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Tecnologia Indígena

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PORTOCARRERO, 2010 - Primeiras páginas, livro incompleto.

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  • Jos Afonso Botura Portocarrero, 2010.

    Av. Senador Metello, 3773, Jardim Cuiab Cuiab-MT CEP: 78030-005 Telefax: (65) 3624 5294 | 3624 8711

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    Editora

    Coordenao de Produo

    Chefe de Arte

    Design Grfico

    Imagem da Capa

    Reviso

    Maria Teresa Carrin Carracedo Ricardo Miguel Carrin Carracedo

    Helton Bastos Maike Vanni

    Estrutura da Casa Pares

    Marinaldo Custdio

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Povos indgenas : Mato Grosso : Arquitetura indgena 728.098172

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    10-10918 CDD-728.098172

    Portocarrero, Jos Afonso BoturaTecnologia indgena em Mato Grosso: habitao /

    Jos Afonso Botura Portocarrero. -- Cuiab, MT : Entrelinhas, 2010.

    Bibliografia.ISBN 978-85-7992-006-6

    1. Arquitetura de habitao (MT) 2.Arquitetuta indgena (MT) 3.ndios (MT) 4.Tecnologias de construo (MT) 5.Unidades de Sade (MT) I.Ttulo.

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  • memria de Rondon,Aos povos Bakairi, Bororo, Irantxe, Kamayur, Karaj, Java,

    Myky, Pares, Yawalapiti, Umutina e Xavante,

    minha esposa Mnica,Aos meus filhos, Pedro, ngela, Carolina, Lucas e Jlia,

    Aos meus pais, Iracy e Jos Afonso,

    queles de quem no decorrer dos trabalhos, por afinidade e noutro registro de tempo, tornei-me companheiro de viagens.

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  • Arquitetura uma inveno contnua, onde a histria entra como memria para ser transformadora.Paulo Mendes da Rocha

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  • Museu o mundo; a experincia cotidiana.(Hlio Oiticica, 1966)

    O livro que temos em mos, fruto do excepcional trabalho de estudo, investigao e dese-nho que Jos Afonso Portocarrero realizou em seu doutorado pela FAU-USP, se apresenta aos meus olhos sob mltiplas camadas de sentido. Primeiro, ele se insere no mundo; parte deste mundo e o faz parceiro do conhecimento ao invs de isol-lo para analis-lo sem sujar as mos.

    Ora, se trata de postura ainda um pouco rara na academia, onde muitas preguias e interes-ses mal disfarados encantam mentes propensas manuteno do estado anterior de produo do conhecimento, de histria recente. Em seguida, e como uma das consequncias da camada anterior, o arquiteto Jos Afonso neste trabalho, a meu ver, se afastou do caminho mais curto, reto, ao escolher ver o mundo em uma instigante complexidade.

    Escolha ainda mais rara em se tratando de obra no campo da arquitetura e urbanismo bra-sileiros que no vem primando, justamente, pela insero e dilogo com a diversidade formal e conceitual que a cultura contempornea oferece. E a, em nova camada, deve-se frisar a atualida-de deste trabalho em sua base metodolgica.

    De fato, na linha geralmente conhecida como antropologia ps-colonial (postcolony), dar voz aos objetos de pesquisa, mais do que reconhecer que a imagem difundida sobre eles foi produto de uma fico colonial intencional, pode transform-los em sujeitos de seu presente e faz-los autores de seu prprio destino.

    Penso que essa a melhor perspectiva para se olhar o presente livro.Ao proceder dessa forma o livro nos abre em toda sua originalidade e dignidade, mas, tam-

    bm em toda sua restrio e especificidade tecnolgica e socioeconmica a Arquitetura Indge-

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  • na Brasileira de cada uma das etnias estudadas. Ora, justamente esse processo que as retira do limbo empoeirado das citaes histricas e dos preconceitos, convidando-as a adentrar o uni-verso das culturas locais e das civilizaes dominantes no mundo globalizado e vivo da poca presente.

