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TEORIA DO DISCURSO, CONSTRUTIVISMO FILOSÓFICO E RAZÃO PRÁTICA
ALEXANDRE GARRIDO DA SILVA*
Sumário: 1. Introdução. 2. Direitos humanos, Constituição e discurso de legitimação: 2.1.
Legitimação, justificação e fundamentação: distinções conceituais. 2.2. Razão prática,
legitimação e aplicação do Direito. 2.3. Da fundamentação à legitimação: em busca de um
conceito desnaturalizado de legitimação. 3. A legitimação teorético-discursiva dos direitos
humanos e da Constituição no pensamento de Robert Alexy. 4. Considerações finais:
possibilidades teóricas e limites práticos da teoria do discurso. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução:
A temática da legitimação, justificação ou fundamentação dos direitos humanos, dos
princípios constitucionais e do ordenamento jurídico passou a conviver, em tempos de pós-
positivismo e de neoconstitucionalismo, com o plano das preocupações teóricas e práticas sobre a
efetividade dos direitos e instituições jurídicas, políticas e sociais. O problema da legitimação tem
projetado transformações metodológicas fundamentais na prática constitucional, abrindo oDireito Constitucional e suas normas à avaliação moral e introduzindo profundas mudanças no
estilo doutrinário dos juristas e na prática de motivação das decisões judiciais, principalmente no
âmbito da jurisdição constitucional.
Número 02 - 2008 - Salvador - Bahia - Brasil
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Essa nova constelação de idéias que informa a práxis constitucional no pós-positivismo1
foi sintetizada pelo jusfilósofo argentino Carlos Santiago Nino. As normas, convenções e práticas
positivas que presidem as constituições históricas, esclarece Nino, “não são premissas doraciocínio justificatório, mas objeto de justificação no primeiro estágio daquela argumentação2”.
Neste sentido, o autor postula um “teorema fundamental da teoria jurídica3”, segundo o qual a
constituição ideal dos direitos, integrada pelos direitos fundamentais, pela participação
democrática e pelos princípios liberais de justiça social, apresenta-se como parâmetro normativo
responsável pela legitimação das diferentes constituições historicamente existentes4. O discurso
jurídico não constitui, segundo esse entendimento, um discurso insular ou “fechado” às razões de
ordem pragmática, ética e moral
5
. A argumentação jurídica integra, sobretudo nas controvérsiasconstitucionais, um discurso de justificação mais amplo e conectado com os princípios morais 6.
Com apoio no estudo da argumentação judicial empreendida em casos controversos na história
jurisprudencial argentina, o autor conclui no sentido de que “a validez de certo ordenamento
1 Adotaremos os termos “pós-positivismo” e “não positivismo” como expressões sinônimas. O
neoconstitucionalismo é aqui mencionado em sua versão não positivista, influenciada principalmente pelas reflexõesfilosóficas e metodológicas de Robert Alexy, Ronald Dworkin e Carlos Santiago Nino. Segundo esta versão, ofenômeno empírico de “constitucionalização do direito”, o ideal compreensivo de uma Filosofia do Direito aberta àscontribuições da Filosofia Política e da Filosofia Moral, bem como o abrandamento da rígida dicotomia positivistaentre a descrição (ser) e a prescrição (dever-ser), conduzem necessariamente a uma crítica e revisão das tesesfundamentais que definem o positivismo jurídico. Em especial, o neoconstitucionalismo não positivista questiona adicotomia entre o Direito e a Moral para fins de identificação do fenômeno jurídico, tese esta defendida pelopositivismo em sua dimensão metodológica ou conceitual.2 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997. p. 70.3 Id ., ibid ., p. 70. Neste sentido, assevera o autor: “Este teorema sostiene que las acciones y decisiones, comoaquellas que se toman respecto de problemas constitucionales, no pueden ser justificadas sobre la base de normaspositivas tales como la constitución histórica, sino sólo sobre la base de razones autónomas, que son, al fin decuentas, principios morales. Presumiblemente aquellos principios morales establecen un grupo de derechosfundamentales.” (id ., ibid ., p. 70). De acordo com o autor, os direitos fundamentais constitucionais são, em últimainstância, direitos morais (moral rights), pois compartilham características comuns aos princípios morais, tais como:autonomia, publicidade, universalidade, generalidade, dentre outros (Cf. Id ., ibid ., p. 73).4 Confira, neste sentido, o excelente artigo de: TORRES, Ricardo Lobo. “A constituição ideal dos direitos: oliberalismo igualitário na obra de Santiago Nino”. In: MACEDO, Ubiratan Borges de (Org.). Avaliação crítica da proposta de democracia deliberativa. Rio de Janeiro - Londrina:Edições Humanidades, 2002, p. 23-32.5 Sobre a importante distinção conceitual entre razões pragmáticas ou instrumentais, ético-existenciais, ético-políticas e morais, confira: HABERMAS, Jürgen. “Acerca do uso pragmático, ético e moral da razão prática”. In:HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: InstitutoPiaget, 1999. p. 101-118.6 NINO, Carlos Santiago. Derecho, moral y política: una revisión de la teoría general del derecho. Barcelona:Editorial Ariel, S. A., 1994. p. 97 et seq.
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jurídico não pode fundar-se em regras desse mesmo sistema jurídico, mas deve derivar de
princípios externos ao próprio sistema7”.
A preocupação com a legitimação dos direitos foi olvidada durante aproximadamente ostrês primeiros quartos do século passado pela reflexão jusfilosófica, sendo retomada nas décadas
de sessenta e setenta, particularmente com a publicação – dentre outros importantes livros – da
célebre obra intitulada Uma Teoria da Justiça de John Rawls8. Também contribuiu para a difusão
da presente temática a publicação, em diferentes idiomas, de inúmeros ensaios, coletâneas e
livros elaborados por renomados autores oriundos de distintas áreas dos pensamentos jurídico,
filosófico, político e social9.
A reflexão filosófica sobre a legitimação dos direitos humanos e dos direitosfundamentais tem como objetivo delimitar, em seus contornos gerais, um conjunto de “princípios
fundamentais garantidores de um mínimo ético a ser respeitado pelo direito positivo10”. Esta
minima moralia funcionará como um contraponto normativo e crítico das instituições, decisões
judiciais e práticas sociais historicamente vigentes em uma determinada sociedade.
Consoante France Farago, “legitimar alguma coisa significa demonstrar a justeza, seu
bem fundado11”. Neste sentido, o discurso de legitimação almeja justificar, aduzir boas razões,
isto é, argumentar em favor da validade jurídica e moral das práticas, normas e instituições
positivas. O tema da legitimação constitui um dos cânones de investigação da filosofia prática – e
também da filosofia do direito – que se debruça sobre a questão de como justificar a facticidade
7 Id ., ibid ., p. 62.8 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: MartinsFontes, 1997. A presente obra foi originalmente publicada em inglês pela Harvard University Press em 1971.9 Apenas citarei um breve elenco sem a pretensão de exaurir a temática: DANIELS, Norman (ed.). Reading Rawls:critical studies on Rawls’ A Theory of Justice. Stanford, California: Stanford University Press, 1989; POGGE,Thomas W. Realizing Rawls. Ithaca: Cornell, 1989; LADRIÈRE, Jean. VAN PARIJS, Philippe (Dir.). Fondementsd’une Théorie de la Justice: essais critiques sur la philosophie politique de John Rawls. Louvain-la-Neuve: Éditionsde L’Institut Supérieur de Philosofie, 1984; Audard, Cathérine et al. Individu et justice sociale: autour de John Rawls. Paris: Seuil, 1988; MUNOZ-DARDÉ, Véronique. La justice sociale: le libéralisme égalitaire de John Rawls.Paris: Nathan Université, 2000; KUKATHAS, Chandran. PETTIT, Philip. Rawls: “Uma Teoria da Justiça” e osseus críticos. Lisboa: Editora Gradiva, 1995; GARGARELLA, Roberto. Las teorías de la justicia después de Rawls:un breve manual de filosofía política. España: Ediciones Paidós Ibérica, 1999; no Brasil, confira a excelentecoletânea: FELIPE, Sônia T. (Org.). Justiça como eqüidade: fundamentação e interlocuções polêmicas (Kant, Rawls, Habermas). Florianópolis: Editora Insular, 1998; confira, também, o excelente livro de: VITA, Álvaro de. A justiçaigualitária e seus críticos. São Paulo: UNESP, 2000.10 MAIA, Antônio Cavalcanti. “Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia”. In: MELLO,Celso D. de A., TORRES, Ricardo L. (Orgs.) Arquivos de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000.v. 2. p. 05.11 FARAGO, France. A justiça. Tradução de Maria Jose Pontieri. Barueri, São Paulo: Manole, 2004. p. 162.
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ou a coercibilidade do direito, bem como o merecimento de sua obediência pelos destinatários de
suas prescrições normativas. O direito, como bem lembra Jürgen Habermas, “reclama não apenas
aceitação; ele demanda dos seus endereçados não apenas um reconhecimento fático, mas antesreivindica merecer o reconhecimento12”.
No entanto, ao mesmo tempo em que vislumbramos o auge – ou o rápido caminhar em
sua direção – das reflexões jusfilosóficas sobre a legitimação dos direitos humanos e da
Constituição – demonstrável a partir da análise do crescente número de publicações e autores
dedicados ao tema13 – verificamos, também, o endereçamento de contundentes críticas filosóficas
à viabilidade teórica e, principalmente, à pertinência prática do empreendimento filosófico de
legitimação dos direitos humanos e fundamentais, das instituições jurídicas e dos princípiosconstitucionais.
O discurso de legitimação encontra-se, neste início de século, posto duplamente à prova.
Em primeiro lugar, é questionado com relação à possibilidade ou não de justificação racional –
ou razoável – da pretensão de universalidade dos direitos humanos e fundamentais como
referenciais normativos indispensáveis para a avaliação da justeza dos ordenamentos jurídicos e
instituições político-sociais nacionais no mundo contemporâneo. Em segundo lugar, o esforço
filosófico de legitimação é criticado – sob o prisma pragmático – no que se refere à sua utilidade
social ou contribuição para o incremento do grau de efetividade de tais direitos em sociedades
liberais e democráticas ou não. Deste modo, o discurso de legitimação é percebido pelos seus
críticos como um empreendimento eminentemente academicista, excessivamente abstrato e
desconectado da prática de lutas e de definição de estratégias políticas que objetivam a garantia e
12 HABERMAS, Jürgen. “Acerca da legitimação com base nos direitos humanos”. In: HABERMAS, Jürgen. Aconstelação pós-nacional. Tradução de Márcio S. Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 144, grifo no original. Odireito moderno, explica o autor, “deixa os seus endereçados livres para ou observarem as normas apenas como umarestrição fática [ faktisch] do seu âmbito de ação – e se ajustarem a um relacionamento estratégico com asconseqüências calculáveis das possíveis violações das regras – ou quererem obedecer as prescrições ‘por respeitodiante da lei’. (...) Normas jurídicas devem ser feitas de tal modo que possam ser vistas ao mesmo tempo sobaspectos diferentes como leis coativas e como leis da liberdade. Deve ser no mínimo possível seguir normas jurídicasnão porque elas coagem, mas sim porque são legítimas. A validade [Gültigkeit ] de uma norma jurídica afirma que opoder estatal garante ao mesmo tempo positivação jurídica legítima e execução judicial fática” ( Id ., ibid ., p. 145).13 Sem a pretensão de esgotar a temática, confira: BARBOSA, Ana Paula Costa. A legitimação dos princípiosconstitucionais fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002; FERNANDEZ, Eusebio. Teoría de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991; FERRAJOLI, Luigi et al. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Eitorial Trotta, 2001; MERLE, Jean-Christophe. MOREIRA, Luiz (Orgs.). Direito elegitimidade. Tradução de Claudio Molz e Tito L. C. Romão. São Paulo: Landy Editora, 2003; NINO, CarlosSantiago. Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. 2ª edicción. Buenos Aires: Editorial Astrea,1989; TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
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a promoção in concreto dos direitos humanos e fundamentais nos planos jurídicos interno e
internacional.
