TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: A IGREJA POLÍTICA NO BRASIL DAS DÉCADAS DE 70 E 80

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Trabalho final de Graduação de Luciana Senrra, professora de História, a respeito da Teologia da Libertação e seu desdobramento durante a ditadura militar.

Citation preview

1

TEOLOGIA DA LIBERTAO: A IGREJA POLTICA NO BRASIL DAS DCADAS DE 70 E 80

1. INTRODUO

A Igreja Catlica teve um papel relevante em vrios perodos da histria a partir da Idade Mdia. Com a Expanso Martima, nos sculos XV e XVI, foi inserida na histria do mundo ocidental, sobretudo por meio de ordens religiosas, como os jesutas e franciscanos, espalhando sua doutrina por meio da educao catequtica. Desde a sua estruturao, a Igreja Catlica teve sua doutrina Tradio, Magistrio e Sagradas Escrituras sistematizada segundo teologias que se fechavam na argumentao terica, no sendo compartilhada ou vivenciada pela massa da populao de fiis, que durante muito tempo ficou margem da histria. O perodo da dcada de 1960 foi marcado pelos reflexos do avano do neoliberalismo pelo mundo, deixando na Amrica Latina seus efeitos perversos, intensificados pelas sucessivas ditaduras a que os pases foram submetidos. Este fato predisps o desenvolvimento de uma nova teologia, a Teologia da Libertao. Seu diferencial est em apresentar uma teologia embasada na dura vida do povo latino-americano1; em um Cristo que opta pelos pobres; numa evangelizao efetiva, onde a teologia no teria razes de existir sem a prtica.1

ROSSI, W. Disponvel em: http://www.espacoacademico.com.br/017/17cwrossi.htm. Acesso em 24 abr. 2006.

2

Entendemos ter sido a ao da Teologia da Libertao, durante as dcadas de 60, 70 e 80 do sculo XX, um momento de ruptura na Igreja com seu passado de opresso e excluso das minorias. Esta uma questo polmica que causou certo abalo s estruturas da Igreja, pois teria possibilitado o desenvolvimento de uma conscincia poltica entre as classes mais pobres de nossa sociedade. Os diversos tipos de censuras impostos aos telogos da libertao provocaram repercusses negativas, diminuindo sua influncia dentro das pastorais e, conseqentemente, ratificado o poder hierrquico da Igreja Catlica no Brasil. A presente pesquisa se prope analisar a anttese gerada pela Teologia da Libertao durante o regime militar; o discurso oficial da Igreja apresentado como libertador e seu posicionamento quanto ao desta teologia. Contextualizaremos o desenvolvimento da Teologia da Libertao em seu momento histrico, apontando as principais caractersticas desta teologia. Identificando assim o posicionamento poltico da Igreja na Amrica Latina durante as dcadas de 70 e 80 do sculo XX. Por fim, avaliaremos as conseqncias da ao da Teologia da Libertao na Igreja Catlica no Brasil. As questes essenciais para a compreenso deste fenmeno sero analisadas em trs captulos, nos quais verificaremos: As razes que incentivaram o surgimento da Teologia da Libertao; A estrutura e o desenvolvimento da Teologia da Libertao; A questo referente censura e perseguio dos membros da Teologia da Libertao no Brasil, por parte dos militares de a prpria Igreja Catlica.

3

2. O CAPITALISMO E A IGREJA NO BRASIL NA SEGUNDA METADE DO SCULO XX

2.1 O Capitalismo Monopolista e Imperialista no Ps Segunda Guerra

O pensar Deus modificou-se muito ao longo da histria. O Cristianismo da Roma Antiga uma destas maneiras de se relacionar com o espiritual. Aps tornar-se a religio oficial do Imprio Romano - o maior imprio existente at o momento -, o Cristianismo adquiriu dimenso de importncia extraordinria, em funo da grande quantidade de terras adquiridas durante a Idade Mdia, e conquistou poder inclusive sobre os Estados europeus ocidentais. A conquista das Amricas por portugueses e espanhis, estendeu a influncia do Cristianismo, institucionalizado pela Igreja Catlica Apostlica Romana tambm neste continente. A presena de jesutas foi a marca inicial da misso da Igreja Catlica no Brasil, desde ento intimamente ligada ao Estado pela instituio do Padroado Rgio. 2 Segundo Jos Oscar Beozzo, neste perodo de nossa histria:

2

Tratava-se de uma srie de privilgios outorgados paulatinamente pelos papas aos reis de Portugal a partir do sculo XV, em troca da obrigao de implantar a f catlica em suas conquistas. Revista Histria Viva, 2006.p.36.

4

Os reis podiam apresentar sua candidatos aos cargos eclesisticos, bispos cnegos, procos, professores dos seminrios. Roma reservava-se a nomeao dos bispos candidatos apresentados pelo rei. (...) Os reis recolhiam os dzimos e, por sua vez sustentavam as misses, bispados e parquias, assim como controlavam as doutrinas e mesmo as bulas e encclicas papais que s entravam em vigor depois de seu assentimento(...). Em troca, a Igreja Catlica era religio oficial do Estado, operando em regime de monoplio, com excluso de qualquer outra religio.3

Sua influncia hegemnica prevaleceu at o meado do sculo XX, quando surtiram em seu interior os efeitos da separao oficial do Estado que se deu ainda no sculo XIX - e perdeu grande nmero de fiis me funo do avano das igrejas evanglicas, e principalmente por no ter adaptado sua prtica teolgica mentalidade do mundo moderno. Toda teologia surge cumprindo aos apelos de um determinado momento, de um contexto social, cultural e histrico. A Teologia da Libertao4 nasce dentro desse mesmo esprito. Os telogos ao desenvolv-la, inspiraram-se nos apelos da Igreja que tentava se inserir em uma nova realidade global que emergia na segunda metade do sculo XX. Buscaram pela prtica penetrar a realidade social e poltica da poca. A partir do final da segunda grande guerra o mundo sofreu profundas transformaes. Destacando-se a bipolarizao entre EUA e URSS. Em decorrncia disto uma ascenso acelerada do liberalismo, tambm chamado neoliberalismo. A Europa arruinada pela guerra precisava ser reconstruda com3 4

Revista Histria Viva, 2006.p.36. O termo libertao originrio da teoria da dependncia e libertao elaborada na dcada de 1960 pelos socilogos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, em oposio teoria do desenvolvimento. Portanto, o termo no seu sentido original tem carter exclusivamente polticoeconmico.

5

urgncia, para que houvesse o reequilbrio econmico mundial. Foi um momento de criao de novas oportunidades de trabalho e de reaquecimento da economia capitalista, de uma srie de conquistas sociais. A aparente estabilidade proporcionada pelo capitalismo, naquele momento, trazia grande euforia aos pases da Europa Ocidental e das Amricas. Os efeitos do capitalismo foram muito diferentes naqueles pases que formavam o bloco de Primeiro Mundo e nos outros que formavam o bloco do Terceiro Mundo. Ao contrrio do esperado nos pases perifricos no ocorreu o desenvolvimento econmico e social esperado, havendo no mximo um crescimento econmico e social. Conforme cita M. Crouzet a cerca deste fenmeno caracterstico do Terceiro Mundo:Outro resultado foi o agravamento da desigualdade: desigualdade entre as classes sociais e entre os povos; uma minoria de homens em cada nao, e uma minoria de povos no mundo se beneficiam da maior parte destes melhoramentos, ao passo que o maior nmero sofre misria e at mesmo fome; freqentemente, ainda acrescenta-se a esta diviso entre os povos ricos e povos pobres uma diviso de ordem racial.5

O Brasil, portanto, encontra-se no bloco destes pases, onde o capitalismo acentuou as desigualdades e multiplicou a massa marginalizada da populao. O desenvolvimento scio econmico brasileiro avanava

progressivamente nas dcadas de 50 e 60 do sculo XX, sua economia permanecia voltada para o mercado exportador, e as portas se abriam ao capital estrangeiro. Multinacionais de toda ordem se instalaram em nosso pas valendo-se5

CROUZET, M. 1996, p. 196.

