básicas da chamada “modelação”, ou seja, o processo através do qual se criam novos e persisten-tes comportamentos e que foi definido por especialistas como Burrhus Frederic Skinner (1904–1990). Primeiro, conseguem aliciar-nos com reforços imediatos e muito fáceis de alcan-

çar. É a sensação inicial de êxito proporcionada pelo jogo Angry Birds: a pessoa acerta sempre, seja qual for o lugar para onde envia o pássaro. Os programadores sabem que, para captar uma grande quantidade de utilizadores, é necessá-rio reduzir ao mínimo o esforço inicial. Contudo, depois, é muito importante que a pessoa seja submetida ao que Skinner denominava “reforço diferencial”. Não basta saber fazer algo: são as recompensas por fazê-lo bem que nos conduzem a sucessivas tentativas.

IMPULSIVOS E REFLETIDOSPor isso, as atividades que produzem sempre

resultados positivos raras vezes desencadeiam um comportamento compulsivo. O reforço tem de ser cada vez mais difícil de obter, uma regra aplicável tanto aos colecionadores como aos que vivem para se estafar no ginásio: os primei-ros progressos conseguem-se de forma quase imediata, enquanto as peças raras seguintes ou os exercícios de musculação exigem um consi-derável investimento em horas e dedicação. Como nos recordam os psicólogos comporta-mentais, abandonamos imediatamente aquilo que nos proporciona resultados persistentes mas não produz gratificação.

O segredo dos vendedores de obsessões

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consiste em conseguir que fiquemos agarrados a algo que nos proporciona alegrias de forma intermitente e apenas de longe em longe. É assim que funcionam as máquinas de jogos dos casinos (slot-machines), com as suas luzes e sons apoteóticos: alertam todo o casino para as pessoas saberem que alguém ganhou uma boa maquia, levando-as a esquecer o dinheiro previamente gasto. É também assim que fun-ciona a forma como se forjam muitos compor-tamentos sociais.

Além das estratégias de compensação, a fórmula do êxito inclui outros fatores. Em pri-meiro lugar, já se começou a estudar as corre-lações bioquímicas dos fenómenos de depen-dência. Um estudo recente da Universidade de Washington chegou à conclusão de que jogar futebol aumenta em 30 por cento a produção de testosterona. Trata-se de um dado interes-sante, especialmente se considerarmos que a experiência foi realizada com tsimanes, uma etnia da Amazónia, que nunca tinham visto nem praticado o jogo e que apresentam, nor-malmente, níveis muito baixos da hormona masculina. Há, pois, razões fisiológicas para explicar a generalizada paixão pela bola, des-porto que conta com mais de dois mil milhões de adeptos, um terço da população mundial?

Além disso, não basta a atividade ou o objeto de desejo possuírem uma fórmula vencedora: o dependente tem de ser alguém com tendência para ficar viciado. Todos conhecemos pessoas imunes a modas que outros consideram irre-sistíveis, e indivíduos que convertem, pelo contrário, todas as suas paixões em necessi-dades ardentes.

Em quase todas as classificações dos psi-cólogos, surgem dois grandes grupos: o das pessoas com muita energia, espontâneas, que agem entusiasticamente e sem refletir dema-siado, os impulsivos, e o dos indivíduos com menos reflexos, mais sossegados e tranquilos, que hesitam antes de agir e procuram ver todas as facetas de uma decisão, os refletidos. Trata-se de uma característica da personalidade com uma evidente base neurobiológica: os estudos asso-ciam ambas as índoles à quantidade de ligações entre a amígdala (encarregada do autodomí-nio) e o córtex cerebral (de onde provém a tomada de decisões). O resultado é que os pri-meiros correriam maior risco de ficar obcecados com algo. Se esse algo lhes produz um reforço imediato (recorde-se que todos os fenómenos referidos funcionam com uma primeira abor-dagem de recompensa fácil), terão tendência para ignorar as possíveis consequências a médio

prazo. Iniciado o comportamento, tendem a repeti-lo de forma incontrolável.

SINTOMA DE PENSAMENTO ÚNICOOutros investigadores consideram que a

predisposição para ficar obcecado já constitui, por si só, um traço de caráter que não necessita da predisposição para se deixar levar pelo primeiro impulso. Em vez disso, os afetados procuram a ordem: são meticulosos e perseve-rantes nos seus objetivos, embora estes sejam considerados questões pouco importantes pelos outros. Duvidam, frequentemente, de terem conseguido acertar, e verificam sistema-ticamente os seus atos, o que os leva a ser par-cimoniosos, isto é, a desenvolver determinadas tarefas com uma calma que pode chegar a exasperar aqueles que os rodeiam.

Existem condicionantes fisiológicas que nos situam nessa categoria de indivíduos. Segundo um estudo publicado por uma equipa de inves-tigadores japoneses em 2011, a rede frontopa-rietal (a zona cerebral relacionada com a aten-ção) é ativada com maior intensidade nas pes-soas obsessivas quando reagem a um estímulo. Além disso, também apresentam uma maior ligação entre aquela zona e a região motora, o que explicaria a necessidade premente de agir.

Vidrados no ecrãO s jogos são das diversões mais susce-

tíveis de sequestrar a nossa mente. À esquerda, um exemplo disso: um utilizador do Minecraft (uma espécie de Lego virtual) recriou, com todos os pormenores, a cidade King’s Landing (“Desembarque do Rei”), da série e dos livros de A Guerra dos Tronos. Outro fenómeno global é o Candy Crush (em

cima), que consiste basicamente em alinhar rebuçados. Segundo os especialistas, este tipo de jogos vicia porque passar de nível produz uma pequena libertação de dopami-na, neurotransmissor associado ao prazer e à dependência, Além disso, o acaso (associado à surpresa) torna-os mais irresistíveis: conse-guiremos fazer melhor da próxima vez?

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Por último, observou-se nesses indivíduos uma fraca interligação na denominada “rede por defeito”, os neurónios que trabalham quando não estamos a pensar em coisas concretas.

