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tá quase amanhecendo. não consigo dormir. meus olhos estão secos desde ontem. não consigo dormir desde antes de ontem. o sol tá quase querendo aparecer. parece que tem areia nos meus olhos. um monte de cachorro atrás de uma outra cachorra no cio ali perto de uns sacos de lixo. tá quase amanhecendo. não consigo dormir. é estranha essa sensação. um cara ali fuma um cigarro sentado no degrau de uma escada. me sinto tonto. tem uns passarinhos voando ali perto do poste. eles pousaram no poste e ficaram lá por um tempo. se coçando, eu acho. eles ficavam bicando a parte do sovaco se eles tivessem. aí depois foram embora. voando, do mesmo jeito. o sol quase aparecendo. já não precisa nem da luz dos postes pra iluminar as ruas. daqui a pouco elas começam a serem desligadas. o céu tá bonito. um azul quase roxo misturado com um rosa quase fogo. as pessoas começam a sair das casas. pessoas saindo com os carros, pessoas pilotando motos, pessoas caminhando, pessoas com os cachorros, pessoas de bicicletas. sinto gosto de ferro dentro da minha boca. passo por um casa e vejo pela janela um cara na cozinha fazendo uns ovos. depois ele vai pro banheiro e deixa o ovo no fogo. acho que esqueceu lá. depois ele volta com a toalha enrolada na cintura e todo molhado, com o cabelo ensaboado pra desligar o fogo. ele coloca a frigideira em cima da pia e volta pro banheiro. volta vestido num terno preto. sai com o carro. esqueceu o ovo frito lá na frigideira. tento entrar pela porta, mas tá trancada. dou a volta, no quintal, tem uma janela um pouco aberto. passo pela brecha. procuro a cozinha. um gato dorme ali perto da tv na sala. ele não me vê. como o ovo queimado. por isso ele não quis. tem um jornal ali perto. olho a capa. diz que hoje vai chover. temperatura máxima de vinte e sete graus. um copo com suco pela metade na pia. suco amarelo. sem açúcar. provavelmente o cara é diabético. termino com o ovo, termino com o suco. deixo o jornal no mesmo lugar. passo pelo gato que não me vê. ele continua dormindo. parecendo um caracol, enrolado nele mesmo, dentro de uma almofada que parece ser bem fofa. saio pela mesma janela. meus olhos ainda doem. vou examinando os lixos na frente das casas das pessoas. café, pedaço de frango mofado. pão mofado. lata de

tempo de vôo para lugar nenhum

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Page 1: tempo de vôo para lugar nenhum

tá quase amanhecendo. não consigo dormir. meus olhos estão secos desde ontem. não consigo dormir desde antes de ontem. o sol tá quase querendo aparecer. parece que tem areia nos meus olhos. um monte de cachorro atrás de uma outra cachorra no cio ali perto de uns sacos de lixo. tá quase amanhecendo. não consigo dormir. é estranha essa sensação. um cara ali fuma um cigarro sentado no degrau de uma escada. me sinto tonto. tem uns passarinhos voando ali perto do poste. eles pousaram no poste e ficaram lá por um tempo. se coçando, eu acho. eles ficavam bicando a parte do sovaco se eles tivessem. aí depois foram embora. voando, do mesmo jeito. o sol quase aparecendo. já não precisa nem da luz dos postes pra iluminar as ruas. daqui a pouco elas começam a serem desligadas. o céu tá bonito. um azul quase roxo misturado com um rosa quase fogo. as pessoas começam a sair das casas. pessoas saindo com os carros, pessoas pilotando motos, pessoas caminhando, pessoas com os cachorros, pessoas de bicicletas.