6

da mo-de-obra de baixo custo e do mercado consumidor interno em formao. Em meio a este ciclo vicioso consumo, lucro, consumo a populao de baixa renda sofria com a queda do poder de compra de seu salrio; a com explorao abusiva da fora de trabalho do campo e da cidade continuava; com a falta de perspectiva quanto a um futuro melhor. Efeitos do capitalismo monopolista e imperialista sobre o Brasil. Neste momento a histria marcada pela Guerra Fria, disputada entre as grandes potncias mundiais Estados Unidos e Unio Sovitica. O alinhamento do Brasil com o bloco capitalista custou o preo da adoo de prticas anticomunistas fechamento do Partido Comunista do Brasil e perseguio dos seus membros - o que caracterizava a real oposio ao bloco sovitico. A partir da citao de Crouzet podemos compreender melhor a dimenso deste conflito so mais amplas do que simples acordos entre pases alinhados:A oposio entre os Dois Grandes teve por conseqncia acentuar as divises no interior de cada pas: partidrios e adversrios das duas concepes de mundo se opem mobilizando todas as foras disponveis em uma luta sem trguas, exigindo a participao de todas as foras disponveis em uma luta sem trguas (...) Cada campo procura estender sua influncia e consolidar suas posies, de maneira que por toda parte, surgem conflitos (...)6

O fantasma do comunismo incomodava no somente os governantes capitalistas, mas tambm a Igreja Catlica. Ela reconhece que preciso fazer reparos no sistema econmico brasileiro, contudo critica enfaticamente o socialismo, assimilado ao comunismo. Sua viso atia da realidade humana e a afirmao da existncia da luta de classes, como um processo inerente ao desenvolvimento6

Ibidem, 1996, p.102.

7

social, so condenadas com vigor feroz e absoluto pela Igreja. Considerados inimigos da Ptria e da religio, os comunistas so repreendidos conforme as palavras de Dom Jaime de Barros Cmara, arcebispo do Rio de Janeiro na dcada de 1950, no discurso da carta pastoral:Enfim, no tem sido pequena a contribuio, lenta mas constante, do comunismo ateu, para a desorganizao das famlias, a decadncia dos costumes, o nvel cada vez mais baixo da moral, at a explorao do existencialismo cru e vergonhoso. (...) Nada h que estranhar. seu caldo de cultura. Explorar a misria material e moral deste mundo anarquizado, favorecer o comunismo que no move uma palha para melhorar a situao do povo, mas s agrava os descontentamentos e dios.7

Esta Igreja, mesmo sob a alcunha de una e catlica, acolhe no seu interior uma grande diversidade de pensamentos diante da sociedade na qual est inserida. Podendo estes pensamentos coexistir simultaneamente. Neste momento da histria destacaramos duas correntes distintas da Igreja no Brasil: A Igreja Conservadora e a Igreja Democrata (Social) Crist. A Igreja Conservadora aquela que est a servio da classe hegemnica. Que busca manter um bom relacionamento com o Estado, para que possa ser por ele legitimado a fim de manter o status quo. E anncio do Evangelho nesta Igreja dogmtico e intransigente. Impondo seus dogmas s classes sociais, se utiliza do poder exercido por esta mesma classe. A Igreja Democrata (Social) Crist se apresenta sob o signo da renovao e se diz pastoral. Mas ela fechada em si mesma, com base em si mesma e para si mesma.8 a Igreja da classe mdia que reproduz a ideologia7 8

PIERUCCI, 1995, p.356. RIBEIRO, 1999, p.72.

8

burguesa, voltada para a ascenso social. Tem o discurso da melhoria social, mas no questiona as razes dos problemas. Desta forma legitima a desigualdade, a injustia e o pecado social. A Igreja sempre esteve ento ligada s questes sociais do Brasil. Seu posicionamento poltico permaneceu influente nas decises dos governantes. Esta ligao indireta com o poder secular permitiu que a Igreja Catlica firmasse acordos, mantivesse privilgios e apoiasse os governantes de seu interesse. A ao da igreja junto populao de baixa renda urbana e rural desatacava-se principalmente pelas obras assistenciais e de caridade. O discurso utilizado pela Igreja no Brasil, diante dos efeitos do Capitalismo junto populao empobrecida, no se distanciava do discurso do Vaticano. Embora existisse desde o sculo XIX, a Doutrina Social da Igreja9 e posteriormente a idia da terceira via que na prtica no seria o modelo capitalista e nem socialista, mas um modelo catlico de organizao da sociedade no havia ataques frontais ao sistema neoliberal ou aos seus principais agentes. Pierucci vai alm ao afirmar que:Roma sob muitos aspectos e de diferentes maneiras, agora uma poderosa caixa de ressonncia ideolgica de Washington, o centro hegemnico que comanda esta nova fase da

internacionalizao do capital e do desenvolvimento, em moldes capitalistas, dos pases perifricos.10

9

A Doutrina Social de Igreja Catlica um conjunto de princpios, critrios e diretrizes de ao com o objetivo de interpretar as realidades sociais, culturais, econmicas e polticas, determinando sua conformidade ou inconformidade com os ensinamentos do Evangelho sobre a pessoa humana e sua vocao terrena e transcendente. Sendo principal, ela pode se adaptar s necessidades sociais de cada tempo e de diferentes lugares. LUCCI, E. Disponvel em: http://www.hottopos.com/videtur27/elian.htm. Acesso em 02 nov. 2006. 10 PIERUCCI, 1995, p. 364.

9

Ao alto clero brasileiro restava apenas lamentar a ganncia pelo provocada pelo capital e reprovar o individualismo anrquico. As crticas indiretas no incentivavam, mas igualmente no reprimiam os efeitos do capitalismo. A Igreja apontava a crise espiritual como a verdadeira explicao para a crise social brasileira. Contudo, a Igreja Catlica viu-se seriamente ameaada pela expanso do capitalismo industrial nas grandes cidades, onde o nmero de fiis catlicos era cada vez maior. Eram assalariados, operrios, universitrios que viam seu dia-adia se impregnar de processo tecnolgicos e cientficos, que os motivaram a passar da mera passividade poltica, a uma certa atividade reivindicatria. Este novo grupo que surgia, passou a ser disputado por correntes ideolgicas concorrentes, no apenas de carter secular, mas tambm de cunho religioso. A Igreja ento parte para a reformulao de seus projetos e metodologias pastorais.

2.2. Conclio e as Mudanas no interior da Igreja

10

Diante deste quadro, a Igreja, sempre vigilante, volta seu olhar para a Amrica Latina. Realizada na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1955, a primeira reunio do CELAM Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano produz um documento no qual os bispos apontavam os quatro perigos mortais que ameaavam a Igreja neste continente:A invaso das seitas protestantes; a secularizao da vida toda; o marxismo, que nas universidades se revela o elemento mais ativo e tm nas mos quase todas as organizaes de trabalho; e finalmente um espiritismo inquietador.11

O quadro conservador no interior da Igreja Catlica comeou a ser alterado com a publicao da encclica Mater et Magistra (1961), a primeira a tratar dos problemas do mundo subdesenvolvido. A Igreja nesta carta responde as indagaes quanto a sua insero no mundo, problemtica que a envolve e s diversificadas naes da comunidade universal. Apresenta-se como Mater et Magistra - Me e Mestra da humanidade. Quanto a seus efeitos, Pierucci comenta:Reavivou nos meios catlicos menos radicais a confiana na Doutrina Social da Igreja e reacendeu os debates em torno de questes controvertidas com a nfase na funo social da propriedade provada, a participao dos trabalhadores nos lucros das empresas, a socializao dos meios de produo, a reforma agrria, etc.12

A convocao do Conclio Vaticano II (1961-1965), pelo Papa Joo XXIII concludo por Paulo VI13 foi sem dvidas o passo mais importante nesse processo e a maior reforma em quase dois mil anos de catolicismo. O Conclio11 12

Ibidem, p. 361. Ibidem, p. 365. 13 O Papa Paulo VI tinha esprito moderador, mas era profundamente sensibilizado pela realidade humana. Publica em 1967 a Encclica Populorum Progressio, voltada para o homem da atualidade, que est envolvido com o progresso e ao mesmo tempo trouxe uma srie de efeitos degradantes. Durante seu papado a Igreja voltou-se para o desenvolvimento dos povos, especialmente aqueles afetados pela misria, fome ignorncia e doenas.

11

reuniu a grande diversidade das mentalidades eclesiais. Embora de maioria conservadora, o posicionamento do papa, Joo XXIII, era renovador, o que terminou por impregnar o esprito do Conclio. Assim este foi o momento oportuno para reformular sua doutrina e reescrever sua constituio, respondendo s presses do mundo ps-guerra, transformado por inovaes constantes. O Vaticano II rompeu em seus documentos dogmticos com o tradicionalismo secular: a descentralizou o poder da Igreja, deu maior autonomia s igreja particulares, atualizou a liturgia e o culto - celebrao da Santa Missa em lngua verncula, entrando em desuso o tradicional latim, permitiu a ao dos padres operrios, permitiu maior insero dos leigos nas prticas litrgicas, reconheceu o ecumenismo cristo. Foi grande a influncia exercida por cardeais latino-americanos, como Dom Hlder Cmara do Brasil e Dom Manuel Larran do Chile, que defendiam o estabelecimento da Igreja dos pobres, centrada na importncia da justia social e dos direitos humanos. A publicao da Constituio pastoral Gaudium et Spes, inaugurou no interior da Igreja um momento de preocupao com as realidades terrestres, humanas e histricas. Os padres conciliares compreenderam que somente pela transposio para a realidade social se poderia fazer valer uma doutrina a servio do povo de Deus.14 Surgia ento na Igreja uma nova corrente, a Igreja Socialmente Engajada. Esta harmoniza a Igreja, as classes sociais hegemnicas e o Estado. Rompe com o cordo que liga a Igreja ao Estado. Contudo ainda lhe falta um projeto poltico14

RIBEIRO, 1999, 38.

