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Sobre Husserl.
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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
O realismo de entidades de Nancy Cartwright
Tales Carnelossi Lazarin*
RESUMO
Nancy Cartwright apresenta uma posição intermediária entre o empirismo e o realismo
científico, conjugando uma atitude antiteórica sobre as leis científicas fundamentais com o
realismo a respeito das entidades inobserváveis postuladas pela ciência. A autora sustenta, por
um lado, que apenas leis fenomenológicas – que buscam descrever regularidades empíricas de
maneira direta – podem ser verdadeiras, enquanto que leis teóricas ou fundamentais, que são
mais abstratas e a partir das quais as primeiras podem ser derivadas e explicadas, não
descrevem os fatos literalmente (isso por uma série de razões alegadas, como essas leis
requererem a condição ceteris paribus ou haver perdas de adequação empírica com a
ampliação de seu poder explicativo). Por outro lado, Cartwright entende que a ciência pode
obter conhecimento a respeito de entidades que não são diretamente observáveis (e.g.
elétrons), e o faz recorrendo a situações experimentais em que essas estariam envolvidas. A
autora alega que a existência das causas (i.e. entidades) do que é constatado em um
experimento controlado é requerida para que uma explicação causal seja aceita; e afirma
também que, mesmo que os cientistas sejam estimulados a formular modelos diversificados
para dar conta de certos fenômenos, que apenas uma história causal é, por fim, admitida pela
comunidade científica - o que reforça seu entendimento sobre o compromisso ontológico
envolvido nas explicações causais. Cartwright detalha posteriormente sua posição sobre o
realismo de entidades, sustentando que as regularidades empíricas não são fundamentais, mas
sim resultado da ação de certas ‘capacidades causais’ (i.e. disposições ou tendências de certos
objetos em se comportarem de determinadas maneiras ou de produzirem certos efeitos em
condições específicas). É a combinação de objetos com certas capacidades causais em
configurações estáveis e repetitivas – que ela denomina sugestivamente de ‘máquinas
nomológicas’ – que geraria as regularidades empíricas que as leis científicas descrevem.
* Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].
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Nancy Cartwright apresenta uma posição intermediária entre o antirrealismo empirista
e o realismo científico, conjugando uma atitude antiteórica sobre as leis científicas
fundamentais com o realismo a respeito das entidades inobserváveis postuladas pela ciência.
Nesta comunicação discorrerei sobre algumas das posições da autora, expondo seu argumento
em favor da existência de entidades inobserváveis, e também sua defesa posterior das
capacidades naturais e das ‘máquinas nomológicas’ em que essas são articuladas, dando
origem às regularidades constatadas empiricamente.
… eu não estou preocupada exclusivamente com o que pode ser observado. Eu acredito em entidades teóricas e em processos causais também. Todo tipo de coisas inobserváveis está em ação no mundo, e mesmo se quisermos prever apenas resultados observáveis, ainda teremos de olhar para suas causas não observáveis para obter as respostas certas.
Nancy Cartwright
O debate sobre o realismo científico tem sido um dos mais movimentados na Filosofia
da Ciência das últimas três décadas (ao menos...) sendo que a tese realista pode ser
apresentada, de maneira resumida, como a alegação de que as teorias científicas aceitas são
descrições aproximadamente verdadeiras da realidade nos domínios respectivos, o que inclui
alegações sobre a existência de entidades que não podem ser diretamente observadas (e.g.
elétrons, campos eletromagnéticos, genes, estados mentais...) que são representadas por essas
mesmas teorias (cf. Boyd, 1984). O assunto da presente comunicação são algumas concepções
científicas de Nancy Cartwright (1983, 1989, 1999), filósofa que investiga a ciência
principalmente da perspectiva de sua prática, com especial atenção ao emprego de modelos no
desenvolvimento de experimentos científicos e de aplicações tecnológicas.
Na citação inicial, Cartwright (1983) soa quase como uma perfeita realista,
asseverando a existência de entidades inobserváveis e relações causais das quais essas
participam - e que podem bem ser requeridas para explicar certas ocorrências observáveis.