O último fator é significativo: quando se procura tratar pessoas com uma obsessão, o trabalho mais árduo consiste em ajudá-las a desligar, a deixar de pensar continuamente no mesmo. O próprio esforço de autocontrolo para alcançar um estado de repouso psíquico pro-voca, paradoxalmente, stress cognitivo. Por isso, diversas técnicas terapêuticas procuram reconduzir a mente para outra via, em vez de interromper abruptamente o pensamento cir-cular. Um exemplo simples é induzir (através da hipnose, por hipótese) o paciente a imagi-nar um rio pelo qual navega a certa velocidade enquanto observa como a corrente leva todas as folhas que caem das árvores nas margens. Depois, pede-se que faça o mesmo com a sua obsessão: que a transforme numa esfera que cai ao rio e é arrastada pela corrente até se perder, pouco a pouco, no horizonte. Trata-se de perceber a sensação de alívio que sentimos quando os problemas fluem a uma velocidade adequada.

O psicólogo Mihály Csikszentmihalyi, da Uni-versidade de Claremont (Califórnia), propôs uma teoria para explicar por que motivo é tão importante conseguir esse tipo de paz. Segundo Csikszentmihalyi, conseguimos, por vezes, alcançar o que denominou o “estado flow”.

Tem tendência para ficar obcecado?S e pretende descobrir se tem tendência

para deixar que determinadas tarefas lhe absorvam todo o seu tempo e esforços, analise as frases que se seguem, atribuindo--lhes uma pontuação consoante se identi-fique mais ou menos com o enunciado: 1 significa que não se aplica a si em absoluto; 2, que apenas se verifica em raras ocasiões; 3, que se aplica quase sempre; 4, que está totalmente de acordo com a frase.

1 – Custa-me imenso desligar do trabalho se não tiver um passatempo que ocupe a minha mente por completo.2 – Vêm-me à cabeça pensamentos ou imagens desagradáveis que só desaparecem quando me dedico a determinada atividade.3 – Perco tempo em tarefas que não são muito importantes, mas que tento executar na perfeição.4 – Tenho necessidade de manter certos ob-jetos de uso diário na ordem que estabeleci previamente.5 – A ansiedade toma conta de mim quando deixo de fazer certas atividades que executo diariamente.6 – Inquieta-me a possibilidade de aconte-cerem coisas horríveis por minha culpa.7 – Quando me entusiasmo com certo desafio, os outros objetivos da minha vida desaparecem.8 – Senti-me forçado a realizar determina-dos atos (comprovar se algo está mesmo fechado, tocar em objetos, contar peças de roupa...) repetidamente, e custou-me parar de fazê-lo.9 – Dediquei mais de duas horas por dia a atividades que considerava a priori um simples hobby.10 – Vivo angustiado pelo que possa acon-tecer no futuro.11 – Quando meto uma coisa na cabeça,

prefiro isolar-me dos outros durante dias inteiros.12 – Fujo de certas atividades e ambientes porque sei que acabaria por ficar viciado.13 – Pratico diariamente rituais compulsivos.14 – Sinto-me vazio quando abandono uma atividade a que me dedico há algum tempo. 15 – A minha vida social reduz-se às pessoas que partilham comigo determinada paixão.

RESULTADOSSome os pontos atribuídos e veja onde se situa a sua queda para a dependência.Até 32 pontos – Tem poucas probabilida-des de arranjar uma obsessão. A razão para o risco reduzido de ficar viciado em algo reside na sua capacidade de distanciamento e no baixo nível de ansiedade. Contudo, também existe uma desvantagem: será di-fícil entusiasmar-se. Procure diversificar os seus interesses, pois não encontrará, prova-velmente, uma atividade única que desperte a sua paixão e lhe sirva de motivação.Entre 33 e 42 pontos – Encontra-se no invejável meio termo: é capaz de ficar fascinado por certos assuntos e dedicar-lhes uma grande quantidade de energia, mas poucas vezes se transformam em ideias fixas. Canalize de forma inteligente essa aptidão para reservar as suas forças para aquilo que realmente merece a pena.Mais de 42 pontos – É potencialmente ob-sessivo. Esse traço de caráter possui as suas vantagens: permite-lhe lutar por objetivos que podem parecer quase intangíveis aos outros, e fará tudo o humanamente possível por alcançá-los. Porém, também deverá esforçar-se por não descuidar as restantes facetas da sua vida quando se envolve em algo. Prepare-se para uma deceção perante um possível resultado negativo, depois de ter investido todas as suas energias.

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Preocupar-se demasiado com a limpeza é um dos comportamentos

obsessivos mais comuns.

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Estes rituais contribuem, inicialmente, para dominar o mal-estar produzido por certas imagens de caráter sinistro (ver a família morta por terem sido descuidados), por ideias (“não vou ter sorte se não levar a minha camisa azul”), ou por impulsos (“tenho vontade de atropelar aquele peão!”), que surgem de forma impre-vista e intrusiva. O problema das pessoas com DOC é que acabam por viver como escravas do medo de não terem executado os atos repetiti-vos e, pouco a pouco, esse receio afeta as suas relações pessoais e dificulta a vida laboral.

Qual é, então, a diferença entre uma pessoa ofuscada pela nova versão de um jogo e os hikikomori, adolescentes japoneses que se fecham no quarto e não saem de lá durante anos? Entre um investigador que dedica horas e horas, durante várias semanas, a concretizar uma descoberta, e o típico “cientista louco” da banda desenhada? Entre quem não se apro-xima dos seus semelhantes com medo dos micróbios e o indivíduo que acabou de ler um texto sobre os riscos de contágio de determi-nada doença e está muito preocupado? A dife-rença reside, precisamente, no grau de sofri-mento e na quantidade de experiências de vida que a obsessão faz o indivíduo perder. Tal como acontece com qualquer estratégia vital, convém recordar aqui o lema do médico e alquimista suíço Paracelso: “Tudo é veneno. Depende da dose.”