    Por fim, em sua ltima camada, a presente obra de Portocarrero articula e d continuidade ao esforo de inmeros arquitetos. Continuidade que se apoia fortemente em antroplogos e so-cilogos sobejamente reconhecidos merc de seus mritos acadmicos e cientficos inigualveis aceitou o desafio de estender o conceito de arquitetura, urbanismo, arte e design para o campo da cultura humana.

    Devo lembrar que me coloco nessa linhagem de arquitetos com DNA cultural e, antropol-gico em especial, razo pela qual propus a expresso desenho cultural, linha de trabalho da qual Portocarrero, como meu ex-orientando, ldimo continuador. Ns dois, e todos os demais ex-alu-nos e orientandos da FAU-USP de mesmo DNA como Selma Nakamura Hardy, Silvio Cordeiro, Nanci Takeyama-Losch, Caio Vasso, Flavia DAlbuquerque da Silveira e Paula Quinto, para citar os mais atuantes na rea do desenho e da arquitetura cultural.

    Entretanto, somos totalmente devedores de alguns colegas, arquitetos de formao ou no, que nos antecederam nessa linha de trabalho. Dentre os mais recentes, se devem lembrar, en-tre tantos, os estrangeiros Joseph Rykwert, Amos Rapoport e Paul Olivier e os nacionais Kurt Nimuendaj, Cristina S, Renate Brigitte Viertler, Sylvia Caiuby Novaes, Renato Delarole, Regina Mller, Maria Heloisa F. Costa, H. B. Malhano, Aracy L. da Silva, Delvair e Julio Cesar Melatti.

    J que o arquiteto Jos Afonso Portocarrero passou pela minha orientao, com grande su-cesso, alis, eu pessoalmente, devo assinalar a dvida positiva que tenho com o meu professor Michel Franois Veber, por abrir tal caminho e com a antroploga Maria Ins Ladeira por me iniciar nele.

    Finalmente, destaquem-se a Prof Dr Maria de Ftima Gomes Costa, do Departamento de Histria da UFMT, orientadora de mestrado do arquiteto Portocarrero; foi ela quem, acolhendo lucidamente a proposta inicial sobre Bi, a casa Be (Bororo), possibilitou o incio deste trabalho que agora se edita. A Prof Dr Maria Ftima Roberto Machado, do Departamento de Antropo-logia e do Museu Rondon da UFMT, responsvel pelo Ncleo de Pesquisa Tecnondia, onde sou eventual assessor, deu suporte seguro com a coordenao da pesquisa, aos trabalhos desenvol-vidos por Jos Afonso.

    Arq. Carlos Zibel Costa (FAU-USP)

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  • Quando olhamos nossa volta, temos a sensao de que quanto mais avanamos no dom-nio dos complexos sistemas de comunicao, quanto mais possibilidades de integrao entre os seres humanos, mais a convivncia entre os que pensam diferente parece cada vez mais distante.

    Por isso, talvez uma das mais importantes contribuies de um intelectual comprometido com o mundo em que vive seja colocar a sua energia criadora disposio do entendimento en-tre as pessoas, considerando as mais diferentes culturas e as mais diferentes condies materiais de existncia.

    Esse o grande desafio que tem invadido de modo intenso as reflexes e a prtica profis-sional do Prof. Dr. Jos Afonso Botura Portocarrero, ao longo de pelo menos mais de duas dca-das, desde que ele se tornou um arquiteto, com mestrado em Histria pela UFMT e doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, de cuja banca eu tive o prazer de participar, juntamente com o seu orientador, Prof. Carlos Roberto Zibel Costa, e os professores Rafael Antonio Cunha Perrone, Renate Brigitte Viertler e Cludia Terezinha de Andra-de Oliveira.

    Seu corao mato-grossense foi desde cedo, ainda nos tempos do Colgio So Gonalo, con-quistado pela exuberncia cultural do sofrido povo Bororo. Seus trabalhos acadmicos tm re-velado isso de maneira inovadora, atravs da proposio de uma arquitetura que , ao mesmo tempo, bela em suas formas de inspirao nativa e preocupada em dialogar com esse novo s-culo, tanto na apropriao das inovaes tecnolgicas quanto nas urgentes respostas s exign-cias ambientais. Apesar da pobreza extrema a que esses ndios foram relegados, Jos Afonso tem

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  • sensibilidade antropolgica para compreender que ali existe uma profunda viso simblica do mundo, materializada em suas moradias, plantadas de forma surpreendente na aldeia circular, em torno do ptio sagrado o wororo orientadas pelas suas metades e cls, cuja complexidade projetou esse povo na etnologia mundial.