Entretanto, a autora se autodeclara ‘uma empirista’ e, embora divirja dessa tradição filosófica
com relação a diversos pontos sensíveis, define seu empirismo não com relação ao que é
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estritamente observável sem o auxílio da instrumentação científica (como faz van Fraassen,
1980/2006), mas sim com respeito àquilo que pode ser empiricamente testado e medido. Essa
perspectiva se constitui em uma ampliação em relação a um empirismo mais estrito, uma vez
que ocorrências subobserváveis podem, ocasionalmente, ser testadas e medidas de maneira
engenhosa pelos cientistas (e.g. com o uso de microscópios) e, por conseguinte, o
conhecimento a seu respeito pode ser assim estabelecido.
Porém, Cartwright (1983) assume uma posição antirrealista com relação às leis
fundamentais da natureza, dedicando boa parte de seu influente e controverso livro How the
laws of physics lie buscando justamente mostrar que tais leis não representam a realidade
literalmente e, portanto, não podem ser (aproximadamente) verdadeiras como alegado pelos
realistas. A autora distingue dois tipos de leis seguindo o uso que fazem os cientistas. Leis
fenomenológicas apenas descrevem regularidades empíricas específicas da maneira mais fiel
possível (e.g. leis da refração e reflexão, leis fenomenológicas dos gases); enquanto que as leis
fundamentais ou teóricas (e.g. leis de Newton, a equação de Schrödinger) são gerais, unificam e
explicam as regularidades descritas pelas leis fenomenológicas, sendo capazes de derivá-las
(em conjunto com informações específicas da situação). A autora contraria toda uma tradição
na Filosofia da Ciência que privilegia as leis fundamentais em detrimento das leis
fenomenológicas (cf. Hempel, 1965), e aqui menciono alguns motivos para seu ceticismo com
respeito às primeiras.
Um dos problemas é que Cartwright (1983) alega que as leis fundamentais devem ser
interpretadas como requerendo a condição ‘ceteris paribus’ (todo o mais constante), uma vez
que são formuladas para descrever tipos de efeitos específicos (e.g. força elétrica pela lei de
Coulomb e força da gravidade pela lei da gravitação universal), mas, considerando que a
interação entre fatores causais de naturezas diversas (e.g. interação de forças elétricas e
gravitacionais em partículas carregadas) ocorre via de regra, isso faz com que o comportamento
observado divirja do que é estritamente ditado pelas leis tomadas isoladamente. A autora
replica, então, que essas leis não descrevem os fatos literalmente – isto é, são estritamente
falsas, - ou o fazem somente em condições muito simples (como aquelas obtidas em
laboratório) ou idealizadas.
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Outro ponto enfatizado por Cartwright (1983) é que enquanto as leis fenomenológicas
são confirmadas diretamente pela evidência empírica, as leis fundamentais são confirmadas
apenas indiretamente pela derivação das primeiras. A autora opõe-se ao modelo nomológico
dedutivo de explicação científica apresentado por Hempel (1965), realizando estudos de caso
(e.g. sobre lasers e circuitos elétricos) que mostram que tais derivações não são diretas como
prescrito, mas sim mediadas por modelos da situação, de modo que informações específicas a
respeito dessa são empregadas para melhorar o que é ditado pelas leis fundamentais; e
também mostrando que há passos nas derivações que são tomados mais por conveniência
matemática do que pela obediência aos fatos empíricos. Cartwright (1983, p. 2) alega que razão
para muitos desses problemas com as leis fundamentais é que o custo do poder de explicar e
organizar de forma conveniente uma ampla gama de fenômenos empíricos em poucos
princípios científicos é uma inevitável perda de sua adequação empírica, de modo que “o poder
explicativo manifesto das leis fundamentais não é argumento para sua verdade” – afirmação
que se constitui na negação, pela autora, de tese central aos realistas científicos tradicionais (cf.
BOYD, 1984).