12

social a favor das classes dominadas e oprimidas, fator que gera certa ambigidade nesta relao de rompimento com o Estado. O Conclio desta forma legitimou prticas da Igreja Catlica no Brasil e estimulou novas experincias. Iniciativas como a Ao Catlica Brasileira, de base leiga, da qual nasceram a Juventude Universitria Catlica (JUC), a Juventude Estudantil Catlica (JEC) e a Juventude Operria Catlica (JOC)15, foram ratificadas. Sendo este, portanto o ponto de partida para o desenvolvimento de aes como as Comisses de Justia e Paz (CJP), a Ao Popular e o Movimento de Educao de Base (MEB)16, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)17 e como resultado de todo este processo, a prpria Teologia da Libertao.

3. TEOLOGIA E LIBERTAO

3.1 O Advento das Mudanas

A dcada de 1960 foi marcante para os pases da Amrica Latina. Politicamente, muitos pases foram submetidos a ditaduras militares, no caso do Brasil, a partir de 1964. O mundo fora dividido em funo da Guerra Fria. Dividido tambm estava o15

Aes da Igreja comprometida com a transformao do meio estudantil e finalmente com a poltica nacional. (LIBANIO. 1996, p.167) 16 Iniciativa conjunta do governo e da Igreja para alfabetizar pobres por meio de uma rede de escolas, fazendo uso do Mtodo Paulo Freire de ensino. 17 Grupos de pessoas (em torno de 20 a 80) que, morando no mesmo bairro ou nos mesmos povoados, se encontravam para refletir e transformar a realidade luz da Palavra de Deus e das motivaes religiosas.

13

Brasil, entre aqueles que defendiam um desenvolvimento econmico nacionalistapopular e entre aqueles que lutavam pelo desenvolvimento econmico internacionalizado. Quanto a Igreja, no havia um posicionamento oficial sobre o assunto. A represso imposta pelo regime autoritrio, somada s condies opressoras s quais estavam submetidas as classes de baixa renda rural e urbana, provocou situao de inquietao, inclusive no interior da Igreja que ainda sob efeito das mudanas do Conclio Vaticano II. Bispos, padres e telogos comearam a desenvolver uma linha de pensamento e, principalmente, de ao totalmente inovadora do ponto de vista teolgico. O movimento surgiu nas camadas populares, com o apoio de religiosos e de grupos empenhados nas mudanas sociais. Para eles a Igreja no podia mais se limitar a desempenhar somente um papel espiritual, mas precisava se envolver nas questes das transformaes sociais. Esta nova maneira de fazer Igreja convencionou chamar Teologia da Libertao. 3.2 As Bases Tericas da TdL

A palavra Teologia oriunda da conjugao de dois verbos gregos: teos e logos. Pode-se dizer que, em seu sentido original, teologia todo discurso a respeito de Deus. E segundo Aristteles, teologia e filosofia seriam sinnimos. Contudo hoje, entendemos teologia como o discurso a respeito de Deus, exposto de forma racional a partir de dados revelados em um livro sagrado, seja ele a Bblia, o Coro

14

ou outros. teologia compete, portanto, a atualizao dos dados revelados atravs do discurso (logos), segundo as exigncias histricas vigentes.18 A Teologia, cincia da Revelao e das coisas divinas.19, tem como sujeito, no sentido tcnico do termo, Deus e sua relao com o homem. Mas com o advento da Teologia da Libertao, o termo teologia ganha um significado mais profundo, segundo Ribeiro, a teologia da libertao tem um novo interlocutor que caracteriza sua abordagem. O sujeito o Deus dos pobres e das raas oprimidas, que colocam novas questes da inteligibilidade f, ao amor e esperana.20 O nascimento de novas teologias se deve necessidade de respostas perguntas igualmente novas, dentro de um contexto sociocultural recente. A Teologia da Libertao surge por volta de 1968, em nosso continente, e se difere de outras teologias, no porque no se refira Revelao divina. Mas porque faz uso de um referencial diferenciado para a abordagem da Revelao, parte de uma situao nova, a de nosso continente cristo, sob a tenso da dominao e da libertao.21 O ponto de partida para o desenvolvimento da TdL principalmente a vivncia do povo oprimido, dominado, que se conscientiza da situao de misria a que exposto. Por esta razo o povo se organiza para realizar aquele que entendem ser o projeto de Deus para a humanidade: viver em fraternidade, em justia, em dignidade.2218

CABRAL, A. Disponvel em: http://www.achegas.net/numero/dois/a_cabral.htm. Acesso em 24. mar. 2006. 19 MINI DICIONRIO LUFT, 1998, p.365. 20 RIBEIRO, 1999, p.71. 21 LIBANIO, 1972, p. 172. 22 Idem.

15

Dentro de uma primeira anlise scio-estrutural, a TdL voltou seu olhar para o pobre organizado, as classes populares, o sujeito ativo na sociedade e na igreja. Porm, um momento posterior, se inspira no pobre ainda no articulado, entregue sua situao de penria e incapaz de superar esta situao. Os tericos da Teologia da Libertao se inspiram na experincia de Deus vivenciada por eles. Partem da concepo de que Jesus teria nascido e vivido como pobre, e feito esta opo de vida em razo de uma misteriosa predileo divina, para alimentar espiritualmente esta teologia. Para a estruturao desta teologia, foi preciso partir para a anlise da situao vivenciada pelo pobre, que experimenta Deus na sua luta cotidiana. O mtodo escolhido no foi o da experincia comum ou o da observao imediata. Este caminho poderia induzir ao erro, influenciado pelas armadilhas das informaes que o cercam, em sua maioria sob a tica das classes dominantes, que poderiam deturpar a prpria teologia. Os telogos da libertao optaram pelo uso das mediaes socioanalticas (MSA), se apropriando do conhecimento oferecido pelas cincias sociais a compreenso dos conflitos no mundo contemporneo proporcionada pela Histria e pela Geografia crtica, assim como os estudos de tericos da Sociologia. Contudo a simples anlise destes elementos no constituem ainda a TdL, pois os dados colhidos e examinados segundo a perspectiva da Revelao. A MSA mais apropriada dentro da questo proposta sem dvidas aquela que favorece a causa dos pobres. A anlise marxista a principal referncia utilizada pelos telogos por fazer uma leitura dialtica da realidade, com o enfoque para a

16

luta de classes. A lgica opressora do sistema capitalista o principal elemento extrado da reflexo marxista sobre a sociedade. De certo que a viso materialista da realidade humana e o determinismo da luta de classes que segundo Marx a fora motriz por traz da histria 23, no sero parte desta reflexo. Assim sendo, a TdL faz uso do marxismo, sem permitir que este se oponha s dimenses do cristianismo. Diante do quadro apresentado, chega o momento de elaborar perguntas surgidas a partir da situao contexto mundial no qual est inserida a Amrica Latina - , analisada com mediaes socioanalticas, tomando como referencial a Revelao divina. Segundo Libanio o confronto entre estes elementos que possibilita o surgimento de um novo questionamento, que a prpria teologia:

... em nosso caso, quando a situao em questo a da Amrica Latina, atravessada teoricamente por uma leitura crtica, e a Tradio, aquela conservada viva pela Igreja, temos ento como fruto a Teologia da Libertao.24

3.3 A Prxis que Evangeliza e Liberta

A teologia latino-americana traz uma compreenso luz das Sagradas Escrituras sobre a problemtica na qual est mergulhado o nosso continente. Por isso esta teologia lana a todo instante, questes-chave como: O que diz Deus sobre tal23

Wikipdia. Luta de Classes. Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Luta_de_Classes. Acesso em: 15.out. 2006. 24 LIBANIO, 1996, p.179.