    Este trabalho, que aqui apresento, est integrado em um conjunto de propostas que vm sendo desenvolvidas desde 2002, em torno de um ncleo de pesquisas denominado Tecnondia, que registrado no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e certificado pela Universidade Fede-ral de Mato Grosso (UFMT), onde tem uma sede. O ncleo abriga, de modo crescente, estudantes e professores do curso de Arquitetura e Urbanismo e neste ano teve suas atividades ampliadas com um projeto de extenso, includo no sistema nacional de extenso do Ministrio da Educa-o, denominado Tecnologia e design indgena: bases para uma antropologia aplicada arquitetu-ra. O objetivo do Tecnondia contribuir, de modo amplo, para o debate em torno da noo de etnoarquitetura, incorporando desenhos considerados tradicionais das culturas indgenas, atra-vs de um dilogo entre essas culturas e a contribuio do arquiteto, com a utilizao de tecno-logias e materiais da sociedade industrializada.

    Em sua tese de doutorado, que agora publicada, o autor assumiu uma postura etnogrfica no levantamento dos desenhos das casas indgenas, buscando suas fontes nos registros biblio-grficos e no extenso trabalho de campo entre os Pares, Bakairi, Myky, Irantxe, Xavante, Boro-ro, Umutina e os ndios do Parque Nacional do Xingu (Yawalapiti e Kamayur). O levantamento dos desenhos uma de suas contribuies mais importantes, que se incorpora ao conjunto de trabalhos que so referncias consolidadas no campo da prpria arquitetura, como as pesqui-sas de Cristina S, Maria Helosa Fenelon Costa, Hamilton Malhano e do prprio Prof. Carlos Zi-bel, no seu reconhecido estudo sobre as casas Guarani. O material de campo compe um acervo indito, contemplando habitaes que pela primeira vez so registradas na perspectiva arquite-tnica, em suas tcnicas construtivas, o que leva tambm a uma contribuio substancial para os prprios ndios, colaborando no registro da sua prpria memria, especialmente no caso dos Irantxe, Myky e Pares. Ao longo da pesquisa, foi gratificante acompanhar os vrios momentos de troca de conhecimento entre o Prof. Jos Afonso e os ndios nas aldeias, o interesse despertado pelo desenho e a disponibilidade para colaborar para que as informaes fossem as mais com-pletas possveis.

    Um outro aspecto importante a ressaltar a influncia positiva que o projeto Tecnondia vem exercendo entre os prprios estudantes de arquitetura em Mato Grosso, que cada vez mais tm a oportunidade de ampliar os seus horizontes para alm dos modelos hegemnicos de pensa-

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  • mento e de exerccio profissional. Uma inovao que vem trazendo bons frutos para o curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMT, que tem hoje o Prof. Jos Afonso na sua direo, buscando fortalecer sua rea de conhecimento e a contribuio original da nossa instituio no cenrio acadmico nacional.

    O apoio decisivo do Sebrae na publicao desta obra, atravs da seriedade e da competn-cia da editora Entrelinhas, motivo de orgulho para todos ns, que vemos nascer em Cuiab um dos seus mais significativos desdobramentos: o Espao do Conhecimento, a ser inaugurado ain-da neste ano. So novos tempos, novos olhares, novos caminhos, trilhados com a sabedoria dos que buscam o futuro respeitando a beleza e os ensinamentos das nossas tradies, que nos fa-zem nicos no vasto panorama universal das culturas.

