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JEAN BAUDRILLARD

TELA TOTALmito-ironias do virtual e da imagem

4ª EDIÇÃO

ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO DE

JUREMIR MACHADO DA SILVA

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© de Jean Baudrillard, 1997

Capa: Eduardo MiottoRevisão: Gabriela KozaProjeto gráfico e editoração: ComTexto Editoração Eletrônica

Editor: Luis Gomes

Maio/2005IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

Todos os direitos desta edição reservadosà EDITORA MERIDIONAL LTDA.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

Bibliotecária Responsável: Ginamara Lima J. Pinto CRB 10/1204

B342t Baudrillard, Jean

Tela total : mito-ironias da era do virtual e da imagem /Jean Baudrillard; tradução de Juremir Machado da Silva.4. ed. – Porto Alegre : Sulina, 2005.

158p.

ISBN 85-205-0139-7

CDU 30

Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101Cep: 90035-190 – Porto Alegre – RS

Tel.: (51) 3311-4082Fax: (51) 3264-4194

[email protected]

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Sumário

Introdução: Jean Baudrillard ou o niilismo irônico ................... 71 Nada de piedade de Sarajevo .................................................. 112 A impotência do virtual ........................................................... 173 Servilização ocidental ................................................................ 214 Quando o Ocidente toma o lugar do morto ..................... 255 A grande faxina .......................................................................... 296 Às lágrimas, cidadãos! ............................................................... 357 Os hilotas e as elites .................................................................. 398 A informação no estágio meteorológico ............................. 459 O continente negro da infância ............................................. 511 0 A dupla exterminação .............................................................. 571 1 Perdidos de vista e realmente desaparecidos ...................... 631 2 A sexualidade como doença transmissível .......................... 691 3 A soberania da greve ................................................................. 751 4 Terra do Fogo – Nova York ou o fantasma do fim

do mundo..................................................................................... 811 5 Dívida mundial e universo paralelo...................................... 871 6 A sombra do comandante ....................................................... 931 7 O espelho da corrupção .......................................................... 991 8 Disneyworld Company......................................................... 1051 9 O mundial e o universal ........................................................ 11120 Deep Blue ou a melancolia do computador .................... 1172 1 Ruminações para encéfalos esponjosos ............................ 123

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22 Tela total .................................................................................... 12923 O complô da arte ..................................................................... 13524 Fantasmas televisuais .............................................................. 14125 Certo, Chirac é uma nulidade .............................................. 14726 História de clones – o original e seu duplo ...................... 153

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Introdução

Jean Baudrillard ou o niilismo irônico

Apresentar Jean Baudrillard? Desnecessário. Explicar Baudrillard?Impossível. Ele nunca está nos lugares onde pretendem encontrá-lo os funcionários da classificação sociológica. Tomar o texto deBaudrillard como pretexto para um discurso escolar? Tampouco.Navegar com o pensador nas águas do desaparecimento da falsarealidade construída pela modernidade? Eis uma aventura intelec-tualmente excitante. Baudrillard é um outro. Como Rimbaud, nãocessa de escapar de si mesmo para contemplar, com olhos irônicos,o formidável avanço da banalidade, encarnada, neste fim de século,na espetacularização do vazio. História universal da extinção.

Desaparecimento do sentido, do sexo, da Verdade, dosonho, da política, da utopia, da infância, da morte, da reali-dade, etc. Tudo desapareceu. E tudo está preservado, salvo,catalogado, guardado para um futuro extinto. Não vale a penachorar. A nostalgia também foi eliminada, mas, paradoxalmen-te, subsiste, embalsamada, no coração dos otimistas. Baudrillard,em todo caso, não é profeta nem anjo do apocalipse. Aquém ealém do pessimismo e do otimismo, desestabiliza em perma-nência a eterna vontade intelectual de introduzir certezas nascélulas de sociedades consumidas pelo vírus do aleatório.

Conhecimento e verdade parecem evoluir em direçõesopostas. Quanto maior o conhecimento, bem ilustrado na

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atualidade pela revolução da informática, menor a compreensãoda existência. Salvo engano. Apenas o erro está garantido.À sombra do iluminismo quase defunto, Baudrillard ironiza,ri, desconcerta, relativiza, zomba e estraga os esquemasexplicativos do prêt-à-porter teórico.

