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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL OBJETO: PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, através dos Procuradores do Estado signatários, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, com fundamento no art. § 1º do art. 12 da Lei Federal 7.347/85 e no art. 4º da Lei Federal 8.437/92 e arts. 251 e 252 do Regimento Interno deste Tribunal, requerer a SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE DECISÃO ANTECIPATÓRIA DE TUTELA, em face de sentença e antecipação de tutela proferida na Ação Civil Pública nº 50037070820124047117 (2006.71.17.001628-1 (RS) / 0001628-54.2006.404.7117, bem como da execução provisória de sentença nº 5002432-24.2012.404.7117, em trâmite na Vara Federal de Erechim, desta Seção Judiciária. I - BREVE HISTÓRICO Tramita na Vara Federal de Erechim, RS, a Ação Civil Pública nº 50037070820124047117 (2006.71.17.001628-1 (RS), movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra a UNIÃO FEDERAL, FUNAI, o INCRA e o ESTADO DO RIO GRANDE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO 18ª PROCURADORIA REGIONAL -ERECHIM 1

Suspensão liminar Mato Preto TRF - Rodinei Candeia · processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado. interesse público e flagrante ilegitimidade,

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL

OBJETO: PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR

O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, através dos Procuradores do Estado signatários, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, com fundamento no art. § 1º do art. 12 da Lei Federal 7.347/85 e no art. 4º da Lei Federal 8.437/92 e arts. 251 e 252 do Regimento Interno deste Tribunal, requerer a

SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE DECISÃO ANTECIPATÓRIA DE TUTELA,

em face de sentença e antecipação de tutela proferida na Ação Civil Pública nº 50037070820124047117 (2006.71.17.001628-1 (RS) / 0001628-54.2006.404.7117, bem como da execução provisória de sentença nº 5002432-24.2012.404.7117, em trâmite na Vara Federal de Erechim, desta Seção Judiciária.

I - BREVE HISTÓRICO

Tramita na Vara Federal de Erechim, RS, a Ação Civil Pública nº 50037070820124047117 (2006.71.17.001628-1 (RS), movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra a UNIÃO FEDERAL, FUNAI, o INCRA e o ESTADO DO RIO GRANDE DO

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SUL, para cominar à FUNAI e à UNIÃO a obrigação de demarcar a área de 223,8350 hectares no local denominado “Reserva Florestal do Mato Preto”, nos municípios de Getúlio Vargas, Erechim e Erebango, e para condenar o Estado a proceder o reassentamento e a indenização dos agricultores em 120 dias a partir da demarcação.

O Estado contestou a ação alegando sua ilegitimidade e disse que o laudo antropológico possuía inúmeras inconsistências, não sendo conclusivo, que a área em questão nunca fora indígena e que a colonização da área foi legal.

Mesmo não sendo a questão de mérito do processo unicamente de direito, havendo necessidade e pedido expresso de produção de prova, não admitindo o caso transação por se tratarem de direitos indisponíveis, sem ter sido saneado o feito, de modo surpreendente, em ofensa aos arts. 330, incisos I e II, e 331, § 3º, do CPC, foi proferida sentença no processo em 24 de agosto de 2011, para

1. condenar A FUNAI a apreciar os recursos interpostos no prazo de 90 (noventa) dias, encaminhar ao Ministro de Estado da Justiça em 60 dias;

2. condenar a União a declarar os limites da terra indígena em 30 (trinta) dias, determinando a demarcação, definindo diligências necessárias ou desaprovando a identificação da área; 3. condenar a UNIÃO e a FUNAI a respeitar o prazo de 90 dias para cumprimento das diligências; 4. condenar o INCRA e o ESTADO ao reassentamento dos ocupantes não índios em 120 dias; 5. condenar a FUNAI a registrar a área. 7. Antecipar os feitos condenando as partes a cumprir os prazos, pena de multa-diária de R$ 1.000,00.

O Estado apresentou embargos declaratórios, decidindo o juízo que a instrução foi encerrada considerando os limites da inicial, sendo desnecessária a prova de ser a área indígena, pois essa caracterização não seria objeto do processo;

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Intimado em 22 de setembro de 2011, apelou tempestivamente o Estado às fls. 1220 a 1477. As apelações foram recebidas em seu duplo efeito, salvo quanto à antecipação de tutela (fl. 1494) e intimadas as partes para contrarrazões, o que foi feito.

Em 2 de outubro de 2012, sem que os autos tenham sido remetidos à esse egrégio Tribunal, foi o Estado surpreendido por grande mobilização dos agricultores atingidos pela demarcação, os quais bloquearam a RS 135, entre Erechim e Getúlio Vargas, protestando contra a publicação da Portaria 2.222/2012, do Ministro da Justiça, em 25 de setembro de 2012, acolhendo as conclusões da FUNAI e declarando a área de Mato Preto como sendo indígena.

Pelo teor da Portaria, sua edição se deu em função da execução provisória da sentença ajuizada contra a FUNAI e a UNIÃO (5002432-24.2012.404.7117), ajuizada em 22 de junho de 2012, sem incluir o Estado.

A surpresa se deu porque o Estado do Rio Grande do Sul não havia conseguido ter vistas processo administrativo de demarcação da área indígena, protocolado sob nº 08620.001550/2007-20, não obstante ter feito pedido ao Ministro da Justiça do através dos ofícios 2069/2011, de 7 de dezembro de 2001, e 900/2012, de 8 de maio de 2012, conforme cópias anexas, pois apesar de atingido diretamente pelos efeitos do processo administrativo, dele não participou e nem teve oportunidade de produzir provas.

A decisão ministerial surpreendeu a todas as partes no processo, causando grande comoção social, com bloqueio de rodovias e protestos, como é público e notório, sendo essencial a suspensão da antecipação de tutela, ante grave risco de lesão à ordem e à segurança pública, manifesta ilegitimidade do Estado do Rio Grande do Sul para demarcações de áreas indígenas, com grave impacto econômico ante a obrigação de indenizar em valores próximos a 200 (duzentos) milhões de reais.

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II - DOS REQUISITOS PARA SUSPENSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E DA NECESSIDADE DE SUSPENSÃO

A - DA GRAVE LESÃO À ORDEM, À SAÚDE E À SEGURANÇA PÚBLICA

Da iminência de grave conflito social

Reza o art. 12, § 1º, Lei 7.347/851, que, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia, poderá o Presidente do Tribunal a que se destinar o recurso suspender a execução da liminar.

Da mesma forma dispõe o art. 4º da Lei 8.437/922, que poderá o Presidente do Tribunal destinatário do recurso suspender a execução da liminar, em casos de manifesto

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1 Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.§ 1º A requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da publicação do ato.

2 Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.§ 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.

interesse público e flagrante ilegitimidade, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas3.

No caso presente, a antecipação de tutela obrigando à imediata conclusão do processo demarcatório, mesmo sem obediência ao devido processo legal, ao contraditório e àmpla defesa, bem como obrigando o Estado a retirar as milhares de pessoas da área atingida em 120 dias, reassentando-as ou indenizando-as, está causando grande comoção social.

Em decorrência, é iminente o conflito entre pequenos agricultores familiares, a FUNAI e as forças públicas, já indicando o acirramento os protestos já realizados, com trancamento de rodovias, as ameaças de resistência declaradas publicamente, que podem grave lesão à ordem pública, à saúde dos envolvidos e à segurança pública, justificando a suspensão da antecipação de tutela concedida em sentença na Ação Civil Pública, bem como a execução de sentença dela decorrente.

Sabedores das circunstâncias escandalosas do trabalho antropológico, como adiante se explicará, as 385 famílias de pequenos agricultores que tiveram suas áreas incluídas dentro das terras a serem demarcadas para abrigar apenas 14 famílias indígenas (fl. 79), revoltaram-se e fizeram grande mobilização, com fechamento de Rodovias e manifestações, como mostram as reportagens anexas.

Como no Estado do Rio Grande do Sul há 41 áreas novas que a FUNAI pretende demarcar, o caso de Mato Preto desencadeou uma grande mobilização em todo o Estado, havendo promessas de resistência a qualquer custo, inclusive das próprias vidas, o que pode vir a transformar-se em tragédia sem precedentes.

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3 Igualmente o Regimento Interno desse egrégio Tribunal, nos art. 251 e 252:Art. 251. Pode o Presidente da Corte Especial, a requerimento do Ministério Público ou de pessoa jurídica de direito público, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes (Lei nº 8.437-92, art. 4.º).§ 1.º O Presidente poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em cinco dias.§ 2.º Do despacho que conceder ou negar a suspensão caberá agravo, no prazo de cinco dias, para a Corte Especial, salvo no caso de denegação do pedido em mandado de segurança.Art. 252. Aplica-se o disposto no artigo anterior à sentença proferida em processo de mandado de segurança, de ação cautelar inominada, de ação popular e de ação civil pública, enquanto não transitada em julgado (Lei nº 4.348-64, art. 4.º; Lei nº 8.437-92, art. 4.º).

Somente a instrução do processo, impedida pelo juízo singular, apreciando-se adequadamente as razões levantadas pelo ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL para anulação do trabalho antropológico feito no processo demarcatório, é essencial para a paz social e a legitimação das ações em favor das comunidades indígenas.