    Prof Dr Maria Ftima Roberto MachadoDept de Antropologia/Museu Rondon UFMT

    Coordenadora do Ncleo Tecnondia

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  • Introduo ...................................................................................................................................................................17

    I O desenho no estudo das casas indgenas ...........................................................................................21

    1.1 A casa primitiva ...................................................................................................................................................................241.2 Croquis de tipologia ........................................................................................................................................................26

    II Os desenhos das casas indgenas no Brasil: informaes etnogrficas ...........................................................................................................................49

    2.1 A forma ogival .....................................................................................................................................................................59

    III O desenho vernacular das casas indgenas Bakairi, Bororo, Irantxe, Kamayur, Karaj / Java, Myky, Pares, Yawalapiti, Umutina, Xavante ......................................................................................................95

    3.1 Bakairi .....................................................................................................................................................................................99 3.2 Bororo ..................................................................................................................................................................................111 3.3 Irantxe (Manoke) ...........................................................................................................................................................119 3.4 Kamayur ..........................................................................................................................................................................127 3.5 Karaj / Java ...................................................................................................................................................................136 3.6 Myky (Mynky; Muku)...................................................................................................................................................142 3.7 Pares (Pareci) ...................................................................................................................................................................151 3.8 Yawalapiti ...........................................................................................................................................................................162 3.9 Umutina ..............................................................................................................................................................................1723.10 Xavante ...............................................................................................................................................................................178

    IV Etnoarquitetura ............................................................................................................................................ 185

    4.1 A casa indgena tradicional no territrio pesquisado ..............................................................................1914.2 A casa misturada ...........................................................................................................................................................194

    V Transtempo ................................................................................................................................................... 197

    Referncias ................................................................................................................................................................ 225

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  • Tecnologia indgena em Mato Grosso | Habitao 17

    Este livro trata do desenho das habitaes tradicionais de dez povos em territrio mato-grossense e seus aspectos construtivos. O processo para chegar at esta sua impresso, entretan-to, vem de longa data. Por um caminho que me era antes desconhecido, fui percorrendo trilhas e atalhos, guiado por textos e memrias, que muito me ensinaram. o que agora vou relatar aqui, esperando assim poder facilitar percursos futuros de estudantes e pesquisadores que queiram seguir nesta mesma direo.

    H alguns anos, em 1992, a convite da diretoria da Associao dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso (Adufmat), tive a oportunidade de projetar a arquitetura para sua sede, no campus de Cuiab. Iniciava desse modo uma aproximao e ligao espontnea, talvez por instinto, com o desenho das habitaes indgenas, pois elas representavam, a meu ver, o cruza-mento da tecnologia com as razes da regio. Hoje a oca, como ficou conhecida a sede da Adu-fmat, transformada tambm na prpria logomarca da associao, contribui solitariamente, en-quanto edificao, para dar visibilidade ao paradigma fundador da UFMT, a Universidade da Selva, como fora conhecida poca de sua criao.

    Os estudos desenvolvidos para a elaborao desse projeto, a bibliografia consultada, a pes-quisa de materiais, as visitas em aldeias e os contatos com ndios, prosseguiram, esporadicamen-te, a partir de ento, na minha vida profissional e acadmica.

    Posteriormente, em 1997, coordenei1 os estudos para o projeto do Memorial Rondon, a ser edificado na borda do Pantanal mato-grossense, em Mimoso, distrito de Santo Antnio de Le-verger. Tendo a vida e obra de Rondon uma relao intrnseca com a questo indgena, o partido arquitetnico para o Memorial se definiu como uma grande casa indgena, referenciada nas ha-bitaes dos povos com os quais Rondon mantivera contato. Essa concepo conduziu ao apro-fundamento das pesquisas anteriores, proporcionando o resultado plstico que se pretendia, isto , ligar a arquitetura do Memorial obra de Cndido Mariano.

    1 Projeto de arquitetura elaborado para o governo de Mato Grosso na segunda gesto do governador Dante de Oliveira, com a coautoria do arquiteto Paulo Csar Molina Monteiro.

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  • 18 Jos Afonso Botura Portocarrero

    Em 1999, ao fazer a seleo para o mestrado, imaginava ento j possuir, como arquiteto, um plano de pesquisas delineado sobre as casas dos povos indgenas em Mato Grosso. Era o que pensava. O enfoque da histria, do qual recm me aproximara, reconhece a identidade de cada grupo indgena, o que, por sua vez, exigiria pesquisas muito mais densas e especficas sobre a cultura de cada etnia que pretendesse estudar.