Traduzir Baudrillard? Sim e não. A tradução faz-se neces-sária embora nunca se livre da imprecisão. O texto de Baudrillardoferece-se à conversão, mas guarda zonas de sombra, ambigüi-dades irredutíveis, falsas opacidades. Intraduzível enquanto es-critor singular, Jean Baudrillard permite ao tradutor a descoberta,o prazer da palavra volátil, o gozo da frase em perpétua evolu-ção. Num passeio irreverente pelos territórios das ciências hu-manas, o autor usa e abusa das metáforas e dos termos empres-tados às mais diversas especialidades. Fantasmas de demiurgo?Vertigem poética do discurso.

Fantasma, palavra-conceito do domínio “psi”, de uso colo-quial na cultura francesa, merece tradução literal, apesar de ul-trapassar a utilização corrente, fora do campo especializado, dovocábulo no Brasil, pois condensa a versatilidade da prosa deBaudrillard, tecida no ponto de encontro entre o erudito, omidiático e o popular; prosa feita de fragmentos que secomplementam e contradizem em permanência. Prosafantasmática. Apenas um exemplo dessa operação complexa queé a argumentação de Jean Baudrillard. Na contramão dahomogeneidade, da padronização, cada vez que uma expressãose repete surge nova possibilidade de interpretação. Camadassucessivas de sentido nuançadas pelo contexto numa incessantederiva na direção do silêncio ruidoso da perplexidade.

Cada leitor continuará a traduzir Baudrillard ad infinitum. A forçada sua sociologia encontra-se na violência retórica, na abertura cons-ciente ao indizível, ao que só a arte consegue, em parte, tocar.Baudrillard procura ultrapassar o limiar do dito para buscar no não-

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dito algo mais do que o senso comum. Conotativo por excelên-cia, o discurso baudrillardiano explora o grau superior da virtualidade.A realidade resume-se a um índice, um vetor, um ponto de par-tida para o sonho; feroz ironia do homem que se recusa a fazer ojogo da lógica binária.

Tela Total reúne pela primeira vez (antes mesmo de umaedição francesa) a íntegra dos artigos/ensaios publicados por JeanBaudrillard, no diário parisiense Libération, entre 1993 e 1997. A maio-ria dos textos apareceu entre junho de 1995 e maio de 1996, épocaem que o jornal contou com a colaboração oficial do teórico, naprimeira segunda-feira de cada mês; depois, quinzenalmente. Criadoem 1974, com a participação de Jean-Paul Sartre, Libérationrepresentou durante muito tempo, sob a direção de Serge July, o es-paço da irreverência máxima do jornalismo francês, global masintelectualizado. Nada mais justo, portanto, na fase de tentativa deum terceiro salto qualitativo do veículo, que abrigar a reflexãoimpiedosa de Baudrillard.

Perpassados do início ao fim pela sofisticada ironia do soció-logo/escritor, os 25 artigos figuram como verdadeiras lições (cur-sos) sobre a era da imagem, do virtual, da extinção das “verdades”ideológicas, da crise dos paradigmas modernos, etc. A unidade analí-tica alcança o estatuto de unidade temática, apesar da variedade deassuntos (guerra da Bósnia, corrupção, mídia, novas tecnologias...),pois por trás de cada tópico circunstancial aparece uma maneira deolhar, metodologia libertária e implacável, que permite ao leitor per-ceber o jogo de simulacros, o desaparecimento do Outro, o vazio dasposturas pessimistas ou otimistas, a implosão das ilusões, a faláciadas apologias da técnica, o império virtual da imagem, etc.

Caçador inspirado do absurdo travestido de novidade ou depromessa do paraíso terrestre, Jean Baudrillard desconcerta e provo-ca indignação por não fazer concessões às utopias desejáveis masnem por isso realizáveis. Embora muitos intelectuais, entre os quais

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Paul Virilio, atuem no mesmo registro – o exame radical dascondições de possibilidade da autonomia sob o signo da mídia –,nenhum apresenta o conjunto de características de Baudrillard:o niilismo irônico associado à qualidade literária original do textoe à invenção de instrumentos inéditos de interpretação.

A lógica comunicacional moderna deveria produzir sentido.Às ciências humanas, holofotes da razão, caberia descobrir oSentido da História. Ora, Jean Baudrillard, em seu delírio filosó-fico iconoclasta, aponta para a entrada na era da irrealidade, es-tágio viral da circulação sígnica, no qual “o valor irradia em todasas direções, em todos os interstícios, sem referência ao que quer queseja, por pura contigüidade”*. Não é apenas a referência do signoque se perde, mas também a capacidade última de decifração doobjeto pelas ciências. A certeza cede lugar à incerteza e pode-se“substituer enfin à l’éternelle théorie critique une théorieironique”**. Em Tela Total, todo o arsenal típico da reflexãobaudrillardiana está presente. O mundo contemporâneo, instá-vel e inquietante, surge como uma gargalhada sarcástica. Brilhante.

*BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal - ensaio sobre os fenômenos extremos.Campinas, Papirus, 1990, p.11.**___ Les stratégies fatales. Paris, Grasset, 1983, p.101.

Juremir Machado da Silva

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Nada de piedade de Sarajevo

No programa da Arte*, em duplex de Estrasburgo e Sarajevo,O corredor para a palavra (19 de dezembro de 1992), surpreen-dente era a superioridade absoluta, o estatuto excepcional con-ferido pela infelicidade, pela aflição e pela desilusão total – amesma que permitia aos habitantes de Sarajevo tratar os “euro-peus” com desprezo, ou ao menos com um ar de liberdade sar-cástico, em contraste com o remorso e a contrição hipócrita dosseus interlocutores. Não eram os primeiros que tinham necessida-de de compaixão; eram eles que se tornavam compreensivos emrelação ao nosso destino miserável. “Eu cuspo sobre a Europa”,dizia um deles. Ninguém é mais livre, efetivamente, mais sobera-no do que no desprezo justificado, nem mesmo contra o inimi-go, mas contra todos aqueles que bronzeiam sua boa consciên-cia ao sol da solidariedade.

E eles viram desfilar desses bons amigos. Ultimamente aindaSusan Sontag, vinda para fazer representar Esperando Godot, emSarajevo. Por que não Bouvard e Pécuchet, na Somália ou no Afeganistão?O pior não está no suplemento de alma cultural, mas na con-descendência e no erro de julgamento sobre a força e a fraqueza.

*Arte – emissora de televisão pública franco-alemã especializada em assuntosculturais (N.T.).

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Eles são fortes; somos nós os fracos e que vamos procurar lá aregeneração de nossa fraqueza e de nossa perda de realidade.

Nossa realidade, eis o problema. Só temos uma realidade,e é preciso salvá-la, mesmo com o pior dos slogans: “É necessá-rio fazer alguma coisa. Não se pode ficar sem fazer nada”. Ora,fazer o que quer que seja pela única razão de que não se podedeixar de fazê-lo nunca constituiu um princípio de ação nem deliberdade. Isso não passa de uma forma de absolvição da própriaimpotência e de compaixão com a própria sorte.

Os habitantes de Sarajevo não precisam se questionar dessaforma, pois estão na necessidade absoluta de fazer o que fazem, defazer o que é preciso. Sem ilusões sobre o fim, sem compaixãoconsigo mesmos. É isso, ser reais, é isso, estar no real, que nadatem a ver com a realidade “objetiva” da infelicidade deles, aquelaque não deveria existir e da qual sentimos piedade, mas a queexiste tal qual ela é – a realidade de uma ação e de um destino.

É por isso que eles estão vivos, e nós é que estamos mor-tos. É por isso que precisamos, antes de tudo aos nossos própriosolhos, salvar a realidade da guerra e impor de algum jeito estarealidade (compassiva) aos que sofrem mas, mesmo no coraçãoda guerra e da aflição, não crêem verdadeiramente nisso.

Nos seus comentários, Susan Sontag confessa que os bósniosnão crêem de fato na aflição que os cerca. Terminam por considerara situação irreal, insensata, ininteligível. É um inferno, mas um infer-no, de qualquer maneira, hiper-real, tornado mais hiper-real aindapelo esgotamento provocado pela mídia e o humanitário, dado queeste torna ainda mais incompreensível a atitude do mundo inteirocom respeito ao problema. Vivem assim numa espécie de espectra-lidade da guerra – felizmente, de resto, ou não poderiam jamais osuportar. Não sou eu, mas eles que o dizem.

Mas Susan Sontag, que vem de Nova York, deve saber melhor doque eles o que é a realidade, visto que ela os designou para encarná-la.