Com o impedimento de instruir-se e apreciar-se a invalidade apurada, acirraram-se os ânimos, prenunciando-se um cenário catastrófico para a sociedade gaúcha.

Dessa forma, encontra-se em risco de grave lesão a ordem pública, a saúde de todos os envolvidos e a segurança pública, justificando-se a suspensão da antecipação de tutela concedida.

B - DA GRAVE LESÃO À ECONOMIA PÚBLICA

O Estado foi indevidamente condenado a desocupar a área de 4.230 hectares, em região altamente produtiva e povoada.

Essa obrigação desproporcional fixada em sentença implica que o Estado desaposse e indenize em torno de 385 famílias no prazo de 120 dias, com custo aproximado de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais), o que pode causar grave lesão à economia pública, também justificando a suspensão da liminar.

Nesse ponto, a situação criada impede a concessão de financiamento para o plantio da safra de verão 2012/2013 de toda a área atingida, criando grande convulsão social, tanto para os pequenos agricultores, cuja média de área é de apenas 11 hectares, para os municípios atingidos, como para as receitas do próprio Estado.

Outrossim, realizada a execução da antecipação da tutela, seus efeitos trarão inexorável lesão à economia pública e à ordem administrativa. Isso porque o reassentamento e indenização de uma área de 4.320 hectares, envolvendo 385 famílias, demanda previsão orçamentária, intensa mobilização administrativa, negociações, escolhas e aquisição de local adequado. Essas etapas, por si sós consomem mais tempo do que os 120 dias inadequadamente estipulados em sentença.

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Desde há muito, o extinto Tribunal Federal de Recursos, ao examinar o pedido de suspensão de segurança 440/SP, DJU 07.12.79, o Ministro José Néri da Silveira fixou entendimento paradigmático quando se trata de definir ordem pública. Segundo restou assentado na ocasião, “no juízo de ordem pública está compreendida, também, a ordem administrativa em geral, ou seja, a normal execução do serviço público, o regular andamento das obras públicas, o devido exercício das funções da administração, pelas autoridades constituídas.

Assim, todo o normal andamento da administração pública estadual resta prejudicado com a execução precipitada de sentença, proferida em processo onde sequer foi permitida a produção de prova.

Por outro lado, o cumprimento da antecipação torna absolutamente irreversível os danos causados, pois eventual reforma da decisão de mérito não terá o condão de repor as coisas em seu estado anterior e nem de ressarcir os gastos efetuados no cumprimento da ordem judicial, perpetrando severo dano à economia pública.

Ainda, a iminência do conflitos e trancamento das rodovias trará grande prejuízo à economia gaúcha como um todo, refletindo-se em todas as searas econômicas do estado.

Tais fatos justificam a imediata suspensão da liminar porque seu cumprimento acarretará grave lesão à economia do Estado do Rio Grande do Sul.

C - DO MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO

A situação narrada bem demonstra que a suspensão da antecipação de tutela evitará graves lesões de ordem pública, saúde, segurança e à economia gaúchas, evitando conflito que se aproxima inexoravelmente, com consequências imprevisíveis.

Há, portanto, manifesto interesse público em que se suspenda a ordem judicial, atendendo-se a esse requisito legal.

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D - DA FLAGRANTE ILEGITIMIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

A competência para demarcações de áreas indígenas é da UNIÃO, por força do art. 231, e art. 67, do ADCT, ambos da Constituição Federal:

Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Art. 67 - A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

A sentença se fundamento no art. 32, do ADCT, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, para atribuir ao ente estadual a responsabilidade por desocupar a área, reassentar as famílias e indenizá-las.

Contudo, a obrigação de indenizar do Estado do Rio Grande do Sul, prevista no art. 32 do ADCT da CE/89, destina-se às áreas já definidas pelo Estado como indígenas em trabalho feito de 1911 a 1918, como se pode ver de sua redação:

Art. 32 - No prazo de quatro anos da promulgação da Constituição, o Estado realizará o reassentamento dos pequenos agricultores assentados em áreas colonizadas ilegalmente pelo Estado situadas em terras indígenas.

O art. 32 do ADCT da CE destina-se a reassentar agricultores e devolver áreas indígenas já demarcadas e ilegalmente colonizadas pelo Estado, independentemente de terem ocupação tradicional.

Ao contrário do art. 231 da Constituição Federal, o art. 32 do ADCT da CE pressupõe que não haja a ocupação tradicional das áreas pelos indígenas, que foi impedida por algumas e específicas colonizações havidas nas décadas de 1940 a 1960, e que já foram regularizadas.

Quer dizer, não se propõe o Estado em sua Constituição a realizar os fins do art. 231 da CF, cuja competência não é sua. Simplesmente reconheceu que houve colonizações irregulares nas décadas de 1940 a 1960 e se obrigou a reassentar os pequenos agricultores que lá foram postos.

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Essa áreas já foram identificadas, conforme “Relatório com Subsídios ao Governo do Estado relativamente à QUESTÃO INDÍGENA no Rio Grande do Sul”, realizado pelo Grupo de Trabalho constituído pelo Decreto 37.118/96. Nele se identificou que, das demarcadas onze áreas indígenas demarcadas no Estado, algumas delas foram indevidamente colonizadas nas décadas de 1940 a 1960.

A Resolução 1.605, de 24 de outubro de 1968, da Assembléia Legislativa do Estado aprovou o Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito que reconheceu o direito de posse dos índios sobre os toldos demarcados e proposta a recuperação progressiva de todas as áreas ocupadas, o que não incluiu a área de MATO PRETO.

Portanto, por não tendo colonizado irregularmente a área da Reserva do Mato Preto, que se deu anteriormente a 1910, quando as colonizações indevidas de áreas indígenas pelo Ente Federativo ocorreram a partir de 1941, conforme processo nº 1819/41, da Secretaria da Agricultura.

Como o MPF sustenta no processo que o direito dos índios às terras é originário, decorrente da ocupação tradicional, sendo que o processo demarcatório apenas o declara (fl. 1511, verso), não está se referindo a áreas demarcadas pelo Estado, mas aquelas que são ocupadas e ainda não foram demarcadas.

O art. 32 do ADCT da CE não é aplicável ao caso concreto, pois se destina unicamente às áreas demarcadas entre 1911 e 1918 e colonizadas irregularmente pelo Estado entre as décadas de 1940 e 1960.

Frise-se, essas áreas já foram regularizadas pelo Estado, já tendo cumprido seu compromisso constitucional.

Assim, por flagrante ilegitimidade do Estado do Rio Grande do Sul, deve ser suspensa a antecipação de tutela fixada em sentença, até o trânsito em julgado.

DO FUMUS BONI IURIS

Malgrado não caiba a análise do mérito da ação principal no âmbito da excepcional medida da suspensão de liminar, irá demosntrar-se nos tópicos adiante a presença de razões suficientemente fortes para um juízo de viabilidade das razões de apelação do Estado, o que ficará totalmente prejudicado com a continuidade da antecipação da tutela, bem como da execução de sentença.

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Das nulidades processuais

A Ação Civil Pública nº 2006.71.17.001628-1 (RS) foi movida pelo Ministério Público Federal contra a UNIÃO FEDERAL, FUNAI, o INCRA e o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, para cominar à FUNAI e à UNIÃO a obrigação de concluir o levantamento fundiário e finalizar o processo demarcação de área de 223,8350 hectares no local denominado “Reserva Florestal do Mato Preto”, nos municípios de Getúlio Vargas, Erechim e Erebango, e para condenar o Estado a proceder o reassentamento e a indenização dos agricultores em 120 dias.

O Estado contestou a ação alegando sua ilegitimidade e alegou depois que o laudo antropológico possuía inúmeras inconsistências, não sendo conclusivo, que a área em questão nunca fora indígena e que a colonização da área foi legal.

A FUNAI, por ocasião de audiência, manifestou-se que o Estado deveria “cumprir a sua parte no acordo”. Isto é, deveria expulsar as famílias, reassentá-las e indenizá-las, pretendendo condenação do outro Réu.

Vindo o relatório preliminar e o laudo antropológico aos autos, foi dada nova vista ao Estado para manifestar-se, sendo salientado ao Juízo:

1. A abusiva atuação extrajudicial do MPF, que tentava constranger o Procurador do Estado a concordar com a pretensão judicial do parquet e da FUNAI através de ofícios com ameaças dirigidos à Procuradoria-Geral do Estado;

2. Que o Estado nunca reconheceu o pedido ou obrigou-se a indenizar, pois a área da Reserva do Mato Preto não é tradicionalmente indígena na forma do art. 231, da CF, não a tendo colonizano irregularmente e não tendo se obrigado a expulsar, reassentar ou indenizar as famílias residentes na Reserva do Mato Preto, sendo a obrigação de indenizar do Estado do Rio Grande do Sul, prevista no art. 32 do ADCT da CE/89, destinada às áreas já definidas pelo Estado como indígenas em trabalho feito de 1911 a 1918, não abrangendo a área da Reserva Florestal Mato Preto;

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3. A impossibilidade jurídica da sentença condicional, pois a eficácia da sentença depende da conclusão do processo administrativo de demarcação, devendo as condições da ação devem estar presentes no seu ajuizamento, na forma do art. 460, parágrafo único do CPC;

4. A colusão entre MPF e FUNAI; na forma do art. 129, do CPC, devendo ser extinto o processo;

5. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecimento do processo, opondo-se o Estado à pretensão do Ministério Público e da FUNAI à demarcação, o que leva à uma situação de conflito entre entes federados, conforme previsto no art. 102, inciso I, letra “f”.