    Seguindo ento as indicaes de minha orientadora, Prof. Dr. Maria de Ftima Gomes Cos-ta, a proposta inicial sofreu um recorte: deveria me concentrar na casa de um nico povo. A esco-lha foi naturalmente para os Bororo, povo do qual deriva o nome da cidade de Cuiab2. Ao iniciar a pesquisa, percebi tambm que a opo Bororo representava, para mim, a chegada a um ponto de partida ao qual me ligara, sem saber, h muito mais tempo. A curiosidade juvenil que desper-tavam esses ndios, que via muitas vezes no ptio do Colgio So Gonalo, em Cuiab e, depois, ao final do perodo ginasial, no Colgio Dom Bosco, em Campo Grande, nos quais estudei; as es-trias que os padres catequistas algumas vezes contavam, e um certo ar de mistrio que pare-cia envolver as misses, sempre me fascinaram. Aquelas impresses ficaram guardadas comigo e foram apenas reavivadas quando anos depois tornei a encontrar os Bororo na pesquisa para o Memorial Rondon, lendo a obra de Esther de Viveiros3, na qual Rondon, j cego e com mais de noventa anos, relata com energia a saga de sua vida.

    Assim, dei incio pesquisa para dissertao de mestrado, intitulada Bi, a casa Be: Bi, a casa Bororo. Uma histria da morada dos ndios Bororo e comecei a apreender o significado de outra arquitetura, muito diferente daquele que conhecia. Este o assunto do livro, que foi se constituindo na medida em que me aproximava das casas, primeiramente atravs da histria e, continuando mais tarde com a antropologia, j no doutorado, com os trabalhos de campo da pesquisa Tecnondia: tecnologias de construo e adaptao de unidades de sade para os po-vos indgenas, quando comearam a se mostrar os primeiros desenhos das casas pesquisadas. Como arquiteto, foram essenciais para mim as relaes iniciadas com a histria e a antropologia no mestrado e doutorado. Tive a sorte e o privilgio de ser introduzido nessas disciplinas pela historiadora Maria de Ftima Gomes Costa e pela antroploga Maria Ftima Roberto Machado.

    2 Ikuiap - ikia, flecha-arpo; p, lugar [lugar da flecha-arpo]. Designao: 1. De uma localidade onde se pesca com a flecha-arpo; 2. De uma localidade onde antigamente os Bororo costumavam pescar com flecha-arpo correspondente foz do Ikuibo, cor. da Prainha, afl. da esq. Do r. Cuiab, na cidade homnima. | Julgamos que o nome da capital de Mato Grosso, Cuiab, justamente edificada nas duas margens do cor. da Prainha, no seja outra coisa que a corrupo e sonorizao de Ikuiap. ALBISETTI, C.; VENTURELLI, A. J. Enciclopdia Bororo. v.1. Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco, 1962. p. 610.

    3 VIVEIROS, Esther de. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Livraria So Jos, 1958.

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  • Tecnologia indgena em Mato Grosso | Habitao 19

    necessrio ressaltar que a tese de doutorado teve como ttulo o mesmo da pesquisa finan-ciada pela Fundao Nacional de Sade (Funasa) atravs de convnio com a Universidade Fede-ral de Mato Grosso (UFMT) e cujo grupo de pesquisa foi coordenado pela Prof. Dr. Maria Ftima Roberto Machado. O projeto Tecnondia cumpriu duplo objetivo: o preconizado pelo edital de convocao e outro, que foi a pesquisa sobre as habitaes de povos indgenas no territrio do Estado de Mato Grosso, que deu suporte ao projeto e tese apresentada no programa de ps-graduao da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo (FAU-USP), em 2006, tendo como orientador o arquiteto Prof. Dr. Carlos Roberto Zibel Costa, a quem sou muito grato pelo modo que sinalizou o percurso da pesquisa, a maneira dos ndios, quando fui percebendo que era possvel vislumbrar o invisvel.