A opção pela legitimação já implica, de antemão, a assunção de alguns pressupostosteóricos e práticos que necessitam, consoante vimos, também de justificação. Os dois
pressupostos fundamentais são: em primeiro lugar, o ideal de racionalidade prática, isto é, a
possibilidade de discussão racional sobre questões relativas ao nosso agir e à justificação de
normas. Esse ideal de racionalidade prática não se confunde com a tentativa de aplicação (ou
simples transposição) da racionalidade técnico-instrumental (isto é, racionalidade meio-fim ou
teleológica) às questões práticas, amplamente difundida nas teorias econômicas contemporâneas
e em suas aplicações no campo do Direito (por exemplo, law and economics). A idéia de razãoprática – no caso da teoria do discurso, uma razão comunicativa – constitui o pressuposto teórico
fundamental das tentativas de legitimação dos direitos humanos14. Em segundo lugar,
encontramos o pressuposto prático de que o esclarecimento racional do conteúdo, da
universalidade de sua validade e das funções normativas dos direitos humanos e fundamentais
contribuem, de modo significativo, para o respeito, a defesa e a implementação desses direitos
nas sociedades contemporâneas, sejam elas liberais e democráticas ou não. Esses pressupostos,
no entanto, não são objetos de um consenso jusfilosófico; bem longe disso, eles são amplamente
tematizados e questionados por diferentes e importantes correntes do pensamento filosófico e
jurídico15.
14 A teoria do discurso desenvolvida por Jürgen Habermas e Robert Alexy postula, ao lado da racionalidadeinstrumental, outro paradigma de racionalidade na modernidade, indispensável para a compreensão das questõespráticas (moral, política e direito), que é o da racionalidade comunicativa orientada para o entendimento mútuo.Confira, em especial, sobre a distinção entre os dois paradigmas de racionalidade: HABERMAS, Jürgen.“Racionalidade do entendimento mútuo: explanações sobre o conceito de racionalidade comunicativa segundo ateoria dos atos de fala”. In: HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton C.Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 99-132.15 Cf. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Editora Perspectiva,2005. p. 32: “Na pós-modernidade, o eterno passa a ser o contingente; o universal, ilusório, e a metafísica, umainvenção sem sentido. Esboroa-se, portanto, a idéia de fundamentos para a política, o direito, a ética e as relaçõessociais. Tudo passa a ser relativo, localizado e efêmero. (...) Como justificar, nessas condições, a atualidade daDeclaração Universal dos Direitos Humanos, erigida sobre fundamentos iluministas, racionais e humanistas, numsomatório (desequilibrado) de insumos das correntes liberal e socialista da modernidade? Como defender a idéia de“direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade e da paz no mundo”? Como insistir na afirmação deque “todas as pessoas são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito defraternidade”? Como universalizar tais direitos, construídos historicamente na tradição ocidental, sem conferir-lhesfeições imperialistas? Tais perguntas não comportam respostas fáceis”.
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Em primeiro lugar, elaboraremos algumas importantes distinções analíticas com o
objetivo de esclarecer o significado dos conceitos de “legitimação”, “fundamentação” e
“justificação” para, em seguida, apresentarmos a estratégia teorético-discursiva defundamentação dos direitos humanos elaborada por Robert Alexy, aproximando-a – é importante
ressaltar – do conceito de legitimação, bem como de seus pressupostos dialógico, construtivista e
falibilista. Por último, discutir-se-á sobre os limites teóricos e as possibilidades práticas da teoria
do discurso para a legitimação dos direitos humanos e do texto constitucional, assim como para a
efetiva garantia e implementação de tais direitos nas sociedades contemporâneas.
2. Direitos humanos, Constituição e discurso de legitimação:
Os conceitos de legitimação, fundamentação e justificação encontram-se intimamente
relacionados com o ideal de correção das normas e do próprio ordenamento jurídico desenvolvido
por Robert Alexy, tendo em vista que “junto à pretensão de correção, o direito formula, por sua
vez, uma pretensão de fundamentabilidade (fundamentabilidad)16”. O discurso de legitimação,
consoante veremos, é um discurso especializado em fundamentar a validade (e a aplicabilidade
prima facie) de enunciados normativos e, desse modo, também a sua validade moral e jurídica. A
temática da legitimação dos direitos humanos e da Constituição exige, assim, os aportes analítico
e normativo da filosofia do direito enquanto arcabouços teóricos indispensáveis para uma análise
do fenômeno jurídico entendido discursivamente, isto é, como institucionalização da justiça ou da
razão prática.
A teoria do discurso desenvolvida e sistematizada no âmbito do direito por Robert Alexy,
dentre outras importantes notas distintivas17, apresenta-se como uma teoria constitucional ou
16 ALEXY, Robert. “Derecho y corrección”. In: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia. Traducciónde José A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 35.17 Consoante a sistematização proposta por José Antonio Seoane, a teoria da justiça elaborada por Robert Alexy podeser classificada como: (a) uma teoria jurídica da justiça, tendo em vista que, ao lado da dimensão ideal e moral dodiscurso prático, Robert Alexy ressalta a necessidade do direito para a institucionalização da justiça e, portanto, darazão prática; (b) é, também, uma teoria procedimental da justiça que, no entanto, tem sofrido uma progressiva“rematerialização” com o destaque conferido pelo autor ao argumento da injustiça e, consequentemente, aos direitoshumanos básicos e sua importância fundamental para a definição de um conceito não positivista de direito; (c) é umateoria liberal analítica da justiça, cujos elementos centrais são a liberdade, a igualdade e a democracia; (d) é, emoutras palavras, uma teoria jusfundamental da justiça, cujo núcleo está integrado, sobretudo, pelos direitos humanos
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constitucionalista da justiça, segundo a qual, assevera o autor, “a Constituição se converte, deste
modo, no primeiro objeto da teoria discursiva da justiça18”. A Constituição, situada no centro do
ordenamento jurídico, passa a constituir a base normativa sobre a qual são plasmados oselementos materiais e procedimentais da teoria do discurso, em especial: os direitos humanos
básicos sob a forma de direitos fundamentais, uma série de procedimentos institucionais para a
criação democrática e adjudicação do direito, bem como uma determinada estrutura política
representada pelo Estado constitucional e democrático de direito. Neste sentido, disserta José
Antonio Seoane:
As questões de correção e de justiça devem ser racionalmente fundamentadas, e ditafundamentação tem lugar mediante o discurso. São traços essenciais de uma teoriadiscursiva da justiça a liberdade e a igualdade das pessoas, a neutralidade e aobjetividade dos argumentos. Isso conduz a duas notas: o caráter procedimental e ocaráter ideal, que no caso da teoria jurídica da justiça são complementados ecompensados com o caráter institucional e o caráter material. Tudo isso desemboca, finalmente, na Constituição, que se converte, assim, no ponto de referência operativo dateoria da justiça de Alexy.19
Neste momento, é importante chamar a atenção do leitor para algumas possíveis
aproximações e distinções conceituais, bastante sutis, porém teoricamente muito importantes,
entre os conceitos de “legitimação”, “justificação” e “fundamentação”. Em seguida, seráanalisado o emprego das expressões mencionadas em dois contextos ou paradigmas filosóficos
bastante distintos, porém amplamente confundidos – sobretudo pelos partidários do positivismo
jurídico – e tradicionalmente agrupados sob o mesmo rótulo de “renascimento ou retorno do
direito natural”.
básicos sob a forma de direitos fundamentais positivados na Constituição; (e) é, outrossim, uma teoria discursiva da justiça, centrada na teoria da argumentação e no sistema de regras que a presidem, com implicações teóricas epráticas imediatas para a argumentação jurídica; por último, destaca Seoane, (f) é uma teoria neokantiana da justiça,influenciada sobremaneira pelas reflexões de Gustav Radbruch sobre a relação entre o ideal e o conceito de Direito.Confira, no sentido acima: SEOANE, José Antonio. “Presentación”. In: ALEXY, Robert. La institucionalización dela justicia. Traducción de José A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 10-12.18 ALEXY, Robert. “Justicia como corrección”. In: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia.Traducción de José A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 63.19 SEOANE, José Antonio. “Presentación”. In: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia. Traducción deJosé A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 9, grifo nosso. Sobre a centralidade da Constituição paraa teoria discursiva da justiça, assevera o autor: “El carácter nuclear de la Constitución revalida la importancia de losderechos humanos, en su forma de derechos fundamentales. Asimismo, favorese que las normas de la justicia tenganestructura de principios, más flexible que la de las reglas, y que la ponderación aparezca como el goznemetodológico de la teoría de la justicia” (id ., ibid ., p. 9).
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Segundo esse entendimento, o “renascimento” ou “retorno” do direito natural definiria,
em um sentido muito amplo, o resgate do debate filosófico sobre os princípios e valores no
âmbito do direito a partir da segunda metade do século passado, capitaneado por autores críticosdo positivismo jurídico. Nesse sentido, os autores não positivistas filiados ao recente movimento
de reabilitação da racionalidade prática – e aqui privilegiaremos sua vertente neokantiana20 – são
tradicionalmente classificados como representantes de um “retorno” do direito natural na
atualidade21. Inadvertidamente, o não positivismo contemporâneo é interpretado e criticado a
partir de sua aproximação e identificação conceitual com o jusnaturalismo, restando obscurecidos
os seus diferentes pressupostos filosóficos22.