L.M.

Nessa altura, encontramo-nos completamente absortos numa atividade, mas de forma des-contraída e sem tensão. É necessário que se verifiquem determinadas condições: a sensa-ção de equilíbrio entre o desafio intelectual que implica e as nossas capacidades; uma diminui-ção da autoconsciência (a observação de nós próprios); a perceção de que vamos deixando para trás cada passo até chegar ao final, etc. Quando nos sentimos assim, o tempo passa sem nos apercebermos disso. Pois bem, os obsessivos resistem ao estado flow. Regra geral, todas as tarefas lhes parecem difíceis, permanecem em contínua vigilância de si pró-prios e são excessivamente perfecionistas.

Em que momento deve um profissional inter-vir? Não há um limite claro: quando o paciente manifestar sofrimento e estiver limitado pelas suas compulsões. Como qualquer traço da personalidade, a tendência para ficar obcecado tem as suas vantagens e desvantagens. Exemplo das primeiras: muitos cientistas insignes foram famosos pela sua meticulosidade e pela mania da ordem. Efetivamente, alguns estudos che-gam à conclusão de que esse ofício é dos que mais podem chegar a absorver o pensamento.

Em 2012, investigadores chineses analisaram

A obsessão torna-se problemaquando afeta o quotidiano

Vigorexia, uma obsessão atualA influência cultural nas

nossas obsessões é ine-gável. As manias presentes em determinada época ou lugar são incompreensíveis noutra. Na sua História Íntima da Humanidade, o historiador britânico Theo-dore Zeldin surpreende-nos com uma reflexão paradoxal. Segundo o autor, no México dos astecas, a maior parte dos escra-vos oferecia-se voluntariamente para sê-lo. A causa é que não tinham conseguido gerir a sua obsessão pelo patoli, o jogo de gamão nacional. Naquela época, todos aprendiam a jogar desde a infância e a apostar os seus bens. Quando chegavam à maturi-dade, perante a quantidade de dívidas acumuladas, preferiam oferecer-se como servos aos grandes senhores de que ser con-denados à morte.Atualmente, a compulsão mais incompreensí-vel para quem não está afetado é, talvez, a vigorexia, distúrbio psicológico que, embora ainda

não tenha sido definido nos manuais convencionais de saúde mental, ameaça tornar-se um dos principais problemas psiquiá-tricos do futuro. Os vigoréxicos possuem uma imagem distorcida de si próprios que os leva a con-siderar sempre que não estão em forma. As expectativas irreais acabam, em muitos casos, num corpo desproporcionado, pois adquirem uma fisionomia que não corresponde à sua estatura e constituição física. Associam beleza ao aumento da massa muscular, e dedicam a maior parte do dia ao ginásio e a uma alimentação rica em proteínas. O quadro agrava-se quando recor-rem ao consumo de anabolizan-tes ou esteroides para acelerar o processo. Além do isolamento social que pode acarretar, alguns estudos mostram que a vigorexia aumenta o risco de sofrer lesões hepáticas e cardíacas, disfunção erétil, problemas de fertilidade e cancro da próstata.

o tráfego em determinadas páginas da internet com conteúdos científicos (visitas e descargas de documentos), e comprovaram que os utili-zadores praticamente não descansavam fora do horário laboral. Verdadeiros workaholics, procuram informação sobre os temas que estão a estudar a altas horas da noite ou durante os fins de semana, sem fazerem pau-sas nem para comer.

TAREFAS BANAISContudo, o excesso de zelo pode ultrapassar

o âmbito laboral. Muitas pesonalidades des-tacadas em diversos campos (o realizador Woody Allen, o futebolista David Beckham ou o cantor Michael Jackson…) também se tornaram famosos por comportamentos que roçam, ou mesmo se integram por completo, no distúrbio obsessivo-compulsivo (DOC). Este problema psicológico seria uma versão extrema da personalidade obsessiva. Os afeta-dos acabam por sentir o tempo a escorrer por entre os seus dedos enquanto se consagram a tarefas banais, mas não conseguem resistir: lavam as mãos dezenas de vezes por dia, verifi-cam reiteradamente se fecharam o gás ou não deixaram a chave na porta...

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História

Os assassinos mais frios e sofisticados recorreram a substâncias muito diferentes cuja administração

se revelou fatal. Eis as suas histórias.

De Cleópatra ao Dr. Veneno

Figuras TÓXICAS

A lém da estricnina, são conhecidos mais de 5000 alcaloides, que podem ser encontrados, na sua maioria, no mundo vegetal. Alguns são tão

populares como a cafeína, a nicotina ou os derivados do ópio. A sua localização na planta varia. Na pimenta negra ou na cicuta, concen-tra-se no fruto; na árvore da quina, na casca que cobre o tronco; na semente da noz-vómica, encontramos a estricnina.

O poder medicinal das sementes de noz--vómica (Strychnos nux-vomica), uma árvore ori-ginária da Índia, já era conhecido dos médicos da antiguidade. Foi com elas que confecionaram tinturas com alegadas propriedades estimulan-tes e potenciadoras das capacidades visual e auditiva. Foram também utilizadas pelo médico pessoal de Hitler, Theodore Morell, uma estra-nha personagem fascinada por medicamentos pouco convencionais, descrito pelo historiador Hugh Trevor-Roper como “um homem gordo, velho, de gestos rasteiros, linguagem pouco articulada e os hábitos higiénicos de um porco”. O clínico costumava receitar ao ditador compri-midos de estricnina e beladona para aliviar a dor.

Proibida na Europa desde 1994, a estricnina foi utilizada a torto e a direito, na época vitoriana, pelo médico e jogador William Palmer, que a servia dissolvida em brandy, para dissimular o sabor. Graças ao alcaloide, viu-se livre de agio-tas, corretores de apostas e credores, além da mulher, do irmão, da sogra e de quatro dos seus filhos quando tinham poucas semanas de vida. Não é de estranhar que Charles Dickens lhe tenha chamado “o maior vilão que jamais pisou Old Bailey”, o Tribunal Central Criminal de Londres.