17

realidade? Como sustentar a f num mundo de tanta injustia e opresso? Como ser cristo nele? Para dar respostas a estas questes foi preciso que telogos deixassem as academias europias e vivessem a realidade latino-americana no interior das pastorais. a questo da Prxis, entendida aqui como ao transformadora da realidade social -, elemento fundamental para a aplicao de sua metodologia. Por esta razo relacionaremos nesta anlise a fuso de fatores, envolvendo o fator religio e o contexto social: f e vida, Revelao e realidade, mstica e militncia.Era comum padres e freiras serem flagrados lendo seus textos em nibus e encontros de movimentos sociais nas periferias das grandes cidades brasileiras. Compreender a relao entre poltica, economia e organizao popular para a libertao passou a ser objetivo de muitas lideranas religiosas.25

A ao da TdL acontece principalmente no interior das CEBs, que surgiram na dcada de 1960, no Brasil e em alguns outros pases da Amrica Latina. Estes grupos nasceram e se desenvolveram em ntima ligao com a leitura popular das Sagradas Escrituras, aliado ao compromisso da busca pela libertao. Seu carter inclusivo leva esta teologia ao encontro, nos lugares mais distantes e a fazer uso de exemplos de sua vida cotidiana como estratgia de evangelizao. A interpretao da Bblia no interior das CEBs, segundo Clodovis Boff, parte geralmente da leitura do livro do Apocalipse. O telogo explica que este um livro dos perseguidos. Fala do povo de Deus oprimido, estraalhado, ensangentado pela Besta-Fera.26 Interpreta as Sagradas Escrituras com o olhar do povo sofrido,25

RICCI, R. Disponvel em : www.espacoacademico.com.br/058/58ricci.htm. Acesso em 24. mar. 2006. 26 BOFF, Clodovis. 1984, p. 90.

18

que sempre guarda a f e a esperana da vitria. E esta acaba chegando, semelhante ao final triunfante do Apocalipse. Este livro toma dimenso popular tambm quando emprega figuras de linguagens, metforas o Filho do Homem, a Mulher grvida, os anjos, o Drago, a Besta, os quatro cavaleiros. Por fim o Apocalipse tambm considerado um livro poltico.A as foras coletivas esto em ao. todo povo de Deus que se mobiliza, assim como toda sociedade. (...) o nico livro do Novo Testamento que se faz uma leitura poltica e sistemtica da histria.27

A TdL tem sua ao ainda na celebrao dos sacramentos, articulao sua execuo com as lutas populares. Surgem neste momento no interior da Igreja movimentos e pastorais de cunho social, orientados para a melhoria das condies de vida e de trabalho. o exemplo da Pastoral da Terra, da Pastoral das Favelas, do Trabalhador, da Criana, do Menor, entre muitas outras. Libanio expressa com clareza a marca deixada pela TdL no interior destas pastorais:A teologia da Libertao despertou a Igreja para o valor evanglico do compromisso libertador com os pobres numa linha para alm do tradicional assistencialismo caridoso. Alimentou a prtica pastoral de muitas igrejas, comunidades e cristos at o herosmo do martrio.28

Contudo, os lderes das pastorais sociais trabalhavam com dificuldade neste meio, porque o povo no acolhia com entusiasmo o discurso religioso ligado ao poltico. Para estes qualquer atitude de mudana dessa realidade por parte do homem representa uma dupla subverso: ordem permitida por Deus e s autoridades

27 28

Ibidem, 1984, p. 91. Revista Histria Viva, 2006, p.48.

19

constitudas por ele.29 Para isso era imprescindvel que houvesse uma mudana de lugar social. Que consiste em passar do lugar social do opressor, para o lugar social do oprimido. importante que cada CEB tenha um lder formado dentro da prpria comunidade, que conhecia a f, a histria, a vida pela tica do oprimido, e que a necessidade da mudana seja desejo de seus membros. Muitas vezes os oprimidos no percebem um compromisso eficaz com seus interesses, por fora da dominao a que esto submetidos. Uma das tarefas da pastoral popular pr fim a esta alienao.30 As CEBs foram implementadas na maioria das dioceses do Brasil. A discusso de problemas pertinentes a cada comunidade, assim como a busca por solues era uma constante nas reunies destes grupos. No meio rural a questo da terra, uma das mais discutidas, apontava os grandes fazendeiros como um dos responsveis pela situao vivida. Salientando ainda a gravidade da explorao do comrcio de mercadorias para subsistncia, a falta de escolas e de assistncia sade. O que est por trs de tudo isso? Eis a pergunta que nunca pode faltar numa discusso com as bases. Ela induz o povo a procurar no somente as razes ou causas dos problemas concretos, mas tambm as solues como a unio da prpria comunidade, a organizao do povo em cooperativas ou em sindicatos que so apontadas como o mais eficaz instrumento de luta contra a opresso.No Brasil, a ao pastoral se pautou por esta complexa disposio e viso de mundo, adotando uma trade: presena, denncia e anncio. Presena junto aos desfavorecidos, partilhando de seu29 30

RIBEIRO, 1999, p.91. Idem.

20

sofrimento, muitas vezes, como trabalho missionrio, de auto-resignao. Denncia enquanto indignao ao sofrimento humano, como descaso com o projeto divino. E anncio enquanto possibilidade da justia social, da construo do Reino de Deus. Possibilidade, bem compreendido, mas no confirmao ou promessa. 31

Quanto a ao da TdL no interior da chamadas Pastorais Sociais, tomaremos como objeto de anlise nesta pesquisa a questo da Pastoral Operria (PO) no estado do Rio de Janeiro cuja na capital recebe a nomenclatura de Pastoral do Trabalhador e enquanto na Baixada (particularizando a diocese de Nova Iguau) recebe a nomenclatura de Pastoral Operria. Neste estado ela se faz presente deste o 1 de maio de 1973. A partir dos eventos desencadeados pela ditadura militar, como represses, prises, mortes e perseguies, muitos militantes cristos catlicos ficavam cada vez mais inquietos diante do desafio de se manterem unidos e fortalecidos na f. Havia a necessidade de algo que os vinculasse com a Igreja e tambm com as necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras. A PO uma pastoral social que age a servio da classe trabalhadora, mais especificamente da classe operria do meio urbano. organizada e dirigida por trabalhadores e trabalhadoras dos mais variados ramos. Foi criada com o intuito de despertar e organizar militantes que lutassem para a transformao da vida em dignidade. Resgatando a auto-estima do trabalhador formal, informal ou em situao de desemprego, para que, fortalecido enquanto cidado participasse, efetivamente e qualificadamente, nas lutas de construo de uma nova sociedade.

31

ROSSI, W. Disponvel em : www.espacoacademico.com.br/058/58ricci.htm. Acesso em 24. mar. 2006.

21

O trabalhador convidado a ocupar seu papel de protagonista na sociedade recebendo subsdios e qualificao da PO - para o exerccio da cidadania, a luta por direitos, a formao poltica e deste modo transformar concretamente a sua realidade e a realidade do pas naquele momento. A PO foi um dos grandes instrumentos de fora nas greves no final da dcada de 1970 e nos diversos movimentos de lutas dos trabalhadores por seus direitos. Esteve presente no nascimento das grandes de centrais sindicais. Assim como na base dos partidos de esquerda dos partidos de esquerda. Na diocese de Nova Iguau, sob a orientao de Dom Adriano Hyplito, as diretrizes seguidas pela PO se alinham totalmente com os ideais citados a cima e tem como ponto de partida a situao da classe operria. A questo dos baixos salrios que obrigam os trabalhadores a lutarem com todas as foras para a sobrevivncia, sem condies de tempo e de energias para procurar viver toda dimenso da vida.32 ; a questo da iluso materialista, fruto do consumismo capitalista; e a ausncia da liberdade, em tempo de represso severa, so temas discutidos, resultando em atitudes concretas de mudanas para a classe e para a sociedade. Na Arquidiocese do Rio de Janeiro a Pastoral do Trabalhador, foi fundada por Dom Eugenio de Arajo Sales, j diante da efervescncia dos ideais da TdL. Teria uma nomenclatura diferencia das demais dioceses por ter por objetivo atingir no apenas os operrios - termo empregado literalmente para os trabalhadores das fbricas mas tambm aos demais trabalhadores.32

Comisso Arquidiocesana da Pastoral do Trabalhador, 1981, p.7.

22

Seu compromisso, segundo a Comisso Arquidiocesana da Pastoral do Trabalhador, consiste em despertar dentro da classe os valores da f e, em nome da f, colaborar com a classe em sua caminhada de libertao integral. 33 Seria necessrio que a verdadeira voz da Igreja ecoasse nesse meio, afastando as idias marxistas que impregnavam a classe. Isto se explica principalmente pela postura do arcebispo Dom Eugenio de Arajo Sales - que embora tenha seu papel de relevncia como um dos mais influentes membros do alto clero na resistncia ao militarismo no Brasil - manteve a arquidiocese fechada teologia latino-americana. E ratificou sua postura ao afirmar que: Existe uma Teologia da Libertao boa, que visa aprofundar a libertao do homem, mas outra coisa a de ndole marxista.34 Exemplo deste posicionamento o caso da Pastoral Operria, que na cidade do Rio de Janeiro recebeu nomenclatura e objetivo de ao diferenciada. Ao mesmo tempo em que as CEBs no foram implementadas com a mesma conotao que as demais dioceses, mas apenas uma parte dela, os chamados Crculos Bblicos onde seus membros fazem reflexes sobre a realidade, mas no so incentivados ao. Desta forma o estado do Rio de Janeiro adquire pensamentos distintos na Baixada e na capital, em funo principalmente da postura poltica de seus lderes. Exercendo assim ligao direta com a postura poltica dos seus fiis.