A partir dessa manifestação (outubro de 2010) o processo foi dado em carga para o Ministério Público e FUNAI várias vezes, sem que fosse apreciada a petição do Estado, que levantou entraves sérios à procedência da ação.

Mesmo não sendo a questão de mérito do processo unicamente de direito, havendo necessidade e pedido expresso de produção de prova, não admitindo o caso transação por se tratarem de direitos indisponíveis, sem ter sido saneado o feito, de modo surpreendente, em ofensa aos arts. 330, incisos I e II, e 331, § 3º, do CPC, foi proferida sentença no processo em 24 de agosto de 2011, para

1. condenar A FUNAI a apreciar os recursos interpostos no prazo de 90 (noventa) dias, encaminhar ao Ministro de Estado da Justiça em 60 dias;

2. condenar a União a declarar os limites da terra indígena em 30 (trinta) dias, determinando a demarcação, definindo diligências necessárias ou desaprovando a identificação da área; 3. condenar a UNIÃO e a FUNAI a respeitar o prazo de 90 dias para cumprimento das diligências; 4. condenar o INCRA e o ESTADO ao reassentamento dos ocupantes não índios em 120 dias;

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5. condenar a FUNAI a registrar a área. 7. Antecipar os feitos condenando as partes a cumprir os prazos, pena de multa-diária de R$ 1.000,00.

O Estado apresentou embargos declaratórios, decidindo o juízo que a instrução foi encerrada considerando os limites da inicial, sendo desnecessária a prova de ser a área indígena, pois essa caracterização não seria objeto do processo;

Intimado em 22 de setembro de 2011, apelou tempestivamente o Estado às fls. 1220 a 1477, sendo que as apelações foram recebidas em seu duplo efeito, salvo quanto à antecipação de tutela (fl. 1494) e intimadas as partes para contrarrazões.

Aberto o prazo para contrarrazões, as apresentou o ESTADO, aprofundando

seus argumentos para referir que a inconsistência do Relatório a contradição de suas

conclusões foi apurada pela próprio ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, no final do

Processo Demarcatório, ao exarar o Parecer 257/2011:

21. Todavia, quanto ao requisito permanência, há divergência entre as informações têcnicas, uma vez que foi demonstrado o esbulho por parte de não índios de uma área de apenas 223,82 hectares, enquanto se propõe a delimitação e demarcação de uma área de 4.230 hectares, perímetro maior do que toda a “Floresta de Matto Preto”, demarcada sobre o antigo “Toldo Erechin” com área de 1.014,20 hectares em 1929. Consta no processo que nas décadas de 30 e 40 os indígenas foram expulsos da área de 223,83 hectares, passando a habitar regiões destindadas à tribo Kaingang e a outras aldeais Guarani. Apenas em 2003, gradativamente começaram a retornar para Mato Preto, não apenas para reivindicar o retorno à área esbulhada de 223,83 hectares, mas também para rever e ampliar os limites territoriais demarcados pelo Rio Grande do Sul em 1929.

...

Ante o exposto...sugere-se...a seguinte diligência: manifestação quanto ao requisito

permanência do Grupo Indígena Guarani nos municípios de Erebango, Erechin e

Getúlio Vargas, Estado do Rio Grande do Sul, na área com superfície de 4.230

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hectares, uma vez que foi demonstrado o renitente esbulho por parte de não-índios

apenas em relação à área de 223,83 hectares.

Em 8 de dezembro de 2011, em audiência promovida pelo Senado e Câmara Federal com o Ministro da Justiça JOSÉ EDUARDO CARDOSO, entregou-se o ofício 2069/2011 (cópia anexa), onde se alertou sobre as inconsistências e irregularidades do laudo antropológico, sobre o impedimento e suspeição da antropóloga FLÁVIA CRISTINA MELO, que chefiou o Grupo de Trabalho, e a falta de atendimento aos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, e da publicidade.

Salientou-se ao Senhor Ministro que a área não atende aos requisitos para ser reconhecida como indígena, que a ampliação foi injustificável, chamando-se a atenção para a seriedade que o caso merece, pois envolve milhares de pequenos agricultores, pedindo-se fosse permitida participação efetiva do Estado do Rio Grande do Sul no processo administrativo nº 08620.001550/2007-20, declarando-se nulo o trabalho pericial nele realizado.

Isso foi reiterado através do ofício nº 900/2012, de 8 de maio de 2012.

Em 2 de outubro de 2012, sem que os autos tenham sido remetidos à esse egrégio Tribunal, foi o Estado surpreendido por grande mobilização dos agricultores atingidos pela demarcação, os quais bloquearam a RS 135, entre Erechim e Getúlio Vargas, protestando contra a publicação da Portaria 2.222/2012, do Ministro da Justiça, em 25 de setembro de 2012, acolhendo as conclusões da FUNAI e declarando a área de Mato Preto como sendo indígena.

Pelo teor da Portaria, sua edição se deu em função da execução provisória da sentença ajuizada contra a FUNAI e a UNIÃO (5002432-24.2012.404.7117), ajuizada em 22 de junho de 2012, sem incluir o Estado.

A surpresa se deu porque o Estado do Rio Grande do Sul não havia conseguido ter vistas processo administrativo de demarcação da área indígena, protocolado sob nº 08620.001550/2007-20, não obstante ter feito pedido ao Ministro da Justiça do através dos ofícios 2069/2011, de 7 de dezembro de 2001, e 900/2012, de 8 de maio de 2012,

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conforme cópias anexas, pois apesar de atingido diretamente pelos efeitos do processo administrativo, dele não participou e nem teve oportunidade de produzir provas.

A decisão ministerial surpreendeu a todas as partes no processo, causando grande comoção social, com bloqueio de rodovias e protestos, como é público e notório, sendo essencial a suspensão da antecipação de tutela, ante grave risco de lesão à ordem e à segurança pública, manifesta ilegitimidade do Estado do Rio Grande do Sul para demarcações de áreas indígenas, com grave impacto econômico ante a obrigação de indenizar em valores próximos a 200 (duzentos) milhões de reais.

O trâmite clandestino do processo administrativo de demarcação, com laudo antropológico confessadamente viciado, em decorrência de atuação desastrada da FUNAI, bem demonstra o atentado ao estado de direito e à violação aos princípios básicos do devido processo legal, justificando a proteção aos interesses do Estado do Rio Grande do Sul ao defender a legalidade e a obediência aos princípios constitucionais.

Na Reclamação 14.473 MC/RO, identificando a situação de insegurança criada pela atuação da FUNAI, o Ministro Marco Aurélio suspendeu a demarcação, como se transcreve:

“No mais, mostra-se evidente a insegurança jurídica gerada pela atuação do grupo administrativo instaurado pela Fundação Nacional do Índio, destinado a viabilizar a nova demarcação de terras dos índios Kaxarari. Além do potencial risco de conflito fundiário entre índios e produtores rurais, existe inegável prejuízo aos investimentos em atividades produtivas praticadas há décadas, à ordem no território e às finanças do ente federativo reclamante.Ante o quadro, defiro parcialmente a medida acauteladora para afastar os efeitos da Portaria nº 407/2012 da Funai e da sentença proferida pelo Juízo da 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária de Rondônia na Ação Civil Pública nº 2008.41.00.007471-1. Determino, ainda, sejam os referidos processos – administrativo e judicial – suspensos até a decisão definitiva do Supremo, fazendo-o com fundamento no inciso II do artigo 14 da Lei nº 8.038/1990.”

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De fato, a clara nulidade do processo administrativo de demarcação, chefiado por profissional suspeita e impedida, sem ser permitida nem mesmo vista dos autos ao Estado do Rio Grande do Sul e o acompanhamento ou produção de prova, bem como as nulidades do processo judicial, mostram que a apelação tem probabilidade de ser provida, o que não pode ser prejudicado pelo cumprimento antecipado da sentença pelo andamento da execução de sentença.

Das nulidades, destaca-se o indevido julgamento antecipado da lide, não se permitindo a produção de prova em processo que envolve aprofundados conhecimentos técnicos e abrange a vida de milhares de pessoas, sem considerar o impacto social e nas finanças públicas.

No cotejo entre os direitos fundamentais envolvidos, observa-se que a antecipação dos efeitos da sentença atinge direitos básicos do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, antes mesmo de discutir-se o ferimento do direito de propriedade ou à demarcação.

Os direitos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa são estruturantes do Estado de Direito, pois sem o respeito a eles nenhum outro direito está garantido, razão porque constam nas cláusulas pétreas do art. 5º, da Constituição Federal.

Assim, presentes os requisitos do art. 12, §1º, da Lei 7.347/85, e do art. 4º, da Lei 8.437/92, deve ser suspensa a execução da antecipação de tutela deferida na Ação C i v i l P ú b l i c a n º 5 0 0 3 7 0 7 0 8 2 0 1 2 4 0 4 7 11 7 ( 2 0 0 6 . 7 1 . 1 7 . 0 0 1 6 2 8 - 1 ( R S ) / 0001628-54 .2006 .404 .7117 , e da Execução Prov isó r ia de Sen tença n º 5002432-24.2012.404.7117.