20 A reabilitação da racionalidade prática no âmbito do direito teve início na década de cinqüenta do século passadocom autores que resgataram e continuaram a tradição aristotélica de pensamento, em especial Theodor Viehweg eChaïm Perelman, ambos responsáveis pelo reflorescimento da tradição tópica e retórica, bem como da importânciados princípios jurídicos e da teoria da argumentação na filosofia e na metodologia do direito contemporâneas.Confira, sobre as perspectivas tópica e retórica no direito, o excelente livro de: CAMARGO, Margarida MariaLacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao Estudo do Direito. 3ª edição, revista e atualizada.Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. Por sua vez, a teoria do discurso filia-se a uma segunda vertente domovimento de reabilitação da racionalidade prática, de tradição kantiana, que teve início sobretudo com a “viradakantiana” operada na década de setenta logo após a publicação de A Theory of Justice de John Rawls. Nessa década,tivemos a publicação em 1978 da obra Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy e, cinco anos depois, apublicação do importante livro de Jürgen Habermas intitulado Consciência Moral e Agir Comunicativo em 1983,
responsável pela sistematização dos fundamentos da ética do discurso desenvolvidos pelo autor, em conjunto comKarl O. Apel, ao longo da década anterior.21 Cf. MAIA, Antônio Cavalcanti. DINIZ, Antônio Carlos. “Pós-positivismo”. In: BARRETTO, Vicente de Paula(Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo - Rio de Janeiro: UNISINOS; Editora Renovar, 2006. p.652-653. Segundo os autores, a filosofia do direito pós-positivista propõe-se a tarefa de buscar um lugar teórico paraalém do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Não obstante, é bastante comum – e também injustificada eimprecisa – a classificação dos principais autores filiados ao não positivismo (Ronald Dworkin, Robert Alexy, CarlosSantiago Nino, entre outros) como representantes contemporâneos do jusnaturalismo: “neste aspecto, Dworkin nãose encontra sozinho. Também outro avatar do pós-positivismo, Robert Alexy, é identificado por determinadosautores como integrando as fileiras jusnaturalistas por defender teses contrárias a alguns dos principais pressupostospositivistas, a exemplo de sua controvertida teoria da pretensão de correção do direito. Tanto Dworkin quanto Alexy,entretanto, rejeitam tal qualificativo na certeza de que suas idéias perfilam uma terceira via superadora dosparadigmas justeóricos preexistentes, não se confundindo com os marcos positivista e jusnaturalista”.22 É possível, no entanto, estabelecer uma aproximação histórica (isto é, sob o prisma de uma história das idéias)entre o não positivismo de Robert Alexy e a tradição do direito natural. A teoria discursiva do direito e, em especial,o seu argumento da injustiça (que aduz: “a injustiça extrema não é direito”), resgatam e, principalmente, reformulamconstrutivamente a intuição teórica fundamental do jusnaturalismo sobre a existência de direito para além do direitopositivo, ou seja, a possibilidade de definição de parâmetros morais – representados pelos direitos humanos básicos –para a avaliação do direito positivo. Além disso, ambos os posicionamentos compartilham um otimismo no potencialiluminista de racionalidade, reflexão e crítica do ser humano na modernidade. A aproximação histórica, porém, nãoimplica uma identificação conceitual ou uma aproximação entre seus distintos pressupostos filosóficos. Confira, emespecial: ALEXY, Robert. “Teoria del discurso y derechos humanos”. In: ALEXY, Robert. Teoria del discurso yderechos humanos. Traducción e introducción de Luis Villar Borda. Colombia: Universidad Externado de Colombia,1995, p. 86. No sentido acima podemos interpretar a controversa assertiva de Robert Alexy, Teoría del discurso yderechos humanos, cit ., p. 86: “La teoría del discurso rastrea de esse modo en el potencial racional existente en la
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Os dois paradigmas filosóficos supramencionados são: em primeiro lugar, o paradigma do
direito natural, de caráter metafísico e também monológico, ou seja, pertencente ao paradigma da
filosofia da consciência. Em segundo lugar, encontramos o paradigma de reabilitação daracionalidade prática, no qual se inclui – entre outras teorias de diferentes matrizes filosóficas – a
teoria do discurso de Jürgen Habermas e Robert Alexy, pós-metafísico, construtivista23 e também
dialógico (isto é, fundado na argumentação e nos pressupostos normativos inscritos na linguagem
cotidiana) e, ao mesmo tempo, crítico do positivismo filosófico e jurídico, por um lado, e do
objetivismo ético representado pelo jusnaturalismo no âmbito do direito, por outro. Deste modo,
cabe ressaltar que as expressões acima citadas (legitimação, fundamentação e justificação)
mudam de significado e, o que é ainda mais importante, erguem diferentes pretensões de“objetividade” – mais fortes ou mais fracas – quando utilizadas em um ou outro paradigma ou
contexto filosófico.
Em seguida, é importante – com apoio nas reflexões de Klaus Günther – a apresentação
da distinção entre o discurso de legitimação ou fundamentação e o discurso de aplicação do
direito, assim como os seus respectivos pressupostos teóricos e desdobramentos práticos. Ambos,
legitimação e aplicação, são responsáveis pela racionalidade do direito pós-convencional, ou seja,
de um direito pós-tradicional típico de uma sociedade “desencantada” pela modernidade (Max
Weber) e também parcialmente “desconectado” do pano de fundo (background ) de certezas da
tradição, da moral social e da religião.
realidad humana. Ella persigue en este sentido ilustración sobre la naturaleza del hombre y se encuentra en eso, perosolamente en eso, en la tradición del derecho natural”.23 Não obstante os seus pressupostos eminentemente dialógicos (isto é, fundados em uma filosofia da linguagem), ateoria do discurso aproxima-se também do construtivismo (construtivism) rawlsiano desenvolvido em alguns dosprincipais ensaios deste autor, por exemplo: RAWLS, John. “O construtivismo kantiano na teoria moral”. In:RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 111-139;RAWLS, John. “A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica”. In: RAWLS, John. Justiçae democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 199-241; bem como o célebrelivro: RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. 2ª edição. São Paulo: EditoraÁtica, 2000. p. 135-176, no qual dedica um capítulo exclusivo à temática em tela. Jürgen Habermas, inclusive,elabora remissões expressas ao construtivismo de John Rawls para delinear os principais contornos de umaconcepção construtivista de teoria do discurso. Confira, nesse sentido, em especial: HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: 2004. p. 294, nota nº 32. Vejatambém sobre o construtivismo ralwsiano a excelente definição elaborada por AUDARD, Catherine. “Glossário”. In:RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 375, grifonosso: “Um traço essencial de uma doutrina construtivista como a teoria da justiça como eqüidade está em que elanão afirma a existência de fatos morais independentes e anteriores dos quais os seus princípios seriam umaaproximação, pois isso teria como conseqüência a heteronomia. Os princípios de justiça são, ao contrário, oresultado de uma construção que expressa a concepção que têm de si mesmos e da sociedade os cidadãos autônomosde uma democracia”.
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Em segundo lugar, faz-se necessária – em tempos de uma filosofia pós-metafísica24 – a
definição de um conceito de legitimação dos direitos humanos capaz de resistir, por um lado, aos
questionamentos elaborados pelo positivismo jurídico e pelo ceticismo ético e, por outro, àstentações de um retorno metafísico e naturalista típicos de uma estratégia de fundamentação
“última” ou “absoluta” de tais direitos25. Segundo Robert Alexy:
A teoria do discurso oferece uma saída a este dilema. Por um lado, aduz o fato de que sepode argumentar de forma racional sobre a justiça. Isto nos leva para além da posiçãoemotivista-subjetivista. Por outro lado, nela não se passa por alto que uma teoria da justiça somente resulta aceitável quando tem suficientemente em conta os interesses e asnecessidades, assim como a tradição e cultura de todos os implicados. Isto converte ateoria do discurso na base de uma adequada teoria da justiça.26
Por último, é relevante elucidarmos o que queremos – e, sobretudo, o que podemos – dizer
com “objetividade” dos juízos morais e, consequentemente, dos princípios e regras que
consagram os direitos humanos a partir da diferenciação, sugerida por Jürgen Habermas e
também seguida por Robert Alexy, entre a pretensão de correção dos juízos práticos ou
prescritivos (morais e jurídicos) e a pretensão de verdade dos juízos teóricos ou descritivos. A
analogia entre verdade e correção ajudará no esclarecimento e na compreensão da pretensão de
“objetividade” das normas que são submetidas ao procedimento argumentativo da teoria do
discurso. Esta pretensão de validade revela-se deflacionada quando comparada à pretensão forte
24 O caráter pós-metafísico da filosofia do direito contemporânea reside em sua suspeita acerca do potencial deconvencimento de expressões tais como “natureza humana”, “direitos naturais”, fundamentação “absoluta”, a priori ou “última” dos princípios de justiça ante o pluralismo político e cultural que define o mundo na atualidade. Confira,no sentido acima, a importante afirmação de John Rawls, Uma Teoria da Justiça, cit ., p. 23: “Não pretendo que osprincípios de justiça propostos sejam verdades necessárias ou que possam ser derivados desse tipo de verdade. Umaconcepção de justiça não pode ser deduzida de premissas axiomáticas ou de pressupostos impostos aos princípios; aocontrário, sua justificativa é um problema de corroboração mútua de muitas considerações, do ajuste de todas aspartes numa visão única coerente”.25 Cf. ALEXY, Robert. “Justicia como corrección”. In: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia.Traducción de José A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 58-59, grifo nosso: “existen numerosasteorías sobre la fundamentación de las normas. Uno de los extremos lo integran las teorías emotivistas, subjetivistas,relativistas e decisionistas. Charles L. Stevenson es un destacado representante de esse sector. El outro extremo loconstituyen las teorías racionalistas, objetivistas, absolutistas y cognitivistas. Un notable representante de estaorientación es Max Scheler. Ninguna de estas dos posiciones extremas es aceptable. El emotivismo, en su formapura, ignora que los juicios de justicia son auténticos juicios, com los que se formula una pretensión de corrección.(...) De outra parte, el objetivismo radical asimila en exceso los juicios de justicia a juicios de hecho corrientes. Losvalores morales no existen de la misma manera que los hechos empíricos, con los cuales nuestros juicios de justiciasólo han de estar en correspondencia de algún modo para ser verdaderos”.26 Id ., ibid ., p. 59-60.
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ou inflacionada de objetividade postulada pelas teorias do direito natural no campo do direito ou
pelas diferentes modalidades de intuicionismo ético aduzidas no âmbito da filosofia moral.
Como muito bem lembra o jusfilósofo Manuel Atienza, “ser racionalista no Direito – e emgeral – significa também saber reconhecer os limites da razão27”. A teoria do discurso parte do
pressuposto de que é possível construir cânones de racionalidade para o direito sob a forma de
um “código da razão prática28” apesar do abandono – e, sobretudo, com ele – das pretensões
fortes (porém, injustificadas) de objetividade que qualificam as diferentes teorias do direito
natural.
2. 1. Legitimação, justificação e fundamentação: distinções conceituais.
O terreno da distinção analítica entre os três vocábulos supramencionados é ainda pouco
explorado. Em regra, “legitimação”, “justificação” e “fundamentação” são tidas como expressões
sinônimas na literatura sobre o tema. Uma dificuldade adicional para o propósito analítico em tela
é o caráter mais empírico ou mais normativo das diferentes tentativas de definição dos aludidos
conceitos. A “legitimação”, por exemplo, ora é definida de modo descritivo29, aproximando-se do
significado empírico e weberiano de “legitimidade”, ora recebe uma conotação fortemente
normativa, que é o seu significado mais usual na filosofia do direito e na teoria da justiça. Ao
mesmo tempo, autores que criticam o jusnaturalismo, mas compartilham a defesa do ideal de
27 ATIENZA, Manuel. “Qué puede hacer la teoría por la práctica judicial?”. In: ATIENZA, Manuel. Cuestiones judiciales. México: Distribuiciones Fontamara, 2001. p. 20.28 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica. Traducción de Manuel Atienza e Isabel Espejo. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 1989. p. 36.29 Confira, nesse sentido, CASTIGNONE, Silvana. “Legitimação”. In: ARNAUD, André-Jean et al (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Tradução de Patrice Charles, F. X. Willaume. Rio deJaneiro: Editora Renovar, 1999. p. 460: “pode-se afirmar que um regime é legitimado, e que o procedimento delegitimação está realizado, ou pelo menos que ele se mantém dentro de um estado de equilíbrio, quando no interiorde um mesmo corpo social os julgamentos de legitimidade positivos, e consequentemente atributivos de poder, estãodifundidos na maioria da população”. Há, inclusive, uma inversão entre os sentidos usuais de legitimação elegitimidade: “é preciso em qualquer caso distinguir, de um lado, o fenômeno da legitimação, que pode serconstatado e descrito pelos julgamento de fato, e de outro lado, pelas avaliações em termos de legitimidade da qualele depende” (id ., ibid ., p. 460, grifo nosso). Em sentido contrário, ao sugerir uma definição normativa delegitimação, confira: TORRES, Ricardo Lobo. “A legitimação dos direitos humanos e os princípios da ponderação eda razoabilidade”. In: TORRES, Ricardo Lobo. Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar,2003. p. 398 et seq.