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Ou talvez simplesmente porque é disso que ela, e todo o Ocidente,mais sintam falta. É preciso ir reapropriar-se de uma realidade ali ondeela sangra. Todos esses “corredores” que abrimos para lhes enviarnossos víveres e nossa cultura são na realidade corredores de afliçãopor onde importamos as forças vivas e a energia da infelicidade dosoutros. Troca ainda uma vez desigual. E aqueles que encontram nadesilusão radical do real (inclusive do princípio de realidade políticaque nos governa, parte do princípio de realidade européia) uma espé-cie de coragem extra, de sobreviver ao que não tem sentido – SusanSontag vem convencê-los da “realidade” de seus sofrimentos,aculturando-a, claro, teatralizando-a para que possa servir de referênciaao teatro dos valores ocidentais, dos quais a solidariedade faz parte.

Mas Susan Sontag não está em questão. Ilustra simples-mente uma situação mundana doravante geral, na qual os inte-lectuais inofensivos e impotentes trocam a própria miséria pelados miseráveis, cada um suportando o outro numa espécie decontrato perverso – tanto quanto a classe política e a sociedadecivil trocam hoje as suas misérias respectivas, uma oferecendo oseu pasto, sua corrupção e os seus escândalos; a outra, suas con-vulsões artificiais e sua inércia. Pôde-se ver assim, não faz muitotempo, Pierre Bourdieu e o abade Pierre se oferecerem emholocausto televisual, intercambiando a linguagem patética e ametalinguagem sociológica da miséria.

Nossa sociedade engaja-se assim na via da “comiseração”,no sentido literal, sob a cobertura do patos ecumênico. É umpouco como se, num momento de imenso arrependimento, en-tre os intelectuais e os políticos, ligado ao pânico da história e aocrepúsculo dos valores, fosse preciso realimentar o viveiro dovalor, o viveiro referencial, invocando o menor denominador queé a miséria do mundo, realimentar em presas artificiais o territóriode caça. “Na atualidade é tacitamente impossível, nos programasde informação, mostrar, na televisão, outros espetáculos que não

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o do sofrimento” (Daniel Schneidermann). Sociedade vitimal.Suponho que não exprime com isso nada além de sua própriadecepção e o remorso da impossível violência contra si mesma.

Por toda parte, a Nova Ordem intelectual segue as viastraçadas pela Nova Ordem mundial. Por toda parte, a infelicida-de, a miséria, o sofrimento dos outros tornaram-se a matéria-prima e a gênese. Vitimalidade saída dos direitos do homem so-mente como ideologia fúnebre. Aqueles que não a exploram di-retamente ou em seu próprio nome fazem-no por procuração –não faltam mediadores para tirar sua mais-valia financeira ou sim-bólica de passagem. O déficit e a infelicidade, como a dívida in-ternacional, negociam-se e revendem-se no mercado especulativo– no caso, o mercado político-intelectual, que vale bem o com-plexo militar-industrial de sinistra memória.

Toda comiseração está na lógica da infelicidade. Referir-se àinfelicidade, mesmo para combatê-la, significa dar-lhe uma base dereprodução objetiva indefinida. Em todo caso, para combater o quequer que seja, precisa-se partir do mal, e jamais da infelicidade.

E é verdade que está em Sarajevo o teatro da transparência domal. O cancro reprimido que apodrece todo o resto, o vírus cujaparalisia européia é desde já o sintoma. Os móveis da Europa salvosnas negociações do GATT são queimados em Sarajevo. Num senti-do, trata-se de uma coisa boa. A Europa falsa, a Europa perdida, aEuropa remendada nas convulsões mais hipócritas, instala-se emSarajevo. E, nesse sentido, os sérvios seriam quase o instrumento dadesmistificação, o mecanismo de análise selvagem desta Europa fan-tasma, dos políticos tecnodemocráticos tão triunfalistas nos seus dis-cursos quanto deliqüescentes nos fatos. Pois se vê bem que a Europase degrada na medida que o discurso sobre a Europa desabrocha(assim como os direitos do homem se degradam à medida queprolifera o discurso dos direitos do homem). Mas, com efeito,não é sequer a última palavra da história. Esta encontra-se no

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fato de que os sérvios, enquanto vetores da purificação étnica,são a extremidade sensível da Europa em construção. Pois a Eu-ropa “real” está em construção, a Europa branca, a Europa lava-da, integrada e purificada, moral, econômica ou etnicamente. Estáem construção vitoriosamente em Sarajevo, e nesse sentido, oque aí ocorre não é de jeito nenhum um acidente no percurso deuma Europa inexistente, piedosa e democrática; é a fase lógica eascendente da Nova Ordem européia, filial da Nova Ordem mun-dial, que se caracteriza por toda parte pelo integrismo “branco”,o protecionismo, a discriminação e o controle. Dizemos: se nadafizermos em Sarajevo, sobrará para nós na seqüência. Mas jáestamos nisso. Todos os países europeus estão em vias de puri-ficação étnica. Tal é a verdadeira Europa, que se faz lentamenteà sombra dos parlamentos, e sua ponta de lança é a Sérvia. Inútilinvocar uma passividade qualquer, uma impotência qualquer areagir, visto que se trata de um programa em via de execuçãológica, do qual a Bósnia é apenas a nova fronteira.