    O trabalho para a Funasa referiu-se especialmente a uma pesquisa de etnoarquitetura, isto , realizao de estudos e levantamentos de arquitetura dos desenhos considerados tradi-cionais das habitaes indgenas, pertencentes s etnias de um territrio determinado, bus-cando identificar os traos culturais de suas habitaes e, a partir dessas referncias, apresen-tar uma proposta para construo de novas Casas de Sade Indgena (Casai). O projeto Tecno-ndia foi encerrado, todavia sem que a proposta de arquitetura apresentada fosse considera-da como passvel de aprovao para que fosse executada, por no constituir unidade fsico/funcional4.

    Como dito no incio desta introduo, o livro trata do desenho das habitaes tradicionais de dez povos indgenas, inseridos na pesquisa Tecnondia. Especialmente no caso das etnias Irantxe e Myky, os levantamentos efetuados em campo para o doutorado foram os primeiros registros de suas habitaes, e embora sobre os Pares j existisse vasto material, resultado de pesquisas etnogrficas, com destaque para os trabalhos de Max Schmidt5 e Romana Costa6, tambm a hat a casa Pares teve seu desenho de execuo elaborado e mostrado pela primeira vez. Foi ain-da acrescentado nesta publicao o desenho da casa Umutina, uma vez que a tese havia ape-nas apresentado um resumo histrico, sem representar o seu desenho tradicional, em virtude da dificuldade inicial que fora encontrar informaes consistentes que servissem de base para sua

    4 A pesquisa Tecnondia foi encerrada pela Funasa em 28 de janeiro de 2010, atravs do Oficio n. 509 Codet/Cgcot/Densp. Estamos se-guros, entretanto, que como contribuio da pesquisa Tecnondia os estudos desenvolvidos e apresentados constituem valiosa refe-rncia projetual para novas pesquisas e projetos sobre construes em reas indgenas.

    5 SCHMIDT, Max. Los Paresss, 1943.6 COSTA, Romana. Cultura e Contato, 1985.

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  • 20 Jos Afonso Botura Portocarrero

    construo grfica, o que foi sanado pela pesquisa do arquiteto Pedro Barros em seu Trabalho Final de Graduao (TFG), por mim orientado em 2008.

    O texto est organizado em quatro captulos. O primeiro apresenta uma smula sobre dese-nhos de habitao indgena, como abordagem de aproximao para a pesquisa objeto do traba-lho. O segundo captulo proporciona uma viso mais ampla da forma tradicional ogival das ca-sas indgenas, caracterstica comum entre os povos aqui estudados. As imagens produzidas por viajantes permitem que se vislumbrem essas habitaes desde o perodo pr-colonial, antes que fossem alteradas em seu original desenho. No terceiro esto mostrados os desenhos de dez casas indgenas, dentre os quarenta e um povos que habitam em Mato Grosso, executados com base em estudos e imagens existentes e tambm apoiados pelas pesquisas desenvolvidas em campo. Este captulo acrescenta aos estudos j conhecidos os desenhos das casas Irantxe e Myky e Umu-tina, que pela primeira vez tiveram as suas habitaes investigadas. Uma introdutria discusso proposta no quarto captulo acerca de etnoarquitetura, guisa de apoiar os estudos e projetos apresentados pelo captulo seguinte. O quinto captulo mostra finalmente alguns projetos de-senvolvidos a partir das referncias do desenho cultural das casas indgenas, na perspectiva da etnoarquitetura, especialmente o Espao de Conhecimento do Servio de Apoio s Micro e Pe-quenas Empresas de Mato Grosso (Sebrae-MT), sendo apresentado juntamente com a descrio de suas funes, programa e de sua execuo em andamento.

    Externo aqui meus sinceros agradecimentos UFMT, Funasa, ao Sebrae-MT e editora En-trelinhas, que tornaram possvel, em momentos diversos, a edio deste livro. Ele especialmen-te dedicado aos povos indgenas e para estudantes de arquitetura; anseio que possa ser lido com o significado que teve para mim o seu fazer, maneira do poema de Joo Cabral de Melo Neto7, como de construir portas abrindo espaos: [...] portas por-onde, [...].; Por onde, livres: ar luz razo certa.