Contudo, o veneno preferido dos séculos XV a XVII foi o arsénico. Os Bórgia, os Médici

e os Sforza eram fiéis adeptos da cantarela ou acquetta di Perugia, cidade em que o arsénico era misturado com vísceras secas de suíno. O veneno provocava a morte em 24 horas, depois de um sofrimento terrível das vítimas.

Outra poção letal era a água-tofana, ou acquetta di Napoli, uma combinação de arsé-nico com cantárida ou mosca-espanhola (Lytta vesicatoria), um coleóptero com aplicações medicinais. Tanto a origem como a composição exata da beberagem são incertas, mas crê-se que bastava deitar quatro a seis gotas em água ou vinho para causar a morte. Muitos historiadores afirmam que foi concebida por Giulia Toffana, uma atraente química que aprendeu o ofício nos laboratórios de diferentes farmacêuticos. Tornou-se famosa por vender venenos às mulheres, sobretudo as de baixa condição social com maridos problemáticos. Detida pela Polícia Pontifícia, confessou, sob tortura, ser respon-sável pela morte de mais de 600 homens, em Roma, entre 1633 e 1651. Foi executada, junta-mente com a irmã e três cúmplices, na praça Campo de’ Fiori, em julho de 1659.

CEIAS DE ALTO RISCONão há dúvida de que o Renascimento ita-

liano foi a época dourada dos envenenadores. Brilharam, nesse campo, os Bórgia, naturais de Borja (Saragoça), que se estabeleceram em Játiva e Gandia (Valência) antes de Alfons de Borja i Cavanilles ter sido nomeado papa, em 1455. Toda a família dominava a arte de enve-nenar, e qualquer pessoa que fosse convidada para um banquete oferecido pelos Bórgia cor-ria o risco de começar a sentir-se gravemente doente passadas algumas horas. Todavia, não eliminavam apenas quem representava um

problema ou um obstáculo para o clã. Por vezes, os comensais eram simples cobaias que serviam para testarem novas misturas. A forma de administrar o agente tóxico era através dos alimentos, muito condimentados para disfarçar eventuais sabores estranhos.

Catarina de Médici (1519–1589) foi também versada nesses mesteres. Casada com Henri-que de Orleães, levou para França o seu cor-tejo de ajudantes, entre os quais se encontra-vam astrólogos e parfumeurs, dois ofícios que, por vezes, serviam para ocultar a sua verda-

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Mais um pouco? Sentar-se à mesa da família Bórgia, perita em poções fatais,

não devia ser muito tranquilizador, como mostra o quadro Um Copo de Vinho Com

César Bórgia (1893), de John Collier.

Três supertóxicosP rovêm da natureza (raiz de mandioca,

noz-vómica e rícino, respetivamente) e os seus efeitos são assustadores. Nem tudo o que é natural faz bem à saúde...Cianeto – Vegetal ou sintético, é hoje utili-zado como inseticida. Age por ingestão ou inalação, e a dose letal é de 5 miligramas por quilo. O seu antídoto é o nitrato de sódio.

Estricnina – Produz contrações e espasmos nos músculos torácicos, até causar asfixia. A dose mortal é de 2,3 mg/kg. Não tem antídoto.Rícino – É o veneno vegetal mais potente. Doze microgramas por quilo são suficientes para matar uma pessoa. Produz hemorragia intestinal. Não tem antídoto.

deira ocupação de criadores de venenos. Mal Catarina chegou à sua nova residência, diversas pessoas começaram a morrer sem explicação, talvez graças ao brilhante uso de uma das suas substâncias preferidas, o arsénico. A sua fama entre os franceses foi de tal ordem que em breve a palavra italien se transformou em sinónimo de empoisonneur.

O envenenador preferido de Catarina era René, o Florentino, assim designado em honra da cidade onde aprendera o ofício. Chegou a dizer-se que teria sido o responsável pela morte

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de Joana III de Navarra, através do envio de um par de luvas perfumadas, impregnadas de um líquido letal. O rumor, que hoje se sabe ser falso, inspirou Alexandre Dumas (pai) a escrever o romance A Rainha Margot.

A MARQUESA PARRICIDAJá nos primeiros anos do século XVII, a fama

coube a Antonio Exili, cujo verdadeiro nome tal-vez fosse Nicolo Egidi (ou Eggidio). Só chega-ram aos nossos dias alguns fragmentos da sua vida. Iniciou a carreira como alquimista, mas, a partir de certa altura, deixou de procurar o eli-xir da eterna juventude e acabou a criar poções letais. Requisitado por uns e temido por outros, percorreu diferentes cortes europeias, do Vaticano ao Báltico, a vender os seus serviços. Pensa-se que foi o envenenador contratado por Olimpia Maidalchini, cunhada do papa Inocên-cio X e cuja influência nos assuntos vaticanos era tal que chegou a ser conhecida como “a papisa”. Quando Exili partiu para França, em 1663, o governo ordenou a sua detenção e foi encarce-rado na Bastilha. Ali, crê-se que se tornou amigo de Godin de Sainte-Croix, o amante da mar-quesa de Brinvilliers, preso pelo poderoso pai da dama após descobrir que mantinham um affaire. Godin aprendeu com Exili a fórmula da água tofana, que a marquesa utilizaria depois para se desfazer do pai e dos dois irmãos, entre outros. Após três meses na prisão, Exili foi solto graças às influentes amizades que tinha na corte e viajou para Inglaterra.

Foi o processo contra a marquesa de Brinvil-liers, em 1675, que desencadeou o chamado “assunto dos venenos”, um grande escândalo que atingiu desde a alta sociedade aos círculos mais próximos do rei Luís XIV e que conduziria a 36 execuções, entre 1677 e 1682. A da mar-quesa foi a primeira e especialmente cruel. Foi--lhe aplicada a tortura da água (obrigaram-na a beber mais de sete litros), cortaram-lhe a cabeça e o corpo foi queimado, amarrado a uma estaca.