33 34

Ibidem, 1981, p.9. Revista Histria Viva, 2006, p.29.

23

4.TEOLOGIA E PERSEGUIO

4.1 As Ditaduras na Amrica Latina

Desde o ps-guerra a Casa-Branca j vinha incrementando polticas destinadas a preservar seus interesses econmicos e militares no continente americano. No decorrer das dcadas de 60 e 70 do sculo passado, essa poltica que visava manter a segurana das Amricas, iria levar os Estados Unidos a uma crescente interveno no processo de formao das lideranas militares, que, por conseguinte intervieram na vida poltica dos paises. A partir do ano de 1963, as frgeis democracias da Amrica Latina foram substitudas por ditaduras. A primeira dessas intervenes aconteceu na Argentina com a derrubada do presidente Arturo Frondizi em 1962. Durante este perodo o pas passou a ser governado por uma junta militar. Anos mais tarde no Chile o inimigo apontado foi a esquerda unida a socialistas, comunistas e outros progressistas, conhecidos como frente popular. O governo de Salvador Allende (presidente eleito em 1970) foi desestabilizado e derrubado em 1973, por um golpe fortemente apoiado pelos Estados Unidos, que introduziram o Chile nos traos caractersticos dos regimes da poca. Permanecendo sob o comando do general Augusto Pinochet por dezessete anos. A Bolvia tambm esteve sob o comando do regime autoritrio, durante quinze anos. A interveno neste pas se deveria ao temor por parte dos americanos

24

quanto influncia da vitoriosa revoluo cubana e ao crescimento dos grupos de guerrilha local - incentivados em parte pela ao do argentino Ernesto Guevara, morto numa emboscada nas montanhas bolivianas. Durante esse ciclo de ditaduras militares, a vida poltica no continente foi cercada pela anulao dos direitos democrticos, a anulao poltica, a tortura, o desaparecimento e o assassinato de opositores. No Brasil o governo de Jango foi deposto por um golpe militar. Eric Hobsbawn explica os motivos desta ao:As foras armadas tomaram o poder no Brasil em 1964 contra um inimigo bastante semelhante: os herdeiros do grande lder populista brasileiro Getlio Vargas (1883-1954) que se deslocavam para a esquerda no incio da dcada de 1960 e ofereciam democratizao, reforma agrria e ceticismo em relao a poltica americana.35

4.2 Perseguio e Autoritarismo Secular

A implantao do autoritarismo no Brasil coincidiu com a votao da terceira sesso do Conclio Vaticano II. O Golpe Militar de 1964 encontrou o episcopado brasileiro bastante dividido. Contudo, era necessrio que os bispos se posicionassem quanto legitimidade do governo estabelecido, pra definir a postura da Igreja Catlica no Brasil diante do processo de represso iniciado. O posicionamento adotado a princpio foi, conforme a praxe da Igreja, a legitimao da ao do Estado. do dia 1 de maio de 1964 a mensagem lida em35

HOBSBAWN. 1993, p. 429.

25

todas as missas celebradas nas parquias da arquidiocese da cidade de So Paulo naquela data, por ordem do arcebispo local. Nesta fica claro o clima reinante da poca, no seio da hierarquia da Igreja em So Paulo e se firma uma posio clara perante o panorama poltico-militar que se desenhava. Eis um fragmento de seu contedo:Julgamos que no ser demasiado agradecer a Deus, ainda uma vez, pelo que de positivo teve e continua tendo o movimento poltico-militar de maro ltimo. (...) Com satisfao igual vemos a nova ordem implantada em nossa ptria, esforando-se para se debelar totalmente o perigo do comunismo que assume propores assustadoras, infiltrando com propsito inaceitveis na mais justa e inadivel das campanhas reformistas.36

A medida em que o Golpe de 1964 tornou mais intensa a ao, principalmente no diz respeito Doutrina da Segurana Nacional - imbudo de um anticomunismo obsessivo a partir do AI-5 (dezembro de 1968) - tornou real aquilo que j se esperava, um confronto a luz do dia entre os militares e os cristos mais comprometidos com a sorte dos marginalizados e oprimidos, sejam bispos, padres, religiosos e religiosas ou simples militantes das CEBs do interior. Eram setores minoritrios no interior da Igreja, em sua grande maioria ligados aos ideais da TdL. A postura da Igreja favorvel situao vigente possibilitou que se evidenciasse a diferena entre os posicionamentos polticos, conforme citado anteriormente, em seu interior. Divididos entre aqueles que ansiavam pelo afastamento definitivo da ameaa comunista e aqueles que lutam por justia social para todos. Este segundo grupo fora motivado tambm pelas palavras do Santo Padre na 2 assemblia da CELAM, realizada em Medelln, na Colmbia, no ano de 1968.36

RIBEIRO, 1999, p.118.

26

Diante do futuro necessrio audcia, soou a hora da esperana... Os pastores devem tornar seus as angstias dos seus povos. No devemos solidarizar-nos com sistemas que favorecem opressoras desigualdades e insuportveis condies de inferioridade, para a populao menos favorecida. 37

Podemos ento destacar este como marco para a ao inicial da Teologia da Libertao na Amrica Latina. E destacamos dois telogos como os baluartes da TdL: o frei brasileiro Leonardo Boff e o padre peruano Gustavo Gutierrez e suas obras Teologia do Cativeiro e da Libertao e A Teologia da Libertao, respectivamente. O ativismo religioso no Brasil incomodou o regime militar e os membros dos setores mais tradicionais da Igreja. O governo proibiu as atividades da JUC; cursos ligados a MEB, transmitidos pela Rdio Olinda, em Pernambuco; A Escola Apostlica dos Dominicanos em Juiz de Fora (seminrio menor), fora metralhada por militares que cercaram e invadiram a instituio; as foras de segurana perseguiram e torturaram membros da JOC. O apoio da Igreja ao Golpe Militar no se estendeu por muito tempo. Datam de junho de 1964 as primeiras palavras de reservas com relao ao movimento, publicadas na Revista Eclesistica Brasileira: Insistimos na necessidade e na urgncia da restaurao da ordem social, em bases crists e democrticas. Palavras estas motivadas de certo pelos sucessivos acontecimentos ligados a membros do alto clero. Em 15 de abril de 1964 a residncia de Dom Hlder Cmara fora invadida pelo 4 Exrcito. As foras militares foram retiradas somente aps protesto do arcebispo junto ao comandante General Justino Albis Bastos.37

RIBEIRO, 1999, p. 114.

27

Dom Hlder foi uma das figuras mais polmicas da Igreja e mais atacadas naquele momento. Ele clamou por reformas polticas e denunciou prticas de torturas no Brasil. Como reao o governo o silenciou proibindo qualquer meno a seu nome nos meios de comunicao38 de massa. No ano seguinte Dom Hlder foi transferido, por ordem do Papa em 1971, da arquidiocese do Rio de Janeiro para a arquidiocese de Recife e Olinda. Outro fato de destaque neste perodo foi em 1976, de um comando terrorista de direita que seqestrou e torturou Dom Adriano Hyplito, bispo de Nova Iguau, na Baixada Fluminense, onde as CEBs tinham papel atuante. Coube a Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de So Paulo em 1972, a liderana da defesa pblica dos direitos humanos39, elaborando neste mesmo ano o documento intitulado Testemunho de F, um dos mais incisivos protestos da Igreja contra a tortura.40 O posicionamento controverso de Dom Eugenio, nomeado arcebispo do Rio de Janeiro em 1971, o reflexo do posicionamento da Igreja no perodo. Foi Dom Eugenio de Arajo Sales quem conduziu discretamente as operaes e negociaes da Igreja em defesa dos direitos humanos. Sua postura foi criticada por catlicos progressistas e por militares conservadores. Ajudou grande nmero de pessoas que haviam sido presas, que eram perseguidas ou ameaadas pelas foras da direita repressora - principalmente durante o governo Mdici (1969 1974) quando foi mais intensa a ao as acolheu na residncia episcopal e em

38 39

Revista Histria Viva, 2006, p.19. Ibidem, 2006, p. 20 40 Idem.