sinto gosto de ferro dentro da minha boca. passo por um casa e vejo pela janela um cara na cozinha fazendo uns ovos. depois ele vai pro banheiro e deixa o ovo no fogo. acho que esqueceu lá. depois ele volta com a toalha enrolada na cintura e todo molhado, com o cabelo ensaboado pra desligar o fogo. ele coloca a frigideira em cima da pia e volta pro banheiro. volta vestido num terno preto. sai com o carro. esqueceu o ovo frito lá na frigideira. tento entrar pela porta, mas tá trancada. dou a volta, no quintal, tem uma janela um pouco aberto. passo pela brecha. procuro a cozinha. um gato dorme ali perto da tv na sala. ele não me vê. como o ovo queimado. por isso ele não quis. tem um jornal ali perto. olho a capa. diz que hoje vai chover. temperatura máxima de vinte e sete graus. um copo com suco pela metade na pia. suco amarelo. sem açúcar. provavelmente o cara é diabético. termino com o ovo, termino com o suco. deixo o jornal no mesmo lugar. passo pelo gato que não me vê. ele continua dormindo. parecendo um caracol, enrolado nele mesmo, dentro de uma almofada que parece ser bem fofa. saio pela mesma janela.meus olhos ainda doem.

vou examinando os lixos na frente das casas das pessoas. café, pedaço de frango mofado. pão mofado. lata de refrigerante. lata de cerveja. faz calor. uma mãe segura pela mão os dois filhos. um mais gordo que o outro. eles carregam as lancheiras e a bolsa deles encaixada no braço da mãe por apenas uma alça. ela tá irritada com alguma coisa. puxa os filhos. eles pararam no sinal vermelho. passo por eles. ela diz algo sobre em casa ele vai ver.

um monte de funcionário espera sentado no chão em frente a uma loja. depois um cara chega de moto e abre a porta pra eles. eles parecem alegres. eles riem. eles estão realmente felizes. depois eles entram e aí eu não vejo mais nada. vou na frente da loja e fico lá por algum tempo. um cara vem carregando lá de dentro uma pá com areia. ele vem rindo e falando alguma coisa mas não consigo ouvir. ele joga a areia da pá na rua e quase me acerta, dá meia volta e continua rindo, volta lá pra dentro.

um cara abre um bar. entro. ainda não tem ninguém. ele tá no telefone perguntando de que horas o digníssimo fernando vai chegar pra trabalhar hoje. ele desliga o telefone puto da vida. bate no aparelho. a testa soa. chego bem perto. o cara enche um grande copo com chope. bebe no balcão. o digníssimo fernando parece ter chegado. ele dá justificativas, mas o patrão manda ele se fuder e diz que na próxima já era. fernando pede desculpa e já começa a tirar as cadeiras viradas em cima das meses e organizar as coisas. eles continuam falando, mas agora sobre o jogo de domingo. fernando vai. o

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patrão diz que não vai mais nos estádios. ele tem medo. fernando diz que ficar nas organizadas é tranquilo. o patrão pergunta se fernando enlouqueceu. fernando diz que é tipo favela se você for de dentro ninguém mexe. o patrão manda fernando tomar no cu. saio de lá.

na sala além de mim, mais três pessoas esperam sentadas. um homem, uma mulher e outra mulher. essa mais gorda. uma outra mulher mais nova na recepção. ela usa um headset. a voz dela é quase delicada se não fosse fina demais. entra pelo meu ouvido e dói. o ar condicionado tá quebrado. por isso a porta tá aberta e tem dois ventiladores um em cada extremo da sala. um papel a4 pedindo desculpas em comics san pelo transtorno colado nas quatro paredes da sala. mas os ventiladores não são suficientes. as pessoas estão suando. a testa do homem sua direto e o bulso. ele passa a manga da camisa comprida na boca o tempo todo. a axila da mulher mais gorda já começa a causar mancha na camisa. a outra mulher se abana com uma revista. daqui da pra sentir o perfume dela quando ela balança a revista empurrando o vento contra ela. é quase agradável se não fosse enjoativo demais. me levanto e vou até a janela. a vista daqui é quase igual a tudo. não tem nada de diferente. não consigo ver os passarinhos daqui. o céu não tem mais nuvem. tá todo azul e parado. dá pra ver os carros lá embaixo, na rua. a mão dupla, com carros estacionados dos dois lados. uma faixa indo e outra vinda. os carros precisam parar e passar devagar pra não bater. parecem formigas.

a porta abre e joão é chamado.

meus pelos do braço estão rígidos. . não presto muita atenção no que o cara que tá na minha frente diz. esfrego os olhos.

ele passa um formulário preso numa prancheta com uma caneta segura por um cordão. ele continua falando coisas enquanto olho pro papel. nome, nome dos pais, data de nascimento, experiências anteriores.