DA NULIDADE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA

A Ação Civil Pública nº 50037070820124047117 (2006.71.17.001628-1 (RS) / 0001628-54.2006.404.7117) foi movida contra a FUNAI, a UNIÃO, o INCRA e o

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, tendo este último sido condenado a Estado a proceder o reassentamento e a indenização dos agricultores.

N o e n t a n t o , a e x e c u ç ã o d a a n t e c i p a ç ã o d e t u t e l a n º 5002432-24.2012.404.7117 foi ajuizada tão somente contra FUNAI e UNIÃO.

Pela natureza da relação obrigacional constituída em sentença, há litisconsórcio necessário, pois o Estado será atingido diretamente pela execução da sentença proferida contra si, devendo o juízo garantir a uniformidade de tratamento para todas as partes, citando-se todos desde o início, sob pena de declarar extinto o processo, conforme art. 47, parágrafo único, c/c o artigo 267, I, ambos do CPC.

O Estado do Rio Grande do Sul peticionou nesse sentido nos autos da execução, entendendo o Juízo que a participação do ente público na execução não era obrigatória porque nenhuma providência lhe caberia nesse instante.

Contudo, é nulo todo o andamento da execução, devendo ter sido extinta por falta de citação do Estado do Rio Grande do Sul, bem como determinando-se a anulação de todos os atos praticados em função dela, especialmente a publicação da portaria demarcatória publicada no diário oficial de 25 de setembro de 2012.

DO LAUDO ANTROPOLÓGICO FRAUDULENTO E O VÍCIO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA.

Conforme provado pelos ofícios anexos, o Estado não conseguiu até a presente data ter vista do processo administrativo de demarcação, acompanhar ou mesmo avaliar a prova lá produzida.

Assim, há claro cerceamento do direito constitucional ao devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, incisos, LIV e LV da CF).

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A questão das invalidades do processo administrativo é importante porque ela está precipitando um processo completamente viciado, não podendo ser mantida tal sorte de coisas, onde as questões graves apuradas pelo Estado estão sendo desconsideradas, com graves reflexos sociais e patrimoniais.

Em verdade, o formato do processo administrativo para demarcação de área indígena, regulado pelo Decreto 1.775/96, é absolutamente inconstitucional, pois fere todas as garantias fundamentais do devido processo legal, o que leva a demarcações como a que se está trabalhando, padecendo de Unilateralidade e Parcialidade; ferindo a ampla defesa, o contraditório, a igualdade; o direito a uma decisão substancialmente justa., o direito à vida e viola a dignidade da pessoa humana., bem como o direito de propriedade, garantido no art. 5º, caput, inciso XXII, da CF/88, pois um mero laudo técnico unilateral, ideologizado, arbitrário e sem defesa possível revoga registros públicos seculares.

Desde a juntada aos autos da Ação Civil Pública do Relatório Circunstanciado realizado no processo de demarcação, o Estado do Rio Grande do Sul sustenta que não estava comprovado ser a área indígena e muito menos que a tivesse colonizado ilicitamente, apontando que as conclusões do trabalho antropológico não eram verdadeiras. Ao contrário, manipularam a verdade em favor da demarcação indevida de área que nunca fora indígena.

Em verdade, o Relatório Circunstanciado que foi produzido pela antropóloga FLÁVIA CRISTINA DE MELO é uma tentativa de obter vantagem indevida para a FUNAI e a comunidade Guarani de Cacique Doble, através da indução em erro dos destinatários do Relatório Circunstanciado, como se demonstrará, pois conforme a própria registrou em sua tese de doutorado, o abandono da aldeia de Cacique Doble pela comunidade Guarani foi realizado em função de conflitos com os vizinhos Kaigangs, como está às fls. 71 e 72 do próprio Relatório Circunstanciado, com apoio da ONG CIMI, da FUNAI, do MPF e com participação direta da própria antropóloga FLÁVIA, que depois foi nomeada para coordenar o Grupo de Trabalho que realizou o estudo antropológico no processo demarcatório.

No processo administrativo 08620.001150/2007-DV, foi realizado o laudo antropológico que reconheceu como tradicionalmente indígena a área da Reserva Florestal do Mato Preto. Nele constata-se que os indígenas que reivindicam a área tratam-se de “ao todo 42 pessoas procedentes da Terra Indígena Cacique Doble de onde saíram por vontade própria, liderados pelo cacique Joel Pereira, para retornar para o lugar de origem de seus antepassados reconhecido como sendo a região de Mato Preto”.

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Contudo, tais indígenas foram deslocados para lá após ritual xamânico liderado por EDUARDO KARAI GUAÇU, , com ingestão da erva alucinógena ayahuasca, como FLÁVIA CRISTINA DE MELO confessa em sua tese doutoral, que se anexa e que está disponível no site da Universidade Federal de Santa Catarina.

O abandono da aldeia de Cacique Doble, com queima dos bens e moradias, foi auxiliado pelo Conselho Indigenista Missionário-CIMI, órgão da Igreja Católica, e pela FUNAI, como informado por FLÁVIA em sua tese.

O Grupo de Trabalho que realizou o relatório e o laudo foi coordenado pela antropóloga FLÁVIA CRISTINA DE MELLO, em função justamente de seus vínculos com as comunidades indígenas da região, tendo residido na Aldeia Cacique Doble e publicado seus trabalhos à época.

A antropóloga encarregada do trabalho técnico realizou todos seus estudos acadêmicos junto à comunidade guarani que está em Mato Preto, sendo autora do Projeto de Pesquisa de Conclusão de Curso “Aspectos etnográficos da aldeia Guarani de Cacique Doble/RS”, de 1997, UNICAMP4 , da dissertação de Mestrado “Aata Tapé Rupy – Investigação dos deslocamentos territoriais dos Guarani Mbyá e Chiripá do sul do Brasil, UFSC, 2001, e da Tese de Doutorado Oguatá Taperadjá Yvy Tenondé'imá – As imbricações entre deslocamentos territoriais, organização social e sistema cosmológico Guarani, UFSC, 2002, estando a cópia deste último em anexo e disponível no site da Universidade Federal de Santa Catarina (http://www.tede.ufsc.br/teses/PASO0183.pdf).

Além disso, a mesma se intitula “assessora dos indígenas”, como consta às fls. 20 do seu trabalho de doutorado:

“Parte das minhas “miçangas”, as moedas de troca que pude oferecer às aldeias que me acolheram, foi assessorar as lideranças no diálogo com órgãos governamentais. Convites inicialmente facultativos, estes assessoramentos nas interações com a sociedade envolvente passaram a ser entendidos como minha principal função pelas lideranças das aldeias nas quais passei mais tempo. Ávidos por pessoas que “não fossem mandadas do governo”, as lideranças arrebanham interlocutores considerados confiáveis para auxiliarem nas interações com “mundo dos brancos”. Com o passar dos anos, a minha presença nas

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184 Como informa à fl. 11, do Relatório Circunstancia.

aldeias foi tornando-se instrumental para as famílias e lideranças, na medida em iam observando minha conduta e avaliando em que medida eu poderia auxiliá-los nas traduções sobre maneiras de ver o mundo e questões ligadas à legislação e códigos de conduta social entre as aldeias e o meu mundo de origem. A coordenação do GT de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Guarani de Mato Preto, a colaboração com o GT de Redelimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, o acompanhamento dos processos demarcatórios das aldeias do norte de SC, o acompanhamento do processo de implantação de escolas indígenas nas aldeias de SC e a docência no Programa de formação para a educação escolar Guarani na região sul e sudeste do Brasil Kuaa-mbo’é (conhecer-ensinar), são alguns dos trabalhos em que participei durante trabalho de campo.”

Sobre a qualidade de suas relações com os indígenas guaranis, afirma:

Além disso, as principais interlocutoras da minha faixa etária (Adriana Kretchiú Moreira e Marines Takuá da Silva) tornaram-se minhas amigas pessoais, o que conferiu a nossas conversas intimidade e troca de reflexões sobre as coisas do mundo. (fl. 20)

Assim, o seu impedimento ou suspeição para qualquer trabalho pericial ou técnico nas demarcações ficam claras na leitura de seu trabalho de doutorado, intitulado “Oguatá Taperadjá Yvy Tenondé'imá – As imbricações entre deslocamentos territoriais, organização social e sistema cosmológico Guarani”, onde à fl. 21 confessa sua influência sobre a indígena Adriana, de quem escreveu uma biografia5:

“A vida dela mudou muito desde a primeira vez em que conversamos. E algumas mudanças em nossas vidas advieram em decorrência de outras mudanças. As reflexões de Adriana sobre o djuruá rekó (jeito, sistema, mundo do “branco”) amadureceram a partir de nossas conversas...”

Adiante, informa FLÁVIA CRISTINA DE MELO que é tida entre os indígenas como sendo parte da família guarani:

“Nas outras aldeias, e também em Mbiguaçú, eu sou sempre a djuruá ligada à família extensa de Rosa e Alcindo, uma guapepó24. Esta proximidade com os karaikuery (xamãs) marcou diretamente minha interação e moldou informações

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195 “Entrevista com Adriana Kretchiú Moreira”, (Mello, 2004).

e conversas nas diferentes aldeias, onde sou chamada de Mbiguaçúreguá ou Cacique Doblereguá. E é a partir desta imagem que eu sou recebida, hospedada, tratada com maior ou menor simpatia pelas pessoas...” - fl. 31.