28

algumas ocasies as escoltou at a o aeroporto internacional do Galeo, no Rio de Janeiro. Organizou rotas clandestinas de fuga e alugou apartamentos para refugiados. Muitas vezes atendeu s solicitaes de Dom Paulo embora tivessem posicionamentos ideolgicos diferentes para que interviesse pela soltura de presos polticos. A ao bem sucedida de Dom Eugenio pode se explicar pelo seu prestgio junto aos generais, que convenciam o governo a fazer vista grossa proteo e fuga dos subversivos. Contudo, neste mesmo perodo bispos e cardeais dentre os quais inclui-se Dom Eugenio reuniram-se com o general Muricy e representantes das foras de segurana na Comisso Bipartite na tentativa de salvar a relao entre Igreja e Estado que se rompia.As diferenas ideolgicas foram debatidas, procurou-se uma forma de controlar o clero mais radical e decidiu-se que o tom das declaraes pblicas da Igreja deveria ser menos enftico. A comisso buscou tambm uma forma de preservar os privilgios especiais da Igreja. (...) Mdici usou a comisso para manter o dilogo com os bispos, pois o regime precisava da aprovao pblica da instituio como meio de preservar a imagem internacional de justia e progresso (...) Os bispos, porm, usavam a comisso para forar o regime a reconhecer que as foras de segurana torturavam prisioneiros, assassinavam, provocavam desaparecimentos. 41

A existncia da Comisso Bipartite representou a continuidade do objetivo histrico entre as duas instituies: Igreja e Estado.

4.2 As Bases Hierrquicas na Igreja aps 1978 e a Questo da AL

41

Ibidem, 2006, p.22.

29

A ao dos grupos com tendncias de esquerda no interior da Igreja foi a grande marca da resistncia Catlica ao regime implantado. Porm, pesava sobre os membros da Teologia da Libertao suspeitas referentes ao incentivo a violncia, chamada guerrilha justa42 ou, ao menos, ao acirramento de conflitos, politizao da f dos agentes de pastoral, desrespeito religiosidade piedosa do povo simples, atitudes extremamente crticas instituio eclesistica, entre outras. A Teologia da Libertao causou na sociedade da poca um impacto contraditrio. Para os pobres e oprimidos pela violncia do regime autoritrio, foi um referencial indiscutvel de resistncia e esperana. Mas para outros segmentos da sociedade, e no interior da prpria Igreja, foi o grande inimigo a ser combatido regressivamente at as raias do assassinato de seus protagonistas.43Como foi caso do lder da Pastoral Operria de So Paulo, Santo Dias, morto durante uma greve no ABC em 1979. As CEBs foram o bero da grande maioria dos movimentos populares de So Paulo. O nascimento do prprio Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) tiveram incio no seio da TdL, dado ao seu carter excessivamente poltico. Embora neste perodo estivesse em estruturao a chamada Igreja dos Pobres, a Igreja Conservadora manteve influncia predominante no Brasil. A eleio do

42

Haviam correntes dentro da prpria TdL admitiam a possibilidade de uma revoluo social por meios armados. 43 Revista Histria Viva, 2006, p. 49.

30

Cardeal Karol Wojtyla - um dos componentes da bancada conservadora durante o Conclio Vaticano II - para ocupar o posto de Sumo Pontfice, revela a hegemonia da Igreja Conservadora e o interesse destes em manterem a ordem vigente. Karol Wojtyla, sob a alcunha de Joo Paulo II, foi o primeiro Papa no italiano. Nascido na Polnia conheceu profundamente a realidade de uma nao que tem seus direitos cerceados pelo regime comunista. Durante todo seu pontificado manteve uma postura intransigente referente aos princpios dogmticos da f. Embora tenha privilegiado o espiritual e incentivado a Igreja a ao pastoral, quis alienar a Igreja quanto a uma autntica participao poltica. Desde 1974 os escritos da TdL e a postura e posicionamento poltico dos telogos da libertao estiveram sob observao do Vaticano, que tinha srias reservas quanto a teologia latino-americana. Identificamos claramente esta postura durante a terceira Conferncia Episcopal da CELAM, realizada em Puebla no ano de 1979. Joo Paulo II em seu discurso de abertura evidenciou o posicionamento da Igreja em relao as tendncias marxistas que influenciavam as comunidades latinoamericanas:Se pretende mostrar a Jesus como comprometido politicamente, como um lutador contra a dominao romana e contra os poderes, e inclusive implicando na luta de classes. Esta concepo de Cristo como poltico, revolucionrio, como o subversivo de Nazar, no se coaduna com a catequese da Igreja. (...) No aceita a posio daqueles que misturavam as coisas de Deus com atitudes meramente polticas.44

No texto oficial da Conferncia de Puebla em momento algum citado o termo Teologia da Libertao. Contudo, a segunda parte do documento, intitulado:44

Conferncia de Puebla, 1979, p. 19.

31

Desgnio de Deus sobre a realidade da Amrica Latina, condensa a posio da Igreja no que tange a violncia no continente, a situao do povo, com relao f ameaada pelo marxismo. O relator aborda a questo da libertao atrelada promoo humana realizada pela Doutrina Social da Igreja. Salienta ainda que os ministros da Igreja precisam ter discernimento quanto s novas ideologias e partidos polticos:O risco da ideologizao a que se expe a reflexo teolgica partindo de uma prxis que recorre anlise marxista. Suas conseqncias so a total politizao da existncia crist, a dissoluo da linguagem da f, das cincias sociais e o esvaziamento da dimenso da dimenso transcendental da salvao crist.45

Durante os quinze dias da Conferncia de Puebla em nenhum momento foi permitido aos telogos da libertao que se expressassem ou se defendessem das acusaes feitas a eles. Outro fato relevante para este trabalho de pesquisa, no aconteceu no Brasil, mas na Nicargua durante o perodo que se sucedeu a ditadura de Anastcio Somoza. Neste pas muitos padres participaram ativamente das guerrilhas apoiando os revolucionrios sandinistas. Os religiosos participantes do movimento chegaram a compor o governo revolucionrio institudo, contrariando as ordens do Papa. No ano de 1983, o Papa Joo Paulo II esteve em visita pastoral na cidade de Mangua, na Nicargua. Ernesto Cardenal, padre que ocupava o cargo de Ministro da Educao, integrava a comitiva de recepo do Papa foi duramente repreendido por ele diante das cmeras de televiso. Joo Paulo exigia que o padre tomasse alguma providncia com relao aos ativistas da TdL. Momentos mais tarde45

Ibidem, 1979, p. 228

32

durante a Celebrao da Santa Missa, o Papa percebeu que o mural que compunha o altar reproduzia os rostos de Augusto Csar Sandino e Che Guevara. Aquela celebrao foi marcada pela exaltao da multido de fiis composta por grupos opostos sandinistas e grupos de direita que por trs vezes interromperam o discurso do Papa que pedia silncio. O pontfice no escondeu sua irritao com a catica manifestao, que lhe parecia orquestrada pelos telogos da libertao em associao com os sandinistas.46 Aquela visita do Papa Amrica Central foi o alerta para a excessiva politizao do povo e para os resultados da aproximao entre a Teologia da Libertao e o marxismo. O Papa neste momento temia um novo cisma na Igreja.

4.3 Perseguio e Autoritarismo Eclesial

As reservas do Papa com relao a TdL no se deveu somente aos incidentes da Nicargua durante sua visita pastoral. Naquele mesmo perodo no Brasil, o frei da Ordem dos Frades Menores Leonardo Boff autor de livros como O Caminhar da Igreja com os Oprimidos; O Pai Nosso: Orao da Libertao Integral; E a Igreja se fez Povo e Jesus Cristo Libertador, entre outros lanou o livro intitulado Igreja: Carisma e Poder, publicado pela editora Vozes em 1981, muito relevante para o destino da TdL no Brasil a partir de ento.

46

Disponvel em: oglobo.globo.com/especiais/papa/teologia.asp. Acesso em 24. mar. 2006.

33

Neste livro Leonardo Boff faz srias crticas s estruturas da Igreja e originado de uma srie de palestras e conferncias realizadas em todo o Brasil por Boff desde o incio da dcada de 1970. O autor faz uma anlise da histria da Igreja e seu passado de dominao, apresenta a Teologia da Libertao como a oportunidade para que este quadro seja revertido. Leonardo Boff analisa a atual estrutura da Igreja como uma extenso da dominao do Imprio Romano. Afirma que no interior da Igreja existem manifestaes de autoritarismo, semelhantes quelas impostas sociedade civil da poca. Trata do caso de um bispo que teria agido de forma autoritria ao proibir as aes pastorais das CEBs.Decide desmantelar todo um trabalho de base, envolvendo dezenas de comunidades eclesiais, presbteros, religiosas, agentes de pastoral e, sem prvia discusso, transfere os procos, literalmente expulsa de sua diocese (arqui) as religiosas, demite os agentes de pastoral leigos e deixa a comunidade perplexa.47

Quanto s acusaes de seguimento de idias marxista, Boff reagiu numa dura comparao entre a figura do Papa - com relao aos demais membros da hierarquia da Igreja - e o secretrio geral do Partido Comunista da Unio Sovitica, evidenciando a lgica do poder centralizador.As duas burocracias dispunham de organizaes especializadas, entre as quais aquelas encarregadas do policiamento da doutrina, de sua propaganda, dos relacionamentos internacionais. Possuam uma importncia particular. Tanto uma como outra contavam com assemblias internacionais longamente preparadas para resolver problemas tericos, para reforar o controle por

47

BOFF, L. 1982. p. 82.