LEITE PARA PREVENIRO alcance do escândalo está bem patente no

número de alquimistas e adivinhos julgados na época: mais de meia centena apenas em Paris. Entre eles, destaca-se Catherine Deshayes, conhecida como la Voisin, que lia cartas e, além de poções de amor, preparava venenos. Foi condenada à fogueira por bruxaria. O pânico de se poder morrer intoxicado estendeu-se como uma praga pelas ruas de Paris, onde quase qualquer óbito era considerado suspeito.

Claro que nem todos os que sabiam alguma

Foi no século XIX que surgiua toxicologia

científica

coisa de química alinhavam pelo lado negro. Christophe Glaser foi um químico suíço conhe-cido por criar antídotos para os venenos. A sua especialidade era a teriaga, um composto que incluía uma mistura de ópio e de outras drogas; de facto, o preparado podia conter até setenta ingredientes, incluindo carne de víbora. O leite era outros dos antídotos que aconselhava; daí que se bebesse em grandes quantidades na corte, com medo de que a comida escondesse alguma surpresa desagradável. Curiosamente, Glaser foi acusado de ter vendido arsénico à marquesa de Brinvilliers. Felizmente, após pas-sar algum tempo na Bastilha, os juízes compro-varam a sua inocência e libertaram-no.

Não é de estranhar que quase todo o conhe-cimento sobre o tema, acumulado durante séculos de intrigas palacianas, se tenha perdido nas brumas do segredo. Contudo, é possível indicar a data do início do seu estudo científico, quando o farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Adam Sertürner conseguiu isolar a morfina do ópio, em 1804. A moderna toxicolo-gia nasceria pouco tempo depois, em 1818, por ocasião da publicação do Traité des Poisons, de Mateu Orfila, um espanhol da ilha de Menorca naturalizado francês.

O principal problema que a justiça enfren-tava era ser preciso encontrar algum vestígio na vítima para saber se tinha sido envenenada. Dado que o agente tóxico mais comum na época era o arsénico, o químico escocês James Marsh concebeu, em 1836, uma técnica que podia detetar a sua presença no organismo. Denominado “teste de Marsh”, foi utilizado num julgamento passado três anos, durante o célebre processo contra Marie-Fortunée

Lafarge pelo assassínio do marido. Graças ao depoimento de um criado, que vira a senhora da casa deitar um pó branco na bebida deste, ela pôde ser acusada. Uma busca à casa acabou por encontrar arsénico, mas Marie alegou que era veneno para os ratos.

Foi Orfila que demonstrou que havia também vestígios do composto letal no corpo do pobre Charles Lafarge, que adoecera de forma mis-teriosa e cujos sintomas se foram agravando até morrer. Declarada culpada, Marie seria a primeira pessoa a ser condenada graças à ciência toxicológica.

MÉDICO NA FORCAOutra das substâncias estudadas a fundo

naqueles tempos foi a aconitina, um alcaloide extraído do acónito, planta da família das ranunculáceas, que já era usada nas antigas guerras da Europa e da Ásia para envenenar as reservas de água do inimigo. Durante a Idade Média, foi associada à bruxaria, e os curandeiros utilizavam-na para tratar a dor de forma tópica. No entanto, havia um risco. Se excedessem a dose, podiam provocar uma paragem cardíaca no doente, o que convertia a substância em algo muito perigoso.

Em dezembro de 1881, um médico norte-ame-ricano residente em Inglaterra, George Henry Lamson, ajudado pela irmã, preparou uma tarte de frutas com o veneno destinada ao cunhado, Percy John, para poder ficar com uma herança. O curioso é que Percy, hemiplégico, sentiu uma forte dor de cabeça antes de provar o doce. Não devia confiar muito no cunhado, pois recusou os comprimidos que este lhe ofereceu. Percy morreu e Lamson já se imaginava com

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os bolsos cheios de dinheiro, mas cometeu um erro que o levaria à forca. Pensou que a aconitina não podia ser detetada, pois era o que ouvira dizer a um professor de medicina nos tempos de estudante. O assassino não imaginava que a ciência o pudesse apanhar, nem que a toxi-cologia tivesse avançado o suficiente para o denunciar quando matou o cunhado.

UM CARACOL NO MUNDO DO CRIMECom a chegada do século XX, o desenvolvi-

mento das substâncias sintéticas colocou em apuros os toxicólogos, que tinham relativa-mente sob controlo as análises para deteção dos clássicos arsénico, estricnina e cianeto. Contudo, encontrar vestígios de veneno nem sempre era suficiente para condenar alguém. Um exemplo extraordinário foi o de Marie Bes-nard, acusada de envenenar treze familiares para ficar com a sua fortuna. Acusada em três ocasiões, não se conseguiu provar a sua culpa. Morreu em 1980, aos 86 anos. Se foi responsável pelas mortes, levou o segredo para o túmulo.

Atualmente, há uma enorme variedade de compostos tóxicos. Podem ser extraídos de plantas, como acontecia antigamente, mas também de moluscos como o caracol marinho Conus geographus. Em 1935, na ilha Hayman, perto da costa australiana, um jovem que se entretinha a tentar introduzir uma faca num destes animais foi picado na palma da mão. De imediato, a picada provocou entumescimento, lábios inchados e visão enevoada. Em trinta minutos, as pernas ficaram paralisadas e, pas-sado uma hora, perdeu a consciência e mergu-lhou num estado de coma fatal.

É possível encontrar, nas prateleiras das far-

mácias, muitas outras substâncias letais, como os sedativos comerciais e os barbitúricos, que foram também o método preferido dos sui-cidas até meados do século XX. Nos Estados Unidos, o número de mortes provocadas por barbitúricos foi multiplicada por doze em menos de vinte anos.