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racionalidade prática, permanecem utilizando o vocábulo “fundamentação” ao lado de
“justificação” e “legitimação”, porém com uma pretensão de “objetividade” menos intensa do
que aquela tradicionalmente erguida pelas teorias do direito natural. Neste sentido, podemos citarRobert Alexy.
Apesar do aparentemente insuperável caráter polissêmico dos conceitos, é possível
distinguir dois diferentes paradigmas filosóficos que lançarão novas luzes para a compreensão
pragmática – ou seja, acerca do uso – dos conceitos em tela pelos jusfilósofos, sejam eles
positivistas ou não. Será, então, possível a construção de uma relação entre cada um dos
conceitos analisados (fundamentação, legitimação e justificação) com os seus respectivos
contextos ou paradigmas filosóficos, contribuindo, assim, para o seu esclarecimento e definição.A atribuição de denominações diferentes para conceitos que pressupõem distintos paradigmas
filosóficos contribuirá sobremaneira para o propósito analítico em tela.
A inclusão – postulada pelos autores filiados ao positivismo contemporâneo – de todos os
autores (tais como John Rawls, Ronald Dworkin, Carlos Santiago Nino, Gustavo Zagrebelsk,
Robert Alexy, dentre outros) que retomam a discussão sobre os princípios na segunda metade do
século passado, sob o mesmo rótulo do “retorno” ou “renascimento do direito natural”, obscurece
os diferentes paradigmas ou contextos filosóficos que informam as teorias mais recentes sobre a
racionalidade prática e sua aplicação no direito.
As críticas – sobretudo positivistas – endereçadas aos autores supramencionados
pressupõem a inclusão injustificada dos mesmos no paradigma filosófico do jusnaturalismo
(mesmo que de modo débil ou fraco) e, consequentemente, no contexto do debate sobre a
fundamentação, afastando-os, assim, do plano da legitimação e da justificação ao qual pertencem
como críticos do direito natural e de seu caráter metafísico, apriorístico e – consoante Habermas
e Alexy – também monológico. Neste sentido, os autores positivistas também “dramatizam30” os
diferentes pressupostos que conformam o pós-positivismo, aproximando-os do jusnaturalismo. Éconstruído, assim, uma espécie de “espantalho” ou “caricatura” do posicionamento pós-
positivista ou não positivista, cujos supostos defeitos – postos em destaque – prestam-se mais
facilmente ao questionamento filosófico elaborado pelos diferentes positivismos contemporâneos.
30 Utilizo a idéia de “dramatização” no mesmo sentido empregado por Martín Farrel em sua crítica ao nãopositivismo jurídico e à sua compreensão “caricatural” das principais teses do positivismo jurídico. Veja: FARREL,Martín D. Discusión entre el derecho natural y el positivismo jurídico?, DOXA, 21-II, p. 121-128, 1998.
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A distinção entre legitimação e justificação, por um lado, e fundamentação, por outro,
pode ser elaborada nos seguintes termos:
A noção de “legitimação” contém, em primeiro lugar, uma forte conotação dialógica 31 e,portanto, argumentativa. “Legitimação” parece ser um conceito avesso às tentativas de
fundamentação absolutas, metafísicas ou apriorísticas, e, portanto, um conceito mais dinâmico,
no sentido de que, normalmente, é o resultado de um esforço argumentativo de justificação
racional de direitos ou princípios. Muito próximo do conceito de legitimação – e de seu
significado dialógico – encontramos o de justificação. Ambos são conceitos normativos cujos
significados são intercambiáveis. Neste sentido, tanto a legitimação quanto a justificação não
pretendem descrever as práticas, regras e valores positivos de uma comunidade jurídica, masestabelecer critérios normativos de avaliação e julgamento da correção e, portanto, da justiça (ou
justeza) dos mesmos. É importante ressaltar que tanto a legitimação quanto a justificação estão
situadas no paradigma filosófico do construtivismo em direito e em moral, afastando-se,
conforme veremos, do paradigma do objetivismo ético e do jusnaturalismo, sendo este último um
reflexo do objetivismo ético no mundo jurídico.
Por sua vez, o vocábulo “fundamentação” apresenta-se como um conceito cujo
significado encontra-se excessivamente ligado às pretensões fortes de “objetividade” típicas do
jusnaturalismo. Em regra, tanto os defensores do direito natural quanto seus críticos,
principalmente os positivistas, recorrem à noção de fundamentação, bem como ao seu caráter
“último” ou “absoluto”, seja, respectivamente, para defendê-la ou criticá-la. A idéia de uma
“fundamentação de algo” e o ato de “fundamentar algo” parecem erguer duas pressuposições
teóricas alternativas: em primeiro lugar, a possibilidade do estabelecimento de um termo final em
uma argumentação sobre normas ou valores, para além do qual não é nem necessário nem
possível prosseguir com razões (isto é, a idéia de uma fundamentação absoluta, última ou
31 No entanto, o caráter dialógico não constitui uma nota definitória ou essencial do conceito de legitimação, masapenas um elemento acidental ou contingente. No âmbito da teoria do discurso, a dimensão dialógica encontra-sepresente em sua estratégia teorético-discursiva de legitimação dos direitos humanos, da democracia e daConstituição. Nesse sentido, o caráter dialógico será ressaltado em nossa análise, pois abordaremos os pressupostosteóricos e implicações práticas da estratégia alexyana de legitimação dos direitos humanos. Porém, tambémencontramos uma estratégia de legitimação construtivista e monológica – fundada na idéia de uma posição original“hipotética” assumida heuristicamente por cada pessoa de modo solitário – dos princípios básicos de justiça e daConstituição, consoante a teoria da justiça como eqüidade desenvolvida por John Rawls. Deste modo, o elementoessencial e, portanto, necessariamente presente nas duas estratégias de legitimação examinadas reside no pressupostoconstrutivista da legitimação, em oposição ao pressuposto objetivista ou naturalista da fundamentação.
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inquestionável). Ou, então, parecem pressupor uma realidade (moral) que funcionaria como um
“dado” ou “substrato” (por exemplo, a “natureza humana” ou a “natureza das coisas”) que, na
hipótese de correspondência com os nossos juízos normativos, seria responsável pelafundamentação (ou fundação) de sua validade moral.
Neste sentido, a idéia de “fundamentação” encontra-se intimamente relacionada ao
contexto ou paradigma filosófico – essencialista e monológico32 (ou solipsista) – que define o
jusnaturalismo, bem como ao ideal de uma “objetividade” que transcende a própria linguagem e,
consequentemente, o discurso prático. No entanto, aduz Jürgen Habermas em sua crítica ao ideal
de verdade como adequatio rei et intellectus, tradicionalmente adotado pela filosofia da
consciência:
Há hoje um amplo consenso sobre o fato de que a linguagem e a realidade seinterpenetram de uma maneira indissolúvel para nós. (...)Não podemos confrontar nossas proposições diretamente com uma realidade que já nãoseja, ela mesma, impregnada pela linguagem.33
O conceito de legitimação, ao contrário, encontra-se atento à interpenetração entre
realidade e linguagem. A busca pela “objetividade” dos juízos normativos migra, com a
legitimação discursiva, do plano monológico da intuição, da evidência e do acesso direto à
verdade (que definem o jusnaturalismo) para o plano dialógico (e, portanto, comunicativo) da
intersubjetividade e da justificação com apoio na argumentação e no discurso. A legitimação
ergue uma pretensão deflacionada de objetividade em comparação à forte pretensão postulada
pelo jusnaturalismo. “Deflação” não significa uma tentativa de justificação menos rigorosa, mas
o máximo de legitimação que podemos oferecer em nome da objetividade dos juízos práticos
proferidos em tempos de uma filosofia pós-metafísica. Com a legitimação, a idéia de
“objetividade” aproxima-se do ideal de uma justificação sob condições argumentativas exigentes
(ideais ou contrafáticas) inscritas na práxis normativa do discurso prático, afastando-se, portanto,
da noção de verdade como correspondência. Essa justificação é construída e imanente ao discurso
e às razões aduzidas por seus partícipes. Em um pensamento pós-metafísico, marcado pelo
paradigma da filosofia da linguagem, não é mais possível postular uma justificação que
32 O caráter monológico da fundamentação constitui uma nota essencial para a definição do conceito sob exame.33 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos, cit ., p. 281.
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transcenda a linguagem e o discurso. Neste sentido, assevera Jürgen Habermas sobre o conceito
de validade no âmbito da teoria do discurso:
(...) só são válidos os juízos e normas que, do ponto de vista inclusivo da igualconsideração das reivindicações pertinentes de todas as pessoas, poderiam ser aceitospor boas razões por parte de cada pessoa envolvida.34
A teoria do discurso afasta-se, portanto, do pressuposto realista de que os juízos
normativos, à semelhança dos descritivos, podem ser “verificados” ou “confrontados” com uma
realidade moral que independe da linguagem cotidiana, da argumentação e do próprio discurso
empreendido pelos participantes sobre questões práticas que necessitam ser resolvidas em seu
cotidiano. Consoante veremos adiante, o discurso de legitimação comporta sempre algum grau de
falibilismo35, daí estar sempre aberto a novos questionamentos teóricos e práticos e, portanto, a
processos ulteriores de justificação36. Além disso, todo discurso de legitimação precisa ser
complementado por discursos de aplicação cuja principal função é atentar para a relevância de
circunstâncias concretas não previstas pelo procedimento discursivo de legitimação responsável
pela validação das normas.
Outro conceito próximo ao de “fundamentação” e, portanto, passível das mesmas críticas,
é o de “fundamento”. A idéia de um “fundamento” remete-nos para a indagação sobre “a causa,origem ou fonte do ordenamento jurídico e dos direitos37”, constituindo um conceito muito caro
34 Id ., ibid ., p. 294. Confira também a definição do princípio “U” – princípio de universalização – pelo autor emHABERMAS, Jürgen. “Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso”. In: HABERMAS,Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: EdiçõesTempo Brasileiro, 1989. p. 86, grifo no original: “assim, toda norma válida deve satisfazer a condição [de] que asconseqüências e efeitos colaterais que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dosindivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos atodas as conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem)”.35 HABERMAS, Verdade e justificação: ensaios filosóficos, cit ., p. 292, menciona uma “dupla reserva falibilista” dateoria do discurso: “o acordo realizado ‘em dois níveis’ nos discursos morais de fundamentação e aplicação está atémesmo sob uma dupla reserva falibilista. Retrospectivamente, podemos nos dar conta tanto de que nos enganamos arespeito dos pressupostos da argumentação como de que não prevemos certas circunstâncias relevantes.”36 Confira TORRES, Ricardo Lobo. “A legitimação dos direitos humanos e os princípios da ponderação e darazoabilidade”. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.) Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: EditoraRenovar, 2002. p. 400. Com apoio nas reflexões de Josef Isensee, o autor atenta para o caráter falibilista dalegitimação: “a justificação nunca é definitiva e eterna, senão que leva sempre a novas legitimações. Observa Isenseeque “o processo de justificação do Estado não tem fim, ele dura enquanto a reflexão sobre ele permanece””.37 Id ., ibid., p. 401.