Sobre o método Guarani de fundar as aldeias do litoral de Santa Catarina, para fins de futuras demarcações, informa FLÁVIA:

Em maio de 2002 uma oguatá (caminhada, migração) realizada por um grupo de pessoas provenientes da aldeia de Tekoá Marangatú, no município de Imaruí, em migração religiosa marcou as aldeias do litoral de Santa Catarina. Cerca de trinta pessoas lideradas por uma cunhá karai (xamã), Luíza da Silva, partiram num movimento migratório, em busca de Yvy Dju. A cunhá karai recebeu em sonho a comunicação dos nhanderukuery32, os deuses protetores dos humanos, anunciando que sua família deveria partir em oguatá (caminhada).

...

Ali começou um movimento exemplar para se pensar o lugar dos deslocamentos na sociedade Guarani: uma oguatá. Não uma oguatá convencional, como as realizadas por várias pessoas, várias vezes na vida. Esta oguatá teve um sentido especial, visava fortalecimento espiritual de seus participantes. Um caminhar existencial e religiosamente marcantes na vida de uma pessoa: a busca de uma terra onde habitam os povos dos nhanderukuery (deuses) e os seres humanos divinizados.

...

Cumprida a etapa de preparação, o grupo partiu em sentido nhe’egueretã39, seguindo pelo litoral. Os primeiros dias foram muito animadores. O caminho estava iluminado, pois muitos recebiam sinais dos nhanderukuery em seus sonhos. Uma criança começou a destacar-se na comunicação com os deuses, o que era considerado um excelente sinal, pois os nhe’e das crianças podem comunicar-se mais facilmente com outros mundos do que os dos adultos”....

Percorridos cerca de 200 km e uma “volta de lua”40, por orientação de Leonardo, chegaram a uma terra que mostrava condições adequadas à instalação de uma tekoá. Este local vinha sendo indicado nos sonhos das pessoas, já era conhecido por Leonardo e possuía sinais de antigas habitações Guarani. Além disso, estava abandonado por seus proprietários djuruá, ficava distante e isolado das cidades, de

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outras habitações, possuía boa mata e um rio com boa água, bem ao gosto Guarani.

Esses movimentos, apoiados por FLÁVIA, pela Antropologia da UFSC, pela ONG Centro de Trabalho Indigenista a que a antropóloga estava vinculada, pelo CIMI e pela FUNAI, causaram uma série de invasões em Santa Catarina, em áreas que nunca foram indígenas, levando esses à indigência, estando sobre apreciação do Poder Judiciário.

Da mesma forma aconteceu na aldeia de CACIQUE DOBLE, de onde saíram os indígenas guaranis para reivindicarem a área de MATO PRETO, como narra a antropóloga:

“Numa manhã de maio de 2000 cheguei pela primeira vez à Terra Indígena Guarani de Mbiguaçú, denominada Tekoá Yynn Morothi Werá por seus moradores.

...

Cheguei naquela aldeia em busca de informações sobre um casal de “velhinhos”21, a pedido de Adriana Kretchiú Moreira, moça Guarani que eu havia conhecido em trabalho de campo na aldeia de Cacique Doble/RS.

...

Aceitei a incumbência contente em poder retribuir os favores de tradução e à hospitalidade que a família de Adriana havia me conferido.

Fui em busca destes “parentes perdidos” com um álbum de fotos da aldeia de Cacique Doble, um pacote de Kaá (chimarrão) e as palavras dos de lá, para transmiti-las aos velhinhos, caso os encontrasse.

...

As notícias e as fotos de Cacique Doble rapidamente tornaram-se um grande evento na aldeia. Várias pessoas chegavam querendo “ver ra’angá” (ra’angá significa imagem, cópia, também usado para fotos). Rosa e Alcindo foram muito hospitaleiros, me convidando a entrar na casa e me oferecendo comida no horário de meio dia. Nos meses seguintes, passei a freqüentar semanalmente a casa deles, fazendo aulas de Guarani com um de seus filhos, Geraldo Karai Okendá Moreira, professor da escola indígena

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...

Deste contato inicial até hoje, este casal passou a ser minha maior referência dentro das aldeias. Nas outras aldeias, e também em Mbiguaçú, eu sou sempre a djuruá ligada à família extensa de Rosa e Alcindo, uma guapepó24. Esta proximidade com os karaikuery (xamãs) marcou diretamente minha interação e moldou informações e conversas nas diferentes aldeias, onde sou chamada de Mbiguaçúreguá ou Cacique Doblereguá.

...

Enfim, meu interesse “pelas histórias dos mais velhos” fortalecia as falas de Alcindo, que ele sintetizava através de bordões insistentes, como: “Vocês estão vendo, até os brancos valorizam a “sabedoria”27 dos karaikuery e vocês não?!”

...

O indígena Alcindo era um xamã, que também promovia as caminhadas (oguatá) 6 em função de sonhos, o que determina a escolha de locais para as aldeias, como narrado por FLÁVIA:

“Numa manhã Alcindo alarmou a todos na aldeia de Mbiguaçú dizendo que sonhara e precisa partir imediatamente para Yvÿ Mirim Idjú.

...

O episódio vivido por Alcindo e Luíza envolvia um emaranhado de fatos, que diziam respeito àquele grupo, mas que principalmente, que punham em evidência os níveis de hierarquia entre poderes xamânicos, neste caso, ambos em sintonia (o oposto também pode acontecer). Além disso, indicavam as interferências que o plano sobrenatural exerce sobre a estruturação de uma tekoá e apontavam para classes de espíritos inimigos dos humanos, os yvy andjá. A noção do “mal” (anhã) rondando a aldeia é recorrente nas narrativas sobre a deflagração de movimentos migratórios Guarani (Meliá, 1990) e neste evento é dramaticamente vivenciada. Encarnado aqui

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6 Segundo FLÁVIA, em sua tese doutoral, “Oguatá Porã significa literalmente boa caminhada. O caminhar tem uma conotação cosmológica fundamental para os Guarani. É uma conduta adequada perante a eminência de algum problema. É a forma com que os deuses construíram o mundo, e o caminhar pelas distintas aldeias, reconstruindo suas casas, roças, suas vidas enfim, reproduz essa conduta.”

na figura dos yvy andjágue, ameaça fatalmente a manutenção da tekoá e das pessoas que nela vivem.”

Na páginas 43 e 44 de seu trabalho de doutorado, FLÁVIA conta como foi para a Reserva de Cacique Doble:

“No último final de semana previsto para meu trabalho de campo em Mbiguaçú um telefonema mudou radicalmente meus planos, outra viagem e outra migração xamânica passaram a fazer parte do corpus de dados de campo: Um de meus interlocutores principais mandava me chamar em uma aldeia distante dali. Era um chamado ao qual eu não podia me furtar: Eduardo Karai Guaçú Martins estava muito doente e pedia para me ver. Ele foi o primeiro karai rezador a me acolher e a autorizar os mais novos a falarem comigo sobre temas tabu, como o xamanismo, por exemplo. Seus netos insistiram muito para que eu fosse, alegando que ele sabia que não viveria muito mais e que eu precisava estar com ele para registrar e aprender com suas últimas palavras. Eduardo Karai Guaçú, segundo diziam, contava mais de 100 anos7 e morava na aldeia de Cacique Doble, no noroeste do RS. Ao contar a notícia sobre a saúde de Karai Guaçú Eduardo, na aldeia de Mbiguaçú, houve grande comoção. Alcindo e Rosa entreolharam-se longamente em silêncio e todos ficaram a observá-los. “Petein tudja’í oota nhe’egue retã!” disse Rosa finalmente. (“Mais um velhinho que se vai para nhe’egue retã!”). Quando eu disse que pretendia visitá- lo, eles dispuseram-se, determinadamente, a me acompanhar, e pôr um fim à promessa feita no dia em que saíram de lá, de não mais pisar em Cacique Doble. Eles narraram fatos da época em moraram em Cacique Doble, da importância dos ensinamentos de Eduardo na vida deles e de todos de sua família, na falta que ele faria e concluíram que tinham que ver o velhinho mais uma vez.

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7 Conforme FLÁVIA, a “contagem do tempo cronológico não tem correspondência ao tempo da sociedade envolvente, característica comum a muitos povos indígenas, o que gera certas dificuldades de tradução do tempo e nas idades. Os “velhos” Guarani têm enorme orgulho da idade avançada. Por isso, algumas vezes tendem a aumentá-la um pouco. A essa característica cultural soma-se a precariedade dos registros documentais de nascimentos e óbitos, especialmente os mais antigos. No caso específico de Eduardo, sua certidão de nascimento, feita em Cacique Doble, em 1969, indica data de nascimento de 1902. Aplicando o método de comparar a idade da pessoa com a de seus filhos ou genitores, Eduardo poderia ter essa idade, pois afirmava ter se casado “velho”. Sua filha mais velha tem entre 60 a 65 anos, o que deixa uma distância ampla, porém possível entre as gerações.” (fl. 44).

A idéia de promover e testemunhar tal encontro me encantou e emocionou. Mas me trouxe também uma ponta de preocupação em viajar em ônibus com os dois velhos por mais de 1000 Km., para viverem emoções tão intensas.”