O recurso ao veneno para acabar com adver-sários políticos também não desapareceu na era moderna. Em 1978, o dissidente búlgaro Georgi Ivanov Markov morreu quando lhe inje-taram na perna uma microesfera com semente de rícino (Ricinus communis). Esta possui uma albumina, a ricina, que pode provocar um epi-sódio de gastroenterite com desidratação e graves lesões no fígado e nos rins. O óleo de rícino também é extraído das referidas semen-tes, mas elas são prensadas e aquecidas antes, para destruir a ricina.

ASCENSÃO E QUEDA DO DR. VENENOOutro caso foi o do político Viktor Yuschenko,

presidente da Ucrânia entre 2005 e 2010, envenenado, em 2004, com 2,3,7,8-tetracloro-dibenzodioxina (composto orgânico presente no agente laranja usado na guerra do Viet-name), administrada, seguramente, por agen-tes pró-russos que se opunham à sua vitória eleitoral. Yuschenko confiava tão pouco nos hospitais do seu país que viajou para a Áustria para ser examinado. Embora não tenha mor-rido, a intoxicação aumentou as probabilida-des de vir a sofrer um ataque cardíaco, cancro ou diabetes. O presidente chegou a apresen-tar a segunda maior concentração de dioxina encontrada numa pessoa viva.

Milénios antes, Cleópatra fizera experiências

com escravos e prisioneiros para encontrar a substância perfeita no caso de querer suicidar--se. Testou o meimendro, rico em hiosciamina, e a beladona, mas pô-los de lado porque, apesar da rapidez de ação, produziam muitas dores. Eliminou a estricnina de imediato, tanto pelas convulsões como pelo esgar horrível que pro-voca geralmente no rosto da vítima, o que iria “estragar” o seu bonito cadáver. Embora se conte que Cleópatra optou por ser mordida por uma cobra egípcia, é possível que não seja inteiramente verdade, pois não se trata de uma morte pouco dolorosa. Em 2010, o historiador alemão Christoph Schaefer adiantou a hipótese de a última rainha do antigo Egito ter ingerido uma mistura de cicuta, acónito e ópio.

Talvez Cleópatra tenha servido de inspiração ao bioquímico soviético Grigori Moissevitch Mairanovski, conhecido como “Dr. Veneno”. Durante o regime de Estaline, desenvolveu experiências com presos políticos e prisioneiros alemães e japoneses em cativeiro na Segunda Guerra Mundial. Objetivo? Encontrar um veneno incolor que matasse instantaneamente e não pudesse ser detetado em qualquer aná-lise toxicológica ao sangue do cadáver.

Testou derivados de gás mostarda, digoxina, tálio, ricina, colchicina, etc., e diferentes formas de administração: pela pele, nos alimentos, em injeções, na água potável... Cruel como poucos, se os voluntários se mantinham vivos passa-dos quinze dias da ingestão do produto tóxico, mandava executá-los. Caiu em desgraça em 1951, foi detido e acusado de ser um espião a soldo dos japoneses, um nacionalista judeu e um ladrão de venenos, entre outras coisas.

Quando foi libertado, em 1961, proibiram-no de se estabelecer em qualquer cidade soviética importante. Seja como for, morreu três anos depois, em circunstâncias misteriosas, talvez eliminado por ordem de Khrushchev, no esforço para apagar qualquer vestígio do estalinismo.

M.A.S.

Sequelas da dioxinaE m 2004, o líder da oposição ucraniana,

Viktor Yushchenko, foi envenenado com dioxina, um composto que produz des-de danos na pele a lesões na tiroide. Embora tenha acumulado uma concentração dez mil vezes superior à tolerada, sobreviveu.Pele – Em poucas semanas, torna-se mais oleosa e surgem borbulhas, pontos negros, calosidades e quistos sebáceos.Olhos – Diversos problemas, como infla-mação da conjuntiva e infeções.Pigmentação – Alteração da cor da pele, que escurece.Queratina – A acumulação excessiva desta proteína causa hiperqueratose: a epiderme torna-se mais áspera e adquire um tom amarelado.

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Economia

Das árvores da Costa do Marfim onde cresce a planta, passando pela colheita, pela fermentação,

pela secagem e pelo transporte para a Europa, percorremos o ciclo completo da indústria.

Uma indústria que move milhões

A viagem do CACAU

Coração vegetal. Dois camponeses da Costa do Marfim, o maior produtor mundial, extraem o conteúdo do interior dos frutos recém-colhidos de um cacaueiro, Theobroma cacao. A polpa branca e as sementes são ricas em açúcares, sais, pectina, ácidos orgânicos e proteínas.

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No ponto. A cor amarelada dos frutos indica que é o momento adequado para serem colhidos. Normalmente, há duas colheitas de cacau por ano, coincidindo com as épocas húmidas. Os agricultores, como Emile Ouedraogo (em primeiro plano) usam machetes para cortar os frutos.

Fim da jornada. Após mais um duro dia de trabalho, Emile regressa a casa, na aldeia de Kragui, com as suas duas mulheres e parte dos onze filhos, que o ajudam nas tarefas do campo. Nascido em 1956, no Burkina Faso, Emile emigrou em 1981 para o sudoeste da Costa do Marfim, onde possui e explora uma plantação com três hectares.

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O clima tropical húmidoé fundamental para o cacaueiro

Ao sol. Ao longo da rua principal de Kragui, os apanhadores de cacau põem-no a fermentar e a secar. Após a fermentação, as sementes, inicialmente brancas, adquirem uma cor violácea, púrpura ou acastanhada (como na imagem), devido à presença de antocianinas. A cafeína é outra substância que aparece durante o processo.

Último dia em África. Em São Pedro, segundo maior porto da Costa do Marfim, encontram-se as instalações da multinacional alimentícia Cargill. Ali se descarrega o cacau, que tem de passar um controlo de qualidade, antes de embarcar em direção à Europa.