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ao positivismo. Portanto, distingue-se da legitimação, pois esta “é buscada fora do ordenamento
ou do direito a ser justificado38”, possuindo uma conotação moral e também ideal.
Por último, a “legitimidade” significa o consenso empírico sobre a adequação entre aordem jurídica e os valores compartilhados por uma determinada sociedade que conduz, por sua
vez, à obediência e ao cumprimento espontâneos do direito pelos seus destinatários. Aproximo,
assim, o conceito sob comento de seu tradicional significado sociológico atribuído por Max
Weber39. O aludido consenso, de caráter político-cultural e alicerçado sobre uma determinada
opção de identidade coletiva, pode, no entanto, entrar em colisão com os direitos humanos e
fundamentais – que têm uma pretensão universal de validade – e, consequentemente, com a
questão da legitimação anteriormente mencionada. Neste caso, prevalecerá o postulado moralkantiano da prioridade do justo sobre o bem, também seguido pela teoria do discurso de Jürgen
Habermas e Robert Alexy como um exemplo de teoria deontológica acerca da racionalidade
prática.
2. 2. Razão prática, legitimação e aplicação do Direito.
Klaus Günther, em sua tese de doutoramento40, elabora uma importante distinção analítica
entre os discursos de justificação ou fundamentação e o discurso de aplicação ou adequação das
normas. Os discursos de justificação são discursos especializados em fundamentar pretensões de
validade normativa “sob circunstâncias inalteradas” (things being equal). A validade de uma
norma é aferida, segundo o autor, com apoio em uma versão fraca ou débil do critério de
universalização fornecido pelo princípio “U” (princípio de universalização), a partir do qual é
estabelecido um sentido recíproco e universal de imparcialidade na justificação dos enunciados
normativos. Deste modo, uma norma será imparcial e, portanto, estará justificada, quando puderobter o assentimento de todos os envolvidos em um discurso prático sob condições situacionais
(S x) conhecidas em um momento (t x). Isto é, um discurso sobre razões para o agir que sejam
38 Id ., Ibid ., p. 403.39 Confira WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de RegisBarbosa e Karen E. Barbosa. 3ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. v. 1. p. 139 et seq.40 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação . Tradução de ClaudioMolz. São Paulo: Landy Editora, 2004.
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igualmente boas para todos os concernidos pelo discurso naquele momento e sob determinadas
circunstâncias empíricas previstas pelos seus partícipes.
Os discursos de justificação ou fundamentação excluem artificialmente – mediante aelaboração de uma ficção – a consideração de todas as possíveis situações de aplicação, pois
simplesmente os partícipes de um discurso, diante do conhecimento e do tempo limitados, não
têm condições de prever todas as possíveis circunstâncias empíricas passíveis de justificar uma
exceção à aplicação da norma inicialmente apta a reger um determinado caso concreto. Pressupor
o contrário, ou seja, postular a previsão pelos participantes em uma argumentação de todas as
características relevantes de todas as possíveis situações de aplicação da norma em questão,
constituiria uma idealização teórica extremada, exigindo sobremaneira do caráter contrafático –aliás já acentuado – da teoria do discurso. Neste sentido, sintetiza Klaus Günther: “normas
válidas são então aplicáveis somente prima facie se aquelas circunstâncias que elas pressupõem
são válidas [isto é, estão in casu presentes]41”.
No discurso de aplicação, entretanto, não será mais possível manter a ficção
supramencionada. Em seu âmbito, a aplicação de um enunciado normativo é tematizada “sob a
consideração de todas as circunstâncias” (all things considered ), de tal modo que o foco
discursivo passa a residir na análise de todas as características fáticas consideradas relevantes em
um determinado caso específico que podem, inclusive, excepcionar a aplicação de uma norma
tida como prima facie adequada para a situação em tela. A “consideração de todas as
circunstâncias” promovida pelo discurso de aplicação ou adequação conduz ao fenômeno da
colisão entre normas. Tal colisão somente tem lugar diante um caso concreto, já que o juízo que
atribui relevância argumentativa a novas características situacionais, inicialmente
desconsideradas pelo discurso de fundamentação, é sempre formulado à luz de outras normas
também prima facie válidas após a realização dos respectivos discursos de justificação.
Em um estágio pós-convencional da moralidade, a razão prática divide-se em discursos de justificação situacionalmente independentes e discursos de aplicação responsáveis pelo exame de
todos os elementos empíricos relevantes em uma dada situação, sendo que estes complementam o
sentido de imparcialidade ou eqüidade pretendido pelos primeiros. Há, assim, um vínculo
41 GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica.Cadernos de Filosofia Alemã , nº 6, p. 85-112, 2000. p. 90.
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indissociável entre o discurso de justificação ou legitimação e o discurso de adequação ou
aplicação das normas.
Em síntese, o discurso de legitimação ou justificação dos direitos humanos efundamentais não se encontra mais sozinho42. Ele precisa, a todo o momento, ser complementado
por discursos de aplicação que, por sua vez, devem levar em consideração o caráter
particularmente rigoroso ou forte da cláusula prima facie que define tais direitos. Assim,
inclusive os direitos humanos e fundamentais legitimados discursivamente podem, em situações
excepcionalíssimas, sofrer limitações ante a força motivadora de argumentos
conseqüencialistas43. O discurso de legitimação exige, porém, um ônus argumentativo muito
elevado nas hipóteses de restrição dos direitos individuais em nome da promoção de outros bensou interesses, sobretudo coletivos, que extrapolem o núcleo dos direitos humanos e
fundamentais44.
42 Esta constatação teórica conduz à necessária – e, portanto, inafastável – dimensão de historicidade do discurso delegitimação mencionada por Habermas em diferentes artigos. Neste sentido, confira HABERMAS, Jürgen.“Comentários à Ética do Discurso”. In: HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Tradução de GildaL. Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 139-140, grifo no original: “Por natureza, o saber prático, emoposição ao saber empírico, está em relação com a acção. (...) Devido à relação para com a acção, a influência dahistória sobre o saber moral relativo à forma como as coisas se devem comportar no mundo social é diferente dainfluência sobre o saber empírico alusivo à forma como as coisas se comportam no mundo objectivo. A falibilidade
que caracteriza todo o saber, e portanto também os resultados dos discursos de fundamentação e de aplicação, querdizer a reserva quanto a um potencial crítico de um saber futuro melhor, isto é, quanto à história sob a forma dosnossos próprios processos de aprendizagem não antecipáveis. (...) A incompletude do que pode ser produzido pordiscursos morais de fundamentação pode ser explicada, em última análise, pelo facto do mundo social (...) apresentaruma constituição ontológica distinta. Apesar da nossa atitude oblectivante pressupor que o mundo objectivo é atotalidade dos factos existentes, o mundo social, enquanto tal, tem, de facto, um caráter histórico. (...) As éticasdeontológicas apenas pressupõem, em última análise, que o ponto de vista moral permanece idêntico; porém, nem anossa interpretação desta intuição fundamental nem as interpretações que atribuímos às regras moralmente válidasquando da sua aplicação em casos imprevisíveis permanecem invariáveis.”43 Confira, nesse diapasão: FARREL, Martín D. “La ética de la función judicial”. In: MALEM, Jorge. OROZCO,Jesús. VÁZQUEZ, Rodolfo. La función judicial: ética y democracia. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003. p. 147-161.Segundo o autor, a ética da função judicial é normalmente deontológica, ou seja, uma ética que privilegia o respeitoaos direitos fundamentais em detrimento das considerações de utilidade. Deste modo, os direitos fundamentais sãotrunfos – no sentido conferido por Ronald Dworkin – que devem ser garantidos pelo Poder Judiciário anteconsiderações de bem-estar geral. No entanto, aduz Martín Farrel, em duas situações a equação poderá inverter-se demodo justificado: em primeiro lugar, no caso de uma colisão entre dois direitos fundamentais igualmenteimportantes, prevalecerá o direito que produzir as melhores conseqüências para a coletividade como um todo; emsegundo lugar, a garantia de um direito fundamental pode ser excepcionalmente afastada quando a mesma provocarconseqüências trágicas para todos os sujeitos de direito envolvidos e, em alguns casos, também para a própriainstituição do direito.44 Robert Alexy, por exemplo, defende uma precedência prima facie em favor do direitos individuais na hipótese decolisão com bens coletivos também tutelados pelo texto constitucional. Confira, nesse diapasão, ALEXY, Robert.“Derechos individuales y bienes colectivos”. In: ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Traducciónde Jorge M. Seña. 2ª edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2004. p. 207: “El concepto de tomar en serio [alindividuo] no implica que las posiciones de los individuos no puedan ser eliminadas o restringidas en aras de bienes
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2. 3. Da fundamentação à legitimação: em busca de um conceito desnaturalizado delegitimação.
A comparação entre os conceitos de “verdade” e “correção” é fundamental para
delinearmos os pressupostos teóricos do discurso de legitimação, assim como para a compreensão
do significado da “validade” atribuída pela teoria do discurso aos direitos humanos45.
Jürgen Habermas explicita as seguintes diferenças entre as pretensões de verdade e de
correção: em primeiro lugar, falta à pretensão de correção moral a referência a um mundoobjetivo que define, por sua vez, as pretensões de verdade dos juízos descritivos. Os nossos
juízos morais não podem ser confrontados com a “natureza das coisas” ou com uma realidade
“em si” que transcenda a própria argumentação. Assim, a verdade de um enunciado descritivo
pode ser comprovada à luz da experiência, de tal modo que seja possível a constatação de uma
concordância entre o enunciado proferido e o “mundo objetivo” (por exemplo, a verificação
empírica do poder explicativo das leis da física e da química no âmbito das ciências exatas).
Diferentemente da pretensão de verdade, a legitimação ou a justificação de uma norma, ou seja, o
fato de ser “digna de reconhecimento”, dá-se a partir de um discurso prático orientado “por uma
colectivos pero sí que para ello tiene que ser posible una justificación suficiente. (...) No existe ninguna justificaciónsuficiente para una eliminación o restrición si en un caso de colisión es dudoso que existan mejores razones para elderecho individual o para el bien colectivo o en un caso tal se constata que para ambos puden hacerse valer razonesigualmente buenas. En ambos casos, el postulado de tomar en serio al individuo – que há de ser explicitado a travésde la exigencia de una justificación suficiente – exige la precedencia del derecho individual”. Ana Paula deBarcellos, em sentido semelhante, defende um parâmetro normativo geral para a ponderação, segundo o qual asnormas que realizem diretamente os direitos fundamentais dos indivíduos têm preferência sobre normas relacionadasapenas indiretamente com os direitos fundamentais. Cf: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade eatividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005. p. 235-274.45 Segundo Robert Alexy, os direitos humanos são direitos morais (moral rights). Confira, nesse sentido, ALEXY,Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem. Direitosfundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 217: 55-66, jul./set. 1999. p. 60: “Direitos morais podem, simultaneamente, ser direitos jurídico-positivos; sua validez, porém,não pressupõe uma positivação. Para a validez ou existência de um direito moral basta que a norma, que está na suabase, valha moralmente. Uma norma vale moralmente quando ela, perante cada um que aceita uma fundamentaçãoracional, pode ser justificada”.