Por que Le Pen desapareceu do cenário político? Porque a subs-tância das suas idéias infiltrou-se por tudo na classe política, sob aforma de exceção francesa, de união sagrada, de reflexo eurona-cionalista, de protecionismo. Não há mais necessidade de Le Pen,pois ele ganhou, não politicamente, mas viralmente, nas mentalida-des. Por que esperar que o conflito cesse em Sarajevo, dado que amesma coisa está em jogo? Nenhuma solidariedade mudará nada ali;o desfecho chegará miraculosamente no dia em que a exterminaçãotiver terminado, o dia em que a linha de demarcação da Europa “bran-ca” será traçada. É como se a Europa, todas as nacionalidades reuni-das, todas as políticas confundidas, tivesse assinado um “contrato”,contrato de assassinos, com os sérvios, convertidos em executoresdo trabalho sujo europeu – como o Ocidente tinha antes um acordocom Saddam contra o Irã. Simplesmente, quando o matador exage-ra, precisa-se, por vezes, liquidá-lo também. As operações contra o

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Iraque e a Somália foram fracassos relativos do ponto de vista daNova Ordem mundial. Já a operação na Bósnia parece fadada aosucesso do ponto de vista da Nova Ordem européia.

Os bósnios sabem disso. Sabem que estão condenados pelaordem “democrática” internacional, e não por qualquer vestígio ouexcrescência monstruosa chamada fascismo. Sabem que estão fada-dos à exterminação, a ser relegados, ou à exclusão como todosos elementos heterogêneos e refratários do mundo – sem apela-ção, porque, apesar de poder desagradar a má consciência hipó-crita dos democratas e humanitários ocidentais, essa é a viainexorável do progresso. A Europa moderna pagar-se-á pelaerradicação dos muçulmanos e dos árabes, como já o faz portoda parte, nem que seja a título de escravos imigrados. E a maiorobjeção à ofensiva da má consciência, tal qual ela se desenvolvenos happenings como o de Estrasburgo, é que, perpetuando aimagem da pretendida impotência dos políticos europeus e a daconsciência ocidental, pretensamente estraçalhada por sua pró-pria impotência, cobre-se toda a operação real, assegurando-lheo benefício da dúvida espiritual.

Alguns dos habitantes de Sarajevo, na tela da Arte, tinhamo ar de estar sem ilusão e sem esperança, mas não o ar de márti-res potenciais, bem ao contrário. Possuíam por eles a própriainfelicidade objetiva; mas a verdadeira miséria, a dos falsos após-tolos e dos mártires voluntários, estava do outro lado. Ora, comose disse com muita justiça: “O martírio voluntário não serátomado em consideração no além”.

(7 de janeiro de 1993)

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A impotência do virtual

Episódio recente: os estudantes, em manifestação, bloqueiam oTGV* na estação de Angoulême. O fluxo escoa dos dois lados dotrem, ao longo dos passageiros imóveis atrás dos vidros fumés.Alguns gritos, slogans e vociferações – mas contra quem? Era comose latissem para um satélite artificial. Pois com o TGV é a realidadevirtual que passa, a realidade virtual que atravessa a França in vitro– encarnação do dinheiro da velocidade de tudo que circula – con-frontada ao mundo bem real de desempregados potenciais dos ma-nifestantes. Confronto surrealista da flecha do tempo e de uma juven-tude já ultrapassada. Tudo o que eles podem arrancar à transparênciados ricos são dez minutos de imobilidade, de congelamento em ima-gem, de toda maneira, no espetáculo televisual do qual são vítimas.

Simples episódio em miniatura do clash entre o real e ovirtual e de suas conseqüências fantásticas na escala planetária:separação entre um espaço virtual de altíssima freqüência e umespaço real de freqüência nula. Nada mais de comum entre eles,nem de comunicação: a extensão incondicional do virtual (quenão inclui somente as novas imagens ou a simulação a distância,mas todo o cyberespaço da geofinança (Ignacio Ramonet) e o damultimídia e das auto-estradas da informação) determina adesertificação sem precedentes do espaço real e de tudo o que

*TGV – Trem de Grande Velocidade (N.T.).