    Jos Afonso Botura PortocarreroIkuiap, Agosto de 2010

    7 MELO NETO, Joo Cabral de. Fbula de um arquiteto. Antologia Potica. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1979, p. 18.

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  • I O desenho no estudo das casas indgenas 21

    A arte, e com ela uma de suas linguagens o desenho , tambm uma forma de conhecimento.

    (ARTIGAS, 1999, p. 77)

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  • Croquis de Oscar Niemeyer publicado no artigoA Residncia Particular no Brasil, Mdulo n. 43, ago. 1976, p. 56,e posteriormente com o mesmo ttulo no n. 70, maio 1982, p. 42.

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  • I O desenho no estudo das casas indgenas 23

    Este captulo procura, a partir da organizao de uma smula sobre os principais desenhos de habitaes indgenas conhecidas no territrio do Estado de Mato Grosso e regio, contribuir para o desenvolvimento inicial do estudo da imagem da casa indgena enquanto linguagem gr-fica, estabelecendo as bases para a construo de um arqutipo dessa casa.

    So apresentados os trabalhos mais recentes de pesquisadores antroplogos e arquitetos, enfatizando especialmente o desenho como ferramenta de pesquisa. Os detalhados estudos produzidos por estes pesquisadores sero aqui apenas parcialmente mencionados, destacando-se o aspecto morfolgico, objeto de estudo.

    Uma sutil constatao deve ainda ser feita inicialmente, com respeito aos desenhos das ca-sas indgenas brasileiras: os ndios fazem suas casas tradicionais sem projeto. Pode-se afirmar que o seu desenho, ou o que define a sua peculiar arquitetura produto de um no desenho8. Suas construes, ao que parece, sempre foram executadas com base em modelos de memria de seus artfices. Renzo Piano (apud LAPUERTA, 1997)9 menciona essa questo ao falar sobre o processo de projetar tradicional por meio de desenhos como um processo circular: Isto muito tpico do arteso. Pensa e faz ao mesmo tempo. [...] Desenha e faz. Artigas (1999, p. 81), igual-

    8 A expresso no desenho foi utilizada pelo Prof. Dr. Rafael Perrone referindo-se ao fato de que os ndios constroem sem utilizar a ferramenta do desenho, no Exame de Qualificao da tese apresentada pelo autor, em 12 de dezembro de 2005.

    9 PIANO, Renzo. Why Architects Draw. Entrevista concedida a Edward Robbins. Cambridge: MIT Press, 1994.

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  • 24 Tecnologia indgena em Mato Grosso | Habitao

    mente, na concluso de seu conhecido texto O desenho, j afirmara: Para construir igrejas h que t-las na mente, em projeto.

    Durante as pesquisas de campo nunca foi mostrado ou executado qualquer desenho em pa-pel pelos informantes indgenas; havendo necessidade de algum esclarecimento, o croquis era feito na terra com uma varinha, ou com o prprio dedo.

    Os registros existentes e consultados foram, portanto, produzidos pelos nondios, a par-tir do contato. Em funo dessa particularidade, sugere-se aqui uma classificao dos desenhos das habitaes indgenas segundo a Tipologia Sumria do Desenho de Arquitetura, proposta por Perrone (1993, 28), na categoria de Desenhos Sugestivos/Representativos, como desenhos de estudos ou croquis (Desenhos de Estudo Gnoseolgico/Metodolgico), ou ainda como de-senhos de documentao e reconstituio (Desenhos de Finalidade Cognitiva).10 Ser conside-rada tambm uma classificao especfica para os croquis, atendendo ao uso a que foram desti-nados: croquis de viagem, autossuficientes, de explorao ou recuperao, temticos, analticos (LAPUERTA, 1997).