34

parte do dirigente supremo, para fazer face s crises e cises: os conclios e snodos de um caso, as conferncias dos partidos comunistas do outro.48

O autor expe seu pensamento a respeito da Igreja e a luta da justia e pelo direito dos pobres.49 Aproxima a questo teolgica e a questo da prtica religiosa. Fala do reducionismo religioso encurtamento da f - e do reducionismo poltico encurtamento da misso da Igreja. Ao longo de todo texto Boff salienta a sincronia entre as idias da TdL e os escritos produzidos nos ltimos anos pela Igreja: Conclio Vaticano II, Medelln e Puebla. Um dos pontos mais polmicos desse texto se refere a violao dos direitos humanos dentro da Igreja. Aponta com violao de direitos humanos a eleio desde o papado ao presbiterato, realizadas sem a consulta popular.Os dirigentes so escolhidos por cooptao dentro do crculo restrito daqueles que detm o poder eclesial, imposto s comunidades, marginalizando a imensa maioria de leigos, mesmo aqueles que possuem atualmente grande qualificao profissional, intelectual e at teolgica. 50

A realizao de snodos e conclios onde o direito de expresso dado somente aos bispos, excluindo a participao de sacerdotes. Quando os grupos de sacerdotes se organizaram foram imediatamente alvos de suspeitas e presses superiores. Neste momento Leonardo Boff se referia ao fato ocorrido em Puebla, durante o terceiro encontro da CELAM, quando aos sacerdotes adeptos da TdL no foi dada a palavra para explanao das reais diretrizes da teologia latinoamericana.

48 49

Ibidem, 1982, p. 92. Ibidem, 1982, p. 42 50 Ibidem, 1982, p. 61.

35

As crticas se dirigem ainda ao destino incerto dado aos padres que deixam o sacerdcio; ao tratamento dado s mulheres no seio da Igreja relacionado diretamente a excluso do acesso aos cargos ministeriais ligados ao sacramento da Ordem; o tratamento dado aos homossexuais e divorciados; a liberdade na formao de opinio e censura dos meios de comunicao na Igreja, por parte do Estado e do alto clero fato ocorrido com Dom Hlder Cmara. Boff conclui o captulo criticando a doutrina e a disciplina no interior da Igreja. Neste momento ele se dirige diretamente Sagrada Congregao para a Doutrina da F (SCPDF), antigo Santo Ofcio e Santa Inquisio. Acusa o rgo eclesistico da execuo de torturas psicolgicas, pois daria andamento a processos judiciais (Direito Cannico) sem o conhecimento do prprio acusado, sem direito a um advogado. Antes mesmo da pronncia do acusado -lhe imposta uma punio. A se exerce uma autoridade que, para o sentido do direito atual, cerceia uma srie de direitos humanos consagrados at por sociedades manifestadamente atias.51 A informao com relao ao que teria ocorrido entre a publicao do livro e a interveno do Prefeito da SCPDF conflitante. A informao coletada entre membros da TdL e ratificada pela matria Teologia da Libertao publicada pelo O Globo Online, indica que teria partido de Dom Eugenio de Arajo Sales, ento Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, em 1984 a denncia contra o livro Igreja, Carisma e Poder, que foi encaminhada ao Vaticano. Porm, em entrevista ao reprter Jos Maria Mayrink, do jornal O Estado de So Paulo, publicada na51

Ibidem, 1982, p. 66-67.

36

Revista Histria Viva, Dom Eugenio nega que tenha partido dele o processo de cassao do telogo Leonardo Boff.52 Podemos afirmar, contudo, que muitas foram as crticas ao livro publicado. Em junho de 1982 viria a primeira crtica pblica, por meio de um artigo divulgado pelo Jornal do Brasil, sob o ttulo de A eclesiologia militante de Leonardo Boff, frei Boaventura Kloppengurg. Tal artigo evidencia a divergncia de opinies entre os prprios telogos da TdL. Porm foi em 1984 que um documento, da autoria do ento Prefeito da Sagrada Congregao para a Doutrina da F, Cardeal Joseph Ratzinger, que repreende as prticas da TdL causou grande polmica na Itlia. O documento publicado pela revista italiana "30 Giorni, foi publicado no Brasil pelo jornal Folha de So Paulo na edio de 24 de maro, na ntegra e acompanhado de uma resposta dos irmos Leonardo Boff e Clodovis Boff. O Cardeal Ratzinger afirmava que era preciso dizer que quando se chega a compreender a opo fundamental da TdL, no se pode negar que no conjunto ela contm uma lgica quase impugnvel.53 No corpo do documento, admite que o Conclio Vaticano II foi um momento de ruptura, mas critica os crditos atribudos s cincias sociais, indicando a todo o momento a incoerncia do discurso da TdL, frente ao discurso tido como oficial. A semelhana entre os problemas do terceiro mundo Amricas, frica e sia leva os telogos a concentrarem-se nos temas voltados para a TdL. Mas ainda que seja uma teologia cujo centro a questo da Amrica Latina ou o terceiro mundo,52 53

Revista Histria Viva, 2006, p.29. Jornal Folha de So Paulo, 1984, p.46.

37

no pode ser pensada sem a influncia determinante de filsofos europeus e at mesmo norte-americanos.54 Quanto interpretao da Bblia, o Cardeal cita Bultmann55 que ao lado de Marx seria o referencial da TdL - que teria criado um conceito de Jesus histrico, que se apresenta separado por um abismo do Jesus da F, por considerar a Tradio como algo irreal, e a partir dele teria sido estimulada a busca de uma nova interpretao, um novo significado. Seria Bultmann, responsvel pela abertura a novas interpretaes, fazendo uso das cincias, mas que se apresentariam historicamente insustentveis. Permite a fuso do horizonte bblico com a idia marxista da histria que procede dialeticamente como autntica portadora da salvao. (...) Pode-se dizer que o conceito de histria absorve o conceito de Deus e Revelao.56 A TdL daria nova interpretao a trs conceitos bsicos: F, Esperana e Caridade, segundo o telogo J. Sobrino. F, como fidelidade; Esperana, como confiana no futuro e como trabalho para o futuro; Amor como opo pelos pobres, que coincide com a opo pela luta de classes.57 O Sermo da Montanha estaria sendo interpretado como a opo da parte de Deus a favor dos pobres. Mas a interpretao dos pobres no sentido da dialtica marxista da histria a interpretao da escolha de uma faco no sentido da luta de classes. 5854 55

Idem. Rudolf Bultmann (1884-1976), exegeta e telogo luterano alemo fez uso da filosofia para expressar de forma existencial os textos do Novo Testamento. Atribuindo vida de Jesus de Nazar fundamentos e sentidos novos e adaptando exegese tradicional a linguagem do homem contemporneo. Entende que preciso acabar com os mitos indispensvel para evangelizar. 56 Jornal Folha de So Paulo, 1984, p.46. 57 Idem. 58 Idem.

38

A resposta de autoria dos irmos Boff do prefeito da SCPDF, publicada naquela mesma edio, se limitou a prestar esclarecimentos a cerca de pontos essenciais da TdL, que conforme o documento publicado, no teriam ficado claros ao Cardeal. Destacamos ento o esclarecimento quanto a utilizao da MSA marxista, na estrutura da TdL:A TdL sempre entendeu usar o marxismo como mediao, como ferramenta espiritual, como instrumento de anlise social. Eis a o estatuto epistemolgico do marxismo e da TdL. Desta sorte no que podia teve algumas de suas categorias incorporadas ao discurso da f e no ao contrrio. Aqui a teologia est na posio de meta terica e no o marxismo. Certo, o marxismo perigoso, mas no deixa por isso de ser til em particular para o entendimento da realidade social, sobretudo quanto a pobreza e a superao. Mas no porque um instrumento perigoso que deixa de ser usado, especialmente quando se precisa de um e no vemos outro melhor.59

Esta resposta pblica deu incio a um processo que durou pouco mais de um ano. Uma carta de advertncia, num tom mais incisivo, foi envida diretamente a Leonardo Boff, fazendo crticas diretamente a seu livro e sua postura. Nesta o prefeito exige uma retratao e submisso hierarquia e reconhecendo os pontos de distanciamento com a f professada pela Igreja Una Santa Catlica e Apostlica. Alguns meses depois a resposta de Leonardo Boff foi diferente daquela exigida pelo Vaticano. Leonardo Boff no reconheceu os pontos de distanciamento entre a TdL e a doutrina Catlica, ao contrrio, ratificou sua posio. Criticou novamente as estruturas da Igreja e as situaes de injustia provocadas ou por ela compactuadas.