Retornando ao assunto do realismo de entidades, Cartwright (1983, p. 87) rejeita, com
outros empiristas como van Fraassen e Duhem, a inferência à melhor explicação em que os
realistas se apoiam para sustentar que as teorias fundamentais devem ser ao menos
aproximadamente verdadeiras. A autora segue uma linha instrumentalista clássica afirmando
que “explicações organizam breve e eficientemente a desajeitada, e talvez impossível de ser
aprendida, massa de conhecimento altamente detalhada que temos dos fenômenos”, mas
replicando que “o poder organizativo não tem nada a ver com a verdade”. Por tal concepção,
uma explicação falsa ainda poderia satisfazer todos os requisitos do que seja uma boa
explicação, ou seja, a verdade é entendida como ‘externa’ às explicações, um ‘ingrediente
adicional’ cujo estabelecimento não é constitutivo ou requerido pelas mesmas (e.g. teorias
falsas com valor instrumental como a astronomia de Ptolomeu ou a mecânica newtoniana).
Entretanto, Cartwright (1983, p. 89-90) pensa que os autores instrumentalistas citados
“eliminam mais do que deveriam”, entendendo que as explicações causais são de um tipo
especial das quais a verdade é, sim, constitutiva, e que apoiam a crença nas entidades
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inobserváveis. A autora discorre então sobre as explicações causais, afirmando que estas não
explicam somente “no sentido de organizar e de tornar claro, mas também de apresentar ...
uma causa” e oferece o seguinte exemplo:
Meu limoeiro recém-plantado está doente, as folhas amareladas e caindo. Eu finalmente explico isso dizendo que a água se acumulou no fundo do recipiente: a água é a causa da doença. Eu furo um buraco na base do barril de carvalho onde vive o limoeiro e água suja escorre. (...) Deve haver água para a explicação ser correta. Uma explicação de um efeito por uma causa tem um componente existencial, não apenas um ingrediente extra opcional.
O ponto enfatizado por Cartwright (1983, p. 90-91) é que aceitar uma explicação
causal requer a admissão da causa apresentada - pois sem isso a explicação não faria sentido
uma vez que o fator que realiza a explicação seria eliminado. O mesmo raciocínio do efeito à
causa pode ser empregado para estabelecer a existência de entidades inobserváveis:
Da mesma maneira, quando eu explico a mudança na taxa de queda de uma pequena gotícula em um campo elétrico, asseverando que há elétrons e pósitrons nessa esfera, eu estou inferindo do efeito para a causa, e a explicação não faz nenhum sentido sem a implicação direta de que há elétrons e pósitrons na esfera. Aqui, não há como furar um buraco para deixar os elétrons escorrerem diante dos nossos olhos. Porém, há a geração de outros efeitos: se a esfera está carregada negativamente, eu a pulverizo com um emissor de pósitrons e então mudo a taxa de queda da esfera: os pósitrons do emissor aniquilam os elétrons da esfera. O que eu invoco ao completar essa explicação não são leis fundamentais da natureza, mas antes propriedades dos elétrons e pósitrons, e alegações muito complexas e muito específicas sobre como o seu comportamento leva a essa situação. (...) Eu infiro à melhor explicação, mas apenas de uma forma derivativa: eu infiro à causa mais provável, e a causa mais provável é um item específico, o que nós chamamos de entidade teórica.
Aqui, há a inferência do efeito – a variação na taxa de deslocamento da gotícula
eletricamente carregada – para as causas que são os elétrons e pósitrons, entidades que não
podem ser diretamente observadas. A explicação é elaborada a partir de considerações sobre
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as propriedades que as entidades inobserváveis supostamente possuem (e.g. carga elétrica) e
sobre as condições específicas da situação experimental. De maneira análoga ao exemplo
anterior, Cartwright (1983) sustenta que é necessário conceder a existência das entidades
teóricas se essa explicação causal for aceita – caso contrário não faria sentido apresentá-las
como as causas do que foi empiricamente constatado.
Ao final da citação, Cartwright (1983) esclarece que o raciocínio não envolve a
chamada ‘inferência à melhor explicação’, que os realistas empregam para estabelecer a
verdade aproximada das teorias científicas, mas apenas uma forma derivativa e mais restrita de
raciocínio que ela chama de ‘inferência à causa mais provável’, que requer apenas o
entendimento de como as causas apresentadas produzem o efeito em situações específicas.