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nos cerca. Isso valerá para as auto-estradas da informação e tam-bém para as de circulação. Anulação da paisagem, desertificaçãodo território, abolição das distinções reais. O que até agora selimita ao físico e ao geográfico, no caso de nossas auto-estradas,tomará toda a sua dimensão no campo eletrônico com a aboli-ção das distâncias mentais e a compressão absoluta do tempo.Os curtos-circuitos (e a instauração desse cyberespaço planetá-rio equivale a um imenso curto-circuito) geram eletrochoques.O que entrevemos não é mais somente o deserto do trabalho, odeserto do corpo que a informação engendrará em razão de suaprópria concentração. Espécie de big crunch contemporâneo dobig bang dos mercados financeiros e das redes de informação.Estamos apenas na aurora do processo, mas os dejetos e os de-sertos já crescem muito mais rápido do que a própria informática.Os dois universos, mesmo literalmente separados entre eles, sãoigualmente exponenciais. Tal distorção não cria, porém, novasituação política de verdadeira crise, pois a memória apaga-se aomesmo tempo que o real. Ela é apenas virtualmente catastrófica.

Outra perspectiva catastrófica, nem sequer entrevista peloscampeões do virtual de todas as categorias (sejam as estratégiasocultas das finanças mundiais ou os defensores da democraciauniversal da informação), é o fenômeno da massa crítica. Conhe-cemos os dados no plano cosmológico: se a massa do universo éinferior a certo limite, este permanece em expansão e o big bangprolonga-se ao infinito. Se o limite é ultrapassado, o universoimplode e contrai-se: big crunch aí também. Ora, guardadas todasas proporções, a esfera da informação (entendendo-se ainda umavez aí a circulação orbital em tempo real tanto do dinheiro quan-to das imagens ou das mensagens) corre o risco, na perspectiva dodesenvolvimento infinito de conexão universal de todas as redesque nos prometem, de conhecer uma reversão brutal do mesmogênero. Com as auto-estradas da informação, parece que estamos

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fazendo tudo para ultrapassar o limiar crítico. Onde os bons após-tolos só vêem a maravilhosa expansão centrífuga, não estaríamosnos dirigindo para tal saturação e densidade que daí resultaria adeflação e o desabamento automático? Essa eventualidade não émais a da distorção entre uma esfera ultra-sofisticada,ultraconectada e o resto do mundo desertificado (o quarto mun-do informático), mas uma catástrofe intrínseca ao universo vir-tual de ponta, implosão por ultrapassagem da massa crítica.

Podemos nos perguntar de resto se já não ultrapassamosesse limiar e se a catástrofe da informação já não ocorreu, na me-dida que a profusão multimidiática de dados se auto-anula e que obalanço em termos de substância objetiva da informação já é ne-gativo. Há um precedente com o social: o patamar da massa socialcrítica já está amplamente ultrapassado com a expansãopopulacional, das redes de controle, de socialização, de comuni-cação, de interatividade, com a extrapolação do social-total – pro-vocando desde agora a implosão da esfera real do social e de seuconceito. Quando tudo é social, súbito nada mais o é.

Talvez, no entanto, por trás desse otimismo tecnológicodelirante, por trás desse encantamento messiânico do virtual,sonhamos justamente com o limite crítico e com essa inversãode fase da esfera da informação – na impossibilidade de viveresse acontecimento considerável, essa implosão geral em níveldo universo, teremos o gozo experimental em nível demicromodelo. Dada a aceleração do processo, o intercâmbiopode estar bastante próximo. É preciso, portanto, encorajarvivamente essa superfusão da informação e da comunicação.

Em todo caso, resta uma hipótese alternativa: trata-se doquadro que nos apresentam da potência das tecnologias do vir-tual, da promoção irresistível da realidade virtual até a potênciaincontrolável dos novos donos do mundo (le Monde diplomatiquede maio de 1995) que são os senhores da Microsoft e do

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telecapitalismo; esse quadro depende fortemente da intoxicaçãomidiática, repercutindo a auto-intoxicação desses meios (assimtodo o processo se alimenta em espiral).