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inclusão sempre mais ampla de pretensões alheias e de outras pessoas [que] pode compensar a
ausente referência ao mundo46”.
Em segundo lugar, a validade ou correção dos juízos morais se mede pela naturezainclusiva de um acordo normativo obtido entre os participantes de um discurso47. Os pressupostos
normativos da argumentação exigem dos partícipes a adoção das perspectivas de todos os outros,
bem como a consideração de seus respectivos interesses. A legitimação dos direitos humanos não
pressupõe um “dado” – como por exemplo a “natureza” do homem ou um mundo moral
“objetivo” – mas uma perspectiva construtivista, isto é, uma validade que é construída no
discurso por meio de argumentos48. Neste sentido, somente são válidos os juízos e normas que,
do ponto de vista inclusivo da igual consideração das reivindicações pertinentes de todas aspessoas, poderiam ser aceitos por boas razões por cada pessoa envolvida. Consoante Habermas:
“o universo moral perde a aparência ontológica de algo dado e é visto como algo construído49”.
Por último, exatamente por não possuir a “segurança” de um referencial mundano que
transcenda o discurso, as normas discursivamente justificadas encontram-se submetidas a uma
“dupla reserva falibilista50” que aponta para a dimensão de historicidade do discurso de
legitimação. Em primeiro lugar, de modo retrospectivo os participantes de um discurso de
legitimação podem perceber que nem todos os argumentos relevantes foram “testados” no âmbito
do discurso ou, então, que sua natureza inclusiva não foi satisfeita em razão da exclusão
injustificada de temas e/ou participantes51. Em segundo lugar, com apoio nas reflexões de Klaus
46 HABERMAS, Verdade e justificação: ensaios filosóficos, cit ., p. 290, grifo nosso. Veja, também, sobre o tema oexcelente artigo de SIEBENEICHLER, Flávio Beno. A justiça como inclusão do outro. ETHICA – Cadernos Acadêmicos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 93-109, 2001, p. 105: “a validade dos juízos morais pode ser, de certaforma, ‘medida’ pela natureza inclusiva de um acordo normativo obtido entre as partes que militam a favor denormas, pois, os que se envolvem em controvérsias morais orientam-se pelo alvo da ‘única resposta correta’, ou seja,eles supõem que a moral válida refere-se a um único mundo social que inclui de forma simétrica as pretensões detodas as pessoas envolvidas, as quais constituem, por assim dizer, um mundo moral”.47 HABERMAS, Verdade e justificação: ensaios filosóficos, cit ., p. 294.48 Cf. HABERMAS, Verdade e justificação: ensaios filosóficos, cit ., p. 294, grifo no original: “Seguindo essaconcepção construtivista, pode-se explicar a incondicionalidade das pretensões morais de validade pelauniversalidade de um âmbito de validade a ser criado: só são válidos os juízos e normas que, do ponto de vistainclusivo da igual consideração das reivindicações pertinentes de todas as pessoas, poderiam ser aceitos por razõespor parte de cada pessoa envolvida”.49 Id ., ibid ., p. 297.50 Id ., ibid ., p. 292.51 Este ponto, em particular, constitui o núcleo da crítica de muitos autores (entre eles, destaca-se Ota Weiberger) àteoria do discurso, segundo a qual a observância das regras do discurso não garantiria com suficiente segurança a“bondade” dos argumentos aduzidos pelos participantes. Robert Alexy introduz uma nova premissa empírica nateoria do discurso com apoio no conceito de “faculdade de julgamento dos participantes”, isto é, a capacidade dos
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Günther, um discurso de legitimação precisa sempre ser “atualizado” e complementado por
discursos de aplicação que podem identificar circunstâncias imprevistas que acabem por conduzir
à revisão do processo de legitimação de uma norma de direitos humanos.O discurso de legitimação atenta para a importante distinção entre “verdade” e “correção”.
Os juízos morais não são passíveis de “verdade”, pois falta-lhes uma “ordem objetiva de valores”
(imutável ou apriorística) com a qual possam ou não entrar em correspondência. Neste aspecto,
os positivistas estão parcialmente corretos ao afirmarem que tais juízos não podem ser nem
verdadeiros nem falsos. No entanto, no âmbito do paradigma da racionalidade prática, ao qual
pertence a teoria do discurso, os juízos morais, assim como os enunciados normativos que
consagram os direitos humanos, são passíveis de “correção” ou “incorreção” e, portanto, deracionalidade. Esta é medida pela natureza inclusiva do discurso, bem como pelo respeito dos
participantes aos seus pressupostos normativos e às condições exigentes de comunicação em
busca do melhor argumento. Em síntese, a legitimação discursiva de um enunciado normativo é
construída por meio da argumentação e, sobretudo, com apoio nos exigentes pressupostos
normativos que condicionam essa prática social.
A idéia de uma fundamentação absoluta, compreendida como a busca de algum
referencial extramundano (por exemplo, a idéia de uma ordem objetiva e imutável de valores fora
da prática social cotidiana) ou, então, de “algo” inato ao homem, somente conduz o filósofo a
aporias. Para Ernst Tugendhat, “a filosofia não pode fazer nada mais do que analisar
adequadamente em suas pressuposições uma pré-compreensão [moral] existente; ela não possui
nenhum ponto de referência extramundano, próprio52”.
3. A legitimação teorético-discursiva dos direitos humanos e da constituição no pensamento
de Robert Alexy.
mesmos em distinguir as boas das más razões. Cf. sobre a questão: ALEXY, Robert. “Una concepción teórico-discursiva de la razón práctica”. In: ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Traducción de Jorge M.Seña. 2ª edicción. Barcelona: Editorial Gedisa, 2004. p. 139-140.52 TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética. 5ª edição revista. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. p. 28, grifo nosso.
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A estratégia de legitimação dos direitos humanos desenvolvida pelo autor insere-se no
pensamento moral kantiano e, neste sentido, a sua compreensão teórica é informada por dois
princípios fundamentais, quais sejam: a universalidade de tais direitos e a autonomia de seustitulares. O princípio da universalidade aduz que todos os homens têm determinados direitos
válidos erga omnes, isto é, direitos que transcendem as fronteiras moralmente contingentes do
Estado, da cultura, da tradição, da religião e do grupo social a que pertencem. O princípio da
autonomia, por sua vez, desdobra-se em duas direções: a autonomia pública dos cidadãos e a
autonomia privada dos sujeitos de direito. A garantia e o desenvolvimento pleno de ambas
somente é possível no âmbito de um Estado constitucional democrático, no qual os direitos
humanos – ao assumir a forma positiva de direitos constitucionais fundamentais – e aparticipação democrática, conjuntamente, passam a preservar e estimular o fato do pluralismo53.
A estratégia teorético-discursiva de legitimação dos direitos humanos divide-se em duas
etapas ou tarefas que são complementares: em primeiro lugar, a necessidade de legitimação das
regras do discurso prático e, em segundo lugar, a justificação dos direitos humanos com apoio em
tais regras que presidem a argumentação sobre questões práticas. Privilegiaremos, em especial, a
segunda tarefa, mais próxima ao tema sobre a legitimação dos direitos humanos e fundamentais.
A teoria do discurso é uma teoria procedimental da correção prática. Uma norma é correta
e, portanto, válida, quando é o resultado de um determinado procedimento de argumentação, ou
seja, de um discurso prático racional presidido por um sistema de regras da razão prática 54.
53 Confira, nesse sentido, RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. 2ª edição.São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 80: “(...) a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes erazoáveis não é uma simples condição histórica que pode desaparecer logo; é um traço permanente da cultura públicada democracia. Sob as condições políticas e sociais asseguradas pelos direitos e liberdades básicos de instituiçõeslivres, a diversidade de doutrinas abrangentes conflitantes e irreconciliáveis – e, mais ainda, razoáveis – surgirá epersistirá, se é que essa diversidade já não se verifica”. Rawls opõe ao fato do pluralismo razoável o “fato daopressão”, segundo o qual “um entendimento compartilhado e contínuo que tem por objeto uma única doutrinareligiosa, filosófica ou moral abrangente só pode ser mantido pelo uso opressivo do poder estatal” (RAWLS, Oliberalismo político, cit ., p. 81).54 Cf: ALEXY, Robert. “Teoria del discurso y derechos humanos”. In: ALEXY, Robert. Teoria del discurso yderechos humanos. Traducción e introducción de Luis Villar Borda. Colombia: Universidad Externado de Colombia,1995. p. 66 et seq. Em língua inglesa, confira: ALEXY, Robert. Discourse theory and human rights. Ratio Juris. Vol.9, nº 3, p. 209-235, september 1996. p. 211 et seq. O sistema de regras da razão prática é integrado por regras comcaráter monológico e outras com caráter dialógico. As primeiras presidem também monólogos e não apenas osdiscursos práticos, portanto, não constituem regras específicas do discurso. São elas: a não contradição, auniversalidade no sentido de um uso consistente dos predicados utilizados, a clareza lingüístico-conceitual, a verdadeempírica, a consideração dos efeitos da decisão e, por último, a ponderação. As regras que especificamente possuemum caráter dialógico ou discursivo garantem a imparcialidade do discurso. Elas garantem a liberdade e a igualdadedos partícipes em uma argumentação, expressando ao nível do discurso os ideais liberais de autonomia e
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Apesar de ser uma teoria eminentemente processual ou procedimental, ela não é uma teorização
dotada de pressupostos neutros. Segundo Robert Alexy:
a idéia do discurso não é uma idéia neutra. Ela encerra a universalidade e a autonomia daargumentação, e também uma concepção de imparcialidade apoiada nestas. A idéia dodiscurso é, assim, uma idéia essencialmente liberal. Por esta razão, os problemas emfundamentar uma posição liberal começam ao nível do discurso.55
Robert Alexy desenvolve sua estratégia de legitimação das regras do discurso a partir de
uma argumentação que se divide em três partes também complementares: em primeiro lugar, com
apoio nas reflexões de Karl O. Apel, Jürgen Habermas e John L. Austin, defende um argumento
transcendental pragmático em sentido débil ou fraco, tendo em vista que “não oferece umafundamentação infalível, mas somente uma reconstrução falível do conteúdo normativo fático de
pressupostos da argumentação inevitáveis56”. Esse argumento é responsável por identificar um
sistema de regras do discurso que presidem a práxis de argumentação, tal como a concebemos
como participantes em nossa prática comunicativa cotidiana57. A teoria do discurso “rastreia,
desse modo, o potencial racional existente na realidade humana58”.
universalidade. As principais regras com conteúdo dialógico são: (1.) todos podem tomar parte no discurso; (2.a.)