Por certo, a aplicação dessa inferência requer um conhecimento de fundo considerável, mas a
autora entende que as leis teóricas não estão envolvidas de modo essencial como alegam os
realistas.
A posição moderada de Cartwright (1983, p. 93) como realista sobre as entidades
inobserváveis e antirrealista a respeito das teorias fundamentais pode ser entendida também à
luz dos dois tipos de explicação científica abordados pela autora. Ela diz que “o que há de
especial sobre a explicação por uma entidade teórica é que ela é uma explicação causal, e a
existência é uma característica de alegações causais”, mas complementa afirmando que “não
há nada de similar para as leis teóricas”. Cartwright (1983, p. 94, grifo original) cita Adolf
Grünbaum que diz que “...leis são explicadas não por mostrarem que as regularidades que
essas afirmam serem o produto da operação de causas, mas antes por reconhecer que sua
verdade é um caso especial de verdades mais compreensivas.” Assim, uma lei fundamental
pode ser capaz de derivar uma lei fenomenológica se informação específica sobre a situação for
fornecida, mas tal derivação não é a ‘causa’ da regularidade descrita pela última, de modo que
essa explicação não requer a verdade da primeira. De fato, uma das razões em favor do
instrumentalismo é que várias leis fundamentais podem ser capazes de derivar uma mesma lei
fenomenológica, de modo que explicações distintas e incompatíveis para as mesmas
regularidades empíricas são sempre uma possibilidade em aberto.
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É relevante comentar sobre algumas críticas que o realismo de entidades proposto por
Cartwright (1983, p. 93) tem recebido na literatura1. Primeiramente, a própria autora concede
que seu argumento é limitado ao afirmar que “van Fraassen não acredita em causas,” e que ele
as toma “como uma ficção”; isto é, um cético a esse respeito não aceitaria explicações causais
em quaisquer circunstâncias e estaria desobrigado de conceder a existência das causas (i.e.
entidades) mencionadas como requerido pela argumentação anterior.
Outros questionamentos buscam enfatizar a relação que é de fato obtida entre as
teorias e as evidências em favor das entidades teóricas. Em um extremo, é possível supor uma
visão mínima do realismo de entidades como simplesmente alegando a existência de certos
inobserváveis científicos sem que esses estejam mais firmemente atrelados a qualquer teoria
ou descrição específica (cf. Devitt, 1984/1997). Porém, de novo, um instrumentalista poderia
concordar prontamente com todos os efeitos diretamente observáveis sem conceder a
existência das entidades em questão, ou das propriedades a elas atribuídas, uma vez que tais
efeitos poderiam, em princípio ao menos, ser o resultado de algo distinto. Noutro extremo, é
possível negar de forma bastante enfática a independência das evidências empíricas das teorias
fundamentais, sustentando que, sem o recurso a essas últimas, a construção dos experimentos
não faria sentido, ou os dados obtidos não poderiam ser apropriadamente interpretados (cf.
ELSAMAHI, 1994). Assim, o realismo de entidades seria uma posição ‘incoerente’ ao negar a
verdade de teorias que são requeridas para estabelecer a evidência empírica que é apresentada
em seu apoio.
O ponto que gostaria de enfatizar é que é possível uma leitura intermediária sobre o
papel das descrições das entidades – nem mínima, nem fortemente influenciada por teorias –
que penso ser mais apropriada. No exemplo anterior da gotícula carregada eletricamente,
Cartwright (1983) apoia a inferência causal em regularidades conhecidas e dados detalhados
1 Hacking (1983) também propôs, de forma independente, uma formulação particular do realismo de entidades, mas sua versão foca na manipulabilidade experimental dessas, enquanto que a de Cartwright (1983) se apoia na análise das explicações causais. Os autores tiveram conhecimento do trabalho paralelo antes da publicação de seus textos, o que reconheceram explicitamente nos mesmos. Na literatura subsequente, muitas vezes o realismo de entidades é tratado como uma única posição, desconsiderando diferenças envolvidas no tratamento dado por cada um dos autores a suas propostas. Por outro lado, dada a similaridade de suas posições, muitas das críticas feitas a um aplicam-se, sem prejuízo, ao outro também.