Outra sessão ritual da qual FLÁVIA participa é narrada, bem como os sonhos e interpretações subsequentes:

“Fomos então para a opÿ, onde foi realizada a opÿredjaikeawã (ritual) em prol nossa oguatá (viagem). Durante a ausência do casal de karaikuery (xamãs) a condução dos rituais ficaria a cargo de uma cunhá karai, Júlia Campos e dos karai yvyraidjá (xamãs auxiliares, aprendizes). No dia da viagem, levantamos às três horas da madrugada e nos aprontamos rapidamente. Enquanto Alcindo tomava seu Kaá e acendia o seu petynguá, eu e Rosa trançavámos nossos cabelos. Ele disse que sonhou muito e que passou por muita coisa. Alcindo nos perguntou, um a um, do que lembrávamos haver sonhado e por fim narrou seu próprio sonho.

Alcindo ouviu todos os sonhos e desta vez não fez nenhum comentário sobre as narrativas. Começou então sua narrativa...,

Ele começou dizendo em tom solene que havia sonhado com nossa viagem. Em seu sonho, nós havíamos chegado em Cacique Doble quando já era noite alta.

...

Ele cantava sozinho, ninguém colaborava com o coro nem com instrumentos, que é a participação habitual da assistência durante a reza. Aos poucos ele foi se dando conta que todos eram Kaingang e uma sensação de pânico tomou conta dele. Apesar do escuro, ele começou a reparar que seus sobrinhos haviam se transformado em Kaingang e não mais o reconheciam. Ele se sentia agoniado, cantava alto e seu fôlego já começava a faltar, mas ele não podia parar, pois era sua reza que estava mantendo a situação sobre controle. Pensava em Rosa e não a via...

Sua narrativa se encerra assim e ele completa ainda dizendo que se lembrava estar pensando muito no velho Eduardo, em seu sofrimento vivendo entre os Kaingang e relata a sensação de exaustão que ele experimentou tentando se comunicar com aquelas pessoas através de sua reza. Ele finalizou dizendo: “Já estamos nós todos na viagem! Nhandetchi e Nhanderu omae’rã (Nossas mães e nossos pais (as

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deusas e deuses) olharão por nós).” Rosa não fez nenhum comentário. Eu perguntei: “Será um sonho bom?”48 Ele respondeu: “Vamos ver...”

Essa sequência de narrativa demonstra claramente o temor que o xamã tinha por sua perda de identidade, principalmente perante os indígenas Kaigangs, bem como a solidariedade com seu tio idoso de Cacique Doble, cuja aldeia era lindeira ao da outra etnia.

Ao chegarem em Cacique Doble, FLÁVIA e casal de idosos guaranis, evitam a entrada pela área Kaingang8, para evitar represálias:

“Chegamos à cidade de Cacique Doble ainda com luz do dia e fomos de táxi até a vila vizinha, que faz limite com os limites sul da TI, por onde se entra sem passar em frente de casas Kaingang, que seria o caminho natural para quem chega da cidade.

Nossa chegada à aldeia Guarani da Terra Indígena Cacique Doble foi bem diferente do sonho de Alcindo. (fl. 49).

...

Fomos em algumas casas, primeiramente à casa de Eduardo Karai Guaçú Martins, que já estava adormecido e foi acordado pela sua esposa. Foi um encontro emocionado e cheio de lágrimas. O velho Eduardo não enxergava mais há alguns anos e a audição começava a falhar. Ele custou a acreditar que se tratava mesmo de seus sobrinhos que saíram de lá ainda jovens, determinados a nunca mais voltar. Ele dizia muitas vezes: “Ndatcheretcharaí ndere” (algo como: “Então ainda nos vemos neste mundo! Eu não esqueci de vocês”). Se dirigiu a mim dizendo que eu havia sido feliz ao conseguir convencer aqueles dois a virem ali. (fl. 49)”

Ainda, FLÁVIA partilha da angústia dos guaranis de Cacique Doble viverem entre Kaigangs:

“Sua narrativa se encerra assim e ele completa ainda dizendo que se lembrava estar pensando muito no velho Eduardo, em seu sofrimento vivendo entre os Kaingang e relata a sensação de exaustão que ele experimentou tentando se comunicar com aquelas pessoas através de sua reza. Ele finalizou dizendo: “Já

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8 Explica FLÁVIA que “a minha presença na aldeia já havia sido impedida em outras oportunidades, por isso, eu sempre chegava a aldeia por um caminho alternativo, que não passava pela entrada principal da TI.”

estamos nós todos na viagem! Nhandetchi e Nhanderu omae’rã (Nossas mães e nossos pais (as deusas e deuses) olharão por nós).” Rosa não fez nenhum comentário. Eu perguntei: “Será um sonho bom?”48 Ele respondeu: “Vamos ver...” - fl. 48.

FLÁVIA passou por uma cerimônia ritual com o líder Eduardo Karai Guaçu, que incluiu a ingestão de alucinógenos, passando a ter responsabilidade sobre os guaranis:

“Em resumo, nesta conversa para qual Eduardo havia me convocado, ele passava-me meu novo nome e as responsabilidades e competências que ele me traria. Pedia- me para olhar por seus tcheradjykuery (todos os seus “pequenos filhos”) e previu alguns eventos de meu futuro.” (fl. 52)

FLÁVIA então narra novo ritual, com o uso do alucinógeno conhecido como ayahuasca, usado pela seita Santo Daime9:

“Ficamos em Cacique Doble por cinco dias. Na noite posterior a minha conversa com Karai Guaçú, a véspera de nossa partida, Alcindo conduziu novamente o ritual, contudo desta vez ministrou uma medicina especial que ele tem usado bastante em Mbiguaçú: Era uma infusão feita da mistura de cinco ervas, dentro as quais, as duas chamadas por eles de aguasca, o cipó de banisteriopsis caapi que é a base da bebida conhecida também como ayahuasca. Estas plantas são muito usadas como plantas de poder e medicinais por índios amazônicos, mas não são usadas comumente por grupos Guarani. Muitas pessoas participaram daquele ritual de cura. Houveram reações diversas entre os participantes, alguns experimentando sensações agradáveis de leveza e cura, conforme seus relatos, outros desaprovando o uso daquela planta, alguns sentindo o efeito da “peia”, a reação desfavorável que algumas visões proporcionadas pelo efeito da mistura de ervas provocaram.(fl. 52).

...

No dia seguinte, havia uma comoção geral. Muitas pessoas tiveram visões importantes para suas vidas. Foram recorrentes narrativas sobre reencontros com pessoas vivas e mortas durante o efeito da “medicina”. A maioria das pessoas ansiavam falar de suas experiências sob efeito do alucinógeno. “(fl. 54).

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9 O uso do “Chá do Santo Daime” é uma violência cultural contra os Guarani e foi inserida inicialmente na aldeia Águas Claras, no litoral de Santa Catarina, pela seita cristã “Fogo da Verdade”.

A construção política da idéia de demarcar uma área fora da Reserva de Cacique Doble nasce nesse momento10, quando diante da realidade de intenso conflito com os vizinhos Kaigangs, o casal levado por FLÁVIA a Cacique Doble conta que conseguiram demarcar área exclusivamente guarani:

“O desfecho da nossa estadia lá me fez lembrar vividamente a narrativa de Alcindo sobre seu sonho. Toda a conduta dele e de Rosa durante nossa estada em Cacique Doble foi muito crítica com relação à realidade que estavam vivendo ali naquela aldeia. Eles faziam longos discursos de repreensão e duras críticas à várias condutas morais e políticas que as pessoas de Cacique Doble vinham tendo. A abertura ao contato interétnico por parte dos mais jovens e seu afastamento dos rituais e das normas religiosas eram os pontos mais lembrados nas conversas formais que mantiveram com os grupos familiares.

No sonho de Alcindo, as pessoas daquela aldeia estavam-se tornando Kaingang ou deixando de ser Guarani. Em que medida o sonho da véspera da viagem havia influenciado o comportamento e a avaliação da realidade encontrada por Alcindo não consegui dimensionar. Porém, suas condutas e suas repreensões foram mais duras do que o normal em sua personalidade. Especulações reflexivas à parte, nossa estada lá eclodiu uma aguda reflexão política. O fato da aldeia Guarani estar tão próxima e em situação assimétrica com os Kaingang foi invariavelmente fonte de conflitos interétnicos. A coabitação com os Kaingang vêm trazendo sérios problemas para aquelas famílias há anos, mas ultimamente vinha-se tornando insuportável. Muitos conflitos, devidos à uma série de imposições arbitrárias com relação à ocupação e ao uso da terra por parte dos Kaingang, geravam brigas físicas que já culminaram em mortes, levavam famílias a abandonar o lugar, e restringiam cada vez mais o espaço agricultável, que já era ínfimo11. Ao problema político somava-se o comportamento violento dos Kaingang ao tentar impor sua supremacia aos Guarani, saqueando a roça, impedindo a chegada dos recursos materiais, como cestas básicas, agasalhos doados por várias instituições, impedindo visitas53 e prendendo as pessoas que discordassem da liderança Kaingang. O retorno de Alcindo e Rosa, tantos anos depois, e numa situação social

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10 A confissão desfaz a afirmação do Relatório de que a retomada de Mato Preto fora um projeto amadurecido por muitos anos (fl. 71 do Relatório Circunstanciado).