59

Ibidem, 1984, p. 47.

39

A terceira carta foi tambm a ltima. No mais uma advertncia, mas uma notificao. Nesta o cardeal Ratzinger entende que a postura do padre, assim como os contedos do livro so perigosos e cismticos com relao s verdades de f pregadas pela Igreja. Leonardo Boff foi ento intimado a comparecer oficialmente ao Vaticano. O frei foi submetido a um processo inquisitrio, onde no havia mais as torturas fsicas, mas perduraram ainda as torturas psicolgicas, produto da insegurana jurdica dos processos doutrinrios. Boff teria entregado a Ratzinger um documento de apoio a seu trabalho assinado por 50 mil brasileiros, um fato indito at ento, pois nunca fora dada a possibilidade de defesa, e nunca antes um herege recebera o apoio de membros do alto clero. Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Alosio Lorscheider acompanharam o frei Leonardo Boff durante o exame da SCPDF.O processo aberto atendendo a acusaes sem que o prprio acusado saiba. Numa fase posterior quando j se tomaram posies dentro da prpria Congregao o acusado informado e solicitado a responder aos distintos quesitos em questo. Geralmente so frases tiradas do prprio contexto, truncadas e, no raro, mal traduzidas do original para o latim. O acusado no tem acesso s atas, nem s acusaes concretas, nem ao vrios pareceres dos telogos da Sagrada Congregao. (...) Tudo feito em segredo que, por ausncia de um direito assegurado, provoca boatos, danosos pessoa e atividade do acusado. (...) No final, ainda previamente a resposta do acusado, j vem a punio: no pode mais escrever nem falar sobre os assuntos em questo. O que resta ao acusado, geralmente, no outra coisa seno assinar a sua prpria condenao.60

Ao final do processo foi imposto ao frei o ento chamado silncio obsequioso. Dom Arns teria ainda tentado intervir, mas de nada adiantou. Ao60

BOFF, L. 1982 p, 66-67.

40

contrrio, a partir de ento viu o territrio sob sua administrao ser desmembrado, perdendo influncia.61 A punio a Leonardo Boff foi sem dvidas um fator de relevante importncia para o destino da TdL no Brasil. Embora o silncio obsequioso no tivesse durado muito mais que um ano, punir Boff - um dos mais importantes representantes da TdL no pas - significou punir e marginalizar membros de prestgio na Igreja com Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hlder de Barros Cmara, Dom Pedro Casaldliga e outros tantos sacerdotes e religiosas, homens e mulheres das CEBs, das Pastorais Sociais que lutaram por uma libertao de fato. A punio direta no se limitou ao silncio imposto a Boff, pois os bispos adeptos da TdL foram paulatinamente transferidos de dioceses e substitudos por outros mais conservadores, conforme a deciso do Papa. Contudo pode-se afirmar que nas dioceses onde os bispos mantinham postura conservadora, o termo TdL tornou-se para muitos sinnimo de heresia para aqueles que no chegaram a vivenci-la.

61

Disponvel em: oglobo.globo.com/especiais/papa/teologia.asp. Acesso em 24. mar. 2006.

41

5. CONSIDERAES FINAIS

A ao da Teologia da Libertao durante as dcadas de 60, 70 e 80 do sculo passado representou um momento mpar na histria da Igreja Catlica no Brasil, pela grandeza de sua estrutura e influncia no meio social urbano e rural. Em nenhum momento foi objetivo da TdL o rompimento com a Igreja, como temeu o Vaticano, principalmente no que tange a questo doutrinria a f na Tradio, no Magistrio e nas Sagradas Escrituras e sim romper com estruturas historicamente desiguais. A questo muito mais profunda. A abertura da Igreja s camadas populares politizadas e a democratizao quanto a sua hierarquia, representaria a interrupo de um ciclo de dominao iniciado na Idade Mdia quando a Igreja comeou a fazer uso dos mais diversos artifcios para conquistar e explorar a confiana dos fiis. Mas esta se tornou uma grande instituio, distanciou-se do povo, ignorou suas reais necessidades, e optou por no lutar pela igualdade de fato. O resultado de anos de desigualdade velada permitiu o desenvolvimento do processo que descrevemos nesta pesquisa. Compreender o que foi e a TdL no um processo fcil, mas essencialmente prtico. Conforme afirma Gil Barreto Ribeiro: somente quem entende e vive a situao do povo latino-americano que poder entend-la (a TdL) tambm.62 Uma teologia latino-americana jamais poderia ser desenvolvida, portanto pelas62

RIBEIRO, 1999, p.69.

42

academias europias. So realidades distantes, hbitos de vida diferentes e uma experincia histria oposta, de dominador e dominado, que como vimos permeia tambm as questes religiosas. Mas a TdL no desapareceu aps as sucessivas censuras impostas. Sua atuao hoje permanece, porm com menos intensidade ainda no interior. Nas grandes cidades ganharam espao as correntes menos radicais, que abandonaram a MSA marxista e se submetem totalmente hierarquia imposta. A abertura Renovao Carismtica Catlica (RCC), movimento religioso neopentecostal catlico, embora apresentado pela mdia inovador - a medida em que quebra certos protocolos litrgicos hoje uma das grandes ameaas a TdL. A RCC mobiliza grandes massas, mas no se prope a mudar sua realidade; um movimento introspectivo e no essencialmente coletivo como as pastorais sociais. Muitas dioceses no Brasil adotam a RCC na inteno de desmobilizar a ao da TdL, e esto conseguindo. Hoje os membros das CEBs so cada vez menos numerosos e a conscincia poltica dos catlicos menos crtica e cada vez mais manipuladas por bispos conforme seus interesses. Mas as idias da TdL ainda resistem. Telogos como Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff - hoje no mais frei - continuam a escrever e pregar sobre a necessidade de mudana, a gravidade da opresso e da desigualdade, sobre poltica, mas sob uma urea de utopia.

43

6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

BOFF, Clodovis. Teologia p-no-cho. Petrpolis: Vozes, 1984. BOFF, Leonardo. Igreja, Carisma e Poder. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1982. COMISSO ARQUIDIOCESANA DA PASTORAL DO TRABALHADOR. Caminhando Para Servir. Rio de Janeiro: Arq. de So Sebastio do Rio de Janeiro, 1981. CONCLUSES DA CONFERNCIA DE PUEBLA. Evangelizao no presente e no futuro da Amrica Latina. Puebla de Los Angeles: Edies Paulinas, 1979. CABRAL, Alexandre Marques. A Teologia da Libertao: O Cristianismo a favor dos Excludos. Disponvel em: Acesso em: 27. out. 2006. COMPNDIO DO VATICANO II. Constituies, Decretos e Declaraes. Petrpolis: Vozes, 1967. CROUZET, Maurice. Histria Geral das Civilizaes: A poca contempornea. So Paulo: Bertrand Brasil, 1996. O GLOBO ONLINE. Teologia da Libertao. Disponvel em: Acesso em: 24 mar. 2006. HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Extremos. So Paulo: Cia das Letras, 1995. LIBANIO, J.B.; MURAD, Afonso. Introduo Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 2.ed. So Paulo: Loyola, 1996.

44

LUCCI, Elian Alabi. A Globalizao e a Doutrina Social da Igreja. Disponvel em: Acesso em 02 nov. 2006. MINIDICIONRIO LUFT. So Paulo: tica, 1998, 13 ed. Teologia, p. 365. NETO, F. B. de Souza. Uma nova Teologia preocupa a cpula da Igreja catlica: O perigo da opo marxista. Folha de So Paulo, So Paulo, 24 mar. 1984. Primeira Leitura, p. 46 47. PIERUCCI, Antnio Flavio de Oliveira. et al. O Brasil Republicano: Economia e Cultura 1930/1964. 3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. REVISTA HISTRIA VIVA TEMAS BRASILEIROS. A Igreja Catlica no Brasil. So Paulo: Duetto Editorial, n 2, abr. 2006. 98 p. RIBEIRO, Gil Barreto. Evangelho Poltico: Discurso Social-Poltico da Igreja. Goinia: Ed. UCG, 1999. RICCI, Rud. Religio, F e Poltica. Disponvel em: Acesso em 24. mar. 2006. ROSSI, Waldemar. A Teologia da Libertao e as Transformaes do Mundo. Acesso em 24 abr. 2006. WIKIPDIA, Enciclopdia Virtual. Luta de Classes. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2006.