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sobre a situação experimental, que permitem inferir a partir do efeito constatado (e.g. variação
na taxa de queda) para suas causas (e.g. elétrons e pósitrons). O ponto importante, porém, é o
papel das propriedades dessas entidades (e.g. sua carga elétrica e o fato de elétrons e pósitrons
se aniquilarem mutuamente), que são, em última análise, as efetivas responsáveis por sua ação
causal. A concepção mínima aludida anteriormente não resiste a essa consideração uma vez
que há, sim, descrições de propriedades firmemente relacionadas às entidades - que estão
envolvidas, inclusive, no apoio à alegação de sua existência. Por outro lado, isso tampouco
significa um compromisso integral com as teorias fundamentais - e a autora se esforça para
mostrar que, ao menos nos casos abordados, essas não são requeridas. Em textos
subsequentes, Cartwright (1989; 1999) desenvolve novas considerações a respeito das
propriedades causais - sobre o que passo a contextualizar e comentar.
Em The Dappled World, que Cartwright (1999, p. 23) considera uma continuação do
livro já comentado, a autora diz que seu trabalho anterior foi por vezes considerado como um
ataque o realismo científico (i.e. concebido de forma tradicional), e afirma em tom conciliatório
que foi “iludida pelo inimigo” e que não é o realismo, mas o fundamentalismo que deseja
combater. Esse último é concebido pela autora como uma mescla de universalismo – a tese de
que as leis científicas se aplicam de maneira irrestrita – e de reducionismo – a alegação de que
a diversidade dos fenômenos naturais pode ser subsumida a leis de nível fundamental – teses
que a autora toma, por vezes, de maneira indistinta.
Cartwright (1999, p. 1) critica o ideal positivista, ainda arraigado, de que a ciência se
constituiria em um sistema de leis dedutivo, fechado e hierarquizado entre as várias disciplinas
científicas. Ela sustenta que a falha repetida de ciências com tendências ‘imperialistas’ (e.g. a
física para as ciências naturais e a economia para as sociais) em assumir o controle e governar
as demais é evidência a favor de um mundo misturado e bagunçado, afirmando também que a
“desordem da natureza é aparente” e que uma imagem mais fiel da ciência é a de uma colcha
de retalhos de leis (patchwork of laws) relacionadas maneiras complexas e que descrevem
partes específicas da realidade sem que haja continuidade ou subordinação essencial entre
elas. A autora até supõe, em favor do argumento, que as leis fundamentais possam ser
verdadeiras – possibilidade questionada anteriormente por problemas nas derivações -, mas
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afirma que ainda assim não haveria justificativa para o fundamentalismo. A razão é que
conceitos abstratos das teorias (e.g. força) descrevem a realidade apenas com a ajuda de
modelos que os interpretam de maneira mais concreta (e.g. o oscilador harmônico simples);
entretanto, os modelos disponíveis nas ciências se aplicariam, segundo a autora, apenas em
certas situações específicas (e.g. pêndulo simples, corda vibrando...) - e os conceitos abstratos,
por conseguinte, apenas a uma gama limitada de fenômenos cobertos por eles (cf. Giere, 1988,
para exemplos de modelos na mecânica clássica).
Retornando à questão do realismo, Cartwright (1989) já havia realizado em um texto
anterior a defesa de que a ciência pode descobrir ‘capacidades’ da natureza e também de seu
papel central na explicação das ocorrências empíricas. As capacidades são concebidas pela
autora como disposições ou tendências de certos objetos em se comportarem de determinadas
maneiras ou de produzirem certos efeitos em condições específicas (e.g. o paracetamol,
quando ingerido, tem a capacidade de amenizar as dores de cabeça; corpos eletricamente
carregados têm a capacidade de atrair ou repelir outros corpos próximos também carregados).