11 Segundo FLÁVIA, “Os Guarani ocupavam uma área inferior a 10 ha., numa terra indígena de quase 5.000 ha.”

tão crítica, somada à eminente passagem do Karai Guaçú, causou uma profusão de reflexões. Muito se recordou sobre a saída traumática do casal e seus filhos, que fugiram durante a noite ou seriam encarcerados pelos Kaingang. (fl. 56)

O exemplo que aquele idoso casal trazia, de terem conquistado a demarcação da terra que era antes habitada por seus falecidos primos, fruto de uma luta política árdua, o fato de não estarem submetidos a coabitarem com Kaingans, (ao menos não nessa condição de inferioridade), a saúde física por eles exibida, a firmeza da manutenção de vários preceitos religiosos, a respeitabilidade e a competência xamânica que um seus filhos caçulas já manifestava, todos esses elementos parecem ter tocado as pessoas de Cacique Doble.

A decisão de encontrar outra área então é tomada:

“O fim da aldeia e a migração para Ka’atÿ12

Entretanto, semanas depois de nosso retorno, notícias preocupantes começaram a chegar de Cacique Doble. A situação de conflito com os Kaingang tornava-se cada vez mais crítica. Houve mais um desentendimento entre Joel, o cacique da aldeia, e uma liderança Kaingang. Pressões violentas e intimidadoras por parte dos Kaingang impediam os Guarani de irem à cidade ou à sede do posto da Funai. Na seqüência deste fato tenso, o pai de Joel, Mário Pereira, adoeceu e morreu subitamente. O falecimento inesperado desse velho abalou o grupo: Suspeitas de feitiçaria incomodavam deveras, principalmente porque Karai Guaçú Eduardo estava muito fraco para manter-se nas funções de luta e proteção contra essas forças e não havia no grupo alguém que equiparasse seus poderes.

O funeral de Mário Pereira teve um desfecho trágico. Enquanto os adultos velavam o corpo, a casa de Graciliano e Lúcia, onde estavam algumas crianças, incendiou-se, ou foi incendiada, queimando rapidamente. Felizmente as crianças foram tiradas a tempo, mas muitos animais, como porcos e galinhas, criados em cômodo contíguo à casa de madeira e taquara trançada, pereceram com o fogo.

Eduardo Karai Guaçú reuniu sua grande família na opÿ e pediu a eles que tivessem coragem, pois havia chegado a hora da última oguatá porã que ele faria. Iniciou-se, pois uma oguatá que deslocou uma aldeia inteira. Iriam em busca de uma terra

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2812 Mato Preto, em guarani.

melhor. O destino era uma tekoá (aldeia) onde Eduardo Karai Guaçú havia morado na juventude, com a família de sua esposa, de onde foram expulsos. A decisão de partir de Cacique Doble vinha sendo cogitada há algum tempo. Algumas famílias já haviam abandonando a terra em direção a outras aldeias, mas família extensa central (família anfitriã) resistia em torno da figura de Karai Guaçú, e em respeito à memória dos “antigos” que ali viveram e morreram.

As primeiras opyredjaikeawã (rituais noturnos) foram destinadas aos discursos dos karaikuery, Eduardo, Lurdes e Ernesto nos quais falaram sobre o passado, sobre as pessoas já falecidas, de como era a vida no tempo “dos avós”. Eduardo narrou fatos do passado para que os jovens soubessem histórias dos seus “retarã ymã” (antigos parentes) e pediu a todos para ajudá- lo a não morrer naquela terra. Ele ouvia e via em seus sonhos que era hora de partir de Cacique Doble.

A viagem para reivindicar MATO PRETO começou, com apoio do CIMI e da FUNAI, bem como do próprio Cacique, deslocando-se para Mato Preto:

A viagem propriamente dita foi rápida. Um mutirão entre parentes e aliados foi montado para se obter as condições logísticas de tal deslocamento. O cacique da aldeia, Joel Pereira e seu cunhado, Siberiano Moreira, conseguiram apoio do CIMI e AER FUNAI para o deslocamento de Cacique Doble até Mato Preto, a cerca de 180 quilômetros de distância, na divisa entre os municípios de Getúlio Vargas e Erebango. Ao chegarem na nova terra, Eduardo Karai Guaçú orientou seus yvyraidjá (auxiliares) a como procederem. Reunia-se todas as noites com João Maria Mariano, o último de seus contemporâneos vivo. João Maria caminha com dificuldade e não ouve bem, porém é lúcido e sua postura enquanto liderança do movimento tem sido vibrante. Ele fez duas viagens com as lideranças mais jovens para mostrar a terra, fazia sessões na opÿ narrando eventos do passado vivido naquela terra e arredores, fatos vivenciados pelas pessoas, etc. Incentivou e acompanhou os jovens nas negociações políticas necessárias para garantir a segurança do grupo, instrumentalizou a todos com elementos históricos importantes para a comprovação da antiga habitação, etc. (fls. 61 a 62).

...

O cacique Joel Kuaray Pereira, filho do falecido Mário Pereira, deu início ao trabalho político para garantir a permanência na nova terra, auxiliado por João Maria e

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Siberiano Moreira e reuniram dados fundamentais para dar início ao processo de retomada da terra junto à Funai.

Já nessa época, FLÁVIA tinha opinião formada sobre a área de Mato Preto, assim expondo:

“Tekoá Ka’atÿ, ou Mato Preto, é uma antiga aldeia Guarani, que foi extinta na década de 1920, quando o governo do Estado do Rio Grande do Sul expulsou os Guarani para implantar um projeto de colonização rural na região. No ano seguinte à ocupação, iniciou-se o processo de regularização fundiária da TI, com a formação do GT de Identificação e Delimitação no mês de agosto de 2004. fl. 62.

Distintamente do que registro no seu Relatório Circunstanciado, em seu trabalho de doutorado, FLÁVIA informa que a morte do ancião EDUARDO KARAI não ocorreu por pneumonia contraída em MATO PRETO:

Morte de Eduardo Karai

Algumas semanas após a chegada, passada esta primeira fase de adaptação, Eduardo Karai Guaçú deu por cumpridas suas tarefas. Pediu mais uma vez que todos reunissem-se na opÿ e iniciou sua despedida, informando que a hora de “sua grande viagem” se aproximava. Pediu que fizessem contato com Alcindo e Rosa, e os expôs sua derradeira intenção: Não podia mais ficar com seus parentes naquela terra em que eles agora deveriam assumir. Ele havia concluído sua missão e agora precisava deslocar-se para uma tekoá consagrada, para poder morrer e ser enterrado de maneira adequada. Deixou ordem expressa de que se morresse antes de seu projeto se realizar, ali não era lugar adequado para seu sepultamento. A determinação daquelas palavras fez todos seus descendentes mobilizarem-se para atender seu último pedido. Reuniu-se o dinheiro necessário à viagem, entre várias aldeias. Foi feita uma “campanha” de arrecadação de recursos e colaboração entre os aliados não-Guarani que freqüentavam as aldeias e conseguiu-se um carro que buscou Karai Guaçú em Mato Preto e o levou para Mbiguaçú.

Com a partida e o posterior falecimento de Karai Guaçú Eduardo, o grupo sofreu um abalo social, como registrou a antropóloga na fl. 63.

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Em função de ter participado diretamente de todos esses episódios da vida da comunidade guarani de Cacique Doble, o trabalho de Doutorado de FLÁVIA foi fortemente por eles influenciado, como confessa:

Depois de todas estas visitas concluídas e da ocorrência dos eventos funestos narrados no início do texto (refiro-me ao falecimento de Mário Pereira e ao incêndio na casa de Graciliano Moreira e Lúcia Martins), Eduardo organizou o abandono da aldeia de Cacique Doble e a retomada de Mato Preto. Como todo movimento migratório de vulto, o seu projeto passou a ser o projeto de um grupo social muito maior do que o que coabitava com ele. De Cantagalo (litoral do RS) a Mbiguaçú (litoral de SC) várias aldeias passaram a dar suporte à retomada de Mato Preto. Os velhos de outras aldeias, ao saberem do projeto e da situação de Eduardo, deslocavam-se para aconselhar os mais jovens. As comunidades de várias aldeias reuniram dinheiro, incrementaram as vendas de artesanato e de animais para dar suporte financeiro ao projeto. E finalmente, quando Mato Preto já estava ocupada, casas construídas, crianças acostumadas ao novo lugar, e Eduardo decidiu ir buscar o local onde seria sepultado, muitos visitaram Mbiguaçú em busca de fortalecimento espiritual e para vislumbrar o “portal” que conduziria Eduardo pelo mar até yvy dju. A morte do xamã e a reestruturação social do grupo, as sucessões das funções desempenhadas pelo falecido foram eventos marcantes de meu trabalho de campo.( fl. 201).

Como demonstrado através de sua própria confissão, os vínculos de FLÁVIA CRISTINA MELO com a comunidade guarani de Cacique Doble que se deslocou para Mato Preto vão muito além das atividades profissionais, retirando-lhe completamente a isenção e explicando os abusos e inconsistências do trabalho antropológico.

No caso de Mato Preto, sua atuação como antropóloga é totalmente antiética, pois participou dos contatos pessoais e políticos que levaram à decisão da tribo de abandonar a aldeia de Cacique Doble, para escapar dos conflitos com os Kaigangs e, com base nos sonhos decorrentes de rituais que participou com Alcindo e Eduardo Karai Guaçu, resolveram ocupar a área de Mato Preto apenas com base nas lembranças do idoso Eduardo Karai Guaçu, já então com mais de 100 anos.