– desculpa te interromper. o joão fala e o empregador pára de falar quase assustado.mas não é pra isso que meu currículo serve?

– você tem um currículo aí?

– não. aqui não. mas eu mandei. mandei por email. por isso eu tô aqui. me mandaram um email de resposta dizendo que gostaram do meu currículo e queriam me conhecer.

– ah, então mil perdões, companheiro. a secretária deve ter esquecido de ter me dado. ela é nova. mas é gostosa pra caralho. deu pra ver, não deu?

– não tem problema.

– um minuto.

ele levanta e sai pela porta. joão continua sentado, com a cabeça baixa. acho que tá cochilando. joão toma um susto quando o empregador abre a porta de repente.

– você tava rezando, companheiro?

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– o que?

– rezando. você é daqueles que reza?

– não. eu não tava rezando.

ele se sentou na cadeira com um envelope amarelo nas mãos.

– acredita em deus?

– acho que sim.

– bom. um homem tem que acreditar em deus.

– é.

– aqui, teu currículo. desculpe o transtorno.

– não tem problema.

– mas seria bom se você pudesse preencher o formulário. é questão de normas.

– não seria melhor se eu falasse pra você?

ele solta o currículo de joão em cima da mesa e cruza as mãos e se curva um pouco pra frente.

– vamos fazer o seguinte. você fala pra você mesmo, em silêncio (ele enfatizou o “em silêncio colocando os dois dedos indicadores pra cima) e por acaso, você também anota essas coisas aí no formulário. que tal?

joão fica passando a mão na calça o tempo todo. parece que sofre de distonia. a caneta escorrega toda hora. se não tomasse cuidado, mancharia o formulário de suor. joão termina de responder as perguntas no papel e entrega ao homem. ele pega a prancheta e dá as costas a joão. lê por um tempo, depois se virando estende a mão.

– parabéns. você se enquadra no nosso perfil.

joão fica olhando pra mão estendida e pro rosto do cara. ele fecha a mão direita e abre de novo. aí joão aperta a mão do cara. depois eles se levantam. o cara põe a mão que apertou a de joão pra traz e passa na camisa.

saí de lá.

o vento sopra forte e bate em mim com agressividade me fazendo andar com dificuldade. mas até que é agradável assim. me sinto mais cansado, mas não tem problema. parece que vai mesmo chover. não faz tanto calor como antes. o sol já não tá tão ali em cima da gente. já começa a querer cair. o caminhão do lixo passa. eu corro atrás. sinto o cheiro e é agradável também. mas o vento me impede de ir mais junto. quando ele pára e os garis descem e vão apanhando os sacos, entro e me sento no lixo.

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os garis jogam os sacos com o lixo em mim. o chorume me molha. um mamão quase bom ali.

desço depois de um tempo. entro numa farmácia. um cara tenta comprar colírio pros olhos. ele pergunta pro vendedor quanto custa e o vendedor responde que dois e cinquenta e o cara pergunta se ele vende também remédio pra dormir. o vendedor responde que sim. o cara pergunta quanto custa e o vendedor pergunta cadê a receita, mas o cara não sabia que precisava de receita e pergunta “precisa de receita?” o vendedor responde que sim, porque remédio pra dormir é controlado e o cara não sabia mesmo. mas ele responde que precisa dormir, o vendedor responde “sem receita, dá não, boy. aqui teu colírio. paga ali no caixa com a moça. boa noite” o vendedor dá as costas pro cara e vai pra lá dentro da farmácia onde os clientes não podem entrar.

o cara paga o colírio e fora da farmácia aplica nos olhos.