As capacidades estariam em ação mesmo quando há interação ou interferência de outras
causas - ‘tentando’ realizar seus efeitos mesmo contra resistências e, assim, influenciando o
resultado final; e podem ser descobertas e descritas pelas ciências com o controle de outras
ocorrências que não a ação da própria capacidade investigada, que então, livre de
impedimentos e de interferências significativas, realiza-se plenamente (esse procedimento é
chamado de ‘método de Galileu’).
Por certo um empirista tradicional poderia objetar à ‘inflação metafísica’ do retrato do
mundo pela admissão das capacidades, mas essa é compatível com o empirismo de Cartwright
(1999, p. 81), uma vez que ela alega que podem ser descobertas e testadas pelo método
descrito. Não obstante, isso certamente significa um flerte com o essencialismo, o que a autora
reconhece. Porém, ela também assinala uma diferença fundamental entre o essencialismo
aristotélico e a sua posição, afirmando que “para a ciência moderna o que algo é – como ele é
identificado e definido – e o que está em sua natureza fazer são coisas distintas”. O exemplo
oferecido pela autora é o de átomos em estado excitado que, agitados, produzem luz (i.e.
fótons). Está em sua natureza emitir luz, mas isso não é o mesmo que ser um átomo em estado
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excitado – ou seja, estar nesse estado é uma característica estrutural do átomo, identificada
pela ciência de forma distinta da maneira com que esse se comporta por sua natureza (e.g.
emitir luz).
Cartwright (1989, p. 140) também sustenta que as capacidades são centrais para o
objetivo da ciência de explicar a natureza, e que os testes e experimentos científicos não têm
por objetivo descobrir ‘leis’, mas sim as capacidades naturais nos domínios respectivos. Para
entender o ponto é preciso considerar outra alegação da autora, de que “as regularidades não
são, de nenhuma maneira, fundamentais ontologicamente ... elas são consequências da
operação de capacidades.” Assim, ela diverge também nesse ponto do empirismo tradicional -
que defende uma concepção ‘regularista’ da ciência -, colocando as capacidades como
ontologicamente fundamentais e, portanto, aptas a explicarem as próprias regularidades
descobertas empiricamente. Porém, as capacidades identificadas talvez sejam pouco efetivas
por si e precisam ser articuladas em estruturas causais para que sejam obtidos efeitos estáveis
ou repetitivos. Ao elaborar esse ponto, Cartwright (1999, p. 50) define o que seria uma
máquina nomológica:
...um arranjo (suficientemente) fixo de componentes ou fatores, com capacidades (suficientemente) estáveis que no tipo apropriado de ambiente estável irão, com a repetida operação, fazer surgir o tipo de comportamento regular que nós representamos nas nossas leis científicas.
Cartwright (1999) alega que as regularidades descritas pelas leis científicas são geradas
por máquinas nomológicas, sejam esses arranjos dados naturalmente (e.g. o sistema solar,
células) ou criados artificialmente em laboratórios e aparatos tecnológicos (e.g. aceleradores de
partículas, circuitos de aparelhos eletrônicos...); e afirma também que os modelos
desenvolvidos nas ciências se assemelham muito a projetos para a construção de máquinas
nomológicas. Assim, é possível entender como as regularidades – então vistas como exceções e
não como a regra - podem surgir em um mundo bagunçado e desordenado como delineado
pela autora. Além disso, os modelos que são utilizados para ‘concretizar’ princípios e leis
abstratas das ciências aplicando-os a situações específicas servem, na prática, como espécies de
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projetos que orientam cientistas e engenheiros a articular máquinas nomológicas - e, por
conseguinte, a instanciar as regularidades descritas pelas leis respectivas.
Enfim, mesmo declarando-se uma empirista, Cartwright (1999) parece buscar reverter
empirismo inglês clássico, seguido pelo positivismo, que expurgou a metafísica da ciência e
privilegiou as regularidades observadas (cf. AYER, 1936/1946). Para a autora, as entidades
inobserváveis e as capacidades naturais podem ser descobertas empiricamente – e,
apropriadamente articuladas, essas últimas podem originar (e explicar!) as regularidades tão
caras aos empiristas tradicionais.
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New York: The Free Press, 1965.