todos podem questionar qualquer afirmação; (2.b.) todos podem introduzir qualquer asserção no discurso; (2.c.)todos podem exteriorizar seus critérios, desejos e necessidades; e (3.) nenhum falante pode ser impedido de exercer asalvaguarda de seus direitos fixados em (1.) e (2.), quando dentro ou fora do discurso predomina a força. SegundoALEXY, Teoria del discurso y derechos humanos, cit ., p. 68: “una norma sólo puede encontrar consentimientouniversal en un discurso, cuando las consecuencias de su observancia general para la satisfacción de los intereses decada uno puedan ser aceptadas por todos”.55 Id ., ibid ., p. 70.56 Id ., ibid ., p. 71. Argumentos transcendental-pragmáticos são argumentos filosófico-lingüísticos que esclarecem ospressupostos normativos necessariamente inscritos na argumentação prática e nos atos de fala individualmenteconsiderados. Esses argumentos são responsáveis pela reconstrução dos ideais de liberdade e de igualdade queinevitavelmente presidem a argumentação se a concebermos – como aliás o fazemos – como uma práticacomunicativa orientada somente pela força do melhor argumento e jamais pela força da violência ou da coerção.Robert Alexy desenvolveu tais argumentos a partir da teoria dos atos de fala elaborada por John L. Austin, filósofoanalítico que integrou a Escola de Oxford. Veja: AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução eapresentação de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. O caráter fraco de taisargumentos reside no falibilismo de sua reconstrução normativa, pois como bem lembra HABERMAS, Comentáriosà Ética do Discurso, cit ., p. 188, grifo no original: “(...) Como não possuímos, na realidade, nenhum equivalentefuncional para discursos racionais, não nos resta outra opção: temos de contar inelutavelmente com os pressupostospragmáticos desta forma exigente de comunicação [a argumentação], porque não há, de facto, outra alternativa. Estacomprovação da não-rejeitabilidade factual de pressuposições de teor normativo de uma prática entrelaçadainternamente com a nossa forma de vida sociocultural está certamente sujeita à constância dessa mesma forma devida. Não podemos excluir a priori a sua possibilidade de transformação.”57 As regras do discurso, esclarece Robert Alexy, não definem uma forma particular ou concreta de vida, mas algoque é comum a toda forma de vida humana que é, por sua vez, essencialmente dialógica e comunicativa. No entanto,a centralidade da argumentação pode encontrar-se obscurecida pela existência histórica de tabus, tradições ou
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Em segundo lugar, as regras do discurso, embora legitimadas teoricamente, são apenas
efetivamente cumpridas por aqueles que têm interesse em argumentação, correção e justiça. A
experiência histórica, passada e recente, demonstra a fragilidade – e um certo idealismo ingênuo– em sustentar que o interesse em correção represente uma motivação suficientemente forte para
o abandono definitivo do emprego da força, violência e dominação para a imposição dos
interesses do mais forte ante os demais. O argumento transcendental em sentido débil
supramencionado, excessivamente racionalista, abstrato e normativo, possui uma força
motivacional muito reduzida. Em regra, quanto maior o grau de abstração ou idealização de uma
razão para o agir, menor o respectivo potencial de motivação para o seu cumprimento.
Em terceiro lugar, mesmo para aqueles que não têm interesse em correção, o cumprimentodas regras do discurso apresenta-se como algo vantajoso, tendo em vista que a legitimação obtida
com tais regras é mais estável e menos custosa – portanto, mais eficiente – do que o exercício
constante e exclusivo da força para a manutenção da dominação. O terceiro componente da
argumentação sobre a legitimação das regras do discurso é centrado na maximização da utilidade
individual59.
A legitimação dos direitos humanos implica, por sua vez, a justificação da forma, do
conteúdo e da estrutura de tais direitos. A etapa seguinte da estratégia do autor para a legitimação
dos direitos humanos e fundamentais tem início com a defesa da necessidade do direito para a
institucionalização da teoria do discurso60. Os direitos humanos precisam assumir a forma
jurídica para desenvolverem todo o seu potencial normativo. A teoria do discurso é uma teoria
excessivamente idealizada e abstrata, tendo em vista que suas regras somente podem ser
cumpridas de modo aproximativo diante das limitações de tempo, de conhecimento e de
participantes que presidem o discurso jurídico. O direito oferece uma solução satisfatória para os
convenções que acabem por restringir ou anular os ideais de liberdade, igualdade e universalidade inscritos nodiscurso. Neste caso, os ideais normativos particularmente exigentes da teoria do discurso constituirão parâmetrosfundamentais de avaliação e crítica das práticas e instituições políticas, sociais, culturais e jurídicas historicamenteexistentes. Confira, nesse sentido: ALEXY, Teoría del discurso y derechos humanos, cit ., p. 86 et seq.58 Id ., ibid ., p. 86.59 Deste modo, conclui ALEXY, Teoria del discurso y derechos humanos, cit ., p. 72: “as linhas kantiana ehobbesiana (...) se relacionam na fundamentação das regras do discurso. Nela se mantém, por certo, dominante alinha kantiana”.60 ALEXY, Robert. “La fundamentación de los derechos humanos”. In: ALEXY, Robert. Teoria del discurso yderechos humanos. Traducción e introducción de Luis Villar Borda. Colombia: Universidad Externado de Colombia,1995. p. 94-96.
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três problemas fundamentais existentes no âmbito moral da teoria do discurso, quais sejam: os
problemas de conhecimento, de execução e de organização.
Em primeiro lugar, a teoria do discurso não oferece um procedimento infalível quepermita, em todos os casos, alcançar sempre de modo exato um único resultado. No direito, a
controvérsia, o dissenso e o desacordo constituem a regra e o consenso, ao contrário, a exceção.
As regras do discurso não conduzem necessariamente a uma única resposta correta e, com isso,
surge a importância da decidibilidade que define o direito diante do tempo limitado e da
necessidade de pôr termo aos conflitos sociais. Em segundo lugar, o direito garante o
cumprimento das normas legitimadas pelo discurso com apoio em sua coercibilidade, ou seja,
através do uso potencial e legítimo da força estatal. Por último, as exigências morais da teoria dodiscurso, bem como outros valiosos fins éticos, somente podem ser concretizados em sociedades
complexas e pluralistas por intermédio da organização e coordenação do direito. Em síntese, a
forma jurídica é fundamental para a efetividade da garantia e da promoção dos direitos humanos
nas sociedades contemporâneas.
Robert Alexy aduz a existência de duas classes de legitimação teorético-discursiva dos
direitos humanos: a direta e a indireta. Há, em primeiro lugar, um grupo de direitos humanos
diretamente legitimados sobre a base da teoria do discurso. Neste sentido, sem a garantia de tais
direitos não há discurso ou argumentação possíveis: eles constituem a base jurídica do discurso
prático. Eles são “discursivamente necessários [e] sua não validez é, também em sentido estrito,
discursivamente impossível61”. Por outro lado, os direitos humanos indiretamente legitimados
pela teoria do discurso são direitos cuja justificação dá-se por meio de um processo político
realizado de fato sob as condições exigidas pelo discurso. Eles são apenas direitos
“discursivamente possíveis”, pois são o resultado de uma deliberação política histórica conduzida
de modo aproximado segundo as regras do discurso. O primeiro grupo de direitos define o núcleo
dos direitos humanos e uma concepção minimalista de tais direitos. O segundo grupo de direitoscongrega direitos que são politicamente contingentes, isto é, direitos definidos pelo processo
democrático, e que, portanto, podem sofrer restrições ou ampliações consoante a história política
e ideológica de cada sociedade em particular.
61 Id ., ibid ., p. 97.
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Para a legitimação dos direitos humanos diretamente sobre a base do discurso, Robert
Alexy desenvolve três argumentos que se reforçam mutuamente: o argumento da autonomia, do
consenso e da democracia.O argumento da autonomia aduz que “aquele que toma seriamente parte em discursos
pressupõe a autonomia de seu interlocutor, fato que exclui a negação de determinados direitos
humanos62”. Segundo o princípio da autonomia, participam seriamente de discursos práticos
aqueles que desejam resolver os conflitos sociais através da argumentação e do consenso
discursivamente orientado e controlado, ou seja, renunciando ao uso da violência.
No entanto, nem todos ingressam no discurso com interesse em correção e pressupõem a
autonomia de seu interlocutor. Na política, assim como no direito, os interesses estratégicos depoder, na grande maioria dos casos, se sobrepõem empiricamente à busca pelo melhor
argumento. Não obstante, se desejam maximizar ao longo prazo suas utilidades individuais,
precisam atuar como se estivessem “aparentemente” interessados em argumentação e na busca
pelo melhor argumento, pois o exercício constante e habitual da violência não é o meio mais
eficiente para a obtenção da legitimação política. Neste sentido, o agir “latentemente” estratégico
dos partícipes interessados tão somente em auferir benefícios e vantagens pessoais em detrimento
dos demais vive “parasitariamente” do uso da linguagem voltado para o entendimento mútuo,
pois somente terá êxito enquanto uma das partes inadvertidamente continuar a pressupor de boa-
fé que está participando seriamente em um discurso prático. Assim, inclusive nesse caso, as
regras do discurso e o princípio da autonomia são confirmados e não excepcionados, mesmo que
um dos participantes do discurso não atue necessariamente orientado para o entendimento63.
Do princípio de autonomia decorre um direito geral à liberdade, sintetizado a seguir:
“cada um tem o direito de julgar livremente o que é conveniente e o que é bom e atuar em
conseqüência64”. Por sua vez, do direito geral à liberdade pode ser especificado um sistema de
direitos humanos que inclui, em primeiro lugar, todos os direitos de liberdade tradicionalmentepositivados em instrumentos normativos internacionais e nas constituições contemporâneas que
62 Id ., ibid ., p. 100.63 Sobre o agir estratégico latente, confira: HABERMAS, Jürgen. “Ações, atos de fala, interações mediadas pelalinguagem e mundo da vida”. In: HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução deFlávio Beno Siebenchler. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1990. p. 73-74.64 ALEXY, Robert. La fundamentación de los derechos humanos, cit ., p. 111.
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presidem sociedades liberais e democráticas65. Em segundo lugar, são legitimados também
direitos que configuram meios para a salvaguarda e promoção dos direitos de liberdade, tais
como: “direitos à proteção pelo Estado e direitos sociais fundamentais, como, por exemplo, odireito a um mínimo existencial66”. Neste sentido, os direitos de liberdade e os direitos relativos
ao mínimo existencial são direitos diretamente legitimados sobre a base da teoria do discurso.
Em segundo lugar, o argumento do consenso afirma que a igualdade e a universalidade
dos direitos humanos constituem um resultado necessário do discurso, isto é, todos têm direito ao
mesmo sistema básico de direitos humanos e fundamentais.
Por último, o argumento da democracia aduz que os ideais normativos inscritos na teoria
do discurso somente poderão ser realizados de modo aproximado com a institucionalização jurídica de procedimentos democráticos de formação da opinião e da vontade e, ressalta-se,
somente por este meio. Consoante o autor: “se na realidade é possível uma aproximação à
correção e legitimidade, isto somente é possível na democracia67”. Assim, também são
legitimados com apoio na teoria do discurso os direitos fundamentais de participação política.