Após, Eduardo resolve abandonar Mato Preto, para ir morar no litoral de Santa Catarina com o sobrinhos Alcindo e Rosa, não sem antes preparar os que ficaram para repetir

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suas afirmações de que a região teria sido ocupada pelos indígenas guaranis em outros tempos.

O que se vê então é que FLÁVIA, por questões pessoais, adotou a causa indígena guarani, de quem se intitula assessora, passando a realizar estudos e laudos que justificassem as demarcações e indenizações.

Não só isso. FLÁVIA participou desde os rituais tribais para definição do lugar a ser reivindicado, como levou os próprios xamãs para a aldeia de Cacique Doble, sendo membro ativo de todo o processo de reivindicação da demarcação, confessado em seu próprio trabalho de doutorado, que só se obteve recentemente.

O Decreto 1.775/96 não dispõe expressamente sobre o impedimento e a suspeição de profissionais técnicos no processo administrativo de demarcação. Contudo, dispõe o art. 6913, da Lei 9.784/99, que regulamenta o Processo Administrativo Federal que este é aplicável subsidiariamente a todos os procedimentos administrativos específicos, como é o caso.

Sobre impedimento, assim dispõe a Lei 9.784/99, em seu artigo 18:

“ Art. 18. É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou autoridade

que:

I - tenha interesse direto ou indireto na matéria;”

Conforme confessado pela própria Coordenadora do Grupo de Trabalho, antropóloga FLÁVIA CRISTINA DE MELLO, ela era tida como assessora dos indígenas, com convivência íntima por longos anos com todos, tendo interesse direto na demarcação da área de Mato Preto para acomodar a comunidade de indígenas da etnia guarani que viviam na aldeia de Cacique Doble.

Ainda, sua confessada amizade íntima com os beneficiados pela demarcação a torna suspeita para realização de qualquer trabalho técnico a eles relacionado, conforme dispõe o art. 20, da Lei do Procedimento Administrativo Federal:

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13 Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.

“Art. 20. Pode ser argüida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau.”

Ocorreu, portanto, um vício insanável no Processo Administrativo 08620.001150/2007-DV, em decorrência da inobservância da exigência legal de não ser impedido ou suspeito o profissional técnico, invalidando todo o processo demarcatório de Mato Preto.

A Constituição Federal impõe à Administração Pública a obediência aos

princípios expressos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência14,

sendo que a Lei do Processo Administrativo Federal15 repete esses e acrescenta ainda o dever de atender à finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

O laudo viciado pelo impedimento e suspeição fere vários desses princípios, em especial o da legalidade, por confrontar norma expressa; o da impessoalidade, por ser praticado ato por interesse próprio; o da moralidade, por não ser concebível estender-se tal agir a todos os casos similares; o da publicidade, por não terem sido revelados os verdadeiros motivos da reivindicação da demarcação, realizando-se o trabalho antropológico de modo clandestino; o da razoabilidade, por não ser aceitável tal proceder em prejuízo de milhares de pessoas para beneficiar 15 famílias; o do devido processo legal, ampla defesa e do contraditório, por furtar ao conhecimento dos interessados os detalhes do processo, possibilitando o exercício desses direitos previstos no art. 5º, LIV e LV, da CF, sendo a condução absolutamente contrária ao Direito, aos padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé16.

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14 Art. 37, da CF.

15 Lei 9.784/99:Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

16 Dispões o parágro único do art. 2º, da Lei 9.784:“Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito;...IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;”

Tais vícios, por confrontarem normas de ordem pública, implicam a nulidade absoluta do Relatório Circunstanciado produzido no Processo Administrativo 08620.001150/2007-DV, atingindo todo o processo, especialmente a Portaria 2.222, de 21 de setembro de 2012 (DOU 25/09/12). por não respeitar nenhum dos princípios constitucionais antes referidos, principalmente os relativos ao devido processo legal e ao direito à boa administração pública, bem como por ter sido produzido o laudo antropológico pela própria parte interessada e por profissionais comprometidos por seus vínculos ideológicos.

DA CONDICIONANTE XIX DA PETIÇÃO 3.388, DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Estado do Rio Grande do Sul, em função de atuação conjunta do MPF e da FUNAI17, em verdadeira colusão processual, está sendo condenado a indenizar e reassentar os pequenos agricultores da área de MATO PRETO e arredores, em valores que podem superar os R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).

Logo, possui interesse direto no Processo Administrativo que trata da demarcação de Mato Preto.

Como já se disse, antes de encerrado o processo administrativo de demarcação da área indígena, protocolado sob nº 08620.001550/2007-20, o Estado do Rio Grande do Sul pediu vistas do mesmo através dos ofícios 2069/2011, de 7 de dezembro de 2001, entregue em mãos ao Sr. Ministro da Justiça, e 900/2012, de 8 de maio de 2012, conforme cópias anexas, pois apesar de atingido diretamente pelos efeitos do processo, dele não participou e nem teve oportunidade de produzir provas, não obstante ter apurado a série de irregularidades antes narradas.

Em razão disso, houve vício ao direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, previstos na Constituição Federal, bem como na Lei do Processo Administrativo Federal (Arts. 5º, LIV e LV, da CF, e art. 2º, da Lei 9.784/99), bem como desatendimento à Condicionante XIX, do Julgamento da Petição 3.388, cujo teor é:

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17 Consta do Relatório Circunstanciado que o MPF participou da confecção do trabalho antropológico, com fornecimento de meios e pessoal técnico (fls. 6 e 10).

"(XIX) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento Administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento".

Saliente-se que na Medida Cautelar na Reclamação 14.473, o Ministro Marco Aurélio entendeu já aplicáveis as condicionantes estabelecidas na Petição 3.388, deferindo liminar para suspender a Portaria 407/2012 da Funai e da sentença proferida pelo Juízo da 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária de Rondônia na Ação Civil Pública nº 2008.41.00.007471-1.18, nos termos da Lei 4.717/65 e inciso II do artigo 14 da Lei nº 8.038/1990, conforme ementa da decisão que se transcreve:

RECLAMAÇÃO – CABIMENTO – AÇÃO POPULAR – EFICÁCIA –

TERRAS INDÍGENAS – CONDICIONANTES –

OBSERVÂNCIA – LIMINAR PARCIALMENTE DEFERIDA.

De fato, a clara nulidade do processo administrativo de demarcação, chefiado por profissional suspeita e impedida, sem ser permitida nem mesmo vista dos autos ao Estado do Rio Grande do Sul e o acompanhamento ou produção de prova, bem como as nulidades do processo judicial, mostram que a apelação tem probabilidade de ser provida, o que não pode ser prejudicado pelo cumprimento antecipado da sentença pelo andamento da execução de sentença.

Das nulidade, destaca-se o indevido julgamento antecipado da lide, não se permitindo a produção de prova em processo que envolve aprofundados conhecimentos técnicos e abrange a vida de milhares de pessoas, sem considerar o impacto social e nas finanças públicas.

Por fim, no cotejo entre os direitos fundamentais envolvidos, observa-se que a antecipação dos efeitos da sentença atinge direitos básicos do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, antes mesmo de discutir-se o ferimento do direito de propriedade ou à demarcação.

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Os direitos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa são estruturantes do Estado de Direito, pois sem o respeito a eles nenhum outro direito está garantido, razão porque constam nas cláusulas pétreas do art. 5º, da Constituição Federal.

Assim, presentes os requisitos do art. 12, §1º, da Lei 7.347/85, e do art. 4º, da Lei 8.437/92, deve ser suspensa a execução da antecipação de tutela deferida na Ação C i v i l P ú b l i c a n º 5 0 0 3 7 0 7 0 8 2 0 1 2 4 0 4 7 11 7 ( 2 0 0 6 . 7 1 . 1 7 . 0 0 1 6 2 8 - 1 ( R S ) / 0001628-54 .2006 .404 .7117 , e da Execução Prov isó r ia de Sen tença n º 5002432-24.2012.404.7117.

DO PERICULUM IN MORA

Como já demonstrado anteriormente, a manutenção da antecipação de tutela e de sua execução tende a causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia, havendo manifesto interesse público e flagrante ilegitimidade do Estado do Rio Grande do Sul para reassentar e indenizar agricultores em casos de demarcações de áreas indígenas.

Outrossim, mantida a execução da antecipação da tutela, seus efeitos trarão inexorável lesão à economia pública e à ordem administrativa. Isso porque o reassentamento e indenização de uma área de 4.320 hectares, envolvendo 385 famílias, demanda previsão orçamentária, intensa mobilização administrativa, negociações, escolhas e aquisição de local adequado. Essas etapas, por si sós consomem mais tempo do que os 120 dias inadequadamente estipulados em sentença.

Por outro lado, o cumprimento da antecipação torna absolutamente irreversível os danos causados, pois eventual reforma da decisão de mérito não terá o condão de repor as coisas em seu estado anterior e nem de ressarcir os gastos efetuados no cumprimento da ordem judicial, perpetrando severo dano à economia pública.

Assim há interesse jurídico na concessão da suspensão requerida, identificando-se o periculum in mora existente.

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