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O chocolate move uma indústria global de milhares de milhões de euros e é um dos produtos comes-tíveis mais desejados, devido ao

seu sabor peculiar e às suas propriedades saudáveis. No entanto, tem um lado tão obs-curo como a sua cor: a matéria-prima a partir da qual se obtém é um bem escasso para as necessidades das fábricas chocolateiras do pri-meiro mundo, e com cuja plantação e colheita sobrevivem milhões de camponeses de países pobres que cumprem duras jornadas de traba-lho com salários miseráveis.

De facto, esta árvore, a Theobroma cacao, apenas cresce e se cultiva nuns quantos paí-ses de África, da América Central e do Sul e da Ásia. Os maiores produtores mundiais são a Costa do Marfim (38 por cento), o Gana (19%), a Indonésia (13%), a Nigéria (5%), o Brasil (5%), os Camarões (5%), o Equador (4%) e a Malásia (1%). Estes oito países asseguram 90% da produção mundial, e são também os principais exporta-dores, exceto o Brasil e a Malásia, onde o con-sumo interno absorve a maioria da produção. A indústria emprega milhões de pessoas, dos agricultores aos intermediários que compram o cacau nos países de origem e o transportam

até aos fabricantes de chocolate, situados quase todos na Europa.

Kadir van Lohuizen (nascido nos Países Bai-xos, em 1963), autor das fotos deste artigo e repórter especializado em conflitos bélicos, viajou até à Costa do Marfim para conhecer em primeira mão o mundo do cacau. Conviveu com dois agricultores da aldeia de Kragui e viu as semelhanças entre as suas vidas (muitos filhos, casas modestas), apesar das diferenças no rendimento laboral: um deles colhe três vezes mais cacau do que o vizinho. “Isso deve--se à formação recebida para melhorar a pro-dutividade, mas nem assim consegue uma eco-nomia decente. É um pouco menos pobre do que o outro, só isso”, diz o fotógrafo.

RISCO GLOBALSegundo os relatórios da FAO, a agência das

Nações Unidas para a agricultura e a alimenta-ção, a produção de cacau atravessa uma situa-ção de risco global. Se não forem introduzidas mudanças na cadeia de produção, os cultiva-dores não conseguirão satisfazer a crescente procura de matéria-prima.

Hans Perk, diretor do programa para o cacau da organização não governamental Soli-daridad (http://www.cocoa-solidaridad.org), explica: “É preciso investimento. Muitos agri-cultores aceleram o processo de fermentação e secagem, fundamental para obter mais e melhor chocolate, e assim vender mais cedo a colheita.” A realidade é que, apesar de a Costa

Faina dura. Trabalhadores da cooperativa Ecamon carregam sacos de cacau seco, cada um com cerca de 60 quilos, para os camiões. Os camponeses da Costa do Marfim exigiram há dois anos ao estado um preço mínimo de 1,4 dólares por quilo para este produto cultivado por 900 mil agricultores do país, de que dependem 3,5 dos seus 22 milhões de habitantes.

Setor em mudança. Um camião transporta sacos de cacau por uma estrada de terra batida. A pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional obrigaram o país a empreender reformas na indústria, para regular as suas atividades e eliminar intermediários.

Velho mundo. Armazéns da Cargill Cocoa & Chocolate em Amesterdão. Os Países Baixos são um dos principais fabricantes mundiais de chocolate, juntamente com a Bélgica, a Suíça, a Alemanha, França e os Estados Unidos.

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O aumento do consumo tornou

insuficiente a produção

mundial

do Marfim ter estabelecido um preço mínimo para o quilo do produto, o rendimento dos camponeses continua a ser exíguo.

Desde a sua descoberta, pelos maias, o cho-colate foi universalmente apreciado. Antioxi-dante, antidepressivo, considerado afrodisíaco en algumas culturas, é hoje um complemento básico da dieta e até se aplica em tratamentos de beleza, o que fez disparar a procura. Além disso, mudaram os gostos dos consumidores, que se inclinam agora mais para o chocolate negro, mais puro.

A produção mundial de cacau ultrapassou em 2013 os quatro milhões de toneladas, um terço a mais do que se produzia apenas dez anos antes! Mesmo assim, não chega. Segundo o Departamento de Economia e Esta-tística da Organização Internacional do Cacau (ICCO), a entrada no mercado de consumo de países como a Índia fará subir ainda mais os preços. Talvez em breve o chocolate se torne também um ouro negro, e que parte dessa riqueza chegue a quem o apanha.

L.O.

Artesãos. O chocolateiro Robert van Velze e a sua mulher, Deborah Kilroy, elaboram e vendem bombons artesanais na sua loja de Amesterdão, a Van Velze’s. No seu caso, usam cacau proveniente de uma quinta da Costa Rica que pratica agricultura sustentável.

Em série. A fábrica da Mars em Veghel, na região holandesa do Brabante, foi fundada em 1963, quando a marca, originária dos Estados Unidos, quis expandir-se à Europa. Hoje, é uma das maiores do mundo, produzindo milhões de produtos a todas as horas do dia e da noite.

Pó raro. Do porto de Amesterdão, o cacau em pó é levado em barcos para as fábricas de processamento, nas margens do rio Zaar. Ali será convertido em massa de cacau, uma pasta que conserva as suas gorduras naturais e que, misturada com outros ingredientes, como açúcares, leite ou frutos secos, servirá para fazer os chocolates.

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Marcas & Produtos

O novo Smart Fortwo já se encon-tra disponível para encomenda com a caixa automática de dupla embraiagem e seis velocidades,

estando previstas as primeiras entregas no em março. A caixa automática estará dispo-nível como equipamento opcional em combi-nação com as linhas de equipamento Passion, Prime e Proxy, por mil euros. A caixa de dupla embraiagem, única no segmento dos micro-carros, oferece uma mudança de velocidades particularmente suave, sem qualquer inter-rupção na potência de tração. O Smart Fortwo equipado com caixa automática acelera dos 0 aos 100 km/h em 15,1 segundos e atinge uma velocidade máxima de 151 km/h. O consumo de combustível combinado é de 4,1 litros aos 100 km, o que corresponde a um valor de CO2 de 94 gramas por quilómetro.