De duas, uma: ou os dados estão lançados, o mundo inteirojá está dependente desse feudalismo tecnológico que concentrariaem suas mãos toda espécie de poder real e então só resta desapare-cer, pois nós também já estamos – nessa perspectiva – virtualmenteriscados do mapa como do território. Ou então não é nada disso etudo isso também é virtual. A potência do “virtual” nada mais é doque virtual. Por isso, aliás, pode intensificar-se de maneira alucinantee, sempre mais longe do mundo dito “real ”, perder ela mesma todoprincípio de realidade. Para que essas potências técnicas estendamseu império sobre o mundo seria preciso que tivessem uma finali-dade – não há potência sem finalidade da potência. Ora, elas não atêm. Só podem transcrever-se indefinidamente nas suas própriasredes, nos seus próprios códigos. Mesmo os capitais especulativosnão saem quase da própria órbita: amontoam-se e não sabem se-quer onde se perder no próprio vazio especulativo. Quanto à trans-formação dessa potência midiática e informacional em poder políti-co, vimos bem, no caso de Berlusconi, contrariamente à tese dogolpe de Estado midiático (pela qual tomar o poder político erasomente uma formalidade para quem controlasse a economia e acomunicação), que fracassava imediatamente. Sentimos com razãomedo de um forte crescimento do poder da mídia, enquanto é pre-cisamente a mídia que desmaterializa todo poder – para bem oupara mal. Fatalidade do virtual: não poderia haver estratégia do vir-tual pois, doravante, só há estratégia virtual.

Não há, portanto, “donos do mundo”, mas somente do-nos da transparência, e não é pelo fato de que o dinheiro, osprodutos e as idéias deles atravessam sem obstáculos as frontei-ras do mercado mundializado que devemos nos inclinar diantedessa supremacia do virtual, pois seria apenas nova forma deservidão voluntária.

(6 de junho de 1995)

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Servilização ocidental

Ao preço de esforço sobre-humano e de três anos de massacres,mas sobretudo após a humilhação das forças da comunidadeinternacional – algo, sem dúvida, insuportável – parece que aopinião ocidental finalmente reconheceu, a contragosto e comtodas as reservas possíveis, que os sérvios eram os agressores.Parece que com esse reconhecimento se foi o mais longe possívelem termos de firmeza e de lucidez – o fato é que enfim se atingiuo ponto de partida da guerra. Mesmo aqueles que desde muitotempo, contra a doutrina oficial dos “beligerantes”, denunciam aagressão dos sérvios, festejam essa virada de posição como umavitória, esperando ingenuamente que, a partir daí, não haveráoutra saída para as potências ocidentais, a não ser pôr fim à agres-são. Nada acontecerá evidentemente, e a designação absoluta-mente platônica dos carrascos enquanto carrascos não implicade jeito nenhum o reconhecimento das vítimas como vítimas.Para iludir-se com isso, é preciso todo o idealismo evangélicodos que estimam que “o máximo do ridículo e da desonra” foiatingido e reclamam um sobressalto das potências internacio-nais e de uma “Europa suicida”, sem se dar conta um só instanteda inutilidade dos seus esforços, equivalente exato da hipocrisiaperpétua dos políticos. Pois a recriminação segue junto com ocrime, e os dois proliferam juntos numa orquestração intermi-nável do acontecimento. Visto que a consciência ocidental toma

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para si o luto da situação, dado que monopoliza a hipocrisia e osbons sentimentos, não dá para ver por que o assassino não man-teria o monopólio da arrogância e do crime.

De fato, nem a grotesca gesticulação das forças internacio-nais nem a lamentação repugnada dos síndicos da boa causa nãoconseguiriam obter real efeito, porque o passo decisivo não foidado, o último passo na análise da situação, passo que ninguémousa nem quer dar. Seria o caso de reconhecer que os sérviossão não somente os agressores, o que escancara uma porta aber-ta, mas que são nossos aliados objetivos nessa operação de lim-peza da futura Europa liberada das suas minorias incomodativase da futura ordem mundial liberada de toda contestação radicaldos seus próprios valores – ou seja, da ditadura democrática dosdireitos do homem e da transparência dos mercados.