Neste sentido, conclui Robert Alexy:
quem está interessado em correção e legitimidade, tem que estar interessado também em
democracia e igualmente terá de estar interessado em direitos fundamentais e direitoshumanos.68
A legitimação da Constituição é alcançada somente quando o seu texto consagra os
direitos humanos sob a forma positiva de direitos fundamentais, bem como a participação
democrática como principal método para a produção de decisões políticas. O ideal do discurso
somente pode ser institucionalizado em um Estado constitucional democrático, no qual os direitos
humanos, por um lado, e a democracia, por outro, apesar das inevitáveis tensões, passem
definitivamente a constituir uma inseparável unidade conceitual para fins de legitimação da
política e do direito nas sociedades pluralistas contemporâneas.
65 Por exemplo: direito à vida, à integridade física, direitos de personalidade, direito à liberdade básica de ação,liberdade de religião, de expressão, opinião, associação e reunião, liberdade de exercício de profissão, direito depropriedade, igualdade perante à lei, dentre outros.66 ALEXY, Robert. La fundamentación de los derechos humanos, cit ., p. 112-113.67 Id ., ibid ., p. 129.68 Id ., ibid ., p. 130.
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4. Considerações finais: possibilidades teóricas e limites práticos da teoria do discurso.
O discurso de legitimação dos direitos humanos deve atentar para a reconstrução dos
teores normativos que estão contidos nas pressuposições implícitas e tacitamente assumidas pelos
participantes em qualquer discurso voltado para o entendimento69. Segundo Jürgen Habermas:
Independentemente do pano de fundo cultural, todos os participantes justamente sabemintuitivamente muito bem que um consenso baseado na convicção não pode seconcretizar enquanto não existirem relações simétricas entre os participantes dacomunicação – relações de reconhecimento mútuo, de transposição recíproca das
perspectivas, de disposição esperada de ambos para observar a própria tradição tambémcom o olhar de um estrangeiro, de aprender um com o outro, etc. Partindo desseprincípio, pode-se criticar não apenas leituras parciais, interpretações tendenciosas eaplicações estreitas dos direitos humanos, mas também aquelas instrumentalizaçõesinescrupulosas dos direitos humanos voltadas para um encobrimento universalizante deinteresses particulares que induzem à falsa suposição de que o sentido dos direitoshumanos se esgota no seu abuso.70
A teoria do discurso fornece importantes subsídios teóricos para a elucidação e
mapeamento dos ideais normativos que permeiam a práxis de deliberação intercultural. A opção
coerente dos participantes pela argumentação moral e jurídica e, consequentemente, pelo
abandono da violência na resolução dos conflitos, somente tem lugar quando – paralelamente – é
institucionalizado um sistema de direitos que garantam as liberdades individuais, a igualdade
jurídica e a democracia para que todos possam expor suas razões e buscar de modo cooperativo o
entendimento ou, então, para que possam aduzir em um contexto de simetria de oportunidades
suas respectivas razões na defesa de seus interesses individuais ou coletivos.
Neste sentido, a teoria do discurso não constitui uma estratégia maximalista de
legitimação dos direitos humanos. O discurso de legitimação, enquanto um discurso filosófico e
moral, retira do âmbito da democracia deliberativa alguns direitos, prerrogativas e bensconsiderados fundamentais e, portanto, inegociáveis politicamente. Quanto maior a extensão da
concepção filosófica e moral sobre os direitos humanos, menor o âmbito de liberdade do
69 HABERMAS, Jürgen. “Acerca da legitimação com base nos Direitos Humanos”. In: HABERMAS, J. AConstelação Pós-Nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Seligmann Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.p. 162.70 Id ., ibid ., p. 162-163, grifo no original.
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legislador e dos atores que interagem no espaço público para deliberação, tematização e crítica de
direitos, interesses e questões que, em muitos casos, são altamente controversos. É possível
identificar, desse modo, um trade-off entre a extensão dos direitos legitimados moralmente e aamplitude do grau de liberdade do legislador democrático em sua deliberação cotidiana sobre tais
questões. Um discurso de legitimação inflacionado, afirmam os críticos, acabaria por conduzir ao
imperialismo da moral sobre a política. A teoria do discurso objetiva encontrar o ponto ótimo
entre legitimação e democracia.
Assim, segundo Robert Alexy, “todos os direitos [humanos] merecem (...) proteção
jurídico-constitucional, mas nem tudo que merece proteção jurídico-constitucional deve ser um
direito [humano]”. A estratégia de legitimação teorético-discursiva postula um conceito nãoinflacionado de direitos humanos, segundo o qual são direitos humanos apenas aqueles direitos
que protegem ou promovem interesses ou carências fundamentais, cuja violação ou não
satisfação implica a morte, o sofrimento grave ou atinge o núcleo essencial da autonomia de seu
titular71. Deste modo, os direitos humanos são basicamente direitos do indivíduo, restando
excluídos do aludido conceito direitos referentes a grupos sociais particulares, comunidades
culturais ou ao Estado72. Esses últimos direitos poderiam ser garantidos politicamente por meio
do discurso, mas não integrariam o núcleo restrito de direitos discursivamente necessários73. A
teoria do discurso insere-se, assim, em uma estratégia de legitimação minimalista dos direitos
humanos74, também seguida por outros importantes autores, tais como John Rawls75 e Wolfgang
Kersting76. No mesmo sentido, assevera Emílio García Méndez:
71 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático: para a relação entre direitos dohomem, direitos fundamentais e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 217, jul./set. 1999. p. 61.72 Id ., ibid ., p. 59.73 Cf. ALEXY, Robert. “Una concepción teórico-discursiva de la razón práctica”. In: ALEXY, Robert. El concepto yla validez del derecho. Traducción de Jorge M. Seña. 2ª edicción. Barcelona: Editorial Gedisa, 2004. p. 154: “Entreellos se cuentan, por lo menos, el derecho a la vida y a la integridad física y, además los derechos a la personalidad, ala libertad básica de acción, a la libertad de religión, de opinión y de reunión, de ejercicio de la profesión y depropriedad, al tratamiento básicamente igual y a la participación en el proceso de formación de la voluntad política.Además, probablemente entre estos derechos se cuentan derechos sociales fundamentales mínimos, tales como elderecho a un mínimo vital”.74 Cabe ressaltar a dimensão gradual do conceito de minimalismo, podendo este ser mais ou menos intensodependendo da formulação teórica de cada autor em particular.75 Cf. RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 103,grifo nosso: “Por um lado, alguns pensam nos direitos humanos como mais ou menos os mesmos direitos que oscidadãos possuem em um regime democrático constitucional razoável; essa visão simplesmente expande a classe dosdireitos humanos para que inclua todos os direitos que governos liberais garantem. Os direitos humanos no Direito
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A insistência em expandir incessantemente as áreas da vida econômica e social quedevem ser entendidas como direitos humanos debilita de forma considerável qualquer
agenda política confiável e, sobretudo, mobilizadora em matéria de direitos humanos.Não me parece que seja expandindo a lista dos direitos humanos, como uma espécie defuga para o futuro, que se recupere a credibilidade perdida.77
O minimalismo na legitimação discursiva dos direitos humanos tem aspectos negativos e
positivos. Para muitos estudiosos e militantes dos direitos humanos, a desvantagem reside
principalmente na amplitude limitada da legitimação discursiva de tais direitos, bem como no
esvaziamento de sua dimensão “utópica”. Assim, nem todos os direitos demandados por grupos
ou movimentos sociais constituem rigorosamente direitos humanos. Certamente essas
reivindicações são importantes, algumas até mesmo fundamentais, no entanto não versam sobre
direitos humanos, mas sobre direitos de comunidades ou grupos sociais específicos que merecem,
por sua vez, uma denominação distinta.
Deste modo, a teoria do discurso acaba retirando parte da legitimidade que preside a pauta
reivindicatória capitaneada por esses atores sociais no âmbito da esfera pública. Ao mesmo
tempo, em muitas sociedades – até pouco tempo fortemente marcadas pelos ideais de bem-estar
inspirados pelo Welfare State – o minimalismo abre a possibilidade de retrocesso no âmbito dos
dos Povos, por contraste, expressam uma classe especial de direitos urgentes, tais como a liberdade que impede aescravidão ou servidão, a liberdade (mas não igual liberdade) de consciência e a segurança de grupos étnicoscontra o assassinato em massa e o genocídio. A violação dessa classe de direitos é igualmente condenada por povosliberais razoáveis e por povos hierárquicos decentes”. Os direitos humanos supramencionados constituem limites àautonomia interna (soberania) de um regime político, assim como o seu cumprimento é suficiente para excluir aintervenção coercitiva e a aplicação de sanções diplomáticas ou econômicas a um Estado. Além disso, essa classeespecial de direitos – menos extensa do que o conjunto dos direitos fundamentais constitucionais positivado emEstados democráticos e liberais – estabelece um limite para o pluralismo político e cultural entre os povos em umasociedade internacional justa.76 Cf. KERSTING, Wolfgang. “Em defesa de um universalismo sóbrio”. In: KERSTING, Wolfgang. Universalismoe direitos humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 95 et seq. O autor defende um “minimalismo rigoroso” emrelação ao conceito de direitos humanos, salvando-o de seu desgaste declamatório que o conduz à ineficácia social.Deste modo, divide os direitos humanos em direitos humanos condicionais e programáticos. Entre os primeiros,inclui o direito à vida, à integridade física, à segurança básica e à subsistência, isto é, “eles assinalam o limiar entresituação limítrofe e normalidade; asseguram os pressupostos coletivo-institucionais de uma vida que tenha sentido epossa esperar que vá terminar por morte natural” (p. 95). Os direitos programáticos incluem o direito à igualdadepolítica, à democracia e à autodeterminação política, direitos de solidariedade, dentre outros. Os direitoscondicionais atendem às necessidades existenciais dos homens independentemente do regime político ou cultura aque pertencem. O primeiro grupo dos direitos humanos é chamado de condicional porque formula exclusivamente ascondições indispensáveis para que os seres humanos tenham a oportunidade de ter um vida pacífica e segura emrelação ao futuro. Os direitos programáticos podem experimentar diferentes formulações históricas de acordo com asdistintas experiências políticas e tradições culturais.77 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: reflexões para uma nova agenda , cit .,p. 18.
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direitos sociais até o limite máximo definido pelo mínimo existencial78. Esta possibilidade tem
fomentado, nos últimos anos, inúmeras manifestações sociais tanto na Europa, em especial as
recentes e violentas manifestações contra a flexibilização das leis trabalhistas na França, quantoem diferentes países da América Latina.
Por outro lado, pode ser citado como um importante aspecto positivo a operacionalidade
(e a facticidade) do conceito discursivo de direitos humanos. Por ser minimalista, tal conceito
configura-se mais resistente às objeções particularistas e relativistas formuladas pelas diferentes
culturas, religiões, tradições e regimes políticos existentes na sociedade internacional
contemporânea. Ele possui uma maior chance de ser reconhecido e aceito por diferentes Estados
e tradições culturais, além do fato de que a constatação e comprovação de sua violação, em razãoda extensão limitada de tais direitos, não ensejariam maiores dúvidas hermenêuticas79. Além do
mais, exatamente por ser minimalista, a legitimação discursiva possui uma menor probabilidade
de ser imperialista ou etnocêntrica, tendo em vista que maior será o âmbito de liberdade das
diferentes culturas, tradições e regimes políticos para a resolução de problemas sociais
fundamentais com apoio em instituições jurídicas e sociais adequadas às histórias, tradições e
valores culturais que definem a identidade coletiva de cada povo.
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