o cara com o colírio pára num bar que toca música ao vivo. um cara ao violão apenas. ele força no sotaque paulista. fala txi ver ao invés de ti ver. as mesas quase todas ocupadas. mas ninguém presta atenção no falso paulista. mas ele parece não se importar muito. o suor escorre pela testa e faz a camisa grudar no corpo. a música acaba. uma pessoa agradece de longe. outra aplaude. ele mexe numa pasta presta ao lado, virando as páginas. um garçom se aproxima do cara do colírio. pergunta o que quer e o cara pede uma Brahma. o garçom sai anotando alguma coisa num caderninho grosso. uma mulher se aproxima do músico. um pedido, eu acho. ele começa a tocar. Djavan. por dentro eu txi devoro. mesmo assim txi devoro. txi ignoro. txi conheço. txi devoraria. a música acaba. a mulher dá um grito ouhh. o cara do colírio bebe a cerveja. me sirvo também, bebendo do copo do cara. uns jovens cantam parabéns pra alguém. o bar inteiro se comove. todos ajudam os jovens no parabéns. o cara aqui do colírio bate palma também. ele termina a cerveja. vai até o musico e aperta a mão do músico. depois ele sai de lá e volta pra mesa. chama o garçom, pede a conta, paga a conta. sai de lá.

o ônibus dobra a esquina. o cara do colírio deixa ele chegar mais perto e aí estende a mão. o ônibus pára. tá quase cheio. pessoas em pé. velhos em pé. cadeiras ocupadas. o cara vai pro fundo e eu vou com ele. perto da porta, ele se encosta. segura num ferro a cima da cabeça. pouso no ombro dele. ele percebe e mexe o ombro. saio do ombro dele e pouso na cabeça. ele não nota. fico lá enquanto o ônibus percorre os caminhos que deve percorrer. ouço uma mulher chamar pelo cara do colírio. ele não presta atenção. aí a mulher cutuca o cara e ela fala “tem uma mosca gigante na sua cabeça. posso tirar?” ai o cara responde que sim. mas aí eu voou e ela parece estar desapontada. diz pro cara que eu voei. que eu sai dele.

o motorista acelera mesmo. ele dirige rápido. as pessoas sentem medo. algumas reclamam. algumas perguntam se o motorista tá carregando boi. o cara cede, pede desculpas. agora ele dirige menos rápido. as pessoas se aquietaram. ele volta a acelerar com tudo. a cortar os carros, as motos. o ônibus balança pro lado e pro outro, tipo um barco dentro d’água. mas o cara do colírio pede parada. ele desce junto com um velho. vou atrás. pouso no ombro do velho.

sinto gotas de chuva caírem sobre a gente. olho pra cima. nuvens carregadas lá no céu. o velho tenta correr pra se proteger da tempestade, mas velho não corre. ele entra em casa. voou do ombro dele. vou até a cozinha. nada no lixo. o velho chega depois de um tempo

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e abre a geladeira. um copo de água gelada. um cachorro vem até ele. ele fala com ele. eles vão pra sala. eu vou junto.

uma bola azul e brilhante perto da janela na sala. vou até ela. as pessoas na tv gritam. a policia grita calma. eles tentam organizar as pessoas desesperadas. um policial puxa uma mulher pelo braço. ela não se importa. não presta muita atenção. o policial manda a moça se fuder. ela pede desculpas. ele cospe no chão deixa a moça ali. meus olhos ardem por causa da bola azul e brilhante. meus dedos estão enrugados. sinto fome. devo ter esquecido de comer. continuo voando até a bola brilhante. à visto de longe, ela, lá, parada perto da janela. quase encostada no teto. ouço um zumbindo vindo dela. é quase suportável. meus olhos doem. dói mais forte cada vez que chego mais perto. é quase agradável. é quase suportável. me sinto vivo. me sinto feliz. sinto cheiro de ferro mais forte. a rua lá fora vazia. carros estacionados. luz do poste acesa. chego mais perto. sinto o vento me empurrando pra onde ele quer. um helicóptero passa lá no céu. vejo pela janela. fumaça. o velho fuma. cheiro de ferro. meus olhos doem por causa do brilho da bola azul e brilhante. quase consigo tocar nela. então ela se abre pra mim. sinto uma pancada me puxar pra baixo. ouço o velho dizer “peguei a filha da puta”. meu corpo treme. e eu morro.