Caixa automática

Grands crus descafeinadosO s grands crus Nespresso são já sinónimo

de uma das melhores experiências de café. Por que razão os momentos descafeinados haveriam de ser diferentes? Os coffee experts da Nespresso debruçaram-se sobre três dos grands crus mais populares (um Intenso, um Espresso e um Lungo) e criaram os seus equivalentes, em versão descafeinada. Cada Grand Cru Volluto Decaffeinato, Arpeggio Decaffeinato e Vivalto Lungo Decaffeinato foi especialmente concebido para oferecer uma experiência semelhante, em gosto e aroma, à dos seus grands crus originais alter-ego. Isto significa que os amantes de café podem agora desfrutar do seu momento Nes-presso, na companhia dos seus aromas preferi-dos, sem restrições, a qualquer hora do dia ou da noite. Como é possível manter a qualidade excecional dos grands crus Nespresso descafei-nados? As ricas notas aromáticas do café verde são cuidadosamente preservadas durante o processo de descafeinação, respeitando assim a natureza do grão de café, que mantém o seu perfil e a sua riqueza aromática. Por outro lado, e como cada grand cru Nespresso possui um perfil sensorial próprio que compreende a intensidade, o amargor, a torrefação, a acidez e o aroma, o grande desafio para os coffee experts Nespresso foi manter os perfis sensoriais inalte-rados, quer se trate de descafeinados ou não.

50 noites de luxoA s marcas Durex e Veet acabam de lançar

uma campanha promocional: na compra de um produto Durex ou Veet, poderá habili-tar-se a ganhar uma das 50 noites de luxo & spa que as marcas têm para oferecer. Para celebrar o Dia dos Namorados, decorrerá até dia 12 de março um passatempo nas páginas da Durex e da Veet no Facebook, onde poderá candidatar--se a vários prémios. Para se habilitarem a ganhar, os participantes devem comprar um produto Durex ou Veet (durante a campanha), entrar na área específica da página da marca no Facebook, escolher uma dica no calendário 50 Ways to Play e partilhá-la no seu mural. Ao fazê-lo, saberá automaticamente se foi um dos premiados. As duas marcas vão oferecer 50 noi-tes em alojamento duplo com pequeno-almoço e tratamentos de spa.

CINQUENTANOITES DE LUXO & SPA

Os preservativos Durex são dispositivos médicos para fins contracetivos. Durex Play Lubrificantes e Durex Play Geles de Massagem são dispositivos médicos que suavizam a secura vaginal e os incómodos íntimos e são compatíveis com preservativos, no entanto não são contracetivos e não contêm espermicida. Leia atentamente a rotulagem e as instruções de utilização. Se sentir irritação ou desconforto interrompa o seu uso. Em caso de persistência dos sintomas, consulte o seu médico. Em caso de sensibilidade ao látex consulte o seu médico antes de utilizar os preservativos. Evite o contacto com os olhos. Se necessitar de lubrificação adicional com excessiva frequência, consulte o seu médico. Os preservativos Durex Placer Prolongado e Durex Mutual Clímax não devem ser utilizados quando qualquer dos parceiros sofrer de problemas respiratórios. Os produtos Veet são produtos cosméticos e de higiene corporal.

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A REALIDADE SUPERA A FICÇÃO

Visual ciclistaNesta temporada, a coleção Napapijri

Authentic, dividida em dois temas, inspira--se no mundo do ciclismo e transforma-se no guarda-roupa ideal para um estilo de vida ativo. O primeiro tema apresenta pormenores do mundo do ciclismo, com calças de compri-mento pelo joelho, inserções refletoras, fechos funcionais e estam-pagens de borracha em tecidos de alta performance. O icó-nico casaco Rainfo-rest é reinventado com um bolso de trás reflexivo, enquanto nas peças de nylon são intro-duzidos os forros com acabamentos em jersey, ofere-cendo o máximo de conforto para qualquer atividade. O segundo tema reflete um estilo de vida mais descon-traído, projetado especificamente para momentos de lazer. Tem como inspiração o histórico da marca, as cores e a bandeira norueguesa, focando-se sobretudo em estilos casuais de casacos de capuz, ideais para relaxar e apreciar as coisas boas da vida.

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Foto do Mês

Para mitigar o impacto ambiental originado por uma nova pedreira, os habitantes das aldeias vizinhas da barragem de Wawa, nas Filipinas, decidiram plantar uma floresta de árvores de mogno. Os arredores da barragem são um ponto de atração da população da capital, Manila, que ali encontram condições mais amenas, durante os meses de calor intenso.

Compensação florestal

Diretor Carlos Madeira ([email protected])Coordenador Filipe Moreira ([email protected])Colaboraram nesta edição Francisco Mota, Máximo Ferreira e Paulo Afonso (colunistas), Alfredo Redinha, Elvira del Pozo, Francisco Jódar, Isabel Joyce, Joana Branco, João Pedro Lobato, Joaquim Semeano, Jorge Nunes, Luis Miguel Ariza, Luis Muiño, Luis Otero, Mario García Bartual e Miguel Ángel Sabadell.Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Sara Tomás ([email protected]) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

Diretora de Publicidade Joana Pimenta Araújo ([email protected])Gestoras de contas Paula Duarte ([email protected]) e Susana Mariano ([email protected])Assistente Comercial Elisabete Anacleto ([email protected])

Edição, Redação e Administração G+J Portugal – Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.Rua Policarpo Anjos, 4 – 1495-742 Cruz Quebrada-DafundoCapital social: 133.318,02 euros. Contribuinte n.º 506.480.909Registada no Registo Comercial de Lisboa com o n.º 11.754Publicação registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o n.º 118.348Depósito legal n.º 122.152/98Propriedade do título e licença de publicação Gruner + Jahr Ag & Co./G+J España Ediciones, SLCalle Albasanz, 15 – 28037 Madrid – NIPC D-28481877

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