Nisso tudo, a consideração do mal está em questão. Coma denúncia dos sérvios como “psicopatas perigosos”, vibramos coma localização do mal sem duvidar um momento sequer da pure-za de nossas intenções democráticas. Estimamos ter feito tudoao designar os sérvios como os maus – mas não como os inimi-gos. Explicação: no front mundial, nós ocidentais, europeus,combatemos exatamente o mesmo inimigo que eles: o islã, osmuçulmanos. Por toda parte, na Chechênia com os russos (mes-ma tolerância vergonhosa e exterminadora); na Argélia, ondedenunciamos o poder militar enquanto o sustentamoslogisticamente em profundidade (lá, como por acaso, as boasalmas, que estigmatizam na Bósnia a doutrina oficial dos “belige-rantes”, utilizam exatamente a mesma linguagem: terrorismo deEstado contra terrorismo fundamentalista – equivalência do mal– e nós, aí, espectadores impotentes da barbárie. Como se o ter-rorismo de Estado não fosse nosso terrorismo, o praticamos, emcasa, em doses homeopáticas). Em resumo, podemos bombar-dear algumas posições sérvias com obuses produtores de fumaça,

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mas não interviremos verdadeiramente contra os sérvios, poisfazem fundamentalmente o mesmo trabalho que nós. Antes, senecessário, para resolver o conflito, chutaríamos os rins das víti-mas. Estas, quando fingem se defender, são bem maisincomodativas do que os carrascos; são os bósnio-muçulmanosque a Força rápida de intervenção será, em breve, forçada a liqui-dar e neutralizar – no caso de uma ofensiva muçulmana de enver-gadura; então a força internacional se tornará de fato eficaz.

Eis a verdadeira razão pela qual a guerra é interminável. Refli-tamos bem: sem essa profunda cumplicidade, a despeito das apa-rências (mas as aparências, em sua ambigüidade, falam por elas mes-mas), sem essa aliança objetiva (não pensada, contudo, ou delibera-da), não existe razão para que a guerra já não tivesse chegado aofim. Exatamente o mesmo roteiro usado com Saddam Hussein: nóso combatemos com força, amplitude midiática e tecnológica – eleera e continua a ser nosso aliado objetivo. Insultado, denunciado,estigmatizado em nome dos direitos do homem, mas ainda assimnosso aliado objetivo contra o Irã, contra os curdos, contra os xiitas.É uma das razões pelas quais, de resto, a guerra (do Golfo) jamaisexistiu verdadeiramente: pois Saddam nunca foi, de verdade, nossoinimigo. Ocorre o mesmo com os sérvios, que protegemos, colo-cando-os, por assim dizer, no desterro da humanidade, enquantopermitimos que façam seu trabalho.

O problema está em convencer os bósnios de que são res-ponsáveis pela própria infelicidade. Se não o alcançarmos peladiplomacia, como tentamos fazê-lo há dois anos, será necessáriofazê-lo pela força. Seria o caso de tentar ver o que se passa portrás do imenso trompe-l’oeil, por trás da conversa fiada do huma-nitário, do militar e da diplomacia. Em todo conflito, é precisodistinguir o combatido – nível propriamente político da guerra– e o sacrificado, de fato liquidado e varrido, o objeto de disputamais profundo e o objetivo final, mesmo se com freqüência não

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confessado, ultrapassando os adversários de todas as guerras.Assim, na guerra da Argélia, combatemos o exército argelino,mas realmente sacrificada no conflito foi a revolução argelina –e fizemos isso com o exército argelino (e continuamos a fazê-lo).Na Bósnia, combatemos os sérvios (sem excessos), em nome daEuropa multicultural; sacrificada, na oportunidade, foi a outracultura, a que se opõe em valor a uma ordem mundial indiferentee sem valores. Fazemos isso com ajuda dos sérvios.

O imperialismo mudou de rosto. O Ocidente quer impordoravante ao mundo inteiro, sob a cobertura do universal, não osseus valores, completamente desconjuntados, mas justamente asua ausência de valores. Por toda parte onde sobrevive, onde persistealguma singularidade, alguma minoria, algum idioma específico,alguma paixão ou crença irredutível, e sobretudo alguma visãode mundo antagônica, é preciso impor uma ordem indiferente –tão indiferente quanto somos em relação aos nossos própriosvalores. Distribuímos generosamente o direito à diferença, mas,em segredo, e desta vez de modo inexorável, trabalhamos paraconstruir um mundo exangue e indiferenciado.

Esse terrorismo não é fundamentalista, mas de uma culturasem fundamento, integrismo do vazio. Interesse que ultrapassa asformas e as peripécias políticas. Não se trata mais de um front,de relação de forças, e sim de uma linha de fratura transpolítica,que passa hoje primordialmente pelo islã – mas também nocoração de cada país dito civilizado e democrático, e mesmocertamente no fundo de cada um de nós.

(3 de julho de 1995)