    Revendo noes da Teoria da Arquitetura, possvel perceber uma tangncia da cabana do homem primitivo com as habitaes dos povos indgenas. O desenho atual dessas moradias re-presentaria a ponta de uma cadeia evolutiva, a qual se conhece apenas parcialmente, a verso ps-contato. Os vestgios mais anteriores conhecidos seriam aqueles, frutos preliminares, das pesquisas arqueolgicas. As casas seriam o resultado de um longo perodo de manipulao do que se pode chamar de tecnologias apropriadas para condies de vida que remontam ao ho-loceno. Para Rykwert (1999, p. 139), Vitrvio estava de acordo com uma das posturas centrais dos estoicos: Es la reflexin, y no la necessidad, la que ensea a los hombres a utilizar ventajosamen-te los elementos naturales.

    10 Segundo Perrone (1993, p. 29; 31-32), em sua tese de doutorado: [...] desenhos de estudos e croquis podem no ter diretamente a finalidade de instrumentao de um projeto, podendo servir interpretao, anlise e compreenso pessoal de determinadas obras. Exemplares desses desenhos so os dos cadernos de viagens de Le Corbusier. E ainda sobre desenhos de documentao e reconsti-tuio: [...] englobam as imagens realizadas para registrar a memria arquitetnica. Nesta finalidade realizam-se, de modo geral, so-bre obras executadas; por isso, quando contm informaes construtivas e/ou dimensionais estas constituem-se de dados tcnicos e/ou formais e/ou constatativos. [...] tm finalidade de registro e comunicao que extrapolam o uso particular.

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  • I O desenho no estudo das casas indgenas 25

    Para Kruft (1990) na introduo do livro Histria de la teora de la arquitectura, uma defi-nio essencialmente mais restritiva de histria da teoria da arquitetura poderia ser entendida como a soma daquilo que foi formulado expressamente como teoria da arquitetura: uma his-tria da reflexo sobre a arquitetura tal como tenha sido formulada por escrito. Vitrvio (84-14 a.C.) no foi o primeiro a escrever sobre arquitetura, mas todos os escritos anteriores ao seu se perderam; sua obra De Architectura Libri Decem o nico tratado de arquitetura que se con-servou. Leon Batista Alberti (1404-72) escreveu obras tericas fundamentais sobre pintura, es-cultura e tambm sobre arquitetura; seu tratado de arquitetura De Re Aedificatoria foi impres-so pela primeira vez em Florena, em 1485. Antonio Averlino, conhecido como Filarete (1400-...) escreveu o seu Trattato di Architettura, dividido em 25 livros, provavelmente entre os anos de 1461-1464.

    Filarete, seguindo os princpios de Vitrvio e de Alberti, baseia as origens da arquitetura no necessitas, fazendo uma analogia entre as necessidades humanas de habitar e de comer, asso-ciando as origens da casa com a tradio crist: depois da expulso do paraso, Ado ser o pri-meiro arquiteto e construtor da cabana primitiva. Posteriormente Filarete associa os troncos da estrutura da cabana primitiva com a origem das colunas; segundo ele, o comprimento destas peas de sustentao tem sua origem nas medidas do homem, significando que as propores da cabana primitiva foram concebidas de acordo com as propores humanas. Conforme Kruft (1990, p. 63):

    [...] la cabaa primitiva de Filarete adquiere un valor relevante para la arquitectura. No solo constituye su comienzo, sino que contiene adems proporciones y ordenes arquitectnicos. Para Filarete las proporciones humanas son un sistema referencial decisivo. El es el primer representante de una franca antropometra: el edificio deriva del hombre, esto es, de su forma, sus miembros y sus medidas.

    Suas ideias antropomtricas se pem claras quando utiliza a figura vitruviana para derivar in-clusive as formas geomtricas bsicas das medidas do homem: Ma quello che sai, el circolo, ton-do, el quadro e ogni altra misura derivata da luomo (KRUFT, 1990, p. 64). As propostas antropo-mtricas de Filarete (apud KRUFT, 1990, p. 65) estabelecem ainda uma associao com a ideia de organismo:

    Para l, la arquitectura no solo tiene una relacin con el hombre en lo referente a medidas, sino tambin existe identidad de comportamiento con el organismo humano. La arquitec-tura vive, enferma y muere como los hombres.

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